\"Reconstruindo\", terceira parte da dissertação de mestrado \"Grotão, Parque Proletário, Vila Cruzeiro e outras moradas: história e saber nas favelas da Penha\"

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Parte 3

Reconstruindo

A  gente  não  sabe  porque  a  gente  só  pode  dizer  que  foi   quando  a  gente  tem  certeza.  Mas  o  que  nos  deu  a  parecer   foi  o  seguinte...   Ilsa,  moradora  do  Grotão

7.O Fazer Histórico

(...) Só se aprende a caminhar, caminhando. Porque quem fica parado é poste. Palavras, não passam de palavras, passam pelas pedras e não deixam nenhum arranhão (...) ( D.Creusa - Sementinha)

Reconstruir as histórias dos movimentos apresentou-se a nós como um desafio. Um exercício, a busca de uma forma para trabalhar com a fala dos protagonistas sem confiná-los ao mero lugar de objeto. Desafio que implicou intervir no relato de cada um dos protagonistas procurando, ao mesmo tempo, respeitar suas interpretações e autoria na narrativa histórica. Desafio que também nos fez debruçar sobre os depoimentos dos sujeitos das tramas, buscando pistas sobre aquele que é o tema de nosso estudo: as suas percepções a respeito da história que, ao nosso ver, conformam um determinado saber histórico. Perseguimos agora nossa segunda tarefa. Procurar compreender algumas das tramas deste saber. Assim, na interpretação das falas buscamos inicialmente identificar os elementos que, na concepção dos protagonistas, aparecem como importantes para a história das lutas das quais participaram. Orientamo-nos por interrogações: Quais seriam os elementos determinantes na mudança histórica? Destacariam pontos de ruptura? E de continuidade? Quais? Atribuiriam a algum elemento um lugar determinante? De que forma relacionam estes elementos? Destacamos então algumas mediações recorrentes nas três tramas investigadas. Chamamos estes elementos encontrados de fazedores da história. São mediações valorizadas pelos sujeitos sociais na interpretação que possuem a respeito da história por eles vivenciada, e das mudanças aí inscritas. Mediações, não anunciadas em suas falas mas que as atravessam, explicitando uma determinada forma de conceber o movimento da história. Iremos pois, ao encontro de tais mediações, analisando a forma como se colocam nas falas dos atores sociais das histórias contadas e buscando o significado que atribuem a cada uma delas.

7.1. A Necessidade:da precisão à invenção

Na leitura e análise das tramas investigadas não nos surpreendeu que uma das noções recorrentes nas falas dos protagonistas fosse a necessidade . 237

Afinal, não se trata de sujeitos sociais reconhecidos como aqueles que vivem no Reino das necessidades ? Na literatura de movimentos sociais a necessidade tem assumido destaque enquanto elemento determinante na emergência das lutas populares. Compreendida a partir das contradições urbanas forjadas no âmbito do desenvolvimento capitalista, ela aparece como elemento propulsor dos movimentos. Nesta perspectiva, na definição daquilo que se compreende como necessidade, ou carência, entram em jogo as contradições produzidas pelo movimento do capital que impõe novas necessidades à força de trabalho, respondidas através de ações reivindicatórias. Assim, “não há o que se perguntar às classes populares sobre suas carências” porque estas já estão definidas a priori enquanto resultantes da dinâmica das contradições urbanas no capitalismo.

Às classes populares cabe apenas a reação a uma situação, reação à qual é constrangida. Mesmo o sentido desta reação não se encontra nela mesmo, lhe é objetivado e estranho: (...) ainda que não o saibam, e talvez mesmo não o queiram, os movimentos de reivindicação são naturalmente de esquerda. (NUNES, 1989, p.72)

Contrapondo-se a esta perspectiva, algumas produções, como a do próprio Edison Nunes, têm se voltado para uma maior compreensão da necessidade ou carência, procurando considerar que a sua determinação é um processo subjetivo e relacional que envolve a elaboração do sujeito que a experimenta, bem como a própria dinâmica das lutas sociais, atravessada por uma determinada noção de legitimidade. 90 Na literatura a respeito do tema, percebemos também uma discussão que não nos parece meramente linguística. Alguns autores usam o termo carência , outros necessidade . E.Nunes opta por carência justificando a conotação ambígua seu livro Tradicíon, Revuelta y Consciencia de Clase , discutindo os chamados motins de subsistência na Inglaterra do século XVIII, Thompson faz a crítica a uma visão espasmódica da ação das massas, visão que elimina a complexidade destas, produzindo uma “imagem abreviada do homem econômico”, de forma que os motins populares aparecem como “rebeliões do estômago”. Contrapondo-se a tal visão, Thompson levanta a questão da noção legitimadora que atravessa a ação popular: “Con el concepto de legitimizacíon quiero dicer el que los hombres y las mujeres que constituían el tropel creían estar defendiendo derechos o costumbres tradicionales; y, en general, que estaban apoyados por el amplio consenso de la comunidad. En ocasiones este consenso popular era confirmado por uma cierta tolerancia por parte de las autoridades, pero en la mayoría de los casos, el consenso era tan marcado y enérgico que anulaba las motivaciones de temor o respeto”. (1984, p.65) 90Em

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que a necessidade possui em nossa língua: aquilo que tem de ser e aquilo que alguém sente que precisa. É exatamente considerando esta ambiguidade, e o limite apresentado pela noção de carência que optamos por necessidade . Ao nosso ver a necessidade possibilita uma complexificação do conceito, considerando não só a subjetividade aí inscrita mas também a natureza relacional da determinação da necessidade. Considerada neste sentido, traz a apropriação feita pelos sujeitos que a vivenciam enquanto experiência e aponta a potencialidade crítica de sua produção. Fundamental também é o fato de que percebemos que a noção colocada nas falas dos protagonistas das histórias afasta-se da dimensão de “mera falta” inscrita na categoria carência, aproximando-se do que entendemos por necessidade. 91. Nas análises dos sujeitos das lutas sobre as quais nos debruçamos, a necessidade comparece como um elemento fundamental. Ela atravessa a interpretação do acontecer destas lutas. Mas de que forma ela é percebida enquanto elemento importante no fazer histórico ? De que forma ela é por eles experimentada? E como seu significado é reelaborado diante da própria experiência vivida pelos sujeitos? Em que medida, ela é vista como uma dimensão que marca, e peculiariza, a experiência de determinados sujeitos sociais no âmbito da sociedade? Entre os fios de cada uma das histórias contadas pelos agentes que dela participaram há a constatação de uma necessidade, experimentada enquanto dor, insatisfação e injustiça e vivida no seu dia-a-dia. Vejamos inicialmente como ela apresenta-se na visão das mulheres que fazem a história do Sementinha:

Antes do Sementinha, já fazia visita na comunidade pela Pastoral de Saúde, à procura de doentes necessitados. Enviava aos padres para ajudarem com alimentos. Lá no Getúlio Vargas, íamos assistir a missa, cuidávamos dos doentes, dávamos comida porque botavam comida lá e se não tivesse ninguém para dar eles ficavam morrendo de fome.

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A reflexão sobre tal questão atravessou várias das discussões no grupo de orientação coletiva, onde o conceito de carência foi insistentemente questionado com o trabalho de Adir da Luz Almeida(“as explicações que buscam o conceito de carência despotencializam a possibilidade de produções outras que não aquelas hegemonizadas pela sociabilidade capitalista”- 1995) e a distinção entre carência e necessidade, bem como a potencialidade crítica desta última, foram trazidos por Monica Peregrino.

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Na percepção do Sementinha, a constatação da necessidade do outro ,- no caso os doentes necessitados-, configura-se enquanto um dos elementos que forja a atividade original das mulheres que mais tarde formarão o Sementinha Serviços Comunitários: o atendimento individual aos doentes e idosos. O reconhecimento da necessidade do outro - dos doentes necessitados- impõe a necessidade de respondê-la de uma forma imediata - enviar aos padres para ajudarem com alimentos, cuidar dos doentes, dar comida. Mas a relação entre a necessidade reconhecida e a ação sobre uma situação determinada não se dá mecanicamente. Ela é mediada pela experiência vivida das agentes e informada por sua visão de mundo. Assim, parece-nos fudamental a religiosidade destas mulheres que fazem a história do Sementinha. Religiosidade que se remete a uma vivência histórica, provavelmente perpassada por noções da religiosidade popular, e particularmente à atuação desenvolvida no âmbito dos trabalhos comunitários ligados à Igreja Católica da região 92. Esta mediação é uma das referências na forma através da qual as mulheres percebem a necessidade do outro e atuam sobre ela, dando-lhe uma d e t e r m i n a d a resposta. Assim, mais do que o reconhecimento da necessidade do outro, é a vivência desta necessidade enquanto compaixão pela dor do próximo que move as mulheres na ação. Compaixão que encontra suas raízes não tanto numa mera incorporação dos ensinamentos cristãos mas na experiência de vida na favela e dos próprios trabalhos comunitários ligados a Igreja, através das quais vivenciam e objetivam tais ensinamentos. Mergulhadas numa experiência histórica de subalternidade, onde a compaixão apresenta-se como uma das dimensões da sociabilidade forjada coletivamente, as mulheres se apropriam de tais ensinamentos, produzindo um novo sentido, que ultrapassa a retórica cristã ao colocar-se no centro do viver subalterno. A possibilidade de compartilhar a dor se amplia também na medida em que se dá esta experiência de trabalho comunitário, no âmbito da qual a necessidade do outro (o doente necessitado) é percebida e compreendida em meio a vários outros elementos que apontam para as dificuldades de atendimento a ela. Compartilhar a dor não é mero aprendizado cristão mas ação concreta, por exemplo, diante constatação prática de que “se não tivesse ninguém para dar” comida, os doentes necessitados “ficavam morrendo de fome”. 92A

religiosidade apresenta-se como uma mediação fundamental na história de vida das mulheres dos Sementinha. Há, porém uma diferenciação em relação a vivência religiosa das mulheres e para algumas é muito expressiva a influência do catolicismo rural. Como não nos foi possível um aprofundamento a respeito destas diferentes vivências, levantamos apenas como uma questão.

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A mediação religiosa é fudamental também na forma como se configura a ação concreta: a assistência individual ao doentes e idosos. A criação desta alternativa determinada, ao nosso ver, é forjada a partir do campo de possibilidades definido pela experiência religiosa das mulheres bem como por sua atuação comunitária na Igreja. É ele que referencia a resposta elaborada diante da necessidade colocada - aqui no caso a necessidade do outro. Assim, a “assistência individual” não se dá tanto porque se opta por um caminho “assistencialista e religioso” mas porque a assistência individual encontra ressonância em sua experiência histórica e porque muitas vezes esta é a única alternativa colocada e vislumbrada no enfrentamento daquilo que se compreende como necessidade. A necessidade é apontada pelas mulheres também quando referem-se ao próprio surgimento do grupo. Aparece como um dos fatores que leva à articulação das mulheres, antes voltadas para a assistência individualizada, enquanto um grupo organizado: o Sementinha Serviços Comunitários.

Uma pessoa estava passando mal, levávamos para o hospital. Chegando lá, era mal atendida, voltávamos para casa desanimadas. Fazíamos chás. Foi por isso que surgiu o trabalho do Sementinha: o trabalho dos hospitais era precário. Às vezes acontecia de pessoas que não precisavam tanto quanto nós serem atendidas. Nós que éramos mais necessitados, estávamos com o número na mão, voltávamos para a casa sem sermos atendidas .

Na referência ao surgimento do grupo, entra em jogo outros elementos na definição da necessidade . A prática sistemática de levar os doentes aos hospitais conduz a um maior conhecimento do que estava por trás do não atendimento aos “doentes necessitados”: a pessoa era “mal atendida”, “o trabalho dos hospitais era precário”. A percepção da necessidade vem aqui mediada não só pelo compartilhar a dor do outro mas também por uma reflexão a respeito das razões que implicavam nesta dor e no não atendimento a ela. Reflexão que se dava a partir da própria prática sistemática de assistir aos doentes, defrontandose com a precariedade das instituições públicas de saúde. Mas a necessidade aparece na fala acima atravessada por um outro elemento. No relato, a necessidade não se apresenta mais somente como a necessidade do outro da qual se compartilha mas como uma necessidade na qual elas também se incluem - nós “que éramos mais necessitados, estávamos com um número na mão e voltávamos para a casa sem sermos atendidas”. O exercício da prática sistemática de assistência ao outro cria uma experiência que redefine o compartilhamento da dor do outro: a compaixão é aqui 241

reelaborada diante do próprio acompanhamento regular dos serviços públicos de saúde, assumindo uma dimensão crítica que amplia seu viés religioso. Esta experiência redefine também a própria compreensão do que seja necessidade, entendida então a partir de uma das razões que a produzem - no caso a precariedade dos hospitais, no âmbito das quais acentua-se não a precisão individual de cada um mas a necessidade coletiva de muitos, nas quais elas se incluem. Outros elementos são indicados na mesma fala. Ela insinua que a experiência vivida contribui para redefinir as alternativas às necessidades identificadas, apontando um outro caminho, materializado na própria formação do Sementinha, cuja a prática ainda que comporte o atendimento individualizado, vai ampliando-o e configurando uma nova forma de ação. Ela sugere também uma percepção de necessidade, onde está colocada a noção de injustiça e de diferenciação na vivência da necessidade: “(...) pessoas que não precisavam tanto quanto nós serem atendidas. Nós que éramos mais necessitados, estávamos com o número na mão e voltávamos para a casa sem sermos atendidos”. Uma avaliação de outra das mulheres do grupo, referindo-se ao uso do sabão medicinal por elas produzido, nos parece indicativa da questão da diferenciação social colocada na definição das necessidades.

A minha propaganda não é cara, é barata para satisfazer as pessoas necessitadas e não só carentes que precisam. Mas pessoas da alta sociedade estão precisando até mais porque elas vào atrás do que é bonito e terminam se estragando todas.

A ampla concepção de necessidade parece associar-se a uma percepção cristã hegemônica de necessidade que a concebe como algo universal, independente das diferenças sociais: “satisfazer as pessoas necessitadas e não só carentes que precisam”. Mas o final de sua observação nos leva a concluir que, segundo sua visão, os necessitados se diferenciam, entre “os carentes que precisam” e os da alta sociedade que necessitam porque “vão atrás do que é bonito e terminam se estragando todos”. Assim, uns necessitam porque precisam , parecendo dispensável anunciar as razões da necessidade - o precisar qualifica e explica a necessidade. Outros, os da alta sociedade, necessitam por motivos a eles mesmo atribuídos: “vão atrás do que é bonito”. No caso, a percepção cristã da necessidade está mediada por uma apropriação crítica da realidade vivida, produzindo uma concepção mais ampla

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e complexa que procura dar conta da diferenciação das necessidades em função da próprias desigualdades sociais. Na história do Grotão também percebemos no relato de seus protagonistas que a necessidade se coloca como elemento fundamental, em momentos cruciais da trajetória da comunidade. Relembremos aqui um depoimento já visto na primeira parte deste trabalho:

Aí eu falei para o meu esposo: “Olha, consegui um terreno para gente”. “Mas aonde?”. Eu falei: “Lá, onde estão invadindo”. Ele: “Mulher, você é louca”. Aí eu falei: “Olha, diante de pagar aluguel...Não só sou eu, são muitas pessoas, muitas famílias. Agora, eu quero que você vá olhar, ver o que você acha”(...)Ele disse: “Mas você já pensou no sacrifício que a gente vai passar aqui?” E eu falei: “Quer sacrifício maior do que nós passamos lá naquela favela? Quando chove a maré enche, enche tudo dentro de casa”. Lá muita gente perdeu as coisas.

O relato da moradora aponta uma noção de necessidade, percebida a partir de três eixos: sua experiência histórica de vida na cidade - o morar de aluguel.-, a vivência de uma situação de insatisfação e sacrifício - a vida na favela aonde ela, o marido e o filho moram -, e a possibilidade de mudança que se anuncia - a ocupação de um terreno aonde “estão invadindo”. A necessidade aqui não se esgota no reconhecimento da precisão , onde o acento recai sobre a precariedade de uma determinada situação à qual é necessário criar alternativas. Ela se coloca na encruzilhada entre a precisão , a experiência histórica de vida e a avaliação crítica do que significa pagar o aluguel, e a possibilidade concreta de reverter uma situação 93. Desta forma, ela é percebida enquanto insatisfação e sacrifício e ao mesmo tempo enquanto expectativa de mudança e ação possível na superação desta insatisfação - a necessidade de ocupar o terreno invadido para lá construir uma casa própria. Assim, na fala da moradora, a definição da necessidade vem acompanhada pela expectativa de melhoria de vida e uma possibilidade de resposta. Resposta que anuncia a melhoria mas não implica a eliminação do sacrifício , apontado no comentário do marido - “já pensou no sacrifício que vamos passar aqui?” - e mesmo em sua própria avaliação que relaciona as duas situações - “Quer sacrifício maior do que nós passamos lá naquela favela?”- . Mas resposta que traz a análise crítica das alternativas existentes (a volta para o sacrifício do 93

No mesmo depoimento, Ilsa referindo-se a alternativa do aluguel, concebida pelo marido, observa: “Você paga o aluguel, mesmo os dois trabalhando, mas aquilo é dinheiro que nunca dá”.

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aluguel, o sacrifício de permanecer no mesmo lugar, a possibilidade de construir a casa própria no terreno ocupado). O relato aponta também uma percepção de necessidade reconhecida enquanto coletiva - “Olha, diante de pagar aluguel...Não só sou eu, são muitas pessoas, muitas famílias”. É neste reconhecimento que a necessidade de resposta à insatisfação vivida enquanto experiência individual e a expectativa de melhoria de vida se materializam, tornando-se ação concreta de muitos. Este reconhecimento e a experiência da necessidade em sua dimensão coletiva forja também novas formas de luta:

Nós aqui, o Seu Sílvio, Seu Zelito, Seu Antônio, que tinha um terreno mas ainda não morava, né? Aí se juntaram, cada um comprou um rolo de fio e puxamos um gato lá de baixo, por nossa, sabe, por nossa responsabilidade (...) Mas só que a gente puxou, enquanto era só a gente, a luz dava para quebrar um galho mas aí foi quando começou a chegar um, chegar outro, e começaram a puxar seus gatos, né? Então, a gente não podia dizer para eles que não, porque a mesma necessidade que a gente se encontrava, a gente achava que eles também não podiam ficar. Só que aquela luz não servia para geladeira, não servia para televisão, não servia para rádio, não servia para nada. Aí foi quando nós começamos a partir para Associação (...) Aí nós nos organizamos.

No depoimento, a vivência de determinada necessidade, no caso a luz, referencia o reconhecimento da necessidade do outro - “a mesma necessidade que a gente se encontrava, a gente achava que eles também não podiam ficar”. Desde as primeiras ações ( os gatos feitos pelos moradores) aparece uma dimensão coletiva daquilo que a comunidade necessitava . Mas esta necessidade, na medida em que aumentava o número de moradores, chocava-se cada vez mais com as respostas até então elaboradas - “os gatos” feitos pelos próprios moradores- , e engrendrava a criação de novas formas de ação coletiva que buscassem o que começa a aparecer então como necessário - a luz da Light. Centrando-se a questão no coletivo , não há tanto uma reelaboração do que se entende por necessidade mas uma nova forma de experimentá-la enquanto impasse - a luz que “não servia para nada” e uma redefinição das alternativas de ação.

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A necessidade em sua dimensão coletiva na base da história que tecia-se no Grotão, aparece apontada também no explicativo relato de uma liderança comunitária da favela: 94

Numa tarde os moradores se reuniram - moradores que vieram do norte, inclusive tem pessoas que vieram do Norte e que estavam em São Cristovão, não tinham aonde morar. Outras pessoas que estavam sendo despejadas de aluguel, outras pessoas que moravam em casas de parentes. Se reuniram e acharam que tinham que tomar conta daquela pedreira que estava lá abandonada com o mato cobrindo. Porque era uma pedreira, um terreno de uma pedreira da Elecatrone que estava abandonada porque ela foi desativada por não pagar impostos e tinha falido. E com isso, alguns funcionários dessa pedreira, que moravam lá também e incentivaram essse moradores a invadir porque eles também estavam em prejuízo. Tinha gente que tinha trabalhado 6, 8 anos e não estavam recebendo nada. Então tinham que invadir. Isto foi feito por um grupo pequeno, parece que de 38 pessoas. Invadiram e entraram lá prá dentro. Eram uns antigos galpões. Dividiram os galpões e começaram a morar. E com isso despertou a atenção dos demais que estavam necessitados e aí foram.

A necessidade é aqui apontada na diversidade de experiências vividas por aqueles que vão ocupar a área da pedreira abandonada no Grotão: migrantes, pessoas que viviam na casa de parentes, moradores despejados do aluguel, funcionários da pedreira “em prejuízo” e os “demais que estavam necessitados”. No relato, a necessidade de muitos dá legitimidade à própria ocupação, e é relacionada a situação de abandono e ilegalidade da pedreira - “estava lá abandonada com o mato cobrindo”, “foi desativada por não pagar impostos e tinha falido”. E em particular, a necessidade e alternativa encontrada pelos funcionários da pedreira- os primeiros ocupantes que incentivaram outros moradores- é legitimada pela exploração a qual haviam sido submetidos no trabalho- “tinham trabalhado 6, 8 anos, sem receber nada” e “estavam em prejuízo”. O que se evidencia em sua fala , referindo-se particularmente à ocupação, é uma percepção relacional da necessidade, aonde ela não se explica por si mesma e sim articulada a um conjunto de elementos - o abandono da área, a ilegalidade da firma, a exploração a qual os donos da pedreira submetiam os empregados, a situação de precisão e injustiça sofrida pelos que 94Na

época em que foi realizada a entrevista, o entrevistado ainda era uma importante liderança do Grotão, embora não estivesse mais na presidência da Associação.

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ocuparam a terra. A visão colocada fundamenta a afirmação da legitimidade da alternativa de ação encontrada pelos necessitados , a ocupação da área - “então, tinham que invadir” A sua concepção aparece permeada não só pela vivência de quem acompanhou a luta pela terra no Grotão enquanto morador mas também por sua histórica experiência de trabalho e política. Assim, a defesa da legitimidade da ocupação subjacente no relato referencia-se em uma visão de luta forjada particularmente no trabalho e no âmbito do movimento sindical e comunitário, onde destacou-se como liderança. 95. A respeito de sua experiência de trabalho, ele relembra:

(...) passei a trabalhar, saí do exército (...) e engajei na luta civil, trabalhando de empregado e vivendo a opressão do patrão. Eu achava um absurdo você ter as leis trabalhistas e não ser cumprida. Mas realmente a gente chega a conclusão de que o país capitalista é isso. Ele não cumpre as leis. A lei serve para nós mas pra eles não.

A sua percepção da legalidade num “país capitalista’, - onde a lei não serve para eles , aqui no caso os patrões, mas para nós :: os trabalhadores- , referenciada na própria experiência histórica de trabalhador subalternizado, e posteriormente de militante do movimento sindical, se recoloca na sua interpretação a respeito da “invasão” pelos necessitados , contribuindo para que perceba a necessidade no âmbito de um processo, aonde se confrontam a ilegitimidade da propriedade da terra por parte daqueles que são beneficiados pelas leis e a legitimidade da conquista da terra por aqueles que não são por elas beneficiados mas que são necessitados . Nesta perspectiva, os necessitados do primeiro relato são necessitados sociais e não simplesmente pessoas para as quais falta um lugar para morar. Em sua percepção está imbricada também a prática política de liderança que se coloca social e politicamente não apenas enquanto morador da favela mas como representante do movimento de favelas, defensor pois da legitimidade destas. Assim, quando afirma que eles “tinham que invadir” não fala apenas do lugar de morador que avalia as necessidades dos demais moradores, mas de 95

A sua experiência política se deu inicialmente no âmbito do movimento sindical, primeiro atuando no Sindicato dos Metalúrgicos e posteriormente no Sindicato dos Rodoviários, aonde chegou a disputar as eleições para a presidência. Destacou-se também como liderança no Movimento comunitário, tendo sido presidente da Associação de Moradores do Grotão. Na época da entrevista (1987), não estava mais na Associação mas ainda ligava-se ao movimento comunitário, através da atuação na Associação e na FAFERJ , ao mesmo tempo que militava no Sindicato dos Rodoviários.

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liderança política que reivindica o espaço social dos favelados no jogo políticoinstitucional. Tal fato se evidencia quando refere-se ao processo jurídico de luta pela terra, que se deu a partir da ação de despejo sofrida pela comunidade, onde ela enfrentou as estratégias dos Armazéns Gerais que se reivindicavam proprietários da terra.

(...) Mas tudo isso é uma estratégia deles para a gente peitar o governo e o governo dar tudo que eles queiram. O que que a gente faz? Ficamos na retaguarda e jogamos o advogado em cima. Nós somos burros mas não somos tanto. Não vamos fazer o jogo dos donos da terra. Vamos lutar por uma causa social. Ai recuamos e jogamos os advogados em cima. Os advogados, quando eles viram que tinha pressão do povo em cima do governo porque tínhamos sessenta dias para desocupar as terras, aí eles foram e negociaram.

No relato, a luta dos moradores do Grotão aparece como uma luta mais ampla, como a luta “por uma causa social” que se confronta com um jogo também mais amplo, “o jogo dos donos da terra”. Um confronto levado para o espaço público, onde o Estado é interpelado (“tinha pressão do povo em cima do governo”), pressionado a declarar-se a respeito de seu compromisso social e da causa então em jogo. A necessidade atravessa também o depoimento de alguns dos atores em cena na história do Movimento Sangue Novo. Na fala daqueles que participaram ativamente do Movimento e o fizeram deslanchar, ela aparece articulada ao projeto de mobilização comunitária ao qual o Movimento se propunha.

A gente já sabia que a única forma da gente conseguir mobilizar a comunidade seria por melhorias para ela. Assim, num primeiro momento: preciso de água, preciso de água, preciso de luz, preciso de luz.

Atuar sobre as necessidades da comunidade seria a única forma de conseguir “mobilizar a comunidade”. A necessidade apresenta-se aqui enquanto as necessidades básicas da comunidade - como água e luz -, às quais era necessário responder com a luta pela melhoria para que os moradores se mobilizassem- “preciso de água, preciso de água, preciso de luz, preciso de luz”. No projeto de mobilização comunitária, cada necessidade básica identificada na comunidade, tornaria-se uma necessidade básica de todos , respondida pelos sujeitos coletivos envolvidos na luta. 247

Assim, as necessidades da comunidade atravessam o projeto do Sangue Novo, em seu próprio início - o reconhecimento das necessidades básicas- e em seu deslanchar - a necessidade enquando elemento de mobilização.

A gente pegou pontos estratégicos. As necessidades básicas na comunidade, elas mobilizam. Eu acho que até o ponto central disto foi que a gente conseguiu convencer as pessoas que se elas não se mobilizassem para resolver aqueles problemas imediatos, água, luz, esgoto, nunca ia acontecer. Iam passar, 10, 20, 30 anos.

Na avaliação acima, o reconhecimento e a atuação sobre as necessidades básicas são inclusive destacados como elementos fundamentais à intensidade da mobilização conseguida pelo Movimento - “pontos estratégicos” para que se desse esta mobilização. Mas entre a necessidade existente na comunidade e a própria mobilização, algumas mediações se colocavam. Uma delas o trabalho de “convencer” as pessoas da necessidade de mobilização para resolver os “problemas imediatos”. Mas a própria possibilidade de “convencimento” estava articulada a uma outra mediação.

(...)Todo mundo aqui era muito explorado. A maioria..., quando chegava as contas, o pessoal, coitado, se apavorava, né? E a gente, sem saber o que fazer, usava um estabilizador nos aparelhos, queimavam os aparelhos toda hora. E o presidente da comissão de luz só levando...Até rede de hotel o homem tinha... A luz fraquíssima.

(...) A insatisfação era total. Tipo: a mulherada se juntou uma vez para dar uma coça nos manobreiros. Várias donas de casa com vassouras. É, foi em 83. Foram para pegar o seu Zezinho. Foram na casa do seu Zezinho e depois foram na casa do manobreiro. Foi uma coisa delas. Foi uma coisa assim que aconteceu rapidamente. Foi um levante das donas de casa, com vassoura na mão. (...) Foi um conflito sério.

Na comunidade, as necessidades básicas iam sendo percebidas enquando relacionadas a uma situação marcada pelo domínio dos atravessadores dos serviços de luz e água. Neste sentido, eram experimentadas não como uma mera carência ou precisão mas enquanto , insatisfação ( “a insatisfação era total”), exploração (“todo mundo aqui era muito explorado”) e injustiça ( “e o presidente da comissão de luz só levando, até rede de hotel o homem tinha”),

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inseridas portanto em situações onde estava postoo o conflito que contrapunha moradores e a chamada burguesia favelada. Estas necessidades estavam colocadas na comunidade e eram vividas por todos seus moradores. A história contada acima nos chama atenção para uma questão. Seriam estas necessidades vivenciadas da mesma forma por todos?

O movimento Sangue Novo tinha que organizar a comunidade. Mas quem conhece a realidade das necessidades básicas que a gente estava lutando era mulher.(...) Era a mulher que sabia da realidade. Então era mais fácil chegar e sensibilizar a dona de casa porque ela vivia aquela a falta d’água. Ela é quem tinha que lavar a louça no “pinha”. Pinha era um lugar que os garotos chamavam. Era um poço, uma nascente que tinha já chegando a Vila Cascatinha, onde as donas de casa iam lavar a louça na falta de água constante no morro. Então elas é que tinham que carregar aquela trouxa até o “Pinha”, subir no sol de meio dia, para fazer comida para botar o garoto que vai estudar às três. Ou a criança estuda de manhã, ela bota para o colégio, e desce para lavar e volta para fazer almoço que ele já está chegando. Era a vida da minha mãe. Eu me lembro que minha mãe fazia isso. Então foi através das mulheres, sensibilizando a elas para minimizar esse sacrifício, que a gente conseguiu sensibilizar. Foi uma participação de 70 %, indiscutivelmente.

No movimento de mobilização a partir das necessidades, as mulheres compareciam como as personagens principais já que são elas que conhecem “a realidade das necessidades básicas” pelas quais se lutava. Elas sabiam da realidade. Conhecimento e saber referenciado em sua vivência cotidiana na comunidade: enfrentando a constante falta de água no morro, lavando a louça no “Pinha”, subindo e descendo o morro com a trouxa na cabeça, sob o sol de meio- dia, tudo isso em meio aos trabalhos domésticos - o cuidar da família e da casa. Uma vivência cotidiana que as tornava “sensíveis” à luta para “minimizar o sacrifício”.Uma vivência que se acumulava no tempo para estas mulheres e que por isso era experimentada historicamente produzindo um conhecimento da realidade em que viviam, fazendo que percebessem suas necessidades como sacrifício , em meio a uma situação de insatisfação e injustiça . Dentro desta perspectiva é que é compreendido o “levante das donas de casa” que usando vassouras se juntaram para dar uma coça no manobreiro e no seu Zezinho, presidente da Associação de Moradores. Um levante que não se colocou apenas como uma reação à falta d’água mas como um conflito sério , onde estava em jogo uma avaliação histórica produzida a partir de uma experiência vivida

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como injustiça, e que colocou-se no âmbito de uma situação compreendida enquanto “limite”, esclarecida na fala seguinte:.

E no verão sempre faltava água. Aí descobriram que esta água era desviada para os terrenos próprios da Vila Cascatinha para que se aumentasse o quadro social e com isso a associação captava mais recursos. (...)

Provavelmente em tal situação configurou-se o que Thompson chama de atropelo aos “supostos morais” dos moradores, baseados num histórico e “amplo consenso” da comunidade, atravessado por um noção legitimizante. (1984, p.65). Assim, controlar o fornecimento de água, cobrando por isso, pode ser considerado como legítimo, mas o seu desvio para outros locais a fim de se acumular recursos atropela o “amplo consenso” ao qual se refere Thompson. É este atropelo, no âmbito do transtorno causado pela falta d’água no verão, que abre as possibilidades para ação direta das mulheres. 96 “Vivendo” e “conhecendo” a realidade das necessidades básicas, as mulheres participam ativamente do Movimento Sangue Novo, contribuindo com “70%, indiscutivelmente”. Colocando-se no centro da cena de mobilização comunitária, a participação das mulheres concorre para que se redefina a noção de necessidade que atravessava o projeto inicial de mobilização comunitária do Movimento Sangue Novo. Para alguns de seus participantes, a mobilização comunitária cada vez mais vai ultrapassando o limite daquilo que era antes definido por necessidades básicas ( água, luz, por exemplo). Foi assim que algumas integrantes do Movimento começaram a fazer reuniões com as mulheres que participavam das reuniões do Sangue Novo.

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legitimidade do atravessamento da água nas favelas do Complexo da Penha é uma questão bastante complexa. Predomina ainda o chamado convênio com a CEDAE através do qual a Associação de Moradores se responsabiliza pela prestação do serviço e a CEDAE paga o manobreiro, o que aliás já não vem sendo mais feito. O fornecimento da água, é claro, depende em muito da forma de atuação da CEDAE que funciona sob uma lógica empresarial. Além disto, não menos importante, é a advertência colocada por Valla de que muitas vezes a concepção da liderança está atravessada por uma noção de provisão, onde destaca-se a certeza de que a CEDAE só existe para os moradores a partir da pressão permanente exercida por eles (1995). Mas no atravessamento estão também imbricadas as relações de poder presentes na dinâmica da favela. Tais questões revelam o quanto os critérios de legitimidade nas favelas são complexos, encontrando-se na encruzilhada entre as relações historicamente tecidas com os orgãos públicos e a própria correlação de forças na favela. A respeito do abastecimento da água nas favelas da Leopoldina, há o trabalho de Oliveira (1993)

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(...) A gente podia começar, podia formar um grupo com esta mulherada que está aí, pedindo. Elas ficavam paradas, a gente acabava a reunião, elas ficavam lá, mesmo querendo mais, quer dizer a gente podia organizar... Que organizar esta mulherada! A gente podia fazer uma reunião que não fosse um clube da luluzinha mas que a gente pudesse discutir sexualidade, discutir higiene, saúde, discutir o que as pessoas tivessem a fim de discutir para tentar ver como a gente pode melhorar mais ainda esta busca, porque elas começaram a buscar mais coisas, né? Aí a gente deu um toque nelas e aí fizemos.

Participando ativamente do Movimento, as mulheres “começaram a buscar mais coisas” trazendo a necessidade de ampliação do trabalho, melhorando “mais ainda esta busca”, de forma a se contemplar um universo de necessidades que não passavam pelas chamadas necessidades básicas. 97 No âmbito do processo de mobilização, as mulheres forjam e encontram um espaço de discussão e troca de experiências vividas individualmente, que passam a ser percebidas enquanto coletivas. Contribuem pois para produzir uma visão de necessidade que alargava a concepção do movimento comunitário restrita à mobilização por água e luz. Esta visão de necessidade já atravessava a percepção de alguns dos integrantes do Movimento que mesmo antes do Sangue Novo desenvolviam na comunidade atividades com as crianças:

Me lembro que na época eu trabalhava e diziam: ‘ih...que besteira’. Tinha gente do PT que falava isso. Neste trabalho era mais eu, Josélia e o Jorge. Eu adorava fazer. E tinha gente que falava: “Mas poxa, isso vai dar em que?”.Eu lembro que na época, a gente falou assim: “Levanta, abre aquela porta e vê se a revolução está ali atrás.” Tinham cenas que a gente brincava de desejo. ‘Qual o teu desejo?’ Aí a menina falava: ‘Eu queria ter uma piscina bem grandona na minha casa’. Aí a outra falava: ‘Que absurdo! Você nem tem água na torneira, como você vai desejar ter uma piscina?’. Aí a gente brincava um pouco com isso: ‘Não podemos ter as duas coisas? Não podemos ter uma bica 97

A este respeito, nos parece importante a reflexão de Marília Spósito sobre a experiência das mulheres subalternas, onde a autora destaca que a vivência e sobrevivência cotidiana traz a experiência da “tensão entre as necessidades que se criam e não podem ser satisfeitas e que, certamente, não se limitam aos aspectos materiais da vida”. É assim que podemos compreender que “o tecido de relações sociais espontâneas não responde a todas as necessidades de trocas sociais dessas mulheres. De uma sociabilidade espontânea, ocorre uma busca intencional de novos laços e a participação do grupo de Igreja do bairro é uma das respostas encontradas”. (1993, p.334)

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que saia a água e uma piscina grandona aqui na favela?’. Aí eles mesmo rediscutiam. Tinha uma também que era o dia-a-dia da mamãe e do pai. Aí ali a gente descobria que a mãe era prostituta, se o pai batia na mãe ou não batia.

O trabalho desenvolvido com as crianças da comunidade, antes mesmo da luta pela luz, era atravessado pela percepção da valorização de diferentes sujeitos na ação e que as mudanças eram construídas - “levanta, abre aquela porta e vê se a revolução está ali atrás”. Percepção que não era compartilhada por todos do PT, partido no qual militavam aqueles que dedicavam-se ao trabalho com as crianças- “ih, que besteira, tinha gente que falava isso”. No âmbito do trabalho, as necessidades básicas da comunidade apareciam na fala das crianças, enquanto problemas - o não ter água na torneira, o cotidiano da família- mas se colocavam ao lado das expectativas tecidas pelo universo infantil - “queria ter uma piscina bem grandona na minha casa”. E era também no âmbito do trabalho que ambos ( necessidades e expectativas) eram rediscutidos de forma a produzir novas possibilidades - “Não podemos ter uma bica que saia a água e uma piscina grandona aqui na favela”. Brincando de desejo, a necessidade tecia-se aí não só enquanto elemento de sensibilização das crianças e de compreensão da realidade em que viviam mas como forma de discussão e potencialização de novas possibilidades - “a revolução não bate na porta”. Na medida em que alargava-se aquilo que se entendia por necessidade, ampliava-se também as formas de luta e percebia-se a diversidade dos sujeitos em cena:

Era assim que a gente ganhava as pessoas. Desde defender as tarefas domésticas com crianças, seja com quem for até fazer mutirão. A casa dela foi testelhada, era de madeira. Fizemos um mutirão para colocar telhado na casa dela. Tinha essas coisas que a gente fazia também Nosso pessoal era um pessoal que pegava toda a comunidade. Não tinha essa de uma política dirigida.

Estivemos procurando entender o que os protagonistas das histórias investigadas compreendem como necessidade. Partimos da constatação, por nós 252

identificada, de que ela aparece como um dos elementos fazedores destas histórias. Em busca deste entendimento, concluímos que ela não possui um sentido uno durante toda a história de luta, nem para todos seus participantes, e tampouco forja respostas únivocas. De forma geral, seu significado é reelaborado diante dos rumos da própria luta e os conflitos aí colocados - como no caso do Sementinha, em que a necessidade do outro torna-se uma necessidade na qual elas se incluem ou do Sangue Novo em que a necessidade ultrapassa as fronteiras do que se compreende como necessidades coletivas, trazendo para a luta a “busca das mulheres”, o “desejo” das crianças. Seu significado é referenciado na experiência histórica dos próprios atores - o atravessamento da formação e da prática religiosa nas mulheres do Sementinha, a experiência de trabalho e de militância sindical, no caso de Pedro Mendonça, por exemplo. E as formas de ação que ela engendra referenciam-se, entre outras coisas, na própria forma através da qual experimenta-se o necessário , podendo pois serem redefinidas em meio à luta, como ocorreu no Grotão, quando se partiu para a organização da Associação e a luta pela luz da Light. Assim, seu sentido apresenta-se como uno somente na medida em que se coloca com um elemento fundamental ao desenrolar da história. Ela é básica para que a luta se deslanche. Ela é objetiva para que se coloque a necessidade da luta. Sem ela, não há luta. No entanto, concluímos também que na percepção dos sujeitos envolvidos não há uma relação mecânica entre a necessidade e a ação por eles engendrada. Ser “fazedora” da história não torna a necessidade atributo único dos movimentos. Na maioria das vezes, ela vem ao lado de outras referências. Entre ela e a própria luta se colocam mediações que vão dar o colorido às formas de luta encontradas e definem o campo de possibilidades dentro dos quais os sujeitos se movem e das quais se utilizam para se mover. São mediações.que se referem à própria dinâmica da luta cotidiana e aos impasses aí colocados - as relações tecidas na comunidade, as forças políticas que aí se confrontam, o tensionamento entre as estratégias de sobrevivência e a própria possibilidade de sobrevivência. Mediações que dizem respeito à experiência histórica daqueles que participam da luta. Que se referenciam na forma como os atores em cena experimentam a necessidade, dando-lhe significado, tornando-a plena de um sentido que não se esgota em uma mera “precisão”. A necessidade torna-se assim compaixão , compartilhamento , dor , insatisfação , sacrifício , exploração , ilegitimidade , injustiça , busca , desejo ..... Carregando-a de subjetividade, os atores se apropriam das necessidades que são suas , inserindo-as num conjunto

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de experiências que ultrapassam o precisar imediato 98. É neste âmbito que se coloca a possibilidade da necessidade ser engendrada enquanto fazer-se .

98Não

é demais lembrar que quando afirmamos “carregando-a de subjetividade”, estamos dando o sentido destacado por Edison Nunes, apontando a autoria dos sujeitos coletivos em sua ação de determinar as necessidades que são por eles experimentadas (1989).

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7.2. Os mediadores: estranhamento e parceria

Os que vivem na comunidade, na maioria das vezes percebem aliados em suas lutas. São os mediadores políticos, pessoas ou grupos vistos como elementos importantes nas mudanças ocorridas. Dentre as questões que atravessam a discussão a respeito dos movimentos sociais, e pontualmente da educação popular, sem dúvida a relação dos mediadores com as classes e grupos subalternos é uma das mais tensionadas. Da relação que anuncia a diferença de antemão, mas que oculta o conflito, definindo o lugar distinto daqueles que levam ou convertem- civilizadores e missionários-, passando pela relação que busca suprimir a diferença e anuncia o conflito mas também define o lugar distinto daqueles que conscientizam vanguarda militante-, chegando à relação daqueles que procuram tensionar, discutindo a produção da diferença mas que no lugar da naturalização da diferença criam a naturalização do divórcio, impossibilitando de antemão o esforço de produção conjunta - como chamá-los intelectuais céticos?- a questão tem sido mais do que pomo de discórdia científica. Perpassa os próprios atropelos políticos do desencontro que marca esta relação 99. Interrogando-nos sobre este desencontro, nos voltamos para aqueles, preocupados em não só avaliar esta relação mas também discutir as possibilidades de construção conjunta, atuando pois neste sentido ( A LMEIDA , 1995; M ARTINS , 1989,1993 e 1994; V ALLA , 1992b. 1993, 1994). Possibilidades que apontam para um movimento que procura interrogar aquilo que nos aparece como natural, ouvindo a fala da população “não simplesmente para falarmos sobre ela mas para falar com ela”( A LMEIDA , 1995). Que destacam a passagem que significa “emancipar o outro da condição de objeto, por meio de nossa própria emancipação, como intelectuais, da condição de tutores de conhecimento”(M ARTINS , 1989). Que indicam a necessidade de uma construção

99As

referências sumárias, aqui feitas, não implicam em desconsiderar a historicidade destas diferentes relações, suas particularidades, bem os interesses distintos a elas sujacentes, que marcam por exemplo a diferença entre a relação de civilizadores com os subalternizados do colonialismo e do chamado neo-colonialismo, e a da vanguarda militante com os trabalhadores. Nossa intenção é sublinhar o tensionamento histórico da relação com as classes e grupos subalternos, e as relações de poder aí inscritas, não apenas dentro do campo da esquerda. A avaliação feita pelos subalternos a respeito do trabalho dos mediadores, não se dá apenas a partir da relação com aqueles que se localizam no campo de um projeto de tranformação social. Esta avaliação repousa na experiência histórica que desenvolve com vários outros . Pensamos que a elaboração desta experiência histórica vai informar uma determinada forma de perceber o mediador.

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compartilhada do conhecimento, onde seja considerado o conhecimento trazido pela população. (V ALLA , 1992b). Pensamos que no caminho desta construção é fundamental considerar a forma como as classes subalternas vêem os mediadores, especialmente se considerarmos que nas tramas contadas, estes assumem um lugar na mudança histórica. Começamos por nos orientar por algumas indagações a respeito do lugar do mediador nas falas analisadas. Como ele se constrói? Em que medida contribui para o fazer histórico ? De que forma a percepção dos atores é redefinida diante da sua experiência no âmbito do próprio movimento de luta. Que lugar é este? No trabalho de análise, em busca das respostas, diante da diversidade de questões colocadas, sentimos a necessidade de agrupar as reflexões através de alguns eixos por nós identificados. Alguns são eixos temáticos, como por exemplo o que se refere às percepções a respeito da Igreja Católica, mais particularmente da Pastoral de Favelas. Outros são analíticos, como o referente à produção da legitimidade da liderança comunitária no processo de embate com alguns mediadores. Comunidade de interesses e compartilhamento de vida Iniciamos pelos depoimentos das mulheres do Sementinha, onde alguns dos profissionais de saúde que estavam no Hospital Getúlio Vargas entram em cena :

Antes de começar o grupo, nós trabalhávamos na Pastoral de Favela, de doentes, não era de saúde, era Pastoral de doentes do Getúlio Vargas. Começou em 81, quando o ex-Padre Carlos veio para a Paróquia BomJesus da Penha e o Dr. Fernando William, sendo diretor deste Centro de Saúde, se interessava muito pelas comunidades e então começou a fazer reuniões na Bom Jesus da Penha com os médicos do Getúlio Vargas. Formaram no Grotão um postinho e juntos víamos as dificuldades das pessoas nas comunidades e sempre querendo ajudar. (...) Essa pastoral do Getúlio Vargas já vem há muitos anos mas foi se aperfeiçoando, foi evoluindo e aperfeiçoando as coisa. Os diretores que trabalhavam, Fernando William, Gouveia, Luis Antônio, eles eram interessados nas comunidades. Visitavam, eram médicos bons.

Este relato marca primeiro o trabalho inicial das mulheres que mais tarde formariam o Sementinha- na Pastoral de doentes, “não era de saúde”, do 256

Hospital Getúlio Vargas-. 100. Neste momento, a presença do então Padre Carlos e de alguns médicos, como Fernando William aparece como fundamental à experiência de trabalho das mulheres. O próprio trabalho na Pastoral “de doentes” começa em 81 com a chegada de Padre Carlos à Paróquia Bom Jesus da Penha. Na mesma época, “o Carlos, que era padre”, ao lado de Fernando William, também tem sua atuação destacada na formação de um posto de saúde no Grotão. No posto, junto com eles, as mulheres “viam as dificuldades das pessoas nas comunidades e sempre querendo ajudar.” Considerando que o posto de saúde era o único em funcionamento no Complexo da Penha, ali eram atendidos não só os moradores do próprio Grotão mas de comunidades vizinhas, o que explica a referência da mulher às comunidades 101 A atuação de Padre Carlos e Fernando William no posto, vai proporcionar as mulheres um outro caminho de conhecimento das “dificuldades das pessoas”. Um caminho através das comunidades e não só pela Pastoral de “doentes”. Caminho que leva ao acompanhamento de dificuldades das comunidades, junto ao médico e o padre, ultrapassando-se o acompanhamento individual dos “doentes” que estavam no Hospital Getúlio Vargas. Provavelmente, a experiência de trilhar este caminho contribuiu para que tornasse possível a reelaboração da visão a respeito daqueles doentes que elas atendiam individualmente no Hospital Getúlio Vargas, percebendo-os não só enquanto doentes, mas enquanto doentes das comunidades, relacionando o seu adoecer ao adoecer de tantos outros que viviam nas favelas. Na fala seguinte, a referência à Pastoral do Getúlio Vargas vem ao lado de uma alusão a seu aperfeiçoamento e sua evolução e ao fato dos “diretores” serem médicos “bons” que “visitavam” e se “interessavam”pela comunidade. Na interpretação do trabalho da Pastoral do Hospital enquanto evolução e aperfeiçoamento está imbricada a própria avaliação do trabalho dos médicos, vistos enquanto “bons” uma vez que visitavam e se interessavam pelas comunidades. Assim, o médico é aqui avaliado a partir de sua própria relação com a comunidade, seu interesse por ela, dimensões que aparecem fundamentais a seu trabalho. Avaliação que se referencia na própria experiência das mulheres diante dos serviços públicos de saúde, onde predominam os profissionais que não visitam e se interessam por elas.

100As

mulheres do Sementinha atuavam, e ainda atuam, na Pastoral de Saúde do Hospital Getúlio Vargas. O destaque dado ao fato de que era “de doente”, “não era de saúde”, está atravessado pela experiência posterior do grupo, da qual falaremos mais adiante, e por uma avaliação do trabalho feito inicialmente pela Pastoral de Saúde e pelas mulheres. 101

Uma moradora do Grotão, faz referência em seu depoimento ao fato de que o posto atende outras comunidades: “Atende Caracol, atende gente que vem do outro lado, sabe (...)”.

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Mas não somente os médicos eram por elas avaliados, tendo como referência a relação que possuíam com a comunidade.

De 83 para cá, o Carlos se uniu com o Beno, compraram uma casa no Grotão, aonde é nossa sede agora, foram morar lá. Diziam assim: ‘Como eles vão se adaptar em favela?’ Mas eles queriam trabalhar e conhecer o povo. A pessoa só conhece se está no meio das pessoas, eles na paróquia com conforto, não iam saber do que as pessoas precisavam. Combinaram e foram morar lá.

Na visão da mulher do Sementinha, a adaptação dos padres à favela foi possível porque eles “queriam trabalhar e conhecer o povo”. Num primeiro momento, entra em cena o próprio “querer” dos padres- por trabalhar e conhecer o povo. Querer que indica o caminho a seguir: morar na favela. A decisão de moradia na favela apresenta-se então enquanto a alternativa encontrada para trabalhar e conhecer o povo. Porque a própria possibilidade de trabalho e conhecimento supõe a vivência em meio ao povo: “a pessoa só conhece se está no meio das pessoas, eles na paróquia com conforto, não iam saber do que as pessoas precisavam”. A análise da forma de como se conhece o povo vem atravessada pela própria avaliação do caminho seguido pelos padres, e sua relação com os caminhos seguidos por outros - padres ou não - que não vivem em meio ao povo. O conhecimento não se dá tanto pela vivência na comunidade, mas pela convivência nela, pelo compartilhamento do que as pessoas precisavam. O viés religioso, antes destacado, que permeia a forma através da qual se percebe a necessidade do outro, apresenta-se aqui também, referenciando aquilo que se entende como conhecer o povo : é no compartilhamento da dor, do que o povo precisa, que se conhece o povo. Viés religioso que pode estar articulado à própria convivência das mulheres junto aos padres voltados para a proposta de um trabalho eclesial, mediador de uma prática político-social, onde morar na favela significava a solidariedade e aproximação com os grupos sociais mais espoliados. (Selhorst, 1994 e 1995). A convivência, que implicava uma atuação comunitária em comum, permitiria pois que se reelaborasse a percepção do trabalho daqueles que trabalhavam na Igreja, considerando a proposta e a prática colocadas pelos “novos” padres. Mas o viés religioso, pode também recuperar da religiosidade popular, noções do cristianismo primitivo, onde o compartilhamento da dor, a comunhão com o povo, informam os caminhos de conhecimento e crescimento do homem, traduzidas no evangelho através da experiência de Cristo e dos apóstolos. A apropriação dos ensinamentos cristãos, no âmbito da experiência que marca a 258

relação da comunidade com os chamados agentes externos, produz pois um saber crítico a respeito do trabalho feito na comunidade e da forma de conhecer seus problemas - é convivendo com o povo e compartilhando a dor, e não no encerramento no conforto , que se trabalha e se conhece o povo. É no âmbito deste compartilhamento do então Padre Beno com a comunidade, que as mulheres do Sementinha localizam o surgimento do Sementinha enquanto grupo organizado.

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Um ponto de ruptura

O ex-padre Beno, muito caridoso, achou que deveria procurar um padrinho para nos auxiliar com uma ajuda de Cristo. Até que surgiu o projeto. Ele procurou duas pessoas firmes no trabalho da comunidade. Daí começamos a verificar pressão, temperatura, visitar as pessoas na pesquisa da tuberculose. Encaminhando as pessoas que encontrava vomitando sangue e fazendo tratamento no hospital “Del Castilho”. Os médicos não davam o diagnóstico da causa da doença. Então enviamos todos ao Centro de Saúde com seis meses estavam de alta e curados. (...) Em 85, começou o pensamento do Beno em formar um grupo. Porque já não ia tratar de doente, ia procurar saúde. Então saímos a procura de saúde, encontrava os focos, aquelas coisas que davam doenças. E não fomos atrás de doença, então a gente tinha que prever para acontecer saúde. Ele convidou seis comunidades do Complexo da Penha, duas agentes de cada comunidade, para esse trabalho e nós começamos no Cruzeiro, na Igreja Nossa Senhora Aparecida(...) Quando Beno começou com o grupo fizemos um cadastramento dos problemas da comunidade para ver os que eram piores. Começamos a trabalhar com saúde preventiva.

Nos três relatos a atuação do então Padre Beno é destacada enquanto um momento fundamental no trabalho das mulheres. Apresenta-se mesmo enquanto uma ruptura , onde se localiza a própria formação do Sementinha Serviços Comunitários. Mas qual o significado desta ruptura? De que forma percebem a relação entre a atuação de Beno e o próprio trabalho que as mulheres já vinham desempenhando? A este respeito, os relatos apresentam percepções diferenciadas. No primeiro relato, é destacada a caridade e a ajuda de Beno e de Cristo, esta última vinda através de um “padrinho”. São elas que vão dar forma ao “projeto” que surge: a organização do trabalho das mulheres que já vinha sendo feito. É a opção de Beno pelo bem e o “auxílio” financeiro de um “padrinho”, vindo de Cristo, que fazem surgir o projeto. Mas a possibilidade deste se realizar já encontrava-se delineada: (ele) “procurou duas pessoas firme no trabalho da comunidade”. 102 A forma como são definidas as pessoas “procuradas” 102O

projeto previa duas pessoas de cada uma das seis comunidades do Complexo da Penha e durante alguns anos o Sementinha atuou com as 12 mulheres. Nos últimos anos, por diferentes motivos, mas de forma geral, considerando as dificuldades que o grupo enfrenta, algumas mulheres deixaram o trabalho e nem todas as comunidades possuem duas agentes.

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“firme”- revela de que maneira se percebe o trabalho já acumulado pelo grupo - é o próprio sujeito que lhe qualifica, “as pessoas firmes no trabalho de comunidade”. Aqui não se separa então o trabalho do sujeito que o exerce. A dimensão pessoal que atravessa a interpretação feita da maneira através da qual o projeto toma forma - pela disposição subjetiva dos agentes em cena- a caridade de Beno e o auxílio do padrinho através da ajuda de Cristo apresenta-se também na compreensão elaborada a respeito da base do projeto: “as pessoas firmes no trabalho de comunidade”. Por um lado, tal dimensão pode apontar para a não percepção daquilo que não é colocado de forma imediata - o projeto de ação religiosa e política, bem como a prática que vinha sendo desenvolvida pelo padre, o interesse imbricado no auxílio financeiro do padrinho, e a própria reflexão sobre o “significado” da ajuda de Cristo. Esta dimensão é também reveladora dos atravessamentos inscritos nas relações sociais que se têm forjado historicamente na sociedade brasileira, bem como as formas de enfrentamento das questões colocadas cotidianamente às classes subalternas - as relações pessoais que marcam não só a dinâmica da favela, internamente e em suas relações externas , mas da própria sociedade, e que ao se disseminarem por esta última, definem-se, apresentando significados distintos para os diferentes sujeitos sociais: para aqueles que dominam é um dos instrumentos de garantia da reprodução do poder enquanto para as classes subalternas muitas vezes significa a própria possibilidade de sobrevivência. No que se refere ao Sementinha, a questão das relações pessoais e do “apadrinhamento” apresenta ainda um particular significado se considerarmos que a maior parte das mulheres do grupo são migrantes do campo, onde as relações de apadrinhamento estão marcadas pelo patriarcalismo e encontram referência na cultura do homem do campo, onde lealdade e honestidade assumem uma dimensão fundamental. Com isso, não identificamos aqui esta herança enquanto um resquício da vida no campo. Compreendemos que ela é reelaborada diante da própria experiência de vida subalterna na cidade, apresentando-se mesmo enquanto um substrato fértil ao saber que se constrói no âmbito desta experiência. E, neste sentido, o relato citado nos sugere a forma como se produz e elabora a experiência de enfrentamento. Se as relações pessoais se tecem enquanto fundamentais não é porque se opta por uma padrão de relação onde o que está em jogo é a disposição subjetiva de alguns e mesmo a transcedência de outros mas porque esta, muitas vezes, é a alternativa que se domina e a possível numa sociedade que em sua manutenção reproduz cotidianamente em seu seio a “pessoalidade” das relações sociais, ao mesmo tempo em que reatualiza retorica e perversamente a universalidade e impessoalidade do direito. Se na peregrinação pelas filas dos serviços públicos de saúde, a particularidade da 261

situação dos subalternos é negada diante da afirmação retórica da igualdade e de um direito “universal”, o caminho das relações pessoais e dos “padrinhos” aparece com aquele que garante a sobrevivência. Com o surgimento do projeto e sua concretização a partir das “pessoas firmes” no trabalho com a comunidade, o grupo começa a “verificar pressão, temperatura e visitar pessoas na pesquisa da tuberculose”. A ruptura trazida pelo surgimento do projeto, percebida da forma já analisada, significa o “começo” de determinadas atividades que antes não eram feitas pelas mulheres. Assistem agora não só os doentes do Hospital mas os moradores da comunidade, monitorando sua saúde: verificam a pressão e a temperatura, visitam as pessoas nas pesquisa da tuberculose e as encaminham ao atendimento no serviço público voltado ao combate da doença- o Centro de Saúde da região. A mudança no trabalho das mulheres é também apontado nos outros relatos citados. Aí a formação do grupo aparece enquanto um projeto gestado por Beno, e definido cronologicamente - “em 85, começou o pensamento do Beno em formar um grupo”. Porém, esta formação apresenta-se misturada à própria mudança no trabalho - porque já não ia tratar de doente, já ia procurar saúde (...) então a a gente tinha que prever para acontecer saúde”. Assim, no depoimento, o que é evidenciado é o “começo” do pensamento de Beno em formar o grupo mas fica difícil definir o momento que marca a mudança do trabalho do grupo, o que nos sugere o quanto nesta percepção o início do projeto está marcado por mudanças que já se delineavam.- o próprio projeto apresenta-se justificado pelo que já se tecia : “(...) porque já não ia tratar de doente, já ia procurar saúde.” O trabalho que se forjava apresenta-se enquanto uma mudança radical, marcando uma inflexão no eixo que objetivava as atividades das mulheres. Dáse um deslocamento do “doente” para a “saúde”, do “tratamento” para a “procura”. Na “procura” pela saúde , busca-se aquilo que produz doença prever para acontecer saúde. Quando “Beno começa então com o grupo”, a procura pela saúde dá-se através de um cadastramento dos problemas da comunidade, que marca o começo do trabalho com saúde preventiva . Destaca-se aqui a aproximação com a noção de prevenção, provavelmente através da própria convivência com os profissionais de saúde nos trabalhos comunitários , do amadurecimento do trabalho com a Pastoral no âmbito do próprio projeto de ação comunitária desta. O projeto de formação do grupo é atribuído então ao próprio “pensamento de Beno”. Aliás a importância a ele dada, bem como a de Padre Carlos, ultrapassa a própria história do Sementinha.

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Quando formou o grupo, o Beno trouxe vida para comunidade. Ele e o Carlos trouxeram vida. Era pastoral mesmo. Pastor que pastora tem que ver as ovelhas, o que é que está sofrendo, sentindo. Ele sabia de nossa precisão mas sózinho não podia fazer nada. Nós tínhamos que ajudar então. Depois em 1985, ele formou uma hortinha.

Beno e Carlos - ainda que este último apareça menos enfatizado, já que foi o primeiro que “começou com o grupo”-, “trouxeram vida para a comunidade”. Seu trabalho é interpretado mais uma vez enquanto uma convivência e compartilhamento da dor, um conhecimento da precisão e do sofrimento da comunidade. “Era pastor que pastora”. Mais uma vez, a fala é pontuada por um viés religioso, desta vez pela concepção cristã de trabalho junto ao povo, onde o “pastor que pastora tem que ver as ovelhas, ver o que está sentindo”. Mas a interpretação colocada na avaliação da mulher vai além de uma incorporação simplesmente passiva desta concepção, referenciando-se em sua própria vivência que informa a constatação e avaliação crítica do trabalho e procedimento daqueles que simplesmente aparecem na favela, como é o caso dos políticos, relacionando-os àqueles que, como Beno, atuam de forma diferente. Avaliação, que aliás, surge em outros momentos de seu depoimento como quando se refere à ação dos políticos: “na comunidade, ano que vem vai aparecer muita gente, ano eleitoral...”. Na importância atribuída a Beno na história do grupo, há uma valorização de seu trabalho, através da imagem do pastor . Um trabalho que implica no compartilhamento dos sofrimentos das ovelhas . Mas que não se amplia de forma absoluta, como podemos verificar num outro momento do relato, quando a mesma mulher conta como se deu a autonomia do grupo.

Depois, o Beno entregou para nós. Ele viu que já estávamos formadas e não ia ficar dando leitinho prá nós toda vida. Ele achou que a gente tinha que aprender a caminhar porque só se aprende a caminhar caminhando porque quem fica parado é poste.

Mais uma vez há uma clara valorização da presença de Beno, agora promovendo a autonomia do grupo - ele entregou, ele viu, ele achou. Mas há também indícios da forma como se deu a elaboração desta partida de Beno e da autonomia do Sementinha: se ele achou que o grupo tinha que aprender a caminhar, “só se aprende a caminhar caminhando porque quem fica parado é poste”. Se a separação era necessária e se elas já estavam formadas, na visão do

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pastor, se ele “não ia mais dar leitinho” para elas toda vida, então não se podia ficar parado. Era necessário aprender a caminhar sem o pastor, caminhando. O trabalho do pastor implica pois compartilhamento das dificuldades. Um compartilhamento que permite também que ele veja que as mulheres já estavam formadas e que ache que elas tinham que aprender a caminhar. Compartilhamento que não implicava dar “leitinho” para as ovelhas durante toda a vida mas que significa em determinado momento a promoção de sua caminhada e a entrega do projeto para elas. Provavelmente, a imagem do pastor aí colocada foi elaborada a partir da própria convivência com Beno, e do amadurecimento de um projeto em comum, onde se destacava a perspectiva de ação comunitária da pastoral, onde se fazia uma opção pelos pobres pela sua libertação . De certa forma, a percepção presente no relato é atravessada por uma certa legitimação da própria visão do então Padre Beno. Mas se a legitimação se deu, é porque ela encontrou referência num determinado saber a respeito da forma como a vida deve ser conduzida: caminhar é a forma através da qual se compreende que a vida é conduzida. Saber produzido no âmbito da própria experiência de vida subalterna, experiência incansável, de uma mulher trabalhadora e migrante, para quem ficar parada pode significar a não sobrevivência, sua, da família e daqueles com quem convive no trabalho como agente de saúde comunitária. Se na história do grupo, o então Padre Beno tem um papel destacado, outras pessoas aparecem também como importantes, em particular os profissionais de saúde, e especialmente no que se refere ao conhecimento que o grupo vai adquirindo ao longo de seu percurso. Os caminhos da troca do conhecimento

Começamos a fazer reunião com Valla e Eduardo Stotz, fomos encontrando doença. Aqui no Posto XI, a gente sempre se comunicava com as pessoas daqui porque o Dr.Fernando William já tinha passado o Posto para a Dra.Meri Baran, muito dedicada, ajudava a gente junto com Dra. Marcia, com a Dra.Cida da epidemiologia e nós tínhamos muita regalia na mão dela. Ela ajudava, fazia reunião, aí começaram a fazer um cursinho porque a gente sabia mas não sabia muita coisa, como a gente não sabe até hoje porque quanto mais se estuda, mais tem que estudar. E aí fizemos um curso , fizemos mutirão de lixo, mulherada toda ajudando, procurando aqueles gatões para matar rato porque se a gente acabasse com o lixo, deixava eles morrendo de fome. Então tinha que procurar uma coisa para acabar com eles porque eles iam entrar na casa da gente. E começamos a incentivar o povo com aquela criação de porcos porque o porco traz muita doença e já 264

sabíamos que não poderíamos proibir a criação de porcos porque eles sobreviviam daqueles porcos que criavam. Então hoje tem poucas pessoas que criam porcos porque já se conscientizaram(...)

Com profissionais da ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública( como Valla e Eduardo Stotz, médicos do Posto XI( Centro Municipal de Saúde da região), como Dra.Meri Baran, Dra. Marcia, Dra. Cida, o grupo se aproximava do projeto de saúde preventiva, referido no outro relato. Mas a aproximação feita, através de reuniões e cursos caminhava junto a própria atividade das mulheres nas comunidades: fizemos curso, fizemos mutirão de lixo....A aquisição de novos conhecimentos apresenta-se como mais uma das faces do trabalho do grupo, que se objetivava na própria atuação comunitária. Assim, é que a busca incansável pelo saber - “quanto mais se estuda mais tem que estudar” era alimentada pela própria aquisição de novos conhecimentos e pela reelaboração feita no âmbito da experiência de trabalho. É no âmbito da experiência de trabalho que o projeto preventivo, trazido pelos profissionais de saúde é resignificado diante da experiência e do conhecimento que elas tinham da comunidade: “já sabíamos que não poderíamos proibir a criação de porcos”. Mas nem sempre a relação do grupo com outros profissionais, agentes externos, é sem atritos e conflitos.

Nós trabalhamos há muitos anos. Nós gostamos de trabalhar nas comunidades carentes. Mas tem pessoas que às vezes vai na sua comunidade,. como pessoas importantes que marcam. Você vê que ela não vai com o objetivo de te ajudar. Só para colher e não volta mais. Fica marcada essa atitude. Vai colhe, vê fica mais alto do que a gente e a gente continua aquela coisinha bem carente, fica carente e com os carentes também. E as pessoas ficam na altura com o que levou daqui, ganha em cima da gente. Se você plantou e colheu você também tem que levar, o que acontece é que a pessoa leva e a gente continua no nível que está. (...) as coisas que a gente deixou mas que eu não esqueci e acho que o grupo também. Pessoas que trabalharam e depois foram embora. Acho que é bom ficar claro, eu quero isso e vocês me dão aquilo. Tem pessoas que trabalharam, foram embora e a gente viu que elas aprenderam muito, foram embora. Eu falei, a pessoa vem de longe é com algum interesse. Ninguém faz nada de graça mas esclareça porque o interesse.... Se fosse parceria, eu ficava sabendo o que eles queriam.

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No primeiro relato, a análise da mulher do Sementinha é atravessada por uma avaliação crítica do trabalho daqueles que se aproximaram do grupo com interesse de “colher” e que depois foram embora, ficando mais altos do que eram antes, já que acrescidos do conhecimento que levaram das mulheres. “A atitude fica marcada” já que é percebida enquanto exploração , pois um sai mais alto do que o outro: “fica mais alto do que a gente e a gente continua aquela coisinha bem carente”. A situação é percebida também enquanto injustiça pois “se você plantou e você colheu, você também tem que levar” mas, no caso, quem levou foi a pessoa pois as mulheres continuam no nível que estão. Subjacente à avaliação há também uma certa expectativa em relação ao outro que se aproxima. Expectativa que é frustrada já que o outro vai embora, “fica mais alto enquanto elas continuam aquela coisinha bem carente, fica carente e com os carentes também”. Na perspectiva então colocada, a aproximação de pessoas de fora é percebida enquanto uma possibilidade de melhoria na situação das mulheres do grupo: a possibilidade de ficar mais alto, de não continuar mais “aquela coisinha carente” e de “não continuar mais no mesmo nível que está”. Se relacionada com a afirmação inicial do trabalho acumulado e do fato de gostar do “trabalho com comunidade carente”, a expectativa que permeia a fala da mulher do Sementinha, nos leva a pensar na afirmação de que se gosta do “trabalho com a comunidade carente” mas que se alimenta a expecativa de não “ficar carente e com os carentes também”. Mas as outras duas falas, não estão atravessadas pela expectativa em relação ao outro no que se refere à melhoria. A ênfase está mais na denúncia da relação desigual que marca a relação do grupo com profissionais que vem de fora. Na primeira, os dois lados da relação são qualificados:.”tem pessoas que trabalharam, foram embora e a gente viu que elas aprenderam muito”. Por um lado qualifica-se a aproximação das pessoas, como trabalho, e por outro afirmase o conhecimento que o próprio grupo possui: as pessoas “aprenderam muito” (com ele). A crítica não se faz ao que as pessoas vieram fazer - aprender- mas a forma como se dá a relação, ao fato de que os interesses não ficam claros- “eu falei, a pessoa vem de longe é com algum interesse. Ninguém faz nada de graça mas esclareça porque o interesse”. Existe a consciência de que as relações são atravessadas por interesses e há uma certa compreensão em relação a isto. O conflito se coloca quando estes interesses não são anunciados de forma clara. A este respeito, o curto comentário seguinte é expressivo quanto à necessidade de clareza no interesse do outro que se aproxima e aponta a diferença entre uma relação que já se inicia como desigual - sem que se saiba o que o outro quer - e uma relação de parceria, onde pelo menos os interesses são

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colocados com clareza: “se fosse parceria, eu ficava sabendo o que eles queriam”. Implícito no comentário, talvez esteja a idéia de que uma vez que não se sabe, porque eles não dizem, não é parceria. Certamente é exploração, enganação. Estranhamento Este explicitar dos interesses em jogo na relação com os mediadores é uma referência fundamental na percepção que os moradores da comunidade elaboram a respeito daqueles que se aproximam. Identificamos este elemento também na história do Movimento Sangue Novo. Mas aqui, considerando a diversidade de experiências dos atores em cena, as percepções são atravessadas por outras mediações, como por exemplo a militância político-partidária de alguns destes atores. Inciamos pela busca de pistas a respeito da forma como os moradores percebiam os militantes, num primeiro momento. Uma das moradoras da comunidade de Parque Proletário, nos conta como reagiram quando um grupo de pessoas se aproximou dos moradores:

“Aí quando começou a surgir um pessoal...E a gente desconfiado, né? Começou surgir aquele pessoal. O Marcelino, a gente já conhecia o Marcelino, né? Mas.não conhecíamos os outros...Aí veio a Luiza, veio o Marcelo, o Marcelo Dias, veio o Paulo Bahiense que hoje acho que ele é professor lá da Faculdade lá em Bangu. Veio a Marcinha, veio o Wellington, o Reinaldo...que era um dos pessoal mais atuantes. O PT estava sendo fundado naquela época, né? E a gente nem sabia nada de PT, que existia PT. Aí começaram a perguntar como era a luz aqui. Perguntaram pra gente se a gente sabia que isso podia mudar, a gente... não , que ninguém acreditava, porque era uma máfia, a comissão de luz...Aí a gente: “Não, a gente não vai poder fazer nada porque se não nós vamos morrer”.Porque tinha até polícia envolvida nessa comissão de luz, né? E a gente sempre amedrontado, né?.”

Relembrando o surgimento do pessoal, destaca a desconfiança com que os moradores o receberam. Na época, então, em sua percepção, o surgimento das pessoas foi percebida com estranheza já que não os conheciam. A avaliação dos moradores era feita inicialmente com base no conhecimento que tinham da localidade em que viviam. Conhecimento forjado no cotidiano que tornava possível a identificação dos que lá haviam nascido e lá moravam-e que por isso 267

eram seus “conhecidos”, como Marcelino, o único que já conheciam-, bem como dos estranhos. Mesmo que recebido com desconfiança, o “pessoal” indagou sobre a luz, sobre as possibilidades de mudança da situação mas a resposta é colocada com descrédito - “ninguém acreditava”. E ninguém acreditava porque a comissão de luz era “uma máfia” e “porque tinha até polícia envolvida”. Junto ao descrédito vinha o próprio conhecimento da dinâmica de poder presente nas instituições da comunidade _ associação de moradores e comissão de luz- e uma avaliação rigorosa dos limites que se colocavam a um fazer dos moradores diante da situação.- “a gente não.vai poder fazer nada porque senão nós vamos morrer porque tinha até polícia envolvida nesta comissão de luz.” Assim, ainda que estivesse posta a necessidade de possuir uma luz de qualidade e pagar menos por ela, se percebesse a não satisfação desta necessidade enquanto injustiça e exploração , não se podia fazer nada diante das relações de poder colocadas na comunidade. É neste âmbito que se compreende a afirmação de que os moradores estavam “sempre amedrontados”, como argumentação para o não acreditar e o não poder fazer nada. Frente à possibilidade de mudar, trazida pelos militantes enquanto reflexão, a negativa é colocada ao lado da afirmação do conhecimento que se tem da comunidade e das razões do descrédito e da não mobilização. Assim, enquanto os que se aproximavam acenavam com um reflexão sobre possibilidades de mudança, os moradores acenavam com o saber da história , a respeito da realidade em que viviam, produzido no âmbito da experiência que possuíam. No relato, a referência ao “pessoal”, um dos “mais atuante” vem junto também à alusão ao PT e ao fato de que nem sabiam “nada do PT”. A referência aqui já se faz baseada no curso posterior do Movimento, quando descobre que as pessoas eram do PT, partido que estava sendo fundado. Hoje, a lembrança do “surgimento do pessoal”, é marcada pelo reconhecimento de seu espaço de atuação - o PT, o que de certa forma traduz o fato que na visão dos moradores que participaram ativamente do Movimento, o PT atravessou o movimento através de seu “pessoal mais atuante”. Mas a desconfiança com que os moradores viam o “pessoal”, volta a se apresentar quando se dá a primeira reunião do Movimento e aí começa a se colocar a necessidade do explicitar dos interesses:

(...) Chamaram a gente pra uma reunião. Nós fomos, né? Foi pouca gente. Não foi muito não. Foi umas dez pessoas mais ou menos. A gente meio desconfiado...Aí perguntaram se a gente não gostaria que esse quadro fosse mudado. A gente ficou assim: “Como a gente pode mudar isso?”. Aí, eles: “Não, mas pode...Ficar reclamando dentro de casa é que 268

não vai resolver nada”. Aí eles começaram a alertar a gente sobre isso, né?(...) Eu ainda meia desconfiada, virei pro Paulo e falei assim: “Oh, desculpe a ignorância da macaca aqui, mas, o quê que vocês tão querendo?”. Aí o Paulo: “É, simplesmente a gente quer te ajudar, ajudar vocês...”. Eu falei: “Será que é só isso mesmo?” Porque eu falei, a gente não estava acostumado a receber nada assim, né? Apesar que não recebemos porque foi sacrifício.

A reunião esvaziada revela a própria desconfiança inicial e a descrença quanto às possibilidades de mudança.- “Como a gente pode mudar isso?”. E nem mesmo com a conversa que se sucedeu, quando “eles começaram a alertar”, a desconfiança desapareceu. A desculpa pela “ignorância” vem ao lado do questionamento em relação aos interesses daqueles que se aproximavam já que “não estavam acostumados a receber nada de graça”. Subjacente ao questionamento da moradora, estava a avaliação da própria experiência histórica da comunidade - não estavam acostumados a receber nada de graça e a aproximação de “estranhos” ocultava interesses, os quais ela procurava identificar através de seu questionamento. Dentro desta perspectiva, a desculpa pela ignorância apresenta-se enquanto aparente reconhecimento de um ignorar o que na verdade se sabia: que as relações de “estranhos” com a comunidade eram perpassadas por interesses, muitas vezes não colocados e que ninguém queria simplesmente “ajudar” - “será que é só isso mesmo?”. A frase final“apesar de que não recebemos porque foi sacrifício”, já atravessada pela experiência e conhecimento do percurso posterior do Movimento - vem confirmar sua avaliação anterior de que não recebiam nada de graça, uma vez que foi com o sacrifício dos moradores que se combateu a comissão de luz e se conquistou a luz da Light. Ela anuncia também a própria forma como a moradora percebe a participação da comunidade na luta e seu papel enquanto sujeito desta última. Assim, em seu relato, se de início, na base da desconfiança, estava o próprio desconhecimento que tinham em relação àqueles que se aproximavam, num segundo momento, na primeira reunião, quando a aproximação começa a anunciar um possível encontro, a desconfiança parece vir forjada na avaliação da experiência histórica da comunidade, não acostumada a receber nada de graça. Não nos parece que estejamos diante de duas percepções mediadas por elementos diferentes mas de uma, colocada de forma diferenciada, uma vez que em situações diversas. Assim, referenciando a desconfiança com que viam aqueles que se aproximavam, estava a vivência cotidiana na própria localidade, que fazia estranhar os estranhos, e a experiência da comunidade que ao longo de sua história, sabia da troca de interesses que envolvia a relação com estes. 269

Se, no relato da moradora, estes elementos aparecem separadamente, isto se dá em função da própria particularidade de cada situação. Num primeiro momento apenas se estranha aqueles que são desconhecidos mas ainda não há uma exposição , exposição do que se sabe, do que se duvida. É um espreitar, no qual se desconfia mas também se aguarda por novas pistas, na expectativa do que o outro tem a oferecer. Posteriormente quando se anuncia a possibilidade de trabalho em conjunto, a desconfiança se coloca de forma mais evidente, declarando-se o que se sabe, o que se duvida. É hora de começar a colocar as cartas na mesa. A produção da legitimidade e do espaço de atuação Esta desconfiança em relação aos estranhos, produzida a partir da própria vivência na localidade e da avaliação da experiência histórica da comunidade se recoloca na percepção de outro morador. Mas neste caso, desdobrou-se numa reação diferenciada. Em seu relato, o morador do Parque Proletário, que mais tarde se filiaria ao PT, conta como recebeu alguns dos militantes do partido, voltados para um projeto de mobilização comunitária e que trabalhavam pela candidatura de um ex-morador da região.

Eu ainda lembro que na época eu fiz uma ferrenha oposição. Eu nem queria saber. Estava jogando futebol, estava numa mesa de sinuca. Tinha um barzinho que a gente ficava depois que acabava o futebol, tomando uma cervejinha. (...) Falei aqueles protestos naturais de pessoa que não tem a menor noção da importância do que eles estavam falando. (...)Aí veio o Manoel Severino. Eu peguei eles numa reunião lá na rua. E falei:“Tá vendo? Não falei que era oportunismo de vocês? Vocês estão aqui por causa da candidatura deste cara aí. Eu vou votar no Miro Teixeira. Porque o Miro Teixeira foi na televisão e falou que se ele for eleito vai ter prioridade para as mães na fila do INPS. Então este cara está pensando na minha mãe porque quando minha mãe tem que levar uma criança no médico, ela enfrenta aquela fila (...) E aí a gente desestruturou a candidatura do Manoel Severino (...) E eles começaram a perceber o quanto eu tinha importância naquela rua. Eu consegui desestabilizar a reunião, conclamando voto para o Miro Teixeira. Alías, eu nem votei no Miro Teixeira. Acabei votando no Brizola. Foi em 82.

Em seu relato, quando relembra a reação na época, refere-se à avaliação que fez de que eles eram “oportunistas” porque estavam interessados em eleger seu candidato a vereador. A aproximação aparece como oportunismo , um interesse não legítimo já que movido apenas pela necessidade de eleger um 270

candidato do partido. Contraposto a este interesse, ele coloca os interesses da comunidade, em particular das mães da comunidade, que podiam ser contemplados pelo candidato de um outro partido - “se ele for eleito vai ter prioridade para as mães na fila do INPS. Então este cara está pensando na minha mãe porque quando minha mãe tem que levar uma criança no médico, ela enfrenta aquela fila”. Ele identifica sua reação como “uma ferrenha oposição”, um não querer saber, “protestos naturais de pessoa que não tem a menor noção da importância do que eles estavam falando”. Avaliação que faz hoje, baseada em sua experiência posterior no movimento comunitário e mesmo partidário, no próprio PT, onde militou durante alguns anos. Daí reavaliou o “que eles estavam falando”, reconhecendo sua importância. A forma como, anos depois, Marcelino percebe criticamente sua reação, aponta para sua juventude e o fato de não ter nenhuma experiência comunitária. Ele “nem queria saber”. Num outro momento do depoimento, relembrando a época em que foi cercado pelas pessoas, conta que tinha 23 anos e só pensava em namorar. No entanto, não seria o caso de interrogar também se a sua “ferrenha oposição”, seus “protestos naturais” não estariam referenciados na experiência e no conhecimento que os moradores da comunidade têm a respeito daqueles que estão envolvidos com partidos políticos? Ainda que jovem, e só pensasse em namorar, a experiência do viver na favela contribuía para que forjasse uma percepção da forma como esta era usada pelos políticos com fins eleitorais e sua desconfiança em relação àqueles que se aproximavam da comunidade. Mas podemos também tensionar seu relato, considerando o fato de que reconta a história ocorrida. Neste caso, interrogamos se subjacente a contraposição entre os interesses ilegítimos daqueles que se aproximavam de forma oportunista e os interesses da comunidade , possivelmente materializados no candidato que ele defende, não estaria também sua experiência e atuação comunitária posterior , quando destaca-se no âmbito do Movimento Sangue Novo e participa de outros movimentos na região, onde a disputa de poder se coloca?. Deste modo, a ênfase dada ao oportunismo e à contraposição de interesses, seria produzida do lugar da liderança moradora da comunidade que procura acentuar a diferença em relação aos que estão de fora, como forma de afirmar e justificar a legitimidade de seu lugar enquanto liderança política e a não legitimidade de outros. E neste sentido é que compreenderíamos também a última parte de seu relato quando conta como desestabilizou a campanha do candidato do PT, o que fez as pessoas começarem a perceber o quanto “tinha importância naquela rua”.

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Uma outra parte do depoimento do mesmo morador contribui para avançarmos nesta reflexão.

(...) E aí estava se discutindo a possibilidade da candidatura do Marcelo Dias para as próximas eleições que estavam vindo. Na realidade quem estava crescendo dentro do Movimento era eu. Mas na realidade, a gente começou a criar uma tendência natural: veio o Robson, Reinaldo, o Tiaozinho (...) Teve uma divisão natural. Lembro de uma reunião que a gente teve um embate (...) Aí eu começei a usar a artimanha da D.S.. Eu me reunia com a P.Penha, com estas pessoas primeiro, depois eu ia para reunião. Então, eu me lembro que a gente teve na Igreja para saber se o Movimento continuava ou não. A P.Penha começou a falar. E eu falei: “você tem que falar P.Penha”. Eu começei a incitar as pessoas contra o Núcleo do PT. E aí eu me lembro que cada pessoa do morro que falava (...), quando falava eu fazia assim..... O Marcelo: poxa, você está incitando o povo contra gente. E eu: não, eu estou vibrando porque as pessoas agora estão se posicionando, é bem diferente. Não tem mais aqui manipulação. As pessoas pensam também, o que é importante para a comunidade. Porque a gente não fazia, a gente não deixou a comunidade pensar. Daí sempre se manobrava tudo. Tinha que compor comigo porque eu estava desperto ali, eu observava. Começei a protestar cedo.

Aqui, de forma mais clara, a contraposição de interesses se coloca referenciada nas relações de disputa de poder, e dos tensionamentos com mediadores, aqui representados pelos militantes do PT. O morador destaca a conjuntura em que se discutia a candidatura de um militante do PT e coloca-se como contraposto, numa “tendência natural”, como aquele que crescia no Movimento e forjava-se enquanto liderança. A contraposição apresenta-se aqui enquanto uma divisão natural que opunha a tendência natural, criada por ele e outros da comunidade, aos que atuavam no Núcleo do PT, de onde se manobrava e manipulava o Movimento. É neste âmbito que se coloca com uma pessoa que “incitava” as pessoas “do morro” a se posicionarem. Dentro desta perspectiva, o relato revela dimensões interessantes do movimento pois traduz a disputa que se deu já no período final do Movimento e que foi levantada por alguns de seus participantes como uma das razões para sua desarticulação. Não é nossa intenção aqui investigar as tramas desta disputa pois faltam-nos elementos para isso. Considerando a potencialidade do depoimento tomado isoladamente, nosso interesse recai sobre a forma como 272

produz uma percepção que contrapõe o seu lugar, forjado na “tendência natural” do Movimento, ao lugar dos militantes do PT, produzido no âmbito do Núcleo. Arriscamos. Pensamos se tratar de uma visão forjada a partir de sua experiência de vida na comunidade, que como consideramos apontava para o uso da comunidade para fins eleitorais, mas que é redefinida ao longo de sua experiência enquanto militante no Movimento e no próprio PT, e também enquanto liderança comunitária. Se esta redefinição implicou o reconhecimento da importância das questões colocadas pelo militantes do PT, como vimos no outro relato, ela trouxe também um acirramento da contraposição comunidade/militância partidária, fundamentada agora na forma como experimentou sua vivência dentro do Movimento e do PT, e não mais como “um protesto natural da pessoa que não tem noção da importância do que eles falavam”. Porém, em que medida esta forma contraposta de conceber a relação entre comunidade e os mediadores, redimensionada em meio a disputa política pelo poder, contribui para produzir e afirmar a legitimidade da liderança e ao mesmo tempo, para nela centralizar a dinâmica do movimento, acentuando a dimensão da representação dos interesses da comunidade, em oposição àqueles, aos quais se atribui o fato de não representar os interesses desta? Aqui, a visão elaborada a respeito da liderança comunitária e também daquelas que não o são, se produziria no âmbito da disputa de poder, recuperando elementos da própria experiência histórica da favela diante dos mediadores. Mas se para alguns a produção da legitimidade no Movimento e o lugar de mediação ou liderança indicam como referência a vivência na comunidade, no relato de alguns outros, a legitimidade pode recair sobre elementos que muitas vezes não passam pela comunidade. Um ex-morador, militante do PT, avaliando o descrédito inicial das pessoas, especialmente mais velhas, em relação à luta pela luz da Light, nos aponta algumas pistas:

Eles não acreditavam porque nunca tinha havido um movimento de massa na Vila Cruzeiro e no Parque Proletário. Porque os dirigentes da Associação de Moradores, com todo carinho e respeito que nós temos por eles...Eu, no meu caso, eu discutia Polônia. Eu participava de um Partido que queria lutar contra o capitalismo. Tínhamos o núcleo do PT na comunidade. O Sr. Raimundo era seguidor do Brizola. Tinham jovens ali que faziam teatro, ballet. Então, era uma juventude que tinha uma cabeça aberta. Nós nunca tínhamos tido isso. Os velhos dirigentes tinham uma visão muito limitada da luta comunitária. Era uma visão só dali da comunidade, como infelizmente é até hoje. Até hoje, se você 273

for nas associações de moradores, você vai ver que o pessoal não discute em termos de FAFERJ, Federação. Não discute em termos desta Central de Movimentos Populares. Não discute em termos do movimento macro, ficam muito limitados ali na comunidade, brigando pelo calçamento do beco, para conquistar uma creche para sua comunidade, conquistar a água para comunidade. Então, o movimento sempre foi assim, muito limitado. Nós não. Nós chegamos com idéias, com garra, chegamos com vontade de mudar. (...) Tinham pessoas de fora também que traziam idéias novas para o Movimento.

No descrédito das pessoas em relação ao Movimento, ele destaca inicialmente o fato de nunca ter havido “um movimento de massa” na Vila Cruzeiro e Parque Proletário. E na explicação para a inexistência do “movimento de massa”, avança parecendo trazer uma contraposição entre velhos dirigentes, com uma visão limitada da luta comunitária, e jovens militantes, com uma visão mais ampla, bem como com garra e vontade de mudar e o apoio de pessoas de fora. A percepção aí colocada nos sugere a idéia de que a diferença podia se fazer em função das gerações diferenciadas de velhos dirigentes e novos militantes. Mas em seguida, ele nos esclarece a respeito:

A Associação de Moradores é dirigida por jovens. Eu acho que não tem ali ninguém com mais de trinta anos. E eles também estão se perdendo ali nesta questão miúda, interna. Porque o que eles lutam, são coisas serissímas. Eles lutam pela água, para acabar com as valas negras a céu aberto na comunidade, pelas creches. Mas eles não saem de dentro da favela. Eles acham que vão conquistar alguma coisa ficando ali. Não procuram ampliar seu raio de ação. Então, a sorte que nós tivemos foi que tivemos contato com pessoas que vinham dos movimentos (...). Então, a gente teve a felicidade, a sorte de fazer contato com pessoas que tinham uma visão de mundo mais ampla do que a nossa, que queria mudar esta sociedade. Então, nós nos formamos sem muita leitura de livros mas na prática, na participação, a gente foi se formando, fomos criando uma consciência da contestação. Então, eu acho que este contato com o público externo, com a militância que não era da comunidade, contribuiu. É claro que se eles não estivessem lá dentro, eu acredito que a gente também teria uma evolução na nossa luta. Mas eu acredito que este contato nos ajudou.

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O que pode sugerir uma diferença de gerações, é explicitado em seu relato quando destaca que a Associação é dirigida por jovens mas que, como os velhos dirigentes, também se perdem na “questão miúda”, “interna”. Na verdade, o que se coloca não é uma diferença de gerações mas de visão e prática política. Enquanto, os dirigentes da Associação não saem de dentro da favela, não procuram ampliar seu raio de ação, achando que vão conquistar alguma coisa ficando ali, os militantes do Movimento Sangue Novo tinham contato com outras informações, com pessoas que possuíam uma visão de mundo mais ampla do que a deles, que queria mudar a sociedade. A partir daí, foram criando uma “consciência da contestação”. Os dirigentes da Associação produzem-se pois, dentro da comunidade, sem ampliar seu raio de ação. Enquanto os militantes do Movimento Sangue Novo, forjam-se no contato com pessoas que vinham de movimentos mais amplos e que tinham uma visão de mundo também mais ampla, que queriam mudar a sociedade. É neste âmbito que criam uma “consciência da contestação” que aparece contraposta à visão limitada dos dirigentes da Associação. Assim, a relação com os movimentos que se davam fora da localidade e o contato com o “público externo” apresentam-se com fundamentais na formação destes militantes enquanto mediadores e lideranças, diferenciando-os dos demais, e favorecendo a constituição do Movimento enquanto um “movimento de massa”. E, ainda que finalize que haveria uma “evolução na luta”, mesmo sem o “contato com o público externo”, a ênfase do relato do morador recai sobre este último. Considerando sua avaliação como um todo, nos parece que, em sua percepção, sem o contato, a evolução se daria no sentido de limitar-se a “questão miúda”, interna, e o Movimento não configuraria-se como um “movimento de massa”. Subjacente a sua interpretação está a própria prática acumulada no âmbito do movimento comunitário e do PT, bem como as relações travadas com pessoas que vinham do movimento, como ele mesmo anuncia e, também a experiência enquanto liderança político- partidária. A reflexão que ele traz abre possibilidade para que consideremos que a legitimidade de lideranças do movimentos reside na sua articulação com lutas mais amplas, que ultrapassem a localidade. E, pontualmente, ela nos leva a concluir que, em sua percepção, a possibilidade do Movimento Sangue Novo afirmar-se enquanto movimento de massas, bem como a legitimidade de seus líderes, é forjada no universo de relações externas, aqui contrapostas ao local. Mais do que apontar o desafio que atravessa os movimentos comunitários, de ultrapassar a localidade, seu relato vem atravessado pela idéia da determinação dos agentes externos e das relações produzidas no âmbito do Partido e dos movimentos mais amplos da sociedade, no que se refere à construção de um 275

“movimento de massa”. Dentro desta perspectiva, é colocado um padrão de construção do movimento comunitário, onde terminam por aparecer contrapostas as lutas locais e os movimentos mais amplos, já que o acento recai sobre esta última, sem que se aprofunde sobre os tensionamentos imbricados na dinâmica da favela. Nesta construção, o papel da liderança comunitária estaria em trazer os movimentos mais amplos para localidade, percebida enquanto limitada, e levá-la para além das questões miúdas. Deste modo, interrogamos se não seria o caso da reprodução de uma contraposição entre a localidade e o universo da sociedade, trazido pelos mediadores? Contraposição, desta vez colocada através da afirmação da liderança que cria uma consciência da contestação, forjada no partido e nos movimentos mais amplos, e da atribuição do fluxo do movimento às mediações produzidas no âmbito mais geral da sociedade. Existem, porém, percepções dissonantes que indicam outros caminhos. Uma ex-moradora de favela, militante do PT e de movimentos populares, que integrou o Movimento Sangue Novo, avalia:

(...) Quer dizer, quando o pessoal fala que o favelado é alienado, acho que essa é uma coisa que a gente tem que lutar ainda muito para tirar esta estigmatização que acontece porque o que tem de energia para você continuar vivo num ambiente que é tão hostil, assim, muito hostil. Você tem que disputar a educação do teu filho com a sedução do traficante.(...) Então, o teu sonho, acho que pode ser que nosso sonho seja modesto. Mas não dá para chamar de alienado quem sonha modestamente porque para quem está sonhando, não é nada modesto. Então, para gente, ter água potável que saia pela torneira é tão importante como ter, para mim agora... Eu era louca por um videocassete mas eu fui comprar no ano passado. E aí chamar este setor de alienado? Mas não é mesmo. Ter de conviver com toque de recolher...Até tal hora, tu está garantido, chegou tal hora,tu não sabe mais. Aí tem que dormir na casa dos outros ou então tu acordar com defunto na tua porta. Tem que ter uma estrutura, acho que até embrutece um pouco a gente, acho que é natural (...)o preconceito é muito doloroso. E ele é quase invisível. Falam assim: ah lá quem mora na favela é um bando de lumpen. Na época, eu fiquei tão revoltada. Antes disso, o papo já tinha rolado. Então fui pesquisar mesmo, o que era lupem segundo Karl Marx. Porque aí que eu te falo que tem que ir na linguagem deles. Acho que a gente não pode abrir mão da nossa mas tem que crescer, tem que se apropriar mesmo do conhecimento adquirido da sociedade. Você não pode não ter acesso a esta produção de conhecimento, tem que ter acesso. Agora, não é abrir mão do teu, não pode perder a identidade. Se não você se dilui, e a 276

maioria se dilui. Muita gente que era deste setor hoje não é ninguém, perdeu totalmente. Eu nunca fui uma militante de..., nunca gostei de estar militando entre quatro paredes. Eu sempre gostei de estar no movimento vivo. O que está vivo hoje no Rio de Janeiro não é o movimento sindical, não é o popular, é a cultura, é o funk, o que tem de mais vivo. Por isso que eu estou no funk. É cheio de vida

O primeiro depoimento ao trazer uma crítica à estigmatização sofrida pela favela, aponta questões presentes na dinâmica interna da mesma, indicando-as como caminho para desconstruir o preconceito que denuncia. Subjacente ao tensionamento feito entre a alienação imputada ao favelado e à vigência de seus sonhos, “nada modesto”, está uma percepção que procura contemplar elementos do universo da favela. No segundo relato, retorna à questão do preconceito, mostrando um caminho para desconstruí-lo - “então fui pesquisar mesmo, o que era lupem segundo Karl Marx. Porque aí que eu te falo que tem que ir na linguagem deles”. O acesso ao conhecimento, à “linguagem deles”, apresenta-se como uma forma de instrumentalização nesta desconstrução. Ir à linguagem deles, significa ir na linguagem dos mesmos que estigmatizam o favelado, chamando-o de lupen. Mas esta busca não vem sózinha - “ não é abrir mão do teu, não pode perder a identidade”, pois o confinamento a ela pode significar a perda da identidade e a “diluição”- “muita gente que era deste setor hoje não é ninguém, perdeu totalmente”. Possivelmente, o conhecimento do qual não se pode abrir mão é aquele que se refere a sua própria experiência histórica de vida, o conhecimento produzido a partir da experîencia de subalternidade. Conhecimento que é também reelaborado a partir da apropriação de um novo saber que acessa, e de onde reflete sobre a dinâmica da favela, problematiza o estigma que lhe é imputado e busca caminhos da compreensão do sonho chamado “modesto”. Mas outras pistas sobre o conhecimento do qual não pode abrir mão, vêm também no último depoimento quando refere-se à militância no “movimento vivo”, fora das quatro paredes. É neste âmbito que produz e reelabora o conhecimento que afirma não poder abrir mão, avalia o movimento sindical e popular, e que aponta o lugar da potencialidade do “movimento vivo” - “o funk”. Em sua percepção, a formação daquele que está identificado com o movimento de favelas é construída no caminho que articula a experiência de “estar” no “movimento vivo” com a apropriação de um conhecimento que 277

possibilita “crescer”- saber adquirido da sociedade. É deste caminho que é possível perceber os tensionamentos que atravessam o movimento de favelas. E é desta forma que se garante também o não abrir mão do conhecimento forjado em sua experiência histórica, é que se garante a identidade. Aqui a contraposição comunidade/sociedade é reelaborada, produzindo uma forma de construção do movimento e de formação de militante, onde o que está em jogo é o próprio fluxo do movimento social, no qual comunidade e sociedade estão colocados numa relação dinâmica e recíproca. Assim, é no âmbito deste fluxo que os sujeitos se constrõem e a luta se forja. Nesta reflexão sobre a forma como se produz, e se percebe a mediação, outra participante do Movimento, moradora do Parque Proletário, nos indica mais pistas a respeito da relação entre o conhecimento adquirido e a própria luta que desenrola.

(...) Realmente ninguém nos deu nada. Eles nos orientaram, mostraram a fórmula da gente fazer, e que acho que isso também é importante. Eu costumo falar isso para eles, que às vezes a gente não faz o bem dando. Porque eu não acho que minha amiga é alguém que me bajula. Não. Acho que meu amigo é aquele que me diz coisas duras, que às vezes me machucam mas depois eu vou analisar e eu vou ver que aquilo ali é que é o certo, que ele está falando aquilo porque ele gosta de mim. (...) Então aqui, a gente costuma passar para eles que nem sempre aqueles que estão dando de mão beijada, está ajudando, entendeu? Às vezes, aquele que está ensinando, aquele está ajudando muito mais porque está ensinando como vai fazer, né? Por que a gente sabe que nada na vida é ganhado fácil, a gente não ganha nada de mão beijada. Às vezes: “ah, vamos entregar na mão de Deus!”. Eles nos ajuda muito mas a gente também tem que procurar se ajudar, batalhar porque se não batalhar, nada chega, nada cai do céu.”103 (...) A gente não entendia nada de movimento... Aí nós fomos saber o que é um movimento: não tinha líder o nosso movimento. Todo mundo liderava, era a união que a gente tinha. A gente fazia reunião. A gente procurava conversar, ver os acertos, né? Porque havia brigas, como tudo porque ninguém sempre concorda, é obrigado a concordar sempre um com outro (...) Porque ali não tinha um : eu mando, você manda. Não. Ali todo mundo expunha as suas idéias, sabe, era respeitado, às vezes nem concordava, mas respeitava, se discutia...

103A

moradora comentava anteriormente o descrédito aos moradores da comunidade em relação aos políticos. Por isso, quando fala “eles” na afirmação “a gente costuma passar para eles”, está se referindo aos próprios moradores.

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A primeira análise inicia-se por uma avaliação sobre o Movimento, onde está colocado como a moradora percebe os mediadores, no caso os militantes do PT, adentra por uma reflexão mais geral, da forma como se processam as relações na vida, em particular com os amigos e, retorna a mais uma avaliação do campo político, da forma como se dá a relação da comunidade com os políticos. O que se destaca em sua análise é a dimensão de orientador que percebe no outro , seja o outro mediador político, seja o amigo. Dimensão destacada como importante. Orientação pode significar aqui, “mostrar a fórmula”. E pode significar também não bajular e sim dizer coisas duras, que às vezes machucam mas que uma vez analisadas podem se mostrar certas e abrir espaço para que se perceba o interesse do outro, no caso o “gostar”. Orientação pode ser ensinar como vai fazer e não dar de mão beijada. Na análise da moradora a avaliação do movimento e das relações pessoais se imbricam, demonstrando o quanto estas dimensões se cruzam na forma como elabora sua visão de mundo. A experiência do movimento comunitário, fertiliza a compreensão da vida, de forma geral, ao mesmo tempo em que esta última ilumina a própria reflexão sobre o movimento comunitário. É através deste dois eixos, articulados- experiência comunitária e de vida-, que a moradora avalia que “nem sempre aqueles que estão dando de mão beijada estão ajudando”. Em certo sentido, revela-se aqui a farsa destes pois, “se nada na vida é ganhado fácil”, “de mão beijada”, eles não estão fazendo o que parece, e não estão ajudando. Revela-se também o engano de “entregar na mão de Deus” porque nem mesmo ele pode ajudar sem que se procure batalhar, já que nada cai do céu. Nesta perspectiva, ajuda muito mais o que “está ensinando” “porque está ensinando como fazer”, e não fazendo pelo outro. Mas se em sua percepção, o mediador apresenta-se como o orientador , aquele que ensina como fazer , como na ação aparece o conhecimento daqueles que são orientados? A moradora nos dá pistas quando avalia a experiência do Movimento Sangue Novo. Conta que aprenderam o que era um movimento e que ali não tinha líder, não tinha um que mandasse, havia era uma união, onde havia brigas também mas onde todo mundo expunha suas idéias e era respeitado. Assim, em sua visão se a orientação implica em ensinar, mostrar a fórmula, não significa a anulação e o desrespeito pelas idéias do outro. Não significa também que haja líder, um que mande. Em sua concepção de orientação, há espaço para que todos exponham suas idéias, discutam e briguem, já que a concordância não é obrigatória. Se a orientação revela-se

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como importante, a união e o respeito pelas idéias do outro apresentam-se como fundamentais para que esta orientação se dê, tal como é concebida. Mas ela nos aponta ainda uma outra questão que vem redimensionar nossa reflexão sobre os mediadores. O seu depoimento traz uma avaliação do mediador que é o outro, mas vem permeado também por sua imagem enquanto mediadora. É assim que podemos compreender o fato de incluir-se entre aqueles que costumam “passar para eles que nem sempre aqueles que estão dando de mão beijada, está ajudando” e que “às vezes, aquele que está ensinando, aquele está ajudando muito mais porque está ensinando como vai fazer”. Mais uma vez aí, a experiência comunitária e de vida se colocam, agora produzindo sua imagem enquanto mediadora, na comunidade. Mas como ela se forja? Uma outra passagem de sua entrevista vem nos auxiliar nesta reflexão. O primeiro relato refere-se à relação da comunidade com os políticos, o segundo fala de sua experiência como agente de saúde e o último diz respeito à Associação de Moradores.

(...)porque as pessoas não entendem o que é uma função de deputado. Ele tenta explicar, eu tento explicar, porque eu já entendo mais um pouquinho. Mas às vezes as pessoas acham que a gente está puxando o saco, entendeu? Por não entenderem e às vezes eles também não fazem muita questão de entender que eles acham assim se a gente for batalhar...É gente que tem a vida dura, que se eles não forem batalhar, eles não têm nada, porque ninguém dá nada à ninguém, realmente. Se a gente for pensar nisso e esperar, ninguém dá (...) Não pude chegar onde que eu queria chegar mas eu estou satisfeita. O meu sonho era ser assistente social porque eu sempre gostei, assim, de lidar com as pessoas, sabe, é...poder ajudar e eu acho que um assistente social, eu acho que ela ajuda muito as pessoas, informando. Então eu não pude realizar meu sonho, né, mas fui ser agente de saúde (...) procuro orientar, sempre que eu posso, sempre que as pessoas tem alguma dúvida, procuro orientar no que eu sei, no que eu posso ajudar, conversar, às vezes sou até um poquinho psicóloga, sabe? Porque de vez em quando, você tem que escutar os problemas, você tem que conversar, entendeu? (...) Eu acho que é uma panelinha. Se você não entrar naquilo ali, você está fora e eu jamais, no meu modo de ver, eu ia aceitar participar de panelinha. Eu gosto de ver as coisas certas. Se é um troço para ajudar, que é para fazer, então vamos fazer, entendeu? E eu acho que eles estão por outro caminho. Então, eu prefiro nem esquentar minha

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cabeça. Vou fazendo o que eu posso fazer, individualmente. Aí, vou tentando ajudar, sabe? Se for precisar de mais gente, eu chamo. Se for para pedir alguma coisa, se for preciso pedir pelos outros, eu vou. Eu tinha vontade que aí tivesse uma associação que ajudasse mesmo.

Referindo-se à falta de entendimento das pessoas em relação à função do deputado, e ao fato de não fazerem questão de entender, já que acham que se não forem batalhar não tem nada, a moradora destaca que procura explicar, porque entende mais um pouquinho. Aqui, a experiência no movimento comunitário, e em particular as relações desenvolvidas no âmbito do PT, ao qual foi filiada por algum tempo, colocam-se como referência ao seu entender mais um pouquinho. É dentro deste âmbito que apresenta-se mediando as relações entre o “universo da política” - aqui representado na figura do deputado-, e da comunidade que não entende ou resiste ao universo político. O segundo relato nos mostra que seu sonho de ajudar as pessoas torna-se possível, não como assistente social, aonde não pôde chegar, mas como agente de saúde. Como agente de saúde, procura orientar no que sabe e, às vezes acaba sendo um pouquinho psicóloga, conversando e escutando. Mais uma vez, a imagem de orientar se coloca, desta vez, qualificando sua relação com as pessoas com as quais se relaciona através do trabalho como agente de saúde. Orientar é uma prática que ela procura, definindo seu campo de possibilidade no âmbito do que sabe mas redimensionando-o também quando conversa e escuta, ampliando uma orientação pontual da agente de saúde. No último relato, subjacente a sua reflexão sobre a Associação de Moradores, está a denúncia das regras de participação na panelinha que ela não aceita, tendo em vista “seu modo de ver”, e uma referência do que são as coisas certas que se contrapõem ao caminho seguido pela “panelinha”. O caminho das coisas certas.é o da ajuda, da ajuda onde se faz. E é este caminho que ela procura seguir individualmente, ajudando, e se for preciso, chamando mais gente. Caminho da ajuda que ela gostaria que a Associação de Moradores trilhasse. Criticando e não aceitando as regras da política, busca um caminho próprio de atuação, onde se forja enquanto uma mediadora, seja como aquela que explica, orienta, conversa e escuta, ou ajuda, de forma mais geral104. Um caminho próprio que lhe permite conciliar a atuação na comunidade com a 104A

referência às regras da política procura contemplar aqui o próprio jogo de poder na Associação, ao qual ela faz referência, e ao jogo político partidário, do qual a moradora se aproximou através de sua experiência no PT e através das relações que manteve com seus militantes.

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vivência de mãe, mulher e dona de casa. Atravessada por sua experiência histórica, pessoal e política, conhecendo as regras do mundo político, constituise como mediadora no local onde vive. Distingue-se na comunidade pela prática no movimento comunitário e partidário e pelo saber aí acumulado, mas aproxima-se dos moradores pela experiência histórica comum de subalternidade. Diferencia-se da liderança política comunitária, pela crítica e não aceitação do que se produz na “panelinha”, mas aproxima-se pelo conhecimento do jogo político. É no âmbito desta encruzilhada de referências, forjadas em sua história, que produz seu caminho de atuação comunitária enquanto mediadora política , seja em seu trabalho como agente de saúde ou como moradora que compartilha os problemas dos vizinhos e os ajuda, seja como aquela que articula relações entre a comunidade e o “universo político”. A sua experiência nos leva refletir sobre a produção dos mediadores. Se ao longo da luta, surgem os mediadores políticos, que reconhecemos enquanto tal- partido, Igreja, entidades civis- , em que medida no percurso da luta, não se forjam também novos mediadores na comunidade, indicando uma construção que rompe com oposições bem definidas entre agentes externos mediadores/atores internos- comunidade? Imagens da Pastoral de favelas Temos visto a percepção daqueles que fizeram a história do Movimento Sangue Novo, dando ênfase às visões elaboradas a respeito das lideranças e mediadores. São questões que nos remetem à teia que articula os atores do movimento à inserção político-partidária de alguns deles. Este nos parece um elemento fundamental que atravessa a história do Movimento. Mas na trama relatada, por alguns de seus participantes, há a referência a outro mediador, também presente na história do Sementinha e, como veremos, nas lutas da favela do Grotão. Trata-se da Igreja, mais pontualmente a Pastoral de Favelas da Igreja Bom Jesus

A Igreja Católica dava o apoio a partir do momento que ela abria espaço para a gente se reunir. Mas os padres não se envolviam diretamente. Eles abriam o espaço. (...) A Pastoral de Favelas foi fundamental na vitória do Sangue Novo mas porque deixava a gente dar informe na missa. Ela cedia espaço para as reuniões da gente. Aí na missa, na São Vicente de Paula, que reúne centenas de moradores, a gente dava informes.

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Era legal mas não era uma relação assim... A gente teve alguns problemas. Na hora do enfrentamento quem falava mais alto era a Igreja mesmo. No caso do Sangue Novo, tinham algumas pessoas que eram da Pastoral de Favelas: era eu, Rita Serpa, o Davi. Aí a gente fazia a ponte porque a Pastoral de Favelas reunia todas as favelas do Complexo da Penha e do Alemão.(...) Trocar idéias, a Pastoral de Favelas meio que permitia isso mas isso sem interferir.(...) Ela não era como a Pastoral da Terra que era muito mais corajosa. A Pastoral de Favela era muito medrosa. Ela só refletia os problemas da comunidade. Ela não tinha nenhuma linha de ação. Eles não incentivavam isso.

O primeiro relato traz uma questão recorrente nos vários depoimentos : o apoio da Igreja, do ponto de vista espacial. A Igreja Católica fornecia o espaço para as reuniões do Sangue Novo, fosse na Igreja Bom Jesus, onde eram realizadas as reuniões do Jornal Com a Boca no Mundo , fosse na Capela São Vicente, no alto do morro, onde eram feitas as reuniões do Movimento como um todo. Já no segundo depoimento, o apoio da Igreja, através da Pastoral, vem não só através da cessão do espaço para as reuniões mas também da abertura do espaço da missa , onde os moradores estavam reunidos, para que os informes e as reivindicações do Movimento fossem colocadas. O primeiro relato traz também aquele que possivelmente se tornará um dos pontos de conflito entre a liderança do movimento e a Igreja: “os padres não se envolviam diretamente”. Ainda que cedessem espaço, o limite do envolvimento deles era colocado. Tal questão reaparece no último depoimento quando destaca-se a existência de “alguns problemas” e do fato de que “na hora do enfrentamento quem falava mais alto era a Igreja mesmo”. O limite é então colocado na própria Igreja, na inserção dos padres que lhe davam apoio no âmbito da própria instituição. As potencialidades e o limite da instituição voltam no último relato. A Pastoral de Favelas permitia a troca de idéias já que reunia as favelas do Complexo da Penha. A atuação de alguns dos integrantes do Movimento na Pastoral era um dos elementos que possibilitavam a articulação do Sangue Novo com outras lutas desenroladas nas favelas do Complexo, como o Grotão. No entanto, ainda que permitisse a troca de idéias, a Pastoral não interferia, “era muito medrosa”, só refletia sem ter nenhuma linha de ação e sem incentivar a ação. As avaliações são produzidas no âmbito da militância político-partidária destes atores, da atuação de alguns deles nas atividades desenvolvidas pela Igreja e da própria experiência de conflito com a Pastoral. Subjacentes a elas, 283

vêm tanto a expectativa por uma atuação mais radical da Pastoral, quanto o ceticismo no que se refere às possibilidades de que esta pudesse se realizar. De forma geral, nas avaliações, o apoio da Pastoral se coloca apenas enquanto pontual - ceder espaço - uma vez que seus limites eram dados pela própria Igreja que falava mais alto. Examinados em conjunto, elas traduzem um dos atravessamentos contraditórios da atuação da chamada ala progressista da Igreja Católica nas favelas e das relações por ela desenvolvida. A sua inserção diferenciada no âmbito da instituição, através do desenvolvimento de uma proposta políticosocial voltada para a “libertação do povo”, por um lado tornava possível a aproximação com as lutas populares, no caso citado com a “cessão do espaço” da Igreja, a troca de experiências nas várias favelas e a potencialização da missa através da sua resignificação à luz da realidade da comunidade. Por outro lado, esta mesma inserção produzia determinadas expectativas, por parte daqueles que militavam no movimento popular, e cobranças vindas da ala conservadora da instituição, colocando-a no meio do conflito. Na história da favela do Grotão, há também um destaque dado à Igreja, no relato de uma moradora, participante das atividades desenvolvidas pela Patoral de Favelas. Ainda que seu depoimento seja o único que enfatize a atuação da Igreja Católica na história, ele nos parece significativo a respeito do papel por ela aí desempenhado e, especialmente, fornece-nos pistas da percepção de moradores ligados à Pastoral, no que se refere a seu trabalho.

Porque nós aqui, a nossa vantagem foi o seguinte: porque a Igreja nos deu um apoio assim de orientação. Então nós tínhamos um círculo bíblico, que nossos problemas todos da comunidade eram discutidos dentro do círculo bíblico. Não era só na Associação, sabe. Então, no círculo bíblico a gente fazia oração, a gente comentava lá a nossa religião mas ali dentro nós plantávamos a nossa reivindicação. O que a comunidade precisava, o que que a gente tinha que fazer, como que a gente tinha que chegar lá e acolher as idéias dos que participavam. E sempre, como eles diziam que nossa casa era maior, sempre era lá em casa ou aqui na casa de meu sogro. Então, por aí, foi quando nós começamos a fazer grupos pra ir pra secretaria, dar a luz- a luz nesta época já estavam começando a botar os poste, a água. (...)aquilo que fez a gente se unir foi por intermédio da Igreja. Nós tínhamos muitos encontros. Nós tínhamos um encontro de três em três meses, com todas as comunidades, feito pela Igreja. E que a gente levava, 20, 30, 40 até 50 pessoas de cada comunidade. Então aquela reunião, aqueles encontros que nós fazíamos, era de três em três meses. Então foi o que fez a gente conhecer, a gente poder discutir tanto os 284

nossos problemas do Grotão como problemas da Vila Cruzeiro, Parque Proletário, Merendiba e outras comunidades. (...)só que para chegar lá, fazer reivindicação lá, claro que os padres não podem, né, porque você vê, nós temos um bispo aí que ele não admite. Tanto que nós agora, toda comunidade carente não pode ter mais padre. Os padres não podem mais morar na comunidade. O nosso aqui vai embora.

No relato da moradora, o apoio da Igreja é colocado enquanto orientação, concretizada através do círculo bíblico onde se discutiam os problemas da comunidade, faziam-se orações ao mesmo tempo que plantavam-se as reivindicações - o que se precisava e as formas de mobilização e atuação-. É visto como um espaço de discussão e mobilização, tal como a Associação. Mas este apoio Igreja fazia-se sentir ultrapassando o âmbito da comunidade já que através de seu intermédio, uniam-se a outras comunidades, conhecendo assim, não só os problemas do Grotão, mas também de outras comunidades. Aqui, como no depoimento de um integrante do Movimento Sangue Novo, há a referência ao fato de que através da Igreja tinham contato com outras comunidades. Na história contada pela moradora, as referências à Igreja Católica se destacam, seja enquanto apoio pontual em uma situação de impasse, como veremos mais adiante, seja como um agente aglutinador na favela e entre as comunidades. A avaliação apresenta-se permeada por sua participação no movimento comunitário e as relações aí desenvolvidas com a Igreja. É daí que a percebe como fundamental na mobilização comunitária e na troca de experiências com outras favelas. Mas no relato existe também a percepção de que este apoio dos padres da Igreja era limitado uma vez que não podiam fazer as reivindicações porque “o bispo não admite”. O reconhecimento do limite vem permeado pela constatação da hierarquia que se impunha e que tornava os padres submetidos às ordens do bispo. Assim também, é explicado o fato de que as comunidades carentes não podem ter mais padre. Parece haver uma legitimização do fato dos padres não poderem fazer reivindicação - “claro que os padres não podem, né”- já que há o “bispo não admite”. Algumas questões nos chamam atenção na forma como a moradora percebe os limites da atuação dos padres. Aqui, como no caso examinado do Sangue Novo, o limite é colocado no âmbito da própria Igreja mas diferentemente dos militantes do Movimento, a moradora não o coloca em termos de crítica à prática dos padres. Parece-nos que enquanto a percepção de 285

alguns militantes do Movimento Sangue Novo é perpassada por uma crítica que avalia a atuação da Igreja à luz de um projeto de mudança social que ela anuncia e que apresenta pontos comuns com as propostas da militância, a interpretação da moradora do Grotão é pontuada por uma análise da prática realizada pela Igreja, tendo como referência não só a sua vivência no âmbito da Igreja mas a experiência histórica elaborada no que se refere à atuação de outros padres. Assim, na avaliação da prática dos padres, enquanto o referencial da militância se situaria naquilo que a Igreja poderia desenvolver, ou seja na própria noção de projeto que aponta para o futuro, e daí a denúncia de seus limites, a base de análise da moradora estaria naquilo que a Igreja vinha sendo, isto é na experiência passada da Igreja que ela conhecia e por isso, a ênfase no apoio por ela prestado em termos da mobilização comunitária. Mas os relatos da moradora nos sugerem outros impasses. A legitimização da não participação dos padres nas reivindicações e a constatação da hierarquia católica possivelmente se dá em função do seu próprio contato com as argumentações dos padres. Mas não poderia ela também indicar pistas de uma visão dos moradores a respeito do trabalho que cabe aos padres dentro da luta comunitária? Sensibilizar-se diante dos problemas da favela, apoiar nos impasses, favorecer a discussão e possibilitar a troca de experiência seria seu trabalho. Mas reivindicar, ir para o enfrentamento nas secretarias, e outras instituições públicas, caberia a eles? Os moradores aceitavam a hierarquia da Igreja como mera fatalidade? Ou esta hierarquia, encontrava ressonância na própria percepção que os moradores tinham a respeito do trabalho que cabia a cada um? E assim a dimensão hierárquica era resignificada diante da própria experiência histórica de vida dos moradores e da forma como a elaboravam? A presença direta dos padres no espaço das reivindicações não significaria dessacralizar o seu trabalho, e em consequência esvaziar a potência por eles trazidas ao movimento popular? A este respeito, as reflexões de Beno Selhorst, interrogando-se -se sobre sua experiência passada de trabalho eclesial nas favelas do Complexo da Penha vêm em nosso auxílio (1995). Levantando algumas pistas desta experiência, ele destaca a resistência de moradores quando foi proposto pelos agentes pastorais o uso múltiplo da capela localizada para abrigar as atividades comunitárias.

Morando na favela, os agentes padres tentaram desmistificar a figura do padre. Embora mantendo a postura sacralizada nos serviços específicos do padre, tentavam passar uma imagem de seres humanos semelhantes a todos os demais. Havia fortes reservas a esta postura. Se os padres andassem o tempo todo de batina ou não abrissem sua casa para qualquer pessoa, seriam melhor aceitos.

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O mesmo autor refletindo sobre a não participação dos moradores da comunidade, diante da manifestação dos agentes pastorais contra as posições do cardeal do Rio, por ocasião da condenação de Leonardo Boff ao “silêncio obsequioso”, questiona se o posicionamento do povo seria sinal de submissão a qualquer autoridade eclesiástica ou sabedoria “do povo que sabe que em briga de ‘gente grande, acaba sobrando para os ‘pequenos’?” Parece-nos que estas pistas são significativas para o repensar das relações entre os mediadores das pastorais e as classes subalternas, e especialmente para a percepção que estas possuem a respeito de noções tão caras e polemizadas por aqueles, como igualdade e hierarquia . Possivelmente estas não possuem o mesmo significado para ambos os lados e para as classes subalternas talvez não apresentem-se como excludentes. O trabalho acumulado na luta A dinâmica do movimento no Grotão, que envolvia a luta pela terra e por conquistas que produziam o espaço do morar, levava ao desenvolvimento de um diversificado conjunto de relações, onde se colocava a própria Igreja, e também outros profissionais, que atuavam sobre necessidades pontuais da comunidade, bem como os políticos.

Dr. Fernando foi uma pessoa que acompanhou aquela comunidade do Grotão desde que foi implantado o primeiro barraco. Dando a saúde, assistência. Porque lá era uma coisa. Era uma lagoa ali e ele orientando que aquilo até dava problemas de doença, lepra. Era tanta coisa. (...) Dr. Ribeiro, Dr. José Antônio, Dra.Meire e Ângela, Dra. Ângela. Essas pessoas, a gente olha, há muito tempo que a gente vê essas pessoas na luta. E sem interesse nenhum. Eles fazem. Esse pessoal da área de saúde faz um trabalho com a comunidade, e nunca, em período de campanha eleitoral nenhuma, tiveram dentro da comunidade tirando votos para alguém. Então, realmente a gente tem que analisar que a pessoa faz por amor e saúde, aquilo que eles juraram pra fazer. Porque quem teria que ter esse carinho com as comunidades, seriam os senhores governantes. E não tem.

No relato de uma liderança comunitária, o trabalho de alguns profissionais de saúde é destacado no acompanhamento da história da comunidade, no que se refere à assistência e à orientação em saúde. Os profissionais reconhecidos são vistos “na luta” e “sem interesse nenhum”.

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Em sua avaliação, aquilo pelo qual tais profissionais são qualificados - a “falta de interesse”, o carinho e o respeito ao que ele juraram defender - é colocado em contraposição aos governantes. É o que falta nos governantes e o que eles deveriam possuir. Mas nem sempre a atuação dos profissionais de saúde aparece de forma tão descomprometida.

(...)o Getúlio Vargas, outros hospitais, estavam fazendo umas reuniões e pedindo ajuda das próprias comunidades. Quando de uma delas eu participei, eu participei na rua Santa Luzia, lá na cidade (...) Porque só tinha secretário de saúde, só tinha médico, médica, diretor, sei lá. (...)Então foi quando eu coloquei para eles: “Olha, vocês, talvez poderiam ter o apoio das favelas, das comunidades muito melhor se vocês procurassem se empenhar mais com elas. Porque vocês só procuram a comunidade, coloca cartaz nos hospitais pedindo às comunidades, quando vocês estão precisando”.

O relato da moradora, explicita sua percepção diante dos profissionais de saúde interessados em fazer reuniões e “pedir ajuda” às comunidades. Na avaliação colocada os próprios profissionais, fica claro que o apoio “muito melhor” das favelas se daria enquanto resultante do empenho dos profissionais e não como resposta a pedidos feitos no momento em que eles precisam. Nos dois relatos citados - da liderança e da moradora-, o referencial que se destaca, como forma de reconhecimento ou crítica aos profissionais de saúde, é o trabalho acumulado junto às comunidades. A legitimidade destes, no que se refere ao apoio da comunidade, está asssociado ao trabalho acumulado naquela - “estando na luta sem interesse”, “empenhando-se”. Uma legitimidade que se forja no cotidiano, no estar junto às comunidades e não no âmbito de uma situação em que o apoio se faz necessário. A avaliação dos mediadores a partir de um referencial que põe em jogo a sua relação com a favela ao longo de um processo de luta cotidiana, torna-se ainda mais evidente quando se percebe a atuação dos políticos.

E o governo não abre as portas, muitos deles, a maioria não quer que a comunidade trabalhe lado a lado com ele, que eu acho uma injustiça porque quando eles abrem as eleições deles, pra se elegerem, eles sabem procurar todas as comunidades. Nessa comunidade aqui, eu vou lhe dizer uma coisa, teve uma época que eu falei: “a nossa comunidade está servindo de curral de campanha eleitoral”. Porque eu não me 288

interessava se eu estava apoiando PDT ou PMDB, não apoiei. Realmente apoiei o PDT. Não interessa se Darcy fosse PDT, PMDB, PT, PC do B, porque aqui em casa, baixou tudo, sabe? Mas eu dizia para eles: “Não adianta vocês nos procurarem, a favela, as comunidades porque vocês só procuram na época que vocês precisam. Porque vocês precisam é se eleger. Porque depois que vocês estão lá em cima, vocês esquecem que a comunidade, a favela, o povo pobre existe. Por que? Se vocês ganham...Vocês sabem que o rico é minoria. O pobre é maioria. Então se vocês ganham..., não é o rico que faz vocês lá no poder, não. É o pobre. Vocês só procuram o pobre quando vocês estão precisando (...) Por que vocês não dão atenção? Ou por que vocês não recebem? Pra gente chegar e conseguir marcar reunião com um deputado você tem que ligar umas 20 ou 30 vezes para chegar lá, pra falar com um assessor, com uma segunda pessoa, com a terceira, com a quarta, com a quinta, 10, 20, 30 vezes? Por que? Nós somos ser humano igual a vocês”. Isso eu falei prá muitos deles aqui na porta.

O depoimento vem denunciando a prática dos políticos que “não querem que a comunidade trabalhe ao lado deles”, que “a esquecem” mas que a procuram na época das eleições porque sabem que o “pobre é maioria” e precisam de seus votos. Esta prática é percebida enquanto injustiça e nela está colocada uma contradição entre a busca de votos na comunidade, na época das eleições, e o ignorar a comunidade, ao longo da luta. A busca de votos se dá numa época determinada, onde o que está em jogo é a elegibilidade dos políticos enquanto o ignorar a favela percorre o longo caminho da luta, na qual se evidencia o trabalho da comunidade, ao lado da qual os políticos não querem estar. Na compreensão da contradição, a moradora percebe o lugar do pobre enquanto maioria, por isso, curral eleitoral e aquele que “faz os políticos lá no poder”. Se tensionarmos sua avaliação, tendo em vista a contradição por ela colocada e destacando a questão do poder, podemos considerar que as bases do poder dos políticos são os pobres mas que ele se forja num tempo determinado as eleições-, atravessado por uma prática contraditória que se revela injusta ao longo do tempo, quando torna-se claro que eles não querem que a comunidade trabalhe ao lado deles. É neste âmbito que se evidencia o reconhecimento da forma como são colocados no lugar de objetos da eleição e a denúncia de que são seres humanos, como aqueles que os tornam objetos. Mas o depoimento de uma ex-liderança, referindo-se ao apoio de alguns políticos ao longo das lutas do Grotão, dá enfase a outras questões:

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(...)nós tivemos o apoio, por exemplo, do deputado Aloísio Gama, tivemos o apoio da XI Região Administrativa, nós tivemos o apoio de alguns candidatos, por exemplo até mesmo que era candidato à política e trabalhava dentro da Fundação Leão XIII. Então sendo ele um candidato a vereador ou um estadual, enfim o desejo é defender a comunidade. Então por isso é que eu digo que a política já estava funcionando. (...) O político, ele não faz nada sem interesse. O político quando ele chega a mandar simplesmente, ou seja porque ele não manda nada. Ele faz um pedido ao orgão do Estado quando chega a dar um jeito, a urbanizar uma rua, aquilo é porque há um interesse político.

Em sua reflexão, o que está em jogo não é o trabalho da comunidade e dos políticos lado a lado mas o apoio dado por estes em meio a uma situação determinada, tendo em vista os seus próprios interesses. É no âmbito do interesse do político que quer se eleger que se dá a “defesa” da comunidade e o apoio por ela conseguido. Assim, a prática colocada não é contraditória mas compreendida em meio ao “funcionamento da política”, sujeito das conquitas que por ventura são obtidas, como a urbanização de uma rua. Pensamos que enquanto a análise da moradora se faz crítica em relação a prática dos políticos, a da ex-liderança traz a legitimação da atuação dos políticos considerando o próprio funcionamento do poder. Estamos diante de duas análises que se diferenciam na forma de perceber as relações com os políticos no tempo. No caso da moradora, a criticidade de sua análise está não só na denúncia da busca pontual da comunidade porque o povo é maioria e “os faz no poder” mas na percepção do ignorar dos políticos ao longo do tempo. Na avaliação, a prática dos políticos é compreendida é percebida de forma dinâmica, ao longo de um processo que marca a relação dos políticos com a comunidade, e onde está em jogo a dimensão de sujeito desta. Enquanto na fala da ex-liderança, tendo em vista o recorte de uma situação determinada, o acento recai sobre o funcionamento da política, onde se coloca o “interesse político”, sujeito da ação. Neste caso, a comunidade é legitimamente objeto da política, não interferindo no fluxo dos acontecimentos. Podemos avançar mais esta diferenciação, que marca a percepção dos atores em relação aos mediadores, quando está posta uma situação de conflito na comunidade.

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Em meio aos conflitos Procuramos acompanhar agora a forma como os atores percebem os mediadores ao longo da luta pela terra e de conflitos dentro da comunidade, e como neste processo vão se forjando interpretações diferenciadas. Uma moradora relembra a primeira ordem de despejo e o apoio recebido posteriormente:

(...)a gente pensou: ‘vamos recorrer a quem?’. Aí meu cunhado disse: ‘vamos ao recorrer ao Padre Rude’”(...) Aí o Padre Rude nos deu o maior apoio. Procurou a Pastoral de Favela que era a Dra. Maria Alice(...) Então neste período, a gente já estava com contato com a FAFERJ. A Leão XIII. (...) Olha, ela nos deu um certo apoio, sabe. Não vou lhe dizer que ela não nos deu apoio bom. Só que teve algumas vezes que a gente precisava de um apoio melhor (...) O nosso apoio foi mais porque a FAFERJ, ela atuava mais aqui dentro, ela atuava mais sobre negócio de associação.

Uma ex-liderança recorda o primeiro momento da luta contando como os moradores:

(...)acumularam forças e solicitaram uma ajuda da Federação de favelas e da Fundação e da Fundação Leão XIII e da Pastoral de Favelas, que desse apoio jurídico a eles, que eles tinham necessidade de morar e aquilo estava há quanto tempo, já estava desativado e isto foi feito. A primeira coisa que os advogados fizeram foi chegar a ver a polícia que eles não tinham autoridade para entrar - isso ainda no regime militar, né? - para entrar dentro dessas áreas assim e metendo o cacete em todo mundo e quebrando tudo o que os moradores tinham. Tinha gente que já tinha perdido até as panelas mas...já perdeu tudo, então vai acabar de perder a vida mas vai ficar lá. E com isso, a pressão dos advogados de todas estas instituições - a FAFERJ, Fundação Leão XIII, Pastoral de Favela - foram pressionando e a polícia recuou. A ponto de os advogados dizerem: “Não. Só vai derrubar agora aqui com mandato judicial’. Só com mandato judicial é que podia tirar o pessoal”.

No primeiro relato são quatro os mediadores presentes mas eles não se apresentam da mesma forma. Assim, o primeiro mediador reconhecido é aquele mais próximo, o Padre que atuava na Igreja da região e rezava missa na 291

comunidade, tendo desenvolvido uma relação com alguns moradores, e com a entrevistada e sua família.105. E é ele que traz a assessoria jurídica da Pastoral de Favelas para que acompanhasse os moradores no primeiro enfrentamento institucional. O reconhecimento do mediador se faz aqui não tanto baseado no conhecimento de sua prática, a partir de uma experiência anterior, mas na sua proximidade e na necessidade que se impunha de recorrer a alguém que pudesse os ajudar. Depois é que a moradora se refere aos contatos com a FAFERJ e a Leão XIII, não se aprofundando na forma como esta última atuou mas qualificando o apoio da FAFERJ. Um apoio bom mas que nem sempre correspondia ao que a comunidade precisava.. Na avaliação do apoio da FAFERJ o referencial de análise recai portanto sobre o interesse e a prática da FAFERJ que ao atuar mais sobre o “negócio da Associação” não podia responder a algumas necessidades pontuais da comunidade, talvez como a assessoria jurídica. No segundo depoimento, aparece de início o “acúmulo de forças pela comunidade”. Em seguida, é colocada a busca da ajuda. Ajuda no sentido de lhe dar o apoio jurídico necessário no início do enfrentamento. Neste momento, os mediadores aparecem juntos, indistintamente, no movimento que procura garantir a permanência no terreno ocupado pelos moradores - o que está em jogo são as informações fornecidas pelos advogados das instituições e a pressão dos mesmos e não suas diferentes práticas. Assim, ao contrário do depoimento anterior, não há uma diferenciação na atuação dos atores externos. O que nos chama atenção aqui é o fato da exliderança não se incluir na luta - “acumularam forças”. Fato que provavelmente se explica se considerarmos que na época à qual se refere, o entrevistado ainda não havia se aproximado do movimento comunitário. De qualquer forma, a constatação nos deixa atentos quanto a forma como ele se insere nos acontecimentos, nas outras partes de seu depoimento. Quando refere-se a um momento posterior da luta, quando o processo já tramitava na justiça favoravelmente à comunidade, o relato da mesma liderança já apresenta-se de forma diversa.

Ganhamos na primeira instância. O que que tinha que fazer? O processo estava na responsabilidade da Pastoral de Favela. O que tinha que fazer o presidente da Associação? Não tirar o processo da Pastoral. Tirou o processo da Pastoral e levou a Fundação Leão XIII. Foi quando o

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momento anterior de seu depoimento, a moradora conta como o cunhado trouxe o Padre para celebrar missa na comunidade em formação.

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processo foi a revelia. A Fundação Leão XIII engavetou o processo. Chegou a época, não compareceu nunguém correu a revelia.(...)

Ele já inclui-se no acontecer histórico, compartilhando o ganho no processo que corria na justiça - “ganhamos na primeira instância”. Talvez porque nesta época já aproximava-se da atuação comunitária. Coloca também de forma diferenciada a atuação das instituições. Ainda que várias instituições tivessem sido buscadas para dar apoio jurídico, a responsabilidade do processo estava com a Pastoral de Favelas. Mas o processo foi repassado para a Fundação Leão XIII, quando a comunidade já havia ganho a causa na primeira instância, e a Fundação engavetou o processo que correu a revelia. Em seu relato, a liderança faz pois uma análise crítica da situação a respeito de quem deveria ficar com o processo: a Pastoral. Não está colocada, porém, uma argumentação a respeito da prática política ou profissional das insitituições e de sua assessoria jurídica. A justificativa recai sobre o fato de que haviam ganho na primeira instância. Se não se mexe em time que está ganhando, porque retirar o processo das mãos da Pastoral? Na resposta é que a avaliação se faz mais crítica. No relato da liderança, a qualquer avaliação sobre o procedimento dos mediadores, sobrepõe-se a crítica à atuação do presidente da Associação de Moradores, na época, responsável pela troca de advogados. Porém, ainda que explícita, a crítica não vai longe, permanece numa recriminação a sua atitude de retirar o processo das mãos da Pastoral. Inquietos quanto ao não aprofundamento de sua crítica, e tendo em vista as tensões existentes na comunidade, saímos em busca desta argumentação em outras passagens de seu depoimento, como por exemplo quando se refere à saída do presidente da Associação, mencionado no relato acima.

(...) os moradores não ficaram muito satisfeitos com determinadas posições dele e ele chegou e passou a associação de moradores à frente. Convocou as eleições, né? Ele era pastor, continuava a vida bíblica dele e não queria mais nada com a Associação de Moradores.

Na referência a mudança na Associação, a liderança sublinha o fato de que “os moradores não ficaram muito satisfeitos com determinadas posições dele” ( o antigo presidente). E explica que ele “era pastor, continuava a vida bíblica dele e não queria mais nada com a Associação de Moradores”. 293

Na referência à insatisfação em relação ao presidente, a liderança não se inclui. Atribui esta aos moradores. Nas explicações da razão para a saída, não se aprofunda. Subjacente à explicação está apenas a idéia da incompatibilidade da vida bíblica do pastor com sua atividade na Associação. Assim, mais uma vez, em seu depoimento, a liderança não vai longe. Mais do que no primeiro depoimento, seu relato pretende-se neutro, acima do acontecido. Quando o que estava em jogo era o processo cujo julgamento estava lhes favorecendo, e que afirmava a comunidade na cena político-institucional, manifestou sua avaliação crítica, incluindo-se inclusive na questão: ganhamos na primeira instância. Mas, no momento, em que se tratava do que parece um conflito na comunidade, ele se coloca de fora, destacando apenas a posição dos moradores que não estavam satisfeitos com o presidente. O não aprofundamento de algumas questões, exatamente no depoimento de um ator político, onde habitualmente a fala vem atravessada por várias argumentações - a liderança comunitária - nos deixa curiosos em relação aos conflitos apenas anunciados. Saímos em busca do depoimento da moradora do primeito relato analisado, a respeito do momento que marcou a retirada do processo das mãos da Pastoral e a ação do Pastor, então presidente da Associação de Moradores.

A gente não sabe porque a gente só pode dizer que foi quando a gente tem certeza. Mas o que nos deu a parecer foi o seguinte. A Leão XIII, com o Pastor, ela mandou o Pastor tirar o processo da mão da Pastoral de Favela e ela ia se responsabilizar, a Leão XIII, no caso. O que o Pastor fez? Passou um abaixo-assinado dentro da comunidade sem cabeçalho, o pessoal naquela época ainda estava leigo, não sabia o que eles queriam. Se dissesse para eles, chegasse e dissesse assim: ‘vocês, olha, vamos passar este abaixo-assinado aqui’ para resolver um problema qualquer que fosse da comunidade, o pessoal não media distância.(...). Nesse abaixo-assinado, ele bateu um cabeçalho dizendo que a comunidade do Parque Proletário do Grotão não estava satisfeito com o trabalho da Dra. Maria Alice, da Pastoral de Favela. E levou esse abaixo-assinado e entregou lá (...) nessa época o líder, o que liderava a comunidade era meu esposo junto com ele mas nesse período- meu esposo foi vice-presidente- meu esposo já tinha saído porque ele tinha algumas coisas que eles discordavam, que o Pastor fazia e que não estava certo. O que a gente mesmo se pergunta hoje é o seguinte: será que a Leão XIII não estava junto? Porque o que deu toda a perceber a nós é que a Leão XIII estava do lado dos Armazéns Gerais São Luis porque quando ele foi lá e tirou o processo das mãos da Pastoral de Favelas ele não nos

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falou nada. Então passou mais ou menos dois meses, a gente não sabia de nada

Em seu relato, a moradora aprofunda-se na retirada do processo das mãos da Pastoral, dando ênfase à ação do presidente da Associação de Moradores e da Fundação Leão XIII. Faz isso, relativizando sua perspectiva ao declarar que “a gente não sabe porque a gente só pode dizer que foi quando a gente tem certeza”. Não há qualquer menção ao fato de terem ganho na primeira instância, o que nos sugere que em sua percepção o que está em jogo não é tanto a tramitação do processo que estava sendo conduzido pela Pastoral de Favelas de uma forma que até então lhes havia sido favorável. A ênfase se faz sobre a prática do presidente da Associação e da Fundação Leão XIII. Assim, ao fazer o relato com riqueza de detalhes, torna sua crítica ainda mais contundente pois expõe tanto a atuação do presidente quanto da entidade para a qual ele repassou o processo. Revela também sua implicação na história ao destacar que estavam sempre sabendo do andamento do processo, através de Padre Rude, ao qual como vimos era ligada, e também que o marido “liderava” a comunidade junto com o presidente mas que ele havia saído porque “ ele tinha algumas coisas que eles discordavam, que o Pastor fazia e que não estava certo.” E por fim, coloca em questão o “interesse” da Fundação Leão XIII - “será que a Leão XIII não estava junto?”. O depoimento da moradora nos faz lembrar das conclusões de Monica Peregrino a respeito do conhecimento popular, quando afirma que ele “se legitima pelo nível de implicação com aquilo que se conhece”. (Peregrino,1995). É anunciando sua implicação com a situação - enquanto mulher de uma liderança que discordava do Pastor, e com quem ela concordava na avaliação, e ao mesmo tempo próxima à assessoria jurídica da Pastoral de Favelas, representada por Maria Alice- , bem como sua visão parcial - de quem “não sabe” a verdade porque só pode sabê-lo quando tem certeza-, que a moradora legitima seu relato a respeito da situação. Em nenhuma passagem do relato, ela é reticente quanto à sua avaliação e sua possível parcialidade. Explicita-as, deixando claro a oposição que tem em relação ao Pastor e a desconfiança no que se diz respeito ao interesse da Fundação Leão XIII. Em outras partes de seu depoimento, ela também o faz, como quando referindo-se à organização da associação e à entrada do Pastor na presidência, comenta avaliando que ele “nos deu uma dor de cabeça que eu vou te falar uma coisa!”. Ou quando conta a sua saída, justificando que “quando a gente viu que a coisa não estava indo bem, que a comunidade não estava desenvolvendo, aí nós botamos ele pra fora”.

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Ressalte-se o fato de que usa “a gente”, “nós” para declarar todas as avaliações colocadas. Um “nós” que pode sugerir que busca a legitimidade do coletivo para julgar ou o compartilhamento da posição do marido- liderança na comunidade. Mas , sem dúvida, um “nós” que aponta para o lugar do qual fala e onde se sente ainda inserida - o lugar de moradora da comunidade. Um “nós” no qual ela se inclui, não se eximindo da responsabilidade de optar. A história, que põe em cena a atuação de entidades e lideranças na comunidade, nos instiga. Buscamos a versão de outros atores. Vamos, pois, ao criticado: o então, presidente da Associação de Moradores.

“(...)eu, um dos motivos de eu sair do Grotão é que alguns moradores não entendem, que não procuravam ajudar a comunidade e tal. Porque a Associação tem uma vantagem muito boa e tem a sua desvantagem. Você luta, cria uma Associação e se acaba, corre átras, procura apresentar o de melhor, no sentido de ajudar a comunidade mas sempre tem aquele grupinho da oposição que está sempre levantando contra o presidente. Justamente este grupo são os que nada fazem pela comunidade (...) Uma das política principal que funcionava lá no Grotão , que a Pastoral de Favela, é o orgão que parece que não tinha assim bom relacionamento com a Fundação Leão XIII porque naquela época existia a Pastoral de Favela e existia a FAFERJ. Então as favelas que eram ligadas à FAFERJ faziam política contra a Fundação, e quem era ligada à Fundação, às vezes encontrava uns colega e diziam: ‘Não, esse daí é da Pastoral. Não tem valor’. E justamente este grupo de lá era ligado à Pastoral de Favela. Para mim tanto faz Pastoral como a Fundação Leão XIII, o problema é que venha favorecer e auxiliar a comunidade.”

O depoimento do antigo presidente é atravessado pela denúncia, ainda que não explícita, de uma injustiça, que é a “desvantagem da associação”, que ele procura explicitar dando ênfase ao “grupinho” que se levantava contra o presidente mas que nada fazia pela comunidade. Como a moradora acima, o presidente também se aprofunda em seu relato. Mas ao fazê-lo percorre um caminho diferente. Por um lado procura contar como era a “política principal que funcionava lá no Grotão” e o posicionamento do “grupinho” que fazia oposição, “justamente os que nada fazem pela comunidade”. E por outro lado, oculta sua implicação na história, produzindo pois uma fala diversa da moradora. Em certo sentido é um relato defensivo, daquele que ao contar não justifica apenas sua saída da comunidade mas também uma situação controvertida que está subjacente a própria saída. 296

A fala de quem se coloca acima da cena, numa perpectiva heróica - você luta, cria uma Associação e se acaba, corre átras, procura apresentar o de melhor, no sentido de ajudar a comunidade. Fala de quem produz uma imagem do presidente enquanto externo à luta: tem aquele grupinho da oposição que está sempre levantando contra o presidente. Certamente, uma percepção marcada por quem já está fora do lugar sobre o qual fala ( e que talvez por isso possa anunciar a comunidade, e não nossa comunidade, por exemplo) mas sem dúvida uma fala que se pretende imparcial e neutra, na avaliação dos mediadores em disputa: “para mim tanto faz Pastoral como a Fundação Leão XIII, o problema é que venha favorecer e auxiliar a comunidade”. Mas que no fundo traduz a parcialidade pela forma como anuncia e ordena um conflito, que procura apenas contar - a Pastoral de Favela, é o orgão que parece que não tinha assim bom relacionamento com a Fundação Leão XIII. Não seria por isso também um relato que busca uma legitimidade perdida, no passado, no âmbito desta situação controvertida? E que o faz, procurando usar a neutralidade no que se refere aos mediadores mas não abdicando do ataque quando o que está em jogo é a oposição interna? E neste sentido, desqualifica esta última como um grupinho que se levanta contra o presidente mas que nada faz pela comunidade, ao contrário dele que fez, criou a Associação, correu atrás etc? Assim, em meio às disputas, a ênfase recai, não sobre uma avaliação da prática das entidades e tampouco dos atores internos, mas na recriminação pessoal daqueles que não têm legitimidade para ser oposição e que estavam ligados à Pastoral? Desta forma, é que parece desqualificar ambos: a oposição interna e os mediadores à qual ela está articulada, traindo a anunciada neutralidade quanto aos mediadores. Parece-nos que com o depoimento dos três atores estivemos diante de uma situação marcada pela disputa interna de poder na favela, e também entre as entidades católicas que ali atuavam. O interesse aqui não é tanto em relação à “verdade dos fatos” mas a percepção produzida pelos atores e a forma como se colocam diante da situação, relatando-a anos depois . Os três tiveram uma participação direta nos acontecimentos: o próprio presidente, a mulher do vice-presidente que a ele se opunha e uma liderança que meses depois assumirá seu lugar, permanecendo por longo tempo na presidência da Associação de Moradores. Mas nos relatos estas participações aparecem de forma diferenciadas produzindo percepções distintas, tanto em relação aos mediadores quanto ao conflito interno. Como afirmamos, o depoimento do presidente apresenta-se marcado pelo anúncio de uma neutralidade em relação aos mediadores e ao próprio conflito interno mas atravessado pela implicação daquele que foi poder instituído e que busca justificar as bases desta legitimidade, recuperando sua imagem enquanto 297

ator central mas ao mesmo tempo imparcial na luta, e desqualificando seus opositores. Já o relato da moradora vem permeado pelo reconhecimento de sua própria implicação e da visão parcial que elaborou. Inicia-se pelo que lhe parece mas ao fazê-lo, contando em detalhes o que parece, termina por produzir uma versão argumentativa e crítica, que se pretende convincente, defendendo o que lhe parece . É no reconhecimento de sua implicação que busca a força de sua argumentação. E aí seu relato se faz crítico. O que está em jogo aqui não é a busca de uma legitimidade perdida mas a crítica à legitimidade da prática daqueles que ocupavam o poder na comunidade. Fala do espaço de moradora que ainda é e a partir de sua experiência enquanto uma das protagonistas do processo de luta ocorrido. Fala do lugar de quem avaliava criticamente a prática do presidente e da Fundação Leão XIII, a partir de uma referência que a ele se contrapunha: uma atuação onde se enfatizava um compartilhamento com a comunidade, na qual ela se incluía. Quanto ao depoimento da liderança, que assumirá a presidência da Associação meses depois, percebemos que a forma como se pronuncia concilia uma crítica, que permanece na superfície dos acontecimentos, com avaliações nas quais não se inclui e sobre as quais não se aprofunda. Podemos agora arriscar uma hipótese em relação ao fato de não se incluir no acontecer histórico e não explicitar suas avaliações. Ele fala enquanto aquele que assume o poder na Associação com o apoio dos que “não estavam muito satisfeitos” com o antigo presidente mas que, no tempo do qual fala, enfrenta a oposição dos mesmos, o que torna cuidadoso em seu relato. Fala enquanto expressiva liderança comunitária da região que busca preservar suas relações com os mediadores em cena, procurando colocar-se fora dos próprios conflitos internos nos quais eles estiveram envolvidos. Neste sentido, ainda que se coloque todo o tempo de fora, o relato da liderança é talvez aquele onde a percepção dos acontecimentos ainda se faz mais produzida, exatamente porque está implicado nas relações de poder que atravessam a dinâmica da comunidade e do próprio movimento comunitário no Rio de Janeiro. Os elementos que atravessam a produção de seu relato podem nos apontar para a sua prática política e para a forma como sua experiência histórica enquanto militante no movimento sindical e partidário a referenciam. Uma reflexão sobre a qual não vamos nos estender, esperando retomá-la no capítulo seguinte.

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Analisar a forma como os atores das histórias contadas percebem os mediadores não foi tarefa fácil. Possivelmente porque aqui os atravessamentos de nós que investigamos se coloquem de forma a tensionar ainda mais o trabalho. E neste âmbito talvez um dos maiores desafios seja procurar decifrar os significados inscritos nas interpretações do outro , estranhando sua fala, sem ao mesmo tempo inviabilizar o necessário diálogo com ele, aprisionando a ambos, pesquisador/mediador e o sujeito das lutas, em diferentes territórios. E não foi tarefa fácil também porque aqui, mais diretamente do que em outras análises, mergulhamos em diferentes relações experimentadas pelos sujeitos e nas expectativas por eles construídas, muitas vezes imbricadas nos conflitos existentes na própria comunidade. Começamos por nos orientar pela constatação de que os mediadores apareciam enquanto fundamentais nas lutas tecidas. Para os seus protagonistas, eles contribuem portanto no fazer histórico. Mas como? Na busca desta compreensão, concluímos que a visão produzida a respeito dos mediadores tem como uma primeira referência a própria experiência histórica da comunidade. E a este respeito, sem dúvida, nas histórias contadas, a Igreja Católica e os políticos, aparecem de forma recorrente. Mas em relação a sua atuação, não existem percepções únivocas. Estas dependem muito da experiência dos próprios atores em sua relação com eles, no âmbito de muitas lutas, e das expectativa aí tecidas: as diferentes interpretações dos militantes do Sangue Novo e da moradora do Grotão a respeito da Pastoral de favelas, por exemplo. Dependem, é claro, da atuação desenvolvida pelos mediadores em meio ao processo de luta, como é o caso da prática política eleitoreira que ao se colocar na experiência histórica das classes subalternas, aparece enquanto referencial de avaliação dos políticos de forma geral, e até mesmo daqueles que não o são, como pudemos verificar na crítica aos mediadores que agem de maneira oportunista, simplesmente aparecendo na comunidade, sem desenvolver com ela uma relação ao longo do tempo. Por sua vez, este referencial se recoloca também na forma como os atores percebem aqueles que se distinguem por sua prática nas lutas da comunidade, seja através do vivenciamento na favela, como é o caso dos padres em cena na história do Sementinha, seja enquanto orientadores no processo de luta, como são vistos os militantes do PT no Movimento Sangue Novo. Porém, se a experiência histórica da comunidade, e pontualmente dos próprios atores, referencia a avaliação destes últimos, é no âmbito do processo de luta, e nos impasses aí colocados, que as percepções são reelaboradas e o mediador é avaliado, tendo em vista sua atuação. Assim, aos olhos daqueles que fizeram estas histórias, o papel do mediador apresenta-se enquanto uma produção. Ele vai se construindo no processo, na relação que tece com a 299

comunidade, no acompanhamento de suas lutas: as cotidianas, colocadas no desafio enfrentado pelos padres ao morarem na favela, segundo os relatos das mulheres do Sementinha, e aquelas que exigem do mediador o compartilhamento no enfrentamento político com as instituições públicas, como pudemos perceber na história do Grotão e do Movimento Sangue Novo. Mas no processo de luta, muitas vezes o mediador aparece com um lugar destacado, assinalando mesmo um ponto de ruptura, como parece ser o caso do então Padre Beno na história do Sementinha. Contudo, como vimos também, ser símbolo de uma de ruptura, não implica o estabelecimento de uma relação mecânica entre a entrada do mediador em cena e a própria mudança. Entre o papel exercido por ele e as mudanças que vão se delinear há outras mediações que se remetem à própria experiência acumulada na luta e à forma como seus atores experimentam os impasses aí colocados. A ruptura aqui se associa menos à promoção de um novo tempo , que seria trazido pelo mediador, do que à potencialização das mudanças que se produziam ao longo do tempo e que encontram na ação do mediador a possibilidade de se instituírem . Vimos também que a percepção a respeito dos mediadores ao se forjar em meio à luta pode vir atravessada pelos conflitos internos que a marcam. Foi o caso da luta no Grotão, onde nas distintas visões produzidas em relação à atuação da Pastoral e da Fundação Leão XIII estão inscritos também diferentes posicionamentos quanto à dinâmica da luta e aos atores em cena. A interpretação de um dos participantes do Movimento Sangue Novo, em relação à militância do PT, sugeriu-nos que este atravessamento dos conflitos internos e da prática dos mediadores muitas vezes abre espaço à atuação da liderança comunitária, que vai produzindo sua legitimidade no âmbito de uma relação que opõe os interesses da comunidade e daqueles que atuam na luta mas que não vivem na comunidade. Aqui os espaços e interesses são delimitados de forma a se afirmar o lugar da liderança. Porém, verificamos também que a luta pode forjar seus próprios mediadores. Os mediadores na comunidade, cuja produção rompe com as contraposições que definem os lugares de antemão: comunidadelocalidade/mediador-externo. Este foi o caso da moradora do Parque Proletário, participante do Movimento Sangue Novo, que no caminho que cruza experiências diversas ( a experiência histórica no movimento popular e partidário, a vivência enquanto mulher, dona de casa e mãe de família, o conhecimento das relações de poder e o trabalho como agente comunitária) se construiu enquanto uma mediadora na comunidade. De forma geral, na referência de análise da atuação do mediador sem dúvida o que está em jogo é a relação deste com a comunidade. Relação que é avaliada ao longo do tempo, tendo como base um saber que é produzido 300

historicamente, no âmbito da experiência com vários outros mediadores, mas que se reelabora em meio à luta e seus impasses, onde se explicitam a prática do mediador e as expectativas tecidas nesta relação. Se voltamos a nos perguntar qual o lugar do mediador, para os atores em cena, possivelmente encontramos múltiplas respostas, como múltiplas foram as relações tecidas com aqueles que os atores reconheceram como mediadores fundamentais à luta. Ele pode ser aquele cuja atuação e saber são reconstruídos através da con vivência na comunidade. Ou aquele que faça de sua prática e conhecimento um processo e que reconheça naqueles que estão em luta, um sujeito . Se o mediador é o outro, ele é o outro que na relação se coloca como potencializador de caminhos que são mais do que de uns, são nossos. Talvez aí se coloque a possibilidade do mediador compartilhar com os sujeitos da luta o seu fazer .

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7.3. A luta: experiência de vida e prática política

Como vimos, nas tramas contadas, a necessidade e os mediadores aparecem de forma recorrente mas a posssibilidade de se engendrarem enquanto fazer encontra-se na própria luta. Luta que traz a experiência passada e que se repõe cotidianamente na experiência de trabalho e na sobrevivência no espaço do morar. Luta que se coloca em enfrentamentos político-institucionais. Discussão cara à produção intelectual voltada para a compreensão dos processos sociais ocorridos historicamente em determinada formação social, as lutas das classes subalternas estiveram encerradas, por um longo período, numa equação irreversível que as aprisionava à lógica do capital, ao Estado, ao Partido e demais mediadores políticos. Nesta equação, a avaliação das condições de gestação das lutas e a prioridade atribuída a sua eficácia objetiva se colocavam como referenciais balizadores, produzindo-se interpretações que privilegiavam as ações institucionais e minimizavam o papel das classes subalternas enquanto sujeitos históricos e do conhecimento, esvaziando assim as potencialidades de se conceber a dimensão inacabada do acontecer histórico. As possibilidades históricas de redefinição desta discussão se colocaram no Brasil a partir dos anos 70 no âmbito da experiência da intelectualidade face à repressão do Estado autoritário e às mudanças que apontavam para novos padrões de prática coletiva popular, trazendo as classes subalternas à cena política. Dentro deste processo é que o legado dos anos 70 e 80 e as imagens aí produzidas contribuíram para alargar a noção do real e para a descoberta da multiplicidade de espaços onde se constituem sujeitos históricos. Assim é que se repensa a noção de luta política, apontando-se o alargamento do espaço politizável da vida social, mudando-se a própria concepção de política enquanto ação instituinte dos sujeitos coletivos no âmbito da própria luta. Os trabalhadores, enquanto sujeitos da luta, são percebidos expressando-se em diferentes espaços sociais, que ultrapassam as organizações fabris e sindicais. Na percepção do social, valoriza-se também o cotidiano, tempo e lugar onde se produz a dominação e a resistência. 106 Esta redefinição da discussão vem contribuir para uma maior compreensão das experiências sociais e práticas políticas das classes

106

A redefinição desta discussão- que implicou segundo Sader, a ruptura com a representação instituída das classes populares enquanto classe atrasada e a atribuição do estatuto de sujeito a elas -, deu-se no campo das várias ciências humanas. No Brasil, dentre os trabalhos pioneiros neste percurso, destacamos: Weffort (1971), Moisés (1979), Lopes (1976). Durham (1973), Vesentini & De Decca (1976), entre outros.

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subalternas, bem como de seu universo simbólico. No entanto, coloca-nos diante de novos desafios. Primeiro nos interrogamos se a hipervalorização de um novo conjunto de temas para a investigação, legitimados pelo alargamento da noção do real, não pode levar ao perigo da paralisia teórico-metodológica? Pensamos que este alargamento e à crítica a modelos fechados de análise exigem um esforço de construção de referenciais teórico-metodológicos que dêem conta dos novos temas trazidos e em particular, do reconhecimento do estatuto de sujeito das classes subalternas. Outro desafio é indicado por Sader quando alerta para a tendência de uma vertente de interpretação, onde a idéia de um sujeito que instaura sua realidade nos faz perder a dimensão múltipla desta enquanto resultado do encontro e do enfrentamento de diferentes sujeitos.

É como se no momento em que quisessem atribuir um significado instituinte às práticas das classes populares, no interior de uma situação de conhecimento que as negava pela lógica estatal dada como premissa, seus intérpretes tivessem que ignorar esta lógica para poder reconhecer aquelas práticas ( SADER, 1988)

Seguindo a avaliação do autor, consideramos que na compreensão da luta social e política o reconhecimento da multiplicidade de práticas instituintes das classes subalternas não pode vir descolado de uma concepção que apreenda a dimensão relacional destas práticas, onde estão colocadas as relações de poder e o confronto social e político de diferentes sujeitos. Esta é uma preocupação que nos orientou quando nos debruçamos sobre as histórias aqui trabalhadas e identificamos a noção de luta presente na forma como os atores sociais envolvidos percebem o fazer histórico . A luta, enquanto elemento fundamental ao fazer histórico , na visão dos protagonistas, é percebida em suas múltiplas particularidades. Estamos, pois, abordando a luta enquanto ação concreta, na forma como se particulariza para os atores: como experiência de migração, enquanto prática política, como experiência de trabalho. No entanto, ainda que percebida em sua particularidade, nela estão inscritas as relações de conflito que se tecem no âmbito da sociedade. No caso da história do Sementinha, a preocupação referida nos tornou ainda mais cuidadosos uma vez que aí a luta não se coloca de forma imediata. Ela se insinua, mediatamente, na maneira como definem e afirmam sua 303

experiência de trabalho, bem como resgatam a produção desta última. O caminho que nos leva aqui à noção de luta é então ardiloso. Começamos pela forma como resgatam a sua experiência de trabalho.

Antes de começar o grupo, nós trabalhávamos na Pastoral de Favela, de doentes, não era de saúde, era Pastoral de doentes do Getúlio Vargas. Trabalhávamos mesmo sem ter grupo organizado, que ainda estamos organizando. Uma pessoa estava passando mal, levávamos para o hospital. Chegando lá, era mal atendida, voltávamos para casa desanimadas. Fazíamos chás. Formaram no Grotão um postinho e o Carlos e o Fernando William começaram a atender doente lá e juntos víamos a dificuldade das pessoas nas comunidades e sempre querendo ajudar. Lá no Getúlio Vargas, íamos assistir a missa, cuidávamos dos doentes, dávamos comida porque botavam comida lá e se não tivesse ninguém para dar, eles ficavam morrendo de fome.

Os dois primeiros depoimentos referem-se à experiência das mulheres, anterior à formação do Sementinha. As atividades realizadas na Pastoral e nas comunidades são vistas enquanto trabalho, de forma que este não se inicia com a organização do grupo, percebida pois como um processo em curso. O trabalho não é posterior à organização . Ele lhe antecede e atravessa. Enquanto experiência de luta cotidiana, o trabalho antece à organização . O dois últimos depoimentos se aprofundam nas atividades das mulheres interpretadas enquanto uma forma de ajudar aos doentes necessitados e àqueles que tinham dificuldades, fosse no hospital ou na comunidade. Nesta experiência inicial, o trabalho é apresentado então enquanto ajuda. Ajuda que significava trabalhar pelo outro necessitado e em dificuldades. Assim, como já foi visto, era a constatação da necessidade do outro, vivida enquanto compaixão, que movia as mulheres na ação, forjando uma prática atravessada pelo viés religioso, inscrito na experiência histórica e na visão de mundo destas mulheres mas que era recriado no âmbito da precariedade das condições subalternas da favela. Assim, o trabalho de ajuda aqui não significava uma ação e visão limitada sobre a realidade colocada mas a potencialização de um saber e de uma experiência histórica, referenciado nas alternativas que se colocavam em seu campo de possibilidades, onde se intercruzavam a religiosidade, o saber 304

acumulado a respeito das ervas, a vivência na favela e a atuação no âmbito das atividades comunitárias desenvolvidas pela Pastoral. É esta potencialização do saber e da experiência acumulada historicamente, no âmbito do desencontro com a precariedade dos hospitais e das dificuldades nas comunidades, que dá ao ajudar o significado de luta . Luta, aqui compreendida enquanto experiência de vida subalterna, onde o que está em jogo é o enfrentamento da dor e a sobrevivência do próximo através do trabalho . Mas na história contada pelas mulheres, a luta vai sendo atravessada por novas dimensões. O caminho, onde se coloca a articulação das mulheres enquanto grupo organizado e uma mudança em suas atividades, é que o buscamos aqui.

(...) em 85, começou o pensamento do Beno em formar um grupo porque já não ia tratar de doente, já ia procurar saúde. Então saímos a procura de saúde. Encontrava os focos, aquelas coisas que davam doenças e não fomos atrás de doença. Então, a gente tinha que prever para acontecer saúde. Quando Beno começou com o grupo fizemos um cadastramento dos problemas da comunidade. Começamos a trabalhar com saúde preventiva. Gosto muito do trabalho preventivo. (...) Se a gente ensina a eles como fazer para se defenderem, eles não vão ficar doentes.O trabalho do Sementinha é de Saúde Pública. Para curar, tem os hospitais que curam mal mas nós temos que levar para lá. No começo muitas pessoas não nos atendiam mas insistíamos. Ficamos sabendo o motivo das doenças das comunidades. Não é tanto por causa de água e esgoto, é salário baixo. (...) Porque quanto mais se estuda mais tem que estudar. Aí fizemos um curso, fizemos mutirão de lixo, mulherada toda ajudando(...)

As falas acima expressam a mudança de eixo do trabalho das mulheres, no âmbito do projeto de atuação e de mobilização comunitária da Pastoral de favelas. No enfrentamento das dificuldades, entra em cena a busca pela saúde e uma atuação, onde está posto o levantamento dos problemas das comunidades e uma reflexão sobre estes. Aí ficam “sabendo o motivo das doenças das comunidades”, conhecendo os baixos salários como elemento fundamental no processo de adoecimento. É neste âmbito que o trabalho se coloca enquanto de saúde pública, no qual o centro não está mais no cuidar, mas na prevenção, no ensinar a se defender da dor. O trabalho volta-se não só para a manifestação da doença mas para a reflexão e atuação sobres seus elementos causadores fazem-se cursos, cadastramentos dos problemas nas comunidades, mutirões etc. 305

A aproximação com o conceito de prevenção, como já foi afirmado, dá-se possivelmente através da própria convivência com os profissionais de saúde nos trabalhos comunitários, do amadurecimento do trabalho com a Pastoral no âmbito do próprio projeto de ação comunitária desta. Mas de que forma as mulheres do grupo se apropriavam deste conceito, reelaborando-o diante da realidade em que viviam e atuavam? De que forma abraçam o projeto de prevenção e em que medida este encontra referência na realidade na qual vivem e sobre a qual refletem? A este respeito, selecionamos alguns depoimentos nos quais as mulheres definem seu trabalho e o analisam no âmbito da realidade em que vivem.

O país está doente. A gente fala de saúde mas é tudo doença e cada vez mais adoecendo. Por quê? Salário todo mês tem um tal de aumento mas para onde? Para baixo. Para eles é para cima, para gente é para baixo. Eles dão mil cruzeiros de aumento e tiram cinco mil porque a gente já está devendo. Se a gente recebe hoje, hoje mesmo fica sem nada, sem comida, porque vai pagar o que já comeu. Tá ruim sem moradia que preste, sem água que preste. A gente fala: “olha, esta água dá doença” e a pessoa responde: “mas o que eu posso fazer? Só tenho essa vasilha e é uma vez por semana que a água vem” E a gente pode prever saúde assim? Não pode. A gente fala de saúde, mas a maior doença que tem nesse país é a fome. As pessoas não têm onde morar, não têm como ir para o trabalho. Passagem cara. Quantas vezes na marmita só tem farinha e arroz. O meu trabalho na comunidade é de prevenção mas infelizmente é difícil a situação não permite.

A avaliação a respeito da situação do país “doente” traz a percepção da própria forma como é compreendido o adoecer. Este processo de adoecimento, que se difunde pela sociedade, é marcado pela desvalorização e exploração salarial - de forma que se dão mil cruzeiros mas são tirados cinco-, e também por um movimento, onde está colocada a desigualdade já que o aumento do salário “para eles é para cima, para gente é para baixo”. É dentro de um processo, onde está posta a exploração e a desigualdade, que são compreendidas as doenças das comunidades, a doença do país -a fomee as dificuldades de sobrevivência. A experiência vivida no âmbito do projeto de mobilização comunitária da Pastoral e de prevenção dos profissionais de saúde contribui para que se reelabore a percepção que se tem da doença, passando a compreendê-la dentro 306

de uma situação onde está colocada não só a dor dos doentes necessitados mas a doença do país. Mas o experimentar deste projeto pelas mulheres aponta também para uma reflexão a respeito da alternativas ao adoecer. Indica o desencontro entre o trabalho de prevenir, anunciado anterioriormente, e suas condições de realização, no âmbito do qual se reelabora o conceito de prevenção. A este respeito, trazemos a análise realizada por Monica Peregrino, companheira de investigação, em seu trabalho sobre a produção do saber das mulheres do Sementinha. A análise indica o fato de que em sua prática cotidiana, as mulheres “tropeçaram em ‘situações’ reais que impediam a realização de seu projeto original. Defrontaram-se com perguntas para as quais não encontraram respostas, no conceito de prevenção”.

A desconfiança da impossibilidade de prevenção se manifesta nesta fala, pelo abandono da saúde enquanto busca. A saúde se reduziu à fala: “a gente fala de saúde”. A gente só fala de saúde, porque para “a maior doença que tem neste país”, a fome, as possibilidades de prevenção não estão dadas de forma imediata. A constatação da impossibilidade de prevenção, desloca o acento da categoria saúde, fazendo-o retornar à categoria doença , não mais como um objeto de busca, mas como categoria analisadora das condições de existência: “Agora mudou tudo. Saúde só tem o nome, é tudo doença.”; “O País está doente. A gente fala de saúde , mas é tudo doença, e cada vez mais adoecendo.” (...)A reelaboração do conceito e das possibilidades da prevenção, assim como o movimento de desacentuação da saúde e a concomitante acentuação da doença como categoria explicativa das condições concretas de vida, expõe a vivência como fundamento para a construção desse saber, que destoa do saber dominante. Criticando-o, na medida em que demonstram seus limites concretos de realização, e ao mesmo tempo ampliando-o, na medida em que superam os limites biológico/ambientais da causação das doenças, e portanto de sua prevenção. (PEREGRINO, 1995)

O trabalho de Mônica Peregrino nos indica a forma como a doença, elemento central na experiência inicial das mulheres do grupo é recriada, através do próprio desencontro com o conceito de prevenção, retornando enquanto categoria analisadora das condições de vida. E avança na análise das reflexões das mulheres, indicando como neste processo elas produzem também uma releitura do conceito de cura pois se “‘a primeira doença é o salário’ , se ‘a 307

pior doença que tem nesse país é a miséria, é a fome do povo’, então os remédios só podem mesmo ‘remediar’, e os hospitais não conseguirão curar direito, porque não tem remédio nem hospital que cure salário, fome e miséria” (P EREGRINO , 1995) Junto à reeleitura dos conceitos de prevenção e cura, o processo de reelaboração marca também a passagem de uma percepção da doença, onde se evidencia sobretudo o adoecer de cada um e a compaixão pela dor do outro, para uma visão, na qual se colocam a dimensão social do adoecer e os limites do projeto de prevenção e do trabalho curativo. Considerando esta visão, quais as possibilidades que se colocariam ao trabalho do grupo? Se seguirmos as pistas das possibilidades apenas a partir das críticas nas falas vistas, concluiríamos que ao grupo caberia somente adentrar por um projeto político mais amplo que lutasse contra os processos que tornam “o país doente” ou então bater em retirada, reconhecendo a infertilidade de seu trabalho. No entanto, seguiremos outras pistas que nos clarificam a respeito do percurso então tomado.

(...) a nossa vocação é o trabalho. Nós trabalhamos porque se precisa atender aos doentes necessitados. Na minha casa é cheia de tintura-mãe e tudo é curado: ferida, corte, rachaduras. E é bom. Isso é incentivo para trabalhar. (...) e eu estou feliz porque vejo a cura no meio do mundo se espalhando para Nova Iguaçu, São Paulo, é Estado do Rio, é aqui na Penha, é em todo canto. É uma maravilha. Se eles tivessem dinheiro para comer não estavam doentes, não. Mas não têm. A situação está triste mas tem gente pior ainda porque a gente está falando aqui, ainda tem uma roupa para vestir, ainda tem o que jantar e almoçar, graças a Deus e eles? E as pessoas que estão desempregadas porque tem milhares de pessoas desempregadas. A gente não pode se transformar em emprego. E tem pessoas que ganham pouquinho, não dá prá nada, vai na tendinha e entorna. E quem paga é a mulher e os filhos.

O caminho ainda perseguido é o do trabalho. Uma vocação que pode parecer natural mas que não o é uma vez que forjada no âmbito do processo que produz doentes necessitados. O trabalho se coloca enquanto necessidade de atender à necessidade do outro. Recoloca-se aqui o compartilhamento da necessidade do outro.

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Mas diante desta necessidade posta e do compartilhamento experimentado, quais as possibilidades anunciadas para este trabalho? Os dois depoimentos seguintes nos indicam que ele é reconhecido em sua possibilidade de oferecer caminhos que “espalham-se pelo mundo” - uma cura que não significa nestas falas o produto final do tratamento do doente, segundo a referência científico-hegemônica, mas o próprio tratamento e processo onde está posta a afirmação de um saber das ervas medicinais, produzido na experiência histórica de algumas das mulheres e que é recriado no âmbito da sociabilidade forjada coletivamente na favela. 107 No percurso seguido, é então fundamental considerar a afirmação de um saber atravessado por sua experiência e que se recria em meio às relações na favela, fundando assim, na travessia histórica do Sementinha, uma referência reconhecida na comunidade e mesmo em outros espaços com os quais vão interlocutando. Por fim, a última reflexão nos mostra que a experiência histórica do grupo produz uma visão, onde a doença aparece não só nos males físicos causados pela falta dinheiro mas também no “nervoso” trazido pela falta de dinheiro para comer. No processo que produz o adoecimento da população, tendo como referência o compartilhamento da experiência subalterna, é também percebida a particularidade da situação daqueles que estão desempregados e dos que ganham muito pouco, bem com as implicações sociais desta situação, apontados no entornar na tendinha e no sofrimento da mulher e filhos. A necessidade que se recoloca, no compartilhamento da dor do outro aponta o caminho perseguido desde que elas ainda não estavam articuladas enquanto grupo: o trabalho. Mas, o conhecimento das implicações desta dor, que ultrapassa os males físicos, e o reconhecimento de um saber e experiência 107O

processo de cura ao envolver o próprio tratamento, implica que se conheça o seu percurso. Para algumas mulheres do Sementinha, a “cura” de alguns males exige uma sabedoria, onde está inscrita a fé, que não é prerrogativa de todos, indistintamente. No entanto, na maior parte dos casos, a “cura” pode ser gerida pela própria pessoa, que conhece então o percurso do tratamento. É o caso dos chás e xaropes medicinais, cujo fazer é muitas vezes socializado no trabalho cotidiano do grupo e que encontra referência no próprio conhecimento que as mulheres das comunidades possuem a respeito das principais plantas medicinais. Porém, as mulheres do Sementinha observam que, embora distribuam as ervas para chás e ensinem como prepará-los, habitualmente as pessoas não gostam de fazê-los mas levá-los prontos. Fica aqui a questão se a observação do Sementinha indica uma resistência do grupo em repassar seu conhecimento, que o distingue nas comunidades, ou se ela não aponta também, através da resistência das pessoas, para o fato de que, no processo de cura, estão em jogo o conhecimento das ervas, o fazer dos chás, sua dosagem, mas também o acompanhamento de um processo, onde o cuidar é um elemento chave, que se contrapõe radicalmente à formalidade, e mesmo perversidade, habitualmente presente nos serviços públicos de saúde.

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que se recriam na comunidade e para além dela, é que dão as referências do percurso então seguido pelo Sementinha, fertilizado agora pela forma como experimentaram os projetos de mobilização comunitária e de prevenção nas favelas. No centro destas referências, como que amarrando-as, encontra-se um elemento chave, subjacente ao percurso histórico das mulheres, potencializador dele, e definidor do trabalho:

(...) às vezes, as pessoas nos procuram porque atendemos bem, somos solidários. Quando a gente fala em visita domiciliar não é que a gente vai visitar a pessoa, a solidariedade humana é a visita. (...) Essas são as visitas domiciliares, vê se a pessoa está melhor com os remédios que a gente deu. Quando eu ponho visita domiciliar é independente do tratamento. Vou lá visitar o cliente que mês passado eu passei na casa dele e ele estava doente. Agora vou visitar, converso. Às vezes, essas visitas vão dar mais saúde a eles porque estão nervosos com a carestia. (...) Às vezes, ele pede para gente verificar, muitas vezes a gente conversa. E ele fala: sabe que estou me sentindo melhor? Só de estar conversando e a gente fala de nosso trabalho. E é um surpresa, pergunta se a gente vai em lugar perigoso, se a gente não tem medo. Depois começa a brincar, rir. Quando a gente vai olhar, já abaixou. Só por causa do papo. (...). Por exemplo, a Penha, a população carente da Penha. Por aí se tira outras populações. (...) A doença deles é a miséria e não tem quem dê uma esperança para eles. E o nosso trabalho é de esperança.

A noção de trabalho subjacente às falas aqui postas traz uma concepção ampliada no espaço do fazer . Trabalho enquanto uma experiência que se recoloca no tempo já que se desenvolve ultrapassando a esfera que os mediadores reconhecem comumente como a atividade que caracteriza a agente comunitária de saúde. Trabalho atravessado pela solidariedade, que qualifica e potencializa a visita domiciliar como atividade das mulheres e objetiva o percurso do grupo - “ajudar a toda população carente, também não é só a Leopoldina não”; “a doença deles é a miséria e não tem quem dê uma esperança para eles. E o nosso trabalho é de esperança”. Solidariedade que se encontra na encruzilhada que articula o compartilhamento da necessidade e das implicações da dor na vivência subalterna e o reconhecimento de um saber que se recria nas relações tecidas na comunidade. 310

Nesta reflexão, a respeito da dimensão da solidariedade inscrita nas falas do Sementinha, mais uma vez nos voltamos para as pistas trazidas por Mônica Peregrino. Ela destaca que solidariedade “para o Sementinha não é categoria teórica necessária para preencher as ‘lacunas’ encontradas na tecitura frouxa do conceito hegemônico de prevenção. A solidariedade se impõe como necessidade, tanto para aqueles aos quais atendem, como também para elas: mulheres, moradoras das favelas, na maioria migrantes, que compartilham com seus clientes, as dificuldades do viver.”

Existe um texto, não importa qual, que fala sobre a palavra compaixão. Ele conta que esta palavra, numa determinada língua, descreve a capacidade dos homens de compartilhar um mesmo sentimento, qualquer que seja. Essa palavra não é suficiente para descrevermos aquilo que o contato, mesmo que só através de um relato, com as mulheres desse grupo nos evoca. A solidariedade para elas, assim como para todos os homens e mulheres, que pelo simples fato de estarem vivos anunciam uma possibilidade coletiva de resistir à exclusão, para essas pessoas, a solidariedade não é só um sentimento que se compartilha. É algo que se coloca como condição de existência. A palavra que os sintetiza não pode estar portanto, reduzida ao campo do sentido. Ela deve incluir o campo do vivido. A palavra não é compaixão. É convivência. (PEREGRINO, 1995)

A reflexão nos indica que a solidariedade se coloca como necessidade às mulheres do grupo, enquanto possibilidade de resistir à exclusão inscrita num “país doente”, onde é difícil “prever saúde”. Ela anunciaria então novas formas de viver. Se recuperarmos o significado do trabalho enquanto ajuda, anteriormente analisado, e considerarmos a experiência de trabalho das mulheres, antes mesmo da formação do grupo, e as próprias estratégias de sobrevivência forjadas na dinâmica da favela, podemos afirmar que a solidariedade se engendra imbricada na forma como as mulheres experimentam sua religiosidade, na sua própria experiência histórica de trabalho e nas relações de sociabilidade produzidas na favela, onde a luta coletiva pela vida se coloca no centro do vivência subalterna. Neste processo, ela se engendra enquanto dimensão da luta que caracteriza a experiência de vida e trabalho. Mas ela se reelabora na trajetória do Sementinha, sendo repotencializada diante dos limites por elas apontadas ao projeto de prevenção e do trabalho curativo, tal como são concebidos pelo saber científico-hegemônico. De certa forma, historicamente, ela é o solo no qual forjaram sua experiência de 311

trabalho, tecido onde se desenvolvem as relações de sociabilidade na favela e terreno fértil, onde produzem as possibilidades de recriação do trabalho. Nesta dimensão, está inscrita a luta destas mulheres. Luta compreendida enquanto experiência de vida e prática política. Experiência histórica da subalternidade que no compartilhamento humano produz a possibilidade de sobrevivência. Prática política forjada no cotidiano que se contrapõe criticamente à sociabilidade capitalista e à visão fragmentadora e individualizadora do humano, reproduzida como universal, recriando no âmbito da favela e para além dela, pelo meio do mundo , mas dentro do país doente , outras possibilidades, onde o humano não é somente o físico e o individual, é emocional e social. Onde a solidariedade “se aproxima da prevenção”, nas visitas domiciliares que “vão dar mais saúde ao doente”, ou então se transmuta em “remédio” para os problemas de pressão (P EREGRINO , 1995). E onde a cura, não é produto, é processo no qual o outro é ciente e não paciente. E onde o trabalho não é deposição de armas mas anúncio de esperança. Assim, revemos a travessia de luta do Sementinha. Em seu percurso, o Sementinha formou-se com base numa experiência anterior das mulheres, onde se colocava a compaixão pela necessidade do outro e o saber acumulado sobre as ervas, e na proposta de mobilização comunitária da Pastoral de Favelas. Distanciou-se deste trabalho de mobilização, tal como compreendido pelo projeto da Pastoral. Nas palavras de Beno Selhorst, que na época acompanhou o grupo, “elas se desenvolveram na direção que era uma área que elas dominavam, ficavam à vontade (...) e na prática, elas foram se especializando naquilo onde elas podiam prestar serviço, onde se sentiam a vontade” 108. Afastou-se também do projeto de prevenção que atravessava a mobilização comunitária e que era discutido no âmbito de suas relações com os profissionais de saúde. À primeira vista, pode parecer que o Sementinha retrocedeu. Voltou às suas origens, retornando aos tempos da “pastoral de doentes, não de saúde, do Hospital Getúlio Vargas”. Entretanto, munidas de sua experiência histórica, apropriando-se do saber trazido por outros e mergulhadas na vivência cotidiana dos subalternos, as mulheres do Sementinha “caminharam”, conhecendo mais o “caminhar” 109. 108Entrevista

a Beno Selhorst (maio/1994). Ver Parte IV.

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“Apropriar” aqui é usado no sentido que lhe dá Chartier e que explicitamos na primeira parte deste trabalho. Relembramos que usamos um conceito de apropriação, onde se enfatizam as condições e processos que determinam a construção de sentido. Assim, a apropriação do saber trazido implica a produção de um outro saber, construído nas “descontinuidades das trajetórias históricas” (Chartier, p.27).

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Reelaboraram sua experiência de trabalho e recriaram o caminho. Recuperando as palavras de Beno Selhorst, perseguiram o que dominavam, onde se sentiam à vontade, onde podiam exercer sua vocação produzida, de trabalho com os necessitados. Perseguiram sua experiência e saber histórico, reatualizados a partir de novos saberes e das novas aventuras de uma tristeza triste . 110 Neste caminho, solidariedade então não é reação , não é demonstrativo da retórica desqualificadora que discursa sobre a capacidade de auto-ajuda dos pobres. Solidariedade é possibilidade coletiva de resisti r à exclusão e anúncio de novas formas de viver , como nos lembra Mônica Peregrino. Solidariedade é possibilidade de reintensificar a experiência histórica. É recriação de relações de sociabilidade construídas ao longo dos tempos e que se recolocam no presente. Relações que não só elas dominam, mas tantos outros e que por isso apontam as possibilidades de compartilhamento do humano . Diante destas possibilidades, interrogamo-nos se elas inscrevem-se também em outras histórias, particularmente naquelas que estamos trazendo. O Sementinha não vem iniciando apenas as análises aqui postas. Ele também nos iniciou nas aventuras do trabalho de campo e neste sentido não pode deixar de referenciar nosso olhar para outras tramas, ao desvelar relações de compartilhamento construídas historicamente pelos subalternos e recriadas em seu cotidiano. Assim, sem deixar de dar atenção às particularidades das outras, buscamos nelas também, enquanto possibilidade, a pista de luta indicada nos caminhos do Sementinha. Vamos seguir pelo Sangue Novo, cujo movimento ficou conhecido enquanto uma luta coletiva pela luz. Nesta história, a luta apresenta-se de forma imediata , enquanto mobilização comunitária, dentro do projeto que vinha sendo desenvolvido pela militância do núcleo de Vila Cruzeiro do PT.

A informação que eu tive posteriormente é que eles tiraram uma posição no PT de trabalhar na comunidade, de organizar a comunidade. O que a gente pode fazer para intervir dentro da ação da comunidade e ver, por exemplo, associações inoperantes. Primeiro, eles procuraram a Associação de Moradores para militar, para poder buscar recursos. (...) era uma camarilha, uma máfia impenetrável. A nossa primeira avaliação era o seguinte: que a gente não ia conseguir fazer 110Tristeza

triste é uma expressão usada por D.Creusa, uma das mulheres do Sementinha para qualificar a situação dos pobres do país e especialmente daqueles com quem mantém contato em seu trabalho.

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absolutamente nada se não fosse através da Associação de Moradores. Uma coisa meio discursionista: “não, tem que passar pela Associação de Moradores, não sei o que, não sei que lá”. E a gente já estava meio que querendo jogar a coisa para o pau”.

Os dois depoimentos nos mostram que a proposta de mobilização comunitária gestada dentro do PT trazia de início a busca pela atuação através da Associação do Parque Proletário. Busca que possivelmente encontrava ressonância na experiência dos militantes dentro da Associação de Moradores de Vila Cruzeiro. 111 . Mas, busca que revelou outros caminhos pois, no embate com a Associação do Parque, esta foi percebida como uma “máfia impenetrável”, e a proposta redefinida, no sentido de ampliar o espaço da luta (a comunidade), seus sujeitos (os moradores), de trazer para cena os interesses destes, bem como de definir o primeiro inimigo no conflito - “a máfia impenetrável” articulada aos atravessadores da luz. A redefinição da proposta possivelmente foi fertilizada pela discussão no âmbito do PT e pelo conhecimento das novas práticas políticas então construídas pelo movimento popular, onde os sujeitos coletivos traziam o exercício da participação ativa. Mas certamente, ela se colocou enquanto necessidade diante da experiência da militância em sua atuação na comunidade, onde se confrotava com as relações de poder. É neste âmbito que “a coisa meio discursionista” do institucional revela suas impossibilidades e é apontado o caminho da mobilização comunitária através da participação ativa. A visão da luta enquanto ação pelo institucional dá lugar a uma percepção, onde o espaço e os sujeitos da luta são ampliados. Tal visão vai se colocando de forma mais definida ao longo da própria luta na comunidade e também no âmbito do embate da militância do PT com outras formas de fazer político que se desenrolavam no movimento popular, e particularmente na Leopoldina. Referimo-nos aqui a ação do PDT na cena política da região:

(...) antigamente, o movimento era assim...Porque a gente não ia falar, não ia um. Iam cinquenta e subiam três, subia a comissão. Então tinha sempre um movimento muito vivo ali, sempre presente. Como o Brizola isso vai acabar. (...) Ele reconhece a interlocução mas ele 111É

importante lembrar que a base da luta do Sangue Novo se dará no Parque Proletário, onde estava a comissão de luz que repassava os serviços de luz não só para esta comunidade, mas também para Vila Cruzeiro e parte de Vila Cascatinha, favelas vizinhas. O Núcleo do PT era em Vila Cruzeiro, comunidade na qual os militantes já vinham atuando e onde, inclusive, Marcelo Dias, integrante do Movimento Sangue Novo, chegou a ser secretário da Associação.

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cooptou. Ele acalmou. Porque ele ao mesmo tempo que dá uma voz relativa, ele coopta, ele acalma, “depois eu te dou”. (...)O estatuto mais novo que existia na época, nas favelas, era da Jurema Batista, era do Morro do Andaraí. Aí vim na casa da Jurema, no Andaraí, peguei a proposta do estatuto porque a gente queria trabalhar com o novo. Então, na nossa concepção de associação de moradores ia ser uma espécie de candidato por cada beco, então era uma associação muito mais democrática, muito mais aberta. Tinha direção mas tinha um colegiado. Uma concepção de colegiado. E o Fernando William não fazia isso. Não é nenhum edital que pode convocar as pessoas para assembléia de morador. Não houve nenhuma casa naquela época que a gente não tivesse ido, nenhuma.(...)Não teve um morador que a gente não tivesse batido na porta. Foram três anos de luta (...) as reuniões era ágeis, né? As reuniões não eram longas (...)E todas as reuniões eram abertonas mesmo. Chamava um cara da CEDAE, da LIGHT(...). (...)o movimento só cresceu graças à parte cultural. A cultura em qualquer movimento popular, se ela não tiver presente, você não tem a menor chance. Porque era ela que reunia as pessoas ali.

O primeiro depoimento refere-se ao movimento popular na época, no qual produz-se uma determinada forma de ação política onde se enfatizava a participação ativa dos moradores, que se contrapunha à prática representativa. Traz também o marco de mudança, aqui apontado pela política iniciada com o primeiro governo Brizola, onde se coloca a cooptação e o “acalmar” do movimento. O relato seguinte, evidencia um dos vários pontos de diferença que os militantes do PT vão perceber em relação à prática política do PDT: a forma de concepção da associação de Moradores. Para o PT, tratava-se de romper com o estatuto das associações, burocrático, centralizador e limitador da participação do moradores, colocando uma proposta descentralizadora, onde as reuniões por beco abriam possibilidades à participação dos moradores e a gestão estaria a cargo de um colegiado. Mas a alternativa de outro estatuto era referenciada na experiência desenvolvida pela próprio PT e particularmente pela ação que marcava o Movimento Sangue Novo, como podemos verificar nos dois últimos relatos, nos quais se conta a forma de atuação do Movimento. Subjacente à proposta do estatudo está inscrita, pois, uma prática que vinha sendo construída no Movimento, onde se colocava a mobilização de porta em porta, e através do cultural, bem como as reuniões “abertonas e ágeis” semanais com os moradores. Neste sentido, a própria experiência da militância no âmbito do Movimento contribuía para que esta produzisse, na cena política do movimento da região, 315

uma visão de luta política, onde não se acenava apenas com um novo estatuto mas se afirmavam possibilidades de ação que traziam a participação ativa. Mas como esta, ao se colocar na travessia do Movimento Sangue Novo, que vai então se constituindo, vai sendo percebida pelos moradores? E em que medida as experiências por eles trazida contribuem para alterar a concepção de luta? Iniciamos pelos depoimentos de uma movimento, que nos indicam algumas pistas:

moradora,

participante

do

Eu ainda meia desconfiada, virei pro Paulo e falei assim: “Oh, desculpe a ignorância da macaca aqui, mas, o quê que vocês tão querendo?”. Aí o Paulo: “É, simplesmente a gente quer te ajudar...ajudar vocês...”. Eu falei: “Será que é só isso mesmo?” Porque eu falei, a gente não estava acostumado a receber nada assim, né?.Apesar que não recebemos porque foi sacrifício. Acho que foi uma luta de quase uns três meses. O pessoal, a maioria trabalhava. A gente que não trabalhava fazia de porta em porta, de dia e de noite (...) Formamos assim um grupo, mais ou menos de umas quinze pessoas, aí a gente chegava, batia na porta, as pessoas riam da gente: “Vocês estão malucos, vocês são um bando de maluco porque vocês não vão conseguir tirar o Rubem daí nunca”. Eu falei: “Mas se a gente não tentar, como é que a gente vai saber? Tudo é questão de tentar”. Ai as pessoas: “Ah vou dar porque não custa nada (...) Eles só não acreditavam que nós fóssemos conseguir nada”. (...) “A gente não vai poder fazer nada porque senão nós vamos morrer”. Porque tinha até polícia envolvida nessa comissão de luz e a gente sempre amedrontado. E eu tinha medo de tudo mesmo. Não tinha experiência de nada. Eu nunca tinha participado de nada. Só da minha casa mesmo. Eu não sabia nem o poder que eu tinha, que eu podia alguma coisa.

Como já destacamos anteriormente, de início a aproximação da militância foi percebida com desconfiança, duvidando-se do “ajudar” e afirmando-se a experiência da comunidade que não recebia nada de graça. Mas o experimentar posterior da luta faz com que a moradora interprete a história vivida e destaque “que não recebemos porque foi sacrifício”. Na afirmação do sacrifício, contraposto ao receber de graça, está inscrita a identidade dos sujeitos coletivos que levaram a luta e a percepção de que a conquista se forjou enquanto coletiva. Mas nesta última, nem todos se colocavam da mesma forma. Havia aqueles, a maioria, que trabalhavam e não podiam mergulhar numa luta de 316

quase três meses. E havia o grupo, que não trabalhava, de umas 15 pessoas e que, de porta em porta e de dia e de noite, faziam o trabalho de recolher o abaixo-assinado exigido pela Light para que ela entrasse na comunidade. Trabalho que não implicava uma mera coleta de assinatura mas o convencimento das pessoas através da própria problematização da realidade em que viviam, como podemos perceber ao final do relato. No convencimento, a luta é percebida como impossibilidade por muitos mas apresentada como um “tentar”, arriscar pela moradora. Arriscar, que ela colocava como uma necessidade e que os moradores assumem como “ não custar nada” ao assinar o documento, “ainda que não acreditassem na conquista”. Subjacente ao “tentar” trazido por ela, está a incerteza quanto à conquista mas a ênfase no processo da luta, marcado pelo risco e pela possibilidade de conseguir. Imbricado no “não custar nada” está a incredulidade na conquista, fundamentado no conhecimento das relações de poder no âmbito da comunidade ( “porque vocês não vão conseguir tirar o Rubem daí nunca”), mas possivelmente também a expectativa de mudança inscrita no risco assumido de assinar. E talvez este risco não fosse um mero fantasma se seguirmos a observação de um participante do movimento que afirma: “alguns não queriam assinar, falavam que era medo do cara”. E considerarmos, ao mesmo tempo, que as relações de poder que atravessavam a “camarilha impenetrável”, envolvia até mesmo a presença de um policial da ativa. A dimensão do medo fica clara no último depoimento, da moradora que conta sua primeira reação à idéia de lutar pela luz da Light e contra a Comissão de Luz, afirmando ter medo de tudo e não saber que podia alguma coisa mas que, posteriormente, se torna participante ativa do movimento. A mesma que declara a necessidade de tentar. Duas afirmações - o medo e o tentar - que podemos perceber como não contrapostas, mas faces diversas do processo de luta 112. A este respeito, interrogamo-nos a respeito da mediação que faz com que uma destas faces - o “tentar” se potencialize de forma a produzir uma ação de enfrentamento ao medo e a incredulidade. Em busca de uma resposta, vamos ao encontro das análises da mesma moradora, no que se refere à experiência de luta, uma delas já vista anteriormente mas que julgamos necessário recolocar aqui:

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Consideramos aqui que tanto quanto o arriscar, o medo é uma dimensão da luta, incrito na experiência histórica do subalterno. Alguns autores refletem sobre esta questão, como Marília Spósito (1993) e Adir Almeida (1995).

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Porque você, sozinha, você não é ninguém...O quê que nós somos, sozinhos? Não somos nada. (...) às vezes é um sozinho, né? Não adianta um sozinho ter vontade. Então tem que ter um todo...Aí às vezes não encontra esse todo, fica sozinho, aí não dá prá fazer o que quer (...) (...) A gente não entendia nada de movimento... Aí nós fomos saber o que é um movimento: não tinha líder o nosso movimento. Todo mundo liderava, era a união que a gente tinha. A gente fazia reunião. A gente procurava conversar, ver os acertos, né? Porque havia brigas, como tudo porque ninguém sempre concorda, é obrigado a concordar sempre um com outro (...) Porque ali não tinha um : eu mando, você manda. Não. Ali todo mundo expunha as suas idéias, sabe, era respeitado, às vezes nem concordava, mas respeitava, se discutia(...) O respeito que um tinha pelo outro e amizade que ficou até hoje. Aquilo para mim foi uma família, que me ajudou muito. Sem o movimento eu não mudaria, sabe? Acho que eu nem sei como é que estaria hoje. (...) Eu tive coragem porque até antes eu não tinha coragem assim de enfrentar ele, assim de sair...Eu não saía de casa, o meu passeio era ir para o médico ou ir para um supermercado, entendeu? (...) Eles viram que eu não parei, eu banquei esta luta até o fim, eu fui. Mas só Deus sabe, minha filha como eu fui. Porque eu acho que isso era um ideal que eu tinha dentro de mim. Eu falei: não chega, eu já abaixei muito a cabeça (...)

A primeira análise nos chama atenção para a dimensão coletiva inscrita no processo de luta, onde estão colocados os limites da vontade individual de alguns, através da qual não dá para fazer o que quer, e a potencialidade do todo. É exatamente esta dimensão coletiva que é destacada particularmente em relação à experiência do Movimento Sangue Novo. É na experiência do movimento, que a moradora até então não possuía, que ela produz sua visão do movimento - “(...) A gente não entendia nada de movimento... Aí nós fomos saber o que é um movimento”. A sua reflexão traz a imagem de um movimento que não tinha líder e onde se desenrolava a discussão enquanto concordância e discordância, bem como a busca de acertos, e no qual união e respeito se colocavam como dimensões fundamentais. Um movimento que se tornou uma família que a ajudou muito e deixou frutos, revertida na amizade que ficou. Revertida na própria mudança que aponta em si mesma, e também na mudança de suas relações pessoais. Um movimento que significou uma luta coletiva na esfera da comunidade. E também uma luta pessoal que compartilhava com aqueles que estavam a seu lado no Movimento. Lutas movidas por um ideal que levava dentro dela. 318

Relembrando as reflexões de Marília Spósito, podemos considerar aqui que o tecido das relações sociais espontâneas não responde a todas necessidades de trocas sociais das mulheres subalternas. Assim, de uma sociabilidade espontânea ocorre uma busca intencional de novos laços, onde se exprime a vontade de apropriação de espaços e mundos que não foram vedados à presença feminina(1993). Dentro deste âmbito podemos compreender que o movimento desvela à moradora a possibilidade de respostas às necessidades forjadas em seu cotidiano, não respondidas pelas relações de sociabilidade local e, mais particularmente pela esfera do mundo da casa. Mas ao mesmo tempo, podemos pensar que o movimento traz também a possibilidade de afirmação de uma experiência e saber historicamente produzidos que encontram no novo espaço a alternativa de se fertilizarem. Assim, aquilo que ela coloca enquanto descoberta (saber o que era um movimento -), aquilo que ela identifica naquele movimento (“não tinha líder o nosso movimento, todo mundo liderava, era a união que a gente tinha”, “o respeito que um tinha pelo outro e amizade que ficou até hoje, aquilo para mim foi uma família, que me ajudou muito”), possivelmente encontrava ressonância naquela que era sua experiência histórica de vida, onde ela produzia “seu ideal”. Descoberta e encontro são assim redescoberta e reencontro com um saber e uma experiência, reelaborados no âmbito do movimento, porque potencializados pela apropriação de novos conhecimentos e vivências. A esta altura, podemos arriscar uma resposta a nossa pergunta a respeito da mediação que potencializa a dimensão do “tentar” e o enfrentamento do medo e da incredibilidade. Ela se inscreve na forma como a moradora vivenciou a descoberta e o encontro com o movimento, de início nas primeiras reuniões e posteriormente na vivência da seu desenrolar. Esta vivência traz a possibilidade de afirmação de sua experiência histórica de vida e de busca das expectativas aí produzidas, ampliando-as ao reelaborá-las no âmbito coletivo. Assim, práticas e visões construídas, a respeito de como as relações devem ser conduzidas, colocadas em sua fala como o ideal , encontram no movimento o espaço para se fertilizarem. Aqui, na luta, as esferas do privado e do coletivo imbricam-se potencializando o “tentar” e produzindo o enfrentamento do medo e da incredulidade, desvelando o “poder que tinha”. A forma como estas esferas interagem, pode ser percebida no seu relato a respeito das mudanças em sua vida. A luta é aqui vista enquanto um esforço incansável e corajoso movido por um ideal. Luta enquanto prática política, luta enquanto experiência de vida na reafirmação e busca de seu “ideal”. A conquista é anunciada na mudança conseguida mas a ênfase se coloca sobre o “bancar a luta”, tempo e espaço onde se produz a mudança e se reelaboram o saber e a experiência histórica. 319

A pista trazida pelas análises da moradora nos faz mais uma vez refletir sobre a particular forma como as mulheres participam do Movimento.

E a gente começou a fazer grupos e foi aí que começou a organização do pessoal. A mulherada tinha mais tempo. As senhoras da comunidade tinham mais tempo. Então, elas durante o dia corriam a vizinhança pedindo para que as pessoas assinassem.

O depoimento da militante do PT, moradora de Vila Cruzeiro, nos traz que o caminho de mobilização comunitária, aqui particularmente para conseguir o abaixo-assinado exigido pela Light, foi a organização de grupos, onde as mulheres tinham participação destacada. Como já anunciamos anteriormente, esta participação das mulheres no Movimento vai trazer novos contornos a ele, chegando-se inclusive a se criar um grupo de mulheres, onde a percepção de necessidade é ampliada, contemplando um universo de questões que ultrapassam a visão de necessidade básicas, presente na proposta original dos militantes do PT. No que se refere a sua participação na luta pela luz, na maioria das vezes exercendo suas atividades na própria favela, “tinham mais tempo” para passar o abaixoassinado. Neste sentido, podemos interrogar a observação colocada no depoimento: elas tinham mais tempo livre ou elas tinham mais tempo na comunidade ? Se o exercício do trabalho no espaço do morar contribuía para que este se conjugasse à própria ação comunitária, não é que elas tinham mais tempo. Possuíam possibilidades de potencializar este tempo na comunidade, não sem o esforço de intercalar inventivamente seu trabalho à luta comunitária. Esforço que não “cai do céu”, mas que é parte integrante da experiência histórica destas mulheres, cuja vivência subalterna torna seu trabalho fundamental à sobrevivência da família, já que lhe cabe carregar água, cuidar da casa e dos filhos e, muitas vezes, complementar o orçamento familiar através de atividades que se conjuguem às tarefas cotidianas. 113 O que se coloca aqui então, é uma delimitação fluida entre a esfera privada e a coletiva, onde o trabalho comunitário se apresenta como prolongamento do mundo da casa. 114 Esta conjugação de lutas, que particulariza 113É

importante lembrar também, como já foi afirmado no capítulo 3 deste trabalho, a respeito da solidariedade enquanto experiência de vida, que a vivência subalterna supõe uma rede de sociabilidade local, onde a sobrevivência da família se dá com bases que ultrapassam a esfera privada. 114

Discutindo os movimentos populares e a reapropriação da vida privada, tematizando particularmente a experiência das mulheres, Marília Spósito chama atenção para o fato de que “as mulheres que ficam em casa acabam por adaptar às rotinas domésticas aos tempos de

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a experiência das mulheres na favela, engendra também um conhecimento particular da realidade em que vivem e formas de ação igualmente específicas, onde muitas vezes as diferentes experiências vividas, nas lutas que parecem distintas, são percebidas enquanto faces da mesma moeda, relacionando-se de forma que as experiências fertilizam-se interativamente. Tal fato, bem com a reflexão acima colocada a respeito da moradora, nos levam a pensar sobre a ampliação da luta que vai se produzindo ao longo do Movimento. A proposta inicial daqueles que atuavam no núcleo do PT era a mobilização comunitária em cima de problemas que despertavam o interesse da comunidade - problemas por eles identificados às necessidades básicas - mas no desenrolar do Movimento, a participação dos moradores, e particularmente das mulheres, traz outras dimensões para o processo de luta. Este alargamento produz-se sem dúvida, fundado na multiplicidade de experiências que são trazidas pelos diversos sujeitos da luta ( as mulheres, crianças, os moradores antigos, os militantes do PT) e pelo próprio lugar assumido por eles no âmbito desta. 115 Mas é necessário considerar aqui também a percepção de alguns militantes do PT a respeito da luta política. Lembramos então, a observação, já citada, de uma das militantes a respeito da resposta dada àqueles, do próprio PT, que desconsideravam as atividades com as crianças e mulheres: “a revolução não bate na porta”.

A gente já era revolucionário da época. Mas a gente tinha esta opção, a gente queria mudança a partir de agora. Parece utópico, socialista...A gente queria coisa boa para agora. Na época, a gente não podia pagar cerveja. Era um sonho, a gente queria. Queria mudança para agora. Achava que assim mudava. As crianças eram mais felizes. Levava para o Parque Ary Barroso para brincar.

trabalho marcados pelas necessidades da reprodução do capital”, de forma que seu ritmo é determinado por todas as jornadas dos membros da família. Mas a autora destaca também que esta rotina feminina, ao mesmo tempo que “aprisiona porque seu trabalho é realizado para o conjunto da família, cria o seu contrário, as condições para que a mulher organize seu tempo, e provoque pequenas rupturas na temporalidade já dilacerada pelo mundo do capital”. É neste âmbito que se engendra a reapropriação do privado. (Spósito, 1993, 337/338) 115

É importante considerar aqui que a multiplicidade de sujeitos envolvidos na luta está articulada à própria forma como ela se encaminhava e às necessidades aí colocadas. Assim, a participação das crianças foi vista enquanto fundamental. A primeira passeata feita pelo Movimento se deu junto às crianças, com as quais alguns militantes desenvolviam atividades. Os moradores mais antigos revelaram-se enquanto fundamentais no processo não só pelo conhecimento trazido e o trânsito que possuíam na comunidade, mas também porque habitualmente eram os donos da casa, tendo seus nomes nas contas de luz, sendo portanto considerados legalmente os sócios da Associação, aptos a votar e concorrer às eleições.

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A avaliação da militante do PT traz uma percepção de mudança que não se encerra num projeto para o futuro e na conquista mas no processo do fazer agora, num projeto de construção no presente. Neste projeto, é que se colocam a multiplicidade dos sujeitos do fazer e as diferentes necessidades trazidas por sua experiências. Dentro do próprio Partido, produziam-se pois, percepções diferenciadas da luta, existindo aqueles que a limitavam ao universo das necessidades básicas e da luta para conquistá-las e outros, que afirmavam em seu fazer uma concepção mais ampla da luta política, na qual se colocavam diferentes necessidades, a multiplicidade de sujeitos e onde a ênfase estava no processo de luta e não propriamente na conquista. Mas o desenrolar da luta que implicava a afirmação da multiplicidade dos sujeitos que a protagonizavam - fosse no trabalho cotidiano que o movimento exigia, como boa parte das mulheres, fosse seguindo nas passeatas, como as crianças, ou então subscrevendo o abaixo-assinado -, não supunha uma percepção de divergentes lutas. A particularidade aí colocada não parecia percebida enquanto uma fragmentação do processo de luta. Na verdade, a multiplicidade de sujeitos se colocava enquanto um todo.

Foi uma luta de quase três meses. O pessoal, a maioria trabalhava. A gente que não trabalhava, fazia de porta em porta, de dia e de noite. (...)a gente que mora em favela é triste, sabe? É triste mesmo, porque, às vezes, o Marcelo coloca muito a discriminação racial do negro. Eu falei: mas pra nós, pobres, favelado, não tem discriminação, não tem negro, não tem nada, se nós chegar e dizer que somos favelados, pronto, acabou, a gente é discriminado do mesmo jeito...entendeu?

O primeiro relato, já colocado, nos fala da forma como se organizou o trabalho no Movimento, em seu momento inicial. Não há aqui nenhuma distinção feita com base no lugar ocupado pelos diferentes sujeitos aos quais fizemos referência. A diferença que se dá, a nível de disponibilidade para a ação coletiva, se faz a partir do trabalho. Tal fato nos leva a pensar, enquanto interrogação, que a multiplicidade dos sujeitos, tendo em vista suas particulares necessidades e expectativas, se coloca no desenrolar da luta , informando seus rumos, mas não se inscreve de forma imediata na percepção dos moradores. Na reflexão seguinte, enfatizando a pobreza e favela, a moradora amplia a percepção da discriminação e da identidade dos sujeitos que são por ela atingidos. Neste âmbito, podemos pensar se a discriminação se coloca do mesmo jeito para todos favelados, a luta contra discriminação revela também uma 322

unidade. Descontrói assim as perspectivas que, ao enfatizar as lutas específicas, anulam a totalidade da luta subalterna. Assim, podemos pensar que no âmbito do movimento, os sujeitos se particularizam na multiplicidade de suas experiências, necessidades e expectativas mas estas não são compreendidas enquanto divergentes e não anulam o compartilhamento, pois se encontram na experiência comum de subalternidade. 116 É nesta experiência histórica comum da subalternidade que se inscrevem as possibilidades da luta enquanto vivência e sobrevivência no cotidiano e enfrentamento político. Mas também enquanto afirmação e reelaboração de conhecimentos e experiências forjadas historicamente, bem como busca pelas expectativas tecidas ao longo de tantas lutas. Na trilha do aprofundamento de pistas sobre estas possibilidades vamos ao encontro das análises de duas integrantes do Movimento. Uma ex-moradora da favela e militante dos movimentos populares e do PT e, outra, ainda moradora do Parque Proletário.

Então assim o ser humano, ele se agarra e vai vivendo, como? Ele dá um jeito. Ele vai invadir terra mesmo, vai fazer seu barraco, se não tiver terra para invadir, vai para debaixo da ponte, ele vai. Vai sobrevivendo. E isso não requer nível de organização? Prá caramba. (...) Sindicato vai prá uma assembléia reivindicar aumento de salário, a maioria (...). E estas pessoas, elas constroem ruas, elas constroem casas, em mutirão, seja lá o que for, elas constroem associação de moradores. Poxa, o que tem de clube...O PT não tem sede própria aqui no Rio de Janeiro. (...) que é um time de futebol antigo, lá na Vila Cruzeiro, eles tem uma sede enorme, deles, construiram. Para construir aquilo, eles tiveram que se organizar a bessa, muito organização mesmo. Diferente

este respeito nos parece interessante também o depoimento da presidente da Cooperativa de Trabalho Feminino Loriman Ltda , situada no Grotão. Perguntada sobre o significado de Loriman e a questão do trabalho feminino anunciada no nome da cooperativa, a presidente explicou que Loriman era um nome africano, queria dizer as irmãs, e havia sido sugerido pela coordenadora da Rio Arte que participou da organização da cooperativa. Colocou também que apesar do nome da cooperativa sugerir a questão da especificidade do trabalho feminino nunca houve um projeto particular de valorização de aproveitamento e valorização do trabalho apenas das mulheres das comunidades. Completou que há poucos homens na cooperativa mas se dá por acaso pois ela é contrária a contratação apenas de mulheres pois “todo mundo precisa de trabalho”. Neste âmbito torna-se claro que não só o nome Loriman mas também “o trabalho feminino” foi trazido por pessoas que não compartilhavam a sua visão, provavelmente os profissionais da Rio Arte que acompanharam a organização da cooperativa. ( Relatórios de Visitas às Comunidades, CEPEL, 1994) 116A

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deste modelo. Porque as pessoas falam vulgarmente do modelo leninista de organização, tem que ser daquele jeito mas não é. (...)eu acho que quem faz o lugar é você. Eu entro em qualquer lugar e saio, tanto faz fino...Tanto faz. Eu sei sair, devido à experiência e sei entrar...Não tenho vergonha de chegar, aonde chegar e dizer onde eu moro, porque eu sei que aqui a maioria é tudo feito de gente boa, trabalhadora, lutadora e batalhadora. Então porque que eu vou ter preconceito contra a minha gente? Essa aqui é a minha gente, que eu falo mesmo: eu amo muito os meus vizinhos, porque aqui a gente não é vizinho, aqui nós somos uma família. Porque se aqui um tiver uma dor, o outro pode até estar de mal com você que ele vem te socorrer, são muitos sabe...Eu costumo dizer: a desgraça ela une muito as pessoa, entendeu? E aqui, nisso nós temos uma união incrível!

Na primeira reflexão, há uma afirmação da organização existente entre aqueles que vivem na favela. Nesta forma de se organizar o que está colocado é a dimensão política da luta pela sobrevivência, que nem sempre se reduz aos limites das chamadas necessidades básicas. Luta que é aqui afirmada para interrogar o vulgarmente conhecido “modelo leninista de organização”, onde está posto um padrão de ação política que desconsidera a realidade e não reconhece a dimensão de organização na luta da grande maioria da população brasileira -“tem que ser daquele jeito mas não é”. Assim, sua análise nos traz uma primeira pista. Se na construção das possibilidades de luta, aqueles que se colocam trazendo modelos não contribuem para a desqualificação do saber e despotencialização da organização produzida historicamente pelas classes subalternas? A outra reflexão traz também a afirmação da luta daqueles que vivem na favela e a dimensão coletiva da produção do espaço. Traz também a qualificação dos sujeitos que o produzem - gente boa, trabalhadora, lutadora e batalhadora, e a forma como a moradora se percebe inserida neste espaço, nestas relações essa aqui é a minha gente. Fundamentando a luta e esta produção do espaço de vida está a experiência comum subalterna já que a “desgraça une”. Experiência de vida que significa o próprio compartilhamento da dor do outro e que aponta para as possibilidades de convivência humana. “São muitos..., sabe?” A dimensão do compartilhamento da dor inscrito na percepção da moradora nos leva a reencontrar a reflexão tecidas obre os caminhos do Sementinha, a respeito da noção de solidariedade. Podemos recuperá-la aqui na compreensão da experiência subalterna apontada no relato acima. No âmbito

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desta experiência, a solidariedade se engendra mesmo como possibilidade de viver e sobreviver no urbano, de enfrentar a desgraça Mas ela não se constitui enquanto movimento reativo à desgraça. Engendrando-se, ela aponta uma forma de sociabilidade atravessada pelo compartilhamento humano, compreendendo uma outra possibilidade de organização , forjada historicamente no centro da vida subalterna. Aquela a qual se refere a militante do PT. Aquela que se diferencia do modelo leninista de organização. Aquela que não é daquele jeito mas que em sua realidade possivelmente aponta sua dimensão crítica e de subversão do ordenamento burguês de sociedade, como nos alerta a militante do PT:

(...)A não morte, é uma luta, e que não é desfundamentada não porque ela mexe com a propriedade privada (...) Que movimento sindical mexeu com o poder da propriedade privada? Não mexeu. O movimento sindical, ele pede mais dinheiro. O favelado, ele foi lá e tomou a terra de um dono. Vamos ver o que é mais revolucionário? Movimento de salário ou invadir uma terra que tem dono que o Estado e a polícia defendem. Porque a polícia ela defende o patrimônio dos que têm.

Esta dimensão de subversão da ordem, inscrita na tomada da terra, coloca-se nas muitas histórias de favelas. E coloca-se particularmente aqui, na trama contada pelos moradores do Grotão. Talvez mais do que nas outras histórias contadas, a multiplicidade de significados das lutas das classes subalternas torne-se aí mais explícita, em função da diversidade de confrontos colocados no processo de conquista da terra para viver e de produção do espaço de vida. Para aqueles que vão ocupar as terras da pedreira onde vai se formar a favela do Grotão, a luta vinha se desenrolando ao longo de suas vidas:

(...) O mês que me casei, tempo de inverno, começou aquela seca e tive que vir embora com um mês que casei.(...) Lá eu trabalhava demais, a situação era terrível. Eu nunca tinha visto um par de sapatos lá. (...) naquela época, eu era muito fechada, não entendia nada de associação, de comunidade. Aquilo para mim, não me ligava porque eu saía às quatro e meia da manhã, chegava às oito da noite em casa. Quer dizer, chegava em casa, tomava banho, aquela coisa toda para no dia seguinte...

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Eu falei: “mas diante de pagar aluguel, não tem outra saída”. E isso não tinha nada, né? Não tinha água, não tinha luz, não tinha nada. Ele disse:“mas já pensou no sacrifício que a gente vai passar aqui?”. Eu falei: “quer sacrifício maior do que o que nós passamos lá naquela favela? Quando chove a maré enche, enche tudo dentro de casa”. Lá muita gente já perdeu as coisas.

Ela apresenta-se enquanto experiência histórica de vida atravessando o relato daqueles que contam sua experiência de migração, como o morador que, quando a favela foi formada, vivia no Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Aqui, a vinda para a cidade é recordada enquanto necessidade diante da luta contra a seca. Na lembrança, o passado é visto como uma experiência terrível. Coloca-se no segundo relato como experiência de trabalho, cíclica e desgastante de muitos, como da moradora, cuja jornada de trabalho começava no momento em que saía de casa às 4 e meia da manhã, alongando-se até às oito da noite quando retornava, e prolongando-se certamente quando fazia “aquela coisa toda”, que cabem às mulheres das classes subalternas. Dormia para no dia seguinte...recomeçar. A experiência incansável da mulher trabalhadora que, neste âmbito, compreende porquê não “entendia nada da associação, de comunidade”. E aparece também como vivência e sobrevivência no urbano, no sacrifício de pagar o aluguel ou de morar num lugar que “quando chove a maré enche, enche tudo dentro de casa”, de forma que muita gente perde as coisas. A possibilidade de mudança é avaliada diante da história vivida no urbano. As visões de luta aqui postas enquanto experiência histórica de vida não são menos importantes enquanto concepções da luta subalterna. Não são apenas visões das batalhas, das vidas desgastantes de homens e mulheres das classes subalternas. São percepções, na qual está inscrito um saber histórico que referencia suas ações, informa seus projetos e lutas coletivas. Por isso, inciamos por elas. Para aqueles que estão na luta de viver e sobreviver no urbano, este saber coloca-se como referência fundamental na aventura de construção de um novo espaço de vida.

Eu tinha três contos e ele tinha um e cinquenta, no caso um e quinhentos, né, que é estas notas roxa escura. Ele disse: “como é que a gente vai começar aquilo?” . Eu falei: “olha, não sei”. Aí capinamos. Ele não tinha nem terminado as férias mas ele voltou lá, falou lá na Brahma, com o chefe dele que queria começar a trabalhar antes de finalizar as férias. Aí começou né? Aí a gente só vinha sábado e domingo. Só que ele de pedreiro nunca entendeu de nada. Então 326

comprou dois sacos de cimento, comprou areia, comprou pedra para fazer o alicerce. O primeiro alicerce foi perdido porque saiu torto. Aí ele arrumou um pedreiro. (...)teve moradores que quebrou a caixa e entrou para morar lá dentro. Não tinha como comprar material, não tinha como comprar madeira, não tinha como...Então, quebraram a caixa, fizeram a porta entraram para dentro.

No risco do começar, diferentes alternativas se colocam para aqueles que ocupam o terreno da pedreira. Mas em todas, estão inscritas a urgê ncia e a cri ação no ato de fazer, de acordo com as possibilidades que lhe eram colocadas. Para alguns, como o caso do primeiro relato, a alternativa encontrada é o prolongamento da jornada de trabalho, através do sacrifício daquele que é considerado o seu tempo livre - as férias e o fim de semana-, e o esforço coletivo da família e dos vizinhos. A contratação do pedreiro certamente torna-se possivel através do esforço redobrado na jornada de trabalho. E houve quem, sem possibilidades de comprar o material necessário, fosse o tijolo ou a madeira, chegasse a ocupar a caixa d’água abandonada, improvisando o espaço para morar, garantindo um “pedaço deste”, possivelmente na expectativa de mais tarde sair da caixa d’água. Assim, a luta vai apresentando-se enquanto garantia do espaço coletivo e esforço inicial da construção do espaço de moradia, pois sabemos, a produção da casa própria envolve um projeto de longos anos. É no âmbito desta luta que novas questões são colocadas. Questões que nos dão pistas dos rumos que o conflito vai assumir e das diferenças que já se anunciavam no que se refere às visões de luta que irão se colocar internamente.

“Teve uma família que eles pegaram, enfiaram os paus, né jogaram alguns pedaços de telhas e botaram um plástico grosso em cima. A polícia chegou. Derrubou aquilo tudo que a telha caiu na perna de uma criança, ainda quebrou a perna da criança. Aquilo era um conflito, sabe. Era um conflito horrível pra que o povo não ficasse (...).a polícia vinha em função deles mesmos que não podia no caso. Porque isso aqui é uma área da Penha. Então para eles, a área da Penha é uma área que vale dinheiro no caso, né? (...) daí veio a opressão militar porque o dono da pedreira, quando tomou conhecimento da invasão solicitou a polícia civil e a polícia militar de expulsar os invasores, inclusive os que eram ex327

funcionários. Isso foi uma luta muito grande porque eles iam lá, derrubavam os barracos - os barracos eram de madeira e o pessoal, quando eles viravam as costas eles reconstruíram. Com exceção daqueles que eles botavam fogo (...) quando eu cheguei lá, chamei os moradores assim, um grupinho e convoquei: “olha gente, você só tem uma opção: a polícia vai continuar mantendo a ordem. Agora vocês só terão condição de permanecer nesse lugar se vocês fizerem um abaixo-assinado e registrar uma associação de moradores. Porque a lei 3.330 da portaria 12 de 1969 que foi uma lei criada por Negrão de Lima lhe outorga o direito de permancer ou seja: de nós permanecer no lugar”. Aí os moradores ficaram entusiasmados: “não, nós vamos tomar providências”. Aí quiseram me botar como presidente. Eu disse: “não, eu não aceito a presidência por motivo de eu ser um líder religioso. Mas aí eles disseram: “então, não tem melhor que o senhor para tomar conta disso aí”. Aí, eu na liderança, chamei os moradores e expliquei a eles: “olha, não quero que vocês façam barraco de tábua. Vão fazendo de alvenaria que é para valorizar o local etc (...) a comunidade, quando ela é invadida pelos moradores, o elemento nunca leva tijolo de início. Um pega uma tábua, outro leva barbante, outro leva marreta e tal. E consegue fechar e marcar o lugar. Ele acha que marcou ali, já é dono. Entendeu? Agora se a coisa não permanecer, também ele não tem prejuízo porque simplesmente ele botou ali um barbante não dá nenhum direito a ele. Agora quando se trata de uma casa de alvenaria, já entra assim justiça.

A ocupação não se dá sem confrontos. O primeiro inimigo: a polícia. No primeiro relato, de uma moradora, enfatiza-se o processo de embate. A polícia apresenta-se personificando o “conflito horrível para que o povo não ficasse”, onde as perdas não eram somente materiais mas envolviam a vida humana. Aqui, se a ação policial aparece justificada por si mesma - “vinha em função deles mesmos”, e certamente isso se dava em função de ser uma ação conhecida para aqueles que vivenciam a experiência de subalternidade no espaço urbano, ao fim do relato ela aparece articulada às outras razões que a movem: o valor da terra. No segundo depoimento, a chegada da polícia vem anunciada como “opressão militar”. No anúncio, a denúncia do caráter opressor da ação policial. Uma ação que personifica aqui os interesses dos donos da terra e a qual os moradores resistem, reconstruindo os barracos. Na visão de luta posta é destacado o embate de forças que se colocavam: os donos da terra cujos interesses eram defendidos pela polícia e o povo que procura resistir.

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No relato seguinte, do primeiro presidente da associação, a ação policial apresenta-se justificada por sua “função legal”: “manter a ordem”. Diante disto, a alternativa colocada é o caminho institucional da legalização: o registro da Associação de Moradores. Aqui colocam-se as informações trazidas por aqueles que já acompanharam outros processos de formação de favelas e de associação de moradores, como é o caso desta liderança que anteriormente havia participado da fundação da Associação da Fazenda Botafogo em Acari. Muito mais do que na experiência, é na detenção de um saber e de sua distinção enquanto “líder religioso”, e no reconhecimento destes pelos moradores, que o morador fundamenta seu papel de liderança, posto como atribuição dada pelo povo. E é assumindo o lugar de liderança, sustentado nas informações detidas que ele “explica” aos moradores que “é para não fazer barraco de tábua e sim de alvenaria, para valorizar o local”. Seguindo seu relato, a construção de alvenaria se coloca aqui não tanto como uma alternativa para dificultar a ação policial mas enquanto uma forma de “valorizar o espaço” e legalizar a ocupação, passando o conflito para instância jurídica. Considerando os outros depoimentos que nos sugerem a necessidade de improvisação na ocupação do espaço, diante da própria falta de recursos, pode-se imaginar a complexidade de suas “explicações” aos moradores. Para grande parte deles, não se tratava de uma opção por uma forma de ocupação do espaço que eles “ingenuamente” acreditavam estar legalmente garantido ou que optavam, porque oferecia menos prejuízo. Parece-nos que, na maioria das vezes, era o caminho possível, que eles percebiam como legítimo, fato este que vai referenciar a defesa da terra, com a insistente reconstrução dos barracos e, posteriormente, com o enfrentamento político-institucional. Neste sentido, as informações trazidas por aqueles que conheciam os caminhos que facilitavam a regularização da posse da terra era importante, mas não são menos fundamentais na mobilização do que a percepção daqueles que a ocupavam. Pensamos que aqueles que usam tábuas ou instalam-se nas caixas d’água, diante da necessidade de garantir o espaço para viver e da expectativa de “melhorar” a casa, mobilizam-se também, no momento em que o conflito se explicita, sentindo-se tão legitimamente donos do espaço quanto aqueles que constroem suas casas de alvenaria. Ao nosso ver, estas são questões que apontam para uma reflexão mais aprofundada dos atravessamentos inscritos na luta pela terra para viver. Limitar esta apenas às questões jurídicas que tornariam possível a legalização, é confinar-se no campo do opositor, sem atentar para os significados atribuídos pelos sujeitos a sua luta, cuja intensidade e dimensão política talvez estejam

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muito mais na forma como os sujeitos a percebem do que nos mediações legais desta. É dentro deste âmbito que a visão institucional da luta, subjacente ao relato da liderança, diferencia-se das interpretações imbricadas nos outros dois depoimentos, que, de diferentes formas, ao trazerem a lembrança do conflito e os interesses aí colocados, apontam a dimensão social e política da luta pela terra. Estas diferenças que marcam as visões da luta voltam a aparecer quando o que está colocado é o processo de conquista dos serviços básicos, como é o caso da água:

Quem cedia a água eram vizinhos que não desejavam a permanência da favela. Depois eles mesmos começaram a enfiar a borrachazinha pelo muro e os moradores então foram fazendo aquele ambiente, aquela amizade. Quer dizer, aquele pessoal que era contra, tornou-se agora comigo, por intermédio da água e tal, porque a comunidade não tinha água...Sendo que quando nós chegamos na comunidade do Grotão tinha-se uma caixa que , se não me falha a memória, ela tem capacidade para 80, 1000 litros de água. Mas ela estava debaixo do chão, muita sujeira mesmo”. (...)Um dia chamei um grupo e disse: “Olha gente, vocês estão dispostos a nós entrar aqui nessa caixa e fazer uma limpeza?”E eles disseram:“Presidente, você é quem diz. Se quiser nós podemos fazer isso até amanhã. E a política já estava funcionando. Foi quando eu telefonei para o Deputado Aluísio Gama e ele disse: ‘olha Pastor, se você precisar de umas varas de cano, venha aqui’. E eu fui (...) Aí nós reunimos os moradores e fizemos um mutirão. Cada um arranjou uma picareta ou uma pá e já que a CEDAE ainda não tinha atendido a reivindicação inicial nós fizemos um mutirão e levamos água direto para a Tenente Luis Dorneles Uma água clandestina que a gente, no início da favela, que a gente conseguiu, foi através do mutirão, furando lá...até pedindo água para CEDAE. A CEDAE disse que não dava água pro favelado e nós fomos lá e arrebentamos a rede e furamos e puxamos a rede doméstica. Precária mas puxamos para a comunidade. Através de mutirão de contribuição do próprio morador.

Os dois primeiros depoimentos, do já então presidente da Associação, trazem uma visão da luta pela água, aonde os moradores comparecem como “ajudantes”, cabendo a ele, e conjunturalmente a outros, o papel de 330

protagonista. Assim, é que inicialmente quem cedia a água eram os vizinhos com quem os moradores foram desenvolvendo relações, aqui colocadas no âmbito pessoal, em função de sua própria intermediação . Quando se dá a limpeza da caixa d’água mais uma vez ele se coloca na liderança e os moradores são postos no lugar de ajudantes que respeitam sua autoridade. Posteriormente é que “a política começa a funcionar” e mais uma vez, ele assume um lugar protagônico, na articulação da luta , agora ao lado do político. Os moradores entram como executores através do mutirão. Certamente, no último depoimento, de um morador que vai se tornar presidente da associação e expressiva liderança na região, aos moradores está reservado um outro papel. Na fala da liderança, é explicitado o conflito com a instituição pública, no caso a CEDAE. Conflito onde a CEDAE aparece excluindo os favelados do direito ao serviço - “disse que não dava água pro favelado”- e estes são apresentados enquanto sujeitos da alternativa encontrada : a construção da precária rede doméstica através do mutirão, compreendido aqui enquanto contribuição do morador - “fomos lá, e arrebentamos a rede e furamos e puxamos a rede doméstica”. Parece-nos evidente a diferença entre as duas visões de luta aí postas. Numa, é destacada o papel pessoal de alguns na articulação da luta, cabendo aos moradores o lugar de executores. Na outra, enfatiza-se sobretudo o conflito que atravessa o fornecimento de água, onde está posta a exclusão dos favelados, e o lugar de sujeitos deste últimos na produção de alternativas ao problema que lhes era colocado. As duas são visões de lideranças que, sabemos através da análise de seus depoimentos e de outros moradores, eram atravessadas por práticas políticas também diferenciadas. Consideramos que possivelmente, tal diferenciação produz-se no âmbito de suas experiências históricas. Não temos elementos para avaliarmos em que medida suas particulares experiências, especialmente no âmbito do movimento popular, produzem interpretações diferenciadas. No entanto, podemos tensionar seus relatos, colocando em questão os atravessamentos aí inscritos, no que se refere particularmente à história do Grotão. Assim, pensamos que o primeiro depoimento traz a visão de uma liderança diretamente implicada na luta que narra, pois o início do processo de luta pela água dá-se no período de sua gestão. Considerando que, segundo alguns, sua saída da comunidade é conflituosa, com ele sendo expulso em função de sua atuação por ocasião do processo jurídico de luta pela terra, a visão aqui colocada vem atravessada pela necessidade de resgatar a legitimidade de seu lugar enquanto líder, particularmente na luta engendrada. Quanto ao segundo depoimento, traz a interpretação de uma liderança não diretamente 331

presente nos acontecimentos da época mas mediatamente comprometida com a história de lutas do Grotão e do movimento de favelas, de forma geral, uma vez que se torna presidente da Associação e já na época da entrevista, não só se mantinha na direção desta, como também situava-se enquanto expressiva liderança no movimento popular. Neste sentido, sua fala vem atravessada pelo reconhecimento daqueles que sustentavam sua legitimidade política na região: os favelados. Mas manteria a mesma posição, quando a luta envolvesse sua participação enquanto liderança?

A minha luta teve praticamente de tudo. Teve pavimentação, contenção de encosta - onde morreu criança devido a deslizamento de barraco - , a caixa d’água no pico do morro, posto médico clínico- odontológico. Mas a minha maior luta, o meu prazer, é todo dia eu acordar, morando em frente àquela escola comunitária e ver aquelas criancinhas subindo aquela escada e estarem lá dentro, tendo uma assistência. (...)logo no início do Governo Brizola, nós solicitamos para que nós avançássemos na eliminação de vala negra, que ele desse o material que nós daríamos a mão-de-obra gratuita. Gratuita. Então, o que que fazia? Ele dava a assistência técnica, juntamente com a FEEMA - nós trabalhamos, muito assim com a assistência técnica e material - e nós dávamos a mão-de-obra. Então, sábado e domingo se tornava uma festa. Nós fazíamos aquele angú à baiana, pedia alimento nas Casas Sendas, Casas da Banha, naqueles comércios e eles davam. Sempre deram, né? E a gente fazia aquele mutirão e no final a gente...só dava uma coisa bebida (...) Então era uma festa.

No primeiro relato a liderança faz uma síntese de sua gestão, período no qual a luta, a sua luta, teve praticamente de tudo. A redução do sujeito da luta vem junto à ampliação das conquistas. Mas não queremos ser injustos, e concluir daí uma individualização da luta. A possessividade do pronome e a extensão das conquistas poderiam ser atribuídas ao caráter sintético da exposição da sua gestão enquanto presidente. Vamos ao segundo relato, onde conta a forma como se deu a eliminação das valas negras. Aqui, a possessividade do pronome no anúncio do fazer não se coloca. Ao contrário, o nós estava presente em todas as ações. Parece-nos que engloba os próprios moradores mas em que medida este nós traduz uma atribuição coletiva à luta? Ou seria mais uma forma de expressar sua representatividade enquanto líder? Tal forma significaria atribuir-lhes necessariamente um lugar de sujeitos neste fazer ? 332

E se relacionarmos este seu depoimento com o outro a respeito da alternativa encontrada pelos moradores para conseguir água, pensamos que é em sua concepção de mutirão que se coloca a maior diferença. Diferentemente do outro relato, onde explicita o conflito com as instituições públicas, no caso a CEDAE, e enfatiza a intensidade da luta dos moradores, não só enquanto executores mas também como criadores das alternativas, neste relato, aos moradores cabe a execução do processo. Os moradores eram a mão-de-obra gratuita. A assessoria técnica, ou seja o planejamento do processo, juntamente com o material, vem aqui como algo dado, pelo governo. Numa visão, os moradores apresentam-se como sujeitos criadores e executores de alternativas encontradas diante de uma situação onde se manifesta o conflito com a instituição pública: “A CEDAE disse que não dava água pro favelado e nós fomos lá e arrebentamos a rede e furamos e puxamos a rede doméstica. Precária mas puxamos para a comunidade”. Na outra, os moradores aparecem como executores da alternativa, no âmbito de uma relação de colaboração com o Estado: “nós trabalhamos, muito assim com a assistência técnica e material - e nós dávamos a mão-de-obra”. Interrogando-nos sobre as mediações que atravessam esta diferença nas visões, encontramos distintas relações do movimento de favelas com o Estado, e em particular a forma como a liderança experimenta estas relações. Estamos atentos aos marcos políticos que atravessam estas diferentes concepções de mutirão. Nelas estão imbricadas também formas diferenciadas de relação entre as favelas e o Estado, e as políticas sociais aí imbricadas. Assim, o “mutirão” contado no segundo relato dá-se no início do primeiro governo Brizola, que vem desenvolver uma política social que se propõe reconhecer as demandas do movimento de favelas, procurando estabelecer alianças com ele e acenando com respostas. 117 Mas, o que nos parece fundamental aqui é a forma como a liderança experimenta a relação com o governo Brizola. Assim, a maneira através da qual percebe a luta - aqui colocada como o mutirão para a eliminação das valas negras -, articula-se a sua experiência no âmbito da relação tecida com este governo. O mutirão, com a comunidade entrando com a mão de obra gratuita e o Estado com o material e a assessoria técnica, é uma das dimensões de uma relação, onde o “avanço” das conquistas da comunidade, apresenta-se enquanto um processo, no qual esta última e o Estado se relacionam em uma aliança , 117Não

pretendemos nos aprofundar aqui nas práticas imbricadas nesta aliança, no tipo de respostas dadas e nos desdobramentos de ambos para o movimento popular. E nem questionar a ruptura trazida pelo governo Brizola. O que nos interessa aqui é enfatizar o impacto político da política social anunciada pelo primeiro governo Brizola, que vem diferenciá-la da experiência do governo anterior.

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mediada pela ação política da própria liderança, que se forjava enquanto tal neste mesmo processo. A este respeito, contribuiram em nossas reflexões, os depoimentos de moradores e lideranças que acompanharam a sua trajetória no movimento comunitário. Eles nos parecem reveladores da forma como a sua produção enquanto liderança articula-se ao próprio encaminhamento de sua relação com o governo.

Então assim, querer reivindicar um orelhão, uma linha direta que a gente queria, um orelhão que recebe chamada. Aí eu falei: :’O que que você fez? Você foi lá. Conseguiu o orelhão, né? Você conseguiu o orelhão. Sabe o que você fez? Você abortou o movimento organizado. Abortou, entendeu?. Está sendo cortado e tal’ “Ele se ligou muito à política externa e deixou a interna correr. (...) A política externa está sempre no pé de alguns lá, de um deputado, do governo, de seja lá quem for. E ele não se preocupa.

Assim, é referenciada neste processo e no papel aí assumido por ela, que a liderança produz uma visão, onde não se coloca um questionamento do próprio papel atribuído aos moradores, de forma geral na aliança com o Estado, e em particular, no mutirão. Aqui, o fornecimento de mão-obra gratuita e a não participação na gestação de alternativas são naturalizados. Esta questão levantada, de que a visão da liderança a respeito do mutirão no governo Brizola está mediada por sua própria experiência no âmbito deste, parece se fortalecer quando cotejamos seu relato com um outro depoimento, de uma moradora que teve uma participação ativa em várias lutas do Grotão e que indica outras possibilidades de visão:

Essa vala que fizeram pra nós, isso foi o serviço mais porco que fizeram. Você sabe por quê? Porque eu falei, no início, eu falei com a Marilca, aqui em casa, eu falei: ‘Marilca, essa vala que estão fazendo, ela tem que ser começada de cima pra baixo, não de baixo pra cima’. Porque você vê, ela foi feita de baixo pra cima. Eles fizeram um degrauzinho pra água escorrer. Quando chegou aqui em cima não tinha mais espaço porque se eles fossem fazer aqueles degrauzinhos pra água, né, descendo e o lixo ficar, quando chegar no Caracol já estava em cima da terra. Sabe por que? Porque o engenheiro que fez aquilo ele não tem noção de uma comunidade, ele não tem noção de favela. Então, era mais provável se o governo chegasse e dissesse assim: ‘como vocês querem?’. Eu tenho certeza que o serviço saía mais bem

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feito e muito menos material perdido. Porque a própria comunidade tem noção do que ela quer

No relato, a moradora relembra seu diálogo com uma assessora da Secretaria de Desenvolvimento Social. Nele, ela critica a forma mal feita através da qual se deu a eliminação das valas, expondo suas razões, ao dizer como foi realizada e analisando “que o engenheiro que fez aquilo ele não tem noção de uma comunidade, ele não tem noção de favela”. E vai além, também propondo alternativas, indicando como deveria ter sido feito o serviço, bem outras possibilidades de relação com o governo: “era mais provável se o governo chegasse e dissesse assim: ‘como vocês querem?’”. Em conversa com uma “representante do governo”, na avaliação do serviço, a moradora faz a crítica ao trabalho de assessoria técnica, marcado pelo desconhecimento da comunidade. Na indicação de possibilidades, afirma o conhecimento desta última, legitima-o ao explicitar detalhadamente a alternativa ao serviço, e aponta uma outra relação com o Estado. Por fim, ainda anuncia a q u a l i d a d e e os baixos custos possíveis na proposta por ela colocada, onde a comunidade comparece com seu saber: “eu tenho certeza que o serviço saía mais bem feito e muito menos material perdido. Porque a própria comunidade tem noção do que ela quer”. Dentro de sua visão, os moradores comparecem enquanto sujeitos criadores das alternativas encontradas, uma vez que detentores de um saber, onde está posta a “noção de comunidade”. Saber que o Estado deve reconhecer, já que é fundamental também à qualidade e ao baixo-custo dos serviços. Mediando sua visão, pensamos encontrar a particularidade da experiência de moradora que acompanha diretamente as lutas da comunidade mas que não se forja enquanto liderança. É a participação nestas lutas que a faz reconhecer o saber produzido pelos moradores e que a coloca em interlocução com a representante do órgão público. Mas é esta forma particular de participação que a faz dialogar com a representante do Estado, afirmando suas diferenças e apontando outras possibilidades de relação, onde os moradores comparecem enquanto sujeitos criadores e não apenas como meros executores. Aqui, a interlocução não inibe o questionamento. O lugar de participante ativa nas lutas e a relativa autonomia no âmbito da relação com o Estado, ao contrário do que acontece no caso da liderança, marca seu campo de visibilidade crítica. 118 Visibilidade crítica que a faz interrogar uma forma 118

Interrogamo-nos se este campo de visibilidade crítica da moradora, e em especial a experiência a partir da qual é produzido, não apontaria para a noção de mediador na comunidade , já levantada na parte anterior deste capítulo quando discutíamos a experiência

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autoritária e centralizadora de atuação do Estado e apontar alternativas, não só no que diz respeito a sua política nas comunidades mas também em relação aos serviços públicos, como podemos perceber em outra de suas reflexões:

Eu acho que cabe ao governo conversar com a gente, saber o que a gente quer. Não é implantar uma coisa, dizer: ‘não, isso aí feito, e não discutir’. Tanto faz ser na comunidade, como na área de saúde, como na área de educação, em qualquer outro setor. Eu acho que cabe ele chegar , conversar, colocar o plano e a gente tentar discutir pra saber se aquele plano é bom ou não. Porque assim, no caso como é, é igual num quartel-general. O general dá as ordens e os soldados executam. Então, eu acho que não é por aí.

Quando a questão é o mutirão, que vem ressoar sobre as próprias relações internas da comunidade, pudemos perceber que se anunciam diferentes concepções de lutas. Vamos nos aprofundar então, nas análises feitas pela liderança, que se forjou enquanto tal no processo de mediação com o governo Brizola, e da mesma moradora acima referida:

(...)Posterior surge essa tal coisa: ‘não porque se Copacabana tem direito, tem que remunerar quem trabalha’. E para nós foi uma desestabilização porque nós conseguimos realmente contratar mão-deobra local para preparar o terreno de segunda a sexta para que nos sábados e domingos nós continuássemos com esse mutirão, gratuito. (...) A mão- de- obra gratuita do final de semana se desestabilizou. Sabe por que? Porque pessoas maldosas começaram agora a incentivar: ‘Não, tem um grupo aí que está trabalhando remunerado então nós vamos ficar, deixa eles fazerem. Eles fazem. Vamos descansar.(...) O que a gente tem que entender, é que nós já somos discriminados, já somos desprezados, e se nós consegue o material, aquilo que a gente estava comprando com o nosso bolso e só nós conseguimos esse material gratuito por que não a gente fazer? Faz sim. É para o nosso bem-estar. Nós sabemos que se nós não fazer, eles vão fazer para a Barra da Tijuca, Copacabana e para outros lados mesmo. Porque eles têm uma história de dizer que favelado não paga imposto mas nós pagamos imposto até no cigarro que fumamos. (...) E com isso eu acho que o mutirão gratuito é até uma maneira de mobilizar e incentivar a comunidade. de uma participante do Sangue Novo. Pensamos que a moradora do Grotão também se forja enquanto uma mediadora na comunidade, exercendo um papel particular na história aqui investigada.

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(...)Às vezes a gente se mobiliza. Claro que a gente sabe que isso é uma coisa que eles é que têm que fazer. (...) Enquanto o trabalhador trabalha, ganha o salário mínimo, morre de trabalhar numa fábrica, num supermercado, numa construção, que o sábado e o domingo que ele tinha pra descansar, ele vai fazer o mutirão porque ele precisa daquilo. Claro que nessa área quem tinha que atuar? É o governo. Porque nós pagamos pra ele. (....).para nós em comunidade, a única coisa que a gente gosta, é porque é uma maneira do povo se unir. A união. Ter mais amigos, ter mais irmãos, participar da própria comunidade onde mora. Saber a necessidade da comunidade, qual é a necessidade maior da comunidade (...)Apesar de que parou esse negócio do mutirão porque são as mesmas pessoas que trabalham mas são remuneradas. Vem o material e eles são contratados, tem uma secretaria e são contratados, eles trabalham a bem da comunidade e recebem seus salários. É muito mais importante que o mutirão. Porque no caso, aquele que teria que trabalhar a semana toda e domingo, que é o dia de descanso, passar com sua família, com seus filhos, não pode estar. Tem que estar no mutirão (...) enquanto o outro que estava desempregado, ele consegue as duas coisas: o seu dinheiro e um bem para comunidade.

Os relatos se aproximam no reconhecimento de uma situação de exclusão experimentada pelos favelados, bem como no direito destes. Aproximam-se também na defesa do mutirão gratuito enquanto uma forma de mobilização da comunidade. Ambos remetem-se a estas questões. Mas elas são colocadas de forma diferenciada, produzindo visões distintas. Assim, na justificativa para o mutirão, a primeira análise, da liderança comunitária, sublinha a exclusão experimentada pelos favelados, refere-se à distribuição desigual dos serviços de infra-estrutura urbana, bem como a necessidade aí colocada de lutar pelo bem-estar. No que se refere à mobilização, ele é uma maneira de incentivá-la. Neste caso, a mobilização não é um processo tecido pelos moradores no âmbito de suas lutas mas produto de uma estratégia , possivelmente conduzida não por todos mas por alguns. O outro depoimento, da moradora, reconhece a dupla exploração a qual está submetida o trabalhador e as funções do Estado. Mas, sua ênfase recai sobre o processo de mobilização, no qual estão colocados a união, a participação e o saber produzido neste processo a respeito da própria comunidade em que se vive. É através de uma participação onde está posta a união que se conhece a comunidade e suas necessidades. Aqui a mobilização aparece como um processo conduzido coletivamente, onde o mais importante não é tanto o fim a se atingir mas a experiência de união aí vivida e o conhecimento produzido.

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Ainda que as reflexões se aproximem, referindo-se às mesmas questões, as ênfases são distintas, produzindo visões de luta que iluminam aspectos diferenciados desta. Neste sentido, na primeira análise, a desigualdade econômica e o conflito social que perpassa a luta engendrada aparece como a principal mediação no processo de mutirão, visto como uma maneira de incentivar a mobilização. Na segunda reflexão, a desigualdade e o dever do Estado são colocados mas o acento recai sobre a participação coletiva e o saber que vai sendo aí construído. Aqui a luta apresenta-se em sua dimensão criadora de forjar práticas coletivas e produzir um conhecimento sobre a comunidade. Mas esta diferença de percepções se coloca de forma mais explícita, como pudemos perceber, no que se refere ao mutirão remunerado. Para a liderança, esta forma de mutirão, baseada no direito de remunerar quem trabalha, desdobra-se na desestabilização do mutirão enquanto mobilização da comunidade, ao trazer a referência do salário e a questão da contratação da mão-de-obra para dentro do processo. A convivência do trabalho remunerado com o não remunerado implode o mutirão gratuito e por conseguinte uma das maneiras de mobilizar a comunidade. Para a moradora, o mutirão remunerado apresenta-se enquanto outro processo, “muito mais importante” uma vez que estabelece uma situação na qual diferentes interesses são contemplados: a possibilidade do tempo de descanso, a necessidade de emprego, o bem da comunidade. Aqui neste “outro processo”, o que ela discute não é a mobilização da comunidade mas a experiência cotidiana de vida de seus moradores. Na avaliação trazida pela liderança, é a luta em sua dimensão política que é despotencializada. Enquanto para moradora, é a luta em seus atravessamentos sociais cotidianos que encontra possibilidades de respostas. A concepção relacional do mutirão gratuito posta no primeiro depoimento da liderança retorna aqui na sua análise quando ele enfatiza os conflitos e as implicações políticas da remuneração. O olhar cuidadoso para a realidade da comunidade volta na reflexão da moradora no momento em que ela acentua as múltiplas necessidades colocadas no âmbito da vida subalterna. As duas visões, aparecem enquanto opiniões divergentes a respeito do mutirão remunerado ( um, contra; outro, a favor) mas elas refletem sobre aspectos diferenciados do mutirão. E neste sentido, o fato de trazerem ênfases distintas não significaria necessariamente que fossem visões contrapostas da luta forjada pelas classes subalternas. Uma apontaria a sua dimensão política enquanto a outra indicaria mais aspectos sociais do processo em questão. No entanto, se tomarmos seus depoimentos como um todo, pensamos que em alguns aspectos podemos levantar algumas divergências mais profundas. 338

Vamos refletir sobre elas, pensando-as enquanto possibilidades inscritas nas visões colocadas. Quando analisamos os depoimentos da liderança, concluímos a respeito dos atravessamentos por ele naturalizados na aliança com o Estado, e em particular no mutirão gratuito, especialmente aquele que se refere à divisão de trabalho aí posta( com o Estado entrando com material e assessoria técnica, e a comunidade fornecendo a mão-de-obra gratuita). Seria este o mutirão gratuito que incentiva a mobilização da comunidade? Se considerarmos o controle exercido aí pelo Estado, através da assessoria técnica e da mediação da própria liderança, qual tipo de mobilização está aqui colocada ? A quem ela interessa? Na resposta, não podemos deixar de ir ao encontro da prática política do governo Brizola, e em especial a sua atuação no sentido de fortalecer as lideranças comunitárias, que passam a exercer um papel de mediadores num processo de institucionalização do movimento popular e de canalização da luta para dentro do Estado. Assim, se a mobilização é produto final numa estratégia que é o próprio mutirão, considerando a forma como a “estratégia” é desenvolvida no âmbito da relação de aliança com o Estado, supomos que ela também seja conduzida por alguns. Dentro deste contexto, compreendemos que, para os condutores da “estratégia”, a sua perda, com o surgimento do mutirão remunerado, significou mais do que a desmobilização da comunidade, significou o esvaziamento de um campo de atuação, onde a mobilização coletiva não é valorizada enquanto processo de luta mas como produto estratégico de um prática política que busca aí sua legitimidade mas que ao mesmo tempo esvazia as possibilidades de participação ativa popular. Neste sentido, a desestabilização do mutirão e a perda de mobilização devem ser compreendidos no âmbito daquilo que ela compreende enquanto fazer político . Um fazer , no qual o confronto é explicitado mas onde a mobilização é valorizada enquanto legitimadora da prática política, estando sujeita aí ao controle dos mecanismos inscritos nesta prática, e não se considerando portanto a participação ativa popular. Desestabilização e perda de mobilização significam o estremecimento desta prática política e o esvaziamento de seu signo legitimador - a mobilização, trazendo desdobramentos para as relações de poder forjadas no âmbito desta prática já que a perda de mobilização significa a redefinição do lugar daqueles que a incentivam , e em consequência das lideranças que se colocam a sua frente. Com isso não estamos aqui saindo em defesa do mutirão não remunerado, deixando de considerar sua institucionalização e as implicações políticas por ele trazidas ao introduzir a questão da remuneração do trabalho. Estamos apenas apontando uma outra possibilidade de pensar estes dois aspectos, se tensionarmos os atravessamentos inscritos no mutirão gratuito, tal como 339

concebido pela liderança e incentivado pela política social de vários governos, interessados em canalizar a participação popular, produzindo uma imagem popular. Nesta possibilidade, as implicações políticas, no que se refere ao esvaziamento do mutirão e à mobilização popular aí posta, já vinham se tecendo no incentivo ao mutirão gratuito, realizado tendo como base uma aliança , onde, como já vimos, aqueles que participavam , só o faziam enquanto mão-de-obra, não lhes cabendo o papel de criar alternativas. Por outro lado, parece-nos que na visão de luta trazida pela moradora, o que é destacado no mutirão gratuito é o processo coletivo do fazer, fazer em “união” e “conhecendo” a comunidade. Mas união e conhecimento também se colocam quando está posta a alternativa de contemplar as múltiplas necessidades da comunidade através de um outro processo . E aqui o que chamamos de mutirão remunerado, e ela coloca como algo mais importante, não é avaliado em seus desdobramentos para a mobilização da comunidade mas em sua possibilidade de trazer respostas a problemas colocados na experiência de vida daqueles que vivem na comunidade. Subjacente a sua interpretação está a concepção de que o mutirão remunerado marca uma forma diferenciada de luta, na qual estão colocados o direito ao trabalho daqueles que necessitam, o direito ao descanso dos que dele não usufruíam, e o bem coletivo de todos através de melhorias na comunidade. Neste sentido, união e conhecimento produzidos no processo de luta não se colocam enquanto retórica para a moradora. Revertem-se em ação concreta e referência através da qual avalia as possibilidades que se colocam à comunidade. Dentro desta perspectiva, sua percepção da luta vem atravessada por uma dimensão dinâmica, onde a mobilização não é valorizada como um fim em si mesmo mas enquanto um processo, onde muitas vezes, face às opções colocadas pela dinâmica da luta, a “união” pode não significar necessariamente “estar todo mundo junto” mas garantir que esteja “todo mundo bem”, que aliás é o que se busca na luta. Esta sua visão, ao enfatizar a união enquanto dimensão que atravessa a luta, seja enquanto experiência de mobilização, seja enquanto referencial de análise da realidade, nos leva ao encontro da noção de solidariedade já levantada anteriormente. Já analisamos, no terceiro capítulo deste trabalho, num relato da mesma moradora, a forma com a solidariedade se tece enquanto prática política na história do Grotão. Na luta pela luz, vimos como a solidariedade inscrita na prática de reconhecer o direito de todos, dentro da esfera local, extrapola esta última a partir do momento em que este direito não pode ser mais preservado sob pena de prejudicar a coletividade. No limite das possibilidades de con vivência humana e de garantia do direito coletivo, novas alternativas são 340

engendradas e a solidariedade inscreve-se então na luta pela formação da associação e no enfrentamento com o Estado. A este respeito, havíamos apontado também a dimensão crítica da solidariedade, considerando que ao deixar o espaço onde é forjada ( no caso a localidade onde se coloca inicialmente enquanto experiência de vida subalterna), ela entra em confronto com aquilo que é produzido como Universal, o Estado por exemplo, denunciando o ordenamento burguês de sociedade. Recuperando aqui estas análises, queremos avançar na forma como a solidariedade produzida enquanto experiência de vida e prática política, repõese referenciando a existência das classes subalternas não apenas no âmbito da localidade mas também em outras esferas sociais. Para isso, vamos em busca de um longo depoimento da mesma moradora.

(...) Eu, uma vez lá no primeiro serviço que eu trabalhei... Estava pelo lado de dentro do balcão e chegaram três crianças. (...) Eu não gosto de injustiça, de jeito nenhum. Então chegaram três crianças e pediram a um pessoal que estava lá lanchando: ‘Moço, paga um pão com café para mim tomar. Eu mais meus irmãos’.Aí ele dizia: ‘Ih, menino, sai de perto de mim, sai daqui. Que coisa. Você vai é...Sai daqui”. Aí o bichinho saiu. Aí foi lá na frente, perto do outro, aí falou assim: ‘Moço, paga um sanduiche pra mim ou então um pão na manteiga pra mim comer mais meus irmãos’. Aí ele: ‘Sai daqui perto de mim. Sai daqui de perto de mim. Ah, eu não gosto nem que você chegue perto de mim porque isso até me suja’. Aí eu olhei para ele, disse mesmo assim: ‘A pior sujeira está dentro de você e você não sabe’. Aí ele olhou para mim, falou assim: ‘Por que que você está me respondendo isso?’. Eu falei: ‘Por que ele é ser humano igual a você. Só tem uma coisa. Eles não tem condição de ser cidadão, talvez igual a você é. Que talvez você não é nem dos bons cidadãos. Porque esse Brasil que nós temos não vai dar direito a eles. E nem você também. Por aí está vendo que você não vai dar direito a ele ser cidadão de amanhã. Porque se você desse direito, você daria um pão com manteiga”. (...) Eu fui lá, tirei três sanduiches, peguei, botei no papel: ‘venha cá, garoto’. Aí meu patrão olhou para mim. Eu falei: ‘pode botar na minha conta aí. No final do mês desconto’. (...) Porque eu acho isso uma injustiça. E esse tipo de injustiça acontece dentro da repartição pública...Às vezes, pode estar até bem vestido. Porque às vezes eles acham que o pobre, o favelado, ele não come, ele não veste, ele não calça. Mas veste e calça.

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Temos que confessar que a primeira vista, o relato nos pareceu apenas mais uma destas histórias comuns, sem nada que provocasse nosso estranhamento. Uma história que todos aqueles que andam pelas ruas já viveram um dia, em qualquer um de seus papéis. Por isso, uma história um tanto quanto naturalizada que já não nos provoca indignação, mas dependendo do lugar em que se está, a constatação complacente de que a sociedade é de fato injusta, ou que as crianças de rua sujam mesmo. No entanto, na moradora a experiência provocou indignação, a julgar pela forma através da qual detalha o ocorrido, manifestando sua injustiça. E de certa forma, foi isso que nos fez lançar um olhar mais cuidadoso ao relato. Os detalhes por ela contados podem não expressar fielmente o ocorrido mas sem dúvida revelam sua percepção da experiência e por isso nos interessam. A indignação se anuncia desde o início em seu relato, quando o interrompe para manifestar “que não gosta de injustiça de jeito nenhum”. Mas ela se recoloca explicitamente quando conta como interveio no “diálogo” entre o homem e as crianças: ‘A pior sujeira está dentro de você e você não sabe’. Na intervenção, inverte o referencial de análise do interlocutor, criticando-o e anunciando o seu: um referencial onde a sujeira não se manifesta na aparência e que pode ser ignorada por aqueles que a carregam. Na continuidade da discussão, anuncia a humanidade das crianças. Até aqui, o discurso da moradora poderia nos soar apenas enquanto uma colocação atravessada por ideais cristãos, que se referem à universalidade abstrata do humano e a essência que atravessa a aparência. No entanto, ela vai além. Ao diferenciar a humanidade das crianças e do homem, introduz a noção de cidadão , mediada pela produção da cidadania. Assim, as crianças não têm condições de ser cidadão, tal como o homem. Mas cidadania não aparece enquanto categoria universal: “talvez você não é nem dos bons cidadãos”. Existem assim, supomos, os bons cidadãos e os maus cidadãos. Na explicitação das razões da diferença, mais uma vez as condições se colocam mediando a produção da cidadania, mas aqui elas já são vistas no âmbito de um processo que ocorre dentro do país que se tem, processo para o qual contribuem aqueles que não são “bons cidadãos”: “porque esse Brasil que nós temos não vai dar direito a eles. E nem você também”. Na crítica do papel daqueles que não são bons cidadãos, recupera a própria atitude do homem, ao mesmo tempo denunciando sua responsabilidade no processo que nega o direito de construção da cidadania, “do amanhã”, às crianças. Enquanto processo de construção, a cidadania é colocada aqui como responsabilidade social, e reconhecer o direito a esta construção significa muito mais do que reconhecê-lo na lei. Significa reconhecê-lo na vida, nas relações tecidas socialmente, reconhecê-lo “nos encontros de rua”. 342

A experiência de injustiça, segundo a moradora, é recorrente nas instituições públicas, nas quais se colocam referenciais semelhantes ao do homem, onde mais do que avaliar a aparência, discriminando, nega-se o direito à humanidade. Contando a história comum, do encontro de rua, esta moradora do Grotão - que ao longo de toda sua entrevista já vinha se referindo à união nas lutas e que a finaliza, afirmando a injustiça vivida pelos subalternos -, traz a crítica a uma determinada forma de atuação, na qual é negado o direito de construção da cidadania, e afirma uma outra, onde se reconhece a cidadania não em sua universalidade abstrata, mas em sua possibilidade concreta de construção coletiva. Pensamos que esta crítica do que está colocado e a afirmação do que é possível ser, encontram-se referenciadas pela experiência de compartilhamento por ela vivida, sobre a qual refletiu durante toda a entrevista. Uma experiência que não é sua porque compartilhada na luta comum pela vida, constituindo-se mesmo enquanto possibilidade de enfrentar a sobrevivência. Uma experiência coletiva de vida que forja uma forma de sociabilidade e uma percepção da realidade que, na dinâmica das relações sociais e políticas da sociedade, extrapola a esfera local, onde se repõe cotidianamente. E que, ao colocar-se no tecido social onde é produzida enquanto experiência subalterna, denuncia criticamente as relações de sociabilidade hegemônicas inscritas neste tecido. A experiência subalterna, e a solidariedade que aí se imbrica, não se confinam assim ao território da localidade. No âmbito das relações forjadas social e politicamente pelos sujeitos que a produzem enquanto forma de vida, elas se recolocam enquanto referencial de análise da realidade social e política e das relações aí engendradas, reconstruindo cotidianamente as novas possibilidades de produção da vida. Atravessando as contradições do tecido social de nossa sociedade, solidarizar-se não vai se constituindo somente como uma forma subalterna de enfrentar a vida, onde “uns ajudam aos outros”. Ela vai se produzindo enquanto possibilidade crítica ao adentrar, através da prática e do saber daqueles que a vivenciam enquanto experiência histórica de vida, pelos espaços de trabalho, lares, instituições públicas, pelos encontros de rua...

Recuperando a afirmação feita à páginas atrás, a possibilidade da necessidade e dos mediadores engendrarem-se enquanto fazer histórico encontra-se na luta. Não só naquela pontualmente travada: a luta pela terra, a 343

luta pela luz, a luta de combate à dor do outro. Mas naquela que vem inscrita nas experiências históricas dos sujeitos ou aquela que perpassa as expectativas tecidas na travessia da vida. Nas tramas contadas, ela vai se particularizando, assumindo múltiplos significados, ampliando seus sujeitos, alargando os espaços onde se produz e interrogando as visões únivocas a respeito da mudança histórica. Interpelando as percepções que atribuem às classes subalternas a noção de que a luta se confina à fatiga e ao cansaço cotidianos. Estes significados que os atores atribuem à luta dependem em muito da sua experiência histórica: a mediação religiosa e a experiência histórica de trabalho enquanto compartilhamento da dor do outro para as mulheres do Sementinha, ou o atravessamento da experiência pessoal de vida na forma como a participante do Movimento Sangue Novo encontra na luta seu ideal . Mas tais significados também são reelaborados no âmbito do próprio conflito e das relações de poder que aí se engendram: assim, vimos como para a liderança do Grotão, em suas diferentes visões de mutirão, reduz-se o campo de ação dos sujeitos da luta, que de criadores das alternativas passam a executores destas. De forma geral, na percepção daqueles que fizeram estas e outras tantas histórias, a luta apresenta-se enquanto experiência subalterna de vida. Ela vem atravessando o viver no urbano, a experiência de migração e de trabalho, como vimos nos relatos de alguns dos atores que ocupam o terreno da pedreira no Grotão. Ela se coloca na experiência histórica de trabalho das mulheres do Sementinha, recriando-a e apontando novas possibilidades de se caminhar. A luta se produz também enquanto experiência social e prática política daqueles que a fazem. Ela é o solo onde a esfera do privado e do coletivo se imbricam, potencializando o tempo cotidiano e o enfrentamento das mulheres no movimento do Sangue Novo. Ela é o terreno onde múltiplos sujeitos se colocam com suas particulares experiências de vida: as crianças em passeata, o conhecimento histórico dos moradores antigos e o arriscar daqueles que assinam o necessário abaixo assinado. Na história do Grotão, ela perpassa a construção do espaço coletivo de vida, atravessada por conflitos que apontam para sua dimensão social, revelada nas alternativas de garantia da terra, no desafio à polícia com a insistente reconstrução dos barracos. Em seu desenrolar, ela redefine percepções e propostas, tal como ocorreu no Sangue Novo quando o projeto de mobilização comunitária da militância do PT foi reelaborado diante da própria dinâmica da luta. Aqui, tal como vimos na história do Grotão, a luta produz em sua travessia conflitos e diferentes visões políticas entre os sujeitos que a travam. Visões que apontam para a sua produção coletiva e reivindicam o lugar de sujeito daqueles que a fazem, opondo-se às percepções que concebem o

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lugar protagônico de alguns, como bem verificamos nas diferentes percepções das lideranças do Grotão e de uma das moradoras. Forjadas num tecido social, onde as relações de sociabilidade capitalistas se produzem enquanto hegemônicas, as lutas das classes subalternas interrogam o ordenamento burguês de sociedade e desafiam as relações de poder aí inscritas. Fazem-no, ao ocupar a terra e produzir um espaço de vida. Ao se confrontar com aqueles que reatualizam as relações de poder no âmbito da comunidade e ao interpelar o Estado. Ao combater a dor que se produz na desigualdade e exploração. Fazem-no ao trazer na luta a intensidade e as possibilidades de uma forma coletiva de vida, apontada na noção de solidariedade: possibilidade de criação e recriação do trabalho nos caminhos do Sementinha, de interrogação das relações de sociabilidade hegemônicas presentes na sociedade capitalista, segundo nos mostrou a moradora do Grotão, e também de alternativas de organização, diversas do modelo leninista, como lembrou a participante do Sangue Novo. É neste âmbito, no campo dos desafios trazidos pela travessia da vida subalterna, do enfrentamento cotidiano, do embate político e do confronto social e ideológico, que a luta se forja enquanto fazer-se. Na encruzillhada com a necessidade e com a ação de mediadores , que compartilham com os atores sociais os desafios que lhe são colocados, a luta constitui-se na visão dos protagonistas da história em mediação fundamental ao fazer histórico . Fazer que não se produz, na retórica e no absoluto que reduz, que “ao passar pelas pedras, não deixa nenhum arranhão”. Fazer, onde se inscreve o verbo que traz a experiência que marca a possibilidade de vida e de mudança. Como nos diz D.Creusa “só se aprende a caminhar caminhando porque quem fica parado é poste”. Na ação de caminhar, que se afasta daquele que é inanimado, forja-se o estatuto e o lugar do conhecimento daqueles que realizam a ação: sujeitos, que aprendem a caminhar, caminhando.

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8. A Imagem histórica

Hoje em dia, eu não sei se eu bancaria aquela luta toda do Movimento Sangue Novo. Porque devido... ao que a gente está vendo aí, a gente tem medo, né? Você é ser humano. Você é de carne e osso, você tem medo, né? Se a gente morrer, vai ser por uma luta justa Acho que nunca, na história disso aqui se viu tanta gente lá naquela Praça, numa assembléia. Nem a associação de moradores conseguiu botar tanta gente como nós botamos lá... (P.Penha, Movimento Sangue Novo)

Nas tramas contadas, muitas vezes insinuavam-se imagens, que colocavam no centro do acontecer histórico, determinados fatos ou agentes sociais. Tais imagens nos faziam recordar que, entre as primeiras pistas de nosso trabalho, havia a experiência vivida em sala de aula como professora e a desconfiança quanto à naturalizada noção de que a visão dos alunos a respeito das mudanças reproduz a versão de uma história de grandes homens e de grandes feitos: a história heróica e factual. Na verdade, esta noção vem ratificada pelo constatado desinteresse dos alunos pelo tal do “processo”, correspondendo, em linhas gerais, à seguinte lógica: se eles não se interessam pelo processo e pelas explicações mais “fundamentais” do acontecer histórico, não conseguem ultrapassar os limites do fato e do herói. A este respeito, Marcos Arruda, discutindo a crítica feita ao estudo dos fatos, como importante abrigo da Ideologia, e também a concepção a ele contraposta, que aponta a explicitação dos conceitos para superar tal barreira, nos lembra:

(...) Sem alterar a exclusão da história vivida de suas preocupações, apoiando-se prioritariamente em narrações cronologicamente concebidas e numa concepção do processo histórico como algo “dado” (quer dizer como objeto acabado, diante do qual só cabe uma passividade mais ou menos erudita que apague qualquer “projeção” de quem está conhecendo sobre o conhecido), a explicitação de conceitos

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e interpretações simplesmente acrescenta à mecânica de memorização que resulta do “Ensino factutal” novas peças.( SILVA, S/DATA)119

Seguindo a reflexão do autor, podemos pensar que trabalhando com uma noção processo enquanto algo acabado, estamos reproduzindo a mecânica do ensino factual em salas de aula. E o pior, responsabilizamos os alunos, ou melhor a sua passividade diante das visões “impostas pela ideologia dominante”, concebendo a produção de seu conhecimento também a partir de um referencial mecânico. O que não se coloca em questão é a forma como vem sendo trabalhado o “processo” com os alunos, e o saber por eles trazido às salas de aulas, saber que, ao nosso ver, traz uma determinada noção das mudanças e que não se confina a uma lógica “heróica e factual”. Assim, a contrapartida de uma visão mecânica e acabada dos processos históricos é a própria exclusão da história vivida, da qual nos falou Arruda, e do conhecimento trazido pelos alunos. Na prática do professor em sala de aula, dá-se, pois, a negação do sujeito no processo de fazer e conhecer. Em nossa experiência junto aos grupos populares, pensamos que encontramos algo semelhante. Exclui-se também a história vivida e o saber aí produzido, sendo que o processo em questão é a mobilização política destes grupos, concebido numa dimensão pré-determinada, de acordo é claro com os referenciais dos mediadores. O desencontro entre a ação das classes subalternas e sua percepção a respeito das questões imbricadas neste processo, e as concepções trazidas pelos mediadores, produzem por parte deste últimos, na maioria das vezes, um conjunto de noções, tais como: o “povo não tem memória”, “o povo não sabe votar”, “o povo gosta de ser mandado” ou “de obdecer”. Noções, cujas explicações que a ela se ligam, traduzem o desencontro referido, mas não avançam na forma através da qual se coloca a memória das classes subalternas, as mediações inscritas em seu voto, e na forma como se relaciona com o poder. por exemplo. A questão assume uma dimensão mais delicada aqui porque a ênfase na mobilização política vem junto ao discurso de valorização dos sujeitos do fazer e do conhecimento, o que dilui ainda mais as relações de poder imbricadas neste desencontro e a desqualificação das classes subalternas. Porém, aqui também a contrapartida de uma concepção prédeterminada da luta e da mobilização política é a exclusão da experiência e do conhecimento trazidos por aqueles que lutam. Na verdade, num modelo já determinado de ação política, estes últimos “atrapalham” o percurso histórico, trazendo questões que possivelmente abalariam o próprio modelo, se tensionadas com o respeito que seus sujeitos merecem. 119O

grifo foi feito por mim.

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Tendo em vista tais inquietações, é que nos voltamos para as histórias vividas e para as visões aí produzidas, que se referenciam em um saber acumulado historicamente pelos atores sociais em questão. No atravessamento entre a nossas inquietações e as imagens identificadas nas tramas, saímos em busca de uma reflexão final a respeito de algumas imagens da história produzidas por seus sujeitos. Nesta busca, trilhando a contramão, partimos da intuição de que estas visões não são meras reproduções de uma determinada forma de conceber as mudanças históricas, onde os heróis assumem lugares determinantes e os acontecimentos são fundadores. Procuramos então, algumas das mediações que as perpassam, compreendendo também sua produção no âmbito da própria luta que se desenrola. Interrogamonos pois, se herói e acontecimentos fundadores têm aqui o mesmo significado que adquirem na chamada versão factual e heróica da história, contra qual temos lutado. Repensar o significado destas imagens, tendo em vista os próprios atravessamentos da experiência subalterna e os impasses da luta, não foi uma questão que se colocou apenas na origem desta pesquisa. Ela se repôs ao longo do trabalho. Tais imagens rondam as tramas. Atravessam a visão de lideranças que se projetam no fluxo do acontecer histórico, atribuindo-se um papel particular. Insinuam-se no solidário compartilhamento e na dedicação teimosa das mulheres do Sementinha, e no anúncio da chegada dos padres às comunidades. Repõem-se na visão da prática política presente no trabalho daqueles que participaram do Movimento Sangue Novo e na imagem do povo tomando a rua, na Assembléia da Praça de São Lucas.

8.1. Imagens heróicas

Debruçando-nos sobre as percepções das mulheres do Sementinha, chamou-nos atenção o lugar por elas atribuído ao então Padre Beno não só na formação do grupo mas também na comunidade. Já nos referimos aqui ao fato de que ele aparece como um ponto de ruptura que marca a articulação das

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mulheres enquanto grupo organizado. Mas isso significaria que, na história contada por elas, Beno assumiria o lugar de um herói? Se pensarmos que a visão do herói associa-se exatamente a um descolamento, no âmbito do qual se percebe a sua ação enquanto transcendente ao fluxo do acontecer histórico, podemos concluir que na interpretação das mulheres do Sementinha, o então Padre Beno não está colocado no lugar do herói. Como vimos, não há uma relação mecânica entre a entrada de Beno em cena e a própria mudança que vai se delinear. Entre estas está colocado o trabalho acumulado das mulheres: “o pensamento de Beno em formar o grupo” ou sua “caridade” confundem-se com a experiência que as mulheres já vinham acumulando e que se redefinia no âmbito de suas atuações na comunidade. Dentro desta perspectiva, o papel de Beno não se descola dos caminhos que elas vinham tecendo. E neste sentido, a ele é atribuído muito mais o lugar de potencializador das mudanças que encontram aí a possibilidade de instituíremse do que o papel de promotor de uma mudança que marca um novo tempo . Assim, percebemos que no significado atribuído à mudança, as mulheres do Sementinha percebem seus caminhos cruzando-se àqueles que vinham sendo trilhados por Beno em sua atuação na comunidade. Aí, como vimos, a interpretação se dá atravessada por um viés religioso ( o compartilhamento da dor dos doentes necessitados, “o pastor que pastora”, o conhecimento do povo através da convivência com ele) que é reatualizado no âmbito da própria ação comunitária das mulheres e de sua relação com o padre. O viés religioso não se coloca aqui enquanto transcendente ao acontecer histórico. Ele constitui-se enquanto mediação explicativa na medida em que se reelabora no âmbito da ação concreta das mulheres e de Beno, mergulhado no próprio acontecer histórico. Mesmo na interpretação de uma das mais religiosas das mulheres do grupo, a intervenção de Cristo aparece ao lado da ação humana de outros - o padrinho, a caridade de Beno e a firmeza do trabalho das mulheres - que potencializam a possibilidade de sua manifestação. No entanto, ao reconstruirmos os caminhos do Sementinha a partir das falas das mulheres, vislumbramos uma certa visão heróica da história, que não estava em nenhum lugar especial, mas atravessava toda a trama. Podemos lembrar aqui nossa própria intervenção nesta reconstrução, assumindo os atravessamentos que foram se forjando ao longo do contato com as mulheres e da produção de nosso trabalho. Mas pensamos também nas mediações presentes na forma heróica como elas falam de seu trabalho, de sua travessia histórica.

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Lembramos primeiro, o próprio lugar da maioria dos relatos: as reuniões sistemáticas com o C EPEL ( Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina ) e também junto a outros grupos, bem como palestras para um público mais amplo. 120 Em meio aos relatos, na maioria das vezes, iniciando uma idéia ou a concluindo, as mulheres do Sementinha afirmavam seu trabalho e o qualificavam:

É um trabalho muito penoso. A gente trabalha bastante. Quem usa muita conversa é telefone. A gente não fica de férias, a gente só fica de férias de reunião. Trabalha muito, escreve pouco e ganha pouco. Eles não acreditam no trabalho da gente. A gente é carente mas não é boba. O importante é que a gente confia no trabalho da gente. Eles não confiam Eles pensam que a gente não trabalha, que a gente não faz nada, fica de pernas para o ar.

Subjacente às observações há um evidente destaque dado à intensidade do trabalho - “penoso”, “a gente não fica de férias”, “trabalha muito” em contraposição a noções que aqui sugerem exatamente o contrário - usar conversa, reunião, escrever. Noções estas que não caracterizam o trabalho do grupo, mas que se remetem às atividades de mediadores com quais o grupo tem contato. Se considerarmos os dois últimos comentários a respeito da desconfiança de alguns mediadores no que se refere ao trabalho do grupo, a contraposição se coloca como uma necessidade de qualificação do que fazem, apresentando uma dimensão crítica em relação àqueles que não confiam em seu trabalho. Aqui a necessidade de interlocução com os mediadores não implica a anulação do que as mulheres sabem. A contraposição anunciada ou colocada como conclusão ao fim de uma discussão, sugere-nos uma forma de afirmação do trabalho do grupo no próprio âmbito da relação com os mediadores externos, de forma a se estabelecer o lugar onde ambos se inserem. Neste sentido, elas se colocam no lugar do

120Recordamos

aqui que o CEPEL acompanha o Sementinha informalmente, há oito anos, e o assessora sistematicamente desde 1992.

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trabalho: um trabalho penoso, onde não há férias, que ultrapassa as reuniões travadas no grupo ou fora dele e pelo qual se ganha pouco. Mas esta maneira às vezes um tanto heróica, através da qual definem seu trabalho, não é uma mera auto-afirmação diante do outro . Se ela se produz na relação, ela também encontra ressonância na forma como percebem sua própria experiência. Se pensarmos nos impasses imbricados no trabalho cotidiano das mulheres - o desgaste físico de “peregrinar” pela favela, que se torna ainda mais intenso no caso daquelas que são mais velhas; a conciliação com as atividades domésticas, a tensão e os perigos trazidos pela violência policial e as guerras entre o narco-tráfico, a falta de recursos materiais e financeiros e para o trabalho, o desgaste emocional no combate à dor, que se expressa não só nos males físicos mas na miséria -, a dimensão heróica de suas falas não se coloca como descolamento do real mas enquanto mergulho nele. A experiência intensa de uma realidade, cujos impasses lhes exigem muitas vezes alternativas que nos soam heróicas mas que, uma vez que atravessadas pela experiência e saber acumulado historicamente pelas mulheres, colocam-se num outro lugar, anunciando seu campo de existência no real: uma ação sobre a realidade vivida que encontra no coletivo a possibilidade de engendrar-se. Para nós, que observamos de fora o caminho das mulheres, seja de longe ou de perto, os caminhos trilhados e contados podem parecer heróicos. Para elas, que os vivenciam enquanto experiência, eles são caminhos de vida e trabalho. Caminhos que, para se reatualizarem cotidianamente, em meio aos impasses vividos, levam à reafirmação incessante de sua intensidade e da particularidade dos sujeitos que os fazem. A reafirmação dos caminhos de luta trilhados inscreve-se também nas imagens trazidas por aqueles que participaram do Movimento Sangue Novo e que hoje refletem sobre a dinâmica do movimento popular:

Hoje a juventude está em outra. Antes, tinha esta aposta no futuro... E acho que tinha este lançe que o movimento perdeu muito: a honestidade. A gente não achava que a gente representava o novo. A gente era o novo. Hoje, você elege. É a democracia representativa, uma democracia que você elege, a pessoa fala em nome de você mas ela não está falando contigo. O nosso Movimento não era assim. Era democrático mesmo. A gente não fechava nada.(...) Nossas reuniões eram assembléias, sempre era de massa. Todo mundo sabia, carro de som, a gente fazia o diabo.

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No movimento trazido pelo Sangue Novo, não havia lugar para alguns. A cena era coletiva. Aqui, a imagem heróica parece se colocar na diferença do tempo, na lembrança de uma época onde honestidade e democracia ativa se imbricavam no movimento popular. Mas a olhamos com cuidado pois a reflexão da militante do PT, ex-moradora de favela, traz mais do que uma imagem nostálgica de um passado que uma vez perdido, se torna heróico. Ao trazer à cena atual os sinais da experiência histórica dos sujeitos coletivos que a engendravam, ela se afasta do campo do heróico, produzindo uma imagem crítica do presente, recolocando aí as alternativas possíveis forjadas no passado. Inscrita na lembrança daquele tempo, dos movimentos, há portanto uma denúncia. Denúncia de quem continua os acompanhando de perto, e que, no âmbito dos impasses que atravessam a própria prática política da esquerda, afirma outro lugar do fazer político, um outro estatuto dos sujeitos que o fazem, e uma outra prática possível. À imagem do tempo passado vem imbricada também a crítica da dinâmica despotencializadora do movimento no presente, conforme nos sugere o relato de uma moradora:

(...) O Sangue Novo tinha as reuniões, aí a gente resolvia o que queria e botava em prática. É por isso que me motivou muito. Motivava. (...) Até hoje eu falo que foi uma pena, uma pena mesmo ter acabado. Também reerguer, eu acho difícil. Porque agora as pessoas já estão entendendo mais...Eu acho que agora as pessoas leem jornal, escutam mais rádio, esses debates de rádio. Se a gente fosse fazer, eles iam dizer que era prá perder tempo, que isso não resolve nada. Porque você vai, leva umas pessoas prá reunião, aí chega lá a reunião começa muito bem, igual eu já levei muita gente. Chega lá, em vez de tratar única e exclusivamente daquilo, aí já parte prá uma coisa que não tem nada a ver. Aquilo acaba, as pessoas não entendem, acabam se cansando e desanimam.

Aqui não é tanto o passado que se repõe heróicamente, na lembrança das reuniões ágeis e objetivas do Movimento Sangue Novo. Possivelmente, o que se coloca é o confronto da experiência passada com a vivência do presente, experimentada enquanto desânimo por aqueles que se arriscam a frequentar reuniões e encontros, onde muitas vezes as disputas de poder e também os impasses vividos pelos mediadores políticos, atravessam o movimento, despotencializando-o. A reflexão dos atores sobre as perspectivas de luta no presente, muitas vezes, contribuem para relativizar a noção daqueles que acreditam no “olhar

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heróico do povo”. Nestas reflexões vem inscrita a experiência de vida dos que vivem o cotidiano da favela e daí percebem suas mudanças:

Hoje em dia, eu não sei se eu bancaria aquela luta toda do Movimento Sangue Novo. Porque devido..., ao que a gente está vendo aí, a gente tem medo, né? Você é ser humano, você é de carne e osso, você tem medo, né?

Inverte-se a lógica. Imagens heróicas trazemos nós, ao nos referenciarmos sistematicamente na prontidão de 24 horas e na ousadia daqueles que, como lembra a moradora, são “de carne e osso”. Aqueles, para quem a vida é de luta mas cuja profissão não é militar. Aqueles que estão na luta para viver e sobreviver, e não para morrer. Como a mesma moradora afirmou quando contava a luta do Sangue Novo , “se a gente morrer, vai ser por uma luta justa” .No risco de morte pela “luta justa” não está a afirmativa heróica daqueles que cultivam a luta em “cativeiro” mas a intensidade da experiência daqueles que a põe na rua, assumindo seus riscos. Por isso, o “bancar” a luta vem atravessado pela experiência de vivê-la enquanto justa. Mas imagens de heróis, algumas vezes trazem aqueles que se vêem em meio a determinados conflitos que atravessam as organizações comunitárias. Este parece ser o caso de algumas lideranças:

(...) Porque a associação de moradores, ela tem que ter jogo de cintura para jogar contra as autoridades, desde governo, polícias estas coisas todas, a opressão militar e ela também tem que ter jogo de cintura para esse pessoal do tóxico. Porque aí tem muitos moradores que tem medo e acham...(...) o morador, muitos moradores não encampam essa briga de associação de moradores porque eles tem medo. Tem as famílias deles, tem o dia-a-dia lá. Só os heróis mesmo que chegam e peitam à frente

Imagens que encontram referência nos impasses enfrentados pela comunidade, que colocam as lideranças no centro dos acontecimentos, exigindo-lhes uma atuação que se particulariza em meio à luta. Aqui, aquele que destaca enquanto herói o faz em sua ação mediadora sobre uma realidade plena de adversidades, ameaças e que exige “jogo de cintura”. Uma realidade ele que enfrenta, encampando a “briga de associação”.

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Mas qual o ônus desta imagem heróica para aqueles dos quais ele se distingue e, particularmente para o movimento popular? Arriscamos, mergulhando em algumas reflexões que podem nos dar pistas às respostas. Muitas vezes, aquele que tem jogo de cintura, enfrentando os conflitos então colocados, é o mesmo que anuncia sua particularidade, se colocando acima dos impasses imbricados na luta, e distinguindo seu lugar protagônico no fluxo dos acontecimentos. No âmbito do processo de luta, e resgatando sua experiência histórica, ele se descola dos demais atores em cena, apresentando-se também enquanto herói que inaugura um novo tempo na história da favela, como parece ser o caso de uma das lideranças do Grotão. Relembrando a época em que vivia na Vila Proletária da Penha, já anuncia a forma como se insere no acontecer histórico, ocupando uma posição particular em relação aos outros, “companheiros favelados”.

(...)Na Vila Proletária já existia Associação de Moradores e aquela disputa de poder entre as associações porque lá tinha comissão de luz, era fora de série. Eu achava horrível aquela briga dos companheiros favelados, todos pobrezinhos, brigando um com outro pelo poder que não tinha significativo algum. Eu sempre me mantive a distância, procurando participar do sindicato e acompanhando a política partidária. E ainda não tinha entrado na política partidária porque o meu conhecimento no Rio de Janeiro era muito pouco.

E aponta também alguns dos elementos que vão atravessar a sua visão enquanto um ator distinto dos demais: a participação no sindicato e o acompanhamento da política partidária, para qual nesta época ainda não tinha entrado porque tinha pouco conhecimento do Rio de Janeiro. Aqui, na explicação, parece-nos que se insinua um elemento que, em sua visão, talvez o coloque também num lugar demarcado: o conhecimento, não do Rio de Janeiro, mas das relações que se inscrevem na dinâmica político-institucional da cidade. Conhecimento este necessário à entrada na política partidária. E no Grotão, onde vai viver, quando a comunidade já estava mergulhada no processo de luta pela terra e produção do espaço, ele também manifesta sua distância em relação ao trabalho comunitário: “eu fiquei distante, deixando eles trabalharem e tudo porque envolvia até então um trabalho comunitário”. Mas, posteriormente entra em cena: no âmbito dos conflitos internos, que colocavam o presidente da associação em questão e criavam um vazio de poder

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na associação de moradores, bem como ameaçavam a posse da terra, em função do encaminhamento que os presidentes da associação vinham dando à luta.

(...) Foi então que eu conheci a Dona Lourdes da Regional121. Até então eu não tinha nenhuma ligação com esse pessoal que fazia o trabalho comunitário. Conheci Dona Lourdes, ela fazendo o cadastramento do pessoal para remanejar o pessoal. E na rua que eu morava ela já estava no número 19. O pessoal correu naquele alvoroço todo: “Vai remanejar porque as assistentes sociais estão aí, tomando o nome do pessoal para tirar”. Aí eu cheguei. Quando eu cheguei, Dona Lourdes estava sozinha, sem ninguém da Associação. Porque nestas alturas o presidente já tinha ido embora da favela. Eu digo: “Não, a senhora está apanhando esses dados do pessoal sem o acompanhamento da Associação. A senhora está errada”. Aí ela começou a me dar explicações e naquela agonia de ser despejado eu até destratei a Dona Lourdes. Digo: “Não, a senhora não vai, de maneira nenhuma. Se a senhora tentar tomar dados das pessoas aqui eu vou tomar essa sua prancheta e a senhora vai ter que se retirar daqui de dentro. Porque a senhora só vai entrar na favela com um representante da Associação. Que negócio é esse?”. Aí, eu solicitei que ela viesse para a sede, deixei o pessoal com ela e fui atrás do presidente que estava no Largo da Penha. Cheguei a dizer a ele que a responsabilidade era dele, que teria que assumir. Chegamos num consenso e aí solicitamos advogado e embargamos, através da pressão naquela hora a ordem de despejo”.

Conta-nos sua aproximação do trabalho comunitário, no momento em que a comunidade vivia um impasse, no qual ele também se incluía: “naquela agonia de ser despejado”. Impasse relacionado à um vazio de poder interno, simbolizado aqui no afastamento do presidente da Associação, e ao perigo muito próximo de despejo da comunidade. É experimentando a ameaça de despejo, e em meio a este impasse, que o ator se vê em cena, atuando de forma a enfrentá-lo. Colocando-se contra a representante do orgão público, ocupa o vazio de poder, afirmando os direitos da comunidade e a representatividade deste poder- a associação de moradores. Coloca-se diante do então presidente, convocando-o a assumir suas responsabilidades e ao fazê-lo, aproxima-se do lugar onde se criara um vazio. Rompe aqui a distância, colocando-se no fluxo do acontecer histórico e particularizando seu lugar nele: “chegamos num consenso e aí solicitamos advogado e embargamos, através da pressão naquela hora, a ordem de despejo”. 121Ele

refere-se aqui à assistente social da XI Região Administrativa que abrange, entre outros o bairro da Penha, e o Complexo de favelas aí localizado.

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E a forma através da qual se coloca diante dos acontecimentos é que o faz ocupante legítimo deste espaço. Atravessando esta sua atuação, o ator percebe sua própria experiência histórica:

E aí o pessoal resolveu tirar toda a diretoria da Associação e abrir eleições. E aí naquela agilidade... Já em 82, aí devido àquela minha agilidade- a prática do movimento sindical, né? e a gente aprende muito- , a minha agilidade pessoal, eu tinha feito a campanha política, também partidária, eu já tinha me envolvido na campanha política partidária. Aí conclusão: eles despertaram a atenção que eu tinha que ser o presidente da Associação ali. Eu digo: “Não gente, eu não quero saber”. E eles: “Não. Você vai sim”. E começaram a fazer pressão e formamos uma diretoria com o apoio dos reais fundadores que era o Regis, Padre Carlos e o próprio companheiro Antônio Pedro que foram presidentes da comunidade. Fizemos as eleições. (...) Aí corre as eleições e eu fui muito bem votado, e teve duas chapas. Começei o trabalho comunitário com o apoio destes companheiros.

É na atuação no movimento sindical e no envolvimento na campanha político- partidária, que se forjam os elementos que vão particularizá-lo no momento em que se coloca a abertura das eleições: a sua agilidade pessoal e um conhecimento, possivelmente aquele ao qual se referiu no início da entrevista, que remete-se ao domínio do jogo político-partidário. Elementos também que vão referenciar o “despertar” daqueles que atuavam no trabalho comunitário. Reconhecido a partir desta experiência, ele é chamado para concorrer às eleições, formando uma diretoria com aqueles que eram “os reais fundadores” da comunidade. Na base do espaço que lhe é atribuído encontra-se sua particular trajetória e o reconhecimento daqueles que legitimamente vinham se destacando na comunidade. Investido de um poder, que tem na base o reconhecimento da comunidade e de seus representantes históricos, e a particularidade de sua própria experiência, o ator começa o trabalho comunitário. Ao fazê-lo, inaugura um novo tempo na história da comunidade. Tempo, favorecido por outras mediações, como podemos verificar a seguir:

(...) logo a seguir chegou o Governo Brizola que fez aquela abertura e ficou tudo mais fácil pra gente fazer o trabalho porque até então nós não tínhamos água. Água era precária. Não tínhamos rede de esgoto, 356

não tínhamos escolas comunitárias. O posto médico estava construindo uma parte mas não estava funcionando. Não tinha iluminação pública. A associação era um quartozinho e aí nós começamos o trabalho

É no âmbito do governo Brizola e da “abertura” por ele feita, onde ficou “tudo mais fácil” para fazer o trabalho, que o ator localiza este novo tempo para a comunidade. Novo tempo que se inicia no “quartozinho” da Associação mas que rompe com a precariedade do fornecimento d’água, com a inexistência de uma rede de esgoto e de escolas comunitárias, com a finalização das obras do posto médico e seu não funcionamento e com a falta de iluminação pública. Neste sentido, em sua visão, a possibilidade de inaugurar este novo tempo , e produzir-se enquanto liderança distinta na comunidade, encontra-se associada à “abertura” do governo Brizola. É nesta relação que identifica as “facilidade” do trabalho. Não temos dados suficientes para avançar na forma como a liderança percebe este caminho mas supomos se tratar de sua forma de articulação ao Governo Brizola. Algumas questões analisadas em seus depoimentos, como o mutirão gratuito feito em conjunto com o Estado, e as informações trazidas por outros atores sociais da época, nos fazem concluir a respeito do papel por ele assumido no âmbito da política do Governo Brizola. Em sua “causa social”, priorizando as “comunidades carentes”, o Governo investe na prática de canalizar o movimento popular para a esfera institucional, através do fortalecimento das lideranças e da costura de alianças com elas. Segundo as informações de alguns militantes do movimento popular na região foi neste âmbito que o Grotão, ainda que de ocupação recente, alcança várias conquistas. 122 Usando o vocabulário político daqueles que participaram do Movimento Sangue Novo, a liderança foi cooptada . Recorrendo à expressão de uma moradora do Grotão, ele voltou-se para a política externa . Em nossa opinião, as duas expressões não traduzem a complexidade do processo que marca a relação entre as lideranças e o governo Brizola, onde estão em jogo os interesses políticos de ambas as partes e as condições em que tal relação se forja - e aí não podemos esquecer que se para Brizola tratava-se de estabelecer a sua hegemonia a nível estadual, disputando o controle do movimento popular e criando as bases para a reatualização de sua projeção nacional enquanto líder carismático, para a liderança a articulação trazia sua consolidação enquanto liderança na 122As

referências às conquistas do Grotão em meio ao governo Brizola, e ao fato de a comunidade ter sido uma espécie de plano-piloto deste governo na região, foram feitas durante as entrevistas com alguns integrantes do Movimento Sangue Novo.

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comunidade e sua projeção no movimento comunitário estadual. Mas aí também está em jogo a própria experiência histórica das partes desta relação, experiência que vem referenciando seus projetos e a forma como produzem sua imagem na cena política. É neste âmbito que , ao nosso ver, podemos compreender a imagem de herói trazida pela própria liderança. Esta imagem não se confina à mera ocupação do espaço de poder na comunidade e à relação engendrada com o Governo Brizola. Estas são as condições fundamentais a sua construção enquanto liderança e que criam o terreno dentro do qual produz a imagem do herói. Mas a possibilidade de produzir esta imagem encontra-se em sua própria experiência histórica, referência que ele resgata personalizando o seu percurso enquanto liderança, descolando-se das demais, e principalmente dos moradores da comunidade.

Isso é uma revolta do sistema que eu tenho. Eu sei que eu não vou mudar o mundo mas eu vou morrer protestando, essa situação que aí está. O comodismo do povo brasileiro, né? Porque eu queria que o povo brasileiro tivesse um centinho por cento do povo chileno, que não se cala com nada, não, não se intimida(...) E o povo brasileiro é muito acomodado. Ele só quer se envolver com futebol, com samba, com praia e isso nós sofremos a consequência que aí está. O regime mudou e não mudou porque a direita continua(...)

O “comodismo” do povo brasileiro, as suas prioridades de envolvimento, abrem espaço à “situação que aí está”: um regime que não mudou porque a direita continua. Povo dentro do qual ele se distingue já que possui uma “revolta contra o sistema”. Na análise do comportamento político do povo brasileiro recupera imagens produzidas historicamente no âmbito das relações de poder em nossa sociedade, e que reatualizam incessantemente a despotencialização dos movimentos populares. No entanto, as reelabora, tendo como referência sua própria experiência, percebida enquanto um dado pessoal - “é uma revolta do sistema que eu tenho”. Ao fazê-lo, desta forma, além de reafirmar o “comodismo” do povo brasileiro, produz mais do que sua diferenciação, produz sua disassociação do povo brasileiro. Pois se a diferença é apresentada enquanto uma atribuição individual, a imagem aí produzida não é daquele que se particulariza pela experiência, mas daquele que está em outro lugar, no campo da superação pessoal: é herói . É deste lugar que ele avalia as possibilidades do movimento popular:

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As formiguinhas têm que começar a roer pela base para fazer a casinha delas. Eu acho que isto não é a curto, nem a médio prazo. É para longo prazo porque tem que passar por uma série de esclarecimentos porque nas comunidades ainda o nível político está baixíssimo. O nível de consciência política das comunidades está baixo demais, a liderança que tira por aí, nas reuniões é a demonstração. As mais politizadas têm muito a desejar. Então isso é um trabalho a longo prazo, que a gente tem que fazer as articulações. Eu acho que todo presidente que sai da associação de moradores ele tem que ficar dando o apoio e fazendo o seu trabalho comunitário, como eu estou fazendo.

Na avaliação das possibilidades, há a apropriação das categorias usadas pelos mediadores: os “níveis de consciência” política - desde o mais baixo, que domina as comunidades, passando por aqueles que ainda têm a desejar ( e que caracterizam as lideranças), até aqueles mais altos, esclarecidos ( que supomos, é onde ele se inclui). A imagem do herói que tem “jogo de cintura” para enfrentar os conflitos muitas vezes não está separada da imagem daquele que na detenção do saber e da experiência, traz a marca da distinção, que ao ser naturalizada, projeta-o para um outro plano, onde não se colocam os demais, aqueles que afirma representar. Não está separada também das relações dentro das quais se produz o seu lugar, seja aquelas que trava em meio à dinâmica da comunidade, seja aqueles que se referem às alianças feitas com agentes político-partidários ou com o Estado. Heróis não se produzem sozinhos. Fazem-no num tecido de relações que envolvem os interesses dos “representados”, que o identificam enquanto potencializadores das lutas em curso, e também daqueles com os quais estabelece alianças, interessados na “filtragem” do movimento através do próprio fortalecimento da liderança em sua dimensão heróica , descolada pois, do coletivo. Neste movimento, é importante considerar a atuação e os referenciais trazidos pelos mediadores que contribuem para projetar o percurso das lideranças, inserindo-a num outro patamar que a descola de sua experiência histórica subalterna. Aqui, resgatando uma noção usada na primeira parte deste trabalho, o normal se torna excepcional . Mas o “encantamento” deste devir não é polemizado, uma vez que na base do encantamento encontram-se os próprios referenciais através dos quais, mediadores e então lideranças heróicas, avaliam o saber das classes subalternas: os níveis de consciência política, a participação, etc. Não queremos aqui passar de heróis mocinhos a heróis bandidos. Nossa intenção é considerar o ônus trazido pela imagem da liderança que se projeta 359

enquanto herói, resgatando sua experiência histórica como referência, personalizando-a e esvaziando as possibilidades inscritas nos percursos diferenciados de outros, desqualificando assim o saber e a experiência aí produzida. Lembrar também a responsabilidade daqueles que com seus eixos teóricos, de origem científica e de horizonte político , fertilizam imagens que longe de contribuir para a compreensão e apontar o potencial crítico e político da experiência subalterna, confinam-no em modelos de atuação política, produzidos em um outro lugar. E por fim, os desdobramentos implicados nas alianças tecidas ao longo desta produção. Desdobramentos que centralizam na ação de alguns o acontecer histórico, diluindo a intervenção dos sujeitos coletivos na luta. Referir-se a estas alianças, no caso das tramas aqui contadas, nos leva a um dos personagens mais recorrente nas falas dos entrevistados: aquele que na época era o governador do Estado, Leonel Brizola. No cenário político-social do período que as lutas se processam, sua imagem se projeta, tanto na percepção daqueles que reconhecem sua atuação empreendedora nas comunidades, quanto na visão daqueles que o percebem na sua ação de esvaziamento do movimento popular. No Grotão, ele aparece associado às conquistas da comunidade. Como recorda uma moradora, “no Governo Brizola, foi quando nós conseguimos o que nós temos hoje na comunidade”. Água, luz, eliminação das valas negras, escola comuitária, posto médico, várias das lutas que vinham se tecendo ao longo dos anos pelos moradores aparecem neste período enquanto conquistas alcançadas. Conquistas que, como avaliamos, se deram através do participação dos moradores no processo de mutirão, vistos aqui como mão-de-obra, e da costura de uma aliança com a principal liderança do período. Foi nesta época também que se deu a cessão de uso da posse terra, eliminando, segundo as palavras da liderança comunitária da época, “o Governo Moreira Franco ou qualquer outro governo de mexer com a gente” . Na lembrança de alguns, permanece o registro da intervenção de Brizola e daqueles que, na época eram a ele ligados: “Se nós estamos aqui, agradeço ao Governador Brizola. E ao Saturnino, né?” . Os que reconhecem sua atuação, lembram também seus limites mas o compreendem: “ele falhou em algumas coisas, muitas coisas ele falhou. Também eu acho que a gente tem que ver um pouco que o Brizola não teve o apoio do governo federal. De maneira nenhuma. Nós sabemos disto porque nós tivemos em várias reuniões com ele” . Na compreensão da falha, vem não só o resgate do discurso do líder que anunciava recorrentemente a falta de apoio do governo federal, mas a apropriação deste discurso através da própria experiência de reunir-se com ele e com aqueles que o cercavam. 360

Aquela Câmara Municipal, a gente virava ela de um lado de outro. A gente conseguia entrar e tudo. A hora que a gente queria a gente entrava, tinha reunião, a gente falava com Maurício Azedo, falava com Nelson Lopes, as secretarias também (...)

Para quem tem na história o saber de que à maioria é vedado o acesso aos órgãos públicos, e de não ser reconhecido enquanto interlocutor, a experiência de “entrar” nas secretarias e participar de reuniões revela-se enquanto uma melhoria e como possibilidade de uma forma de governo que não seja um quartel-general, onde o “general dá as ordens e os soldados executam”. Mas, ao nosso ver, se o governo Brizola é visto em sua capacidade de “abrir-se ao povo”, ele é assim percebido, tendo em vista a experiência histórica das classes subalternas que o percebem acenando com um novo padrão de interlocução, mas ao mesmo afirmando uma relação que encontra referência nas relações pessoais que se reproduzem no âmbito da sociabilidade capitalista e, que colocam-se na experiência histórica subalterna enquanto possibilidade de sobrevivência material e de domínio de um “jogo” já conhecido. Neste sentido, se as relações pessoais aqui se colocam enquanto fundamentais no processo de interlocução com o governo, elas assumem significados diferentes para os diferentes atores. Para aquele que assume o lugar de quem “se abre”, ela é a possibilidade de controle, mas para quem luta pela “abertura” e a experimenta enquanto afirmação das relações que vivencia cotidianamente e da possibilidade de melhoria, ela é percebida enquanto afirmação de espaço e conquista obtida. É neste sentido que podemos tensionar a visão trazida por alguns militantes do movimento popular, como da participante do Movimento Sangue Novo, militante do PT:

(...) foi a época do primeiro governo do Brizola e era um pessoal com uma postura assim: o Brizola passou a ser o assistencialista. Passou a ser não. Ele começou a tratar as comunidades faveladas, as comunidades mais carentes com um paternalismo fora do comum. Tinha aquele tal de Maurício Azedo que na época era presidente da Câmara Municipal que deixava as portas abertas, né? O pessoal chegava lá e ele, tipo assim: olha, tudo bem, não se preocupa não porque nós vamos fazer. Quer dizer mudou o foco da história. Por quê? Porque nós estávamos o tempo inteiro falando da importância do fazer. A importância do ser o sujeito da própria história deles. A importância deles estarem atuando e brigando pelas coisas que eles achavam que eram importantes para eles, que eram conquistas que seriam muito melhor saboreadas. Aí quando chegou o governo do

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Brizola, ele começou a cooptar, né? Tipo assim: “ah não, não precisa ir não, já falou com Maurício Azedo e ele falou que vai providenciar.

Podemos imaginar a experiência vivida pela militância do PT anunciando novas formas de fazer político, e no caso do Movimento Sangue Novo tecendo-as coletivamente no âmbito da própria luta - em seu embate com a prática política do PDT na região, que reatualizava antigas práticas. Mas é exatamente esta relação entre o velho e o novo, e a forma particular através da qual a prática política do PDT as articula, que nos parece uma das chaves que abre possibilidade à compreensão da penetração do brizolismo entre as comunidades faveladas da região durante o período examinado. Leonel Brizola vinha apontando, e distinguindo, sua experiência histórica de resistência à ditadura militar e voltava à cena política da sociedade brasileira, como um dos símbolos de consagração do fim daquela e do anúncio de um novo tempo . Anunciando o novo tempo, ele reconhecia a força dos movimentos comunitários que vinham se fortalecendo e acenando seu compromisso com eles , como diria a liderança do Grotão, o compromisso com a “causa social”. Sabemos que a interlocução com o movimento dá-se através das velhas práticas do populismo, buscando canalizar o movimento para a esfera institucional. Mas podemos pensar também que esta velha forma se reatualizava, entre outras razões, porque as relações pessoais que a permeavam, se recolocavam na experiência daqueles que eram partes da relação - “ a s c o m u n i d a d e s c a r e n t e s ”. E neste âmbito, possivelmente, a experiência de vivenciar estas relações seja percebida enquanto afirmação de um padrão de relações que se domina e possibilidade de ver suas n e c e s s i d a d e s atendidas , não sem que se deixasse de brigar por elas, pois o fato de os moradores não estarem se colocando enquanto “sujeitos da história”, no sentido que lhe dá a militante do PT não implicava falta de briga. 123. Dentro desta perspectiva também, seguindo o relato da mesma, podemos imaginar o impacto da experiência de transitar pelas secretarias e ser recebido para as reuniões. Para muitos, vivencia-se aqui a experiência de, em meio a uma igualdade universal abstrata, ser reconhecido na particularidade de sua existência. Assim, ao mesmo tempo que anuncia o novo , marcando o fim do que era, reedita o velho , não só através da distinção de seu lugar -via resgate de sua 123Parece-nos

que o discurso do brizolismo e sua prática sào atravessados pela ênfase à “carência” das comunidades faveladas. No entanto, ainda que reconheçamos a sua penetração entre elas, não estamos certos quanto ao fato destes grupos darem o mesmo significado à carência. Seguindo nossas reflexões no capítulo anterior, pensamos que para eles, “carência” não vem perpassada pelo sentido de “falta”. Traduz sobertudo o sentido de ncessidade, sendo por eles apropriada tendo em vista outras mediações, como já discutimos aqui.

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experiência histórica-, mas da reatualização de práticas que encontram referência na própria experiência subalterna. Mas a afirmação da particularidade do lugar, vivenciada na experiência de “abertura” do governo Brizola, retorna em outras situações. Assim, se no balanço do que foi feito, a imagem do governo Brizola se coloca enquanto avanço, na avaliação do processo que é encaminhado e que lhe caracteriza, muitas vezes a crítica se tece, ainda que não seja a ele dirigida diretamente, como podemos verificar num depoimento já analisado:

Essa vala que fizeram pra nós, isso foi o serviço mais porco que fizeram. (...) Porque o engenheiro que fez aquilo ele não tem noção de uma comunidade, ele não tem noção de favela. Então, era mais provável se o governo chegasse e dissesse assim: ‘como vocês querem?’. Eu tenho certeza que o serviço saía mais bem feito e muito menos material perdido. Porque a própria comunidade tem noção do que ela quer.

A mesma moradora que traz a imagem de um governo que se abria à população traz também a imagem crítica de uma prática que perpassa sua gestão e aponta uma redefinição do lugar da comunidade. O aparente paradoxo sinaliza a prática despotencializadora do movimento popular no governo Brizola. Mas possivelmente traduz também o desencontro entre a imagem reproduzida de um governo que se coloca enquanto aberto às classes subalternas e que encontra ressonância na forma como estas classes percebem a mudança no seu acesso ao poder e a experiência de viver cotidianamente as práticas por ele reatualizadas, como o mutirão que já foi aqui analisado. Pode revelar pois, que a vivência de uma relação com o governo, que parece outra e nova , não se coloca sobre a totalidade da experiência subalterna, no âmbito da qual se tecem as possibilidades de crítica. Nesta perspectiva, podemos pensar que as imagens produzidas a respeito de Brizola, ao não perceberem as implicações de sua prática política, trazem uma dimensão heróica. Mas por outro lado, na medida em que estas imagens não estão descoladas da própria experiência dos atores sociais que as produzem, ao contrário vêm junto à afirmação desta última, elas se colocam num campo onde está posta a ação, não só do líder que se abre aos favelados, mas daqueles que em sua travessia histórica, lutam pela vida e por sua melhoria. Ao nosso ver, há uma determinada articulação entre a experiência histórica destes grupos, o significado assumido pelas relações de sociabilidade aí forjadas, e a forma através da qual percebem suas relações sociais e políticas. José de Souza Martins lembra que muito do que parece aos olhos da classe média letrada como 363

arbítrio e roubo, não aparece com a mesma conotação aos olhos da grande massa, rural e urbana. “Até porque esta massa, de um modo ou de outro, está integrada na política do favor: praticamente tudo passa pela proteção e pelo favorecimento dos desvalidos” (1994, p. 38). Seguindo sua argumentação, e a relacionando com a reflexão aqui colocada, podemos pensar que aquilo que, aos olhos dos mediadores “letrados”, aparece como ignorância e comodismo, para as classes subalternas pode assumir outro significado, uma vez que seu referencial de percepção e análise das relações se faz a partir de um outro lugar. Possivelmente, as contradições inscritas na prática política do brizolismo podem nos levar ao conceito de alienação. Mas certamente, associar redutoramente as relações pessoais, e a experiência da “política do favor” à alienação das classes subalternas, é não considerar a complexidade dos processos que estão aí imbricados, e que nos levariam a uma reflexão mais aprofundada sobre o solo histórico no qual o populismo se forja. Solo, onde não só a experiência das classes subalternas se recria atravessada por relações pessoais, de tutela e favoritismo. Solo, onde as relações capitalistas se engrendraram, e desenvolvem-se, recriando relações arcaicas no âmbito de suas novas relações de sociabilidade. Solo, onde o Estado se forjou e consolidou-se reproduzindo o patrimonialismo e práticas de clientelismo político, onde a não distinção entre o público e privado, tem se revertido em privilégio de poucos e, muitas vezes, mediação fundamental à sobrevivência de muitos. Por isso, nos parecem redutoras as perspectivas que avaliam o impacto do brizolismo e sua força política, dando ênfase apenas à demagogia e assistencialismo de seu líder e ao comodismo das classes subalternas, tendo como referência modelos pré-estabelecidos de prática política e de mudança histórica que não consideram a complexidade das relações de sociabilidade no âmbito do capitalismo e a forma particular através da qual as classes subalternas a vivenciam. Parece-nos que ao nos apressarmos a assim interpretar as imagens produzidas por estas classes e seu comportamento político, esquecemo-nos que enquanto experiência que atravessa a história de nossa sociedade, o clientelismo e a política de favor, recriam-se em instituições e organizações de nossa sociedade, colocando a nu, a crítica daqueles que fazem o discurso abstrato da cidadania. Aqui, diferentemente do que ocorre com as classes subalternas, a imagem que se quer produzir não se articula à experiência social . Neste caso, como chamamos estas práticas? Esperteza? Terminamos com uma reflexão que nos parece reveladora do lugar dos “juízes”.

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(...)Mesmo nos setores dos serviços públicos, onde se situam os focos mais consistentes de crítica à corrupção, e de elaboração do discurso abstrato sobre a cidadania, como é o caso da Universidade, e mesmo a imprensa, os mesmos críticos estão muitas vezes envolvidos em práticas cotidianas de trocas de favores com superiores, colegas e funcionários administrativos, seja para receberem benefícios pessoais, como promoções ou facilidades, ou aliciamento para conseguir que um chefe ou colega se omita no cumprimento de um dever funcional que se transformaria em exigências de trabalho que muitos preferem evitar. (MARTINS, 1994, p.38)

8.2. O lugar do acontecimento

Na percepção dos protagonistas das histórias, algumas vezes percebemos o destaque dado a determinados acontecimentos que se colocavam em meio à luta. Eles aparecem recorrentemente nas falas dos protagonistas, cujas narrativas recriam a intensidade destes acontecimentos que, aos olhos dos observadores, aparecem como meros fatos num processo de luta. Assim, é a imagem da invasão da pedreira do Grotão, cujo significado já foi apontado na Parte 1 deste trabalho, quando levantamos algumas mediações inscritas na formação e crescimento das favelas. É a imagem também da tomada da Praça São Lucas por quase 3000 moradores. Ou então, da chegada dos padres trazendo vida às comunidades, onde atuam as mulheres do Sementinha. Elas não são apenas imagens episódicas de combate. Também não constituem-se enquanto um climax de um processo acumulativo. Elas colocam-se em meio à travessia da luta, trazendo a experiência acumulada de seus sujeitos mas potencializando o enfrentamento, ao explicitarem sua dimensão política. Redefinem a luta ao trazerem a possibilidade de que necessidades, impasses e projetos sejam percebidos em sua dimensão coletiva. Refletir pois, sobre estes grandes fatos da história dos movimentos, do significado a eles atribuído por seus atores, abre caminho a uma melhor compreensão do código de mudança que atravessa a luta subalterna. Vamos ao encontro da história do Sementinha. Já vimos aqui o significado dos padres, em especial de Beno, na história do Sementinha, concluindo que, para elas, ele se apresenta-se enquanto um ponto de ruptura mas não enquanto exterior aos caminhos trilhados pelo grupo. Relatada como um acontecimento importante na história do grupo, a chegada dos padres também não se coloca a ela exterior. Uma vez que potencializa os caminhos que vinham sendo trilhados pelas mulheres, na 365

percepção destas, a história do grupo não se desdobra a partir daí. A possibilidade de seu fazer articula-se também às “pessoas firme” no trabalho de comunidade, ao “trabalho mesmo sem ter grupo organizado”. No entanto, a imagem deste acontecimento também não pode ser reduzido a um climax de um processo que vinha se acumulando. A chegada de Beno à comunidade é percebida enquanto possibilidade de mudança para as mulheres do grupo, reintensificando seus caminhos e abrindo espaço à reelaboração do trabalho no seio da comunidade. Afinal, quando começa com o grupo, “Beno trouxe vida para comunidade” e a partir de então , “já não ia tratar de doente, ia procurar saúde” . Neste sentido, ele atravessa a história do Sementinha, redefinindo o rumo da trajetória das mulheres. Aqui, no âmbito da relação com os padres, e em especial com Beno, não só elas se organizam enquanto grupo, como também reelaboram sua prática e o significado a ela atribuído: não iam mais tratar de doente, iam procurar saúde. Abre-se possibilidades ao reconhecimento da identidade de projetos e e necessidades que era vivenciados e percebidos, muitas vezes, num plano individual, no âmbito da Pastoral do Hospital de Getúlio Vargas, Dentro desta perspectiva, trata-se aqui de um acontecimento que é destacado pelas mulheres, uma vez que se coloca em meio ao caminho tecido por elas, potencializando seu percurso e instituindo a luta, dando-lhe um novo significado, que traz a dimensão coletiva e social do trabalho por elas forjado. Determinados fatos também assumem especial relevância na história do Grotão. É o caso do conflito, já visto aqui, que marcou uma divisão na comunidade e o desgaste do então presidente da Associação de Moradores, acusado de retirar o processo, contra a ação de despejo, das mãos da Pastoral de Favelas que o encaminhava favoravelmente à comunidade. Lendo a entrevista de uma moradora, surpreendeu-nos o detalhamento de seu relato, ao contar como descobriram a atitude do presidente da Associação. A narrativa detalhada envolvia não só o relato de todos os fatos que então se sucediam, inclusive com a reprodução dos diálogos, mas também sua análise 124. Refletindo sobre tal parte da entrevista, ficou-nos a impressão de que em seu contar, a moradora resgatava a intensidade do acontecimento. Não reproduzia 124Chamou-nos

atenção na entrevista desta moradora do Grotão, e de outros atores sociais também, a forma através da qual recuperavam diálogos no relato que faziam. No caso desta moradora, que não foi por nós entrevistada, não pudemos perceber diretamente os recursos expressivos de sua fala mas em outras entrevistas, no caso do Sangue Novo, identificamos que a recriação do diálogo vinha intensificar a história, recuperando a ação dos sujeitos que a fizeram. Não raro também, ele inseria-se na narrativa como mediação analítica através da qual se reforçava uma idéia colocada. Por isso, optamos por, na parte 2 do trabalho, destacar os diálogos na forma como os atores os colocavam em seus relatos, e não integrá-los ao texto.

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os diálogos e detalhava todos os fatos para dar uma versão precisa da história, afinal ela mesma, antes de começar o relato, delimitou as possibilidades de sua versão: “a gente não sabe porque a gente só pode dizer que foi quando a gente tem certeza. Mas o que nos deu a a parecer foi o seguinte” . Pensamos que o detalhamento dos fatos e dos diálogos se fazia de forma a recriar o acontecido, atribuindo-lhe um significado que redefine os rumos da luta e os explicita. O conflito com o presidente da Associação não se coloca enquanto um acaso abrupto em meio à história da comunidade uma vez que algumas divergências com ele já se desenhavam. No entanto, a forma como se percebe a sua atitude de retirar o processo das mãos da Pastoral contribui para que o conflito se intensifique e se coloque abertamente, explicitando também o confronto entre os principais agentes mediadores: a Pastoral de favelas, a quem uma liderança, marido da moradora que relata, era ligado; e a Fundação Leão XIII, com quem o presidente, um pastor, tinha relações.

(...) Então, aquilo foi quando se dividiu. Realmente houve uma divisão: quem era a favor do pastor ficou lá em cima e quem era a nosso favor desceu. Aí nós ficamos cá em baixo na quadra, eles jogaram pedra no padre e foi aquele..., sabe.

Mas o acontecimento relatado, não põe apenas o conflito a nu . Na medida em que o processo passou a correr à revelia, na falta de quem assumisse a causa, há uma nova ameaça de despejo. Na percepção da moradora pois, o incidente com o pastor redefine os rumos da luta, colocando à sua frente, as lideranças que estavam fora da Associação e mobilizando os moradores a participarem ativamente do processo.

nós dissemos: não vamos deixar que a comunidade seja posta para fora porque nós não temos prá onde ir. Aí logo naquela noite, nós nos reunimos aqui em casa, começamos a fazer faixas, cartazes. Eu começei a passar uma lista dentro da comunidade prá comprar biscoito, prá comprar coisas pra gente ir no outro dia no palácio do Prefeito (...)

Dentro desta perspectiva, o acontecimento é percebido enquanto um ponto de ruptura em meio à luta. Em sua possibilidade de trazer à tona conflitos internos que se arrastavam e deslanchar o enfrentamento político-institucional que colocava no centro da luta, a garantia do espaço de vida. Ainda que atravessando o processo de luta, na visão aqui vista, ele aparece redefinindo o 367

fluxo histórico. Tal como ocorre com a chegada dos padres na história do Sementinha, a sua imagem é de um fato que se coloca enquanto evento, não por seu caráter episódico, mas por sua possibilidade instituinte. Este também nos parece ser o sentido da Assembléia que traz a deliberação pela entrada da Light, no Movimento Sangue Novo. No relato dos atores sociais envolvidos, a Assembléia que coloca cerca de 3000 moradores na Praça de São Lucas - ponto de encontro entre a entrada de Vila Cruzeiro e Parque Proletário, mas significativamente espaço de fronteira com o asfalto -, não é mero registro público da exigência da Light. Ela apresenta-se enquanto afirmação, e ao mesmo tempo, reconhecimento da luta cotidiana que o Movimento vinha travando, nas reuniões sistemáticas por becos, na peregrinação pela favela em busca de assinaturas para o abaixo-assinado exigido pela Light, na experiência de vivenciar cenas de terror provocadas pela reação daqueles que procuravam esvaziar o Movimento, nas atividades realizadas com crianças e mulheres, na elaboração e divulgação do jornal COM A BOCA NO MUNDO , na dramatização da experiência de vida dos moradores através das peças públicas, após a missa de domingo, e no enfrentamento das câmaras, colocando a luta nas telas da TV , por ocasião das idas ao POVO NA TV . Ela é aqui pois, marco da experiência acumulada por aqueles que cotidianamente levavam a luta pela entrada da Light na comunidade. Aparece como signo do trabalho feito no sentido de potencializar a elaboração da realidade vivida e a participação dos moradores. Mas ao mesmo tempo, ela teve uma grande ressonância local . “Ecoando localmente” , ela marca na percepção de seus atores, em especial aqueles que militavam no movimento comunitário na região, o reconhecimento de um espaço político, tecido na luta. Um espaço que outros procuram disputar: E apareceu uma porrada de gente lá querendo falar (...) . Mas que é afirmado e reconhecido em sua dimensão coletiva, contrapondo-se a práticas políticas que esvaziavam a participação da comunidade na luta: mas a gente reforçou que a luta havia sido nossa e que não adiantava agora chegar nenhum político caído de céu para tentar tomar partido, absorver toda uma luta que havia sido nossa (...) Mas a gente sempre deixando bem claro que tudo havia sido obra da comunidade”. Assim, enquanto fato “inédito”, ela particulariza o trabalho acumulado dos atores sociais que teceram as possibilidades de que o acontecimento se forjasse. Na visão dos participantes do Movimento, ela é pois signo da prática política que atravessa o Movimento Sangue, que o distingue de outras forças políticas que atuavam na região. Seja no âmbito do movimento comunitário: Nunca se viu tanta gente lá naquela praça, numa assembléia. Nem a associação de moradores conseguiu botar tanta gente, como nós botamos lá. Seja em 368

relação à atuação dos partidos políticos: nenhuma atividade propôs isso, nem o PDT, com o populismo de 82 a 86, não conseguiu colocar tanta gente na praça quanto o Movimento Sangue Novo . Para os integrantes do Movimento, ela aparece assim como instituinte de outras possibilidades do fazer político no âmbito do movimento popular da região, simbolizando uma prática que valoriza a participação ativa dos moradores e engendra uma nova relação entre a liderança e a base: não tinha líder o nosso movimento, todo mundo lideravava, era a união que a gente tinha . Porém, o significado a ela atribuído insinua-se nos relatos também enquanto expressão das necessidades dos moradores e de sua participação, em seu enfrentamento das forças internas que se colocavam contra a entrada da Light na comunidade, e na interpelação ao Estado na conquista do direito ao qual não tinham acesso. Assim, mesmo aqueles que como vimos tinham medo de assinar o abaixo-assinado, mas que terminam por se arriscar a fazê-lo, explicitam aqui a experiência acumulada da necessidade vivida enquanto exploração , bem como sua participação no movimento. Em certo sentido, a presença de 3000 moradores na praça, nos alerta para o fato de que se o esforço cotidiano de luta pela luz não foi feito por todos da comunidade, em meio à luta possivelmente delinearam-se outras formas de participação, que se traduzem na mobilização pela Assembléia. A imagem da assembléia reunindo um número grande de pessoas, traz também a imagem de que as incertezas quanto às possibilidades da luta, ao longo do caminho, foram cedendo espaço à expectativa da conquista. E traz sobretudo a definição do momento em que esta expectativa se explicita, face à possibilidade de manifestação da existência do poder público, num espaço em que ele se faz ausente: “aí o pessoal já começou a acreditar mais porque já viu gente da Light ali, no meio...Aí começou a acreditar mais, né?” . Imagem que nos alerta para o fato de que a manifestação do poder público se coloca aqui reforçando o movimento não porque acena com uma resposta, mas porque traduz a intensidade da luta acumulada que o levou a se manifestar. Mas a Assembléia também não é apenas signo da experiência acumulada, seja pelos moradores de forma geral , seja por aqueles que levaram a luta pela luz cotidianamente. Uma vez que se coloca, ao mesmo tempo, como expressão da deliberação pela entrada da Light, a assembléia institui também o rompimento com a Comissão de Luz que dominava a comunidade e com a experiência de vivenciar a exploração cotidianamente, potencializando pois o movimento: “vieram os representantes da Light, aí viram mesmo que era realmente isso que o povo queria, que povo não queria aquilo” . Afirma a luta acumulada, anunciando outra possibilidade de relação com o poder público, onde o movimento institui o tempo de interlocução: na avaliação de um dos 369

participantes do movimento, que em seu trabalho reflete sobre as mobilização comunitária na região, “a assembléia ecoou localmente” e “um dia após esse acontecimento, surgiram na comunidade alguns técnicos oficiais, fazendo sondagens sobre a problemática da água” . Ao explicitar a força do movimento coletivo que vinha se delineando, a Assembléia deixa de ser mero atendimento à exigência da Light e potencializa os caminhos da luta, anunciando novos desafios. Assim, é que apresentando-se enquanto momento instituinte da luta, aparece igualmente enquanto promessa de conquista em outras lutas que já se anunciavam, como a próprio movimento para que o Estado assumisse os serviços de distribuição de água, e também a disputa pela associação de moradores: “aí cresceu, o Movimento Sangue Novo cresceu tanto que se formou uma chapa prá associação” . As imagens produzidas a respeito da Assembléia, tanto quanto aquelas que nas outras tramas relevam outros fatos, não nos trazem visões reduzidas da luta. Ao contrário, resgatam o momento em que esta se amplia, explicitando o conflito, tomando a rua, potencializando o movimento. Através do significado atribuído a determinados acontecimentos, os atores sociais nos apontam novos caminhos para pensar o código de mudança inscrito na luta das classes subalternas, onde o tempo vem marcado pelo esforço cotidiano acumulado na luta, na qual, recuperando as palavras da liderança do Grotão, as formiguinhas começam a roer pela base . Mas, também pela intensidade de determinados fatos que ampliam a visão da luta, potencializando-a, ao explicitar os conflitos que a atravessam e afirmar os sujeitos que a fazem.

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