Reconfiguracao dos estudos sobre a Antiguidade na atualidade os desafios de novas abordagens

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Helenice Rodrigues da Silva (Organizadora)

Circulação das ideias e reconfigurações dos saberes

2014

Reconfiguração dos estudos sobre a Antiguidade na atualidade: os desafios de novas abordagens Renata Senna Garraffoni Em um mundo globalizado, marcado pela mobilidade, pela desterritorialização, pelas novas inserções em universos culturais cada vez mais plurais e pela desconstrução de formas fixas de identidades, pensar os limites dos conceitos e saberes acadêmicos e discutir os desafios dos novos campos epistemológicos que se abrem é, no mínimo, urgente. É por essa razão que acredito que esforços como esse, de diálogos, são fundamentais para consolidar espaços de liberdade de pensamento e crítica social. E, com esse espírito, busquei elaborar a reflexão que se segue. Partindo da premissa, já ressaltada pela própria Helenice Rodrigues, em um texto teórico escrito com Heliane Kohler (2008: 7), na qual defende que as experiências pluriculturais são fundamentais para repensarmos as mudanças espaciais, produções culturais e as transformações de modelos estéticos, políticos e epistemológicos, o que pretendo expor, a seguir, são inquietações que foram se desenrolando ao longo desses anos de trabalho e atuação na área de história antiga no Brasil. Entendida como disciplina tradicional e erudita, as relações de estudiosos ou leigos com esse campo de saber é pouco conhecida no Brasil e, muitas vezes, acaba por parecer deslocado, afinal se muitos questionam, em nossa sociedade, as razões de se estudar história, é possível imaginar o estranhamento provocado quando se faz pesquisa sobre história antiga nos trópicos. Esse deslocamento causa uma contradição curiosa: embora crianças e jovens se interessem pelo tema nas escolas e o lugar dos estudos sobre a antiguidade venha se consolidando na Academia, muitos ainda se questionam sobre as razões que levam brasileiros(as) a se interessarem pelo tema em que poucos promovem diálogos na área, a qual, quase sempre, é entendida como algo distante ou lugar de maravilhamento. Não foi uma ou duas vezes que me deparei com esse tipo de situação, os questionamentos sobre as razões da escolha foram muitos, dentro e fora do país, mas esse desconforto inicial, aos poucos, foi se mostrando um campo de reflexão tanto teórico, como político e epistemológico. Na tentativa de justificar as razões que me levaram a me 77

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especializar nessa área, encontrei um universo de possibilidades de abordar o tema, desdobrando-se em maneiras diversas de pensar empréstimos teóricos, conexões, interações, aproximações e críticas aos modelos europeus de ciência, história e nação. Conforme me aproximava desse campo, fui me encantando por aquilo que Martin Bernal (1987) já anunciava, não sem polêmicas, no início da década de 1980: a história antiga constitui parte da política moderna. Essa nova maneira de posicionar os estudos sobre o mundo antigo em geral e os estudos clássicos, em específico, abriu caminhos outros para lidar com essas inquietações. O diálogo com colegas brasileiros, britânicos, norte-americanos e europeus continentais fez com que percebesse as relações entre estudos clássicos, identidade nacional ou ocidental e entender que, discutir essas premissas, é fundamental para o avanço das pesquisas no âmbito acadêmico. Ou, como propôs Settis (2006), um caminho para o futuro e a renovação dos estudos clássicos. Nesse sentido, o que pretendo apresentar aqui é uma breve discussão sobre antiguidade e modernidade e o potencial crítico que uma leitura renovada da antiguidade pode trazer para pensarmos passado e presente de maneira menos normativa e mais plural. E, de certa maneira, buscar espaços de diálogos com estudiosos de outras áreas e temporalidades. Por que o passado importa? Para iniciar essa reflexão, retomo alguns argumentos de Glaydson Silva (2007). Em seus estudos, chama a atenção para o caráter moderno dos estudos sobre a Antiguidade. Partindo da noção já mencionada de Martin Bernal, um dos primeiros intelectuais a questionar o afastamento dos estudos clássicos da política moderna, considera que tal percepção ainda é pouco explorada no interior da disciplina. Na maioria das vezes, os estudos sobre a Antiguidade, em geral, e os clássicos, em específico, são entendidos como distantes, conservadores e pouco teorizados. Desvinculados do momento histórico no qual foram produzidos ou considerados neutros e objetivos, muitos temas e modelos interpretativos para se entender o passado antigo ainda estão calcados em valores tradicionais, na busca pelas origens e afirmações de continuidades, heranças, identidades e relações de poder. Para Silva, rever esse quadro e buscar outras formas de se aproximar do mundo antigo demanda um esforço epistemológico e político, pois se por um lado é preciso pensar o que 78

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entendemos por História e Memória, por outro, implica ter claro qual história da Antiguidade se quer escrever. Ou seja, o que Silva chama atenção é um dos desdobramentos das críticas pós-estruturalistas: ressalta que as mudanças epistemológicas do presente são fundamentais para pensarmos novos campos de pesquisa no passado e, no caso, não exclui a antiguidade. Nesse sentido, se considerarmos os estudos clássicos enquanto discursos sobre o mundo greco-romano, sua desconstrução torna-se uma ferramenta fundamental para pensarmos sobre as relações passado/presente e, também, quais passados importam ou importaram. Retomando os argumentos de Munslow (1997), creio que essas relações ficam mais claras. Considerando que a História pode ser entendida como um produto cultural, Munslow afirma que o passado não pode ser objetivado fora da sociedade, mas construído a partir dela. Nesse sentido, seguindo os argumentos de Foucault, defende que o historiador, ao escrever sobre o passado a partir de seu contexto sociocultural e linguístico, produz conhecimento e esse, consequentemente, não é neutro, mas permeado por valores e relações de poder. Essa postura nos instiga a pensar forma e conteúdo, a questionar imprecisões e silêncios, abrindo campos de leituras possíveis e não uma única versão dos fatos. De maneira resumida, as críticas de Munslow, a partir das reflexões de Foucault, apontam para a necessidade de se pensar como se constrói o conhecimento sobre o passado ou, como propôs Lowenthal (1985), no início dos anos de 1980, é preciso entender como o passado se tornou um artefato do presente. De fato, como comentou Jenkins (2005: 30), uma das grandes contribuições de Lowenthal foi trazer à tona a imensidão do passado, sua infinitude e, ao mesmo tempo, sua onipresença na modernidade. Suas reflexões são fundamentais para perceber que a maior parte das informações sobre o passado não chegaram até o presente e as que sobreviveram ao tempo são fragmentadas e fugazes. Nesse sentido, é a partir do presente que o estudioso reconstrói o passado, moldando o que sobrou fundamentado nas suas visões de mundo, instaurando assim questões políticas quando se escolhem as memórias a serem preservadas (Lowenthal 1985: XVIII). Ao explorar as facetas e usos do passado no presente, Lowenthal abre muitos campos de reflexão: a nostalgia e a construção de passados imaginados, a linearidade com a qual a tradição acadêmica ocidental se desenvolveu, reafirmando 79

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continuidades e buscando origens, o gosto pelas ruínas e as diferentes formas de entendê-las, os preconceitos gerados pelo envelhecimento, enfim, estimula a pensar sobre a diversidade de meios que a sociedade ocidental criou para se relacionar com o passado individual e coletivo, dentro e fora das academias, e as formas diversas de acessá-lo. A proposta de Lowenthal acaba, portanto, por lançar um grande desafio, o de entender o passado como algo que pode ser sentido, usado, preservado, manipulado, domesticado, transformado em mercadoria, mas também como político, como algo diferente capaz de fazer com que reflitamos sobre nossa própria condição no mundo. Entendendo-o como artefato nas mãos de leigos e estudiosos, maleável e fluido, o passado não deve ser percebido com algo morto e passível de descrição, mas sim vivo e repleto de significações, pois de acordo com suas próprias palavras “ao refazêlo, o passado nos reconstrói” (Lowenthal 1985: XXV). Ao contrastar passado e presente e entrelaçá-los, Lowenthal se posiciona criticamente diante na noção de continuidade do tempo histórico, provocando rupturas e questionamentos no campo epistemológico da História e enfatizando a interdisciplinaridade como fundamental para avançar novas abordagens. Os desdobramentos dessas críticas são amplos e reconfiguraram diferentes campos, em especial os da arqueologia e patrimônio. No que diz respeito aos estudos clássicos, tema que nos interessa hoje, ecos dessas reflexões e preocupações começam a se fortalecer nos anos de 1990, reconfigurando os estudos sobre as relações entre antiguidade e modernidade. Não é minha intenção aqui retomar todas as querelas entre antigos e modernos, mas sim focar em reflexões mais recentes que tem se desenvolvido e alterado o campo dos estudos clássicos. Há toda uma tradição de se pensar a presença dos antigos em diferentes momentos históricos, originária do Renascimento, que é focada na recepção dos clássicos. A noção de recepção, bastante estudada no campo das letras e arte clássica, foca na emissão da informação e considera, na grande maioria das vezes, a literatura ou arte como permanência. A possibilidade teórica aberta com a noção de usos do passado nas reflexões de Lowenthal é, no entanto, um pouco diversa, pois permite pensar a presença da antiguidade não só como continuidade, mas também como escolhas políticas e úteis ao presente. Essa perspectiva permite uma abordagem mais flexível dos estudos clássicos, pois, por um lado, insere o estudioso do mundo greco-romano em seu momento presente, discutindo os processos de produção de conceitos e modelos interpretativos para se pensar o 80

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passado e, por outro, cria novos campos de pesquisa, observando-se também, como gregos e romanos são recolocados nas mais distintas esferas da vida cotidiana. Vejamos com mais cuidado esses dois aspectos a seguir. Os usos do passado Se pensarmos a antiguidade clássica dentro de um campo discursivo e, portanto, passível de ser recriada e imaginada em diferentes momentos históricos, é preciso problematizar o que entendemos por Clássico. É exatamente essa a preocupação de Settis (2006). Para o estudioso, no momento atual que vivemos, após todas as crises proporcionadas pelo 11 de setembro de 2001, não faz mais sentido manter os estudos clássicos em um pedestal, em seu inabalável lugar de neutralidade, de origem do pensamento universal herdado pelos europeus. Para tanto, é urgente rever a noção de senso comum na qual os romanos disseminaram a cultura grega pela Europa e entender como essa percepção foi construída ao longo do século XIX e início do XX, visando à formação de uma a noção de herança clássica-branca-europeia. Nesse sentido, Settis se pergunta se clássico é algo imutável e uniforme, símbolo da identidade europeia diante do mundo multiforme, transformador e que congregou tantas culturas distintas. Ao construir suas reflexões fica claro que essas duas maneiras de se pensar os estudos clássicos – como continuidade e cultura universal ou como histórica, diversa e fragmentada – consiste no cerne epistemológico dos debates que se constroem na área ao longo do século XX. O primeiro caso, um modelo imutável, ateórico e a-histórico, foi amplamente explorado durante regimes totalitários alemães e italianos, já o segundo, herdeiro das preocupações de Warburg, mutável, ambíguo, propicia comparações e estimula perceber a complexidade dos povos que fizeram parte da formação da cultura dos antigos. Considerando o primeiro modelo predominante política e epistemologicamente, Settis afirma que nesse contexto ‘clássico’ pode ser entendido como um projeto, um substrato que nutre as nações do Ocidente que se proclamam seus herdeiros, por isso legitimou a superioridade ocidental e ajudou a reafirmar a barbárie oriental, bem como as formas modernas de colonialismo. Muitas vezes, a oposição gregos/bárbaros foi traduzida como Ocidente versus outros e, por isso, reconfiguraram as relações com a África e Ásia. Apoiando-se em Levi-Strauss, Settis aponta caminhos para repensar 81

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essa faceta predominante do clássico e, a partir de um olhar antropológico, que ajuda a rever o presente, retoma o segundo modelo atualizando-o e questionando a cultura da qual a pessoa faz parte e, ao mesmo tempo, entendendo a contribuição de outras. Sua proposta permite pensar o ‘clássico’ dentro do contexto europeu mais pluralizado, marcado por continuidades e rupturas não só como mera constituição identitária, mas também como um lugar onde a presença do outro é constante e parte construtiva dela. O clássico, nessa perspectiva, poderia ser reinserido no ambiente escolar não mais como estático e um jargão privilegiado das elites, mas como um meio efetivo para acessar a multiplicidade cultural e refletir sobre como culturas permeiam umas às outras. Esse argumento ajuda a reinserir gregos e romanos em um ambiente de debate, instiga a pensar sobre seus usos, buscando por abordagens mais flexíveis e menos normativas do passado. Embora reconheça a força da tradição mais conservadora e excludente pautada perspectiva da herança, posiciona-se favoravelmente à busca de ferramentas teóricas que permitam o estudo das relações culturais, dos diálogos e conflitos no passado e presente. Se, por um lado, Settis aponta para essas questões de fundo que moldam e definem os campos de atuação dos estudiosos do mundo grecoromano, Hingley, tem-se dedicado a pensar um tema mais específico há mais de duas décadas: os usos das imagens de Roma e os conceitos sobre o Império que foram construídos na modernidade. Creio que seja interessante retomar algumas de suas reflexões para aprofundar esse debate, pois sua vasta produção é inspiradora por diferentes razões (Hinlgey 1982, 1996, 2000, 2001, 2002, 2005, 2010 – para citar alguns exemplos). Em primeiro lugar, ressalto que, para além de contribuir com a renovação dos conceitos para o estudo do Império Romano, Hingley apresenta, em suas reflexões, instrumentos para questionarmos os motivos que levaram os modernos a se debruçarem insistentemente pelo mundo romano. De maneira resumida, é possível afirmar o autor parte de descontentamentos com a arqueologia romano-britânica, profundamente marcada pelos estudos dos romanos e pouca atenção aos nativos, e passa a se questionar como esses teriam sido incorporados ao Império e as mudanças culturais e sociais ocorridas durante este processo. Dessa forma, repensando as relações entre romanos e povos nativos, Hingley colaborou com a construção de um debate bastante complexo, questionando interpretações canônicas acerca do mundo romano, como a ideia de Romanização – imposição da cultura romana sobre os demais 82

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povos –, a partir de um estudo aprofundado do contexto histórico em que a maioria das concepções acerca do Império romano fora criada. A mudança de foco – de romanos para nativos – proporcionou a possibilidade de explorar novos vieses de estudos, menos romanocêntricos e mais plurais. Neste sentido, o estudioso abriu caminho para um segundo aspecto que acredito ser fundamental nesse processo: a perspectiva de desconstrução de discursos imperialistas do início do século XX que fundamentaram conceitos e leituras sobre o passado romano, tanto na história como na arqueologia, posteriormente aceitos como verdades, pouco questionados pelos estudiosos e difundidos na sociedade ocidental146. Ao retirar os estudos sobre o Império romano de sua posição de neutralidade e reinseri-los no presente de sua produção, Hingley propôs, não sem polêmicas, aquilo que Settis também defende: a urgência da ruptura com modelos interpretativos eurocêntricos de cultura e ciência, na tentativa de construir interpretações mais flexíveis, oferecendo ao leitor a possibilidade de buscar caminhos alternativos para pensar a relação entre culturas. Ou, como o próprio Hingley (2005) aponta em Globalizing Roman Culture, estudar o Império romano a partir dessa perspectiva nos encoraja a pensar criticamente como nos posicionamos diante de temas como imperialismo, alteridade, subjetividade ou como encaramos as relações entre Oriente e Ocidente. No limite, aponta para a necessidade de problematizar como os estudos sobre Roma se tornaram parte vital da construção da noção da superioridade ocidental durante o imperialismo e buscar meios alternativos a essa proposta (Hingley 2001: 15). Acredito que perceber essas questões apontadas por Settis e Hingley e posicionar-se criticamente diante delas faz parte de um processo desafiador proporcionado pela reinserção dos estudos clássicos em geral, e do Império romano em específico, em seus momentos de produção. As críticas alavancadas por ambos são incômodas e causam polêmicas por que exigem que os estudiosos questionem a visão linear de história tão cara ao ocidente e os mitos de origem essenciais à criação das identidades nacionais ou discursos de poder e superioridade. Ao mesmo tempo, possibilita que as novas pesquisas dialoguem com as discussões epistemológicas recentes, dando mais atenção a novos conceitos e abordagens criando espaços para estudar acomodações e

Para mais detalhes acerca dos trabalhos de Hingley e as colaborações com o Brasil, cf. Garraffoni, Funari e Pinto 2010: 9-25.

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conflitos culturais, relações de gênero, sexualidade, memória, esquecimento, emoções. Enfim, temas não tradicionais, mas que incentivam a um só tempo tanto a busca por novos conceitos e sujeitos históricos do passado antigo como análises sobre o papel da arqueologia e história no suporte para mitos de origens ou lições morais e nacionalistas para as conquistas imperialistas modernas. De uma só vez, o que Settis e Hingley chamam a atenção em seus trabalhos, cada um a seu modo, é para a necessidade de se politizar os estudos clássicos e abrir espaços para interpretações mais plurais acerca do passado antigo e presente moderno. Com todas essas questões em mente passo agora a uma breve reflexão sobre algumas contribuições brasileiras ao debate. Usos do passado Clássico no Brasil Ao apresentar a coletânea “Images of Rome”, organizada para o Journal of Roman Archaeology, Hingley (2001) argumentou que era preciso investir mais no estudo do desenvolvimento das tradições arqueológicas nos diferentes países para perceber como essa disciplina acadêmica contribuiu com a construção de imagens de senso comum sobre os romanos. Na ocasião, os artigos que fizeram parte do dossiê exploraram como o passado romano vinha sendo construído por europeus e ocidentais em geral para opor identidades modernas e dar ao oriente e ocidente passados culturais ancestrais, homogêneos e opostos. Ao colocar arqueólogos em contato com a problemática, Hingley instigou-os a pensar como a cultura material romana ou suas ruínas inspirou o mundo moderno na construção da identidade nacional a partir dos monumentos antigos. O que, a princípio, pode parecer uma temática europeia, o dossiê nos surpreende com um trabalho de Dyson (2001) sobre a presença dos clássicos nos EUA. Ao iniciar seu texto, Dyson comenta que, embora gregos e romanos nunca tenham pisado na América, os EUA têm uma grande tradição neoclássica em sua arquitetura e arte desde o século XVIII. Explorando esse viés, Dyson argumenta que muito desse gosto diz respeito às intricadas relações de continuidade que o país quer estabelecer com determinadas culturas e que, no futuro, as ruínas desses edifícios colocariam os EUA como descendentes de gregos e romanos, criando uma imagem forte e de império organizado como seus predecessores. O que o texto de Dyson traz de interessante é a presença e valorização de aspectos específicos do mundo greco-romano nos EUA, seja pelo neoclassicismo ou pelas antiguidades em museus, em um território que 84

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esses povos nunca pisaram, o que contrasta com o norte da África, território em que ambos os povos antigos estiveram presentes, mas que o clássico não é muito popular, uma vez que simboliza o colonialismo europeu (Hingley 2001). Estamos, portanto, diante de contrastes distintos e significados contraditórios, por isso pensar o significado dos clássicos para diferentes países pode surpreender e, ao mesmo tempo, promover uma reflexão sobre as relações de poder e as construções que permeiam memória, passado e presente. Mas como seriam, então, essas relações no Brasil? Como comentei no início, essas relações ainda não são muito pesquisadas ou sistematizadas no Brasil, embora haja alguns esforços para levantar a situação dos estudos clássicos. O GT de Antiga da Anpuh (Associação Nacional de História) e as reuniões da SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos) são lugares de discussão sobre história e antiguidade consolidados, hoje, no Brasil e, a partir dos eventos ali organizados, algumas publicações foram feitas e indicam um breve panorama da situação (Funari 1997, 2006, Garraffoni, Funari & Pinto 2010, Gonçalves 1997, Silva 2010, Chevitarese, Cornelli & Silva 2008, Dossiê da Revista Eletrônica Helade147, só para citar alguns exemplos). Como argumentei com Funari e Pinto (2010) em outra ocasião, atualmente, várias universidades públicas brasileiras, estaduais e federais, contam com centros de estudos interdisciplinares sobre o mundo antigo greco-romano e, cada vez mais, contam com a presença de pesquisadores com formação na área, realidade muito distinta da de quarenta anos atrás. A renovação e contratação de especialistas trouxeram muitos avanços para a área de estudos antigos, em especial para o estudo dos textos clássicos, embora a relação com a cultura material ainda seja mais restrita. De todas as formas, desde a abertura política e o restabelecimento dos direitos civis após a ditadura militar, o campo se encontra aberto, cada vez mais internacionalizado, e buscando compreender de maneira crítica o processo de produção de conhecimento148. http://www.heladeweb.net/Portugues/indexportugues.htm. Número especial: Anais do Grupo de Trabalho (GT) de História Antiga - Realizado no XXI Simpósio Nacional da ANPUH de 23 a 25 de julho de 2001 e Coord. por Gilvan Ventura da Silva (UFES). 148 Há alguns anos Margaret Bakos lidera um grupo de estudantes e pesquisadores que estuda Egiptomania, investigando as relações entre Brasil e Egito antigo e, recentemente, Glaydson Silva e eu organizamos um grupo para divulgar os usos do passado greco-romano. Cf: http://www.pucrs.br/ffch/historia/egiptomania/e http://www.humanas.ufpr.br/portal/ usosdopassado/. 147

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O desenvolvimento da área tem permitido algumas reflexões sobre a presença da cultura material greco-romana na construção de formas de identidades nacionais, de interesses pelos antiquários e, também, para o estudo dessas imagens que Hingley (2001) menciona, que mesclam o senso comum popular e produção de conhecimento acadêmico. Muitos de vocês podem estar se questionando nesse momento: mas quais seriam essas imagens? Como ocorre essa mescla do imaginário popular e produção acadêmica? Nossa participação, nessa Jornada, já traz algumas reflexões para essas inquietações, pois basta lembrar que estamos alojados no chamado prédio histórico da UFPR, esse com fachada repleta de colunas ao estilo clássico, famoso logotipo da Universidade Federal do Paraná e símbolo da comemoração dos cem anos da Universidade. Embora seja mais recente que a fundação da Universidade, o edifício, em que estamos, localizado em frente à Praça Santos Andrade, seguramente expressa os valores de perenidade e continuidade do saber científico europeu e ocidental, sua imponência ao lado de edifícios menores passa a clara mensagem na qual o saber reina absoluto no centro da cidade. Várias temporalidades mescladas em uma arquitetura ao estilo clássico, seguramente comunicam mensagens sobre como os seus idealizadores gostariam que a instituição fosse percebida no presente em que conceberam o edifício e lembrada no futuro. No entanto, não é somente no edifício da Universidade que nos remete a relação de Curitiba com os clássicos. Ele talvez seja o mais visível, o exemplo mais pujante em nossa memória, mas essas intricadas relações são percebidas, também, na literatura. Recentemente fui surpreendida por um encontro inesperado em razão de uma pesquisa coletiva anual que versa sobre a revista Joaquim editada pelo escritor curitibano, Dalton Trevisan, nos anos de 1940. Para nos aproximarmos desse universo, desconhecido para mim até então, sugeri a leitura da tese de Sanches Neto (1998), pois tratava exatamente dessa temática e pareceu um bom lugar para iniciar a pesquisa. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com uma referência à coroação de Emiliano Perneta, poeta simbolista, no Passeio Público. A referência se deu no contexto no qual Sanches Neto discutia a Curitiba que Trevisan criticava na Joaquim, a que ele, Dalton, não queria pertencer, trazendo esse exemplo da sagração do poeta. Sanches Neto recupera o discurso de Gomes, testemunha ocular do evento, afirmando que Emiliano Perneta surgiu semelhante ao ‘Zeus Olímpico’, sendo coroado Príncipe dos Poetas por musas gregas e romanas em um templo construído em pleno Passeio Público no início do século XX (Gomes 1981). 86

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Desde que li as referência, fiz um rápido levantamento e notei que o evento foi razoavelmente bem documentado e pretendo, nos próximos meses, dedicar-me ao aprofundamento do estudo sobre a temática, uma vez que, o acaso pareceu providencial para iniciar uma pesquisa mais sistemática sobre essa vontade pública de Curitiba de se aproximar dos antigos em pleno momento em que se festejava a modernização da cidade e a chegada do automóvel. Outro aspecto que salta aos olhos é a reação do jovem Trevisan, três décadas depois, e suas críticas ao longo de diferentes momentos de sua trajetória madura ao culto do simbolismo paranaense, para ele expressão do conservadorismo e isolamento da cidade. Em uma breve primeira abordagem, o que mais me chamou atenção foi exatamente esses intricados usos do passado greco-romano na constituição das artes e saberes que se pretendia universal e, ao mesmo tempo, na construção de uma identidade local das elites políticas e ilustradas da cidade. Se considerarmos que o próprio edifício histórico foi construído posteriormente, mais próximo ao período em que as críticas de Dalton Trevisan já circulavam pela cidade, é interessante notar como a cultura greco-romana, de alguma maneira, permeou os debates sobre a construção das possíveis imagens públicas que Curitiba buscou construir para si. Mas Curitiba não é um exemplo isolado e pode ser entendida com um estudo de caso para pensar questões de fundo mais amplas. Como o Brasil é plural e diverso, gregos e romanos passaram a integrar o cotidiano do país nas mais diferentes circunstâncias, mas sua ligação com o conservadorismo e as elites do país é sempre a mais perceptível, embora essa imagem tenha se alterado um pouco mais para o final do século XX. Em outra ocasião, argumentei com Funari que os estudos sobre arqueologia e história romana ajudaram as elites brasileiras a se identificarem com uma visão idealizada dos antigos romanos desde o século XIX (Garraffoni e Funari 2012). Os exemplos que levantamos, na ocasião, são vários: a preocupação de D. Pedro II em fomentar coleções de peças gregas, romanas e egípcias no Museu Nacional, a proliferação de estátuas equestres de líderes políticos do Império ou República, a arquitetura neoclássica dos edifícios públicos, a construção dos bandeirantes em São Paulo como desbravadores e homens fortes que, como os romanos, conquistaram terras inóspitas, a cunhagem de moedas no início do período republicano com referências explícitas ao universo greco-romano, entre muitos outros exemplos. Na ocasião, não pretendíamos dizer com isso que havia um projeto sistemático das elites brasileiras de estabelecer relações com gregos e romanos 87

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pelo país – e nem pretendo nesse momento –, mas sim ressaltar variedade de formas espontâneas de se relacionar com a temática e suas particularidades, construindo identidades locais e nacionais em alguns momentos históricos e lutando por justiça social em outros – aqui nos referíamos aos estudos sobre arqueologia de Pompeia a partir do final do regime militar, nos quais muitos pesquisadores passaram a discutir exclusão social, de gênero e diversidade sexual como atitude política pela luta pela diversidade de pensamento e abordagens no presente (Cavicchioli, 2004; Feitosa 2004; Funari et alli 2003; Garraffoni, 2005a; 2005b, Oliva Neto 2006, para citar alguns exemplos). Ou seja, em todos os exemplos mencionados é possível perceber a relação entre o desenvolvimento dos estudos clássicos na academia e as repercussões na sociedade brasileira em diferentes momentos. História e arqueologia, de maneira profissional, ou amadora em alguns momentos, fomentaram discursos e proveram detalhes que se mesclaram com interesses úteis ao presente, seja por meio da política como da arte. Esse breve levantamento feito por Funari e por mim e o estudo de caso de Curitiba, que estou iniciando, indicam o potencial desse tipo de reflexão, pois atingem diferentes esferas de estudos – cultura material, literatura, história do Brasil, estudos clássicos – estimulando a interdisciplinaridade e, ao mesmo tempo, como propôs Settis no texto já mencionado, traz Roma e Grécia para o centro das atenções de uma maneira renovada: não como herança cultural, mas como uma chave para entender como as culturas penetram umas às outras. Ao aprofundar os estudos acerca desses entrecruzamentos, fica cada vez mais claro o desafio de produzir leituras menos estanques e abordagens mais flexíveis que busquem explorar o devir, a vivacidade das culturas e sua inesgotável capacidade de se recriar, tanto no passado quanto no presente. Considerações Finais Minha intenção, ao propor essa reflexão, foi chamar a atenção sobre como o mundo antigo, em geral, e o romano, em específico, podem nutrir discursos distintos sobre herança, poder, conservadorismo ou crítica social, ou seja, destacar que tais estudos não são neutros ou deslocados, mas construídos a partir de escolhas úteis ao contexto do presente. Estudiosos europeus ou americanos, considerando os estudos clássicos como discursos modernos sobre a antiguidade, têm buscado questionar os conceitos fundadores das disciplinas, abrindo espaço para discutir como construímos o passado antigo 88

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na academia e os usos que deles fazemos no cotidiano, explorando suas ambiguidades, suas manipulações e reconstruções. Ao ressaltar os exemplos mencionados, busquei enfatizar que, embora nunca tenham cruzado o Atlântico, antigos gregos e romanos acabaram por constituir parte da história do Brasil recente. Explorar como essas relações se formaram e seus desdobramentos é um campo promissor e ainda em construção, que demanda diálogo e reflexão sobre as múltiplas formas de interações culturais ou, como propôs Lowenthal, investigar os meios em que o passado é moldado em diferentes presentes. Foi por essa razão que iniciei minha fala mencionando a importância da troca de experiências, afinal, para construir posturas críticas que escapem das normas, das imposições, e criar espaços de novas abordagens e possibilidades de pensar as relações entre antigos e modernos de maneira mais fluida e dinâmica é preciso criar espaços de aproximações e discussões teóricas, políticas e epistemológicas. Tomados sobre essa perspectiva, estudos de caso sobre modernidade e os usos do passado greco-romano podem ser entendidos, portanto, como ferramentas para ajudar a ultrapassar dicotomias, para explorar contradições em modelos interpretativos e, até mesmo, nos ajudar a se posicionar diante de temas complexos como imperialismo, alteridade e subjetividade. Talvez seja isso o mais instigante desse trabalho: a possibilidade de produzir conhecimento sobre o passado antigo e, ao mesmo tempo, estar atento a suas implicações políticas no presente. Referências bibliográficas BERNAL, M. 1987. Black Athena: the Afro-asiatic roots of classical civilization. Londres: Free Association Press, 1987. CAVICCHIOLI, M. R. 2004. As representações da sexualidade na iconografia pompeiana, Campinas/IFCH, dissertação de mestrado inédita. CHEVITARESE, A.L., CORNELLI, G., SILVA, M.A.O. (Orgs.). 2008. A tradição Clássica e o Brasil. Brasília: Fortium Editora. DYSON, S. L. 2001. ‘Rome in America’. In. Hingley, R. (org.) Images of Rome: Perceptions of Ancient Rome in Europe and the United States in the Modern Age, Journal of Roman Archaeology Supplementary Series 44, pp. 57-69. FEITOSA, L. M. G. C. 2004. ‘Amor y sexualidad en el universo popular pompeyano’. Revista Habis, Sevilla, v. 35, pp. 285-290. FUNARI, P.P.A. 2006. ‘A renovação da História Antiga’. In: Karnal, L. (org.) História na sala de aula – conceitos práticas e propostas. São Paulo: Contexto.

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Helenice Rodrigues da Silva (Organizadora)

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