Recompondo a nação: fundamentos e efeitos da patrimonialização em universos religiosos

May 23, 2017 | Autor: Emerson Giumbelli | Categoria: Patrimonio Cultural, Igreja Católica, Religiões Afro-Brasileiras
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Recompondo a nação: fundamentos e efeitos da patrimonialização em universos religiosos 1

Versão em português do artigo: GIUMBELLI, E. . Recomposing the Nation: Conceptions and effects of heritage preservation in religious universes. Vibrant (Florianópolis), v. 11, p. 442-469, 2014.

Resumo O texto procura contribuir para a linha de estudos que, inspirada em debates sobre etnicidade, problematiza as formas e os componentes da noção de nacionalidade. De que maneira e com que elementos se constitui a “cultura brasileira”? Tal indagação orienta a pesquisa de processos de tombamento conduzidos pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão federal que existe desde 1937. Tomando o tombamento como uma forma de reconhecimento oficial de um objeto como “patrimônio cultural”, procura-se refletir sobre a incidência dessa política sobre dois universos religiosos: o catolicismo e as religiões afrobrasileiras. As conclusões da pesquisa apontam para formas distintas de reconhecimento do religioso e para mutações nos modos de conceber a nacionalidade. Palavras chave: catolicismo, religiões afrobrasileiras, cultura brasileira, patrimônio cultural

Resultados de pesquisa vinculada ao Projeto “Religião e espaço público em três âmbitos”, apoiado por Bolsa de Produtividade do CNPq. 1

No dia 31 de maio de 1984, realizava-se mais uma reunião do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Trata-se de um órgão federal responsável pelas políticas e providências voltadas à proteção do “patrimônio” (Gonçalves 1996, 2007; Choay 2001; Chuva 2009); seu Conselho Consultivo é a instância decisória, atuando com base em processos administrativos constituídos por técnicos do órgão e pareceristas eventuais. Excepcionalmente, a reunião ocorria em Salvador, no salão nobre da Santa Casa de Misericórdia, instituição católica dedicada a serviços no campo da saúde. Ainda no começo da reunião, ingressa no recinto o Cardeal Primaz, apenas para louvar a “ação d[o] [I]PHAN na preservação dos monumentos de arte, culturais e de fé, do país” e para agradecer a liberação de recursos para a conclusão dos trabalhos de restauração da Catedral Basílica de Salvador.2 Saudado pelos demais, o Cardeal deixa a sala, não tendo acompanhado a principal discussão do dia. O Conselho apreciava a proposta de proteção que beneficiava a Casa Grande, ou Ilê Axé Iyá Nassô Oká, terreiro de candomblé com o prestígio de “um dos mais antigos e tradicionais” em Salvador e no Brasil. Em uma reunião tensa, ocorreu a decisão que resultou no primeiro tombamento de um templo de religião de matriz africana – aproximadamente 46 anos depois que o mesmo ocorrera com a Catedral mencionada nos agradecimentos do Cardeal, que integra a lista dos primeiros bens tombados pelo IPHAN. Tal evento – o qual será objeto de outros comentários adiante – pareceu-me emblemático tendo em vista os propósitos deste texto. A presença conjunta e as posições diferenciadas do catolicismo e de religiões de matriz africana configuram uma situação privilegiada para as problematizações que gostaria de levantar. Proponho-me a analisar alguns aspectos das iniciativas estatais de proteção ao patrimônio, considerando sua incidência sobre esses dois universos religiosos. Meu objeto são processos de tombamento constituídos no âmbito do IPHAN, órgão federal criado em 1937 e em atuação contínua até hoje.3 Minhas questões envolvem, portanto, a relação entre políticas culturais e universos religiosos, o que obriga a considerar transformações ao longo do tempo e distinções nas formas de reconhecimento da religião pelo Estado. O quadro no interior do qual essas questões se colocam – e que elas contribuem para 2

O relato cita a ata da reunião, que integra o Processo 1067-T-82, Arquivo do IPHAN. O órgão mudou de nome ao longo de sua história, tendo sido criado como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. IPHAN é a sigla de seu título atual, que uso no decorrer deste texto. O “tombamento” implica na classificação de um bem, edificação ou um lugar para integrar o “patrimônio nacional”; os proprietários de bens, edificações e lugares tombados são obrigados a se ocuparem da sua preservação, podendo contar com recursos públicos para isso. Para detalhes, consultar portal.iphan.gov.br. 3

modificar – corresponde às formas sociais e históricas com que se concebe a “cultura nacional”. Não tenho a pretensão de tecer considerações gerais ou teóricas acerca da noção de etnicidade. Parto da compreensão de que a concepção e a imaginação da nacionalidade, vinculadas a práticas e instituições específicas, pode ser investigada no âmbito das questões problematizadas tendo como referência a noção de etnicidade. Fazê-lo exige levar em consideração os elementos constituintes da nacionalidade segundo certas visões, discursos e procedimentos. De que se constitui a nação brasileira? Eis a pergunta que corresponde à espécie de preocupação que vincula etnicidade e nação.4 Em se tratando deste texto, tal pergunta suscita um empreendimento que se volta para o tema da diversidade religiosa e para as configurações assimétricas que ela assume. Dedicome aos universos do catolicismo e das religiões de matriz africana, na medida em que são atingidos diretamente pelas políticas de proteção ao patrimônio. Formulo então minha questão central: quais os modos pelos quais catolicismo e religiões afrobrasileiras são reconhecidos como sinônimo ou parcela da cultura nacional? Evidentemente, essa questão já foi levantada a partir de outros pontos de vista. Muitas análises acerca da sociedade brasileira constataram a identificação que se produziu entre catolicismo e brasilidade. 5 Por diversas vias: como matriz de uma formação histórica ligada ao empreendimento colonizatório, como religião da maioria da população brasileira tal como atestam levantamentos estatísticos sobre afiliações religiosas, como base sobre a qual se estabelecem relações sociais... Quanto às religiões de matriz africana, temos um quadro diferente, na medida em que sua participação na cultura nacional depende de outros canais: expressões artísticas em diversos gêneros, culinárias específicas, e sobretudo a associação com a negritude ou a africanidade entendidas como constitutivos da nação, inclusive em termos históricos. Tais formas de participação em uma cultura nacional convivem com o estatuto minoritário dessas religiões. 6 Os analistas do campo religioso brasileiro observam a recente ascensão dos evangélicos como um dos principais vetores de transformação das posições ocupadas por catolicismo e religiões afrobrasileiras, ambos – mas não igualmente – ameaçados. 4

Aponto como inspirações para esse tipo de problematizações um conjunto de discussões amplas e coletivas, entre as quais destaco: Fry (2005), Maio e Santos (1996), Schwarcz (1993, 1999), Sansone e Pinho (2008). Para outros contextos, considero importantes Handler (1988), Van der Veer (1994) e Comaroff e Comaroff (2009). 5 Pode-se citar alguns exemplos: Sanchis (1994), Novaes (2002), Brandão (1988), Fernandes (1994), Montero (2012). 6 Dois exemplos de análises sobre o lugar das religiões afrobrasileiras: Birman (1997) e Silva (2006).

Por outro lado, não está claro ainda o lugar da religião evangélica na sua relação com a nacionalidade ou a cultura brasileiras. 7 O objetivo deste texto tem por referência um âmbito mais específico, mas ao mesmo privilegiado. O IPHAN pode ser tomado como um dos principais nós em que se articulam concepções acerca da “cultura nacional” e práticas que incidem sobre diferentes esferas sociais, incluindo as religiosas. Para desenvolver as questões enunciadas, começo perscrutando a relação entre políticas de proteção cultural e catolicismo. A base para essa exploração não são casos específicos, mas um conjunto de dados e análises – elaborados por outros pesquisadores – que me servem para mostrar como se pensa o vínculo entre catolicismo e patrimônio nacional. Privilegio o período formativo do IPHAN – sua primeira década de atividade –, mas também recuo para os anos anteriores que constituem o contexto no qual as políticas de proteção foram concebidas. Na seção seguinte, dedico-me ao universo afrobrasileiro, analisando sete processos de tombamento de terreiros pelo IPHAN, desde o mencionado acima, dos anos 1980, até outros mais recentes. Procurarei destacar os argumentos que justificam a valorização desses novos patrimônios. Por fim, analiso o processo de tombamento do monumento ao Cristo Redentor, concluído em 2006. Assim, retorno ao catolicismo para mostrar como se reconfigura, em período recente, a relação entre nação e religião.

Templos católicos É difícil ignorar a importância da religião católica quando se considera o impacto da política oficial de patrimonialização. A partir da criação do Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937, mais de 50% dos registros de bens tombados pelo órgão até 1946 correspondem a templos católicos (Chuva 2009: 128). Segundo o mesmo estudo, a Igreja Católica também foi a principal beneficiária de obras de restauração quase sempre financiadas por recursos públicos. O período em questão – 1937 a 1946, quando ocorreram mais de 40% dos tombamentos até 1997 – desponta como um dos mais ativos na trajetória do atual IPHAN, por uma razão fácil de entender: tratava-se de concretizar, por meio de decisões administrativas, o projeto que deu origem ao próprio órgão, comprometido ao mesmo tempo com a preservação de objetos e edificações e com a construção de uma memória nacional.

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Enquanto a análise clássica de Sanchis (1994) enfatiza a contraposição, trabalhos recentes como o de Cunha (2008) sugerem aproximações.

Ouro Preto ocupa lugar paradigmático no despontar dessa política. Antes mesmo da criação do SPHAN, um decreto de 1933 a transformou em “Monumento Nacional”. Assim como ocorre com outras cidades históricas mineiras, tombadas como tais, ou seja, em seu conjunto arquitetônico, os templos católicos se destacam entre os objetos e motivos que fundamentam as medidas de proteção. Eles foram mencionados na exposição de motivos do referido decreto e se beneficiaram de restaurações nos anos seguintes. Ouro Preto reunia atributos duplos. Por um lado, agradava aos que reverenciavam o passado e os seus legados para o presente, uma espécie de relicário do século XVIII. Por outro lado, atraía o fascínio dos modernistas, que na década de 1920 tornaram o lugar um destino predileto para suas viagens de formação, mas também vislumbraram convergências entre o passado e o moderno, consagradas pela construção de um hotel projetado por Oscar Niemeyer. Por essas razões, a cidade recebeu atenção especial e atuou como um modelo moderno de cidade histórica (Chuva 2009).8 Segundo Chuva (2009), a elaboração que consagrou o colonial mineiro do século XVIII como estilo arquitetônico ocupou lugar privilegiado nos primórdios da política federal de proteção ao patrimônio. Mas Bahia e Pernambuco também figuram como lugares destacados, e não unicamente por serem tidos como antecedentes na formação do barroco que se consolidaria em Minas Gerais. De todo modo, é esse barroco que se instaura como paradigma e modelo, encarnado sobretudo em templos católicos. De acordo ainda com a mesma pesquisadora, os templos foram considerados sob duplo ponto de vista. Primeiro, como encarnação dos ideais de “belas artes”, que identificava o livro de tombo mais valorizado no SPHAN; segundo, como registros históricos, passando a antiguidade a ser o critério decisivo. A importância dos três estados já mencionados e também da Capital Federal fica evidenciada nas estatísticas: “Setenta e cinco por cento dos tombamentos do período foram feitos nos estados da Bahia (28%), Rio de Janeiro (22%), Minas Gerais (15%), cujas cidades históricas contam unitariamente nesse percentual, mas na verdade foram centenas de imóveis tombados em conjunto, e Pernambuco (10%)” (Chuva 2009: 189). A concentração de ações naqueles três estados não pode ser dissociada da existência de iniciativas e estruturas que anteriormente à criação do IPHAN já se ocupavam de questões similares. Inspetorias Estaduais de Monumentos Nacionais foram criadas na Bahia, em 1927 e em Pernambuco, no ano seguinte. No último estado, segundo

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Para o caso de outra cidade histórica mineira, ver Camurça e Giovannini (2003).

Medeiros (2005), no arquivo fotográfico e no inventário de bens móveis e imóveis, já predominava “a presença da arquitetura religiosa, por se considerar que a História pernambucana se confunde em grande parte com a da própria Igreja Católica” (:6). Em Minas Gerais, houve uma comissão cujo relatório foi apresentado em 1925, juntamente com uma proposição de lei. Outras proposições de lei em âmbito federal vieram, não por acaso, de representantes da Bahia e de Pernambuco. Esse protagonismo dos três estados vem acompanhado de outra característica: a ação de pessoas vinculadas ao catolicismo. Luiz Cedro Carneiro Leão, intelectual católico, foi o deputado pernambucano que apresentou a proposta pioneira de legislação federal em 1923. Outro intelectual católico, Gustavo Barroso, diretor do Museu Histórico Nacional inaugurado em 1922, esteve envolvido nas iniciativas na Bahia e em Minas Gerais. A Comissão mineira, por sua vez, contava entre seus membros D. Helvécio, bispo de Mariana (Chuva 2009; Iphan 1980). Não cabe exagerar a importância desses católicos nos aparatos estatais voltados para a proteção ao patrimônio. No caso do SPHAN, ao menos, a condução esteve nas mãos de pessoas sem vínculos com a Igreja Católica. Além disso, como demonstra Chuva (2009), houve várias situações de tensão com autoridades eclesiásticas, quando estas se opunham às propostas de tombamento de determinados templos. Por outro lado, o projeto do deputado Araújo Pinho, de 1930, previa a presença de um representante do clero entre os conselheiros que tomariam as decisões sobre os tombamentos (Iphan 1980). E no regulamento interno do aparato federal vigente em 1961 podia-se encontrar a expressão “poder eclesiástico”, indicando uma instância reconhecida pela atuação do IPHAN. “Relações bastante estreitas, ainda que nem sempre harmoniosas” (Chuva 2009: 181), portanto, marcaram a aproximação entre Estado e Igreja Católica. O que possibilitava isso? Para ajudar a responder essa pergunta, podemos recorrer ao trabalho de Ribeiro (2009). Nele, a historiadora procura localizar os fatores que permitiram que certa visão católica acerca da formação nacional tivesse passagem e legitimidade no campo intelectual brasileiro no início do século XX – ou seja, exatamente no período em que se forjam os projetos de proteção ao patrimônio. Em parte isso está relacionado com as posições que intelectuais católicos conquistaram em institutos históricos e academias de letras e ciências. Talvez o caso mais forte seja o de Antonio Celso, presidente do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e autor de livros didáticos. Enquanto no primeiro posto

ele defendia a benevolência do colonialismo português, na segunda condição elogiava o papel dos jesuítas na história nacional. Certa convergência de interesses pode ser notada em dois registros presentes em Ribeiro (2009: 214): eclesiásticos utilizavam o discurso de posse no IHGB como forma de atacar a separação entre Igreja e Estado; inversamente, sócios laicos do IHGB reconheciam o papel da religião católica na formação história da nação. Dentro do universo católico, tal visão histórica vinha sendo elaborada desde pelo menos o início do século XX, ganhando na década de 20 suas formulações mais consolidadas, nas intervenções de importantes intelectuais, tais como Jackson Figueiredo e Alceu Amoroso Lima. Uma ideia central para essa visão: conceber a patria brasileira sem a fé católica significava anunciar um absurdo histórico (Oliveira 1990). É interessante transcrever as justificativas que acompanhavam a apresentação do projeto de lei de autoria do pernambucano Luiz Cedro: “ ... acabo de enviar à mesa um projeto visando colocar sob a proteção do Estado todos os edifícios que apresentarem, do ponto de vista da história ou da arte, um interesse nacional. (…) Essas velhas Igrejas … essas velhas casas coloniais … Elas representam para nós a tradição viva, o trabalho acumulado dos nossos predecessores … e constituem por tudo isso um espelho que temos o dever de preservar para transmitir à geração do Brasil de amanhã” (apud Medeiros 2005: 5). No relatório da comissão mineira, a Igreja é reconhecida como uma das principais interessadas na preservação do patrimônio histórico, devendo ser tida, portanto, como uma aliada da política oficial (Iphan 1980). Vale ainda mencionar o texto que em 1938 fundamenta a indicação da Igreja de Nossa Senhora das Dores, situada em Porto Alegre, para tombamento pelo IPHAN. 9 Basta o relato de sua história, com base em várias fontes documentais, que remonta sua fundação aos inícios do século XIX. A necessidade de preservação da arquitetura religiosa como testemunho de um passado nacional servia de pressuposto ao trabalho dos colaboradores do IPHAN. Chuva (2006) resume o papel destacado dos templos católicos nos primórdios das iniciativas do SPHAN desse modo: “foi supervalorizado o aspecto religioso do período colonial – atribuindo valor artístico às manifestações de poder da Igreja Católica e à representação material da fé cristã (...). O Estado, a partir de sua própria ossatura material, promovia também a monumentalização da fé” (217-8). Pode-se entender literalmente essa sugestão de monumentalização, na medida em que os templos,

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Processo 0096-T-38, Arquivo do IPHAN.

mantidos como lugares de devoção, foram transformados em monumentos nacionais. Ao contrário de outros países, na Europa sobretudo, nos quais uma parcela significativa de edifícios religiosos deixaram de ser usados como lugar de culto, no Brasil essa transferência de propriedade e de função representa mais a exceção do que a regra. Ou seja, muitos edifícios foram monumentalizados sem terem deixado de funcionar como templos. A ideia de supervalorização do religioso também merece um comentário. Pois não foi propriamente como “religião” que os templos e outros bens católicos foram tombados. O que possibilita isso, como vimos, é seu reconhecimento como objetificação de valores históricos e/ou arquitetônicos. Foram as visões que privilegiavam o barroco e a resistência dos edifícios aos assaltos do tempo que intervieram como mediadores para a proteção dos templos. Foi isso, ao mesmo tempo, que os assimilou à formação da nação. Em um período no qual predominam os critérios que envolvem a cultura material, pouco se fala do catolicismo e dos católicos que construíram e que sustentam esses edifícios. Na verdade, esses católicos às vezes se convertem em estorvo para as políticas estatais. Por outro lado, foram os mesmos critérios arquitetônicos e históricos que erigiram pressupostos que eliminavam outras possibilidades, considerando o campo religioso brasileiro, de beneficiários de políticas de proteção e intervenção. Nesse sentido é que o Estado republicano consagrava o catolicismo como a religião nacional. Essas concepções, forjadas na primeira metade do século XX, se projetam no presente. Isso pode ser constatado pelo exame de um dos artigos que integra o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica. Esse documento foi negociado entre autoridades do Vaticano e do governo brasileiro, tornando-se lei por decisão do Congresso Nacional em 2010.10 Reza seu artigo 6º.: As Altas Partes reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro, e continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio cultural e artístico. § 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da cooperação, reconhece que a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste

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Para detalhes sobre esse documento, ver Giumbelli (2011) e a bibliografia nele indicada.

artigo deve ser salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem prejuízo de outras finalidades que possam surgir da sua natureza cultural. § 2º. A Igreja Católica, ciente do valor do seu patrimônio cultural, compromete-se a facilitar o acesso a ele para todos os que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos. (apud Giumbelli 2011: 140) Note-se a expressão “patrimônio cultural brasileiro”, que ratifica a associação entre catolicismo e nação. Ao mesmo tempo, vê-se pistas acerca do regime predominante de administração desse patrimônio: ele continua sendo propriedade da Igreja Católica, cabendo ao Estado certos direitos de acesso a lugares e documentos. Por fim, se quisermos, podemos ver alguma ambiguidade na formulação “de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas eclesiásticas”. O documento estaria reconhecendo a possibilidade de que outras religiões possam ser abrangidas pelas políticas de proteção ao patrimônio cultural e artístico? Apostando nessa pista, vejamos o que ocorre no universo afrorreligioso.

Terreiros de candomblé O tombamento do terreiro da Casa Branca, concluído em 1984, por decisão da reunião lembrada no começo deste texto, foi uma ação pioneira. Após o interregno de aproximadamente 15 anos, vieram outros tombamentos de terreiros. Em levantamento realizado no Arquivo do IPHAN em setembro de 2012, 21 processos foram localizados. A maior parte deles se refere a casas situadas no estado da Bahia. Os demais sete casos estão assim distribuídos: dois em Pernambuco, dois no Rio de janeiro, um em Goiás, um Sergipe e um no Maranhão. Excetuando o processo da Casa Branca, os demais se distribuem entre 1998 e 2009. Pode-se concluir que assistimos a uma proliferação de tombamentos de terreiros desde os anos finais do século passado, em uma onda que parte da Bahia e já atinge outros estados brasileiros. 11

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Algumas ações e projetos com incidência sobre a Bahia criaram as condições de possibilidade para os tombamentos (ver Serra 2005). No cenário recente, o IPHAN vem promovendo discussões abertas acerca de como tratar as religiões afrobrasileiras. Pude acompanhar parte do III Fórum de Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro, realizado em 21 de setembro de 2012. Ver IPHAN (2012).

Apesar de reunir informações básicas sobre os 21 casos, apenas tive acesso ao conteúdo de sete processos.12 Considerados em conjunto, eles decorrem entre os anos de 1998 e 2004; a exceção é um caso, compreendido entre os anos 2008 e 2010. Cinco dos sete terreiros estão localizados em Salvador; um em Cachoeira, município do Recôncavo Baiano; o último, em São Luis do Maranhão. A amostra reflete, portanto, o predomínio de templos baianos. Apresento a seguir uma análise dos sete processos a que tive acesso. A pretensão não é realizar uma analise do universo de terreiros tombados, o que dependeria do acesso à totalidade dos casos. Por outro lado, também não desejo tratar dos sete casos de forma detalhada. Meu objetivo é localizar os pontos que fundamentam as propostas de tombamento de terreiros. Para tanto, opto por desenvolver a apresentação em dois passos, privilegiando o caso da Casa Branca e passando sem seguida aos demais, considerados em conjunto. O processo da Casa Branca distingue-se dos demais não apenas por sua situação temporal. Foi uma decisão difícil. Enquanto em todos os seis casos restantes, a aprovação de tombamento resultou de uma unanimidade ou larga maioria de votos, a eleição da Casa Branca foi apertada. Pelo menos dois comentaristas (Serra 2005; Velho 2006) apontam resistências entre os conselheiros, resistências que representariam visões conservadoras acerca da noção de patrimônio e demonstrariam incômodo em estender o tombamento a expressões religiosas de matriz africana. Certamente havia esse tipo de resistência. Mas gostaria de chamar atenção para alguns pontos que eram compartilhados entre aqueles que administravam a medida do tombamento. Em outras palavras, dúvidas e dilemas – que, no entanto, não foram vistos como suficientes para negar o tombamento da Casa Branca. As razões pelas quais o terreiro da Casa Branca justifica seu tombamento podem ser acessadas em várias peças do processo.13 Privilegio a contribuição oferecida por um antropólogo na forma de um texto, que desempenha o papel de parecer favorável ao tombamento, mesmo que tecnicamente não o seja. Nesse texto, a Casa Branca é apresentada como um dos primeiros terreiros de origem ketu nagô a existirem no Brasil, a partir do qual muitos outros surgiram. Sua significação cultural é dupla: como impulso original de um complexo religioso-cultural e como símbolo da continuidade desse complexo. A partir disso, seria preciso reconhecer o que tal complexo representa acerca

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Processos 1067-T-82, 1432-T-98, 1464-T-00, 1471-T-00, 1486-T-01, 1481-T-01, 1627-T-11, Arquivo do IPHAN. Agradeço aos funcionários do Arquivo do IPHAN o atendimento a minhas consultas. 13 Processo 1067-T-82, Arquivo do IPHAN. Ver ainda França (2012).

do papel que desempenharam os africanos e seus descendentes na formação da cultura brasileira. Uma vez estabelecida sua significância cultural, justificava-se a proteção do terreiro por meio de uma medida oficial. Na carta em que pedia providência em prol da Casa Branca, o presidente da associação que representa o terreiro pergunta por que os monumentos do povo negro não mereceriam tanto respeito quanto os monumentos de outras origens. É interessante notar que contestações a esses argumentos – que certamente existiam – não estão registradas nas peças do processo. As objeções levantadas por um ou outro conselheiro na reunião que decidiu o tombamento da Casa Branca tocam em outros pontos. Um deles é a questão da propriedade do terreno onde se situava o templo de candomblé. O proprietário das terras onde estava o terreiro já havia vendido (ou arrendado) parte delas, e um posto de gasolina havia se instalado nas proximidades da entrada da Casa Branca. Havia notícias de que o próprio terreiro seria desalojado. A carta do presidente da associação religiosa, uma das peças que serve de fundamento para o pedido de tombamento do terreiro, não menciona essa medida; prefere pedir a desapropriação do terreno e a cessão de seu uso permanente. No momento em que se realiza a reunião do Conselho do IPHAN, a questão da propriedade não está resolvida. Aqueles que se posicionaram em favor do tombamento tomaram o partido, explícita ou tacitamente, de que a medida seria o meio mais oportuno para solucionar o problema da propriedade – e não o inverso. A solução de fato ocorreu alguns meses depois da reunião que decidiu pelo tombamento da Casa Branca. Outro ponto levantado na mesma reunião remete para questionamentos acerca da adequação da providência do tombamento para o reconhecimento da importância de um terreiro de candomblé. Uma que vez que o tombamento incide sobre bens materiais e implica na preservação de suas formas, surgira a pergunta: seria possível aplicá-lo a sítios cujos elementos materiais passam por transformações constantes? Se, para alguns, essa indagação estaria ligada à constatação da ausência de valor arquitetônico das construções que constituem um terreiro de candomblé, havia também outras questões em jogo. Uma arquiteta do IPHAN, ao mesmo tempo em que admite a necessidade de se encampar ao patrimônio nacional novas séries de manifestações culturais, prevê o surgimento de legislação própria para ser aplicada a terreiros e sítios similares. Dois dos antropólogos mais diretamente envolvidos no processo explicitaram suas dúvidas também. Um deles cogita instrumento mais adequado do que o tombamento, este apenas poderia ser aplicado se acompanhado de uma interpretação flexível da legislação

existente, de modo que as medidas de preservação não se constituíssem em empecilhos às mudanças (na organização espacial e na ordem material) próprias às manifestações religiosas. O outro chega a duvidar da pertinência do tombamento, com o qual se correria o risco de imobilizar algo essencialmente dinâmico. Ao final, ambos prestam apoios decididos e decisivos ao pleito do tombamento, apostando que a medida não impediria modificações em acervo arquitetônico e não interferiria na organização interna da comunidade. Assim, o apoio ao tombamento não significava ausência de dúvidas sobre sua adequação, mas insistência em uma espécie de combinação entre preservação e transformação, entre reconhecimento estatal e autonomia religiosa. Por fim, um ponto permite juntar dois argumentos que foram articulados na reunião do Conselho do IPHAN como objeções ao tombamento da Casa Branca. Consultando a ata da reunião sabemos que um dos conselheiros afirmou que “a proposta de tombamento foi feita no pressuposto de que este viria garantir a continuidade do culto”; outro, que, “sendo o Candomblé uma cerimônia, uma religião, a casa não se constitui parte fundamental da doutrina”. Ambos os argumentos parecem ter o catolicismo como contraponto não explicitado. Na medida em que apontam para uma aplicação diferenciada do instituto do patrimônio, localizam novamente um campo comum de percepções. A partir desse campo comum, a divergência se estabelece em torno da exclusividade ou não do parâmetro construído por referência ao catolicismo. No caso dos sítios católicos, não entravam em questão a garantia da continuidade do culto ou o vínculo intrínseco entre templo e doutrina. Como afirmei antes, construiu-se uma leitura que permitia dissociar religião e valor arquitetônico ou histórico. O que vemos no caso do tombamento da Casa Branca é a impossibilidade de estabelecer tal distinção. Se quando se trata do catolicismo, é possível considerar o templo sem as atividades que o preenchem, o processo relativo ao terreiro de candomblé recusa essa separação. O que o sustenta é o vínculo entre o sítio e um grupo específico. Como afirma o parecer do relator no processo: “O tombamento deve ser uma garantia para a continuidade da expressão cultural que tem em Casa Branca um espaço sagrado”, sendo o candomblé entendido como sistema religioso fundamental na constituição da identidade de significativas parcelas da sociedade brasileira. A partir desse conjunto de considerações, estamos agora em condições de apreciar os demais tombamentos. Como foi antecipado, não se produzirá mais analises de casos específicos, e sim considerando a totalidade dos seis processos. Vale repetir que as decisões pelo tombamento foram tomadas por unanimidade ou larga maioria de votos

em todos esses processos, evidenciando uma mudança de sensibilidades quando comparamos com a situação que cercou o caso anterior. Essa unanimidade na decisão pode encontrar alguma correspondência com o envolvimento de personalidades públicas na indicação do tombamento e a ocorrência de reconhecimentos anteriores. Há indicações no processo do terreiro do Gantois que registram a sugestão do ministro da Cultura; em outro terreiro, o pedido parte do prefeito de Salvador; em outro ainda, de um ex-funcionário do IPHAN. A prefeitura de Salvador já havia intervindo com medidas de proteção em quase todos os quatro terreiros do município. O terreiro de São Luis foi objeto de uma proposta de tombamento pelo órgão estadual de proteção ao patrimônio. Além disso, reconhecimentos de âmbito federal beneficiaram a maior parte dos terreiros de Salvador. Temos aí portanto uma série de sinais que atestam a criação de uma atmosfera favorável à valorização dos terreiros. Tecerei alguns comentários analíticos, divididos em três blocos. Em cada um deles, notaremos continuidades e também desdobramentos em relação ao processo da Casa Branca. Do ponto de vista das justificativas e fundamentos para a ação de tombamento, os indícios de ancianidade continuam a desempenhar papel crucial. Em todos os casos isso ocorre. Os terreiros do Gantois e do Axé Opô Afonjá estão unidos à Casa Branca por uma história comum que remete ao século XIX. Com um desenvolvimento paralelo a eles, o Alaketo reitera a condição de “um dos mais antigos terreiros de que se tem notícia na Bahia”. A Casa das Minas é tida como “a mais antiga casa de religião afrobrasileira no Maranhão”. O Zogbodo Male Bogun Seja Unde, localizado em Cachoeira, apresenta suas credenciais como o primeiro terreiro de candomblé fundado por africanos de nação jeje. Aliás, há um claro predomínio, considerados os sete processos de tombamento, de terreiros de referência jeje-nagô. A exceção fica por conta do Terreiro Bate Folha, identificado como “angola”; também nesse caso é acionado o critério da antiguidade, assim como o do prestígio entre outras “nações”. 14 Em todos os processos, os pedidos, os laudos e relatórios apontam as conexões históricas com a África, sempre remetendo à epopeia do tráfico negreiro e da escravidão nos períodos colonial e imperial. Ora essas conexões são traçadas de maneira mais genérica, ora são rastreadas nos trajetos de indivíduos específicos em seus trânsitos entre a América e a África. O critério da ancianidade, não mais relacionada a uma linhagem exclusiva ou específica, parece abrir caminho para outros casos em que se considera o tombamento

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Vale notar que o pedido para a abertura do processo de tombamento partiu da líder do Axé Apô Afonjá.

de terreiros. Note-se que os terreiros em questão foram todos inscritos no Livro de Tombo Histórico do IPHAN. Por outro lado, é interessante que nenhum dos terreiros tenha sido inscrito no Livro de Belas Artes. Coube-lhes, além do Livro Histórico, o Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Isso suscita uma discussão importante acerca de outros fundamentos levantados para justificar a ação de proteção. Dada que a dimensão material, expressa em escalas arquitetônicas, é crucial na instituição do tombamento, coloca-se em questão a maneira de considerar tais dimensões no caso de terreiros de candomblé. O parecer de um arquiteto no processo referente ao Terreiro do Alaketo oferece uma boa indicação. Não é possível, afirma o parecer, apreciar a arquitetura de um terreiro sem levar em consideração “valores étnicos e míticos”, em que entra em jogo não a reprodução, mas a representação da África. O parecer destaca como característica marcante das construções encontradas nos terreiros a sua simplicidade e a relação direta estabelecida entre os espaços e suas funções. Aos olhos da cultura europeia, não seria um templo; mas valores afro-brasileiros produzem outra perspectiva. Assim conclui o arquiteto: “Dessa simbiose cultural resulta a arquitetura civil vernácula presente no Alaketo, a um só tempo típica e única, tanto em sua externalidade urbana como em seu papel cultural”. A adoção de outros parâmetros, portanto, permitiria produzir os devidos referenciais para a apreciação dos elementos materiais presentes nos terreiros. Entretanto, a ausência de inscrição no Livro de Belas Artes – onde constam muitos templos católicos – aponta para uma tensão existente nas formulações que buscam valorizar a arquitetura dos terreiros. A relação intrínseca entre espaços e funções revela a pista do caminho que leva da estética ao uso, com o privilégio deste último. O relatório do processo da Casa das Minas é outro exemplo desse raciocínio, ao constatar a estreita ligação entre estrutura física e os cultos – como demonstra a preservação do chão em terra batida. Suas construções simples abrigam um “templo sagrado”, o que pode estar camuflado por um “mimetismo social” necessário em uma sociedade preconceituosa. O processo do Terreiro Zogbodó afirma algo parecido: a simplicidade da arquitetura e dos materiais é fundamentada em orientações religiosas, sua construção ocorrendo através de rituais. A relação entre espaços e usos, levantada para a compreensão das configurações internas aos terreiros, pode ser estendida para abarcar aspectos de outra ordem. Refiro-me aos vínculos estabelecidos entre, de um lado, a existência de longo prazo de terreiros afro-brasileiros e, de outro, a consolidação de modelos populares de residência e a urbanização de regiões periféricas. Em outro plano,

pode-se sustentar o mesmo quando se assinala a contribuição dos terreiros para a preservação de espaços verdes nas grandes cidades. O Terreiro Bate Folha, em Salvador, é elogiado como um “manancial de cultura e ecologia”. O acento sobre o uso ou a função para a devida apreciação dos elementos materiais que constituem os terreiros reitera a ideia de que o reconhecimento de tais sítios está fortemente vinculado às comunidades que os animam. É significativo que, no conjunto dos processos analisados, haja duas ocorrências em que se cogita a possibilidade de encaminhar as discussões sobre a proteção aos terreiros sob a referência do “patrimônio imaterial”. No processo do Gantois, uma conselheira levanta a proposta de que terreiros sejam registrados como lugares protegidos, sob a justificativa de que representam um “valor espiritual”. Tal valor se concretiza na riqueza das construções católicas e sem a mesma correspondência no caso dos terreiros. O relatório no caso do Bate Folha constata que trata de processo que se insere “em série ainda restrita e muito peculiar de monumentos”. Neles se opera uma ponte entre referências materiais e imateriais; nesta última dimensão, se estabelece uma aura cultural em sentido que amplia usos anteriores, possibilitando agora o reconhecimento de uma “autenticidade popular”. Valor espiritual e autenticidade popular podem ser vistos como operadores dessa passagem que leva das dimensões materiais à organização social de um grupo que serve de suporte ao templo. É significativo que um dos participantes da reunião do Conselho do IPHAN em que foi proposto o registro de terreiros como patrimônio imaterial tenha levantado uma precaução: seria preciso considerar o regime de segredo que preserva alguns aspectos do culto e que seria colocado em risco com o registro estatal. Creio que vale apresentar um parecer específico, aquele elaborado no processo que envolve o Axé Apô Afonjá, a fim de ver como se articulam pontos já enunciados. A pessoa que o elaborou voltou a ser parecerista em outros três processos, de modo que se trata de uma personagem chave nesse conjunto de casos. A situação desse terreiro é ainda interessante pelo fato de que ele não sofre de problemas de ordem material ou fundiária. Após uma introdução, na qual se afirma que foram superadas as dúvidas sobre a adequação do instrumento do tombamento aplicado a terreiros, o texto trata da “reorganização dos cultos africanos no Brasil”, apontando a hegemonia cultural jejenagô estabelecida no século XIX na Bahia como responsável pela estrutura geral dos terreiros de candomblé. O item seguinte é dedicado ao “modelo espacial de terreiro jejenagô”, descrito com base em bibliografia antropológica. Por fim, realiza uma apresentação do terreiro em questão, relatando sua história e aferindo a correspondência

com o modelo descrito no item anterior. Nota que a mata do terreiro é uma referência paisagística na parte da cidade onde está situado. O terreiro deve ainda ser visto como um fator de urbanização e como testemunho da não exclusividade de modelos arquitetônicos e urbanísticos europeus. Transcrevo um dos trechos do parecer, pois creio que ele ilustra e sintetiza lapidarmente alguns pontos já discutidos: “A relação da comunidade de culto com o espaço do terreiro é de caráter profundamente sagrado. O culto dos orixás só pode ocorrer aí, pois no seu centro simbólico (...) está plantado o axé da casa e sem ele nada existe ou pode existir. Daí a importância fundamental da preservação do espaço para a continuidade da manifestação religiosa. Assim, as transformações espaciais e arquitetônicas que um terreiro sofre são sempre próprias da dinâmica do culto e do desejo do seu engrandecimento. No caso do Axé Opô Afonjá, a preocupação com a preservação sempre esteve presente, como atestam a conservação da área do terreiro, das edificações e as iniciativas tomadas para o desenvolvimento social da comunidade. Sem povo e sem terreiro, não há candomblé”. Note-se como se compatibilizam transformação e preservação como parte da existência do terreiro. Em outra chave, o sítio e sua materialidade são apresentados como a base sobre a qual ocorre o culto; mas isso só é possível porque se afirma concomitantemente que as atividades em torno do culto orientam e sustentam seus referentes materiais. Sem candomblé, não há terreiro – poderia estar escrito. Outro aspecto interessante nesse parecer é como se entrelaçam duas ideias que poderiam parecer contraditórias. O texto sustenta que um terreiro recria a geografia religiosa africana e, ao mesmo tempo, que reflete as condições de criação de uma religião nacional. Em outro registro: por ser resultado da resistência cultural dos negros escravizados, o terreiro é uma invenção brasileira. Ou seja, o terreiro é ao mesmo tempo africano e brasileiro. Tal formulação reitera pontos que já haviam aparecido em fundamentações no processo da Casa Branca. Contudo, se reconhecemos que se trata de algo ratificado e disseminado nos vários casos mais recentes, podemos ver um reforço do vínculo entre religião afrobrasileira e cultura nacional. A religião afrobrasileira não é apenas o testemunho ou o legado de uma parcela da população – “afirmação da identidade étnica afro-brasileira”, “documento da história e da resistência cultural negra” -, mas é também um vetor de que se compõe a totalidade da cultura nacional, esta agora vista como necessariamente plural e multifacetada. A mesma articulação de vetores pode ser vista em outro laudo, este relativo ao Gantois: “Serve de referência insubstituível na crônica de um povo que teve destacada

importância na formação da riqueza do Brasil, na construção de sua identidade e de sua cultura. É monumento expressivo da cidade de Salvador, motivo de orgulho para a Bahia e para o Brasil; evoca a gesta dos africanos e afro-descendentes neste país, a memória de grandes sacerdotisas e sacerdotes negros que se impuseram ao respeito de todos e conquistaram o amor de seu povo; evoca uma história que brasileiros de todas as origens prezam, legado de grandes civilizações, testemunho de nossa preciosa herança africana”. Em outro texto (Giumbelli 2008), procurei demonstrar que o reconhecimento das religiões afrobrasileiras dependeu frequentemente de um argumento diferencialista, que apostava na especificidade dessas religiões. Tal especificidade, por sua vez, sustenta-se comumente sobre o uso da noção de cultura em sentido étnico, associando candomblé e outras variantes religiosas a expressões de africanidade. Mas os argumentos que fundamentam os pedidos de tombamentos, sem deixar de reiterar essas associações, buscam enfatizar um outro vetor, que obriga a reconsiderar a própria concepção de cultura brasileira. Em outras palavras: não se trata de reivindicar a especificidade apenas, mas de afetar o modo pelo qual se concebe a totalidade. Similarmente, a noção de cultura em jogo, além de reiterar uma leitura etnizada, apela para sentidos mais gerais. Cultura e nação, portanto, passam por transformações, ponto ao qual voltarei nas conclusões. Essas reconfigurações se refletem em manifestações que instauram uma aproximação específica entre Estado e religião. Ocorrências não faltam. Na reunião relativa ao tombamento do Axé Apô Afonjá, um diretor do IPHAN invocou Xangô em sua manifestação. Outra saudação a Xangô ocorreu na reunião em que se discutiu o caso do Gantois. Na reunião que aprovou o tombamento do Alaketo, a principal liderança do terreiro estava presente e foi saudada pelo Ministro da Cultura em pessoa, cujo pronunciamento louvava a sinergia entre a Grécia e a África. O relatório do processo relativo à Casa das Minas menciona que, de acordo com a liderança do terreiro, os voduns haviam emitido seu acordo com a proposta de tombamento. Por fim, na reunião que deliberou sobre o terreiro Bate Folha, há o registro do relato de um conselheiro. Nesse relato, uma autoridade do Ministério da Cultura em meados dos anos 80 atribui a proteção de que se beneficiou em um episódio às guias que recebera na Casa Branca. Trata-se da pessoa que presidiu a reunião que apreciou o tombamento da Casa Branca. Após aquela tensa reunião, ela e outros conselheiros seguiram para o terreiro, juntandose aos adeptos que lá estavam em vigília. Seriam essas expressões o correspondente ao

reconhecimento do “poder eclesial” em regulamentos do órgão estatal e à presença de autoridades eclesiásticas em reuniões? O certo é que são produto de uma reconfiguração que permite o reconhecimento de terreiros como patrimônios culturais. Monumento ao Cristo Redentor15 Volto-me nesta seção para o processo de tombamento do monumento ao Cristo Redentor pelo IPHAN, que transcorreu entre maio de 2001 e agosto de 2006. Trata-se de uma peça, entre outras, nas representações e intervenções recentes acerca desse monumento concebido nos anos 20 e inaugurado em 1931. Sem a intenção de ser exaustivo, pode-se citar: as comemorações de 75 anos em 2006 e de 80 anos em 2011; a eleição entre “as novas maravilhas do mundo” em 2007; a transformação em santuário pela Arquidiocese da Cidade do Rio de Janeiro em 2006. Em minha análise, considero alguns dos componentes do processo, desde o memorando de 2000 que motivou a sua abertura até decisão do conselho consultivo em 2005. O objetivo é mostrar como se articulam religião e nação nas peças do processo, o que só pode ser efetivado quando temos em conta o modo como essa articulação se produziu no momento em que a imagem foi concebida e construída. Uma pergunta atravessa todo o processo, aparecendo em manifestações em vários momentos: no memorando inicial, nos pareceres técnico e jurídico, na expressão de surpresa de uma conselheira na reunião decisória: como o monumento podia não ter sido tombado até agora? Por outro lado, também notamos uma série de objeções e obstáculos à proposta de tombamento em exame. Além de algumas razões substantivas evocadas por técnicos, duas se destacam: (i) ausência de risco iminente – note-se aliás que a sugestão de tombamento ocorre simultaneamente a execução de obras de reforma e melhoramento, que nunca são questionadas como risco à forma original do monumento; (ii) a Floresta da Tijuca e o morro do Corcovado já haviam sido tombados pelo IPHAN: não bastaria especificar que a proteção se estendia à estátua neles localizada? Apesar dessas objeções, o processo é aberto e o tombamento é efetivado, destacando o monumento em relação aos atos anteriores do IPHAN. Uma peça fundamental para isso foi o parecer técnico assinado por uma arquiteta do IPHAN, realizado em 2002. Parece15

Uma primeira apresentação desse material ocorreu em participação de evento do Laboratório de Análise Simbólica, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, UFRJ, 24.03.2009. As citações são extraídas do Processo n. 1478-T-01, consultado no Arquivo do IPHAN, com auxílio da bolsista Izabela Bosisio.

me interessante chamar a atenção para a auto-evidência a que apela esse parecer. Pois ele anuncia que busca demonstrar “os motivos que o tornaram o símbolo maior desta cidade”, e, mais amplamente, um “símbolo nacional”. Entre as referências que o atravessam, estão cartões portais, cartazes de propaganda de companhias aéreas, canções, souvenirs, opiniões populares e textos de cronistas. Assim, os argumentos mais específicos – aos quais volto depois – estão contidos na idéia de “reconhecimento” do “valor” desse monumento. Termos semelhantes ocorrem em outras manifestações: “marca do Rio de Janeiro e símbolo nacional”; “relevância simbólica” (saldando uma dívida com a história e memória da cidade do Rio); “imponência e importância simbólica”; “importância cultural em nível nacional”. O parecer do conselheiro vai no mesmo sentido: invoca “o imaginário popular do Cristo, bem como as impressões e rememorações pessoais de cada um” a propósito do monumento que caracteriza como “símbolo de redenção e liberdade”. Seu valor, continua, é “especial e flagrante”: “Eu quero propor o reconhecimento de um Valor Emblemático à estátua do Cristo do Corcovado. Valor que vejo como histórico e universal. Valor que adere, para citar poucos e fortes exemplos [uma aproximação que já fora sugerida pelo parecer técnico], as Pirâmides do Egito, à Torre Eiffel em Paris, à Estátua da Liberdade em Nova Iorque (...), às colunas do Alvorada de Nyemeyer em Brasília”. Continuarei a dar destaque ao parecer técnico naquilo que converge e também naquilo que diverge em relação ao relatório do conselheiro. O parecer técnico propõe a inscrição do monumento em três registros: livro histórico, livro paisagístico, etnográfico e arqueológico e livro de belas-artes – ou seja, três dos quatro livros do IPHAN. Trata-se de um marco de engenharia da época, o maior monumento em concreto armado até então construído. Trata-se do “símbolo maior desta cidade e do país”, perfeitamente integrado à paisagem. Trata-se, enfim, de um exemplar bem-sucedido da art déco. Ou, mais simplesmente, apela-se para sua beleza evidente e “explícita”, a “indiscutível harmonia de suas linhas”. Mas o registro como monumento artístico gerou polêmica: a art déco é um estilo digno de homenagem? Para a memória das artes no Brasil a estátua déco tem significância? O parecer do conselheiro decide a polêmica. Quando propõe que a ela se atribua “um valor emblemático”, complementa: “a força da simbolização não é sempre proporcional à beleza artística. E nem decorre, necessariamente, do interesse paisagístico”. E sugere que o Cristo Redentor seja arrolado apenas no Livro Histórico, o que acaba efetivado.

No parecer do conselheiro, esse valor histórico dialoga sobretudo com o presente que valida a simbologia do monumento como emblema de uma cidade ou país. Mas, no parecer técnico, há um movimento que efetiva uma análise propriamente histórica, pela tecnologia e pela estética do concreto armado, mas sobretudo pela reconstrução de um “contexto” que remete ao entre-guerras. Gostaria de comentar mais alguns aspectos desse parecer, para ver como ele se posiciona diante de dois vetores que percorrem a imagem do monumento: os discursos e usos religiosos e os discursos e usos não religiosos. Quando fala daquele contexto, o parecer sublinha dois temas: modernidade e nação. Após a I Guerra, o mundo vive uma crise, diante da qual a ruptura, a inovação, o ser moderno aparecem como imperativos. No Brasil, isso se junta a um debate sobre a identidade nacional, mobilizando uma disputa ideológica. O monumento ao Cristo Redentor, nesse contexto, é símbolo e conquista da cruzada movida pela Igreja Católica e seus militantes dentro de um projeto de recuperação e cristianização da sociedade. O parecer, no entanto, ao mesmo tempo em que atribui a realização do monumento a uma corrente ideológica específica, constata a existência de uma dimensão mais ampla. Mencionando o sucesso das campanhas de arrecadação de fundos – que fizeram “de cada brasileiro um contribuinte no sentido de viabilizar sua construção” – conclui: “o monumento ao Cristo Redentor já nascera, conforme fora a intenção, um monumento nacional”. Curiosa leitura: pois seria possível afirmar que, para os que conceberam o monumento, a nação era menos o suporte do que o alvo do Cristo. O Cristo deveria imperar sobre o Brasil, mostrar aos brasileiros o caminho mais adequado. Na leitura do parecer, a nação é desde então o sujeito do processo. O monumento é expressão da “conjunção de forças políticas e ideológicas que compunham a sociedade brasileira em fins da República Velha”. Sendo assim, o futuro apenas iluminaria o momento original: “essa imagem (o de monumento nacional) irá se consolidar ao longo dos anos e acabará por se tornar no retrato falado do país”. Por conta dessa operação, o texto do parecer tem algo de paradoxal: por um lado, tomba um monumento religioso; por outro, contribui para o processo que vem contornar essa dimensão. Vejamos: “Jamais se tornou um local de peregrinação e poucos são os que o visitam por seu simbolismo católico. Aos poucos o monumento foi sendo dessacralizado e incorporado à imagem do Rio de Janeiro de tal forma que se tornou marca registrada da cidade.” “Independente da conotação religiosa...”, é visto como “um

amigo da cidade”. No mesmo sentido podem ser vistas as observações do parecer acerca do Corcovado antes que o Cristo lá existisse: seu potencial turístico estava dado desde o século XIX (o belvedere mais visitado do país e uma das paisagens mais retratadas). O tombamento funda-se assim nas operações que tornaram a estátua parte da paisagem, natural e humana, que a abriga. Enfim, se é a história que se coloca como o terreno em que se decide o reconhecimento do valor patrimonial do monumento ao Cristo Redentor, então seus protagonistas são, mais do que a religião, a cidade e a nação. Distintamente do movimento que via a persistência do passado no presente, nisso legitimando a importância do catolicismo, aqui se trata do presente que se projeta para o passado. Cidade e nação, comportando as marcas de concepções atuais, são transplantadas para o momento da concepção e construção do monumento. Essa forma de se referir e valorizar o monumento dialoga com os modos preponderantes de relação com o Cristo Redentor, caracterizados pelo acúmulo de sentidos, para muito além do especificamente religioso. O monumento adquire assim a feição de ponto turístico, em detrimento de uma dimensão artística ou arquitetônica. Não há, com isso, a vinculação do lugar a um coletivo específico, mas a um conjunto de usos e apropriações essencialmente variados. Essa variedade serve também para colorir a forma de conceber cidade e nação.

Considerações finais As três sessões em que se desenrola as análises deste texto evidenciam diferentes articulações entre iniciativas estatais de proteção ao patrimônio e universos religiosos. No caso do catolicismo, não se pode tomar o conjunto aqui considerado como a síntese dos casos em que se coloca a relação entre políticas de tombamento e religião. Seria necessário considerar, ao menos, as situações em que os templos católicos estão incorporados a conjuntos arquitetônicos maiores, tal como se configuram nas “cidades históricas”. Nesses casos, que peso e que significados tem o “religioso” na apreciação da “arquitetura” e da “história”? Mesmo admitindo essa limitação, o material aqui analisado permite apreender os contornos e os deslocamentos que marcam a incidência das políticas de proteção ao patrimônio sobre a religião. Em se tratando dos terreiros de candomblé, penso que o recorte possibilitado pelos documentos a que tive acesso confere uma visão suficiente acerca das questões que cercam a abertura das políticas de proteção ao patrimônio ao universo das religiões de matriz africana. Sendo isso correto,

há aí bases sólidas para se acompanhar continuidades e desdobramentos dessa abertura, cuja existência está indicada pelo número significativo de processos em curso. Dois pontos orientam minhas considerações finais. O primeiro deles tem a ver com o que chamo de regulação do religioso (Giumbelli 2013). Pode-se considerar que as políticas voltadas à proteção do patrimônio reconfiguram os contornos, estatutos e sentido do religioso ao incidirem sobre universos que assim são nomeados ou assim se reivindicam. No caso do catolicismo, parece-me que esse efeito se produz em pelo menos duas direções. O reconhecimento de templos por seu valor arquitetônico ou seu valor histórico sustenta o argumento da importância social ou cultural do catolicismo. Nessa direção, pode angariar elementos que contribuem para o catolicismo, através de seus líderes, porta-vozes e defensores, fundamentar sua presença em esferas não religiosas. Por outro lado, a mesma valorização cultural pode funcionar em sentido inverso, como bem demonstra o relatório do conselheiro no processo do Cristo Redentor, reiterando afirmação do parecer técnico: “com tombamento, IPHAN participa da gestão pública de um bem privado – originariamente caracterizado por visão religiosa, que adquiriu gradativamente um sentido cultural”. Nesse caso, o reconhecimento cultural parece ocorrer em detrimento do religioso, cabendo lembrar que todo tombamento atribui autoridade a outro agente na administração de um templo ou santuário. Em relação ao universo afrorreligioso, gostaria de chamar atenção para outros processos que podem ser compreendidos com a ajuda da noção de regulação. Um primeiro ponto tem a ver com a própria demanda por medidas de tombamento ou com o recurso às agências estatais responsáveis por políticas culturais. Embora tal demanda ou recurso envolvam sempre agentes e mediadores de várias naturezas, pode-se notar uma tendência de que os religiosos mesmos a assumam. De modo que pedidos de tombamento passam a estar no horizonte de possibilidades de número expressivo de terreiros. Em um dos casos analisados, o do Terreiro Zogbodo Male Bogun Seja Unde, de Cachoeira, ocorrem divergências no seio do grupo religioso acerca do pedido de tombamento, mas elas são significativamente resolvidas a seu favor. Além disso, os estatutos da associação que representa o terreiro, de 2003, já incorporam em seu texto a ideia de “preservação de patrimônio”. A existência e a fundação de “museus”

vinculados a terreiros16 pode ser também associada a essa incorporação pelo universo afrorreligioso de uma dimensão cultural, não apenas em sentido étnico, mas também em sintonia com as acepções que orientam a visão e as ações de órgãos estatais voltados à “promoção da cultura”. O segundo ponto de minhas considerações finais procura sintetizar dois deslocamentos. É possível afirmar que as elaborações que fundamentam as propostas de tombamento de terreiros colocam em questão certa narrativa de nacionalidade. Ao provocarem uma reconsideração das noções de patrimônio, arquitetura, história e cultura, aquelas elaborações alvejam o eurocentrismo que preside a narrativa hegemônica de nacionalidade.17 Em vez da história comum do empreendimento no qual europeus efetivaram o encontro com africanos e indígenas, o que se esboça é uma história contada do ponto de vista daqueles que chegaram da África. A história de como se produziram referências alternativas em termos de religiosidade e de arquitetura. Nessa concepção, a nação ganha novos pontos de vista para imaginar sua diversidade. O catolicismo deixa de corresponder à totalidade da formação social e cultural que é sinônimo de nação, e se converte em parte ao lado da qual outras partes podem se posicionar. O outro deslocamento que penso ser possível localizar no material aqui analisado tem a ver com certo jogo entre nação e religião. O processo relativo ao tombamento do monumento ao Cristo Redentor demonstra um encompassamento do religioso pelo nacional. Tal encompassamento é distinto daquele que operou no passado, a propósito de templos e referências católicas, na medida em que se abre para outros reconhecimentos, como demonstram os casos envolvendo os terreiros afrobrasileiros. Diante dessa constatação, a questão parece ser não a dos possíveis efeitos de estabilização daquilo que é patrimoniado, mas como processos de redefinição do que seja nacional e do que seja religioso se desenrolam de forma mútua e implicada. A aplicação do instrumento do “patrimônio imaterial” parece dinamizar ainda mais esses processos. Do lado das religiões afrobrasileiras, envolve o reconhecimento delas como tais – e não de templos específicos. Do lado do catolicismo, favorece a valorização de eventos, saberes e lugares vinculados a práticas populares (por oposição ao eclesial). A 16

Para um caso em Recife, ver Campos et al (2012). Há também o caminho inverso, o da criação de museus com acervos afro-brasileiros que acabam abrangendo objetos e dimensões religiosas (Sansone 2012) 17 Considero esse efeito mais importante do que os riscos apontados por Johnson (2005) de “perda da autonomia cultural” das religiões afrobrasileiras por conta de seu reconhecimento estatal.

conjunção dessas medidas voltadas para a defesa do patrimônio, em nome das quais se elaboram concepções acerca da nação, constrói um panorama muito rico de situações, que certamente merecem ser acompanhadas por nossas pesquisas.

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