Recompensa, Honra, Submissão: versões da entrada do Brasil na Sociedade das Nações

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RECOMPENSA, HONRA, SUBMISSÃO: VERSÕES DA ENTRADA DO BRASIL NA SOCIEDADE DAS NAÇÕES

MARIANA YOKOYA SIMONI

Mariana Yokoya Simoni é diplomata, mestre em Ciências Sociais pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (CEPPAC), da Universidade de Brasília, e bacharel em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IREL/UnB). Tem experiência nas seguintes áreas de pesquisa: História da Política Externa do Brasil, Proteção Internacional dos Direitos Humanos, Justiça de Transição na América Latina. As ideias contidas neste capítulo não representam necessariamente a perspectiva do Ministério de Relações Exteriores.

INTRODUÇÃO

Foram várias as Conferências de Versalhes, de acordo com a visão de mundo, os objetivos e os instrumentos de barganha e de persuasão que cada representante nacional retinha à sua disposição. Wilson chegou com uma aura de “rei-filósofo” disposto a pacificar o mundo, por meio do poder da coerção da razão, expressa através da voz do povo; mas saiu dela como um professor universitário com boas intenções, mas incapaz de defender suas posições interna e externamente. Clemenceau já era um homem da política de poder, ainda que a prudência lhe aconselhasse “uma certa adesão verbal aos ‘ideais’ dos tolos americanos e dos hipócritas ingleses” (KEYNES, 2002, p. 21), e conseguiu transformar rapidamente a “Paz dos Quatorze Pontos” em uma “Paz de Cartago”. Lloyd George lançava mão, igualmente, de muitos dos ardis do Velho Mundo, mas buscava certa moderação entre os desígnios presbiterianos de Wilson e o desejo de efetivo alijamento da Alemanha por Clemenceau. O ano de 1914 havia demarcado a decadência de um período de grande progresso material e humano na Europa e no mundo, assim como da predominância do liberalismo político. Era necessário, portanto, reconstruir o mundo em diferentes moldes. Tal era o papel da Conferência de Paz de Paris de 1919, particularmente de seu Conselho dos Quatro. Na perspectiva do Presidente dos EUA, Woodrow Wilson, “a menos que a Conferência se

prepare para seguir a opinião da humanidade”, dizia em seu trajeto para Paris, “e para expressar a vontade do povo mais do que a dos líderes da Conferência, nos envolveremos em outro conflito mundial.” (CARR, 2001, p. 46). Ao ser indagado por alguns assessores se pensava que seu plano para uma paz duradoura funcionaria, respondeu rapidamente que “se não funcionar, teremos de fazê-lo funcionar” (CARR, 2001, p. 12). Essa era uma visão otimista e idealista do devir das negociações. De outro ponto de vista, John M. Keynes, enviado britânico para o Conselho Econômico Supremo das Potências Aliadas, avaliou que “Paris foi um pesadelo, e todos estavam envolvidos por uma atmosfera de morbidez. Um sentido de catástrofe iminente assombrava o frívolo cenário: a futilidade e mesquinharia do homem diante dos grandes eventos que o confrontavam; o significado ambíguo e o irrealismo das decisões; a ligeireza, a cegueira, a insolência, os gritos confusos de ira - havia ali todos os elementos da tragédia antiga.” (KEYNES, 2002, p. 3). Além disso, Keynes afirma que “os procedimentos em Paris tinham todos esse ar de extraordinária relevância e ao mesmo tempo de pouca importância. As decisões tomadas pareciam prenhes de consequências para o futuro da sociedade humana; contudo, o contexto insinuava que as palavras não tinham peso - eram fúteis, insignificantes, sem efeito, dissociadas dos fatos.” (KEYNES, 2002, p. 3). Sua perspectiva é mais ponderada e crítica às consequências econômicas da Paz de Cartago para a recuperação econômicofinanceira da Europa e para o revanchismo alemão. Sem dúvida, o entreguerras foi um período caracterizado por profundas transformações políticas, econômicas e sociais. Estadistas e homens comuns tinham a impressão de estar vivendo um momento crucial de tomada de decisões que iriam influenciar as próximas gerações de maneira definitiva. Ao mesmo tempo em que se colocava muitas expectativas nas tratativas de paz e na Liga das Nações, “a guerra já projetava sua sombra sobre o mundo”, conforme salienta Edward Carr. Trata-se de uma circunstância de grande peculiaridade, em que aparentemente estão abertas alternativas para uma nova ordem, mas onde ainda persistem as âncoras das antigas práticas e visões de mundo. Sob essas condições de incerteza, cada Estado detém o seu entendimento a respeito de tais mudanças e do futuro do sistema internacional, assim como planos sobre sua nova inserção nesse sistema. Nesse contexto de transição, cabe perguntar como teria sido a Conferência de Versalhes para os delegados brasileiros e para os expectadores das diversas capitais do país? Em geral, aborda-se o tema da atuação do Brasil na Conferência de Paz e na Liga das Nações 2

tendo por referência o processo de retirada do país em 1926 ou tecendo comparações entre as falhas desse organismo internacional utópico e a sua sucessora, a Organização das Nações Unidas, criada em 1945. Algumas das principais referências bibliográficas nacionais na matéria são as análises de Eugênio Vargas Garcia, de Francisco Luiz Teixeira Vinhosa, de José Carlos de Macedo Soares, de Norma Breda dos Santos e de Otto Prazeres. Os estudos de Eugênio Vargas Garcia e Francisco Teixeira Vinhosa contêm, particularmente, interessantes observações sobre política interna e declarações da opinião pública nacional desse período. Apesar do frequente enfoque na saída do Brasil da Sociedade das Nações, considerouse que há grande interesse em investigar a entrada do Brasil nessa organização, para melhor compreender as seguintes questões. Primeiramente, quais eram as principais expectativas da Chancelaria brasileira e de parte da opinião pública interna, assim como quais as críticas que permeavam o debate no interior do Itamaraty e em alguns jornais da época? Quais juízos do meio internacional influenciavam o pensamento de diplomatas e a formulação do discurso diplomático no período posterior à Primeira Guerra Mundial? Em segundo lugar, o que significou a entrada do Brasil na Liga das Nações e, em particular, qual a repercussão interna e para a projeção internacional do país da entrada do Brasil na Liga das Nações? Por fim, como essas diferentes perspectivas estavam inseridas no momento político vivido pelo Brasil em 1919, em especial na campanha presidencial daquele ano? Com relação à perspectiva da Chancelaria brasileira, considerou-se importante analisar os indivíduos envolvidos no processo decisório e a posição que ocupavam no campo político da diplomacia da época. Igualmente, examinaram-se as diferentes ideias acerca da participação e do papel do Brasil na Conferência de Paz e as suas relações com o campo discursivo diplomático pré-existente. Para esse fim, buscou-se reconstruir as principais crenças e ideias do discurso diplomático brasileiro por intermédio de análise de conteúdo orientada por três componentes básicos: as concepções sobre a natureza e a estrutura do sistema internacional; as percepções sobre a inserção do Brasil nesse sistema, com atenção especial às noções de papel, status e pertencimento; os entendimentos sobre a identidade nacional e a forma pela qual se manifestam na ação externa do país, projetando certos atributos materiais ou ideológicos que são apresentados como relativamente permanentes (SILVA, 1998, p. 143). No que concerne à pesquisa dos jornais, avaliou-se de grande relevância observar as ressonâncias e as dissonâncias de posições e argumentos oficiais na mídia nacional. Isso se 3

deve à importância dos meios de comunicação social para informar e veicular determinadas imagens e representações políticas dos eventos (BORDIEU 1981, citado por POLLAK, 1989, p. 7), recortando a realidade para um determinado público. Além disso, a mídia tem a função de constituir um instrumento de pressão ou um termômetro para os governos, influindo no processo de formulação de políticas públicas (MARINUCCI, 2008, p. 48). No final da primeira década do século XX, a percepção da mídia nacional sobre a realidade interna e internacional tornava-se crescentemente relevante para o processo de tomada de decisão. Desse modo, a compreensão desse elemento passou a ser importante para entender o contexto em que operaram os protagonistas que conduziram a diplomacia brasileira à época (LAFER, 2000, p. 12) . Desse modo, o objetivo deste artigo é descrever e analisar as diferentes versões acerca da entrada do Brasil na Sociedade das Nações, atentando para as percepções de mundo e de inserção internacional do Brasil dos diferentes atores envolvidos. Para tanto, buscou-se cruzar diferentes perspectivas e discursos acerca da participação do Brasil na Conferência de Paz de 1919, assim como da entrada do Brasil na Liga das Nações e da repercussão interna e externa desse acontecimento. Alguns desses discursos foram: o relato de Otto Prazeres, jornalista acreditado na missão brasileira em Paris, sobre suas impressões ao longo da Conferência; excertos de declarações ou telegramas dos delegados brasileiros à Conferência, como Epitácio Pessoa e Pandiá Calógeras; e notícias ou editoriais de jornalistas dos periódicos “A Época” e “O Imparcial” nos primeiros meses do ano de 1919. Além das fontes bibliográficas mencionadas, foram abordadas fontes primárias relevantes, como os Relatórios do Ministério das Relações Exteriores de 1918-1919 e de 1919-1920, bem como uma série de notícias de “A Época” e “O Imparcial”, principalmente. Vale destacar a peculiaridade de algumas das fontes utilizadas, como a narrativa da experiência pessoal de Otto Prazeres na Conferência e o livro de Francisco Teixeira Vinhosa, que buscou retomar o papel e o brilho de Domício da Gama, na Chancelaria entre 1918 e 1919, o qual fora, segundo o autor, medievalizado pela perspectiva hegemônica da biografia de Epitácio Pessoa. Ademais, é importante caracterizar brevemente a linha editorial dos jornais escolhidos: “A Época” foi um jornal editado no Rio de Janeiro entre 1912 e 1919 que, no governo de Delfim Moreira, voltou a mostrar esporádicas reportagens e textos críticos ao

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governo1; e “O Imparcial” foi, também, um jornal do Rio de Janeiro, com posição claramente favorável à candidatura de Rui Barbosa nas eleições de 1919 (GARCIA, 2006, p. 73). Tendo em vista que a Primeira Guerra Mundial representou significativo ponto de inflexão nas relações internacionais, com a ascensão de atores extra-europeus e mudanças na concepção da diplomacia em vigor, considerou-se fundamental entender melhor a perspectiva brasileira acerca desse período, em especial suas esperanças e receios sobre o mundo pósguerra e a entrada do Brasil na Liga das Nações. Ademais, como enfatizaram Carr e Keynes, é necessário ponderar as lições do colapso que envolveu a Europa na Segunda Guerra Mundial, a 22 meses da conclusão do Tratado de Versalhes, para compreender as consequências econômicas e políticas do alijamento de um parceiro com quem se têm profundas relações econômicas e espirituais, assim como para entender a incoerência de se manter a ilusão de continuidade de uma ordem que não seria mais possível dada a nova realidade internacional. Este artigo divide-se em quatro partes, além desta breve introdução. Na primeira seção, contextualiza-se o projeto de criação da Sociedade das Nações e descreve-se esse acontecimento conforme a perspectiva de Otto Prazeres. Na segunda parte, aborda-se a participação brasileira na Conferência de Paz e na organização da Liga das Nações, assim como analisa-se a perspectiva da Chancelaria brasileira sobre o status, o papel e o pertencimento do Brasil nesse processo. Na quarta seção, discute-se a perspectiva dos jornais selecionados, as ressonâncias e as críticas ante aos argumentos oficiais e o desempenho da delegação brasileira em Paris. Por fim, nas considerações finais, busca-se observar as principais diferenças e aproximações entres a versões observadas na terceira e na quarta seções sobre a entrada do Brasil na Sociedade das Nações.

1. A SOCIEDADE DAS NAÇÕES, A SOCIEDADE NACIONAL

A fundação da Sociedade das Nações, em 1919, teve por objetivo aumentar a coordenação e a cooperação entre os países e criar métodos efetivos de evitar destruição como a causada pela Primeira Guerra Mundial. Representou, igualmente, uma proposta inovadora de estruturação do sistema internacional sob o princípio da segurança coletiva, que previa que uma ameaça à segurança de um Estado significava uma ameaça para toda a comunidade 1

Informações colhidas em Hemeroteca Digital Brasileira.

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internacional. Para Celso Lafer, foi a primeira tentativa de constitucionalizar o direito internacional, o que expressava a transposição da experiência que associaram no plano interno, no século XIX, democracia e direito constitucional para conferir maior estabilidade no âmbito internacional (LAFER, 2000, p. 7). A Sociedade das Nações contrapunha-se ao modelo do Concerto Europeu, erigido na Conferência de Viena (1815), cuja natureza era fundamentalmente política e diplomática. O Concerto Europeu baseava-se na noção básica de equilíbrio de poder entre as grandes potências e na tentativa de acomodação dos interesses particulares dos Estados. A situação das pequenas e médias potências era precária, dependendo fundamentalmente desse equilíbrio de poder, o que foi sendo agravado tanto pela intensificação do movimento das nacionalidades como pela cristalização de alianças e acabou, por fim, impedindo a acomodação diplomática e levando ao início da Primeira Guerra Mundial. Centrado na delimitação de seu espaço nacional após a independência, o Brasil estava na periferia geográfica, política e econômica do Concerto Europeu, de modo que não tinha como se contrapor à diplomacia das grandes potências. A participação do Brasil na Conferência de Paz de 1919 derivou da modesta presença do país na Primeira Guerra, com o envio de uma divisão naval, de aviadores da Marinha e do Exército para Inglaterra e França e de uma missão médica brasileira à França2. O Brasil foi o único país da América do Sul a participar da guerra, mas sua colaboração econômica e militar foi irrelevante, em termos práticos, para o esforço de guerra dos aliados (GARCIA, 2005, p. 28). Ao mesmo tempo, foi esta participação que permitiu à diplomacia brasileira retomar o tema das possibilidades e dos limites de inserção de Estados médios na gestão do sistema internacional, agora reconfigurado pelo Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919 (LAFER, 2000, p. 8). Era a primeira atuação sistêmica brasileira, ao lado das performances nas Conferências Americanas e na Conferência da Paz de Haia de 1907, e o Brasil buscou valorizar a sua participação. Exemplo disso foi que, em dezembro de 1918, o Chanceler Domício da Gama tentou fazer com que o Brasil fosse convidado a tomar parte nas Conferências Preliminares de Paz, pois acreditava que isso teria um bom efeito na política interna brasileira, já que, segundo ele, “isso ajudaria o governo perante a opinião pública, que nos está julgado descuidados”3. Entretanto, apesar dos pedidos junto às Chancelarias britânica e norte-americana, os líderes 2

BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, Relatório de 1918 e 1919, p. 14-15. Gama a Ipanema (Embaixador em Washington), telegrama confidencial, RJ, 05/12/1918 AHI 273/2/11; Gama a Magalhães (Ministro em Paris), telegrama, RJ, 05/12/1918, AHI 273/2/11 (Citado por GARCIA, 2005, p. 31). 3

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das grandes potências – principalmente Clemenceau e Lloyd George – eram contrários à maior participação do Brasil tanto nas conferências preliminares como na conferência plenária, uma vez que a colaboração brasileira durante a guerra havia sido limitada (GARCIA, 2005, p. 31). No relato de Otto Prazeres (1922), jornalista acreditado na missão especial do Brasil junto à Conferência, foi uma grande ilusão supor que “o Congresso de Versalhes tivesse o aspecto dos outros congressos semelhantes, isto é, que realizasse várias sessões plenárias para estudo, discussão ampla e votação do que fosse organizado pelas comissões parciais, em reuniões publicas”. Em primeiro lugar, o Congresso nunca foi em Versalhes, onde somente houve a assinatura do tratado final na célebre Sala dos Espelhos. Segundo, quase tudo foi decidido pelos altos representantes dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra, da Itália e do Japão. No que se refere à Comissão encarregada de organizar as bases para a Liga das Nações, a mais importante de todas, seus quinze delegados também foram distribuídos desigualmente: dez para as cinco grandes potências e cinco para as 22 pequenas potências, que deveriam eleger seus representantes, dentre os quais foi escolhido um brasileiro. As decisões sobre a criação da Liga deram-se às pressas. Poucos dias depois de organizada a Comissão, em primeiro de fevereiro de 1919, Woodrow Wilson convocou uma reunião para o Hotel Grillon e mostrou o trabalho que tinha organizado até então. A redação final do plano de criação da Liga ficou pronta no dia 13 de fevereiro e o documento foi aprovado na sessão plena, no dia 14, no Salão do Relógio do Ministério de Relações Exteriores do Quai d’Orsay. A pressa em tratar da Liga das Nações, antes mesmo de normalizar a vida da Europa, ainda sob armistício, foi censurada pela imprensa francesa e de outras capitais europeias, mas, para Wilson, era fundamental que a criação da Liga estivesse resolvida o quanto antes, para que ele pudesse submeter a proposta à aprovação do Senado dos Estados Unidos (PRAZERES, 1922, 280). A cobertura diária da mídia internacional para uma conferência daquela magnitude era um fato novo em política internacional, o que sujeitou a ação das delegações ao escrutínio da opinião pública (GARCIA, 2006, p. 59). Tornado público o plano, começaram a surgir reclamações e observações de todas as partes do mundo. Tão aplaudido quando lançou a ideia de Liga das Nações, em 17 de janeiro de 1917, Wilson verificou que a situação do mundo e o espírito que o envolvia mudara substantivamente (GARCIA, 2006, p. 281). De volta a Paris, em 15 de março, Wilson retomou o posto de Presidente da Comissão da Liga das Nações e recebeu 28 propostas de 7

emendas dos governos neutros, que foram discutidas e votadas. Todas as emendas de importância secundária ficaram resolvidas, mas as mais significativas ameaçavam dividir a Comissão no tocante aos seguintes temas: da igualdade de raças, emenda apresentada pela delegação japonesa, com forte oposição dos EUA; da fiscalização e limitação de armamentos, proposta do governo francês; e da menção à Doutrina Monroe no tratado da Liga, emenda defendida pela delegação norte-americana. Como narra Prazeres (1922), a sessão plenária de 28 de abril para dar conhecimento do plano da Liga foi uma “verdadeira desilusão”, porque os últimos dias de negociação tinham sido usados para acomodar os interesses das nações proponentes das três emendas. Enfim, o ponto referente à Doutrina Monroe foi incluído no preâmbulo do tratado final, a França concordou em adiar a questão dos armamentos e o Japão simplesmente retirou a sua emenda, chegando a afirmar “que ficaria a cada governo o direito de regular e de estabelecer essa igualdade [das raças]”, mas que o país continuaria a insistir para que, no futuro, o princípio fosse adotado no seio da Liga das Nações (GARCIA, 2006, p. 286). Segundo o jornalista, as alterações entre o primeiro e o segundo plano foram devidas a causas externas à Conferência, com destaque para o que foi discutido no Congresso Socialista de Berne (1919) e para as ideias americanas e britânicas sobre uma Liga para abolir a guerra. A entrada do Brasil na Sociedade das Nações ocorreu sem maiores problemas políticos e com decidido apoio do Congresso Nacional brasileiro. Na Câmara dos Deputados, o relator geral Alberto Sarmento e o relator parcial Estacio Coimbra apresentaram “longos e brilhantes pareceres”, em que a questão foi estudada sob elevado ponto de vista e quando foi mostrada a antiga aspiração mundial e brasileira para a formação de uma Sociedade das Nações (GARCIA, 2006, p. 290). No prazo de seis dias, a entrada do Brasil no organismo internacional também foi aprovada pelo Senado e pelo plenário, sendo remetida à sanção presidencial. O então Presidente Epitácio Pessoa sancionou, por fim, o trabalho com que colaborara diretamente como alto representante do Brasil na Comissão da Liga das Nações, destinada a ser o “grande árbitro moral do mundo” (PRAZERES, 1922, p. 303). Já o debate doméstico sobre a matéria envolveu a difícil interação entre o princípio de igualdade dos Estados e as realidades de distribuição assimétrica de poder no cenário internacional, dicotomia fundamental que caracterizou essa organização e o direito internacional emanado desta. No referido debate houve, por um lado, partidários de uma perspectiva idealista, como Antonio Moreira de Abreu que, escrevendo para o Diário de 8

Minas, em 1918, afirmava que a Liga das Nações preconizava o estabelecimento de uma guardiã das relações internacionais, superior à vontade dos governos e dos Estados4, como um contraponto à ordem de Westfália. Por outro lado, a adesão brasileira à Liga das Nações recebeu algumas críticas internas, a exemplo do deputado Mauricio de Lacerda, contrário ao alinhamento brasileiro com a política externa dos EUA. Lacerda defendia que a Liga havia nascido “falida, incapaz, desmoralizada pelo internacionalismo imperialista que introduziu em cada um de seus artigos”, de maneira que constituía um mero “instrumento de captação dos fracos na rede dos fortes”5. São essas diferentes formas com que a sociedade nacional percebia a adesão e a integração do Brasil à Sociedade das Nações que se busca compreender. Tendo como referência esta breve contextualização, buscar-se-á melhor caracterizar a atuação da Chancelaria brasileira no contexto da Conferência de Paz de 1919 e de estabelecimento da Sociedade das Nações, assim como as reações e as declarações dos periódicos A Época e O Imparcial, ambos publicados no Rio de Janeiro. Com isso, pretende-se observar, de modo pormenorizado, o contexto de formulação da posição brasileira nessa Conferência e nos primeiros meses da Liga das Nações. Igualmente, busca-se investigar a reação da mídia diante da proposta de criação da Liga das Nações e da entrada no Brasil nessa organização.

2.

RECOMPENSA

E

PRESTÍGIO:

PERSPECTIVA

DA

CHANCELARIA

BRASILEIRA

O fim do quadriênio de Venceslaus Brás (1914-1918) coincidiu com o final da guerra e o Chanceler Nilo Peçanha foi sucedido por Domício da Gama, que permaneceu à frente do Itamaraty apenas durante o curto período de governo do Vice-Presidente Delfim Moreira, entre novembro de 1918 e julho de 1919. Ao assumir a pasta, Domício da Gama deparou-se com um complexo quadro de política interna6, assim como tinha de enfrentar três problemas internacionais de grande envergadura: primeiro, o da participação do Brasil nas conferências 4

Diário de Minas (04/07/1918), Artigo de Antonio Moreira de Abreu (Citado por GARCIA, 2006, p. 43). BRASIL, Anais da Câmara dos Deputados (1919) (Citado por GARCIA, 2006, p. 44). 6 Heitor Lyra descreveu a situação como uma espécie de “governo tripartido”, com o Presidente eleito, Rodrigues Alves, enfermo, o Presidente em exercício considerado mentalmente doente e o filho do Presidente eleito, conhecido pelo apelido “Juquinha” tirando proveito do momento de confusão para influenciar as decisões do governo. Vinhosa afirma que, nesse contexto, Domício da Gama buscou agir com certa autonomia, adotando critérios próprios em matéria de relações exteriores e na administração do Itamaraty. 5

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preliminares da paz; segundo, o do número de delegados que caberia ao Brasil na Conferência Plenária da Paz; e, por fim, a inclusão do Brasil no primeiro Conselho Executivo da Liga das Nações. Com relação a tais tarefas, cabe ressaltar o entendimento brasileiro sobre as negociações na Conferência de Paz e a autoimagem sobre o seu papel, status e pertencimento nesse processo e na Liga das Nações. Como mencionado, a participação do Brasil nas conferências preliminares era obstada por parte de França e Inglaterra, sob o argumento de que a participação brasileira deveria ser limitada, como havia sido a sua colaboração no esforço de guerra. Domínio da Gama buscou, entretanto, lançar mão de seu prestígio pessoal junto à administração norte-americana, valendo-se da confiança e das boas relações que estabelecera como Embaixador em Washington durante oito anos7. Além de não conseguir participar diretamente dessas reuniões preliminares, o Chefe da delegação brasileira, Epitácio Pessoa, em sua chegada a Paris, comunicou ao Itamaraty a impressão geral de que tudo seria decidido exclusivamente pelas cinco grandes potências e de que a presença das pequenas nações tinha por finalidade conferir uma aparência liberal à organização8. Com a presença de 70 delegados, representando os 27 países vitoriosos na guerra (excluída a Alemanha), a Conferência de Paz de Paris foi inaugurada em 18 de janeiro de 1919 e encerrada em 20 de janeiro de 1920. A inserção do Brasil como potência menor é colocada no início da Conferência com a questão do simbolismo político do número de delegados plenipotenciários que caberiam ao Brasil. Ao ser classificado como uma “potência de interesses limitados”, o Brasil teria direito somente a um delegado, mas, ao mesmo tempo, já havia constituído sua delegação com quatro delegados. Junto ao Departamento de Estado, argumentou-se que esse número era devido à pressão da opinião pública do país e à longa distância entre o Brasil e a Europa, compreendendo 17 dias de viagem (VINHOSA, 1990, p. 194). Segundo Vinhosa (1990), tais justificativas não explicariam, de fato, a precipitação brasileira, o que teria resultado, em grande parte, da dificuldade em escolher entre numerosos candidatos interessados em participar do evento internacional, em Paris. Foi árdua a negociação travada por Domício da Gama para aumentar o número de representantes brasileiros. O Secretário de Estado interino dos EUA, Frank Polk, era 7

Vinhosa (1990, p. 191) ressalta a importância que teriam tido as gestões de Domício da Gama ante o governo norte-americano no contexto da Conferência de Paz. Afirma que os documentos fornecidos por Epitácio Pessoa e por sua filha teriam sido tendenciosos ao não fazer nenhuma referência ao Chanceler. 8

Telegrama de 01/02/1919, Epitácio Pessoa a Domínio da Gama (VINHOSA, 1990, p. 192).

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fervoroso defensor das reivindicações brasileiras e apresentou seis motivos para justificar que o Brasil deveria receber um tratamento privilegiado, são eles: o Brasil já tinha nomeado seus quatro delegados e seria desconcertante ter de reduzir a delegação; o Brasil fora a única potência da América do Sul que realmente declarou guerra aos alemães, concedeu assistência material aos aliados e ofereceu cooperação ativa, com a divisão naval enviada à Europa; qualquer atitude que parecesse menosprezar o Brasil prejudicaria o prestígio do país em sua região e seria uma forma de convalidar países como Argentina e Chile, que estavam despeitados do alinhamento brasileiro com os EUA e com os aliados; como o Brasil mantivera-se leal aos EUA em quase todas as questões relativas à América do Sul, tinha direito a certas considerações e cabia ao governo norte-americano acolhê-lo em Paris; ainda, o fato de ser a maior potência sul-americana na guerra lhe conferiria o direito a uma justa representação dada sua posição geográfica; como o presidente eleito do Brasil ainda não tinha tomado posse, em função de problemas de saúde, havia a possibilidade de renúncia e de formação de um novo Ministério. Nesse contexto, eventual insucesso em conseguir representação digna para o Brasil em Paris poderia ser usado contra Domício da Gama e causar o seu afastamento do Ministério9. Conquanto não tenha logrado os quatro lugares, o Brasil conseguiu três deles graças à intervenção do Presidente Wilson. Isso colocou a nação sul-americana em status de igualdade com Itália, Sérvia e Bélgica, que haviam sofrido muito mais perdas materiais e humanas no conflito. Acima disso, só estavam os EUA, a Inglaterra, a França e o Japão, com cinco delegados; e os demais países contavam com um ou dois. Para Wilson, o privilégio concedido ao Brasil justificava-se por uma dimensão populacional que lhe outorgava condição diferenciada em relação a outros países que também participaram do esforço de guerra10. Além disso, muitos estados brasileiros tinham população com elementos ou influências germânicos, de modo que era fundamental afastar o Brasil da Alemanha e vinculá-lo aos interesses dos Aliados. Por fim, Wilson relembrou o “sacrifício voluntário” do Brasil na guerra e a necessidade de garantir o apoio político do Brasil no futuro (VINHOSA, 1990, p. 196). O Brasil foi representado pelos delegados Raul Fernandes, Pandiá Calógeras e Olinto de Magalhães e teve como Chefe da delegação Epitácio Pessoa.

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Telegrama de 10/01/2919, Secretário de Estado interino, Polk, à Comissão de Negociação da Paz (VINHOSA, 1990, p. 195. Apesar das vitórias alcançadas por Domício da Gama na questão do número de delegados brasileiros, não deixou de ser afastado do Ministério no governo de Epitácio Pessoa e seguiu para a Embaixada em Londres. 10 Jornal do Commercio, 15/01/1919 (GARCIA, 2006, p. 33).

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Na perspectiva de Pandiá Calógeras, era notória a hostilidade do ambiente da Conferência, mais do que o clima de decepção descrito por Prazeres. Para o delegado brasileiro, a reunião “era a guerra continuando sob outra forma”, em que as potências vitoriosas buscavam alijar a Alemanha e garantir o status quo internacional no pós-guerra. Assim como Prazeres, Calógeras percebia como desigual a tomada de decisão e tentou mostrar, em seu contato com delegados europeus, como era “ilógico proclamar o princípio da Liga das Nações, cuja base é a igualdade delas perante o Direito, e negá-lo na aplicação” (GARCIA, 2006, p. 53). Entretanto, Calógeras não acreditava que “outros congressos semelhantes” do século XIX detinham um processo decisório mais aberto do que a Conferência de Versalhes. À luz dos Quatorze Pontos de Wilson, a Conferência de 1919 tinha o objetivo de definir as bases para uma ordem pacífica e duradoura, de forma pública, e o Brasil buscava deixar registrado o seu protesto contra a “velha diplomacia” e o seu papel em defesa do interesse das potências menores (GARCIA, 2006, p. 53). Uma forma de agir nesse sentido foi questionar a divisão entre potências de interesses “gerais” e “limitados”. O artigo 1o do regulamento da Conferência previa que as potências beligerantes (EUA, Inglaterra, França, Itália e Japão) tratariam de “interesses gerais”, relativos à construção de uma nova ordem internacional, ao passo que as demais nações tomariam parte somente nas sessões em que fossem discutidos temas de seu interesse direto. Os delegados brasileiros Pandiá Calógeras e Olinto de Magalhães propuseram fazer oposição ao referido artigo, mas Domício da Gama discordou da iniciativa por não considerar interessante postergar o início dos trabalhos da Conferência, prejudicar o êxito da reclamações concretas brasileiras, tampouco indispor-se com o governo norte-americano11. Na segunda sessão plenária, em 25 de janeiro, entretanto, o Brasil secundou a proposta belga de ampliar a participação das potências menores nas discussões. Apesar da posição contrária das grandes potências, continuaram as articulações entre os países de “interesses limitados” para obter maior representação na Conferência. Em reunião exclusiva com delegados latino-americanos, Calógeras defendeu a tese do nãoreconhecimento nem de grandes nem de pequenas potência, justificando-a com base no argumento de que, ainda que os interesses dos países fossem desiguais, as soberanias

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Não obstante a proximidade entre Domício da Gama e as autoridades norte-americanas, Vinhosa (1990) ressalta a autonomia de pensamento do Chanceler brasileiro, ao afirmar que o Brasil “não devia dar aos Estados Unidos mais provas de consideração do que as que deles recebêssemos; que nos devíamos colocar mesmo em postura de retribuir e não de nos adiantar, já que ‘o açodamento só serviria para nos desprestigiar’”.

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deveriam ser consideradas iguais (GARCIA, 2006, p. 55). Em outra reunião entre os países de “interesses particulares”, Calógeras declarou: Nós viemos aqui com um grande ideal de que todos defendem: nós queremos instituir a Liga das Nações, isto é, um regime de igualdade entre todas as nações. O princípio já foi perfeitamente estabelecido. É preciso que se dê a cada nação um voto: one nation, one vote. (GARCIA, 2006, p. 55).

Como resultado das pressões por mudanças no artigo 1o do regulamento, com ativa participação brasileira, foi aceita a presença de potências menores nas diversas comissões da Conferência e o Brasil logrou integrar-se, igualmente, na Comissão da Liga das Nações, representado por Epitácio Pessoa. O Brasil conseguiu, desse modo, expandir sua participação durante as discussões da Conferência para além os interesses específicos relativos ao pagamento da venda de café do estado de São Paulo à Alemanha e à regularização da propriedade de navios mercantes alemães apreendidos em portos brasileiros, em maior proporção que as perdas marítimas na guerra (LAFER, 2000, p. 9). Na Comissão da Liga, Epitácio Pessoa uniu-se a uma nova iniciativa do delegado belga, Paul Hymans, para aumentar o número de representantes das potências menores. A proposta foi aceita e, em 6 de fevereiro, foram admitidos representantes da Grécia, Polônia, Romênia e Tchecoslováquia. Igualmente, o Brasil opôs-se ao projeto britânico de reservar somente às grandes potências a composição do Conselho Executivo da futura Liga, que seria uma espécie de “tribunal internacional” a que todas as demais nações deveriam submeter-se (GARCIA, 2006, p. 59). Ao final, ficou decidido que o Conselho seria formado por um delegado de cada uma das cinco grandes potências e por outros quatro representantes das demais nações. Quando Lord Robert Cecil, delegado britânico, tentou aventar uma emenda para que fossem apenas dois os representantes das pequenas potências, nomeados pela Assembléia Legislativa, dependentes também do voto dos cinco grandes países, Epitácio Pessoa protestou e propôs que fossem quatro, escolhidos diretamente pelos Estados interessados, no que foi veementemente apoiado pelos demais delegados da Comissão. A primeira designação dos membros do Conselho Executivo seria feita pela Conferência de Paz e, mais uma vez, Domício da Gama solicitou o apoio das autoridades norte-americanas, que indicaram o Brasil para um primeiro mandato de três anos, o que também foi aprovado em 28 de abril de 1919. Essa conquista, contudo, foi muito difícil, dada a oposição das potências europeias, e deveu-

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se unicamente “à intervenção pessoa do Sr. Gama”, conforme confessou Polk (VINHOSA, 1990, p. 236). Entrementes, a sucessão presidencial, com o falecimento de Rodrigues Alves, tornouse assunto de primeira importância na política interna brasileira. Rui Barbosa foi escolhido como candidato situacionista, com apoio de Nilo Peçanha, mas havia pouca adesão das oligarquias estaduais em torno de seu nome. Tampouco havia consenso sobre um candidato paulista ou mineiro, de modo que se buscou uma nomeação neutra: a de Epitácio Pessoa, da Paraíba, o qual desempenhava importante função internacional para o país (GARCIA, 2006, p. 62). O Chefe da delegação brasileira em Paris aceitou a indicação com surpresa, mas não fez campanha alguma e continuou seus trabalhos em Paris. Como ressalta Garcia (2006), o fato de Epitácio Pessoa estar em missão no exterior trouxe assuntos de política internacional para o debate interno. Exemplo disso seriam grupos insatisfeitos com o predomínio oligárquico e outras correntes de opinião que se uniram para criticar a política de cooperação com os EUA no âmbito da Conferência de Paz. Em 13 de abril, por intermédio dos mecanismos da “colméia oligárquica”, Epitácio Pessoa foi eleito Presidente da República enquanto ainda estava em Paris. Foi a única vez na história brasileira em que um representante oficial do governo retorna de missão diplomática no exterior como Chefe de Estado. Essa nova condição atraiu a atenção das demais delegações presentes na Conferência, especialmente a missão norte-americana, que teria interesse adicional em continuar a oferecer contribuição ao Brasil devido a futuras tratativas bilaterais no campo econômico e de cooperação estratégica e naval (GARCIA, 2006, p. 80). Nesse contexto, é que pode ser melhor interpretado o auxílio americano no que concerne à questão do café, dos navios surtos alemães e da representação brasileira no Conselho da Liga. O posto de Chefe de delegação em Paris foi igualmente marcante para Epitácio Pessoa que, na primeira mensagem ao Congresso Nacional como Presidente da República, descreveu os esforços da delegação brasileira concernentes à questão do café e aos navios surtos alemães, assim como a colaboração brasileira para criar a Liga das Nações e o reconhecimento desse fato por meio da “elevação moral” do país à honra de figurar entre os noves membros do Conselho12.

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BRASIL. Mensagem do Presidente da República ao Congresso Nacional em 3 de maio de 1920 (GARCIA, 2006, p. 45).

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Se, por um lado, a capacidade de influência do Brasil foi nula no contexto geral da Conferência; por outro lado, o Brasil obteve vitórias pontuais importantes e saiu da Conferência com uma “posição de prestígio elevada na Europa, especialmente se comparada com a sua limitada contribuição durante a guerra e sua capacidade real de influenciar eventos na arena internacional”13. Exemplos dessa posição de prestígio são as visitas oficiais a França, Bélgica, Itália, Grã-Bretanha e Portugal, cujo saldo é um interesse crescente pelo Brasil por parte dos países europeus e o desejo destes de oferecer uma “calculada cortesia” ao futuro mandatário brasileiro no continente europeu (GARCIA, 2006, p. 80). Em consonância com sua nova projeção mundial, o Brasil começou a estabelecer relações diplomáticas com os novos Estados oriundos dos tratados de paz, como foi o caso da Polônia, Tchecoslováquia, Finlândia, Islândia, Áustria e Armênia, em 1920, e as nações bálticas da Lituânia, Letônia e Estônia, em 1921. Antes da guerra, o Brasil somente possuía duas missões no exterior com estatuto de embaixada – Washington e Lisboa –, o que, em 1923, passou para o número de onze (GARCIA, 2006, p. 89). Além disso, observa-se que o Brasil sustentou a imagem de importante colaborador para os esforços de guerra que, no momento da Conferência, estava recebendo tanto o reconhecimento pelos seus esforços e sacrifícios como as recompensas materiais e simbólicas decorrentes. Por exemplo, na Mensagem do Presidente ao Congresso Nacional de 3 de maio de 191914, feita pelo Vice-Presidente Delfim Neto, enfatiza-se a relação de recompensa da participação brasileira na Primeira Guerra Mundial, o reconhecimento dessa atuação por parte das potências europeias e a “posição saliente” do Brasil entre os países que enviaram emissários à Conferência de Paz, como se pode observar em: O Conselho das grandes Potencias manifestou toda a boa vontade para comnosco, sendo isso devido, naturalmente, á sinceridade do nosso procedimento anterior, quando nos colocamos, inteiramente, ao lado dos paizes alliados no momento mais critico da grande guerra. Não devo ocultar a profunda satisfação com que recebemos o expressivo voto do Conselho das grandes Potencias. O Ministerio do Exterior significou áquelles que o apoiaram a expressão do valor com que o recebiamos.15

Com base nesses episódios, verifica-se que os delegados brasileiros percebiam e buscavam reagir à profunda dicotomia que marcava a Conferência de Paz de Paris: uma reunião que se dizia orientada pelos princípios de igualdade soberana e de diplomacia aberta, 13

Relatório do Ministério das Relações Exteriores de 1918 e 1919, p. III-V (GARCIA, 2006, p. 76). BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, Relatório de 1918 e 1919, p. V. 15 BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, Relatório de 1918 e 1919, p. VI. 14

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mas cujas decisões centrais foram tomadas pelo Conselho dos Dez a portas cerradas. O próprio Brasil padeceu dessa ambiguidade, uma vez que tomava para si o papel de defender os interesses das nações menores e buscar mais voz em um ambiente hostil; contudo, como salientou Garcia (2006, p. 75), “a identificação do Brasil com os pequenos Estados cedeu lugar às aspirações de grandeza nacional, açuladas com a perspectiva de ingresso no clube fechado das grandes potências”. Apesar do parcos recursos reais de poder, o Brasil detinha o apoio dos EUA, pelo qual logrou obter vantagens tanto em seus interesses específicos como nos gerais, e arregimentou o suporte de outras potências de “interesses limitados”. Na avaliação da Chancelaria, o Brasil obteve recompensas materiais e prestígio interno e externo, que contribuíram para o aumento da projeção internacional do país na década de 1920.

3. HONRA OU SUBMISSÃO: PERSPECTIVA DOS JORNAIS A ÉPOCA E O IMPARCIAL

O contexto internacional do pós-Primeira Guerra constituiu, segundo Edward Carr (1981), um dos primeiros momentos de popularização da política internacional, quando se questionou a prática convencional da diplomacia secreta e elevou-se a participação da opinião pública mundial na condução dos assuntos internacionais. No plano doméstico, as imprensas nacionais estavam igualmente interessadas naquilo que antes era deixado, com segurança, nas mãos de diplomatas profissionais. No caso brasileiro, por exemplo, Domício da Gama assumiu explicitamente que o governo sofria forte pressão da opinião pública nacional para que o país tomasse posição externa ativa, ao lado dos Aliados, na definição da paz em Versalhes. Conforme mencionado, dentre as suas inúmeras funções, a mídia interna e internacional tem como papel veicular determinadas imagens e representações políticas dos eventos, além de servir como termômetro para os governos e influir no processo de formulação de políticas. No estudo de Garcia (2006, p. 43), há menção ao fato de que a opinião pública internacional se manifestou, de forma clara, contra os métodos tradicionais de condução da diplomacia, a exemplo das políticas de equilíbrio de poder, de alianças militares e de diplomacia secreta. Tais práticas teriam levado às duas guerras mundias, o que poderia voltar a acontecer se não fossem erradicadas. A opinião pública mundial esteve vigilante durante a 16

Conferência de Paz, em defesa do direito internacional ante à noção de soberania absoluta, principalmente durante as discussões sobre a Liga das Nações. No plano interno, pode-se observar algumas opiniões contrastantes a respeito da entrada do Brasil na Liga das Nações. Essa seção busca analisar o modo pelo qual ressoavam na mídia brasileira as posições e os argumentos do governo, assim como observar as imagens e representações selecionadas pelos periódicos selecionados. Com relação a perspectiva do governo de que a participação do Brasil na Conferência lhe estava rendendo prestígio interno e externo, pode-se afirmar que isso encontrou ressonância na mídia nacional, em particular o tema do número de delegados que caberia ao país, isto é, o de seu status naquela reunião internacional. Por exemplo, o jornal “A Época”16, de 10 de janeiro de 1919, ressaltava que o Brasil terá, na Conferência de Paz, igual representação a países como Sérvia e Bélgica, que deram contribuição material significativa para a guerra. Para esse jornal, isso significaria que o Brasil teria conseguido transpor a divisão entre potências maiores e menores e que, assim, “ficam desfeitas as previsões de que comparecíamos á Versailles com a categoria dos paizes de coajuvação secundaria. Nada mais honroso para nós.”17. Essa ascensão na escala das potências não foi conseguida, como reconhece “A Época”, na forma de uma recompensa pelo auxílio bélico prestado, mas teria sido uma honra concedida ao Brasil pela própria condição de país independente e democrático, como se pode notar em: Mas, a que deve isso? Á efficiencia do seu concurso bellico ou de subsistências ás forcas alliadas? Está claro que não. Não pesaram, por certo, na balança da victoria a pequena esquadra que mandamos ao patrulhamento dos mares e a missão media que daqui partira nos últimos mezes da conflagração. Por outro lado, a nossa exportação para a Europa, dada a nossa limitada capacidade de producção, não foi de molde a attribuir-nos destaque no fornecimento de artigos e gêneros aos defensores da Civilisação. Tudo isso mostra que a deliberação das potencias representa uma excepcional deferencia para com o nosso paiz, pelo seu rasgo de altiva e desassombrada independência, enfileirando-se ao lado da Democracia, para combater a babaria teutonia quando era indeciso ainda o triumpho, e

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Jornal de José Eduardo de Macedo Soares, editado no Rio de Janeiro entre 1912 e 1919. Nos primeiros anos, foi considerado um jornal de oposição ao governo, com convicções políticas que geraram polêmicas e embates. De abril de 1918 até o fim do governo Wenceslaus Brás, aparentava certa neutralidade política. No governo de Delfim Moreira, a publicação voltou a mostrar esporádicas reportagens e textos críticos ao governo. Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira. 17

A Época. 10/01/1919. “A posição do Brasil na Conferência de Paz”.

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quanto até as vantagens pendiam para as hostes vandálicas do germanismo inconsciente.18

É possível verificar, igualmente, eco das ideias de pertencimento do Brasil à América do Sul, mas em condições peculiares, como o fato de constituir uma das grandes nações da região e ter o papel de nação pioneira e líder dos demais países sul-americanos. Essas imagens estão expressas no trecho do jornal “O Imparcial”, de 28 de janeiro de 1919, que publica excerto de artigo do “New York Tribune” sobre o Brasil: Uma prova evidente da crescente importância do Brasil nos assuntos mundaes, está no facto de ter a comissão organizadora da Conferencia de Paz resolvida que aquela nação se faça representar nos trabalhos por três delegados. Esta resolução tem grande e significativa importância histórica, pois não só é devida ao facto de ter sido o Brasil a primeira das grandes nações da América do Sul que se collocou leal e dessassombradamente, na grande guerra, como também, reconhecendo o valor e a importância da sua participação material na guerra, estabelecendo que o Brasil é a nação que marcha á testa das demais Republicas da America do Sul.

No mesmo jornal, observa-se a ressonância da tese de que o simbolismo político da representação do Brasil por três delegados seria um incentivo positivo para o Brasil e a América do Sul se alinharem às posições dos Aliados. Isso porque a permissão dessa honra afastaria o país da influência alemã, o que fica claro com a afirmação de “O Imparcial”, de 29 de janeiro de 1919, de que é “razoável a deliberação tomada pelo Conselho Superior de Guerra Inter-aliado, em virtude dos serviços prestados pelo Brasil á causa dos aliados, impedindo que a ‘kultur’ invadisse a America do Sul”. É interessante notar que o debate da entrada do Brasil na Sociedade das Nações estava inserido nas movimentações das eleições presidenciais de 1919, entre o oposicionista Rui Barbosa e o candidato oficial, Epitácio Pessoa, que acabou sendo eleito em abril daquele ano. Como mencionado, tal contexto trouxe para a dimensão interna os temas da participação brasileira na Conferência de Paz e das diretrizes de política externa a serem seguidas pelo governo (GARCIA, 2006, p. 45). Se boa parte das notícias desses três jornais no início de janeiro e fevereiro de 1919 enfatizavam o reconhecimento e a honra do Brasil em sua atuação na Conferência de Paz, as imagens e representações recortadas pelos jornais começam a se modificar nos meses de abril e maio, em razão tanto da “decepção” causada pelos resultados da Conferência como das influências políticas e ideológicas dada a proximidade das eleições.

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A Época. 10/01/1919. “A posição do Brasil na Conferência de Paz”.

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Como enfatiza Garcia (2006), apesar do relativo êxito na Conferência de Paris, a delegação brasileira sofreu ataques no Brasil, em particular pela mídia nacional. Com as campanhas presidenciais e o lançamento da candidatura de Epitácio Pessoa, levada à Convenção pelos líderes dos principais Estados brasileiros (Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia)19, percebe-se que houve um aumento da crítica à performance brasileira em Paris, principalmente em “O Imparcial”. Isso se explica pelo fato de que qualquer condenação às decisões tomadas em Paris significaria uma crítica ao Chefe da delegação, Epitácio Pessoa, figura que se tornara central para a política interna do Brasil. Exemplo disso é que alguns jornais começaram a criticar mais intensamente o governo por ter, segundo eles, aderido a um acordo internacional que transferia ao estrangeiro os atributos da soberania nacional e ratificava a diferenciação entre potências primeiras e secundárias no sistema internacional (GARCIA, 2006, p. 46). Em conferência de 4 de abril de 1919, na cidade de São Paulo, Rui Barbosa teceu críticas à política de cooperação do Brasil com os EUA, o que ficou conhecido como “O Caso Internacional”. Denunciou ter sido vítima do que chamou de uma “sórdida intriga internacional” tanto no caso da escolha do Chefe da delegação brasileira à Conferência de Paz como das eleições presidenciais daquele ano. No primeiro caso, atacou veementemente Domício da Gama, o qual teria excedido no uso do poder a ele conferido para conseguir ter seu nome sugerido, em um primeiro momento, para chefiar a delegação brasileira em Paris. No caso presidencial, Rui Barbosa criticou novamente Domício da Gama por suas atitudes “ultra-americanas” e pela estreita relação que mantinha com os EUA, o que obstaculizava a eleição de um homem que não fosse claramente reconhecido pelo governo norte-americano como um aliado no país sul-americano. Ademais, Rui Barbosa contestou a interpretação do Itamaraty de que, nessa Conferência, o país havia alcançado “a mais elevada posição internacional que o Brasil até [então] assumira entre as grandes nações” (GARCIA, 2006, p. 63), o que já teria acontecido, para ele, na sua Haia de 1907. Contradisse a versão oficial de que o Brasil havia alcançado posição internacional de líder das pequenas nações na Conferência de Paz, uma vez que estava ligado aos EUA por uma política de “protetorado”: Entre os Estados Unidos e o Império Britânico, nenhuma tendência nutro, que me levasse jamais a converter o Brasil no protegido 19

Correio da Manhã (21/02/1919). “Os leaders dos grandes Estados resolveram hontem levar á Convenção o nome do Sr. Epitácio Pessoa”.

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internacional desta ou daquela. Não. O que eu quereria, era ver a minha Pátria igualmente acatada por ambas, mantendo para com as duas essa independência, estritamente observada, que as menores de todas as nações, as Bélgicas e as Suíças, logram manter, quando é o povo que exerce a soberania. [...] Antes de amigo dos Estados Unidos, ou de qualquer outra nação do mundo, amigo sou do Brasil.20

Como avaliou Vinhosa (1990), não faz sentido a argumentação de Rui Barbosa a respeito de uma “intriga internacional”, tampouco uma conspiração que envolvesse os EUA. A “águia de Haia” não teria aceitado convite como Chefe da delegação brasileira na Conferência de Paz por questões de vaidade e de orgulho. Por exemplo, o convite a Rui Barbosa teria sido feito após aventado o nome de Domício da Gama para o cargo. Além disso, os demais componentes da delegação já haviam sido escolhidos, sem a anuência do célebre jurista, e tinham colocação hierárquica equivalente à dele. Por fim, para aceitar o cargo, Rui Barbosa solicitava a substituição do Chanceler por outro que não estivesse em desarmonia consigo, criando uma situação de “ou ele ou eu” a ser decidida pelo Vice-Presidente Delfim Moreira. Quanto à crítica às relações com os EUA, Garcia (2006, p. 63) ressalta que Rui Barbosa não era, em verdade, antiamericano. Para este, não deveria haver um afastamento, pois o Brasil e os EUA deveriam manter relações de amizade entre iguais, “sem se diminuírem ou desnaturarem”. Uma série de outras críticas feitas por Rui Barbosa e seus simpatizantes estavam relacionadas à Liga das Nações e às diretrizes de política externa seguidas pelo governo, com destaque para o artigo intitulado “A Liga das Nações e a Soberania Nacional”, de 03 de maio de 1919, publicado em “O Imparcial”. Conquanto o artigo se inicie ressaltando a “alta conveniência patriótica de separarmos o estudo e o exame dos problemas que affectam a nossa política internacional das questões apaixonadas levantadas em torno da sucessão presidencial”21, são claras as críticas direcionadas à atuação do governo e de Epitácio Pessoa na organização da Liga das Nações, como se pode observar no seguinte trecho: A acção do governo e do nosso eminente embaixador [Epitácio Pessoa] affecta os maiores interesses nacionaes; não somente os da geração que está, actualmente, com a responsabilidade de conduzir os destinos do Brasil, mas, por annos afóra, os da nacionalidade, definitivamente comprometidos no desastre irreparável, que nos está ameaçando.

Aquele jornal sustenta que a Conferência de Paz foi dominada pela “oligarchia das grandes potenciais” na condução dos trabalhos, restando aos demais países a função de 20 21

Rui Barbosa. “O Caso Internacional” (GARCIA, 2006, p. 46). O Imparcial. 03/05/1919. “A Liga das Nações e a Soberania Nacional”.

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“penetras”. Critica a prepotência com que as quatros grandes potências europeias arrolaram-se para si o direito de decidir os destinos das questões internacionais, como a liquidação dos vencidos, os trabalhos da paz e a organização definitiva da Sociedade das Nações. Além disso, condena o fato de os delegados brasileiros terem aceitado a posição de potências com “interesses limitados”, pois isso significaria uma clara “diminuição da dignidade nacional”. Para “O Imparcial”, o Brasil teria, dessa maneira, aceitado a “superioridade da soberania de certas grandes potências” e o resultado disso seria a condição inapelável de “penetras da Conferência”, sem capacidade de fazer parte da tomada de decisões substantivas. Ao longo do referido editorial, revela-se uma evidente comparação entre a performance de Rui Barbosa na Conferência de Haia de 1907 e a atuação de Epitácio Pessoa na Conferência de Paz de 1919. Em primeiro lugar, destaca-se a bem sucedida defesa de Rui Barbosa das noções de soberania nacional e de igualdade dos Estados em Haia, como está expresso neste excerto: Deante de uma tentativa de selecção das soberanías, nos preliminares da segunda conferencia de Haya, o nosso embaixador [Rui Barbosa] levantou o protesto vehementemente das pequenas nações e obteve que as nações poderosas se submetessem ao princípio da egualdade juridica das soberanias, estabelecendo a fraternidade dos povos livres na base da egualdade dos seus direitos politicos.22

A defesa principista, hábil e efetiva de Rui Barbosa é colocada ao lado do conformismo, da submissão às “nações mais poderosas” e da alienação dos direitos soberanos do Brasil mantidos na gestão de Delfim Moreira e do Embaixador Epitácio Pessoa. Para o jornal, na Conferência de Paris de 1919, o Brasil teria abandonado não apenas o princípio de igualdade entre os Estados, pedra angular que deveria nortear a criação da Liga das Nações, mas também os seus direitos soberanos, o que está expresso em: [...] o nosso governo e o seu embaixador [Epitácio Pessoa] abandonaram a defesa dos direitos da nossa soberania, ameaçados no contraste com os direitos soberanos das nações mais poderosas. Não abandonámos apenas o principio geral, anteriormente imposto por nós em defesa da sociedade das nações: largamos de mão até o nosso direito nacional, que, bem defendido, teria transformando o “big five” em “big six.23

Tanto os delegados brasileiros como o “O Imparcial” avaliaram como principais condicionantes da Conferência de Paz a desigualdade e a política de poder das nações mais poderosas. Contudo, enquanto na perspectiva da Chancelaria brasileira, o Brasil logrou obter 22 23

O Imparcial. 03/05/1919. “A Liga das Nações e a Soberania Nacional”. O Imparcial. 03/05/1919. “A Liga das Nações e a Soberania Nacional”.

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alguns frutos de seu limitado poder de barganha, aquele periódico considerou que os delegados à frente da missão brasileira aceitaram de forma passiva tais condições e trouxeram para o país “terríveis compromissos”. Para o editorial desse jornal, manteve-se a distinção entre soberanias de primeira e de segunda classe no âmbito da Liga das Nações, e, ademais, o Brasil teria aceitado representar, nessa organização, uma “soberania subalterna”: Estabeleceu-se, portanto, uma ‘sociedade’ das grandes e das pequenas nações. Creou-se, pois, um órgão dirigente para essa sociedade internacional, composto de uma minoria formada por cinco grandes potências e uma minoria de representantes transitorios da poeira impalpável das soberanias secundarias”. “Nesse ‘conselho’, nós não somente abandonamos o principio, que já defendemos da egualdade jurídica das nacoes independentes entre si, como acceitamos a nossa classificação entre os povos de soberanias subalterna.

Por esse motivo, o referido jornal declara que “fomos muito adeante e transferimos a esse órgão internacional, no qual temos apenas uma representação inferior, certos attributos inalienaveis da soberania nacional”24. A renúncia da soberania nacional é questionada, sobretudo, quanto à incompatibilidade ante à Constituição brasileira do artigo 8o do Estatuto da Liga das Nações, o qual declara que o Conselho promoverá a limitação dos armamentos dos países. Critica a limitação das forças em mar e terra, a legislação das indústrias de fabricação de munições de guerra e a criação de um eventual órgão internacional com funções executivas de Estado Maior. Além da dimensão militar, o artigo questiona o estabelecimento de um Tribunal permanente de justiça internacional, cuja competência seria “vaga” e “imprecisa”. Segundo seu entendimento a respeito do Estatuto, “O Imparcial” critica uma “autoridade excessiva” da Liga das Nações, que poderia rever os tratados existentes (pelo artigo 19) e declarar “revogados todos os tratados existentes, interpretados como contrários ao espírito da Liga (artigo 20), excepto os que interessam às nações de soberania de 1a classe (artigo 21)”25. Ao final, “O Imparcial” reprova explicitamente o desempenho de Epitácio Pessoa não somente condenando-o por ter aprovado a Liga das Nações na forma de um organismo internacional oligárquico, em que o Brasil teria apenas posição subalterna, como também por ter condescendido em participar, de forma direta, nas “engrenagens” do Conselho da Liga. A Sociedade das Nações seria, ademais, contrária à Constituição brasileira e estaria transferindo ao estrangeiro capacidades fundamentais da soberania, como o poder decisório sobre questões

24 25

O Imparcial. 03/05/1919. “A Liga das Nações e a Soberania Nacional”. O Imparcial. 03/05/1919. “A Liga das Nações e a Soberania Nacional”.

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de suma importância para o Estado e a competência de produzir e administrar armamentos no território nacional. Esses argumentos estão claros na seguinte passagem do artigo: Desse modo, o nosso embaixador não somente approvou o monstro como condescendeu em participar da sua engrenagem [como membro do Conselho da Liga]. Comprometteu-se num acordo internacional, que fere de frente á nossa Constituição e que faz mais transfere ao estrangeiro attributos essenciaes da nossa soberania. Mas o compromisso do Sr. Epitacio Pessoa, envolvendo a revisão e até a abrogação da nossa carta constitucional (...).

Em resposta a essas condenações, o governo brasileiro fez publicar no “Jornal do Commercio”, de 06 de maio de 1919, artigo de Clóvis Bevilácqua, consultor jurídico do Itamaraty à época. Segundo Garcia (2006), nesse artigo, Bevilácqua defendeu o princípio da autolimitação e buscou legitimar a aceitação, em teoria, das regras internacionais que pudessem eventualmente criar restrições à soberania de um Estado. Para ele, a “reciprocidade” entre as partes contratantes do Estatuto da Liga das Nações seria a chave de fundamentação jurídica que justificaria a solidariedade do Brasil aos Aliados no caso desse organismo internacional, o que pode-se observar em: É bem de ver que nações ciosas de sua dignidade não entrariam para essa agremiação, por mais elevados que fossem os intuitos visados, se tivessem de abdicar de sua soberania, de aceitar uma posição que as diminuísse moral ou periodicamente. O Brasil aceita, em benefício da concórdia dos povos, os deveres que a Liga impõe, como os aceitam os Estados Unidos, a França, a Inglaterra e todas das potencias que se congregaram para criar obstáculos à guerra (GARCIA, 2006, p. 47).

Como analisado nesta seção, alguns dos argumentos e representações oficiais tiveram eco e foram reconhecidas, com certo grau de legitimidade, pelos jornais “A Época” e “O Imparcial”. Foi ressaltado o elevado status brasileiro em poder se fazer representar por três delegados na Conferência de Paz, em razão da honra de ser reconhecido como uma nação independente e democrática, e o seu pertencimento à América do Sul, com um papel especial de líder e pioneiro. No entanto, verificou-se que certas imagens e representações não tiveram ressonância na mídia nacional e foram até mesmo contestadas. Esse é o caso do questionamento do êxito da delegação brasileira nessa Conferência, descrita como uma “oligarquia das grandes potências”, em que o Brasil participou como “penetra” e “nação subalterna”. A imagem de Epitácio Pessoa foi particularmente sombreada por críticas ao seu desempenho na organização da Liga das Nações, que resultou em um órgão supranacional governado pelas grandes potências e com amplas e vagas competências, que chegaria a atentar contra o direito inalienável de soberania nacional.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DIFERENÇAS E APROXIMAÇÕES

A Europa depois do Tratado precisava ser vista de forma pessimista. Conforme enfatizou Keynes (2002), o Tratado de Paz não continha qualquer disposição referente à reabilitação econômica da Europa, em particular a restauração das finanças desordenadas da França e da Itália, ao ajuste entre os próprios aliados e os sistemas do Velho e do Novo Mundo. “O Conselho dos Quatro não se preocupou com esses temas, mas sim com outros Clemenceau queria esmagar a economia do inimigo, Lloyd George conseguir um acordo para levar consigo a Londres, e exibi-lo durante uma semana, Wilson nada fazer que não fosse justo e correto. É um fato extraordinário, mas o problema econômico fundamental de uma Europa esfomeada que se desintegrava diante dos seus olhos era a única questão para a qual foi impossível provocar o interesse dos Quatro” (KEYNES, 2002, p. 157). Nesse contexto, na perspectiva da Chancelaria brasileira, apesar da percepção de um ambiente hostil, em que as pequenas nações não tinham mais que a finalidade de atribuir uma aparência liberal à Conferência de Paz, o Brasil buscava deixar registrado o seu protesto contra a “velha diplomacia” e a sua posição em defesa dos interesses das potências menores. Exemplo disso foi a defesa da tese do não-reconhecimento nem de grandes nem de pequenas potência, com base no argumento de que, ainda que os interesses dos países fossem desiguais, as soberanias deveriam ser consideradas iguais. A estreita cooperação com os EUA não representaria mais do que os “frutos da política de aproximação, tradicional ao Itamaraty” (GARCIA, 2006, p. 74), mas sem implicar qualquer aspecto de subordinação ou dependência. Contudo, tais entendimentos não deixaram de ser contestados pelos que acreditavam que o Brasil mantinha relações de vassalagem com os EUA e que havia abandonado as pequenas potências ao se deixar ingressar no clube fechado do Conselho da Liga. Para o Itamaraty, o Brasil obteve conquistas importantes e saiu da Conferência de Paz com uma posição de elevado renome na Europa e nos EUA, o que refletia o fato de o país estar sendo reconhecido em seus esforços e sacrifícios e, por isso, estarem sendo concedidas as recompensas materiais e simbólicas devidas. Exemplo disso seria a possibilidade de uma nação sul-americana se ver representada por três delegados em uma Conferência em que se discutiram, essencialmente, questões do Velho Mundo. Com efeito, as considerações de prestígio não são negligenciáveis para motivar a participação do Brasil na Liga das Nações, uma vez que, por ter participado na Primeira Guerra Mundial junto aos aliados, o país tornou24

se membro fundador da Liga das Nações, iniciando-se, destarte, na prática do multilateralismo político e universal e de todas as novidades que isso trazia (SANTOS, 2003, p. 89). Para um país que, até esse momento, havia participado apenas dos

fóruns

internacionais das Conferências Panamericanas e da Conferência de Haia de 1907, a indicação como membro não permanente do Conselho da Liga no seu primeiro ano de funcionamento, sendo reeleito continuamente até 1925, constituiu considerável gesto de prestígio político. Tais imagens de crescente prestígio interno e externo, encontraram ressonância na mídia nacional, em especial o tema do número de delegados que caberia ao país, isto é, o de seu status na Conferência de Paz. De acordo com “A Época”, essa ascensão na escala das potências não foi conseguida como uma recompensa pelo auxílio bélico oferecido, conforme a perspectiva oficial, mas teria sido uma honra concedida ao Brasil pela sua condição de país independente e democrático no continente sul-americano. No entanto, essas imagens e representações projetadas pelos jornais começam a se modificar com o avanço das negociações e o aumento da “desilusão” causada pelos seus parcos resultados alcançados, assim como pelas influências políticas e ideológicas dada a proximidade das eleições de 1919 e a candidatura de Epitácio Pessoa. Tanto os delegados brasileiros como os jornalistas de “O Imparcial” consideraram assimétricas as condições dos trabalhos da Conferência, criticando a incompatibilidade disso com o princípio orientador da igualdade entre as nações. Entretanto, ao passo que, para a Chancelaria brasileira, o país teria conseguido obter algumas vitórias a partir de seu limitado poder de barganha, “O Imparcial” avaliou os delegados à frente da missão brasileira, em particular Epitácio Pessoa, como pouco engenhosos e submissos aos mandos da oligarquia das grandes potênciais, vinculando o Brasil a compromissos que alienavam os seus direitos soberanos. Para esse jornal, o Brasil teria traído não apenas o princípio de igualdade entre os Estados, mas também os seus direitos soberanos, aceitando a superioridade da soberania de certas grandes potências e a condição subalterna de país sul-americano. Outra manifestação dessa submissão seriam as atitudes “ultra-americanas” e a estreita relação mantida entre Brasil e EUA pela Chancelaria de Domício da Gama. As críticas ao desempenho do Brasil em Paris inserem-se, por fim, no contexto de comparação entre a performance de Rui Barbosa na Conferência de Haia de 1907 e a atuação de Epitácio Pessoa na Conferência de Paz de 1919, uma vez que esses dois estadistas estavam concorrendo às eleições presidenciais de 1919.

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Conquanto pareça evidente, na perspectiva presente, a importância da entrada do Brasil na Liga das Nações, as diferentes representações desse acontecimento como recompensa pelo esforço na Primeira Guerra Mundial, honra decorrente da condição de nação sul-americana independente e democrática ou submissão a um arranjo das grandes potências demonstram que não se tratava de tema incólume a controvérsias. Ao contrário, constituiu tópico reincidente nos documentos oficiais e nas primeiras páginas dos jornais pesquisados, em que se pode observar que diplomatas e jornalistas estavam imbuídos da ideia de que se tratava de um assunto crucial para aquele momento histórico em que se desenrolavam profundas transformações políticas, econômicas e sociais no mundo. Igualmente, ambos convergem quanto à percepção de um aumento da projeção internacional no Brasil na esteira da Conferência de Paz e das visitas internacionais realizadas por Epitácio Pessoa. Essas questões obtêm maior significado quando se atenta para o contexto histórico vivido pela diplomacia e pela elite brasileira naquele momento. Como destaca Santos (2003, p. 89), fazer parte da Liga das Nações representava uma oportunidade única para o Brasil reforçar seu status internacional, contando com o aval das grandes potências, e ampliar sua esfera de atuação, saindo dos parâmetros do americanismo e lançando-se em um empreendimento extra-continental. A atuação brasileira na Liga sustentava-se, ainda, em um universo de ideias e de crenças da elite nacional a respeito de inserção internacional do Brasil: o país era visto como uma nação solitária e isolada dentro da América do Sul, cercada de vizinhos combativos e, tendo em vista esse contexto, o Brasil estaria destinado a buscar um “lugar ao sol” no concerto das grandes potências (SILVA, 1998, p. 150). A participação brasileira na Liga significou, desse modo, um breve interregno universalista, ainda que baseado em concepções do realismo político, e reforçou o prestígio internacional de que o país já desfrutava, em razão de atributos nacionais, de consolidada tradição diplomática e do fato de ter sido o único país da América do Sul a participar militarmente da Primeira Guerra Mundial.

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