Rede, Coworking e emancipação intangível: um olhar sobre a flexibilidade, biopolítica e subjetividade a partir da reestruturação produtiva

July 22, 2017 | Autor: Breilla Zanon | Categoria: Redes, Coworking, Biopolítica, Reestruturação Produtiva, Coworking Spaces, Biopotência
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

BREILLA ZANON

Rede, Coworking e emancipação intangível: um olhar sobre a flexibilidade, biopolítica e subjetividade a partir da reestruturação produtiva

Uberlândia 2015 1

BREILLA ZANON

Rede, Coworking e emancipação intangível: um olhar sobre a flexibilidade, biopolítica e subjetividade a partir da reestruturação produtiva

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Sociais. Área de concentração: Sociologia e Antropologia Orientadora: Prof.ª Drª Claudelir Corrêa Clemente

Uberlândia 2015 2

Z33r 2015

Zanon, Breilla, 1987Rede, coworking e emancipação intangível : um olhar sobre a flexibilidade, biopolítica e subjetividade a partir da reestruturação produtiva / Breilla Zanon. - 2015.

114 f. : il. Orientador: Claudelir Corrêa Clemente. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Inclui bibliografia. 1. 1. Sociologia - Teses. 2. Trabalho - Aspectos sociais - Teses. 3. Trabalhadores - Redes sociais - Teses. 4. Grupos de trabalho - Organização - Teses. 5. Biopolítica - Teses. I. Clemente, Claudelir Corrêa. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação Ciências Sociais. III. Título. 2. CDU: 316

3

Breilla Zanon

Rede, Coworking e emancipação intangível: um olhar sobre a flexibilidade, biopolítica e subjetividade a partir da reestruturação produtiva Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Curso de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia Uberlândia, MG, 2014.

DATA DE APROVAÇÃO: ____/____/____

_____________________________________________________________ Prof.ª Drª Claudelir Corrêa Clemente – Orientadora – PPGCS/UFU _____________________________________________________________ Prof. Dr. Marcio Ferreira de Souza – PPGCS/UFU _____________________________________________________________ Prof.ª Drª Mariana Magalhães Pinto Cortês – INCIS/UFU _____________________________________________________________ Drª Ludmila Costhek Abílio – FEA/USP 4

Dedico esse trabalho a todos àqueles que lançam esforços sobre o pensamento crítico a respeito da liberdade em nossos dias, seja em sua forma filosófica ou objetiva.

5

AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer primeiramente a minha orientadora por ter enfrentado comigo toda essa fase de prova, por ter me apresentado novos olhares sobre a subjetividade humana que são agora para mim, essenciais. Agradeço também por sua paciência e fôlego antropológico ao conduzir de maneira serena minhas ideias que, a princípio se davam pelos rompantes típicos de alguém que escolheu a Sociologia como fundamento. Sem sua perspicácia esse trabalho estaria ainda em seu estado esquizofrênico. Agradeço também à minha família que entende a distância e o isolamento que o trabalho acadêmico demanda. Por fim, ao meu companheiro por acreditar no que eu escolhi e ao meu lado lidar com os estresses inerentes ao processo de se descobrir socióloga.

6

“Oh, admirável mundo novo...” Por algum capricho perverso de sua memória, o selvagem viu-se repetindo as palavras de Miranda. “Oh, admirável mundo novo que encerra criaturas tais!” - E asseguro-lhe – concluiu o Diretor do Elemento Humano, ao deixarem a fábrica – que quase nunca temos dificuldade com a mão-de-obra. Encontramos sempre... (Aldous Huxley)

7

Rede, Coworking e emancipação intangível: um olhar sobre a flexibilidade, biopolítica e subjetividade a partir da reestruturação produtiva

RESUMO O presente trabalho trata-se de uma reflexão crítica a respeito da flexibilidade e subjetividade no mundo do trabalho, tomando objeto principal de análise os escritórios de Coworking. Por meio de dados retirados de um survey global, análise de discursos institucionais e trabalho etnográfico elaborados com base nesse novo modelo de trabalho, relacionam-se as informações retiradas dessas fontes à teoria social contemporânea que lida com as questões referentes à reestruturação produtiva e seus impactos sobre o mundo do trabalho (em principal autores como Luc Boltanski e Ève Chiapello, David Harvey, Anthony Giddens e Richard Sennett) articulando suas observações com estudos sobre a construção das redes a partir de subjetividades modeladas a partir de ideais capitalistas vigentes (tendo como base autores como Félix Guattari, Peter Pál Pelbart, Michel Foucault e Michel Hardt e Antonio Negri). Ao longo desse trabalho, buscou-se saber se as redes formadas a partir desses espaços contribuem para uma autonomia real dos indivíduos em relação às dominações biopolíticas promovidas pelo mundo do trabalho atual. A análise conduzida tem o intuito de problematizar a rede tanto como mecanismo biopolítico, como também deixar evidente sua perspectiva de biopotência. Palavras-chave: Coworking. Reestruturação produtiva. Redes. Biopolítica. Biopotência.

8

Network, Coworking and intangible emancipation: a look at flexibility, biopolitics and subjectivity from the productive restructuring

ABSTRACT The present work is a critical reflection about the flexibility and subjectivity in the workplace, taking the main object of analysis Coworking offices. Through data from a global survey, analysis of institutional discourses and ethnographic work developed based on this new model of work, we relate the information taken from these sources to contemporary social theory that deals with issues relating to the restructuring process and its impact on the world of work (in main authors as Luc Boltanski and Ève Chiapello, David Harvey, Anthony Giddens and Richard Sennett) articulating their observations with studies on the construction of networks from subjectivities modeled after existing capitalist ideals (based on authors such as Félix Guattari, Peter Pál Pelbart, Michel Foucault and Michel Hardt and Antonio Negri). Throughout this work, we sought to know if the networks formed from these areas contribute to a real autonomy of individuals in relation to biopolitics domination promoted by the current world of work. The conducted analysis is intended to discuss the network as a biopolitical mechanism, and also evidence its perspective of biopotency. Keywords: Coworking. Productive Restructuring. Networks. Biopolitics. Biopotency.

9

SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 – FLEXIBILIDADE, REDE E AUTONOMIA – O COWORKING COMO PAINEL DE UMA REESTRUTURAÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL........... 17 1.1. O surgimento do coworking e seus principais preceitos.......................................... 17 1.2. O coworking e novo espírito do capitalismo............................................................ 27 1.3. O novo perfil do trabalho em ambiente reestruturado: o coworker.......................... 34 1.4. Capital humano no coworking: consumo e investimento......................................... 56 CAPÍTULO 2 – UMA BREVE TRAJETÓRIA DAS REDES NAS CIÊNCIAS SOCIAIS E SUA RELAÇÃO COM O MUNDO DO TRABALHO................................................. 72 CAPÍTULO 3 – A BIOPOLÍTICA IMPRESSA NO DISCURSO DAS REDES............ 83 CAPÍTULO 4 – A BIOPOTÊNCIA E A MICROPOLÍTICA: FUNDAMENTOS PARA UMA CONCLUSÃO SOBRE A REDE E SUAS RELAÇÕES........................................ 103 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................... 112 ANEXO................................................................................................................................. 116

10

INTRODUÇÃO As organizações de indivíduos em forma de rede – em especifico os escritórios de coworking – são tomadas como referência no trabalho que aqui realizaremos. Nosso intuito principal é problematizar através da atual teoria social (tanto as que enaltecem as atividades empreendidas em forma de rede como as que também nos ajudam na construção de um pensamento crítico sobre as suas potencialidades) as reflexões sobre as experiências em rede, bem como os usos dessa categoria. Por outro lado, também buscamos averiguar, ao nível do indivíduo dentro da rede de coworking, de suas subjetividades e de suas práticas culturais, o que esse tipo de rede proporciona e fomenta no que diz respeito às experiências vividas e quais os conteúdos simbólicos – sentidos e valores – que emergem nas vinculações desencadeadas pela rede e como tais experiências propiciam um tipo peculiar de subjetividade, pela qual buscaremos entender os processos de construção da subjetivação do mundo atual. A busca de compreensão desta realidade se dará sob uma perspectiva sociológica e antropológica que indaga e problematiza sobre os conteúdos simbólicos partilhados por trabalhadores que atuam nos ambientes de coworking. O coworking aparece como uma nova interface das dinâmicas de trabalho na contemporaneidade. Sua formação parte do propósito de colocar em contato em um mesmo ambiente – no caso, um escritório compartilhado – diversos profissionais para que assim seja potencializado não só um ambiente criativo e flexível propício a um melhor rendimento, mas também crie-se oportunidades de conexão, ou seja, de formação de redes, a partir da diversidade de informações, conhecimentos, experiências e do espírito de colaborativismo que os permeiam. Essas características são intensamente reverberadas nas mídias e peças publicitárias que difundem os discursos institucionais desses espaços. É nesse tipo de ambiente de compartilhamento – o qual reflete as novas dinâmicas de trabalho de uma sociedade onde o fluxo de informação é intenso e fundamental para a configuração do funcionamento de um capitalismo de acumulação flexível (HARVEY, 2012) e conexionista (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009); e onde os profissionais são na sua maioria autônomos e prezam em seus discursos por preceitos de independência, liberdade e colaborativismo – que veremos em que medida as redes podem produzir uma verdadeira autonomia emancipatória aos membros que dela fazem parte. Diante todas as condições que observaremos, e visando construir um campo de análise e debate de teorias sociais e antropológicas que nos ajudem nesse exercício, iremos recorrer às redes que se formam a partir 11

dos espaços de coworking1 pois é sob essas circunstâncias que vemos refletido esse novo modelo de trabalho. O interesse sobre essas novas organizações em rede, seus significados e potencialidades surgiu a partir de um trabalho monográfico, onde foi realizado a análise de uma rede de coletivos culturais de música e arte independente, buscando evidenciar em que medida tal rede podia legitimar o discurso acerca da autonomia e representatividade prometida àqueles que fizessem parte de sua formação. Tal estudo de caso abriu margem para a visualização das falácias que rondam as interpretações tanto sociais quanto acadêmicas sobre tais organizações. O que se pretende nesse momento é expandir essas problematizações para o campo do trabalho e seus novos modelos e plataformas, sugeridos pelo capitalismo flexível ou, como alguns autores preferem chamar, capitalismo conexionista2. Nessa perspectiva poderemos ampliar o debate sobre as redes de sociabilidade em várias dimensões da vida social, tendo como ponto de partida as redes que se constroem e que são propostas pelos espaços de coworking. Entendemos que ter o coworking como referência nos permite questionar teorias sociais que exaltam as organizações em rede como arranjos de sociabilidade onde a representatividade de interesses dos membros se dá de maneira ampla e bem sucedida, sendo ela um novo modelo inato de ação e gestão da vida em sociedade. Buscaremos colocar em evidência o deslumbramento de alguns teóricos em relação às organizações em rede, buscando apontar algumas de suas impotências como estratégia de implementar tais representatividades. Nessa mesma medida, os espaços de coworking nos permitirão lançar olhares também sobre a construção das subjetividades em um mundo onde a flexibilidade parece reger os discursos tanto acerca das sociabilidades quanto em relação às instituições da atualidade. Devido à enorme quantidade de espaços de coworking e o pouco tempo conferido ao curso de mestrado, encaminhamos a pesquisa principalmente por meio da análise de dados, informações e artigos de revistas especializadas que se encontram em grande maioria

Fonte histórica sobre o termo disponível em: Acesso em: 09/06/2014. 2 O termo capitalismo flexível é amplamente usado por David Harvey (2012), principalmente em sua obra Condição pós-moderna. Podemos ver que o conceito de Harvey dialoga muito com o conceito de capitalismo conexionista. Essa perspectiva conexionista do capital é muito usada por Luc Boltanski e Ève Chiapello. Peter Pál Pelbart (2003) também adota o termo. De acordo com Pelbart (2003) “os manuais de management que os autores [Boltanski e Chiapello] consultaram insistem numa palavra chave: conexão. O poder de conexão, a capacidade de conectar-se, com pessoas do seu meio de trabalho, com pessoas de outros meios, capacidade de navegação no magma de oportunidades, sua possibilidade de inventar projetos interessantes. O que se desenha aí, através desse estímulo a uma navegação mais aberta, a uma maleabilidade sem precedentes, é o que os autores chamam de um capitalismo em rede, um capitalismo conexionista.” (PELBART, 2003, p. 97). Faremos uso de ambos conceitos, pois entendemos que um não anula o outro uma vez que a flexibilidade e o conexionismo, para nós, são faces de uma mesma moeda. 1

12

disponíveis na Internet. De acordo com os dados consultados, ao todo foram mapeados, até o ano de 2013, 2072 espaços de coworking em todo o mundo, totalizando em média mais de 50.200 membros desses espaços. Esses e mais outros dados e gráficos que usaremos adiante fazem parte principalmente do 2º Survey Global sobre Coworking3 referente ao ano de 2012 (2nd Annual Global Coworking Survey). Os dados do 3º Survey Global sobre Coworking4 referente ao ano de 2013 (3rd Global Coworking Survey) serão usados quando existirem algumas diferenças discrepantes entre os dois estudos. São utilizados também informações retiradas do Coworking Wiki5 e do The History of Coworking6, todos realizado pela Deskmag7, cujo os fundadores são Carsten Foertsch and Joel Dullroy, cientista social e jornalista respectivamente. O blog Movebla8 também nos serviu de ferramenta de análise, uma vez que ele agrega artigos e relatos relativos ao coworking e suas dinâmicas ao redor do mundo. Em geral, esse blog trata das novas práticas de trabalho mais flexíveis e mobilidades e por isso é muito visitado por coworkers. Em linhas gerais, os surveys serão os principais bancos de dados que usaremos nas análises adiante, uma vez que eles foram capazes de aglomerar muitas informações, frutos de uma pesquisa global que contou com a participação de indivíduos ligados ao coworking de todo o mundo. Através do survey podemos visualizar de maneira ampla o perfil e os valores imbricados dentro do processo de construção das redes nesses espaços, podendo paralelamente,

Por algum motivo que não sabemos qual, o layout disponível online do survey do 2nd Global Coworking Survey foi modificado, no entanto, os dados e resultados continuam os mesmos. Dessa forma, os gráficos aqui inseridos correspondem ao material encontrado na web no ano de 2013, o qual estava disponível na seguinte página: https://www.deskwanted.com/static/Deskmag-Global-Coworking-Survey-slides-lowres.pdf . Como observamos, a diferença estética dos gráficos não interfere nas análises dos dados, mas mesmo assim optamos por disponibilizar o material antigo em: http://pt.scribd.com/doc/235076858/Deskmag-Global-Coworking-Survey-Slides-Lowres . O material atual encontra-se disponível em: http://www.swivelspaces.com/Share/coworking_survey_booklet.pdf . É relevante ressaltar ainda que, de acordo com a Deskmag, revista que conduziu o estudo, o 2º survey global foi realizado em cooperação com um time da Coworking Europe e apoiada pela Universidade do Texas, entre outras instituições. Acesso: 09/06/2014 4 Disponível em: http://communityjelly.files.wordpress.com/2012/11/3rdglobalcoworkingsurvey-121108034918phpapp02.pdf . Acesso: 09/06/2014. 5 Disponível em: http://wiki.coworking.org/ . Acesso: 09/06/2014. 6 Disponível em: http://www.tiki-toki.com/timeline/entry/156192/The-History-Of-Coworking-Presented-ByDeskmag#vars!date=1996-06-11_06:17:29! Acesso: 09/06/2014. 7 Segundo sua própria definição institucional, a qual pode ser encontrada no site (http://www.deskmag.com/en/about-us ) a Deskmag é “uma revista sobre o novo tipo de trabalho e seus espaços, como eles se parecem, como funcionam, como eles podem ser melhorados e como trabalhamos nele.” Eles focam “especialmente em espaços de coworking os quais são casa de uma nova geração de trabalhadores autônomos e pequenas empresas.” Acesso em: 09/06/2014. 8 Nota: blog sobre o novo mundo do trabalho, como o próprio autor o define. Ele trata sobre as diversas maneiras de trabalhar remotamente, ou seja, mobilidade dos trabalhadores e observa que a cena do coworking abraçou o blog, mas o foco passou a ser agora sobre o trabalho descentralizado. O site fala sobre produtividade no trabalho, espaços, dá dicas, fala sobre as ambientações do trabalho. Disponível em: http://www.movebla.com/ . Acesso em: 10/10/2014. 3

13

problematizar algumas questões que, apesar de não terem sido colocadas em pauta pelo trabalho, nos dão margem para algumas indicações e projeções. É importante salientar logo nesse primeiro momento que, em meio a análise dos gráficos existe uma distinção significativa entre os dados dos membros que são empregados, autônomos e empresários. Tal distinção, bem como os aspectos de cada perfil será evidenciado durante a análise. Por isso, de antemão, é preciso que tenhamos em mente que um espaço de coworking não é apenas constituído por profissionais autônomos, mas também conta com empresários/empreendedores que encabeçam seus próprios negócios (em sua maioria startups), empregados de empresas maiores que, pela mobilidade de seus serviços, buscam nos espaços de coworking uma plataforma de trabalho nas cidades pelas quais passa, operadores de espaço que, como veremos mais adiante, têm como principal função motivar e facilitar as interações entre projetos dentro do espaço, além dos freelancers9, que utilizam o espaço de maneira um tanto quanto esporádica, de acordo com as suas demandas de serviço. Podemos dizer de maneira geral que todos esses indivíduos, com exceção dos operadores, podem ser classificados como coworkers10, no entanto, salientamos desde já que existem diferenças em relação a essas categorias, principalmente entre empresário/empreendedores e autônomos/freelancers/empregados. Trataremos de tais diferenciações e problematizações ao longo do trabalho. Além desses materiais, realizamos a análise dos textos institucionais de 06 espaços situados em diferentes países. Entrevistamos também, por via virtual, coworkers, sendo 70% deles brasileiros e 30% estrangeiros, a fim de relacionar seus relatos aos dados e observações presentes no survey e nos discursos institucionais. Dos coworkers contatados a priori, apenas 40% responderam. Dos 60% que não responderam, 20% alegou falta de tempo e disponibilidade para responder as perguntas (que ao todo eram 12 questões abertas e se encontram em anexo ao final do trabalho) e os outros 40% simplesmente não retornam a solicitação para a participação da pesquisa. Tal situação nos mostrou logo nesse primeiro momento as dificuldades que se fazem presente quando o intuito é reconstituir as ideias de pessoas e grupos que vivem no afã por flexibilidade e compressão do espaço-tempo11. Até mesmo aqueles que responderam

Nota: termo inglês usado também no Brasil para designar profissionais autônomos. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Freelancer . Acesso em: 10/02/2013. 10 Nota: coworker é o termo usado para classificar os trabalhadores pertencentes aos espaços de coworking. Disponível em: http://wiki.coworking.org/w/page/16583312/Coworker . Acesso em 10/02/2013. Veremos que dentro desses espaços, tais coworkers poderão corresponder as seguintes categorias: autônomos/freelances, empregados ou empresários. 11 Harvey (2012) usa essa expressão como forma de descrever “os processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo, a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos” (p. 219) 9

14

demonstraram dificuldade na elaboração de respostas mais profundas e consistentes, sendo bem sucintos e breves em suas observações. Entendemos que o tempo voltado para a reflexividade das ações em meio a essas organizações não é relevante. Dada tal condição que se encaminhou nessas tentativas, fui em busca de relacionar outros tipos de reflexão acerca desse novo modelo de trabalho. Realizei, portanto, um trabalho etnográfico em um espaço de coworking na cidade de Uberlândia, Minas Gerais. Durante esse tempo pude fortalecer a análise das entrevistas, relacionando os pontos levantados pelos entrevistados e a observação vivenciada durante os dias no ambiente de coworking. Os dados, assim como as observações feitas serão pontuadas ao longo das análises dos demais dados e discursos. Durante o trabalho de campo não realizei entrevistas diretas e fechadas, minha intenção foi observar a dinâmica própria do local, e abordar por meio de perguntas menos pragmáticas tanto os membros do espaço quanto o operador do local, que aqui chamarei de manager. Por saberem que eu estava no local a fim de fazer uma análise que comporia um trabalho sociológico, os próprios integrantes do espaço foram muito receptivos e espontâneos em me relatar suas experiências presentes e anteriores ao coworking. Deixei que eles próprios dessem o tom do relato, fazendo algumas perguntas complementares aos assuntos que abordavam de forma que eu pudesse ver, sem interferir, os valores e sensações que eles próprios atribuíam ao modelo. Tais relatos vieram complementar os próprios discursos e dados veiculados pelos espaços de coworking em suas peças midiáticas e publicitárias, as quais podemos encontrar também em seus sites virtuais. Foi por meio do trabalho etnográficos que tive acesso a obras amplamente reconhecidas em meio ao ambiente de coworking, as quais também tomei como referência nesse trabalho. Tratam-se de guias para quem tem interesse em conhecer e gerir esse modelo de trabalho. Nesse trabalho dei privilégio a dois deles, o Working in the unoffice (2011) de Genevieve V. DeGuzman e Andrew I. Tang e o Out of the office (2013) de José Gabriel Quaresma e Marcos Gonçalvez. Optei por essas obras por achar que expõem melhor aos questionamentos que buscamos refletir. Além de mostrar como surgiu a demanda pelo coworking, trazem também relatos de profissionais que adotaram a prática. Usarei tais relatos e informações trazidas dentro dessas leituras ao longo do texto a fim de relacioná-las com os demais dados. O blog Movebla a qual fiz referência anteriormente também foi introduzido como fonte a partir do trabalho etnográfico, uma vez que o manager do local me indicou sua leitura. Dessa forma, a metodologia usada em todo o trabalho se deu em linhas gerais na relação dessas quatro fontes: surveys e dados relacionados ao coworking global; entrevistas com 15

membros dos espaços de coworking; relatos e informações encontrados em livros sobre o assunto; análise dos discursos institucionais e trabalho etnográfico. A análise das redes de coworking a partir desses dados e materiais nos permitiu construir uma reflexão que possa levar em conta não só as dinâmicas e falácias introduzidas pelo capitalismo flexível no mundo do trabalho e das respectivas teorias que exaltam as conexões em rede, mas que também puderam deixar visíveis a formatação de uma cultura que molda subjetividades e interações sociais conveniente para esse novo momento de acumulação do capital, ou seja, estratégias biopolíticas se fazendo sentir de forma ampla nas sociabilidades desses indivíduos. Por outro lado, a observação de campo foi fundamental para que eu pudesse vislumbrar de forma mais concreta o grau de biopotência, em sua perspectiva emancipadora, que tais dinâmicas podem promover através das interações e micropolíticas que se desenvolvem nesses locais. Todo o material de nosso trabalho – tanto o survey, quanto as entrevistas, textos institucionais, artigos virtuais e observação de campo – tiveram suas análises conduzidas com base em autores contemporâneos que pesquisam o regime de acumulação capitalista e seu caráter acerca da flexibilidade. Autores como David Harvey (2012), Anthony Giddens (1991 e 2003), Richard Sennett (2009) e Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009) são os principais nomes que nos guiam por esse caminho. Teóricos da cultura como Marshall Sahlins (2007 e 2011) e Hebert Marcuse (1969) em consonância às pontuações de Pierre Bourdieu (2007), nos conduzem na compreensão dos conteúdos simbólicos que constituem a ordem cultural capitalista. O debate sobre a rede e o uso da sua categoria dentro da teoria social atual será feito fundamentalmente em torno de autores como Norbert Elias (1994), Eduardo Marques (2005) e Regina Maria Marteleto (2007). A análise dos processos de subjetivação desse novo indivíduo o qual traremos em nosso trabalho, segue na esteira lançada por Félix Guattari (1981, 1985 e 1996), Michel Foucault (1999 e 2008), Peter Pál Pelbart (2003) e Michael Hardt e Antonio Negri (2001), e a partir deles desenvolveremos dentro da perspectiva das redes, tendo como base o coworking, a ideia tanto de uma subjetividade maquínica, já proposta por esses autores, entendendo-a assim como uma subjetividade moldada, modelada com fins objetivos ao domínio e à reprodução dos interesses do capital, quanto de uma biopotência, abordada no último capítulo, a fim de dar oxigênio a novas formas de reflexão na abordagem sobre as redes no ambiente de trabalho. Dessa maneira, a partir das experiências, práticas e discursos que analisaremos nesses espaços de coworking, buscaremos responder a seguinte pergunta, que apesar de poder ser um tanto quanto ampla, ainda sim tem como intuito refletir sobre a rede em outra perspectiva que 16

não a de exaltação: seriam os espaços que exaltam a flexibilidade, o compartilhamento de informações, a liberdade de escolha e demais discursos em prol da autonomia como fatores primordiais para a verdadeira representatividade desse indivíduo em meio a sociedade, espaços realmente capazes de formar redes que potencializarão a emancipação dos indivíduos em relação às estruturas dominantes? Dessa forma, em linhas gerais, no Capítulo 1 trazemos as observações do coworking a partir da análise dos dados de um survey realizado em âmbito global. Paralelamente, usamos as teorias e estudos contemporâneos a respeito da reestruturação que o capitalismo passou ao final do século XX para evidenciar o quanto o coworking é tanto fruto desse momento quanto componente fundamental para o funcionamento de suas dinâmicas. Incluímos também nesse capítulo, alguns trechos de textos institucionais e leituras que são referência dentro do círculo do coworking, as quais se referem basicamente à ampliação das dinâmicas de trabalho flexível. Não só neste primeiro momento, mas ao longo de todo trabalho, incluímos trechos de entrevistas realizadas com profissionais que adotaram para si esse modelo de trabalho e depoimentos retirados das obras consultadas, além de relatos observados a partir do trabalho etnográfico realizado em um espaço de coworking da cidade de Uberlândia, Minas Gerais. A categoria rede, como veremos no Capítulo 2, é antiga e seu uso dentro das ciências sociais é anterior ao que foi cunhado para classificar sociabilidades e interações dos contextos atuais, onde a informação e a flexibilidade dão o tom das relações dos indivíduos entre si e em relação as instituições que os atravessam. A rede que se estabelece a partir das interações presentes nos espaços de coworking se relaciona a essas novas classificações, por isso, nesse capítulo, apesar de evidenciar brevemente os primeiros usos do termo, iremos de acordo a uma categorização atual, sem nos ater profundamente na análise sobre construção e transformação do conceito em meio a outras ciências. O que nos interessa é mostrar as características e os fatores componentes das suas articulações na atualidade. No Capítulo 3, temos a intenção de mostrar o quanto a rede, a exemplo do coworking, também pode se comportar como estratégia maquínica do capital, sendo utilizada para a introdução de biopolíticas e, consecutivamente, para a modelagem de subjetividades coerentes a reprodução capitalista. No entanto, não é nosso intuito apenas desconstruir as oportunidades trazidas a partir de tais organizações. Por isso, no Capítulo 4, trazemos um contraponto, ou seja, buscamos demonstrar como as micropolíticas desempenhadas em redes também podem ser a força motriz para uma biopotência singular e alternativa em meio aos indivíduos que a compõem, podendo assim originar transformações a despeito de uma dominação modelizante. 17

CAPÍTULO 1 – FLEXIBILIDADE, REDE E AUTONOMIA – O COWORKING COMO PAINEL DE UMA REESTRUTURAÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL 1.1 O SURGIMENTO DO COWORKING E SEUS PRINCIPAIS PRECEITOS O termo coworking foi especificamente cunhado pelo designer Bernie DeKoven em 1999, no entanto não esteve relacionado a uma plataforma de trabalho em si, mas sim a uma dinâmica. O estudo sobre a construção e surgimento da palavra ainda carece de fontes. Foi em 2005 que Brad Neuberg usa tal nome para descrever um espaço físico compartilhado por profissionais. Antes de fazer uso desse tipo de classificação, Brad Neuberg nomeava o espaço como “9 to 5 groups”, que em português quer dizer “de 9 a 5 grupos”. O primeiro escritório de coworking chamou-se Hat Factory, localizado em São Francisco (Califórnia, EUA). Tratavase de um apartamento onde trabalhavam 03 profissionais da área de tecnologia que deixavam o espaço aberto para outros profissionais avulsos que quisessem compartilhar o local e as experiências de trabalho12. De lá para cá, a experiência ganhou força e atualmente os escritórios de coworking apresentam composições variadas, no entanto é recorrente encontrar nesses espaços freelancers, empresários e autônomos que deixaram seus escritórios em casa, os famosos home offices, para se reunir com demais profissionais no ambiente de coworking. Encontram-se também nesses espaços empregados de empresas alocados fora do espaço de escritório convencional. Podemos dizer que os escritórios de coworking surgem como um dos inúmeros produtos resultantes do processo de reestruturação econômica capitalista que passa a dar o tom às novas formas de produção e distribuição a partir do final da segunda metade do século XX e coloca a flexibilidade como palavra de ordem nesse atual momento. Em nossa pesquisa empírica, a maioria dos entrevistados elencou a flexibilidade e a oportunidade de estar em contato com outras pessoas, ou seja, a possibilidade do compartilhamento. Dentro dessa orientação, um dos entrevistados nos relatou: A flexibilidade de horários já me interessava, vindo a mais de 3 anos em home office, porém, um pouco de rotina e ter um espaço fora de casa só fizeram minha produtividade aumentar. O espaço proporciona o conforto necessário além de conveniências eventuais como data-show e sala de reuniões. O compartilhamento foi um ponto bastante positivo pelo networking. (...) entendo que burocracia e regras, são essenciais para a organização e produtividade, e Informações disponíveis em: http://www.tiki-toki.com/timeline/entry/156192/The-History-Of-CoworkingPresented-By-Deskmag#vars!date=1996-06-11_06:17:29! . Acesso em: 09/06/2014. 12

18

até acho que existem pessoas que precisam disso, não acho que seja o meu caso. (M.B, 26 anos, 2014) Um dos relatos trazidos no livro Working in the unoffice, deixa evidente a perspectiva de renovação do mundo do trabalho: Organized coworking environments are ideal workplaces for modern organizations that are interested in partnerships, collaborations, and a healthy work environment. (J.B, 2011)13 A partir desses relatos constata-se que a flexibilidade14 passa a ser a orientação não só no que tange a produção, mas principalmente em relação à organização do mundo do trabalho. A expressão “capitalismo flexível” descreve hoje um sistema que é mais que uma variação sobre um velho tema. Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as formas rígidas de burocracia, e também os males da rotina cega. Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais. (SENNETT, 2009, p. 9)

Nessa perspectiva, o coworking surgem como reflexo de uma etapa do capital, com o objetivo de ser uma alternativa que vai ao oposto do trabalho rígido das empresas e escritórios tradicionais. O compartilhamento, o ideal de rede e autonomia, aliada ao imperativo de flexibilidade passam a ser vinculadas ao bem-estar necessário para a potencialização das atividades desse profissional. Dessa forma, ao aprofundarmos nas relações sociais que estruturam a vida laboral destes coworkers15, visualizaremos as formas de atuação do capitalismo e sobretudo a ordem cultural, ou seja, os esquemas de significação que o sustenta. Portanto, partiremos da perspectiva de Marshall Sahlins (2011), a qual considera que “a história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os

Tradução nossa: “Ambientes organizados sob a forma de coworking são locais de trabalho ideais para organizações modernas que estão interessadas em parcerias, colaborações e em um ambiente de trabalho saudável”. Relato retirado do livro Working in the unoffice (2011, p. 2). Obra disponível em: https://www.goodreads.com/ebooks/download/14745356-working-in-the-unoffice. Acesso em: 23/09/2014. 14 Como já constatou Richard Sennett (2009), "a palavra “flexibilidade” entrou na língua inglesa no século quinze. Seu sentido derivou originalmente da simples observação de que, embora a árvore se dobrasse ao vento, seus galhos sempre voltavam à posição normal. “Flexibilidade” designa essa capacidade de ceder e recuperar-se da árvore, o teste e restauração de sua forma. Em termos ideais, o comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável à circunstâncias variáveis, mas não quebrado por elas. A sociedade busca meios de destruir os males da rotina com a criação de instituições mais flexíveis. As práticas de flexibilidade, porém concentram-se mais nas forças que dobram as pessoas.” (SENNETT, 2009, p. 53) 15 Nota: coworker é o termo usado para classificar os trabalhadores pertencentes aos espaços de coworking. Disponível em: http://wiki.coworking.org/w/page/16583312/Coworker . Acesso em 10/02/2013. Veremos que dentro desses espaços, tais coworkers poderão corresponder a todas as categorias que utilizam o espaço de coworking a fim de realizar suas atividades profissionais. 13

19

esquemas de significação das coisas” (SAHLINS, 2011, p. 7). Por isso, essa nova ordem de estruturação e significação/interpretação do mundo do trabalho pode ser vista claramente nos discursos tanto institucionais, ou seja, nas peças e textos publicitários desses espaços, como também nos discursos pessoais desse novo tipo de profissional. Vemos que hoje em dia, esse novo modelo de trabalho se espalhou por diversos cantos do mundo. O próprio termo cunhado “coworking” revela a perspectiva do compartilhamento presente neste novo modelo de trabalho. A partir desses espaços, os profissionais independentes compartilham o ambiente físico e os recursos de escritório, mas também vincula-se a esse tipo de organização características que os aproxima dos modelos das cooperativas, uma vez que preceitos colaborativistas são em grande medida acentuados16 pelos discursos institucionais e pessoais proferidos. Vemos esses valores disseminados amplamente pelos espaços de coworking, mas também presentes em diversas esferas de nossa sociedade contemporânea. É importante observar que esses valores, quando elencados em seus guias e cartilhas, são relacionados fundamentalmente a uma perspectiva das insuficiências pela qual o pensamento econômico estaria passando atualmente. Como observam em um desses guias, o coworking aparece para corroborar com análises econômicas da atualidade. Uma delas é a que foi realizada recentemente por Elinor Ostrom, ganhadora no Prêmio Nobel de Economia em 2009, a qual sugere que uma sociedade baseada no compartilhamento do comum seria mais eficiente. Os promotores do coworking trabalham em cima dessa perspectiva e de acordo com eles, “the debate about who was best qualified to manage the resources of society— the state or the market— always seemed too simplistic” (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 3)17. But it’s the promise of innovation and community that makes coworking most appealing. Behavioral studies have long shown that sharing and collaboration can lead to instances of creativity and innovation in the workplace. It only makes sense that organizations and small businesses find that they gain more from working together, rather than alone. This type of collaborative working doesn’t mean you surrender your independence and lose your individuality, but instead share resources and space — and in the process find common ground with each other, lend expertise, and share ideas.18 (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 4) 16 O compartilhamento de aspectos sociais, colaborativos e informacionais assemelham essas novas estruturas de trabalhos a exemplos como os das cooperativas, uma vez que o foco dessas iniciativas não se baseia apenas no aumento do lucro e sim na oportunidade de sociabilidades que esta permite ao mesmo tempo que garante aos trabalhadores vinculados uma flexibilidade até então impossível dentro do ambiente de trabalho padrão. Definição disponível em: http://coworkingbrasil.org/sobre/ . Acesso em: 10/02/2013. 17 Tradução nossa: “o debate sobre quem seria melhor qualificado para gerenciar as fontes da sociedade – o estado ou o mercado – sempre pareceu muito simplista” 18 Tradução nossa: “Mas é a promessa de inovação e comunidade que faz o coworking mais atraente. Estudos comportamentais têm mostrado há algum tempo que compartilhar e colaborar podem nos levar à criatividade e inovação no espaço de trabalho. Faz sentido que organizações e pequenos negócios achem que eles ganham mais trabalhando juntos do que sozinhos. Este tipo de trabalho colaborativo não significa que você renunciará sua independência e perderá sua individualidade, mas sim compartilhar recursos e espaço – e nesse processo encontrar bases comuns entre os demais, dar conhecimento e compartilhar ideias.”

20

Vemos, portanto, que tais aspectos e valores podem ser visualizados de maneira global. Observemos a presença desses valores, e consequentemente, as semelhanças na descrição institucional de alguns espaços:

21

Figura 1: DESK Coworking (Belo Horizonte, MG). Fonte: http://www.deskcoworking.com.br/desk/

22

Figura 2: Co+Lab (Kelowna, Canadá) Fonte: http://okcolab.com/

23

Figura 3: Citizen Space (São Francisco, EUA). Fonte: http://citizenspace.us/

Figura 4: The Office (Natal, RN). Fonte: http://www.theoffice.co

24

Figura 5: Nex (Curitiba,PR). Fonte: http://www.nexcoworking.com.br/

25

Após esses exemplos, cabe a nós pensar onde, especificamente, se encontram a maioria dos espaços de coworking? De acordo com o 2º Survey Global sobre Coworking, a Europa, seguida da América do Norte, são os locais onde mais podemos encontrar espaços de coworking19. Tal fato nos permite afirmar que a relação entre números de espaços de coworking, número de habitantes e o PIB se dá de maneira direta20, ou seja, regiões com maior concentração populacional e PIB elevados tendem a ser os locais onde se encontram maiores quantidades de escritórios que adotam a dinâmica de coworking.

Mapa 1 - n° de escritórios de coworking por continente. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

Nota: Esse dado se mantém o mesmo no 3º Survey Global sobre Coworking. 20 O survey também mostrou que espaços com maior número de membros e abertos a mais tempo tendem a ser mais rentáveis. 19

26

Gráfico 1. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

Não se trata de considerar a renda como único catalizador de oportunidades e acessos, mas ainda sim prever que a renda, aliada a outras variáveis importantes no processo de desenvolvimento social, possibilita um maior número de arranjos que influenciam na maior possibilidade de garantir eficiência em colocar para funcionar as capacidades, sejam elas capacidades de se representar por meio de organizações privadas ou públicas21. Para além das questões a respeito da renda de cada local, sugerimos que o pioneirismo nas mudanças da estrutura produtiva gerou um excedente de mão de obra nessas regiões, o que consequentemente, devido a nova estrutura passou a demandar por um novo perfil de trabalhadores. Esse excedente de mão de obra – em sua maioria qualificada – aliada aos atributos técnicos e informacionais que são melhores distribuídos nesses continentes, contribuíram para que essas regiões criassem um terreno propício para novos arranjos no mundo do trabalho, como no caso, experiências a exemplo dos espaços de coworking. Essa hipótese que relaciona um maior número de espaços na Europa e na América do Norte ao fato da

Para Sen (2008, p. 12), “as 'oportunidades reais' (ou 'substantivas') de que uma pessoa dispõe para realizar, entre outras coisas, 'objetivos ligados ao bem-estar' [well being objectives] são representados por sua 'capacidade' [capability]. (…) Oportunidades reais ou substantivas envolvem mais do que disponibilidade de recursos. Capacidades são poderes para fazer ou deixar de fazer (incluindo 'formar', 'escolher', 'buscar', 'revisar' e 'abandonar' objetivos), sem os quais não há escolha genuína. Também envolvem algo que poderíamos chamar de 'acessibilidade' a recursos, que depende muito das habilidades e talentos que cada pessoa tem para usar alternativamente recursos.” 21

27

instabilidade trazida pela reestruturação é considera em artigos de sites que abordam o coworking. Em um trecho de um artigo presente no Movebla, – site que escolhemos para coleta de dados e informações sobre esse novo modelo de trabalho – o autor Anderson Costa afirma que a recessão criou um boom de teletrabalho em países com recessão, como EUA. Mesmo cidades mais prejudicadas como Detroit viram o número de espaços de coworking crescer, um movimento que continua até hoje. (COSTA, 2014)22

Constatações como essa refletem no que David Harvey (2012) já pontuou há mais de duas décadas, sobre as novas características do trabalho e do perfil dos trabalhadores desse período. O mercado de trabalho (…) passou por uma radical reestruturação. Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição e do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis. (HARVEY, 2012, p. 143)

Seria interessante, portanto, que a partir desse momento procuremos visualizar as relações existentes entre esse nova dinâmica e perfil profissional, e o surgimento de um novo espírito capitalista. 1.2 O COWORKING E NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO Podemos dizer que o coworking se insere em uma nova dinâmica do capital, uma vez que se pauta nos requisitos de flexibilidade e autonomia que são requeridos pelo mercado atual e que passaram a fazer parte da própria subjetividade dos trabalhadores quando formulam seus discursos a respeito do ambiente de trabalho ideal. Precisamos ressaltar que nosso entendimento sobre subjetividade/subjetivação encontrada aqui é aquela à qual não é construída de maneira autônoma, mas, assim como observa Félix Guattari (1985), trata-se de uma subjetividade modelada, construída pelos interesses capitais e injetada nos próprios indivíduos como algo genuíno de seus desejos. Assim, os “arranjos de emprego flexíveis não criam por si mesmos uma insatisfação trabalhista forte, visto que a flexibilidade pode as vezes ser mutuamente benéfica” (HARVEY, 2012, p. 144). De acordo com Harvey (2012), a flexibilidade está totalmente relacionada a essa nova

O título do artigo é “O coworking é uma das únicas práticas de negócio que prolifera, independente da situação econômica”, e encontra-se disponível em: http://www.movebla.com/2876/coworking-independente-situacaoeconomica/ . Acesso em: 23/09/2014. 22

28

estruturação econômica do sistema capitalista na contemporaneidade fragmentada e heterogênea. Essa nova estruturação surge com o intuito de suplantar os entraves originados a partir do fordismo, criando assim novos setores de produção, novas formas de fornecimento de serviços e novos mercados sob a lógica intensificada de inovação organizacional e tecnológica (HARVEY, 2012, p.140). Tal lógica se insere dentro de um novo espírito capitalista e por isso pode ser trata propriamente como um novo espírito do capitalismo. Os principais autores a trazer esse conceito e analisar suas características são Luc Boltanski e Éve Chiapello (2009). De acordo com os autores da obra O novo espírito do capitalismo, tal sistema de acumulação se encontra transformado na década de 1990. Essa transformação tem início desde o final dos anos 70, onde este passa a florescer mundialmente como nunca antes. Além das inovações tecnológicas que trouxeram agilidade às transações empresariais e de produção, o interessante é observar que as agendas empresariais e de gestão do capital passam a incorporar de maneira estratégica reivindicações provenientes dos movimentos de esquerda que aconteceram ao final da década de 60 (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Uma maior flexibilidade e autonomia encontram-se entre essas reivindicações. O capitalismo passa, portanto, a configurar suas dinâmicas por meio de uma nova essência, as quais passam a estar fortemente presentes na literatura de gestão empresarial e pessoal das organizações capitalistas23. E assim, de acordo com os autores, As múltiplas transformações iniciadas durante os anos 70 foram coordenadas, reunidas e rotuladas durante a década seguinte num vocábulo único: flexibilidade. A flexibilidade, que é em primeiro lugar possibilidade de as empresas adaptarem sem demora seu aparato produtivo (em especial o nível de emprego) às evoluções da demanda, também será associada ao movimento rumo à maior autonomia no trabalho, sinônimo de adaptação mais rápida do terreno às circunstâncias locais, sem que fossem esperadas as ordens de uma burocracia ineficiente. O termo é adotado ao mesmo tempo pela gestão empresarial, pelo patronato e por certos socioeconomistas do trabalho oriundos do esquerdismo (como B. Coriat), que, abandonando a postura crítica adotada até então, agem como se a necessidade de uma "flexibilidade qualificada de dinâmica", vista como "nova forma de totalização", se impusesse como coisa indiscutível (Chateauraynaud, 1991, pp. 149-52). (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 229)

Em consequência, a própria reestruturação capitalista, que a princípio desmantelou e É importante ressaltar que muitos países vêm regulamentando o trabalho flexível ou remoto, como alguns classificam, o que contribui tanto para o home-office quanto para o coworking. Um dos exemplos é a Inglaterra. De acordo com o Movebla, um dos sites informativos sobre trabalho e mobilidade, com foco no coworking, a partir de junho do ano de 2014, “milhões de profissionais ingleses [puderam] requerer às suas empresas o direito de trabalhar remotamente por horas ou o dia inteiro. Tratam-se de novas medidas do governo da Inglaterra, que inicialmente beneficiavam cuidadores de crianças, ou estudantes que queiram seguir uma formação ou aprendizagem adicional. Agora, qualquer pessoa pode requerer trabalho flexível no país.” De acordo com a BBC, tantos os sindicatos quanto empresas receberam bem a ideia. Disponível em: http://www.movebla.com/3085/trabalho-flexivel-passa-a-ser-um-direito-na-inglaterra/ e http://www.bbc.com/news/business-28078690 . Acesso em: 23/09/2014. 23

29

desestabilizou o mercado de trabalho, introduziu a lógica da flexibilidade e autonomia como qualidade a ser buscada em meio ao mercado profissional. A mudança dos dispositivos de acumulação capitalista tem o efeito de desarmar temporariamente a crítica, mas também tem grandes probabilidades de, a médio prazo, conduzir à reformulação de um novo espírito do capitalismo a fim de restabelecer o envolvimento dos assalariados que, nesse movimento, perderam os referenciais aos quais se apegavam para terem controle sobre seu trabalho. Tampouco é impossível que uma transformação das regras do jogo capitalista modifique as expectativas dos assalariados e que estas, em contrapartida, solapem os dispositivos de acumulação como no caso analisado por D. Bell (1979). (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 64)

Na mesma esteira de Boltanski e Chiapello (2009), Peter Pelbart (2003) também usa o termo “novo espírito do capitalismo” e observa também que sua nova lógica se utiliza principalmente das críticas ao capitalismo formuladas nos anos 60 e 70. Forjou-se assim um novo espírito do capitalismo, com ingredientes vindos do caldo de contestação ideológico, político, filosófico e existencial dos anos 60. Digamos, em linhas gerais, que as reivindicações por mais autonomia, autenticidade, criatividade, liberdade, até mesmo a crítica a rigidez da hierarquia, da burocracia, da alienação nas relações e no trabalho, foi inteiramente incorporada pelo sistema, e faz parte de uma nova normatividade que está presente nos manuais de management que seus executivos seguem hoje. (…) Significa que ao satisfazer em parte as reivindicações libertárias autonomistas, hedonistas, existenciais, imaginativas, o capitalismo pôde ao mesmo tempo mobilizar nos seus trabalhadores esferas antes inatingíveis. (…) A reivindicação por um trabalho mais interessante, criativo, imaginativo obrigou o capitalismo, através de uma reconfiguração técnico-científica de todo modo já em curso, a exigir dos trabalhadores uma dimensão criativa, imaginativa, lúdica, um empenho integral, uma implicação mais pessoal, uma dedicação mais efetiva até. Ou seja, a intimidade do trabalhador, sua vitalidade, sua iniciativa, sua inventividade, sua capacidade de conexão foi sendo cobrada como elemento indispensável na nova configuração produtiva. (PELBART, 2003, p. 96)

O que importa a nós observar aqui nesse momento é o que Karl Marx (2004) n´O Capital já havia relatado no capítulo sobre o fetichismo da mercadoria. Marx mostra nesse capítulo como a ideologia do capital se insere na superestrutura, culturas, comunicabilidade e subjetividades das sociedades modernas, mas acima disso, o aspecto ideológico dominante passa a estar fortemente inserido e disseminado na própria infraestrutura dessas sociedades, ou seja, nas próprias relações materiais de produção. Guattari (1985), por sua vez, traz essa análise para a atualidade, e deixa evidente a invasão do capital na própria subjetividade dos indivíduos por meio de mecanismos de semiotização que modela desejos em favor dos interesses capitais. Aprofundaremos mais sobre essa invasão adiante. Por hora, com a ajuda de Guattari (1985), cabe ter em mente que Diferentes “fórmulas” de captura do desejo das massas foram assim produzidas pelos diferentes sistemas totalitários, em função da transformação das forças produtivas e das relações de produção. Devia-se fazer um esforço para extrair sua composição maquínica – um pouco como uma espécie de composição química, mas de uma

30

química social do desejo que atravessa, não apenas a História, mas também o conjunto do espaço social. (GUATTARI, 1985, p. 180-181)

Nesse mesmo sentido e em complemento à ordem infraestrutural, podemos dizer então que a criação do coworking não se dá meramente pelos fatores materiais inscritos, mas também pelos elementos simbólicos que são constituídos no cotidiano desses trabalhadores, afirmando uma nova cultura do trabalho por meio de valores que traduzem as experiências do atual mundo capitalista. Pude ver durante os dias do trabalho de campo que a lógica da flexibilidade como algo que comporta a própria liberdade do indivíduo em relação ao trabalho é exaltada pelos coworkers em seus diálogos entre si. Como pude ver e ouvir por meio de relatos e conversas, existe um certo prazer em não ter horário nem local definido para a realização das suas tarefas. Trata-se de um plano simbólico compartilhado através de valores que constituem a própria essência da reprodutibilidade do capital no atual momento. Além disso, o próprio ambiente de trabalho, traz em si tais símbolos. Pendurados na parede existiam pequenos cartazes com dizeres motivacionais, mas o que mais me chamou atenção foi um que trazia escrito “do what you love”24. Tal mensagem me fez pensar o quanto a dinâmica fragmentada de espaço e tempo é introjetada pelo próprio trabalhador por meio de mensagens como essa, as quais configuram o modo flexibilizado e de certa forma, instável, como algo necessário e demandado em condições nas quais o indivíduo se coloca em busca de seus objetivos. O trabalho como afeto e desejo, consequentemente todas as implicações que o conduz, passa a atenuar e justificar conflitos elementares, uma vez que tais problemáticas passam a ser interpretadas como consequências normais dentro do processo de se “fazer aquilo que ama”. Tanto pela estrutura que constrói quanto pelos sentidos que coloca em jogo é necessário à essa nova configuração um novo modelo de trabalhadores, mais flexíveis e dinâmicos para darem conta da estagnação e retrocesso implementado pelas formas rígidas de produção. Tratase, portanto, de novos esquemas de significação pertinentes ao momento atual do mundo do trabalho (SAHLINS, 2011). Assim, essas novas dinâmicas de trabalho, bem como sua própria essência, são acompanhadas de uma cultura produzida a partir das relações sociais conduzidas dentro do cotidiano capitalista, instituindo valores e moldando subjetividades. Assim, visualizamos como essa nova ordem cultural capitalista, portadora de um esquema simbólico que agrega significado a esses novos modelos de trabalho como no caso do coworking, configura também uma nova ordem de interpretação “objetiva” a respeito das dimensões de 24

Tradução nossa: “Faça o que você ama”.

31

mundo a ela relacionado, e tal interpretação é fundamentalmente importante para a reprodução tanto material, quanto simbólica das engrenagens capitalistas. É nesse ponto que nos damos conta, portanto, do aparecimento de uma nova subjetividade, um novo perfil de indivíduo ligado a dimensão do trabalho, coerente à reprodução desse novo momento. Uma subjetividade com fins objetivos no que diz respeito a garantir uma interpretação significativa pertinente para reprodução do sistema, uma interpretação capaz de sustentar as bases materiais e simbólicas dessa nova estruturação. Esse novo perfil de trabalhadores pode ser amplamente encontrado nos espaços de coworking. Nessa medida, o coworking se encaixa nas caracterizações desse novo espírito, pois lida com a subjetividade dos indivíduos em favor de um novo modelo de trabalho, no qual tanto a precariedade quanto as assimetrias dentro desse processo são adocicadas. Essa docilidade é própria desse novo espírito que envolve esse novo perfil de trabalhador, pois ao introduzir um novo sistema de significações entre as relações dos indivíduos no campo do trabalho, introduz também uma ideologia que se apropria do caráter crítico voltado à rigidez e das reivindicações por autonomia, para reforma-las e transformá-las em um comportamento coerente às novas práticas capitalistas (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Podemos, portanto dizer que, desde as suas tendências originárias, o coworking se caracteriza como uma dinâmica proveniente e também beneficiária desse novo espírito reinante. Isso pode ser evidenciado no aparecimento dos home-offices, forma de trabalho que contém em sua essência o mesmo desejo por flexibilidade e autonomia que encontramos hoje no coworking. No entanto, a prática do home-office é anterior ao coworking. Com o aumento das taxas de desemprego25 ao final do século XX, as tentativas concomitantes de enxugar os gastos das empresas e a paralela exaltação pela flexibilidade e autonomia no trabalho tanto por parte dos empregadores quanto por parte dos empregados, houve uma grande proliferação dos home offices, ou seja, um modelo de trabalho onde os profissionais, autônomos ou contratados pelas empresas, trabalham em casa26. De acordo com Sennett (2009) as altas taxas de desemprego desse período estão relacionadas às estratégias de reengenharia. Segundo o autor “o fato mais destacado na reengenharia é a redução de empregos. As estimativas dos números de trabalhadores empregados que foram “reduzidos” de 1980 a 1995 variam de um mínimo de 13 milhões a um máximo de 39 milhões. A redução tem tido uma relação direta com a crescente desigualdade, uma vez que só uma minoria dos trabalhadores espremidos para fora encontrou outro trabalho com os mesmos salários ou maiores. Numa bíblica moderna sobre esse assunto, Re-engineering the Corporation, os autores Michael Hammer e James Champy, defendem a reengenharia organizacional da acusação de ser uma mera cobertura para a demissão de pessoas, afirmando que ‘reduzir e reestruturar significam apenas fazer menos com menos. Reengenharia, em contraste, significa fazer mais com menos.” (SENNET, 2009, p. 56) 26 Home-office é o conceito reformulado e mais moderno para teletrabalho, que aparece nas cartilhas empresariais a partir dos anos 90 “onde os trabalhadores formam equipes e trabalham, individualmente ou em grupo, em espaços diferentes, podendo ser dentro ou fora dos escritórios de suas empresas” (SILVA, 2009, p. 87) 25

32

O Home-Office é uma forma de trabalho flexível que engloba a flexibilidade de tempo, espaço e comunicação, sendo ainda, mais que uma questão tecnológica, se mostrando também como uma questão social e organizacional (PALMEIRA; TENÓRIO, 2002 apud SILVA, 2009, p. 86)

Em um primeiro momento, essa tendência aumentou a produtividade dos trabalhadores, uma vez que puderam flexibilizar seus horários trabalhando em casa. Além disso, autores27 que analisaram essa nova prática do trabalho em casa “indicam outros motivos que levam as organizações a promoverem a migração de seus funcionários para o regime home-office, tais como a retenção de talentos e a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos” (BARROS; SILVA, 2010, p. 74). Tratou-se, portando, de uma dinâmica que trazia benefícios tanto para os trabalhadores quanto para as empresas, pois contribuía para a diminuição dos gastos da mesma28. A tendência desse primeiro momento vai de acordo com as pontuações de Boltanski e Chiapello (2009): Num mundo conexionista, a distinção entre vida privada e vida profissional tende a desvanecer-se sob o efeito de duas mesclas: por um lado, entre as qualidades da pessoa e as propriedades de sua força de trabalho (indissociavelmente misturadas na noção de competência); por outro lado, entre a posse pessoal-em primeiro plano, a posse de si mesmo - e a propriedade social, consignada na organização. Torna -se então difícil fazer a distinção entre o tempo da vida privada e o tempo da vida profissional, entre jantares com amigos e jantares de negócios, entre elos afetivos e relações úteis etc. (cf. capítulo VII). (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 193)

No entanto, observa-se que esse panorama começa a mudar e a produtividade dos homeoffices começam a declinar. Não existe um estudo em específico que analise esse acontecimento, porém, revistas especializadas na área de administração e empreendedorismo lançam algumas hipóteses sobre a transição da dinâmica de home-office para o coworking. Em uma delas, o autor observa que os profissionais do home-office passam a sofrer de uma certa depressão ocasionada pelo isolamento. Tal fenômeno passa a dar base a hipóteses de que existe a necessidade de interação entre as pessoas no mundo do trabalho, e tal interação não é devidamente proporcionada pelo home-office. O isolamento acabou por refletir em baixa produtividade, e além dele, interrupções ocasionais causadas pelo ambiente familiar colaboraram com a perda de rendimento29. Outro fator que é apontado por alguns adeptos do coworking é que tal modelo permitiu um maior controle em relação ao tempo dispensado ao Kaye Bentley e Pak Yoong (2000) e Margaret Patrickson (2002) Esse benefício de dupla mão é visível em artigos sobre o tema coworking. De acordo com um desses artigos “isso é reflexo de uma economia em recuperação, cujo reflexo é uma cena empreendedora que encontra abrigo, especialmente, nos espaços de coworking.” Disponível em: http://www.movebla.com/2876/coworkingindependente-situacao-economica/ . Acesso em: 23/09/2014. 29 Mais detalhes sobre o baixo aproveitamento dos home-offices podem ser encontrados no artigo Home-office X Coworking, disponível em: http://revistaatitude.com.br/site/desenvolvimento-pessoal/home-office-xcoworking/ . Acesso em: 05/09/2014. 27 28

33

trabalho. With a home office, I felt compelled to work at all hours of the day and night. As soon as I moved to my coworking office, I gained much better control over my hours and better work/life balance. I certainly feel happier in my job now that I have my coworking space. (L.D, 2011)30 É em decorrência a esse momento que os escritórios de coworking se alavancaram como uma oportunidade de se desvencilhar dos obstáculos do home-office e de lidar com a reestruturação do mercado de trabalho, com o intuito principalmente de retirar do isolamento esses profissionais e criar oportunidades de conexão com outras pessoas que compartilhassem os mesmos valores e dinâmicas, além de trazer motivação aos profissionais. Em economias fragilizadas, o coworking é um abrigo onde quem precisa se reestabelecer pode empreender. E nas economias em ascensão, o coworking é uma opção mais consciente, reconhecida na extensão do networking e na comodidade de ter um escritório fora do home office. (COSTA, 2014)31

No trabalho etnográfico realizado no escritório de coworking em Uberlândia, também pude constatar o quanto a interação entre os coworkers tem mais possibilidades de acontecer, e consequentemente, expandir as oportunidades de trabalho. Existe, sem dúvida, um ensejo pela aproximação entre os membros. Um fato bastante emblemático que pode ilustrar esse ensejo são as diversas situações em que presenciei um dos coworkers quando em conversa com qualquer um dos demais, se referia a eles como “my friend”32, inclusive, toda manhã, quando chegava ao escritório, dizia “- Bom dia, my friend!” para cada coworker que encontrava. Essa dinâmica se dava também entre os demais. A grande maioria dos coworkers, ao chegarem no espaço, apertava a mão dos demais. Essa proximidade e contato com os outros coworkers, mesmo que pareça em um primeiro momento como convenções sociais, introduz um vínculo a princípio que pode se desdobrar em afinidades de trabalho e condução de projetos. Tal condição seria impossível por meio do home-office. Como pudemos ver até aqui, os preceitos elencados pelo coworking se alinham a uma nova essência do capital, que ao demandar por mais flexibilidade cria um novo perfil de Tradução nossa: “Com o home-office, eu me sentia obrigado a trabalhar todas as horas do dia e da noite. Assim que eu mudei para o meu espaço de coworking, eu ganhei um controle muito melhor sobre as minhas horas e um melhor equilíbrio trabalho/vida. Eu com certeza me sinto mais feliz agora que eu tenho meu espaço de coworking.” Relato retirado do livro Working in the unoffice (2011, p. 1). Obra disponível em: https://www.goodreads.com/ebooks/download/14745356-working-in-the-unoffice. Acesso em: 23/09/2014. 31 Fonte: Movebla. Disponível em: http://www.movebla.com/2876/coworking-independente-situacao-economica/ 32 Tradução nossa: “meu/minha amigo/a”. 30

34

trabalhador coerente e receptivo a essas novas dinâmicas. No subcapítulo seguinte, aprofundaremos nossas análises desse perfil: o coworker. 1.3 O NOVO PERFIL DO TRABALHO EM AMBIENTE REESTRUTURADO: O COWORKER Como podemos ver no gráfico seguinte referente ao 2º Survey Global sobre Coworking, a maioria dos coworkers trabalhavam em home-offices antes de fazerem parte de um espaço de coworking.

Gráfico 2. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

Assim, uma das características fundamentais exaltadas pelos membros é que tais espaços possibilitaram a interação com outros profissionais igualmente autônomos e propiciou a partir de então um ambiente aberto ao relacionamento de negócios.

35

Gráfico 3. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

Os indivíduos que fazem parte dos espaços de coworking trabalham em projetos individuais ou coletivos, oferecem e contratam serviços mutuamente além de estarem assentados em um local que favorece o surgimento de ideias e projetos em grupo. Como já havíamos salientado anteriormente, vale ressaltar que os espaços de coworking são usados não apenas por autônomos, mas também por empresários, profissionais liberais e empregados de empresas. Durante a observação de campo percebi que as funções dos coworkers são bem variadas – o que já era esperado. Entre eles haviam empreendedores do setor de seguros, arquitetos, assessores de imprensa e comunicação, assessores de imagem e moda, etc, não havendo um setor fixo de atividades no local. No espaço de coworking em que estive realizando o trabalho de campo, a maioria dos membros têm seu próprio negócio, as chamadas startups33. Duas dessas startups já contratam funcionários, os quais também trabalham no ambiente de coworking, uma delas, e a que me pareceu mais me pareceu ativa durante os dias em que estive em campo trata-se de uma startup de Tecnologia da Informação. Além disso, existe em meio aos seus usuários, uma figura interessante, responsável por colaborar com a formação do network entre os coworkers: os operadores de espaço, ou simplesmente, operadores. Trata-se de um corpo administrativo, os quais desempenham funções fundamentais. Além de gerenciar o local de maneira a deixá-lo mais conveniente aos Nota: de acordo com um artigo virtual da revista Exame, startup significa “um grupo de pessoas trabalhando com uma ideia diferente que, aparentemente, poderia fazer dinheiro. Além disso, ‘startup’ sempre foi sinônimo de iniciar uma empresa e colocá-la em funcionamento.”. Disponível em: http://exame.abril.com.br/pme/noticias/oque-e-uma-startup/ . Acesso em: 02/10/2014. 33

36

usuários a figura do operador é interessante pois parte dele a responsabilidade de construir uma comunidade forte em torno do espaço. Além da observação etnográfica, muitas das informações que adquiri sobre o desenvolvimento do coworking no Brasil veio de conversas com um operador, que no caso é o principal gestor do local, ou seja o manager34. Ele me pareceu uma pessoa muito receptiva, interessada em integrar os novos coworkers ao local e um verdadeiro entusiasta desse novo modelo. Em meio a nossa primeira conversa, ainda falando sobre coworking, em suas palavras, ele disse que chega a ficar “arrepiado” quando conversa sobre o assunto. De acordo com um artigo elaborado pela Deskmag – a mesma revista voltada para o coworking a qual desenvolveu os surveys globais: The fundamental skill of a good coworking space manager is community building. That is something big organizations will look for as they attempt to adopt the methods of coworking inside traditional workplaces. Coworking spaces have an opportunity to become expert community managers, and to apply their knowledge across a wide range of locations, not just their own. (DULLROY, 2011)35

Ainda no mesmo artigo, é observado que o próprio potencial desses operadores em se transformarem em gestores de uma comunidade de coworking se deve a uma série de condições que são colocadas no mundo do trabalho atual. Entre elas, estão relacionadas o esvaziamento dos escritórios tradicionais e a concomitante procura de novos modelos de trabalho por parte das empresas. Existe também o contraste entre uma geração onde as relações de trabalho e produções eram mais rígidas e o novo perfil de trabalhador presente no início desse milênio. A força dos operadores, por sua vez, estaria portanto em estar atento a essas tendências do mercado de trabalho, cabendo a eles gerenciar essa nova comunidade coerentemente com esse novo momento a partir dos espaços que fazem parte. Dessa forma, os operadores têm a função de facilitar o networking dentro do espaço em questão além de atrair laços externos. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Project your space, um site que tem como intuito divulgar pesquisas e resultados relacionados ao coworking, As coworking spaces “sell” community to their customers, it is important for the operators to nourish and foster the formation of social ties among coworkers. Luckily, coworking spaces, due to their concept, provide at least three of the above described Nota: Segundo ele, a princípio a idéia de realizar um espaço de coworking era dele e de mais dois sócios que não viviam na cidade. No entanto, ele acabou comprando a sociedade dos demais uma vez que estes estavam impossibilitados de mudar para a cidade local do espaço. 35 Tradução nossa: “a habilidade fundamental de um bom gerenciador de um espaço de coworking é a construção da comunidade. Isso é algo que as grandes organizações vão procurar ao tentar adotar os métodos de coworking dentro dos locais de trabalho tradicionais. Espaços de coworking têm uma oportunidade de se tornarem experts em gerenciamento de comunidades, e de aplicar seus conhecimentos em uma ampla variedade de locais, não somente nos seus próprios espaços”. Disponível em: http://www.deskmag.com/en/coworking-operators-as-expertcommunity-managers-181 . Acesso em 05/09/2014. 34

37

foundations of a community (place, resources and language). However, as communities grow stronger the more pillars are utilized, operators might want to try to establish shared memories, knowledge sharing and a common sense of values and interests among their members as well.(PROJECT YOUR SPACE, 2012)”36

Além disso, de acordo com o mesmo site, caberia aos operadores também, organizar as decisões de infraestrutura do espaço de maneira que as ideias de no geral sejam contempladas e estabelecer um feedback para com os coworkers. Esse novo sujeito dentro do mundo do trabalho é também evidenciado por Boltanski e Chiapello (2009) quando os autores observam que “os operários, que passam a ser chamados de operadores, vão sendo aos poucos encarregados do controle de qualidade e de certas operações de manutenção.” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 111). É interessante observar que esses operadores têm, portanto, a função de estabelecer uma ponte entre os diferentes polos de uma estrutura em mudança e dentro do espaço de coworking, além de fortalecer e conectar projetos entre os coworkers do local estabelecendo uma verdadeira comunidade, contribuem para atrair organizações externas para o conhecimento das inovações dessa nova dinâmica de trabalho. Podemos dizer, portanto, em linhas gerais, que esses operadores seriam a nova figura do gerente presente nos escritórios e empresas tradicionais, mas agora, esses estão incumbidos de gerenciar capital humano, fortalecendo laços e gerando uma qualidade positiva em um momento em que as relações de trabalho se encontram um tanto quanto fluídas. Essa nova perspectiva e interesse dentro do mundo do trabalho reestruturado já é visualizada por Boltanski e Chiapello (2009) quando o autor trata dos novos métodos de gestão empresarial: Os autores dos anos 90, assim como seus predecessores, põem a questão do controle no âmago de suas preocupações. Um de seus problemas principais é o de controlar a "empresa liberada" (segundo expressão de Tom Peters, 1993 ©), feita de equipes autogeridas e trabalhando em rede, sem unidade de tempo nem de lugar. Não existe uma infinidade de soluções para" controlar o incontrolável": a única solução é, de fato, que as pessoas se autocontrolem - o que consiste em deslocar a coerção externa dos dispositivos organizacionais para a interioridade das pessoas -, e que as forças de controle por elas exercidas sejam coerentes com um projeto geral da empresa (Chiapello, 1996, 1997). Isso explica a importância atribuída a noções como "envolvimento do pessoal" ou de "motivações intrínsecas", que são motivações ligadas ao desejo e ao prazer de realizar o trabalho, e não a um sistema qualquer de punições-recompensas impingido de fora para dentro' só capaz de gerar" motivações extrínsecas'''. Aliás, os autores dos anos 90 desconfiam da palavra "motivação", que

Tradução nossa: “Como espaços de coworking "vendem" comunidade para seus clientes, é importante para os operadores, nutrir e estimular a formação de laços sociais entre os colegas de trabalho. Felizmente, espaços de coworking, devido ao seu conceito, fornecem pelo menos, três dos fundamentos descritos de uma comunidade (local, recursos e linguagem) acima. No entanto, como as comunidades crescem mais fortes quanto mais pilares são utilizados, operadores podem querer tentar estabelecer memórias compartilhadas, compartilhamento de conhecimento e um senso comum de valores e interesses entre os seus membros também.” Disponível em: http://www.projectyourspace.com/coworking-research/ . Acesso em: 05/09/2014. 36

38

conota uma forma de controle que eles se esforçam por rejeitar, dando preferência à palavra "mobilização", que remete à tentativa de motivação que supostamente evita qualquer manipulação". (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 110)

Apesar de ser muito interessante a figura do operador, o que nos interessa nesse trabalho são as pessoas que utilizam o local como novo modelo de trabalho conveniente para seus interesses profissionais. Assim, além dessa figura responsável pela administração do espaço, os escritórios de coworking são formados principalmente por profissionais autônomos (que nesse caso podem pertencer a categoria de empreendedores ou freelancers), profissionais que prestam algum tipo de serviço às empresas, e também por empresários. Temos em mente que é a partir da troca de informações e trabalho, bem como o compartilhamento e construção de demandas ou ideias, que passa a se configurar a estrutura da rede nesse ambiente, uma vez que esses são os componentes exaltados nessa nova forma de organização do trabalho 37. Isso é evidenciado tanto no Gráfico 3 quanto na opinião de A.C, 26 anos. Para ele o coworking propicia Principalmente o networking, o aumento nos "freelas"38 e parcerias são inegáveis. Além de inúmeros workshops, cursos e palestras. De acordo com o 2º survey, um dos principais motivos pelos quais profissionais contemporâneos vêm participando do coworking se trata do fato de que esse novo perfil profissional não se adequa mais à fórmula dos escritórios ou grandes centros empresariais como seu modelo tradicional (PELBART, 2003). Boltanski e Chiapello (2009) também deixam evidente tal tendência dentre os jovens no mercado de trabalho. Segundo eles, de acordo com os especialistas, trata-se de uma geração que está [...] à procura de um ‘outro modo de vida’, de condições de trabalho que ofereçam maior flexibilidade de horários e ritmo, de "esquemas" transitórios que possibilitem manter "um comportamento desvinculado' distanciado em relação ao trabalho", ser autônomos, livres, sem se submeter à autoridade de um chefe. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 206)

Essa inclinação corrobora com os dados do gráfico abaixo:

37 38

Disponível em: http://wiki.coworking.org/ . Acesso em: 01/07/2014. Nota: Freelas é a gíria usada para se referir a freelancer.

39

Gráfico 4. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

De acordo com o 2º Survey, cerca de 46% dos trabalhadores têm entre 25 e 34 anos e 54% dos membros são freelances. A maioria dos membros são graduados ou pós-graduados, sendo mais da metade do número de membros homens.

Gráfico 5. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

40

Como vemos acima, a idade da maioria dos membros dos espaços de coworking demonstram que eles nasceram e vivenciaram todo o avanço tecnológico das últimas décadas do século XX, o que é também uma das características desse momento de uma transição da rigidez à flexibilidade.

Gráfico 6. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

Gráfico 7. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

41

Esses dados do perfil dos coworkers estão em linhas gerais coerentes com a normatividade presente nos modelos econômicos e sociais dominantes. Podemos dizer que algumas características podem proporcionar um maior ou menor número de oportunidades e acessibilidades na formação da rede, e consecutivamente, influir sobre sua capacidade de representação. A partir da análise dos gráficos 4, 5 e 6 podemos ver que a maioria dos membros que se vinculam aos espaços de coworking são aqueles que tem maiores oportunidades de acessar a flexibilidade de horários e espaço requeridos pela dinâmica econômica atual. A idade dos coworkers também influi para que estes fizessem parte de uma geração inserida nas mudanças trazidas pelas novas tecnologias da informação e as acessassem com maior facilidade. Consequentemente, contaram com uma maior e melhor distribuição de informações e suas tecnologias se comparada com gerações anteriores. Além disso, pelo fato da maioria ser formada por graduados e pós-graduados, ou por indivíduos que tiveram oportunidades de estarem em uma faculdade, podemos dizer que se trata de uma parcela da população com acessibilidade a benefícios sociais primordiais – como a educação – os quais contribuem e muito – juntamente a outras variáveis – para tornar possíveis oportunidades e capacidades de representação no plano da vida social e econômica. Assim como observou Amartya Sen (2000, p. 19), a educação se insere dentro dos conjuntos capacitários39, os quais são essenciais para a promoção de liberdade, oportunidades, capacidades de acessos às informações, e consecutivamente, ampliação da democracia necessária para a qualidade legítima de representação dos interesses e valores dos indivíduos em sociedade. “Com oportunidades sociais adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio destino e ajudar uns aos outros” (SEN, 2000, p. 26). Dessa maneira, paralelo à tecnologia responsável pela distribuição de informações no mundo contemporâneo, um maior nível de educação, pode ser ele institucional ou não, garante aos indivíduos um maior número de peças informacionais a serem usadas de acordo com seus interesses. Podemos ver também que a maioria dos membros são freelancers, ou seja, trabalhadores autônomos. Esse último dado, relacionado aos anteriores, nos ajuda a deixar evidente aquilo que já nos referimos anteriormente, ou seja, a quantidade de mão-de-obra excedente qualificada devido as transformações estruturais da economia de maneira geral ocorridas nas últimas décadas do século XX, que consequentemente refletiram sobre a organização do mercado de trabalho dando a ele novas características e estratégias. Segundo Sen (2008) “a capacidade é, portanto, um conjunto de vetores de funcionamentos, refletindo a liberdade da pessoa para levar um tipo de vida ou outro. Tal como o assim chamado 'conjunto orçamentário' no espaço de mercadorias representa a liberdade de uma pessoa para comprar pacotes de mercadorias, o 'conjunto capacitário' [capability set] reflete, no espaço de funcionamentos, a liberdade da pessoa para escolher dentre vidas possíveis” (SEN, 2008, p. 80). 39

42

Outro autor que vai ao encontro dessa avaliação e ajuda a complementa-la é Eduardo Marques (2005). Para ele, as redes possibilitam um melhor ou pior posicionamento do indivíduo em meio a sociedade, no entanto, esse status é garantido através dos recursos pessoais de seus membros. A primeira referência obrigatória do tema é o trabalho de Nan Lin (1999a; 1999b) sobre o lugar das redes na obtenção de status (status attaiment), entendido como 'um processo pelo qual os indivíduos mobilizam e investem recursos visando retorno em posições sociais' (Lin, 1999b, p. 467). Esses recursos são pessoais e sociais, sendo esses últimos especificados como elementos acessíveis por meio dos vínculos diretos e indiretos de suas redes de relações. O autor sustenta que: a) recursos sociais exercem efeitos nos resultados de ações instrumentais de busca de status; b) os recursos sociais são afetados pelas posições dos indivíduos nas estruturas de recursos; c) recursos sociais tendem a ser mais impactados por vínculos fracos do que por vínculos fortes (Lin, 1999b, p. 470). A realização de status ao longo do ciclo da vida, portanto, envolve tanto o acesso a capital social entendido como o conjunto de recursos acessados por um certo indivíduo pela sua origem e pelas suas redes (educação, status inicial e da família e recursos relacionais iniciais) quanto a sua mobilização, que é influenciada pela utilização das redes (estrutura e força dos vínculos e o status dos contatos). (…) Certas estruturas de rede criariam vantagens para determinadas posições ocupadas por alguns agentes econômicos, cuja as redes egocentradas seriam marcadas por baixa redundância, criando o que o autor denominou de buracos estruturais. (MARQUES, 2005, p. 39)

É interessante também observar que, em grande medida, quando tratamos das redes, recursos pessoais e sociais se diferenciam entre homens e mulheres. Nessa perspectiva, apesar de não ser nosso intuito aprofundar sobre questões de gênero, cabe a nós fazermos observações a respeito da diferença quantitativa de participação entre homens e mulheres nos espaços de coworking.

Gráfico 8. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

43

O gráfico acima se refere ao ano de 2011 e faz parte do 2º Survey. De acordo com o 3º Survey, houve um aumento de 4%, no ano de 2012, em relação ao ano anterior, sendo a porcentagem de participação de mulheres o equivalente a 38%. Outra informação trazida pelo 3º Survey é que, em média, a maior participação das mulheres se dá na Europa, com 42%40. Claro que o número levantado é geral e relativo ao total de espaços pesquisados, mas, mesmo assim, a baixa participação da mulher em dinâmicas como as dos espaços de coworking podem nos revelar desigualdades primárias, que vão além da materialidade e que ainda não puderam ser sanadas pelos preceitos de liberdade, flexibilidade, conectividade do ambiente dito pós-moderno41. Nesse sentido, entendemos que as oportunidades de autonomia disponíveis às mulheres são por vezes menor que as disponíveis aos homens, o que acarreta em um menor potencial de acesso, seja material ou simbólico, por parte desse gênero. Como proposto ao início, revelar essas desigualdades é o que nos interessa. Sen (2008) observa que Existem disparidades sistemáticas nas liberdades que os homens e as mulheres desfrutam em diferentes sociedades, e essas disparidades frequentemente não são redutíveis a diferenças na renda ou recursos. Embora os níveis salariais e de remuneração diferenciais constituam uma parte importante da desigualdade relativa ao sexo na maioria das sociedades, existem muitas outras esferas de benefícios diferenciais, p. ex., na divisão do trabalho dentro da família, na extensão da assistência ou educação recebidas, nas liberdades que se permitem a diferentes membros desfrutar. (…) eu sustentaria que o problema da desigualdade entre os sexos nas sociedades avançadas – não menos que nos países em desenvolvimento – pode ser compreendido muito melhor se compararmos aquelas coisas que importam intrinsecamente (tais como funcionamentos e capacidades), e não somente os meios, como bens primários e recursos. O problema da desigualdade entre os sexos é, em última análise, de liberdades díspares. (SEN, 2008, p. 190-193)

Ao nos atermos sobre o espaço do coworking em si, observamos que a maioria dos

Nota: a seguir, encontra-se a América do Norte (37%), América Latina (33%) e Ásia (28%). Nota: Existe um debate muito amplo e denso a respeito do termo dentro da Ciências Sociais. Muitos autores não consideram o uso do termo, pois acreditam que ele não é apropriado, uma vez que vários problemáticas e questionamentos provenientes da modernidade ainda se fazem presente no atual momento. Por isso, não existe consenso em relação ao termo e, ao invés de usar pós-modernidade, muitos autores optam pelo uso de conceitos como era da informação (Manuel Castells), sociedade pós-industrial (Daniel Bell), sociedade do espetáculo (Guy Debord), modernidade líquida (Zygmunt Bauman), modernidade radical (Anthony Giddens), entre outros, para tratar da especificidade da nossa atualidade. Devemos ter em mente no decorrer desse trabalho que quando usarmos o termo pós-modernidade como definição de um momento onde essas novas relações entre tempo e espaço se dão não queremos fazê-lo de forma irresponsável, por isso, entendemos que considerar a atualidade como pós-moderna não significa acreditarmos em totais rupturas de concepções e problemáticas de épocas anteriores. Se assim fizermos, estaríamos realizando uma análise breve e rasa sobre o momento em que passamos. Tais concepções e problemáticas anteriores a essa classificação ainda existem e não será nosso papel negar suas influências na vida social do homem contemporâneo, nem mesmo a insuficiência dos teóricos da pós-modernidade em categorizar suas resoluções. Mas, a despeito desse debate dicotômico que nada contribui para o avanço das análises sociais da atualidade, acreditamos que o termo nos ajuda a definir o momento, uma vez que seu conceito leva em si a percepção das “alterações objetivas da ordem econômica do próprio capital” além da fluidez presente nas relações sociais e nas instituições. 40

41

44

espaços são constituídos conforme a demanda dos profissionais, e assim, seus membros podem empreender projetos individuais ou coletivos. Vimos por meio de alguns discursos que na maioria das vezes é estimulada a conectividade e o colaborativismo entre os membros, a fim de compartilharem ideias inovadoras em um ambiente que resplandece a comunidade. No entanto, várias formas e arranjos são oferecidos, inclusive uns mais privativos que os outros, como no caso desse espaço em Hong Kong, no Japão:

45

Figura 6: The Hives (Hong Kong, Japão). Fonte: http://thehive.com.hk/about/

O que vemos a partir desse exemplo é que o coworking oferece a sistematização da flexibilidade e de interesses diversos em um mesmo contexto de trabalho, muitas vezes com valores compartilhados ou mais restritos, mas de todas as maneiras, exaltando sobre a 46

possibilidade de surgirem dinâmicas compartilhadas. Por outro lado, além de contarem com a sistematização da flexibilidade e de interesses nesses locais (como pudemos ver em discursos como o do The Hives), é interessante observar que mesmo não mais se adequando as formas tradicionais de trabalho, a maioria dos coworkers têm outro trabalho além daquele empreendido no espaço de coworking, totalizando uma média de 73,5% dos profissionais de acordo com o gráfico do 2º Survey.

Gráfico 9. Fonte: 2º Survey Global sobre Coworking

É nesse ponto que tais dados evidenciam e nos começam a levar a pensar sobre em que medida os espaços de coworking, como organizações de trabalho capazes de propiciar a formação de redes que desenvolvem a autonomia, emancipação dos interesses e representatividade dos membros, são realmente capazes de garantir esses preceitos42. Por isso, é importante fazermos um parêntese e deixar claro que falar sobre uma possível emancipação em relação as estruturas dominantes do mundo contemporâneo pode parecer um tanto quanto ingênuo, utópico ou ousado, uma vez que sabemos que essas estruturas envolvem e permeiam nossas vidas em todas as suas dimensões: na política, no trabalho, nas sociabilidades, na cultura, no consumo, nas ideologias e dogmas que se rementem ao material Nota: esse dado nos apareceu de forma diferente dentre os dias de trabalho de campo. A maioria dos coworkers que tive contato trabalham apenas no local, mas podemos dizer que isso se deve ao fato de que a maioria deles são empreendedores individuais e não contratados. Além disso, o espaço em que realizei a experiência de campo é reduzido, havendo poucas chances para uma variabilidade. 42

47

ou simbólico. A emancipação, ou autonomia, portanto, é sempre relativa. Não é nosso intuito sugerir propostas para uma emancipação possível, mas deixar evidente as dinâmicas ou práticas que fingem a projetar. Esse trabalho não terá uma conclusão à qual revelará uma fonte emancipatória, ou estratégias para tal, mesmo porque, além de político e econômico, esse também é em grande medida um caminho filosófico e psicanalítico. O conceito de emancipação que desenvolvemos nesse trabalho consiste apenas na possibilidade de construir de maneira legítima, ou seja, subjetivamente consciente, seja em grupo ou individualmente, demandas, interesses, vontades e objetivos de vida sem que estes sejam perversamente modelados por padrões e estratégias que servem aos interesses pelo controle e dominação, engendrados objetivamente fora de uma sensibilidade real do indivíduo. Ao remetermos às dinâmicas que fingem projetar a emancipação, vale a pena citarmos Guattari (1985): De modo mais geral, é claro que o meio ambiente maquínico secretado pelo capitalismo está longe de deixar indiferente as grandes massas da população e isto não se deve somente às seduções da publicidade, à interiorização, pelos indivíduos, dos objetos, dos valores da sociedade de consumo. Parece que algo da máquina participa “pra valer” da essência do desejo humano. Toda questão está em saber qual máquina e para quê. O servomecanismo maquínico não coincide com a alienação social. Enquanto a alienação engaja pessoas globais, representações subjetivas facilmente manipuláveis, o servomecanismo maquínico agencia elementos infrapessoais, infra-sociais, em razão de uma economia molecular de desejo, muito mais fácil de se “segurar” no seio das relações sociais estratificadas. Conseguindo assim colocar diretamente no trabalho funções perceptivas, afetos, comportamentos inconscientes, o capitalismo toma posse de uma força de trabalho e de desejo que ultrapassa consideravelmente a das classes operárias no sentido sociológico. Nestas condições, as relações de classe tendem a evoluir diferentemente. Elas são menos bipolarizadas, tendem cada vez mais a engajar estratégias complexas. (GUATTARI, 1985, p. 206-207)

Portanto, ao problematizarmos até aqui os conceitos de liberdade e de flexibilidade – hoje tão exaltado por essas organizações em rede – visualizando-os como componentes interligados e de certa forma inerente ao projeto capitalista de nossos dias, podemos ser levados a pensar sobre o grau e a qualidade da autonomia que essas redes e seus discursos promovem, bem como sua origem, e se ela será capaz de emancipar os indivíduos das instruções totalizadoras e rígidas, principalmente quando temos como objeto uma rede ligada à esfera de trabalho, consecutivamente, econômica, como é o caso do coworking. Seriam essas últimas observações dados que revelam o potencial de exploração do capital sobre a inventividade e o tempo livre dos trabalhadores no contexto atual? Ou seja, seriam os espaços de coworking mais um dos elementos estratégicos do capitalismo atual capazes de organizar e alocar a mão de obra excedente movida pelo desejo de autonomia e liberdade através da promessa de ascensão pelo trabalho? Trata-se de uma proposição, sendo 48

que não podemos responder tal resposta com exatidão, uma vez que o survey não fornece dados a respeito da qualidade dos empreendimentos geridos pelos profissionais, dessa forma, não podemos afirmar a que propósito eles servem objetivamente. Mas devemos ter em mente que A adoção de novas formas de gestão e organização da produção se explica pelo movimento transnacional da economia política imposta pela burguesia internacional, que constrói imperativos legitimados pela expansão incontrolável do capital, que impõe a exploração máxima da força de trabalho. O investimento em capital constante, em detrimento do capital variável, reduz a velocidade da sua reprodução, uma vez que a maquinaria industrial se paga pela depreciação. As saídas encontradas estão presentes na adoção de estratégias voltadas para a exploração máxima dos trabalhadores. A eficiência do capital está na sua capacidade e inventividade de assimilação máxima do trabalho na sua dimensão objetiva e subjetiva, transformando o tempo livre, a imaginação e a resistência dos trabalhadores em mais trabalho. (LUCENA, 2008, p. 21)

Outro dado interessante o qual pode ser relacionado ao posicionamento do indivíduo na rede e até às questões meritocráticas que podem surgir: de acordo com o 2º Survey, 58,5 % dos espaços de coworking foram abertos com capital individual, seguido de 12% de capital de amigos e parentes e outros 11% com financiamento de bancos privados.

Gráfico 10. 2º Survey Global sobre Coworking

49

Nesse caso, poderiam esses financiamentos pessoais ou privados influenciarem sobre os arranjos de compartilhamento que existem em meio aos espaços? Nesse sentido, existiria uma diferença de posição e privilégios de ação entre membros que injetam mais capital que outros? Trata-se de uma pergunta a qual não foi respondida pelo survey, mas que deve ser colocada em pauta se estamos buscando evidências sobre a autonomia em meio aos espaços de coworking. Entendemos que a presença de injeção de fundos pessoais e privados na administração dos espaços que em tese deveriam ser geridos por meio da autonomia dos projetos de seus membros proporciona um ambiente deliberativo em favor de alguns interesses que pouco podem ter relação com a comunialidade dos membros. Isso porque, em alguns casos alguns indivíduos podem contar com um potencial de comunicação mais amplo, uma vez que dispendeu mais recursos dentro do espaço, e por isso, por muitas vezes, pode contar com um poder de persuasão diferenciado no que diz respeito à gestão de demandas do espaço. O que podemos ver em todos os estudos de rede é que quanto maior a inserção de capital, seja ele material, social ou informacional, por parte de um indivíduo na rede, melhor seu posicionamento e potencialidade de mais elos em relação aqueles o qual a doação desses componentes foi menor. Marques (2005), em seus estudos sobre as redes de segregação nos aponta para esse fato: Dado que a criação e manutenção de vínculos envolvem diversos processos que importam em custos, espera-se uma relação entre as redes e o rendimento dos indivíduos. Segundo essa hipótese, as redes de grupos sociais distintos estariam submetidas ao que poderíamos denominar 'economia dos vínculos' diferentes. De acordo com esse mecanismo, pessoas com menores recursos econômicos teriam maior dificuldade não apenas de construir, mas também de manter vínculos em esferas distintas, gerando uma tendência ao abandono de parcelas inteiras da rede ao longo do tempo. Como consequência, indivíduos mais pobres teriam redes menores e menos variadas em termos de sociabilidade. (MARQUES, 2005, p. 107)

Além disso, Marques (2005) também observou que “a literatura [das redes] tem trabalhado a questão por meio do conceito de homofilia – a evidência de que os indivíduos tendem a construir e manter contatos mais frequentemente com indivíduos de características sociais (atributos) similares” (McPherson et al, 2001, apud Marques, 2005, p. 41). Dessa forma, somos levados a entender que as redes formadas dentro dos espaços de coworking são construídas de maneira que possa existir uma diferenciação/variação de força e quantidade dos elos e vínculos derivada de uma maior ou menor alocação de recursos materiais, simbólicos ou informacionais por parte de seus membros. Essa variação reflete consequentemente na posição e na mobilidade desses indivíduos. Paralelo a isso e a partir de tal perspectiva, podemos também dizer que as redes que se formam dentro dos espaços de coworking podem trazer aspectos de homofilia, agregando similaridades e segregando diferenças ou diversidades. 50

Para além das considerações a respeito de uma homofilia gerada pelo capital material que cada indivíduo detém é interessante constatar tal homofilia através do capital simbólico, ou seja,

dos

valores

e

discursos

compartilhados.

Nessa

medida,

a

busca

por

liberdade/independência/autonomia e o “gosto pelo que faz” pode ser traduzido como a subjetividade que passa a ser desenvolvida, compartilhada e exaltada de maneira relacional e dependente a flexibilidade encontrada nos espaços de coworking e nas redes de maneira geral. A partir das respostas do coworker A.C à seguinte pergunta, podemos perceber essa relação: Quais valores você acha importante para realizar seu trabalho hoje em dia? Concentração, atenção, e gosto pelo que faz. (A.C, 26 anos, 2014) Em decorrência disso, entender o processo de desencaixe do espaço-tempo43 apresentado por Giddens (1991), é importante para que possamos entender a posição e a referência em que se encontra o conceito de liberdade e flexibilidade para os indivíduos nas sociedades atuais e também dentro das redes. Um maior acesso aos mecanismos ou dinâmicas de desencaixe proporcionaria uma maior perspectiva de liberdade/flexibilidade e, igualmente, de conexão, tanto no contexto macro da sociedade, quanto no micro, das redes. Vemos através dos gráficos que independência e comunidade são os componentes mais citados como valores pessoais dos coworkers. No entanto, o fator independência vem em primeiro lugar.

“Por desencaixe me refiro ao ‘deslocamento’ das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de espaço-tempo” (GIDDENS, 1991, p. 31) 43

51

Gráfico 11. 2º Survey Global sobre Coworking

Liberdade e subjetividade agora são relacionadas à categoria da flexibilidade que os novos projetos da pós-modernidade passaram a traduzir como imprescindíveis às suas novas dinâmicas para a conquista de autonomia nas diversas dimensões da vida social. Para [John Stuart] Mill, o comportamento flexível gera liberdade pessoal. Ainda estamos dispostos a pensar que sim; imaginamos o estar aberto à mudança, ser adaptável, como qualidades de caráter necessárias para a livre ação – o ser humano livre porque capaz de mudança. Em nossa época, porém a nova economia política trai esse desejo pessoal de liberdade. A repulsa à rotina burocrática e a busca da flexibilidade produziram novas estruturas de poder e controle, em vez de criarem condições que nos libertam. (SENNETT, 209, 54)

No entanto, quando se trata dos valores que devem estar presentes no coworking quanto ambiente de trabalho, podemos ver que a maioria dos seus membros dão prioridade à interação com as pessoas e a comunidade, que chamaremos também de comunialidade. O survey global nos apresenta alguns dados significativos sobre a questão:

52

Gráfico 12. 2º Survey Global sobre Coworking

Gráfico 13. 2º Survey Global sobre Coworking

53

Gráfico 14. 2º Survey Global sobre Coworking

Esses gráficos podem nos render algumas problematizações. Primeiramente, a esses dados, relacionamos com a ajuda de Sennett (2009), uma nova ética do trabalho em função do desenvolvimento capitalista que vem preencher o novo perfil de trabalhador que já evidenciamos anteriormente. Quando perguntado sobre as vantagens do coworking em relação as formas tradicionais de trabalho a resposta de S.A, 36 anos, é capaz de demonstrar clara e sinteticamente como antigas máximas capitalistas como controle e lucro se relacionam agora com a tendência a novos arranjos flexíveis. More distribution of knowledge, control and profit. Less business systems thinking and more community thinking. (S.A, 36 anos, 2014)44 De acordo com Sennett (2009), A moderna ética do trabalho concentra-se no trabalho de equipe. Celebra a sensibilidade aos outros; exige “aptidões delicadas”, como ser bom ouvinte e cooperativo; acima de tudo, o trabalho em equipe enfatiza a adaptabilidade às circunstâncias. O trabalho de equipe é a ética de trabalho que serve a uma economia política flexível. Apesar de todo arquejar psicológico da administração moderna sobre o trabalho de equipe no escritório e na fábrica, é o etos de trabalho que permanece na superfície da experiência. O trabalho de equipe é a prática de grupo da superficialidade degradante (SENNETT, 2009, p. 118)

Podemos dizer que a gestão de práticas em favor da comunidade ou equipe dentro do Tradução nossa: “Mais distribuição de conhecimento, controle e lucro. Menos pensamento de sistemas de negócio e mais pensamento comunitário”. 44

54

ambiente de trabalho ameniza todas as imprevisibilidades e degradações impostas pela reestruturação da economia e do mercado de trabalho em si, podendo assim, ser entendidas como uma dinâmica ou um etos elaborado a fim de deixar mais evidente entre os próprios trabalhadores que tanto o sucesso, mas principalmente as aflições são compartilhadas, dando a impressão – necessária para o bom funcionamento do capitalismo flexível – de que eles não se encontram sozinhos diante das condições imprevisíveis. Por outro lado, ao observarmos mais atentamente ao gráfico nº 12, podemos ver que ao mesmo tempo em que 84% dos coworkers dizem que a “interação com outras pessoas” é o fator mais importante para seu trabalho, apenas 44% dão importância à “possibilidade de trabalhar em grupo”. O Gráfico nº 15, também demonstra que quando relacionamos esses valores e preceitos às práticas realmente exercidas dentro do espaço de coworking vemos que uma média de 53,5% dos membros preferem trabalhar sozinhos, ou seja, não compartilhar projetos, seja em equipes espontâneas ou fixos.

Gráfico 15. 2º Survey Global sobre Coworking

55

Uma maior preferência por ambientes que contenham salas privativas também corrobora com essas informações45.

Gráfico 16. 2º Survey Global sobre Coworking

Esse dado pode nos dizer que mesmo trabalhando em um ambiente que preconiza o colaborativismo, a coletividade e a comunialidade entre os membros, estes componentes não estão em primeiro plano quando se trata das práticas realmente elaboradas no dia a dia desses espaços. Nesse ponto, podemos estabelecer uma relação – que vai de acordo com as proposições anteriores sobre flexibilidade e sociedade de consumo material e imaterial – com a conceituação de capital cultural de Slavoj Žižek, que para ele, trata-se do novo espírito do capitalismo. (…) O capitalismo foi transformado e legitimado como projeto igualitário: ao acentuar a interação autopoiética e a auto-organização espontânea, acabou usurpando da extrema esquerda a retórica da autogestão dos trabalhadores, transformando o lema anticapitalista em capitalista. (…) No nível do consumo, esse novo espírito é o do chamado “capitalismo cultural”: fundamentalmente, compramos mercadorias não pela utilidade ou pelo símbolo de status; compramos para ter a experiência que oferecem, consumimos para tornar a vida prazerosa e significativa. (…) Supõe-se que o consumo sustente a qualidade da vida, seu tempo deveria ser um “tempo de qualidade” - não tempo de alienação, de imitação de modelos impostos pela sociedade, do medo de não conseguir “acompanhar os vizinhos”, mas tempo de realização autêntica de meu verdadeiro Eu, do jogo sensual da experiência, de ser prestativo aos outros envolvendo-se com caridade ou ecologia. (Žižek, 2011, p. 5354) Além disso, pudemos ver através dos vários discursos institucionais dos espaços que estes oferecem sempre salas privativas como meio de ganhar mais membros. 45

56

O que Žižek propõe nesse trecho, e que é muito pertinente às conceituações de autores que viemos trabalhando até agora, é que a nova ordem capitalística de consumo material e simbólico insere como mercadoria inclusa, a possibilidade de adquirir experiências que trarão o indivíduo ao plano mais sensível de sua subjetividade, incorporando a ela valores éticos que proporcionam uma maior sensação de comunialidade, responsabilidade e interpretação precisa das dimensões da vida a partir da ação, no caso, do consumo desses símbolos significantes. Não se trata de compartilhar experiências, mas de ter experiências autênticas, únicas, mas que ao mesmo tempo encontre-se relacionada – mesmo que de forma fluída ou pontual – com o outro. No próximo subcapítulo, buscaremos ver de forma mais explícita a relação entre tais experiências individuais e a forma pela qual se desenvolve uma sociedade que se baseia não só no consumo material, mas também no simbólico. 1.4 CAPITAL HUMANO NO COWORKING: CONSUMO E INVESTIMENTO O conceito de capitalismo cultural desenvolvido por Žižek (2011) no trecho anterior nos convida a pensar sobre sua relação com o conceito de consumo como investimento elaborado por Theodore W. Shultz (1973) e aplicado nas análises a respeito do empreendedorismo de Osvaldo Lopez-Ruiz (2007). A partir deste último autor, podemos estabelecer nesse primeiro momento, alguns pontos muito pertinentes, presentes na obra de Shultz, para pensarmos sobre o consumo de valores simbólicos em nossos dias. Como nos mostra Lopez-Ruiz (2007), Shultz (1973) nos sugere pensar o consumo como investimento em capital humano, ou seja, um investimento do homem sobre si próprio a fim de garantir o acesso aos valores e demandas que, em nosso caso, estão sendo propulsadas pela pós-modernidade. Silvia Viana (2011), também faz pontuações a respeito do investimento em capital humano. A autora enfatiza [...] uma mutação ocorrida no mundo do trabalho, e, em consequência, na esfera do consumo graças à teoria, e principalmente a prática, do capital humano. As mercadorias deixaram de ser tidas como coisas a serem gastas, como algo que é exaurido no uso; cada um dos produtos que usamos já é também, ao mesmo tempo, um investimento em nosso capital. (VIANA, 2011, p. 97)

Dessa forma, consumir valores éticos como os de comunialidade em meio ao trabalho poderia ser considerado como uma forma de estar investindo no aumento de oportunidades de conexão com indivíduos que passam a partilhar desses mesmos significantes. Assim como afirma Lopez-Ruiz (2007), O consumo investimento (e não a poupança) é o que nos dá a possibilidade, se não de mobilidade social, pelo menos de continuar pertencendo a mesmo grupo social. Se

57

deixamos de investir (consumir) temos alto risco de não ter nada no futuro: qual será nosso capital humano? Que experiência teremos capitalizado? (LOPEZ-RUIZ, 2007, p. 240)

No entanto, cabe algumas problematizações. Tanto o investimento quanto o consumo podem ser entendidos como práticas baseadas em um desejo, que por sua vez pode ser mobilizado cotidianamente ou em determinadas ocasiões. O investimento, ao nosso entender, estaria no fato de garantir a disponibilidade de tais itens, ou seja, de ter impresso em suas trajetórias a experiência, mesmo que pontual e adquirida de forma monetária, o acesso aos seus conteúdos simbólicos, sejam eles utilizados/colocados em permanentemente ou em situações pontuais no futuro. Afim de refletirmos sobre a dimensão do investimento e a do consumo, observemos o gráfico que nos diz sobre a sociabilidade dos coworkers fora do espaço de trabalho:

Gráfico 17. 2º Survey Global sobre Coworking

Com base no gráfico acima, podemos ver que, por mais que o coworking seja um ambiente que enfatiza as relações entre as pessoas, só se pratica o valor comunialidade ou coletividade enquanto no ambiente de trabalho e por causa desse mesmo ambiente. Quando perguntados se existe interação entre os membros fora do espaço do coworking, em linhas gerais, a maioria dos membros responderam que “raramente” ou “nunca” estabelecem encontros fora desse ambiente. Esse dado nos mostra a que as relações e compartilhamento de 58

informações ou projetos estão fixos ao espaço de coworking e que poucas chances existem de se conduzir uma maior comunialidade, ou qualquer outro valor preconizado entre os membros também fora desses ambientes. Isso nos possibilita pensar que, o valor coletivo só se faz útil enquanto no espaço de coworking, uma vez que a maioria dos coworkers não estabelecem contato fora do espaço. A flexibilidade também é uma demanda desses coworkers e busca-la tornou-se crucial para a execução de seus projetos. No entanto, mediante a essa visualização e fazendo uma relação com o gráfico anterior, podemos dizer através desses gráficos que a flexibilidade buscada pelos seus membros relaciona-se muito mais com o âmbito espacial e temporal do que com a possibilidade de vivenciar o compartilhamento de ideias e informações com diversas pessoas. Assim como os valores elencados acima, trata-se de um valor muito mais respectivo a composição espacial do ambiente de coworking do que às pessoas do local.

Gráfico 18. 2º Survey Global sobre Coworking

59

Gráfico 19. 2º Survey Global sobre Coworking

Gráfico 20. 2º Survey Global sobre Coworking

60

Dessa forma, comparando o gráfico 17 com os seguintes 18, 19 e 20, podemos ver que valores como a flexibilidade e o compartilhamento são acessados quando relacionados ao ambiente de coworking, no entanto não extrapola em direção à vida social dos coworkers. Tal perspectiva foi evidenciada na entrevista. Quando perguntado sobre “qual tipo de flexibilidade mais te interessou a princípio quando você procurou saber mais sobre o coworking: de horários, de locais, número de pessoas compartilhando o espaço, ou algum outro?” A.C, responde: De horário, e local (A.C, 26 anos, 2014) Ademais, mais do que uma flexibilidade e potencialidade de ação real entre os membros, esta condição se limita às oportunidades de ter possibilidades de conexão, e não de realizá-las em si, como se essa fosse uma dimensão a qual importa mais existir e manter, do que prioritariamente acessar e colocar em prática. O que interessa é ter contatos disponíveis e não necessariamente concretizar ações a partir deles. Nessa perspectiva, portanto, o investimento estaria no fato de garantir a si valores que possam em determinadas ocasiões serem consumidos, como se fossem fichas que, apesar de existirem na mão do jogador, são consumidas no jogo apenas quando na sua interpretação for necessária. Seguindo nessa reflexão sobre investimento, quando perguntado sobre as experiências que o coworking proporcionou a nível profissional e social V. R, 27 anos, responde: Os contatos entre clientes é uma vantagem interessante. Propiciam a ampliação do ‘networking’. (V.R, 27 anos, 2014) No entanto, o que nos pareceu como mais interessante nesse ponto da análise do 2º survey, é que esses dados expostos acima mudam de figura quando as respostas são discriminadas entre autônomos, empresários e empregados que fazem parte do coworking. Torna-se possível, portanto, diagnosticar algumas tendências em relação ao consumo e ao investimento em meio a essas diferentes categorias. Vale lembrar que a categoria “autônomo” pode incluir tanto freelancers como empreendedores46. Observamos os gráficos abaixo:

Nota: essa distinção é importante pois, apesar de ambos serem autônomos, os freelancers acessam os espaços de coworking mais esporadicamente do que os empreendedores uma vez que seus trabalhos são frutos de contratações temporárias. 46

61

Gráfico 21. 2º Survey Global sobre Coworking

Gráfico 22. 2º Survey Global sobre Coworking

62

Gráfico 23. 2º Survey Global sobre Coworking

Por meio dos gráficos acima, podemos ver que os preceitos de comunialidade, interdisciplinariedade, conectividade, flexibilidade e compartilhamento são mais requeridos em meio aos empresários do que em meio aos autônomos, e em algumas ocasiões como mostra o gráfico 21, ainda menor entre os empregados. Isso nos leva a crer que estes discursos estão sendo mais reproduzidos por gestores de empresas e projetos, nesse caso, empresários, do que pelos profissionais autônomos e empregados. Tal fato nos mostra que, por parte dos profissionais autônomos e empregados há uma necessidade de liberdade individualista, privada e autointeressada às suas especificidades em relação ao trabalho que realiza. O gráfico 22 também nos traz componentes interessantes para ilustrarmos essa constatação. Vemos que o único item que se mantém abaixo por parte dos empresários (nesse caso, menos interessante para eles) quando relacionado entre as três categorias é o da localização. Diferente para os autônomos e empregados, que enxergam a localização como algo que lhes promove autonomia. Além disso, no gráfico 23 podemos ver que 70% dos coworkers autônomos preferem trabalhar sozinhos. Já em relação aos empregados há uma preferência pela divisão de responsabilidades. O fato de pagarem para fazer parte de um espaço que vende em seu conceito os aspectos da flexibilidade, colaborativismo, compartilhamento, nem sempre ativam no plano real esses componentes, fazendo parte somente da construção de mais patamares de uma subjetividade capitalística. É a compra de um discurso que traz autenticidade no que tange a auto-descrição do indivíduo em sociedade. Fazer parte de organizações colaborativistas, sentir-se ativo e em posições éticas, nem sempre inserem responsabilidade prática e direta com questões sociais ou 63

humanistas, mas muitas vezes pode ser intermédio para a realização de estratégias capitalísticas que visam cada vez mais interiorizar-se em meio a subjetividade. É assim que o capitalismo, no nível do consumo, incorpora a herança de 68, a crítica do consumo alienado: a experiência autêntica tem importância. Uma campanha recente dos hotéis Hilton consiste numa afirmação simples: “As viagens não nos levam apenas de A para B. Elas deveriam também nos tornar pessoas melhores”. Há apenas uma década, alguém imaginaria um anúncio desses? Não também por essa razão que compramos alimentos orgânicos? Quem realmente acredita que maçãs “orgânicas” meio podres e muito caras são mais saudáveis que as variedades não orgânicas? A questão é que, ao comprá-las, não estamos apenas comprando e consumindo, estamos fazendo algo significativo: estamos mostrando nossa consciência global e nossa capacidade de nos preocupar, estamos participando de um projeto coletivo... A mais recente expressão científica desse “novo espírito” é o surgimento de uma nova disciplina: os “estudos da felicidade”. No entanto, como é possível que em uma época de hedonismo espiritualizado, em que o objetivo da vida é definido diretamente como felicidade, o número de pessoas com ansiedade e depressão esteja explodindo? É o enigma dessa autossabotagem da felicidade e do prazer que torna a mensagem de Freud mais pertinente do que nunca. (Žižek, 2011, 54-55)

Vemos que por parte dos empresários, há uma necessidade de investir no ideário da liberdade compartilhada, conectiva, e promove-la, uma vez que é dessa dinâmica que sobrevive o capitalismo conexionista e informacional da pós-modernidade dos quais eles, de certa forma, são dependentes e reprodutores. No plano dos profissionais autônomos e empregados a rede é acessada conforme interesses específicos, mediante projetos individuais e demandas objetivas, desejos que podem ter vínculo em uma subjetividade singular ou capitalística. Durante o trabalho etnográfico foi visível uma maior participação dos empresários nas interações cotidianas do espaço, eles ficavam mais tempo no local, ao passo que os autônomos, apesar de terem acesso em tempo integral, acessavam o espaço em horários mais esparsos e específicos mediante suas necessidades. No entanto o discurso acerca da comunialidade, conexão com o próximo, compartilhamento de informações etc não deixam de existir entre eles, apenas não são mobilizados como os fazem os empresários. Nestes últimos, podemos ver que o lastro da cartilha do neomanagement é maior, pois existe uma coerência maior entre o discurso conexionista e as dinâmicas que estabelecem dentro dos espaços de coworking47, uma vez que Cabe aqui colocarmos mais algumas observações sobre o neomanagement, pontuadas por Pelbart: “(…) Cada qual deveria descobrir seu potencial específico no interior de uma estrutura mais maleável, com conexões mais abertas, mais ágeis, mais desenvoltas. Os manuais de management que os autores consultaram insistem numa palavra-chave: conexão. O poder de conexão, a capacidade de conectar-se, com pessoas no seu meio de trabalho, com pessoas de outros meios, com pessoas de outros universos, ampliando suas informações, seu horizonte, sua capacidade de navegação no magma de oportunidades, sua possibilidade de inventar projetos interessantes. O que se desenha aí, através desse estímulo de uma navegação mais aberta, a uma maleabilidade sem precedentes, é o que os autores chamam de um capitalismo em rede, um capitalismo conexionista. (…) Trabalho em rede, equipes autoorganizadas, nova função do manager, onde não é propriamente o diretor que manda, calculista e frio administrador, mas aquele líder visionário e intuitivo, capaz de catalisar uma equipe, animá-la, inspirar confiança, comunicar-se com todos, com uma intuição criativa – um humanista. É o homem da rede, da complexidade, do 47

64

a vitalidade de seus projetos depende desse discurso. Pude observar a construção e o encaminhamento dessas redes enquanto realizei o trabalho etnográfico. É preciso levar em consideração que a grande maioria dos membros os quais tive contato se encaixam na categoria “empresários”, uma vez que lideram suas próprias iniciativas, sendo que alguns têm empregados. É visível que entre eles existe uma cordialidade, uma comunicabilidade intensa no momento em que estão dentro do espaço. Desde a hora que chegam, até a hora de partirem, procuram compartilhar ideias e soluções, saber como está desenvolvendo os trabalhos/projetos dos outros membros, pedir informações e ajuda em algumas questões, enfim, estar em constante contato com as realizações dos membros locais. Observei que em muitos desses contatos se realiza transações comerciais dos produtos oferecidos pelos mesmos. Em uma das vezes que estive em campo, uma das coworkers me revelou espontaneamente o quanto sua carreira profissional havia alavancado após ela ter integrado o espaço e isso se deve ao networking que foi possível a partir de então. Pensando sobre esses aspectos, podemos perceber que a integração entre esses membros, principalmente quando se trata de empresários e empreendedores autônomos, se faz muito necessária, uma vez que é a partir dela que podem surgir as melhores oportunidades de negócio. Trata-se de um investimento. A rede, portanto, nessa situação é crucial para o funcionamento da vida profissional. Members’ work has improved by coworking because they can now outsource tasks to one another. There's probably a member who loves to do what you hate! I've seen a web architect subcontract out proposal writing to a writer, and a writer subcontract out graphics to a designer. (A.K, 2011) 48 Por outro lado, ainda na observação etnográfica, pude observar uma conduta mais contida, reservada, por parte dos empregados. Não que essa cordialidade não existisse por parte deles, no entanto, essa potência de integração não era tão exaltada entre eles. Além desses aspectos, vemos claramente a importância da compressão e desencaixe espaço-tempo presente no ideário da pós-modernidade (HARVEY, 2012; GIDDENS, 1991) em vigor nos interesses mantidos pelos seus membros, sejam eles investidos ou consumidos. Um

mundo reticulado. É o homem da mobilidade, que atravessa fronteiras, geográficas, culturais, profissionais, hierárquicas, capaz de estabelecer contatos pessoais com atores muito diferentes dele.” (PELBART, 2003, p. 9798) 48 Tradução nossa: “O trabalho dos membros tem melhorado pelo coworking porque agora eles podem terceirizar tarefas uns para os outros. Provavelmente há um membro que adora fazer o que você detesta! Eu vi um desenvolvedor de websites contratar um escritor para escrever apresentações de projetos, e um escritor contratar gráficos de um designer”. Working in the unoffice (2011, p. 1). Obra disponível em: https://www.goodreads.com/ebooks/download/14745356-working-in-the-unoffice. Acesso em: 23/09/2014.

65

dos meus interesses em campo era saber o quanto essa dinâmica flexível de tempo-espaço já se fazia sentir na vida dos coworkers antes de integrarem o espaço. A partir da observação e das conversas com o manager do espaço, pude constatar que a maioria deles não havia tido muitos trabalhos anteriormente, no entanto, isso pode ser devido à pouca idade de seus membros, a qual gira em torno de 30 anos. Se comparado com demais experiências de coworking ao redor do mundo, vemos que há uma maior propensão desses indivíduos terem passado por várias empresas antes de adotarem o coworking como estilo de trabalho. Em um dos relatos que encontramos no Working in the Unoffice, ilustra essa condição: “We rarely work for a single company for our entire lives anymore, and often reinvent ourselves with multiple careers, networking is more crucial than ever.” 49 (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 1) No entanto, devido à pouca idade dos coworkers, o que vi durante o tempo em que estive em campo, foram profissionais com pouco tempo no mercado de trabalho, mas nem por isso menos portadores de toda dinâmica ideológica que vimos até então. Durante o trabalho de campo, um dos membros me fez um relato muito interessante. Trata-se de um empreendedor na área de telecomunicações. Ele veio até mim, me entregou seu cartão e se apresentou. Aproveitei para fazer algumas perguntas. Ele tem uma starup, mas na verdade, como relatou já contrata pessoas50. Ele já trabalhou 8 anos em uma grande empresa da cidade, mas resolveu sair pois segundo ele “as pessoas faziam seus nomes em cima do empenho dos outros”. Me relatou que nesse meio tempo esteve trabalhando no Rio de Janeiro e em São Paulo, ainda sim contratado por esta mesma empresa. Tratava-se de um trabalho remoto e quando a empresa necessitava ele retornava para a cidade local. Mas o fato que mais me chamou a atenção foi o seu sotaque. Questionei ele se ele era de Uberlândia, pois o sotaque não era parecido com o sotaque uberlandense e disse que parecia ser de São Paulo. Achando a pergunta engraçada, ele me revelou que era gaúcho e que seu sotaque se deve ao fato, em suas palavras, de já estar “desconstruído”. Pressupõe-se, dentro do jogo da gestão empresarial, que tal desconstrução é algo benéfico, algo fruto de um investimento, uma ficha que, quando consumida permite desenvolver dinâmicas flexíveis de trabalho. Giddens (1991) deixa evidente a importância dessas outras relações com o tempo e o espaço como processo fundamental para o extremo dinamismo da modernidade e em especial, do plano empresarial. Em suas palavras, justificamos tal importância a respeito da separação entre tempo e espaço para compreender como essa flexibilidade, influi em suas adesões Tradução nossa: “Nós raramente trabalhamos para uma única empresa por toda a vida e estamos frequentemente nos reinventando com múltiplas carreiras, o network é mais crucial que nunca”. 50 Nota: No entanto, ele não quer mudar o nome de startup, pois segundo ele isso acomoda as pessoas. 49

66

informativas e formulação de interesses e capacidades, seja no campo micro das estruturas em rede, ou no plano macro do contexto democrático da sociedade em que se insere. Ainda em campo, durante uma conversa com uma coworker que me revelou a importância do networking para seu trabalho, perguntei a ela se haveria a possibilidade de conversarmos mais sobre o tema e a vivência dela no espaço e qual seria o horário mais oportuno para isso. Ela prontamente me respondeu, de forma um tanto quanto alegre, que os horários para ela eram imprevisíveis, portanto, não haveria como definirmos quando essa conversa aconteceria. A satisfação que demonstrou nessa fala nos permite refletir igualmente acerca da flexibilidade como incremento da liberdade e subjetividade em dias de hoje: Em primeiro lugar, ela é a condição principal do processo de desencaixe que passo a analisar de maneira breve. A separação entre tempo e espaço e sua formação em dimensões padronizadas, vazias, penetram as conexões entre a atividade social e seus encaixes nas particularidades dos contextos de presença. As instituições desencaixadas dilatam amplamente o escopo do distanciamento tempo-espaço e, para ter esse efeito, dependem da coordenação através do tempo e do espaço. Este fenômeno serve para abrir múltiplas possibilidades de mudança liberando das restrições dos hábitos e das práticas sociais. Em segundo lugar (…) as organizações modernas são capazes de conectar o local e global de formas que seriam impensáveis em sociedades mais tradicionais, e, assim fazendo, afetam rotineiramente a vida de milhões de pessoas. Em terceiro lugar, a historicidade radical associada à modernidade depende de modos de inserção no tempo e no espaço que não eram disponíveis para as civilizações precedentes. (…) Um sistema de datação padronizado, agora universalmente reconhecido, possibilita uma apropriação de um passado unitário, mas muito de tal história pode estar sujeito a interpretações contrastantes. Em acréscimo, dado o mapeamento geral do globo que é hoje tomado como certo, o passado unitário é um passado mundial; tempo e espaço são recombinados para formar uma estrutura histórico-mundial genuína de ação e experiência. (GIDDENS, 1991, p. 30-31)

Esse trecho vai ao encontro da fala dessa coworker. Giddens (1991) nos permite compreender o quanto o desencaixe do espaço em relação ao tempo permite que agora subjetividades construam com mais liberdade suas interpretações a respeito de fatos e contextos históricos, bem como, têm a possibilidade de recombinar e formular ações a partir de experiências que agora não mais estão restritas às práticas sociais fixas. Compreendemos que o ganho que podemos encontrar nessa constatação está no que diz respeito ao regimento das ações e experiências diversas em um mesmo contexto51. Mas o que isso tem a ver com as nossas problematizações acerca do consumo e do investimento? O que queremos aqui é deixar evidente que esse novo momento da configuração econômica instaura consigo aquilo que teóricos da pós-modernidade chamam de sociedade de Nota: No entanto, não deixamos de visualizar vários entraves para que esse desencaixe (e quando o dizemos, levamos em conta os atributos informacionais que o propicia), provedor da flexibilidade contemporânea, seja considerado também como catalizador das liberdades individuais quando tratamos da sua importância nas questões de representatividade em meio a sociedade. 51

67

consumo, a qual passa a fazer parte da própria dimensão cultural humana. Trata-se, portanto, de um momento onde o capitalismo agora é multinacional e como já ressaltou Perry Anderson (1999) – a partir das observações de Frederich Jameson –, marcado pela (…) explosão tecnológica da eletrônica moderna e seu papel como principal fonte de lucro e inovação; o predomínio empresarial das corporações multinacionais, deslocando as operações industriais para países distantes com salários baixos; o imenso crescimento da especulação internacional; e a ascensão dos conglomerados de comunicação com um poder sem precedentes sobre toda mídia e ultrapassando fronteiras. Esses fenômenos tiveram profundas consequências em cada dimensão da vida nos países industriais avançados – nos ciclos de negócios, nos padrões de emprego, nas relações de classe, nos destinos regionais, nos interesses políticos. Numa perspectiva mais ampla, porém, a mudança mais fundamental de todas está no novo horizonte existencial dessas sociedades. (…) Num universo assim purgado de natureza, a cultura necessariamente expandiu-se ao podem de se tornar praticamente coextensiva à própria economia, mas não apenas como base sintomática de algumas das maiores indústrias do mundo (…) mas de maneira muito mais profunda, uma vez que todo objeto material ou serviço imaterial vira, de forma inseparável, uma marca trabalhável ou produto vendável. A cultura nesse sentido, como inevitável tecido da vida no capitalismo avançado, é agora a nossa segunda natureza. (JAMESON apud ANDERSON, 1999, p. 66-67)

No entanto, é preciso deixar evidente que alguns autores vêm criticando a conceituação de nossa sociedade como uma sociedade do consumo. Viana (2011, p. 97) considera um erro considerarmos nossa sociedade como uma “sociedade do consumo”. Para ela, “melhor seria chama-la de ‘sociedade do investimento’, na qual não há a protelação do gozo ou queimor da satisfação imediata, ou melhor, ambos os aspectos assumem uma nova relação”. Assim como a autora, Shultz (1973) já havia afirmado que “muito daquilo a que damos o nome de consumo constitui investimento em capital humano” (SHULTZ, 1973 apud LOPEZ-RUIZ, 2007)52. O que a teoria do capital humano consegue fazer é transformar o consumo num investimento e, portanto, o consumidor num investidor. Estabelece-se, assim, uma nova relação entre o presente e o futuro. [...] A tese aqui proposta é, portanto, de que a diluição de uma diferença clara entre consumo e investimento, promovida pela teoria do capital humano, torna-se um elemento fundamental para a compreensão da lógica sobre a qual funciona a sociedade atual e dos valores que a orientam. É a partir da área difusa que se cria entre o que se entende por consumo e o que se entende por investimento, que se torna possível ordenar e legitimar socialmente propriedades cambiantes. É a partir dessa vaguidade que se articula e se reafirma a cultura de consumo – que em muitos casos se apresenta como uma cultura de investimento. (LOPEZ-RUIZ, 2007, 225)

Observa-se que as novas tecnologias, principalmente as vinculadas aos aspectos Lopez-Ruiz nos ajuda a compreender a diferenciação entre investimento e consumo proposta por Shultz. “No começo dos anos 1960, [...] Shultz tentava uma resposta à pergunta de como diferenciar gastos em consumo de gastos em investimentos. A primeira proposta foi pensar em três classes de gastos: a) as despesas que satisfazem as preferências do consumidor e que de forma nenhuma aumentam as capacidades em discussão, despesas estas que representam consumo puro; b) as despesas que aumentam as capacidades e que não satisfazem nenhuma preferência subjacente ao consumo e por isso representam puro investimento; e c) as despesas que têm os dois efeitos, o de ser parte consumo e parte investimento 52

68

informacionais, e sua distribuição em meio as sociedades, auxiliaram na condição de que o espaço e o tempo não mais fossem compreendidos de maneira estática e pragmática. Podemos dizer que, de uma perspectiva de investimento, a intensa circulação de informações e a proliferação de mecanismos que possibilitaram acessá-la, permitiu que os indivíduos ganhassem a partir de então toda uma dinâmica e fluidez com a qual o passaram a identificar suas subjetividades53 e organizar novos modelos relacionais. Dessa forma, consumir modelos como o coworking, que se vale de informações e tecnologias tanto operacionais quanto sociais, é muitas vezes compreendido pelos coworkers como uma forma de investimento principalmente em capital humano. Esse aspecto é visível no depoimento de S.A quando pergunto sobre os motivos que o levaram a integrar um espaço de coworking. Really, it was a number of different factors that motivated me to be a part of co+Lab; a desire to connect with other professionals and share, the need for independence balanced with the need for membership in the community, the potential of finding better opportunities for my business to grow. (S.A, 36 anos, 2014) 54 No entanto, por outro lado e como já havíamos pontuado anteriormente, ao colocarmos em debate conceitos como consumo e investimento devemos levar em conta que ambas dimensões, sejam elas exauridas ou não, agregam em si práticas baseadas em determinados interesses ou desejos. A diferença existente entre o consumo e o investimento tange, ao nosso entender, muito mais às questões relativas ao tempo despendido para a realização de uma determinada ação interpretada como benefício para o indivíduo. Nesse sentido, o fragmento de relato acima nos ajuda a refletir sobre o espectro desse novo momento, ou seja, da pósmodernidade e salientar que toda a mudança das organizações econômicas e sua fundamentação no aspecto cultural da sociedade, bem como a nova relação com o tempo e o espaço que passa a ser exaltada como realidade a ser vivida, acabaram por influenciar as construções das identidades e comportamentos, e portanto, das subjetividade dos indivíduos, seus desejos e, consecutivamente, a formatação de seus interesses políticos55 e do que compreendem como

Guattari. F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992 (p. 15). Tradução nossa: “Na realidade, foi um número de diferentes fatores que me motivou a fazer parte do co+Lab; um desejo de se conectar com outros profissionais e compartilhar, a necessidade de independência balanceada com a necessidade de filiação na comunidade, o potencial de encontrar oportunidade melhores para o crescimento do meu negócio.” 55 Aqui devemos posicionar uma pontuação antropológica, a qual nos servirá de orientação por todo nosso trabalho e isso porque, como observou Clifford Geertz (1989, p. 24) “o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. De fato, esse não é o seu único objetivo – a instrução, a diversão, o conselho prático, o avanço moral e a descoberta da ordem natural no comportamento humano são outros, e a antropologia não é a única 53 54

69

investimento e consumo. Uma fragilidade e fragmentação relativa às interpretações da vida, inclusive do que seria tratado como benefício passa ser vivenciado. Essa fragilidade é mencionada por Anderson (1999): (…) A vida psíquica torna-se debilitadamente acidentada e espamódica, marcadas por súbitas depressões e mudanças de humor que lembram algo da fragmentação esquizofrênica. (…) Significativamente, as vacilações do investimento libidinal da vida privada correspondeu uma erosão dos marcadores de geração na memória pública, com as décadas que se seguiram aos anos 60 tendendo a nivelar-se numa sequência desinteressante classificada sob o rol comum do pós-moderno. Mas se essa descontinuidade enfraquece o senso de diferença entre os períodos no nível social, seus efeitos estão longe de monótonos no nível individual. Aí, ao contrário, as polaridades típicas do sujeito vão da exaltação da “corrida às mercadorias”, do eufórico entusiasmo do espectador ou consumidor, para a depressão do “vazio niilístico mais profundo do nosso ser”, como prisioneiros de uma ordem que resiste a qualquer outro controle ou significado. (ANDERSON, 1999, p. 68-69)

Como tratamos nosso tema por meio do viés dessa fragmentação e ressignificação do espaço e do tempo, somos levados a pensar sobre as vantagens do consumo em relação ao investimento. Tendo em vista que o investimento trata-se de um benefício que se retém, a fim de se desenvolver um retorno contínuo ou a longo prazo, no presente ou no futuro, acreditamos que o consumo se encaixaria melhor dentro de uma sociedade onde não só a espacialidade e o tempo apresenta um fluxo instável, mas a própria subjetividade sofre essa fragmentação e instabilidade diante de contextos e situações diversas. O investimento dentro de uma sociedade nesses moldes, diferente do acesso imediato que o consumo proporciona, seria mais caro e não daria conta de suas imprevisibilidades. Adiciono a essa reflexão o fato de que, uma vez que trato sobre a sujeição das subjetividades e a própria modelagem da liberdade, as reflexões que tenho devem ser baseadas no que tange a adoção do termo consumo ao invés de investimento. Lopez-Ruiz (2007) pontua em vários momentos de sua obra a relação que teóricos do capital humano estabelecem entre capital humano – investimento – satisfação. Dessa forma, ao problematizarmos essa relação, poderíamos dizer que quando falamos sobre investimento estamos falando diretamente sobre benefícios, os quais podem ser adquiridos imediatamente, mas que têm em vista retornos continuados ou futuros. E aqui se estabelece uma relação com o tempo de realização que se dá de forma diferente entre as duas dimensões. Considerar que o que temos em relação à análise de coworking é investimento, pressupõe que acreditamos em uma consciência racional presente disciplina a persegui-los. No entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se adapta bem. Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade.

70

em uma interpretação do que pode trazer benefício mediante determinado investimento. No entanto, como estamos lidando com o debate sobre a construção de subjetividades coerentes com o sistema de acumulação do capital na atualidade, podemos dizer que a interpretação do que é ou não benefício decorre de uma racionalidade que faz suas escolhas alinhada aos moldes do capital. O benefício aqui não é algo conquistado por meio de um investimento em si, mas pelo consumo de uma experiência, um valor que, no caso do coworking, tem sua espacialidade e subjetividade determinada para acontecer, sendo essas ambas esferas, condicionada aos preceitos do trabalho flexibilizado. No entanto, essa afirmação não nos permite tomarmos apenas o consumo simbólico como central. Quando comparamos os empresários aos coworkers empregados e autônomos, podemos ver que nos primeiros existe um discurso mais intenso acerca dos valores elencados no coworking, uma vez que estes se encontram mais alinhados às tendências do neomanagement na condução de seus projetos. Diferente dos trabalhadores autônomos que pagam para consumir a experiência imediata de estarem em um espaço que proporciona toda flexibilidade, autonomia e compartilhamento oferecidos pelo coworking, os empresários garantem a médio/longo prazo articulações que lhes são convenientes a partir desses mesmos valores. O ponto no qual queremos chegar é que pode-se haver o investimento, tendo em mente que isso se trata de um investimento em prol de um benefício. Mas no entanto, mesmo que alcançado aquilo que é interpretado como “benefício”, ou seja, mesmo que ocorra a satisfação, seja ela no imediatismo do consumo ou no longo prazo do investimento, esse benefício pode em nosso caso pode ser também considerado como um resultado contrário, ou seja, tanto o consumo quanto o investimento em flexibilidade e seu entendimento como liberdade, pode ser problematizado como dominação. Em linhas gerais, nossa intenção é mostrar que aqui se contextualiza um novo sujeito, o qual não diríamos estar “morto” ou impossibilitado de ação ou racionalidade, mas mais do que isso, encontrando-se antes, enclausurado na ilusão de sorver possibilidades capazes de compensar, de forma material ou simbólica, em uma personalidade genuína, única, e o que é mais importante, ressignificando as estratificações totalizantes de outrora. O que queremos deixar evidente é que, por estar relacionada à dimensão econômica, a flexibilidade também se introduz como parte do comportamento desse novo sujeito, ou seja, presente como um componente cultural – visível mais que nunca na pós-modernidade – a ser conferido a todas dimensões da vida em sociedade. Anteriormente, nesse mesmo trecho, Harvey (2012) já havia 71

desenvolvido que: Um sistema particular de acumulação pode existir porque “seu esquema de reprodução é coerente”. O problema, no entanto, é fazer os comportamentos de todo tipo de indivíduos […] assumirem alguma modalidade de configuração que mantenha o regime de acumulação funcionando. Tem de haver, portanto, uma materialização do regime de acumulação, que toma a forma de normas, hábitos, leis, redes de regulamentação etc. que garantam a unidade do processo, isto é, a consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução. Esse corpo de regras e processos sociais interiorizados tem o nome de modo de regulamentação. Há duas amplas áreas de dificuldade num sistema econômico capitalista que têm de ser negociadas com sucesso para que esse sistema permaneça viável. (HARVEY, 2012, p.117)

Assim, como observou Sennett (2009, p. 09) “essa ênfase na flexibilidade está mudando o próprio significado do trabalho, e também as palavras que empregamos para ele”. Hoje se usa a flexibilidade como outra maneira de levantar a maldição da opressão do capitalismo. Diz-se que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a flexibilidade dá às pessoas mais liberdade para moldar suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos controles, em vez de simplesmente abolir as regras do passado – mas também esses novos controles são difíceis de entender. O novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível. (SENNETT, 2009, p. 10)

O que buscamos deixar evidente através da análise do coworking é que este nos permite fazer relações com as organizações em rede no plano das sociabilidades do mundo do trabalho, podendo levantar questões a serem refletidas também sobre outras dimensões. Dessa forma o que se faz útil para análise de redes é visualizar em que medida o compartilhamento não só material, mas de informações, interesses, objetivos, singularidades e subjetividades dos indivíduos que se encontram nesses espaços micro, influencia para o ganho de autonomia na construção de projetos emancipatórios capazes de representar verdadeiramente seus desejos e valores em meio a sociedade, ou seja, em seu plano macro. Em resumo, buscamos nesse primeiro capítulo problematizar, a partir da experiência do coworking, o quanto a possibilidade de uma conexão em rede, ou por melhor dizer, o compartilhamento de informações presentes em torno de configurações flexíveis de sociabilidade promovem uma maior potência de participação desses indivíduos em meio ao contexto social que habitam, ou seja, promovem sua autonomia quanto indivíduo em meio a sociedade, no sentido de emancipar seus objetivos e projetos em relação à construções dominantes e assim, legitimar os valores que estima e preconizam dentro desses espaços. Como próxima etapa, encaminharemos uma breve genealogia sobre as redes, buscando observar quanto suas construções em meio a história se relaciona diretamente com os contextos em que estão inseridas. Essa observação nos dará base para argumentar em favor de uma teoria 72

das redes que não apenas focalize suas potencialidades, mas principalmente os entraves e, principalmente, as falácias que pode estabelecer. CAPÍTULO 2 – UMA BREVE TRAJETÓRIA DAS REDES NAS CIÊNCIAS SOCIAIS E SUA RELAÇÃO COM O MUNDO DO TRABALHO As considerações acerca das redes na dimensão da vida social antecedem as que nos são dadas com familiaridade nos dias atuais, ou a qualquer definição construída já no século XX. O termo “rede”, goza, actualmente, uma popularidade crescente (Mercklé, 2004:3), é abundantemente usado na linguagem corrente, académica ou política e designa uma grande variedade de objectos e fénomenos. No entanto, está longe de ser um neologismo: a palavra é antiga e a histórica de seus usos descreve um percurso desde o século XVII (Mercklé, 2004; Ruivo, 2000). O termo foi-se distanciando dos objectos que servia inicialmente para descrever e ganhando uma dimensão de abstracção que o fez penetrar nos mais diversos domínios. Ouvimos, hoje, falar de redes em todas as áreas: no território, nas empresas, no Estado, no mercado, na sociedade civil, nas universidades, na investigação, na prestação de serviços. (PORTUGAL, 2007, p. 1)

Até o final do século XVIII a concepção de rede estaria ainda presa a uma origem orgânica, que a aproximava do imaginário acerca do corpo humano. Regina Maria Marteleto (2007) em dois de seus artigos56 sobre o tema, complementa que, Até o fim do século XVIII, de fato, a noção de rede se desenvolveu numa relação estreita com o organismo e o corpo, até adquirir sua concepção moderna, definindo uma matriz técnica de arranjo do território, quando ele se separa do fato observado e da sua conivência com o corpo físico para tornar-se um objeto construído e autônomo: “com efeito, conjugando o seu caráter arcaico – que se refere ao corpo humano – e a acepção moderna, abstrata, a rede é uma noção transversal por excelência para o domínio da comunicação... Ela freqüenta e, de certa forma, constrói o imaginário técnico e social do mundo contemporâneo” (BAREL; CAUQUELIN, 1993, p. 274 apud MARTELETO, 2007).

No século XVIII as redes passam a ser estudas por matemáticos, sendo esse estudo classificado como estudo dos grafos. Os primeiros estudos de grafos foram realizados pelo matemático suíço Leonhard Euler, em 173657. Desde Euler, a teoria dos grafos cresceu continuamente, até se tornar um dos principais ramos da matemática e transbordar para sociologia e antropologia, engenharia e ciência da computação, física, biologia e economia. Cada área, portanto, tem sua própria versão de uma teoria das redes, assim como cada área tem sua própria forma de agregar comportamento individual e coletivo. (WATTS, 2009, p. 11)

MARTELETO, R. M. Análise de rede sociais – aplicação nos estudos de transferência da informação. Ci. Inf., Brasília, v. 30, n. 1, p. 71-81, jan./abr. 2001 e MARTELETO, R. M. Informação, rede e rede sociais – fundamentos e transversalidades. Inf. Inf., Londrina, v. 12, n. esp., 2007. 57 Euler realizou um estudo onde buscava formular em um grafo a possibilidade de passear por todas as sete pontes da cidade Königsberg sem ter que cruzar a mesma ponte duas vezes. (WATTS, 2009, p. 11) 56

73

Como podemos ver, o conceito de rede perpassou por diversos campos científicos e culturais ao longo do tempo, diversificando seus significados de acordo com as disciplinas e seus respectivos discursos que o tomavam como viés (MARTELETO, 2007). Por isso, uma definição precisa da rede ainda deve ser trabalhada, e talvez nem deva existir de maneira rígida, uma vez que tal conceito é trabalhado por uma diversidade do pensamento científico e social. A diversidade dos estudos e a generalidade das áreas do pensamento baseados no entendimento das redes torna difícil e importante a definição precisa das redes, uma vez que podemos relacioná-la às mais variadas dimensões da vida: uma rede de amigos, empresas, computadores, áreas urbanas etc. Por isso, é importante que tenhamos em mente que não basta definirmos e classificarmos o que é ou não uma rede, mas também contemplarmos na análise o fato de que existem diferentes redes em todo o mundo que visam/proporcionam objetivos, interesses e resultados diversos. Esse trabalho de definição e observação das variedades de redes tem sido intensivamente promovido por uma nova ciência, a ciência das redes. (…) nos tranquilos corredores da Academia, uma nova ciência vem emergindo – uma ciência que fala diretamente aos momentosos eventos à sua volta. Na falta de nome melhor, chamamos essa nova ciência de ciência das redes. E, ao contrário da física das partículas subatômicas ou da macroestrutura do universo, a ciência das redes é a ciência do mundo real – do mundo das pessoas, amizades, boatos, doenças, modismos, empresas e crises financeiras. Se esta época específica da história humana tivesse de ser caracterizada de forma simples, poderíamos descrevê-la como o período mais altamente, globalmente e inesperadamente conectado que se tem notícia. E se a nossa era, a era da conectividade, deve ser entendida, precisamos primeiro saber como descrevê-la cientificamente; ou seja, precisamos de uma ciência das redes. (WATTS, 2009, p.01)

Não é nosso interesse nos prender sobre a teorização das ciências das redes. O que vale aqui é entender que um dos principais questionamentos dessa ciência nos será útil mais adiante quando buscaremos entender a formação, o desenrolar e a relação existente entre os interesses e valores individuais em meio a uma rede que no nosso caso se dá a partir do ambiente de trabalho, a exemplo do coworking. A ciência das redes busca padrões individuais e de interação capazes de explicar comportamentos de um grande sistema, ou por melhor dizer, coletivos (WATTS, 2009). Assim como observa François Dosse (2003), As redes são assim marcadas por uma forte heterogeneidade. Levá-las em consideração permite insistir sobre a importância daquilo que parecia até então exterior à ciência. Considerar o fato científico como expressão de uma rede permite testar a solidez e a novidade relativa desta. A noção de redes torna possível a compreensão dos efeitos de extensão, dos efeitos de escala. (DOSSE, 2003, p. 132)

O que cabe a nós neste trabalho é nos perguntar se existe algo de padrão nos comportamentos, personalidades e subjetividades que nos ajuda a prever um desenvolvimento 74

ou não da autonomia desses indivíduos – de maneira a emancipar e legitimar os interesses e valores por eles elencados – por meio da rede que estamos dispostos a analisar, tendo a compreensão de que A noção de redes sociais designa em geral um conjunto de métodos, conceitos, teorias e modelos das ciências sociais, com diferentes matizes disciplinares e epistemológicos, que conservam princípios comuns entre eles. O mais geral desses princípios consiste em considerar como objetos de estudo não os atributos dos indivíduos (idade, profissão, classe social, etc), mas as relações entre eles e as regularidades que apresentam a fim de descrevê-las, dar conta da sua formação e de suas transformações, analisar os seus efeitos sobre os comportamentos individuais. Nessa perspectiva uma rede social pode ser definida, de um modo geral, “[...] como sendo constituída de um conjunto de unidades sociais e das relações que essas unidades sociais mantêm umas com as outras, direta ou indiretamente, por meio de encadeamentos de extensões variáveis.” (MERCKLÉ, 2004, p. 4). Essas unidades, por sua vez, podem ser indivíduos, grupos informais ou estruturas mais formais como organizações, associações ou empresas. (MARTELETO, 2007, p. 12)

Visualizar a diversidade de estudos pelos quais a rede tem sido o objeto principal é interessante para evidenciarmos o quanto ela, por si, se configura como algo relativo e relacional, seja epistemológica ou empiricamente (MARQUES, 2005). Queremos salientar a entrada do conceito de rede nas formulações das ciências sociais, ou seja, as redes sociais. Os pioneiros dos estudos das redes sociais vêm da sociologia, da psicologia social, da antropologia. As suas bases teóricas, metodológicas e empíricas resultaram, em grande medida, da procura de soluções para problemas teóricos e empíricos que os investigadores não conseguiam resolver à luz dos quadros conceptuais dominantes nas suas disciplinas. (PORTUGAL, 2007, p. 3)

Apesar de ter sido incorporado relativamente cedo no campo da antropologia e sociologia – inicialmente nos anos 30 e 40 do século XX –, o conceito de rede ainda sim foi usado de maneira muito metafórica, sem busca estabelecer “relações entre as redes e o comportamento dos indivíduos que as constituem” (PORTUGAL, 2007, p. 4). Marques (2005) também faz observações sobre esse primeiro momento: A preocupação das ciências sociais com os efeitos dos padrões de conexões entre indivíduos existentes nas sociedades é bastante antiga e remonta pelo menos clássicos como Simmel (1980 [1972]). A análise sistemática desses padrões, entretanto, baseando-se em estudos empíricos detalhados, data das primeiras décadas do século XX, em especial dos trabalhos pioneiros de Jacob Moreno a respeito do que se denominou 'geografia psicológica' e, posteriormente, 'sociometria' (Freeman, 2004, p. 39). No campo mais específico das ciências sociais, o estudo sistemático de relações em contextos específicos foi introduzido pela Antropologia e pelos estudos de organizações a partir de 1930, e apenas nos anos de 1970 e 1980 alcançou a Sociologia e a Ciência Política (Scott, 1992; Freeman, 2004). (MARQUES, 2005, p. 43)

No entanto, na segunda metade do século XX, os estudos sobre a rede e sua relação com o ambiente social se alastraram e ganharam um amplo campo de debate dentro das ciências

75

sociais58. O conceito de rede social tem origem de duas vertentes dentro das ciências sociais: a Antropologia Social britânica, datada especialmente a partir da II Guerra Mundial, e a americana59. A diferença entre ambas é que a primeira se liga ao estudo das redes sociais no que tange a grupos restritos, já a americana buscava desenvolver a análise quantitativa, se aproximando mais de uma abordagem estrutural (PORTUGAL, 2007, p. 3-4). No entanto, no trecho abaixo, Watts (2009) nos ajuda observar que tanto a primeira como a segunda abordagem, ambas, guardam em si um tom estruturalista. (…) analistas de redes sociais desenvolveram dois grandes grupos de técnicas para pensar sobre as redes. O primeiro lida com a relação entre estrutura de rede – o conjunto observado de laços ligando os membros de uma população, de uma empresa, uma escola ou uma organização política – e a correspondente estrutura social, segundo a qual os indivíduos podem ser diferenciados por sua participação em grupos ou por papéis socialmente distintos. (…) Redes, de acordo com essa visão, são a marca registrada da identidade social – o padrão de relações entre indivíduos é um mapa das preferências e características subjacentes dos próprios indivíduos. (…) O segundo grupo de técnicas tem um sabor mais mecanicista. Aqui a rede é vista como um canal para a propagação de informações ou o exercício de influências, e o lugar de um indivíduo no padrão geral de relações determina a que informações essa pessoa tem acesso ou, correspondentemente, a quem ela ou ele está em posição de influenciar. O papel social de uma pessoa, assim, depende não apenas dos grupos os quais ela ou ele pertencem, mas também de sua posição dentro desses grupos. Como no primeiro caso, diversas métricas têm sido desenvolvidas para quantificar as posições de indivíduos na rede e correlacionar seus valores numéricos com diferenças observáveis de desempenho individual. (WATTS, 2009, p. 27)

As abordagens puramente em torno da estrutura tiveram grande privilégio nos estudos sobre as redes no passado. Essas abordagens pensavam as redes como estruturas cujas as propriedades eram fixas no tempo. No entanto, com o desenvolvimento dos estudos, das linhas “Durante a segunda metade do século XX, o conceito de rede social tornou-se central na teoria sociológica e deu azo a inúmeras discussões sobre a existência de um novo paradigma nas ciências sociais. No decorrer das últimas décadas, a sociologia das redes sociais constituiu-se como um domínio específico do conhecimento e institucionalizou-se progressivamente. Os sinais do seu dinamismo e da sua consolidação institucional são evidentes: inúmeros artigos publicados nas principais revistas de ciências sociais; organização de eventos científicos sobre a temática; criação de revistas especializadas na matéria – Connections, Social Networks e, mais recentemente, em 2002, a Revista Redes, em língua espanhola; lançamento, ainda nos anos 80, de uma colecção especializada dirigida por Mark Granovetter na Cambridge University Press; existência, desde o final dos anos 70, de uma associação internacional – International Network of Social Network Analysis (INSNA) – que reúne os investigadores na matéria, edita a revista Connections e, desde 2000, o Journal of Social Structure; existência de um fórum de discussão – SOCNET – que reúne mais de 1800 assinantes; desenvolvimento de programas informáticos que suportam os modelos teóricos e metodológicos desenvolvidos (o Ucinet e o Structure serão os mais conhecidos e divulgados); aparecimento progressivo de obras de divulgação pra público mais vastos – Scott (1991), Degenne e Forsé (1994), Lemieux (2000), Watts (2003), Lemieux e Ouimet (2004), Mercklé (2004)”. (PORTUGAL, 2007, p. 4) 59 Assim como observou Portugal (2007) em nota de rodapé de seu artigo Contributos para uma discussão do conceito de rede na teoria sociológica, é difícil que é o verdadeiro “pai” do termo rede social, bem como de suas teorias, conceitos e métodos. No entanto, existe uma conformidade no campo das ciências sociais em relacionar essa origem ao antropólogo social John Barnes. Ele teria sido o primeiro autor dentro das ciências sociais a cunhar o termo em uma de suas obras entitulada Class and Committees in a Norwegian Island Parish a partir da análise de uma comunidade pesqueira da Noruega, realizada na década de 50. 58

76

de análise e da própria contribuição de uma ciência voltada para as redes passou-se a levar em conta o fato de que as “redes são objetos dinâmicos não apenas porque coisas acontecem nelas, mas porque as próprias redes estão evoluindo e mudando no tempo, impelidas pelas atividades ou decisões desses mesmos componentes” (WATTS, 2009, p. 12). Um dos primeiros autores a tratar das relações indivíduo e sociedade sobre a perspectiva de uma interconexão ou interdependência dentro das Ciências Sociais foi Nobert Elias (1994). Elias já vislumbrava a abordagem do tema na obra O Processo Civilizatório, originalmente publicada em 1939. De acordo com Elias (1994) nessa obra, O entrelaçamento das dependências dos homens entre si, suas interdependências são o que os ligam uns aos outros. Elas são o núcleo do que é aqui designado como figuração, como figuração dos homens dependentes uns em relação aos outros. Como os homens são – inicialmente por natureza, e então mediante o aprendizado social, mediante educação, mediante a socialização, mediante as necessidades despertadas socialmente – mais ou menos mutuamente dependentes entre si, então eles, se é que se pode falar assim, só existem enquanto pluralidades, apenas em figurações. Esta é a razão pela qual, como já foi dito, não é muito proveitoso se compreender como imagem dos homens a imagem dos homens singulares. È mais adequado quando se representa como imagem dos homens uma imagem de vários homens interdependentes que formam figurações entre si, portanto grupos ou sociedades de tipo variado. A partir desse fundamento desaparece a discrepância das imagens tradicionais de homens. [...] a sociedade é o próprio entrelaçamento das interdependências formadas pelos indivíduos (ELIAS, 1994, p. 67-68)

No entanto, foi logo no início da Sociedade dos Indivíduos que Elias explicita a necessidade pela categoria rede de relações, categoria a qual passa a ser amplamente trabalhada pelo autor nessa obra. Ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos. Mas, quando tentamos reconstruir no pensamento aquilo que vivenciamos cotidianamente na realidade, verificamos, como naquele quebra-cabeça cujas peças não compõem uma imagem íntegra, que há lacunas e falhas em constante formação em nosso fluxo de pensamento. O que nos falta - vamos admiti-lo com franqueza - são modelos conceituais e uma visão global mediante os quais possamos tornar compreensível, no pensamento, aquilo que vivenciamos diariamente na realidade, mediante os quais possamos compreender de que modo um grande número de indivíduos compõe entre si algo maior e diferente de uma coleção de indivíduos isolados: como é que eles formam uma "sociedade" e como sucede a essa sociedade poder modificar-se de maneiras específicas, ter uma história que segue um curso não pretendido, ou planejado por qualquer dos indivíduos que a compõem. (ELIAS, 1994, p. 16-17)

Na mesma direção vão Alain Degenne e Michel Forsé (1999) quando afirmam que o ganho na análise das redes está em que esta permite passarmos das “categorias” às “relações”. Não se trata de deixar de lado a importância das categorias estruturais na formação dos interesses e ações individuais, mas colocar em jogo as redes relacionais que se estabelecem entre os indivíduos e que imprimem a mesma importância quando se trata de uma análise que 77

visa compreender a interação indivíduo-sociedade como um todo (PORTUGAL, 2007, p.8). A referência às redes foi associada à busca de modalidades de totalização capazes de alterar o mínimo possível a singularidade das relações identificadas e dos seres que elas conectam, em oposição às atitudes reducionistas que totalizam encaixando seres e relações em tipos, classes e estruturas originais, de tal modo a reuni-los em grupos passíveis de tornar-se objeto de cálculo. As abordagens baseadas na representação em redes mantêm, assim, uma relação complexa com o estruturalismo. Com este, elas têm em comum a ênfase dada às propriedades relacionais, e não às substâncias: sabe-se que o jogo de xadrez, desde Saussure, constitui a metáfora por excelência da abordagem estrutural, porque nele cada lance, ao movimentar uma peça, modifica o valor posicional de todas as outras peças do jogo. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 181)

Por isso, o diálogo e interconexão de ambas dimensões é de suma importância do desenvolvimento do nosso trabalho. A análise das redes fornece uma explicação do comportamento social baseada em modelos de interação entre os actores sociais em vez de estudar os efeitos independentes de atributo individuais ou relações duais. A análise estrutural das redes baseia-se na premissa de que estas têm uma realidade própria, no mesmo sentido em que os indivíduos e as relações têm, pelo que a sua influência não pode ser reduzida ao simples efeito de constrangimentos normativos, atributos pessoais ou efeitos cumulativos de múltiplas interacções. Esta “análise relacional” (Wellman, 1985) permite estudar o modo como os indivíduos são condicionados pelo tecido social que os envolve, mas também o modo como eles o usam e modificam consoante os seus interesses. (PORTUGAL, 2007, p. 8-9)

É importante ressaltar, portanto, que a categoria também passa por transformações dentro do campo das Ciências Sociais ao longo do tempo. Boltanski e Chiapello (2009) observam que, O uso do termo rede, em sociologia, durante os últimos vinte anos, sofreu as mesmas mudanças de conotação verificadas em seus usos ordinários. A rede, utilizada nos anos 60 sobretudo para desvendar os privilégios (especialmente na instituição escolar e no mercado de trabalho) que as pessoas favorecidas pela origem social podiam explorar discretamente, é hoje em dia posta em ação com a neutralidade da ferramenta ou mesmo apresentada, pelo menos implicitamente, como uma forma social mais eficiente e justa do que as relações formais de base criteriológica, permitindo a inserção progressiva e negociada no emprego. (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009, p. 179)

Dessa forma, fica evidente na trajetória da teoria social do século XX, uma intenção de transpor a dicotomia e a antítese existente entre a abordagem micro e macro das relações sociais por meio da rede como categoria para uma reflexão dessas relações e a rede parece ser invocada muitas vezes para essa tarefa. Removendo as camadas de dissimulação que encobrem o núcleo da antítese, podemos começar a resolvê-la. Os que aqui se defrontam como inimigos falam, uns e outros, como se tivessem recebido seu saber dos céus ou de uma esfera da razão imune à experiência. Quer afirmem a sociedade ou o indivíduo como o objetivo mais alto, os dois lados procedem, no que tange ao pensamento, como se um ser externo à humanidade, ou um representante seu em nosso pensamento – a "natureza" e uma

78

"razão" divina que funcionassem previamente a qualquer experiência -, houvesse estabelecido esse objetivo último e essa escala de valores, sob essa forma, para todo o sempre. Ao atravessarmos o véu de valorações e afetos com que as tensões de nossa época imbuem tudo o que diz respeito à relação entre indivíduo e sociedade, surge um panorama diferente. Considerados num nível mais profundo, tanto os indivíduos quanto a sociedade conjuntamente formada por eles são igualmente desprovidos de objetivo. Nenhum dos dois existe sem o outro. Antes de mais nada, na verdade, eles simplesmente existem - o indivíduo na companhia de outros, a sociedade como uma sociedade de indivíduos -de um modo tão desprovido de objetivo quanto as estrelas que, juntas, formam um sistema solar, ou os sistemas solares que formam a Via Láctea. E essa existência não-finalista dos indivíduos em sociedade é o material, o tecido básico em que as pessoas entremeiam as imagens variáveis de seus objetivos. (ELIAS, 1994, p. 18)

Assim como a essência de uma rede social dependerá dos componentes que dela fazem parte, a própria ciência que se ocupa desse tema como seu objeto principal deve ser fundamentalmente interdisciplinar e transversal, uma vez que conterá em sua configuração conteúdo das mais variadas áreas do pensamento social. Dessa interdisciplinariedade e transversalidade dependerá a concretude e eficácia de uma análise de rede, seja qual for sua localização. Talvez essa constatação seja a principal estratégia de reavaliar paradigmas totalizantes sem descredenciar categorias nem relações, ou seja, a dimensão micro e macro de uma análise social. Acadêmicos são uma turma briguenta, raramente inclinada a cruzar as fronteiras de suas respectivas disciplinas para algo mais do que um polido “bom dia”. Mas, no mundo das redes, sociólogos, economistas, matemáticos, cientistas da computação, biólogos, engenheiros e físicos têm todos algo a oferecer, e muito a aprender. Nenhuma disciplina sozinha, nenhuma abordagem isolada tem o domínio de uma ciência abrangente das redes, e não é provável que venha a ter. Ao contrário, qualquer entendimento profundo da estrutura de redes reais só poderá vir de um casamento genuíno de ideias e dados dispersos pelo espectro intelectual, cada qual uma peça do enigma com sua própria e fascinante história e valor, mas nenhum deles chave para o todo. Assim como nos quebra-cabeças, a chave é a forma como todas as partes se interligam para formar uma imagem unificada. Essa imagem, (…) está longe de ser completa, mas devido aos esforços de muitos pesquisadores oriundos de múltiplas áreas e de diversas e distintas linhagens de atividade intelectual, está finalmente começando a surgir com nitidez. (WATTS, 2009, p. 41).

Bruno Latour (1994) também contribui para o debate sobre as redes dentro das Ciências Sociais, bem como a relevância de seu uso, ao visualizar uma relação de poder, que visa classificar ou etiquetar as abordagens sociais em relação as interações entre os indivíduos e assim guiar suas críticas e reflexões dando mais privilégio a uma em detrimento de outro. Essa separação seria portanto o que conferiria legitimidade às abordagens intelectuais. No entanto, para ele, a interpretação das tramas sociais ganha muito ao ser traduzida pelo viés das redes. Sua perspectiva vai ao encontro da transversalidade ou interdisciplinaridade pontuada por Watts (2009). Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre de reatar o nó górdio atravessando,

79

tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos sem que o desejássemos, optamos por descrever as tramas onde quer que estas nos levem. Nosso meio de transporte é a noção de tradução ou de rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne dessas histórias confusas. No entanto, estes trabalhos continuam sendo incompreensíveis porque são recortados em três de acordo com as categorias usuais dos críticos. Ou dizem respeito à natureza, ou à política, ou ao discurso. [...] Nossa vida intelectual é decididamente mal construída. A epistemologia, as ciências sociais, as ciências do texto, todas têm uma reputação contanto que permaneçam distintas. Caso os seres que vocês estejam seguindo atravessem as três, ninguém mais compreende o que você diz. (LATOUR, 1994, p. 9-11)

No que diz respeito a um novo ambiente de trabalho mais flexibilizado, heterogêneo, tecnológico e portador de uma dinamicidade que passou a requerer outras interpretações e realizações no que tange as relações de tempo e espaço, a rede e toda sua fundamentação ideológica quanto teoria e prática passa a ser tomada como referencial dentro dos discursos acerca do novo momento do mercado de trabalho, passando a ser adotada veemente pelas novas cartilhas de gestão empresarial60. De acordo com Boltanski e Chiapello (2009), um dos primeiros trabalhos que relacionou o estudo das redes a gestão empresarial data de 199561, no entanto essas aplicações já tiveram início na década de 60, mas se diferenciam em relação ao seu primeiro uso e a forma como é empregada atualmente. Assim, na literatura de gestão empresarial dos anos 60, quando a palavra ainda é rara (21 ocorrências no corpus dos anos 60, contra 450 no corpus dos anos 90), a referência à rede aparece em trechos que dizem respeito à comunicação", essencialmente para aludir a relações verticais e horizontais dentro da empresa", portanto num sentido totalmente diferente daquele que hoje lhe é dado, quando a rede está associada à ideia de transgressão de todas as fronteiras, em especial das fronteiras da empresa e dos canais de comunicação e subordinação presentes nos organogramas. A palavra rede também é usada nos anos 60 para aludir às coerções, visto que as malhas são equiparadas às malhas de uma rede de pesca que amarra o indivíduo, e não para “No entanto, embora um grande número de termos ou noções retirados dos textos de gestão empresarial em que domina a lógica de rede tenha homólogo nos textos das ciências humanas, em nosso corpus as referências diretas a esses trabalhos são bastante raras e concentradas na pluma de alguns autores que associam a gestão empresarial em rede a três temas: primeiramente' o da comunicação (representado por referências a Habermas, Bateson e Watzlawick); em segundo lugar, o da complexidade (J. P Dupuy, E. Morin); em terceiro, o da desordem, do caos e da auto-organização (representado por referências a Prigogine, Stengers, Atlan, Heisenberg, Hofstadter e Varela")” (BOLSTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 174-175) 61 Trata-se da obra La Planète relationnelle de Albert Bressant e Catherine Distler, publicada em 1995. Boltanski e Chiapello (2009) utilizam a obra para contar a trajetória do uso da dimensão acadêmica da categoria rede relacionada à gestão empresarial. De acordo com esses autores “encontra-se, assim, nessa obra referência: 1) à gestão das redes de empresas - especialmente a grande número de textos de gestão empresarial incluídos no nosso corpus (G. Archier, H Sérieyx, A. Taffler etc.); 2) a clássicos da comunicação (M. McLuhan, R. Debray); 3) a economistas da informação (por exemplo, A. Chandler, O. Williamson, J, Tirole); 4) a trabalhos sobre o ciberspaço, o virtual, a "cultura internet" e, de modo mais geral, a informática (S, Papert, S. Turkle, M. Cronin); 5) às teorias da auto-organização a.-p. Dupuy, F.Varela); 6) a trabalhos que se vinculam à sociologia americana de análise das redes (R. Ecdes, R. Nollan, M. Granovetter); 7) à nova sociologia das ciências e das técnicas (B. Latour, M. Serres").” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 176) 60

80

representar uma atividade de conexão: assim, os franceses "se protegeram dos 'outros' por meio de uma rede complicada de leis" (Servan-Schreiber, 1967 ©); os executivos estão presos a "redes de obrigações" (Gabrysiak et alii, 1968 ©); a burocracia "mantém toda uma rede de autoridade, dependência e subordinação" (De Woot, 1968 ©). [...] Uma pesquisa dos usos da palavra rede em dicionários das décadas anteriores mostra também que, até os anos 80, o termo, quando servia para designar organizações humanas, era quase sempre usado para qualificar pejorativamente formas de elos clandestinos, ilegítimos ou ilegais. (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009, p. 177)

O que importa salientarmos nesse momento é que a rede como dinâmica relacional entre os indivíduos e categoria usada em discursos institucionais no mundo do trabalho passa a ser um grande coringa. Assim, ela aparece agora como um elemento pertinente tanto para os comportamentos individuais que anseiam por flexibilidade e autonomia, quanto para o espírito institucional do capitalismo atual, que busca cada vez mais por padrões flexíveis em contraste à rigidez de outrora e uma conectividade capaz de reproduzir e introjetar em diversas dimensões suas ideologias e estratégias dominantes. A flexibilidade proporcionada pela rede agora cabe tanto ao indivíduo, no que tange ao plano de sua subjetividade, quanto à dinâmica de reprodução do capitalismo no que diz respeito às oportunidades de conexão que promove. Se por um lado essa flexibilidade cria lampejos de oportunidades de autonomia e garantia de liberdade, por outro – e no caso das redes de coworking, ao mesmo tempo – dá margem para o fortalecimento de um domínio irrestrito por parte das dinâmicas capitalísticas que agora a adota como pedra de toque da reestruturação econômica. De acordo com Boltanski e Chiapello (2009), A recuperação do termo rede foi favorecida por uma conjunção histórica especial, marcada notadamente pelo desenvolvimento das redes informáticas que abriram possibilidades de trabalho e colaboração a distância, mas em tempo real, e pela busca nas ciências sociais (cf. infra) de conceitos capazes de identificar estruturas pouco ou nada hierárquicas, flexíveis e não limitadas por fronteiras traçadas a priori. Conceito já existente, ligado a ideias, tecnologias e pesquisas contemporâneas, associado a um vocabu-1ário específico, a modelos de causalidade e a modelizações matemáticas, construído para representar uma alternativa aos algoritmos hierárquicos, foi naturalmente mobilizado pelo capitalismo. (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009, p. 134)

A compreensão da potencialidade relacional e relativa da rede, a qual lhe confere uma identidade – que no nosso caso, seria mais ou menos emancipadora –, deve ser pensada, portanto, a partir do contexto, tanto material quanto simbólico, no qual essa malha de relações se insere. Como observa Elias (1994), [...] em cada associação de seres humanos, esse contexto funcional tem uma estrutura muito específica. Numa tribo de criadores nômades de gado, ela é diferente da que existe numa tribo de lavradores; numa sociedade feudal de guerreiros, é diferente da existente na sociedade industrial de nossos dias e, acima disso tudo, é diferente nas diferentes comunidades nacionais da própria sociedade industrial. Entretanto esse arcabouço básico de funções interdependentes, cuja estrutura e padrão conferem a uma sociedade seu caráter específico, não é criação de indivíduos particulares, pois cada indivíduo, mesmo o mais poderoso, mesmo o chefe tribal, o monarca absolutista

81

ou o ditador, faz parte dele, é representante de uma função que só é formada e mantida em relação a outras funções, as quais só podem ser entendidas em termos da estrutura específica e das tensões específicas desse contexto total. [...]A rede de funções interdependentes pela qual as pessoas estão ligadas entre si tem peso e leis próprios, que deixam apenas uma margem bem circunscrita para compromissos firmados sem derramamento de sangue - e toda eleição majoritária é, em última análise, um acordo desse tipo. (ELIAS, 1994, p. 22-23)

Fazer a análise do coworking sob a perspectiva dos estudos sobre as redes faz-se portanto fundamental para entendermos a relação existente entre os interesses individuais, o contexto e as conexões com outros indivíduos, provenientes do espaço de trabalho. É por meio da análise da rede de relações desses indivíduos que poderemos visualizar o quanto o contexto prévio às interações do coworking contribuiu para a modelagem de uma determinada subjetividade e/ou interesses específicos e, sendo assim, como essa programação se relaciona em um espaço com interesses heterogêneos, mas guiados pelo mesmo padrão motivacional que relaciona diretamente flexibilidade com liberdade. Podemos dizer que a exaltação da rede em um ambiente de trabalho fragmentado como o do coworking pode ser uma estratégia muito pertinente às práticas empresariais do capitalismo conexionista. Boltanski e Chiapello (2009, p. 297) constatam que “a desintegração da comunidade de trabalho pelo emprego num mesmo lugar de pessoas provenientes de empresas diferentes e com estatutos diversos também contribui para desarmar e desorientar a ação coletiva”. Assim como já havia salientado Sennett (2009) a respeito do trabalho em equipe, o que vemos no caso do coworking é que a existência de uma diversidade de profissionais em um mesmo espaço não desmobiliza propriamente a ação coletiva, mas a direciona convenientemente ao abrandamento dos percalços do mercado de trabalho. No caso do coworking, vemos que a rede se dá especialmente por meio da integração em projetos. O ambiente compartilhado e diverso do coworking permite que os membros promovam projetos em conjunto ou que passam a integrar aqueles que já existem. A forma como se dá essa interação fica evidente em alguns relatos: [Coworking] has allowed us to form relationships before a transaction takes place. I get to know my coworkers based on what they are interested in, what they do/don’t do well. Then, when we're working together it's more enjoyable because we have common interests beyond the money at the end of the rainbow. (A.H, 2011)62 Tradução nossa: [O coworking] nos permitiu formar relações antes da transação ocorrer, eu conheço meus coworkers baseando-me no que eles têm como interesse, o que eles fazem/não fazem bem. Então, quando estamos trabalhando juntos se torna mais proveitoso porque temos interesses comuns para além do dinheiro no final do arco-íris”. Relato retirado do livro Working in the unoffice. Obra disponível em: https://www.goodreads.com/ebooks/download/14745356-working-in-the-unoffice . Acesso em: 23/09/2014. 62

82

You’re not just saving on rent, but you’re also able to make connections, to build a community around your ideas at a creative level that's beyond what you would be able to do working by yourself. (J.S, 2011)63 O que é interessante de ressaltar aqui é que os projetos, de certa forma, substituem os planos de carreira e as hierarquias presentes até então nos modelos mais rígidos de trabalho (BOLTANSKI, CHAPELLO, 2009). A rede possibilita a realização desses projetos e o coworking parece ser o lugar ideal para isso no atual momento. Num mundo reticular, a atividade profissional passa a ser feita de uma multiplicidade de encontros e conexões temporárias, mas reativáveis, em grupos diversos, realizados em distâncias sociais, profissionais, geográficas e culturais eventualmente muito grandes. O projeto é a oportunidade e o pretexto para a conexão. Ele reúne temporariamente pessoas muito diferentes e apresenta -se como um segmento de rede fortemente ativado durante um período relativamente curto, mas que permite criar laços mais duradouros, que permanecerão adormecidos, mas sempre disponíveis. Os projetos possibilitam a produção e a acumulação num mundo que, se fosse puramente conexionista, conheceria apenas fluxos, sem que coisa alguma pudesse estabilizar-se, acumular-se ou ganhar forma: tudo seria carregado pela corrente incessante dos contatos estabelecidos, que, em vista de sua capacidade de comunicar tudo com tudo, distribuem e dissolvem incessantemente aquilo que cai em suas malhas. O projeto é precisamente um amontoado de conexões ativas capazes de dar origem a formas, ou seja, dar existência a objetos e sujeitos, estabilizando e tomando irreversíveis os laços. Portanto, é um bolsão de acumulação temporário que, sendo criador de valor, dá fundamento à exigência de ampliar a rede, favorecendo conexões. (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009, p. 135)

Após essa breve tentativa de compilar em poucas páginas uma história de décadas acerca das teorizações da rede dentro das ciências sociais, buscando deixa em evidência a relação entre tais teorias e o tema acerca da reorganização das estruturas econômicas e sociais – e seus respectivos resultados – que culminaram no sinal do século XX, caminharemos rumo a uma reflexão crítica a respeito das estruturas em rede na contemporaneidade. Passaremos no próximo capítulo a dar foco sobre a construção de subjetividades maquínicas64 dos indivíduos que a integram, as quais contam com componentes que às precedem e influencia. Por isso, mediante às considerações que já tecemos no primeiro capítulo sobre esse novo momento, suas transformações e as características do seu novo sujeito, ao iniciarmos nossos questionamentos a respeito da construção da subjetividade correspondente, seja na formação de interesses, escolhas e valores dos indivíduos que os levam a vincularem-se a projetos coletivos – no nosso caso, à redes – lancemos olhares sobre a compreensão de liberdade na pós-modernidade, uma

Tradução nossa: “Você não está simplesmente economizando aluguel, mas está também possibilitado a fazer conexões, construir uma comunidade em torno a suas ideias a um nível criativo que vai além do que você seria possível trabalhando sozinho”. Idem. 64 O conceito de subjetividade maquínica é explorado por Guattari (1992, 13-20). 63

83

liberdade que vai além dos ideais modernos da ciência e da razão diante do turbilhão de informações e apreensões sobre a realidade pelo qual passamos no momento atual65. Trata-se, portanto, de uma liberdade que, mais do que nunca, está declaradamente ligada ao conceito de flexibilidade contida nas estruturas de rede e perversamente atrelada às estratégias da biopolítica em uma sociedade capitalista. CAPÍTULO 3 - A BIOPOLÍTICA IMPRESSA NO DISCURSO DAS REDES Nosso trabalho vincula-se a uma produção de símbolos, valores, desejos, interesses e subjetividades, e por meio do coworking, nos permite refletir sobre o contexto da subjetividade e cultura capitalística da pós-modernidade. Portanto, esses elementos não devem ser entendidos como externos ou resultantes de uma produção meramente material, mas de uma relação entre o material e o simbólico, entendendo ambas as dimensões como estruturadas e estruturantes (BOURDIEU, 2007). Guattari (1985) é um dos autores que nos auxilia a perceber que tais elementos – principalmente os simbólicos – não se fazem presentes apenas na superestrutura de nossa sociedade, mas também se apresentam na infra-estrutura da mesma, como componentes fundamentais para a reprodução dos interesses sistêmicos do capital. Sahlins (2007) deixa essa questão evidente ao citar Baudrillard (1972) no início do capítulo La penseé bougeoise: a sociedade ocidental como cultura de sua obra Cultura na prática: (...) A análise da produção dos símbolos e da cultura, portanto, não é apresentada como externa, posterior ou “superestrutural” em relação à produção material; ela é exposta como uma revolução da própria economia política, generalizada pela intervenção teórica e prática do valor de troca simbólico. (BAUDRILLARD, 1972, p. 130 apud SAHLINS, 2007, p. 177)

Por isso, diferente das experiências tradicionais, onde classificações e estratificações se encontravam muito bem demarcadas, bem como os privilégios garantidos (ou não) a cada uma delas, a noção e a oportunidade de sentir-se liberto hoje são amplamente garantidas, no entanto, por leis que passam ainda sim a restringi-la e delimita-la de maneira menos visível que outrora. A liberdade, assim como o poder que a ela contrasta, tomam outras formas no contexto pósmoderno que, em desenvolvimento ao que Michel Foucault havia proposto em Vigiar e Punir, Sobre a noção de liberdade, Mauss (1978, p. 156) observa que, esta como“ – possibilidade de escolha – não aparece desde o início na História. Ela só se purifica na ocasião do desenvolvimento do direito e da noção de responsabilidade civil e criminal. […] Mas ainda há mais, e é decididamente numa data bem recente que a noção se elabora, na patrística, na dogmática, no cristianismo essencialmente, depois do aparecimento do predestinacionismo, e da noção do pecado original e sobretudo depois do aparecimento da consciência individual da pessoa metafísica. […] É ao desenvolvimento da noção de indivíduo, como sujeito do direito, da moral e da religião, que se vincula a noção de liberdade propriamente dita”. 65

84

extrapola as instâncias institucionais e passa a se dar através da modelação e do controle das subjetividades. O próprio Foucault (2008) em o Nascimento da Biopolítica já apontava essa transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do controle, sendo que seu interesse por essa nova maneira de governar já vinha sendo construído desde obras como o Microfísica do poder (1979), A vontade de saber (1976), Em defesa da sociedade (1975-1976), Segurança, território e população (1977-1978). No entanto, para entender essa transição e, principalmente, para compreender como os mecanismos de controle sobre a vida são inseridos em sua gestão, havia a necessidade, segundo o autor de compreender essa nova forma de governar. Tal forma, de acordo com Foucault (2008), difere da forma da Idade Média, onde o soberano exerce seu papel paterno em relação aos súditos, estabelecendo limites morais, divinos e naturais a serem respeitados. Essa nova arte de governar corresponde a uma nova racionalidade governamental moderna, o qual não se concretiza a partir de leis homogêneas nem intrínsecas ao Estado e critica o excesso de governo. Esses aspectos me foram visíveis durante o campo, principalmente dentro das mensagens de motivação que encontrei no ambiente. Além do “do what you love”, existiam palavras escritas e coladas propositalmente, a meu ver, ao lado das tomadas do ambiente, como se tais palavras fossem promovidas por meio da “energia” local. Entre as palavras pude ver: estratégia, negócios, inovação, pensamento, brainstorm, ideias, pessoas e tecnologia e empreender. Mas o que mais me chamou atenção e que se relaciona com a essência de novas dinâmicas de controle muito mais propulsoras da vida foi um texto escrito em letras bem grandes, anexado em uma das paredes e tomando quase toda sua extensão, logo na entrada do local: “Nesta casa de coworking nós somos o futuro do trabalho, uma comunidade de participação, um ecossistema. Somos pessoas antes de sermos profissionais, dizemos bom dia e desejamos o melhor, amamos o que fazemos porque fazemos com amor e responsabilidade. Respeitamos uns aos outros, ousamos inovar, assumimos riscos, chutamos muitas pedras no meio dos caminhos, aprendemos e nunca desistimos! Falamos de várias tribos, ajudamos, conversamos, interagimos, e fazemos boas amizades. Por favor e obrigado são expressões valiosas, verdadeiramente. Aqui nós temos talento, somos positivos e mantemos compromissos. Aqui, acertar é humano! Aqui, nesta casa de coworking fazemos parte de um mundo novo, plano e colaborativo.” Assim como o que sugere a mensagem trazida por esse texto, o novo momento das formas de controle não toma para si próprio a autoridade e a moralidade da gestão. A despeito disso, trata-se, portanto, de uma autolimitação, não de um poder capaz de causar a morte dos 85

súditos ou deixá-los viver, mas de “um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função de seus reclamos” (FOUCAULT, 1988, p. 128). Em outras palavras, o Estado não é nenhuma casa, nem uma igreja, nem um império. O Estado é uma realidade específica e descontínua. O Estado só existe para si mesmo e em relação a si mesmo, qualquer que seja o sistema de obediência que ele deve a outros sistemas como natureza ou como Deus. (FOUCAULT, 2008, p. 7)

Dessa forma, Foucault (2008) pontua que essa nova arte de governar que teve seu início em meados do século XVIII, [...] se caracteriza, creio eu, pela instauração de mecanismos a um só tempo internos, numerosos e complexos, mas que têm por função [...] não tanto assegurar o crescimento do Estado em força, riqueza e poder, [o] crescimento indefinido do Estado, mas sim limitar do interior o exercício do poder de governar. [...] é uma razão que funciona com base no interesse. [...] Agora, o interesse a cujo o princípio governamental a cujo princípio a razão governamental deve obedecer são interesses, é um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder público, é um jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos governados. O governo, em todo caso o governo nessa nova razão governamental, é algo que manipula interesses. (FOUCAULT, 2008, p. 39-61)

Assim, processos pertencentes à vida humana passam a ser levados em conta dentro dos mecanismos do poder e do saber, a fim de implementar uma nova forma de controle. O poder agora se encarrega da vida e não da morte. Michel Hardt e Antonio Negri (2001) descrevem bem o que seria esse novo modelo de controle dessa nova razão governamental. Devemos entender que a sociedade de controle, em contraste, com aquela (que se desenvolve nos limites da modernidade e se abre para a pós-modernidade) na qual mecanismos de comando se tornam cada vez mais “democráticos”, cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. Os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do mando são, assim, cada vez mais interiorizados nos próprios súditos. O poder agora é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, rede de informação etc) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade. A sociedade de controle pode, dessa forma, ser caracterizada por uma intensificação e uma síntese dos aparelhos de normalização de disciplinaridade que animam internamente nossas práticas diárias e comuns, mas em contraste com a disciplina, esse controle estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e flutuantes. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42-43)

Esse novo aspecto da disciplina/controle foi fundamental para a aceitação e regulamentação de uma economia reestruturada, e Foucault (2008) já observava que a biopolítica se fazia fundamental dentro das novas formas de mercado do neoliberalismo. Os mecanismos biopolíticos passam a se ocupar de uma regulamentação que, a partir de estratégias de quantificação e descrição, visa identificar e comparar padrões e comportamentos a fim de diagnosticar o futuro da população, em principal, seus interesses (DANNER, 2010). Observa86

se, portanto, que o diagnóstico desses interesses possibilita uma maior racionalização da governabilidade, ou seja, uma maior previsão e, consequentemente, controle do conjunto vivo da sociedade, a própria população. No entanto, não se trata de enrijecer normas, mas de regulamentar o comportamento humano de forma fluída, permitindo que assim, ele próprio produza e reproduza os meios do seu próprio controle como se estes fossem o desenvolvimento da própria vida. Se pudéssemos chamar de ‘bio-história’ as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem entre si, deveríamos falar de ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana. (FOUCAULT, 1988, p. 134)

Isso pode ser notado em um artigo retirado de um artigo do blog Movebla, já citado anteriormente. Nesse artigo é visível o apelo por uma maior qualidade de vida dentro do trabalho e liberdade por meio da adoção de um ritmo ultradiano66, mas no entanto não existe a perspectiva crítica a respeito de uma maior exploração do tempo e do espaço aos quais cabem o trabalho. Trago aqui um trecho do artigo: Pensar a produtividade de um modo ultradiano é uma ideia bem antiga – defendida no livro de Ernest Lawrence Rossi, The 20 Minute Break. No meio do que parece um livro de auto-ajuda, a dica valiosa: tirar 20 minutos de descanso entre esses períodos ajuda a renovar sua energia e melhorar a perfomance no trabalho. Isso já é incentivado por lei em alguns países, como a Inglaterra. Mas ainda dentro da rotina tradicional de trabalho, de 8 horas, que temos desde a Revolução Industrial. E é nos tempos modernos que o ritmo ultradiano e os modelos flexíveis de trabalho se encontram. Pesquisadores da Brigham Young University analisaram os dados de mais de 24 mil empregados da IBM em 75 países, identificando que para quem trabalha alocado em escritórios, o limite da carga horária semanal chega a 38 horas por semana. Quando há a opção de horários flexíveis e trabalho remoto, a carga horária aumentou para 57 horas por semana. Ao estar mais em casa, os conflitos familiares e pessoais no trabalho diminuem e a produtividade aumenta, graças à flexibilidade. (COSTA, 2014)67

A questão a ser colocada nesse ponto é sobre o quanto o ritmo ultradiano exaltado por esses profissionais flexíveis, intensifica a exploração? O trabalhador pode estar trabalhando mais sem perceber, pois tem uma falsa sensação de descanso, uma vez que descansa por curtos períodos.

Nota: o ritmo ultradiano se refere à cronobiologia, a qual leva em conta os ritmos da vida. Esse artigo se torna interessante para ser usado para deixar explícito as formas de controle sobre a própria vida, o bios. De acordo com esses estudos, o ritmo ultradiano seria aquele composto por menos de 20 horas e é tal ritmo que marcaria nossos níveis de atenção e consciência. Disponível em: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/cronobiologia-osritmos-da-vida-241624-1.asp . Acesso em: 06/10/2014. 67 Trecho retirado do artigo “Ritmo ultradiano” do blog Movebla. Disponível em: http://www.movebla.com/3303/ritmo-ultradiano/ . Acesso em: 06/10/2014. 66

87

Ao nosso ver, essa dinâmica se encaixa aos moldes biopolíticos de controle uma vez que parte do discurso que preza por uma maior autonomia do indivíduo dando-lhe liberdade para escolher seu tempo livre, mas no entanto, resulta em uma maior produtividade e exploração do mesmo dentro do ambiente de trabalho, de forma imperceptível. Tal trecho é seguido por um relato do autor do artigo sobre o ritmo ultradiano, o qual introduziu para si próprio essa experiência: Eu tenho sentido isso na pele, e pensar com base nesse ritmo me ajuda a montar melhor minha rotina de trabalho. Por exemplo, dividindo meu tempo de jobs em ciclos de 120 minutos: 9 às 11h 14 às 16h 17 às 19h Com isso, eu acabo trabalhando apenas 6 horas por dia, mas posso incluir mais um ciclo de noite caso seja preciso – e que não me afetará, afinal, eu consegui descansar uma hora entre esses intervalos. Tem dias que eu trabalho 8 ou 10 horas, rendo bem e ainda consigo descansar. E por ser freelancer, não tenho férias remuneradas – meus períodos de descanso eu mesmo posso fazer, quando quiser. (COSTA, 2014)68

A intensificação do trabalho e a interpretação desta como um maior potencial flexível e produtivo e, portanto, garantidor de autonomia pode ser vista durante a minha visita em campo. Durante os dias em que fiz a vivência dentro do ambiente de coworking, um fato me chamou atenção em relação a essa tendência. O manager do local fez o seguinte post em uma rede social, a respeito das atividades do dia. Tanto os nomes dos empreendedores quanto os nomes das empresas as quais são vinculados foram ocultados a fim de preservar a identidade dos mesmos.

Além desses exemplos, outras formas de intensificação da produtividade são colocadas em prática e tais dinâmicas não são adotadas apenas por trabalhadores autônomos, mas

68

Idem.

88

principalmente por grandes empresas, como é o caso do Google: At Google, employees are given a creative license to devote up to 20 percent of their working hours to personal projects. Many of Google’s flagship products— Gmail and Google News— were dreamt up and developed during these downtimes and before employees punched out. One remarkable story of a successful Google grouplet involved getting engineers to write their own testing code to reduce the incidence of bugs in software code. The problem was how to push the idea across a large organization like Google and get buy-in at a level enough to make a difference. The intrepid grouplet came up with a campaign based on posting episodes discussing new and interesting testing techniques on the bathroom stalls. “Testing on the Toilet” spread fast and garnered both rants and raves. Soon people were hungry for more, and the campaign ultimately developed enough inertia to become a de factopart of the coding culture. They moved out of the restrooms and into the mainstream. (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 17)

Nesse caso, fica evidente como a produtividade se aloca em espaços e tempos que deveriam ser reservados somente ao proveito do indivíduo. A flexibilidade voltada para uma maior produtividade passa a ser entendida como uma qualidade a ser internalizada pelo profissional. Ao mesmo tempo em que se torna uma qualidade ou destreza do indivíduo no ambiente de trabalho, instala-se, a partir desses comportamentos, uma falsa sensação de controle e liberdade sobre seu trabalho. Esses exemplos nos ajudam a observar que, assim como a subjetividade, podemos então entender que a liberdade, hoje mais do que nunca, pode ser considerada uma falácia inebriante. Como observa Peter Pál Pelbart (2008), O poder penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, pondoas para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando não diretamente expropriado pelos poderes, quer se evoque as ciências, o capital, o Estado, a mídia. Os mecanismos diversos pelos quais tais poderes se exercem são anônimos, esparramados, flexíveis, rizomáticos. O próprio poder se tornou "pósmoderno", ondulante, acentrado, reticular, molecular. Com isso, ele incide mais diretamente sobre nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar. Se antes ainda imaginávamos ter espaços preservados da ingerência direta dos poderes (o corpo, o inconsciente, a subjetividade), e tínhamos a ilusão de preservar em relação a eles alguma autonomia, hoje nossa vida parece integralmente subsumida a tais mecanismos de modulação da existência. Até mesmo o sexo, a linguagem, a comunicação, a vida onírica, mesmo a fé, nada disso preserva já qualquer exterioridade em relação aos mecanismos de controle e monitoramento. Para resumi-lo numa frase: o poder já não se exerce desde fora, nem de cima, mas como que por dentro, pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo. Não estamos mais às voltas com um poder transcendente, ou mesmo repressivo, trata-se de um poder imanente, produtivo. […]. Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida. (PELBART, 2008, p. 1)

Como podemos ver a partir desse fragmento acima, embora essas restrições não sejam visíveis elas são incorporadas em outras dinâmicas da vida em sociedade a partir de outros atributos que podem ser facilmente abarcados sob a forma de direitos legitimados principalmente pela ordem econômica. A sociedade de consumo, proveniente de uma ordem 89

econômica neoliberal, é portanto o local ideal onde se pode garantir liberdade69. Tudo está dado, ou assim se propõe. A ciência moderna garantiu altas produções e a reestruturação capitalista permitiu que os produtos agora encaixassem às personalidades, muita das vezes, inauguradas pela própria reestruturação (HARVEY, 2012), e além disso, permitiu que conflitos fossem “amenizados” ou “desaparecessem”, bem como desigualdades e questionamentos muito mais primordiais, como esse sobre a dimensão real sobre liberdade e autonomia. A oportunidade de acesso a bens materiais e simbólicos pelo viés econômico tornou-se o principal, e se não único, sentimento de liberdade a ser conquistado. Dessa forma, a crença e a aquisição dessa liberdade por parte do indivíduo forjou seu próprio controle em meio a sociedade. O recuo do conflito de classes na metrópole, enquanto a violência era projetada para fora; o peso enorme da propaganda e da fantasia da mídia para toldar as realidades da divisão e da exploração; a separação entre existência pública e privada – tudo isso criou uma sociedade sem precedentes. “Em termos psicológicos podemos dizer que, como economia de serviços, estamos doravante tão afastados das realidades da produção e do trabalho que habitamos um mundo onírico de estímulos artificiais e experiências via TV: nunca, em nenhuma civilização anterior, as grandes preocupações metafísicas, as questões fundamentais do ser e do significado da vida pareceram tão absolutamente remotas e sem sentido”. (ANDERSON, 1991, p. 63)

Esse trecho de Anderson (1991) nos revela o quanto nosso entendimento a respeito de sentimentos e valores fundamentais que dão substrato às ordens do pensamento filosófico desde os primórdios do homem, como é o caso da liberdade, se modificam mediante as transformações ocorridas no plano macrossocial decorrentes às reconfigurações demandadas pelo mundo do capital. O coworking é um dos exemplos que nos permite perceber o quanto essas transformações moldaram tais elementos essenciais que configuram a percepção e reflexão do homem acerca do mundo em que vive – especialmente do mundo do trabalho em que se insere – de forma a atender uma nova ordem hegemônica, sem que esta inevitavelmente fosse vista como bloco rígido e fixo70. Tendo em vista as pontuações de Sen (2004) a respeito das

Aqui Boltanski e Chiapello (p. 427) também fazem pontuações que complementam nossa linha de pensamento: “o caráter falacioso da libertação prometida pelo capitalismo graças ao mercado de bens também pode ser denunciado. Encontra -se, especialmente em Marx, um argumento crítico que será um dos fundamentos, até hoje, da denúncia daquilo que se chama desde a década de 60 de "sociedade de consumo", à qual o desenvolvimento do marketing e da publicidade dará novo vigor. Esse argumento é que o consumidor, aparentemente livre, na verdade está inteiramente submetido ao império da produção. Aquilo que ele acredita ser desejo próprio, proveniente de sua vontade autônoma como indivíduo singular é, sem que ele perceba, produto de uma manipulação por meio da qual sua imaginação é subjugada por aquele que oferece os bens. Ele deseja aquilo que querem que ele deseje.” 70 “Essa cooptação assumiu a forma de mercantilização, ou seja, o ato de transformar em "produtos" (com incidência de um preço e possibilidade de troca num mercado) bens e práticas que - em outro estado - ficavam antes fora da esfera do mercado"'. É o processo mais simples pelo qual o capitalismo pode reconhecer a validade de uma crítica e adotá-la, integrando-a nos dispositivos que lhe são próprios: os empresários, ouvindo a reivindicação expressa pela crítica, procuram criar produtos e serviços que a satisfaçam e possam ser vendidos. Já vimos esse processo em ação no que se refere à satisfação das exigências de libertação, com a invenção de produtos e serviços que supostamente teria virtudes "libertadoras". Ele também funcionou amplamente para fazer face às 69

90

capacidades na conquista das liberdades e entendendo a promoção de liberdades objetivas por meio de estratégias biopolíticas, podemos dizer que quando nos referimos ao trabalho em nossa sociedade, não se trata apenas de dar foco em suas bases infra-estruturais, mas encaixar tais bases aos elementos que promovem uma subjetividade por meio de discursos e valores colocados em jogo pelos próprios trabalhadores. A nova forma de governar descrita por Foucault (2008) não insere comportamentos ou leis fixas a serem seguidas, mas formula uma normalização das atividades do homem em sociedade, ou seja, da sua própria vida e consequentemente, interpretação acerca da realidade, baseadas nos preceitos da liberdade. O problema fundamental, essencial, em todo caso primeiro, que se colocará a partir do momento em que se pretenderá fazer a análise do trabalho em termos econômicos será saber como quem trabalha utiliza os recursos de que dispõe. Ou seja, será necessário, para introduzir o trabalho no campo da análise econômica, situar-se do ponto de vista de quem trabalha; será preciso estudar o trabalho como conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por quem trabalha. O que é trabalhar, para quem trabalha, e a que sistema de opção, a que sistema de racionalidade essa atividade de trabalho obedece? E, com isso, se poderá ver, a parit dessa grade que projeta sobre a atividade de trabalho um princípio de racionalidade estratégica, em que e como as diferenças qualitativas de trabalho podem ter um efeito de tipo econômico. Situar-se, portanto, do ponto de vista do trabalhador e fazer, pela primeira vez, que o trabalhador seja na análise econômica não um objeto, objeto de uma oferta e de uma procura na forma de força de trabalho, mas um sujeito econômico ativo. (FOUCAULT, 2008, p. 308)

Nessa perspectiva, o coworking segue em uma esteira que prega a liberdade do indivíduo, e sua decorrente flexibilidade, como elementos fundamentais para autonomia em meio a sociedade. No entanto, a medida que insere o próprio indivíduo e suas qualidades como capital responsável pelo sucesso, retira de campo a concretude dos conflitos, das desigualdades e das dominações externas ao indivíduo. Entender o sujeito como ativo é também compreender sua posição e qual o sentido das suas escolhas em meio a uma gama de múltiplas possibilidades, mesmo que tais escolhas não sejam especificamente e visivelmente decididas por ele. Abaixo, mais um relato se complementa tal perspectiva e nos deixa evidente a forma pela qual essa liberdade é entendida em meio aos profissionais flexíveis. Não encontramos nesse ponto de vista uma reflexão crítica a respeito de um maior controle ou exploração do indivíduo por parte das dinâmicas flexíveis. Back in 2009, I arranged to work remotely for several months in Northern Maine. I’d been able to escape New York City for a bit while maintaining my job and salary. Although I was equipped with the technology to do my job effectively hundreds of miles away from the office, I struggled to be productive. I started dreaming of being in a Wi-Fi-equipped art studio where I could plug in occasionally and get my work done, while still relishing the perks of my remote set-up. I wanted to be free to travel, to work on my own terms, and to meet interesting people reivindicações de autenticidade: passar-se-ia a oferecer aos consumidores produtos" autênticos" e tão" diferenciados", que a impressão de massificação se reduziria.” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, p. 444)

91

along the way. So, I set out to create Loosecubes, a platform that would enable me to do all of these things. (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 1)

Nesse sentido, podemos dizer que, não se questiona a liberdade, nem a autonomia pois estas estão sendo cada vez mais exaltadas pelas estratégias capitalísticas e seus planos organizacionais, como no caso, as redes. Como disse Hebert Marcuse (1969) em Teoria das pulsões e liberdade, A liberdade é uma forma de autoridade, aquela em que, com efeito, os meios préexistentes satisfazem as necessidades do indivíduo com um mínimo de desprazer e de frustração. Neste sentido, a liberdade é completamente histórica e o seu grau só é determinável historicamente: as capacidades e as necessidades, tal como o mínimo de frustração, são sempre diferentes consoante o nível de desenvolvimento cultural, e subordinada a condições objectivas. (MARCUSE, 1969, p. 106)

Cabe a nós problematizar sobre esse tipo de liberdade pós-moderna e, mais que isso, pensar sobre o tipo de subjetividade que a tomou como ideal. Seria uma subjetividade realmente reflexiva e singular a cada indivíduo ou corresponderia ela a um comportamento viável, voltado para o fortalecimento de uma estrutura reprodutiva de desejos, mercadorias e lucro sistêmico a partir de valores simbólicos? Podemos ver que a liberdade e autonomia buscada por esses indivíduos em rede são por diversas vezes condicionadas às utilidades e progressos a serem atribuídos ao mundo do trabalho71. Access to various resources and tools that apply to my work. It's also helpful to have unrestricted access to the space so that I can work the hours that are suited to my needs. (S.A, 36 anos, 2014)72 O que queremos deixar claro até aqui, tendo como base a análise dos espaços de coworking, é que apesar de terem como substrato o compartilhamento de interesses, objetivos, desejos e até mesmos identidades e singularidades; os quais não são prioritariamente frutos da modernidade humana; as organizações em forma de rede relacionam-se de maneira íntima e funcional com as novas práticas políticas e econômicas da cultura capitalista pós-moderna. Dessa maneira, queremos deixar evidente que a subjetividade depende intrinsecamente

71

Zygmunt Bauman (2001) nos revela com propriedade duas dimensões de liberdade a qual devemos levar em conta na pós-modernidade. Para Bauman (2001), tendo em vista o que já havia sido proposto por Sigmund Freud, a noção de liberdade deve ser distinguida entre objetiva e subjetiva. A partir dessa distinção, várias questões filosóficas se abrem. De acordo com o autor, “uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser ‘objetivamente’ satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres” (BAUMAN, 2001, p. 24-25). 72 Tradução nossa: “Acesso a várias fontes e instrumentos úteis ao meu trabalho. É também útil ter acesso irrestrito ao espaço, então eu posso trabalhar o tanto de horas que se encaixam às minhas necessidades”.

92

da liberdade que a possibilita e proporciona a criar valores, desejos e vontades. Sendo essa liberdade uma liberdade alinhada a objetivos dominantes, ela não mais pode ser considerada eficaz para a garantir de um projeto real autônomo de emancipação. O que eu quero, ou o que um grupo de indivíduos quer pode ser aquilo que se pauta em uma liberdade objetiva, tolhida e delimitadora, moldada pelo sistema que a rege, capaz de dar forma a comportamentos e anseios que vão ao encontro de interesses do plano macro e não propriamente das singularidades e desejos verdadeiramente autônomos. Teve início uma evolução no sentido da maior mercantilização de certas qualidades dos seres humanos com o intuito de "humanizar" os serviços, especialmente os pessoais, bem como as relações de trabalho. Os serviços pessoais costumam ter como contexto a proximidade e a presença, de modo que na transação entram ao mesmo tempo o "serviço" propriamente dito e outras dimensões, especialmente aquelas cuja presença está mais diretamente ligada ao corpo (não só porque este se torna visível, mas também por se criar contato em termos de odor e até mesmo tato), que, provocando, por exemplo, simpatia ou antipatia, atração ou repugnância, influem na satisfação do usuário e, por conseguinte, nos lucros realizáveis. Os elementos pessoais que intervêm na transação, sem entrarem diretamente na definição do setviço vendido, podem estar presentes de maneira espontânea, não premeditada ou, ao contrário, ser resultado de seleção ou de formação específica", de tal modo que fica sempre suspensa e frequentemente sem resposta a questão da verdadeira natureza da relação (puramente "comercial" ou também associada a sentimentos "reais"). (BOLTANSKI; CHIAPELLO, p. 444-445)

Talvez, esses desejos nem sequer conseguem ser formulados mediante a gama de informações que modelam e orientam os ideais da sociedade pós-moderna. “O poder é, dessa forma, expresso como um controle que se estende pelas profundezas da consciência e dos corpos da população – e ao mesmo tempo através da totalidade das relações sociais.” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 44). Não se trata aqui de tecer juízos de valor acerca desses desejos, quais são pertinentes ou não, mas apenas revelar a falácia de sua formulação. (…) esse condicionamento histórico-objectivo, precisamente, levanta a distinção entre a liberdade e a autoridade acima de todo e qualquer cálculo apenas subjectivo: os meios necessários à satisfação das necessidades, que foram adquiridas pelo trabalho a um nível cultural determinado, são, como as próprias necessidades e capacidades humanas, realidades socialmente dadas, existindo nas forças produtivas materiais e espirituais e nas possibilidades de sua utilização. Uma cultura pode utilizar essas possibilidades no interesse da satisfação individual das necessidades, e então a cultura está orientada para a liberdade. Em condições óptimas, a autoridade reduz-se à divisão racional do trabalho e da experiência: liberdade e felicidade tornam-se idênticas. Ou então, a satisfação individual subordina-se a uma necessidade social que restringe e oculta as referidas possibilidades – nesse caso há divórcio entre a necessidade social e necessidade individual: a cultura funda-se na autoridade. (MARCUSE, 1969, p. 106)

Pelo intermédio de Marcuse (1969), podemos dizer que a liberdade objetiva de Bauman (2001) destacada anteriormente em rodapé, se relaciona diretamente com a subjetividade maquínica de Guattari (1996). Juntamente a Gilles Deleuze, Guattari se propôs a desenvolver a 93

análise sobre o biopoder nas sociedades atuais, já anteiorimente realizadas por Foucault. A análise da subordinação real, entendida como envolvendo não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão social da sociedade mas também o próprio bios social, e quando está atenta às modalidades de disciplinaridade e ou/controle, desfaz a figura linear e totalitária do desenvolvimento capitalista. A sociedade civil é absorvida no Estado, mas a consequência disso é uma explosão dos elementos previamente coordenados e mediados na sociedade civil. As resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes; os pontos individuais são singularizados em mil platôs. O que Foucault implicitamente construiu (e Deleuze e Guattari tornaram explícito) é portanto o paradoxo de um poder que, à medida que unifica e envolve todos os elementos da vida social (perdendo com isso sua capacidade efetiva de mediar diferentes forças sociais), nesse exato momento revela um novo contexto, um novo milieu de máxima pluralidade e incontornável singularização – um milieu do evento. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 44)

Para Guattari (1996), os desejos, assim como os ideais e interesses em meio a sociedade pós-moderna se dão de maneira regulamentada por máquinas capitalísticas73 que podem ser instrumentais ou simbólicas, e que, qual seja sua maneira, internalizam orientações que estão longe de ser consideradas realmente autônomas ou construídas a partir de uma liberdade verdadeiramente singular. A principal máquina capaz de dar tom e orientação para os interesses e subjetividades é, para Guattari (1996), a cultura de massa. É exatamente esse o tema que eu gostaria de abordar hoje: a cultura de massa com elemento fundamental da “produção de subjetividade capitalística”. Essa cultura de massa produz, exatamente, indivíduos; indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos, como na etologia animal, ou como nas sociedades arcaicas ou pré-capitalísticas, mas sistemas de submissão muito mais dissimulados. E eu nem diria que esses sistemas são “interiorizados” ou “internalizados” de acordo com a expressão que esteve muito em voga numa certa época, e que implica uma ideia de subjetividade como algo a ser preenchido. Ao contrário, o que há é simplesmente uma produção de subjetividade. Não somente uma produção da subjetividade individuada – uma subjetividade dos indivíduos – mas uma produção de subjetividade social, uma produção da subjetividade que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. E mais ainda: uma produção da subjetividade inconsciente. A meu ver, essa grande fábrica, essa grande máquina capitalística produz inclusive aquilo que acontece conosco quando sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. Em todo caso, ela pretende garantir uma função hegemônica em todos esses campos. (GUATTARI, 1996, p. 16)

A contribuição de Guattari (1996) se faz fundamental para nossa análise, no entanto,

De acordo com Guattari (1996) em suas Notas descartáveis sobre algum conceito, o termo máquina ou maquínico distingue-se da mecânica. “A mecânica é relativamente fechada em si mesma: ela só mantém com o exterior relações perfeitamente codificadas. (…) As máquinas, no sentido lato (isto é, não só as máquinas técnicas, mas também as máquinas teóricas, sociais, estéticas, etc.), nunca funcionam isoladamente, mas por agregação ou agenciamento. Uma máquina técnica, por exemplo, numa usina, está em interação com uma máquina social, uma máquina de formação, uma máquina de pesquisa, uma máquina comercial, etc.” Tradução do glossário escrito por Guattari para a edição inglesa de La Révolution Moléculaire (Molecular Revolution – Psychiatry and Politics, Peguin Books, 1984) incluído em F. Guattari, Les années d´hiver. Ed. Bernard Barrault, Paris 1986, acrescido de trechos de cartas de Guattari a S. Rolnik. 73

94

não entenderemos essa produção de subjetividade pontualmente a partir da cultura de massa, mas amplamente a partir da sociedade a qual ela se faz componente fundamental, que é a sociedade de consumo a qual exalta em seus discursos a construção de identidades únicas e não massificadas. O que buscamos deixar evidente até aqui é que a liberdade e a subjetividade recorrentemente usada para exaltar os novos atributos de vivência da sociedade pós-moderna não se constituem significativamente como componentes coerentes no sentido de suas essências primordiais. Ao invés disso, tomam um novo espírito que não corresponde diretamente àquela autonomia e independência incessantemente buscada pelos homens e suas coletividades durante todo o processo histórico da humanidade. Ao levantarmos conceitos como autonomia e independência como essencialmente buscados pelo homem, não estamos relacionando a esses conceitos a dimensão da individualidade moderna e pós-moderna, que as estratégias capitalísticas buscam imprimir como ideal, mas visamos relacionar esses conceitos a um espírito capaz de interpretar a relação do homem com as coletividades diversas, de maneira que possa ser dotado de uma singularidade construída a partir dessa reflexão e interação com o outro e não simplesmente formulada a partir de mecanismos econômicos ou políticos-institucionais que visam a fragmentação como motor de hegemonia e domínio. Esse movimento de singularização é colocado por Guattari (1996) como oposto ao da individualização moderna pela qual perpassa as noções de liberdade e autonomia do mundo atual. Segundo ele, “o que vai caracterizar um processo de singularização (que durante certa época, eu chamei de “experiência de um grupo sujeito”), é que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder global, a nível econômico, a nível do saber, a nível técnico, a nível das segregações, dos tipos de prestígios que são difundidos. A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e aquilo que se passa em torno deles. Essa capacidade é que vai lhe dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante.” (GUATTARI, 1996, p. 46)

Dessa forma, existe a necessidade de contribuirmos para o avanço de uma teoria das redes que vá além do fato de considerá-la como estrutura puramente autonomizante e isso se dá na mesma medida em que passamos a colocar seus membros, agentes, e o caráter de suas conexões em meio a sua avaliação. O coworking é um acontecimento que nos dá margem a essas colocações. É levando em consideração o jogo existente entre a estrutura da rede e o indivíduo que nela se insere que visamos progredir nas análises sobre o quanto realmente a rede garante autonomia, e consequentemente o emancipa dos controles e máquinas molares, e representa os valores que toma como importante em meio a sociedade em que vive e em relação 95

aos interesses que tem como objetivo. Nesse ponto, é importante salientar a contribuição das interpretações e análises de Deleuze e Guattari propostas por Hardt e Negri (2001): [...] Deleuze e Guattari nos apresentam um entendimento adequadamente pósestruturalista do biopoder que renova o pensamento materialista e se apóia firmemente na questão da produção do ser social. Sua obra desmistifica o estruturalismo e todas concepções filosóficas, sociológicas e políticas que fazem da firmeza da moldura epistemológica um inevitável ponto de referência. Eles concentram nossa atenção claramente na substância ontológica da produção social. Máquinas produzem. O constante funcionamento das máquinas sociais em seus diversos aparelhos e montagens produz o mundo juntamente com os sujeitos e objetos que o constituem. (HARDT, NEGRI, 2001, p. 47)

Como já pontuamos no segundo capítulo, o critério de análise rede-indivíduo era pouco usado por teóricos das redes a princípio. Anteriormente buscava-se essencialmente exaltar a estrutura da rede, assim como as tecnologias sociais a ela embutida, como se por si só fossem capazes de desenvolver uma maior participação e representatividade dos indivíduos no meio em que vivem (WATTS, 2009). Se nosso intuito é comprovar um aumento ou não da autonomia dos agentes que fazem parte da rede, e consequentemente uma possibilidade emancipatória para os mesmos no que diz respeito às amarras do sistema capitalista, não podemos deixar de citar alguns dos apontamentos levantados por Sen (2000) a respeito da autonomia e da igualdade. O autor considera que esses dois atributos se desenvolvem para além da renda de cada indivíduo. Em linhas gerais, para ele não seria somente uma maior ou menor renda que configuraria uma maior ou menor capacidade representativa e de participação na vida social e política, mas sim instrumentos, tanto materiais quanto simbólicos, que criam oportunidades e capacidades para um bom funcionamento dessas representações e interesses74. Nesse ponto, dentro da distinção que faz entre liberdade substantiva e política, ele considera crucial a garantia da primeira para que assim se garanta não só a autonomia dentro de um regime democrático, como também a real capacidade de representação de interesses e valores. No entanto, como o autor salienta, é de suma importância a existência das duas paralelamente, partindo da afirmação de que na relação existente entre a

É importante ressaltar que o autor ainda sim considera essas capacidades e oportunidade como integrantes do espaço contextual o qual estão inseridos cada indivíduo. Essa concepção vai ao encontro da citação de Marcuse (1955), colocada anteriormente. Dessa forma, “desigualdade de rendas pode diferir substancialmente de desigualdades em diversos outros 'espaços' (ou seja, em função de outras variáveis relevantes), como bem-estar, liberdade e diferentes aspectos da qualidade de vida (incluindo saúde e longevidade), E até mesmo realizações agregativas assumiriam formas diferentes dependendo do espaço no qual a composição – ou a 'totalização' – é feita.” (SEN, 2000, p. 116) 74

96

liberdade política e liberdade substantiva uma desenvolve a outra no sentido de gerar/ampliar autonomia para o indivíduo. Ambas dimensões, nesse caso, são constituintes do que para ele seria a liberdade individual, diretamente relacionada à autonomia. A ligação entre liberdade individual e realização de desenvolvimento social vai muito além da relação constitutiva – por mais importante que ela seja. O que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas. As disposições institucionais que proporcionam essas oportunidades são ainda influenciadas pelo exercício das liberdades das pessoas, mediante a liberdade para participar da escolha social e da tomada de decisões públicas que impelem o progresso dessas oportunidades. (SEN, 2000. p. 19)

O que queremos avançar nas análises de Sen (2000) é que, tanto a liberdade substantiva quanto a política podem sofrer uma predeterminação, principalmente no contexto da pósmodernidade, o que para Guattari (1996) pode ser entendido como modelos de subjetividade ou modos de subjetivação, os quais para ele, deveriam ser o próprio objeto de interesse de uma análise micropolítica. Nessa esteira seguem as observações de Hardt e Negri (2001): As grandes potências industriais e financeiras produzem, desse modo, não apenas mercadorias mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades, relações sociais, corpos e mentes – ou seja, produzem produtores. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 51)

Trata-se portanto de entender que tanto as liberdades políticas e substantivas se encontram atreladas a um modo de reprodução mais amplo, uma biopolítica introduzidas pela vida capital, aonde independente da ação ativa do indivíduo a autonomia e a emancipação não se garantem apenas pela preservação dessas liberdades através dos direitos civis ou institucionais. O capitalismo é obrigado a construir e impor seus próprios modelos de desejo, e é essencial para sua sobrevivência que consiga fazer com que as massas que ele explora os interiorizem. (…) As relações de produção capitalistas não se estabelecem só na escala dos grandes conjuntos sociais; é desde o berço que modelam um certo tipo de indivíduo produtor-consumidor. Por não dispor de modelos comprovados, e considerando a desadaptação das antigas fórmulas fascistas, stalinistas e, talvez, também social-democratas, o capitalismo é levado a buscar, em seu próprio seio, fórmulas de totalitarismo melhor adaptadas. (…) Desenvolvem-se novas formas de fascismo molecular: um banho-maria no familialismo, na escola, no racismo, nos guetos de toda natureza, supre com vantagens os fornos crematórios. Por toda parte, a máquina totalitária experimenta estruturas que melhor se adaptem à situação: isto é, mais adequadas para captar o desejo e colocá-lo a serviço da economia de lucro. (GUATTARI, 1985, p. 188)

O que queremos apreender desse trecho é que a liberdade como propulsora dos desejos, vontades e interesses – que no nosso caso se constituem como componentes primordiais da interação em rede e fundamental para o coworking – é tomada como peça chave no momento 97

atual e das biopolíticas reinantes. Por isso é a liberdade – e nessa medida, as próprias escolhas e desejos que fazem parte da vida do indivíduo – que agora é trabalhada pelos artifícios promotores de flexibilidade e oportunidade de realizações inerentes das tecnologias informacionais e sociais presente no contexto pós-moderno. Technology is redefining the borders of the spaces where we work. We have laptops, iPads, and smartphones. The information and tools we need to work exist in digital form– as apps that function on mobile devices anywhere. Meetings and briefings are less centralized and can be more efficient over chat or Skype with little need for face-to-face time. We don’t necessarily need the traditional office structure to connect with our colleagues and be productive. (...) It might have been a tough pill to swallow initially, but many companies are catching on to these flexible work arrangements with the assurance that their employees are working out of professional venues and have access to facilities with the right technology to make virtual working possible. (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 16-17) Para quem gere pessoas e processos de mudança, a organização é a mensagem: a forma como os trabalhadores estão organizados, como se distribuem pelo espaço disponível (quando as empresas têm espaços de trabalho físicos, claro!) e como interagem uns com os outros nos diferentes estádios de produção é mais determinante do que tudo o resto. É disso que nos fala esta obra: da necessidade de revermos, cada empresa e cada um de nós, a nossa relação com o trabalho. (GOLÇALVES; QUARESMA, 2013, p. 13)

Esses dois trechos nos mostram como decorrem estratégias a fim de interiorizar no indivíduo dinâmicas de reprodução das quais depende a própria sobrevivência econômica capitalista. Trata-se da própria vida, do controle sobre a subjetividade que se encontra em jogo. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que cria oportunidades que contemplam desejos únicos, molecularizados, esses artifícios organizam e homogenizam toda fragmentação através da garantia de conquistas por meio de máquinas capitalísticas de consumo material e simbólico que, ao contrário de gerar autonomia e emancipar os indivíduos dos seus grilhões, criam uma perversa sensação de comando por parte do indivíduo, mas, na verdade, o condiciona mais intrinsecamente, ou seja, no campo de sua subjetividade, à formatação dos interesses sistêmicos do capital. E em congruência ao que expomos acima essa relação inscreve nesse panorama mais um tipo de capital: o capital humano. Podemos dizer que o capital humano explicita em si não só a nova arena da economia reestruturada, mas introduz de maneira implícita as práticas biopolíticas e a subjetividade modelada de um novo perfil de profissional. Esse novo perfil se encaixa no que vemos dentro dos espaços de coworking. O capital humano [...] é um conjunto de capacidades, destrezas e talentos que, em

98

função do avanço do capitalismo, deve se tornar valor de troca. [...] “o humano”, um conjunto de habilidades, destrezas e aptidões próprias dos homens, adquire valor de mercado e se apresenta como forma capital – entendido como uma soma de valores de troca que serve de base real a uma empresa capitalista. Assim, a partir de um determinado momento que chamamos de invenção do capital humano, o capital, conceito necessariamente abstrato, passa a se apresentar coberto com roupas humanas; vestindo características e atributos até então apenas vistos no homem. O capital, desta vez, concretiza-se não em dinheiro ou mercadorias, mas em atributos humanos; o capital é investido de formas humanas. (LÓPEZ-RUIZ, 2007, 183-184)

A flexibilidade passa a ser tomada como um capital humano, tanto para os profissionais autônomos quanto para as empresas contratantes. Um artigo recente do jornal O Globo salientou esse comportamento mundial: Entre os entrevistados, mais de 43% preferem um modelo flexível de trabalho a receber um aumento salarial de 10%. Quando questionados sobre a possibilidade de ganhar 20% a mais, 36% dos entrevistados ainda assim prefeririam dias e horários mais adaptáveis. (O GLOBO, 2014)75

No entanto é preciso refletir sobre esse processo e colocar em pauta o fato de que a flexibilidade pode ter se tornado um capital humano não porque gera qualidade de vida ao indivíduo, mas porque gera lucros às empresas que o adota uma vez que amenizam os conflitos presenciais, diminuem as despesas com funcionários locais e aumentam positivamente o valor da empresa diante dos funcionários beneficiados. No entanto, como já se observou posteriormente, tal flexibilidade na grande maioria das vezes é adotada como forma de manter ou aumentar a produtividade dos profissionais. Trata-se de uma nova forma de política de controle, para além das instituições e para dentro da vida: uma biopolítica, e ao mesmo tempo, como veremos a diante, pode dar origem a uma biopotência. O termo biopolítica foi forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, vigentes desde o século 18. Centrada prioritariamente nos mecanismos do ser vivo e nos processos biológicos, a biopolítica tem por objeto a população, isto é, uma massa global afetada por processos de conjunto. Biopolítica designa pois essa entrada do corpo e da vida, bem como de seus mecanismos, no domínio dos cálculos explícitos do poder, fazendo do poder-saber um agente de transformação da vida humana. Um grupo de teóricos majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder e de sua racionalidade refletida tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida. A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. Vida inclui sinergia coletiva, cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/emprego/profissionais-estao-preferindo-flexibilidade-notrabalho-aumento-de-salario-14191031 . Acesso em: 10/10/2014. 75

99

biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo-sem-orgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico. Aquém da divisão corpo/mente, individual/coletivo, humano/inumano, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza. (PELBART, 2003, p. 24-25)

Portanto, ao mesmo tempo em que se legitima o ambiente democrático pela exaltação da livre escolha e da igualdade através do consumo material e simbólico, também controla potências diversas do desejo individual. No entanto, como observamos anteriormente, não estamos afirmando aqui o surgimento de um novo modelo para apreensão de massas. O que se configura na pós-modernidade é diferente. O que se deve dar conta agora são as multidões. Visualizar o tempo de agora como um momento das multidões e suas respectivas diversidades desejantes contribui e muito para alavancarmos um debate mais aprofundado sobre a configuração das redes na atualidade. Nesse contexto, as forças vivas presentes por toda parte na rede social deixam de ser apenas reservas passivas à mercê de um capital insaciável, e passam a ser consideradas elas mesmas um capital, ensejando uma comunialidade de autovalorização. Em vez de ser apenas objeto de uma vampirização por parte do Império, são positividade imanente e expansiva que o Império se esforça em regular, modular, controlar. A potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, afetação recíproca, produção de laço, capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. (PELBART, 2003, p. 23)

No entanto, o caso do coworking nos permitir ver que apesar das diferenças sociais e econômicas presentes nessa multidão, as quais resultam diferentes oportunidades e mobilidades, ambas as condições materiais e culturais são orientadas pelo indivíduo pósmoderno em nome da flexibilidade, ou seja, pela priorização de uma conduta e subjetividade flexível e conectada. Dessa maneira, os coworkers podem ser sentir como portadores de uma liberdade, mas no entanto, nessas dadas condições, estão tão condicionados quando as demais parcelas da classe trabalhadora, ou seja, não são reservas meramente passivas, mas como observa Pelbart (2003) no trecho acima, eles correspondem ao próprio capital. A rede como forma associativa da contemporaneidade coloca em articulação os desejos, interesses e escolhas presentes dentro de uma multidão esquiza. Assim como pontua Hardt e Negri (2001), “o desenvolvimento de redes que se comunicam tem uma relação orgânica com a emergência da nova ordem mundial – é, em outras palavras, efeito e causa, produto e produtor” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 51). Diferente da massa que é “homogênea, compacta, contínua, unidirecional”, a multidão é “heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional” (PELBART, 2003, p. 26). Dessa forma, a razão das práticas do trabalho flexível como as 100

oferecidas pelos espaços de coworking se dá em relação principalmente à reprodução das relações sociais diversas da sociedade pós-moderna, pois “nenhum objeto, nenhuma coisa existe ou tem movimento numa sociedade humana exceto pela significância que os homens lhe possam atribuir” (SAHLINS, 2007, p. 180). Trata-se, portanto, de uma (...) qualidade singular da sociedade capitalista: não é que ela não consiga funcionar com um código simbólico, mas esse código funciona como um conjunto aberto, que responde aos eventos que ele orquestra e assimila, de modo a produzir versões ampliadas de si mesmo. (SAHLINS, 2007, 197)

Diante de tanta diversidade e dispersão, a forma mais segura de manter o controle e organização dos indivíduos em sociedade se dá pela inserção do mesmo nas potencialidades da subjetividade do homem, ou seja, na sua vida. Nesse processo, as fórmulas de semiotização, nunca foram tão extensivamente usados nessa estratégia. De acordo com Guattari (1985), O capital não é uma categoria abstrata, é um operador semiótico a serviço de formações sociais determinadas. Sua função é assumir o registro, a regulagem, a sobrecodificação das formações de poderes próprios às sociedades industriais desenvolvidas, das relações de força e dos fluxos relativos só conjunto das potências econômicas do planeta. (…) Os padrões de referência não têm outro papel a senão o de contagem, referenciação relativa, regulagem transitória. Uma verdadeira quantificação dos poderes só poderia basear-se em modos de semiotização, em conexão direta com formações de poder e com agenciamentos produtivos (tanto materiais quanto semióticos), devidamente localizados em coordenadas sociais. (GUATTARI, 1981, p. 191-192)

Nesse mesmo sentido, no entanto em outras palavras, Pelbart (2003) nos expõe essa problemática: De fato, como poderia o Império atual manter-se caso não capturasse o desejo de milhões de pessoas? Como conseguiria ele mobilizar tanta gente caso não plugasse o sonho das multidões à sua megamáquina planetária? Como se expandiria se não vendesse a todos a promessa de uma vida invejável, segura, feliz? Afinal, o que nos é vendido o tempo todo, senão isto: maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir? O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida – e mesmo quando nos referimos apenas aos estratos mais carentes da população, ainda sim essa tendência é crescente. Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que acessamos constantemente, absorvemos maneiras de viver, sentidos de vida, consumimos toneladas de subjetividade. Chame-se como se quiser isto que nos rodeia, capitalismo cultural, economia imaterial, sociedade de espetáculo, era da biopolítica, o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de relação entre o capital e a subjetividade. O capital, como o disse Jameson, por meio da ascensão da mídia e da indústria de propaganda, teria penetrado e colonizado um enclave até então aparentemente inviolável, o Inconsciente. Mas esse diagnóstico é hoje insuficiente. Ele agora não só penetra nas esferas as mais infinitesimais da existência, mas também as mobiliza, ele as põe para trabalhar, ele as explora e amplia, produzindo uma plasticidade subjetiva sem precedentes, que ao mesmo tempo lhe escapa por todos os lados. (PELBART, 2003, p. 20)

O que nos interessa para o debate sobre as redes sociais no momento atual é ter em 101

mente que mesmo com a inserção de novos atores, interesses, diversidades que impõe perspectivas moleculares em jogo, não podemos exaltar a pós-modernidade como um momento de abertura da democratização e de oportunidades inúmeras. Mesmo com a disponibilidade e a circulação de informações em um âmbito jamais visto anteriormente o projeto de ação ou a própria ação veiculada pelos agentes em meio a sociedade estão atrelados, interagindo com dimensões molares de poder que visam obter o controle de suas singularidades a fim de manter a sobrevivência do próprio modo de produção e reprodução social, no entanto, agora sob outras estratégias (GUATTARI, 1985). O problema que se constitui aqui é que essas relações de poder são na grande maioria das vezes ilusoriamente subvertidas, seja pelo discurso da flexibilidade, da liberdade de escolha, da acessibilidade de informação, da possibilidade de ingressar em redes de interesse compartilhado. É como se o indivíduo se visse autônomo em suas escolhas, mas no entanto, decisões prévias são constituídas, formatadas por uma sistematização maior de poder e controle, seja ele figurado pelo Império, como propõe Negri e Hardt (2000) ou pelo CMI – capitalismo mundial integrado, como sugere Guattari (1985). A máquina imperial vive da produção de um contexto de equilíbrios e/ou de redução de complexidades, pretendendo apresentar um projeto de cidadania universal e, para isso, intensificando a eficácia de sua intervenção em cada elemento de relação comunicativa, ao mesmo tempo em que dissolve identidade e história de forma completamente pós-modernista. Ao contrário do que muitos relatos pós-modernistas gostariam que acontecesse, entretanto, a máquina imperial, longe de eliminar narrativas principais, na realidade as produz e reproduz (em particular, narrativas principais ideológicas) para validar e celebrar o próprio poder. Nessa justaposição de produção pela linguagem, produção linguística da realidade e linguagem de autovalidação reside uma chave fundamental para a compreensão da eficácia, validade e legitimação do direito imperial. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 53)

No sentido do trecho acima, para nós, as redes da contemporaneidade – e principalmente o coworking – podem ser classificadas como máquinas capitalísticas de semiotização, que por meio da evocação de objetivos e ideais múltiplos, teriam como utilidade principal neste momento, organizar as inúmeras individualidades desejantes, uma vez que põem em compartilhamento e articulação interesses subjetivos que estão sempre em busca de autonomização. Por outro lado, essas subjetividades, além de estarem em consonância a projetos pós-modernos de identidade, individualidade e liberdade, podem ainda sim guardarem em si potencialidade singulares que, mais do que individuais, são capazes de se desenvolverem no sentido da conquista de uma autonomia mais verdadeira76. Sendo em uma perspectiva ou em

É importante ressaltar que, para Guattari, existe uma grande diferença entre individualidade e singularidade. Para ele, a primeira estaria muito mais ligada às condições modulares presentes nas subjetividades formatada pelas máquinas capitalísticas que modelam desejos segundo a sua orientação; já a segunda seria algo mais legítimo e 76

102

outra, as redes colaboram para a ordenação dos interesses por meio das subjetividades, formatadas ou legítimas, porém esquizas, a fim de manter sob organização e controle dinâmicas variáveis e relativas da sociabilidade humana nas mais diversas dimensões da vida social. Matar o sujeito ou sua capacidade de agir em meio a sociedade pós-moderna não é nosso intuito77. Ainda assim, por mais que os indivíduos sofram influência maciça e imperceptível do CMI, seja pelas suas formas materiais ou simbólicas, é importante ressaltar que nosso tempo também possibilita agenciamentos coletivos transformadores dessa ordem de submissão. Não se trata de uma transformação totalizada e regida de forma única e uníssona, mas de pequenas revoluções, no plano molecular, capaz de conectar os indivíduos a suas verdadeiras singularidades e assim contribuir para com o projeto pela busca de autonomia real (GUATTARI, 1985), a qual possa fornecer componentes verdadeiros para uma emancipação das subjetividades em relação às máquinas modelizantes dos desejos e interesses. Como já observou Sahlins (2007, p. 198) “o capitalismo não é pura racionalidade: é uma forma definida de ordem cultural, ou uma ordem cultural que age de uma forma particular”. Em outras palavras, no período histórico que nos encontramos também podemos enxergar a possibilidade de transformação dos grupos sujeitados em grupos sujeitos. Os grupos sujeitos opõem-se aos grupos sujeitados. Tal oposição implica uma referência micropolítica: o grupo sujeito tem por vocação gerir, na medida do possível, sua relação com as determinações externas e com sua própria lei interna. O grupo sujeito, ao contrário, tende a ser manipulado por todas as determinações externas e a ser dominado por sua própria lei interna (superego). (GUATTARI, 1985, p. 104-105)

sensível, formado pela substância histórica do próprio ser, que não o individualiza segundo padrões, mas o conecta e forma sua consciência a respeito das diversas dimensões da vida. Para Guattari “a estrutura expulsa as singularidades, e, por isso mesmo, expulsa a história. (…) Em princípio, o sistema não expulsa as singularidades, ele as extrai, para explorá-las para seus próprios fins. (…) Da perspectiva dos agenciamentos 'maquínicos', as singularidades podem igualmente ser levadas a essas diversas condições de resíduos, de objetos parciais, ou de esboços de uma mudança calculável. Mas não deixam de constituir o lugar de um outro possível a partir do qual poderá se desenvolver um antes e um depois, rupturas, coordenadas de espaço, de tempo, de substância. Não qualquer substância! Mas aquelas que conferem, em última análise, sua consistência, sua compacidade aos agenciamentos em que habitam (por isso são elas que datam e designam autenticamente os agenciamentos). (…) Só a singularidade é criadora de processo singular, isto é, de história.” Assim, “os indivíduos, enquanto indivíduos, são fabricados por este sistema para responder aos imperativos de seu modo de produção. (…) Tudo que se constrói, no estudo das ciências humanas, em torno do indivíduo como objeto privilegiado, só reproduz a cisão entre o indivíduo e o campo social.” (GUATTARI, 1985, p. 163) 77 No encaminhamento de nossa crítica, estamos de acordo com Boltanski e Chiapello (p. 430): “Não se trata aqui de cultuar uma crítica reacionária, esquecendo a intensidade e a validade das denúncias feitas ao paternalismo, à burocratização das organizações e, sobretudo, ao taylorismo, idealizasse as formas de controle associadas a um modo “fordiano” de regulação – para retomar o termo popularizado pela escola da regulação. Em contrapartida, não se pode ignorar aquilo que, nas formas atuais do capitalismo, tende a enquadrar e, em certa medida, a cooptar a autonomia que, embora apresentada como possibilidade e também direito, é, de algum modo, exigida das pessoas cuja grandeza é cada vez mais apreciada em função de sua capacidade de autorrealização constituída como critério de avaliação”.

103

O que cabe a nós entender nesse ponto é que o processo histórico da relação indivíduo/sociedade não está acabado ou perpetuado. O momento atual é uma arena a qual podemos encontrar revoluções e subordinações, sejam elas visíveis ou não. Apenas devemos ter em mente que em nenhum outro momento a dimensão revolucionária e autônoma da vida do homem foi tomada como útil nos processos de reprodução capitalística. Da mesma maneira, as redes e todo aparato tecnológico informacional e social que as perpassam podem acentuar individualidades maquínicas como singularidades sensíveis. Por isso, lançar olhares ao indivíduo e a formação dos seus interesses, desejos e objetivos se tornam tão pertinente em uma análise de rede quanto o estudo da estrutura em si. Mais do que a conexão, o que nos interessa aqui é o que os faz conectar. Reconhecer o tipo de informação, maquínica ou singular, que está em jogo. Nesse sentido de agenciamentos coletivos possíveis e positivos devemos fazer adiante considerações a respeito da biopotência e micropolíticas engendradas em meio suas articulações. CAPÍTULO 4 – A BIOPOTÊNCIA E A MICROPOLÍTICA: FUNDAMENTOS PARA UMA CONCLUSÃO SOBRE A REDE E SUAS RELAÇÕES Após longas considerações a respeito das novas formas de controle que se pautam na subjetividade do homem, da conceituação do que seria uma biopolítica no momento atual e das falácias pós-modernas colocadas como potencialidades promotoras de autonomia e emancipação, gostaria de tecer nossas conclusões a partir de um capítulo sobre a biopotência, pois não é nosso intuito forçar nosso trabalho a se pautar apenas no polo da dominação, mas visualizar potencialidades de uma transformação. Muito cedo o próprio Foucault intuiu que aquilo mesmo que o poder investia – a vida – era precisamente o que doravante ancoraria a resistência a ele, numa reviravolta inevitável. Mas talvez ele não tenha levado essa intuição até as últimas consequências. Coube a Deleuze explicitar que ao poder sobre a vida deveria responder o poder da vida, a potência “política” da vida na medida em que ela faz variar suas formas e, acrescentaria Guattari, reinventa suas coordenadas de enunciação. De maneira mais ampla e positiva, es potência da vida no contexto contemporâneo equivale precisamente à biopotência da multidão, tal como descrita acima. (…) Afinal o poder, como diz Negri inspirado em Espinosa, é superstição, organização do medo: “Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo: este ponto... é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais exploradas; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe; pois tudo isso é a vida e não a morte”. (PELBART, 2003, p. 25-27)

O trecho acima quer nos mostrar que assim como a vida pode ser o campo da dominação 104

por parte das máquinas capitalísticas, é também na dimensão da própria vida que podem acontecer insurgências de transformações que rumam positivamente para a construção de um projeto autônomo. Pequenas revoluções, situadas nos planos molares da vida, poderiam guiar rupturas à lógica modelizante que vimos até agora. As redes, a exemplo dos espaços de coworking, nos mostraram o quanto o plano simbólico e material se encontra internalizado nos indivíduos que cada vez mais se baseiam nos projetos flexíveis do mundo do trabalho atual. Vimos que as redes baseadas nos espaços de coworking são tanto resultado, quanto resultam complementos para estratégias de reorganização de um mercado de trabalho instável. Trata-se de manter os trabalhadores fiéis as didáticas capitalistas, no entanto, ancorando agora sua cartilha em preceitos de liberdade e autonomia. No entanto, podemos ver que no mesmo terreno em que surgem as limitações e modelizações, podem surgir também as alternativas, a construção de uma interação se não mais autônoma, consciente dos caminhos a serem trilhados para garantir uma verdadeira singularidade. Vi mais claramente essas insurgências durante o trabalho de campo. Apesar de serem indivíduos que se alinham a uma dinâmica de trabalho construída para ser coerente com as demandas sistêmicas atuais, eles garantem uma interação dentro do espaço de coworking, segundo a qual, eles próprios dizem ser o sentido para suas realizações profissionais. Por meio dos relatos e dos diálogos que presenciei, pude perceber que existe uma relação de troca de informações e serviços, um ecossistema – como os próprios coworkers definem – onde o benefício de um acaba por trazer um retorno positivo aos demais, principalmente quando se trata da construção e encaminhamento de projetos. Pude perceber que muitos deles são clientes entre si. Essa relação é evidente em vários espaços: Within three months of getting a desk at Affinity Lab, I had been referred business by my coworkers that covered my rent for the first year. Dozens of Affinity Lab member companies have become clients of mine, creating direct revenue opportunities. I’ve received approximately $50,000 in direct revenues from Affinity Lab members and another $100,000+ in referrals. (J.C, 2011)78 Podemos dizer que tais alternativas se dão como micropolíticas, relações de construção

Tradução nossa: “Dentro de três meses em uma mesa no Affinity Lab, eu tinha conseguido encaminhar negócios que cobriram meu aluguel no primeiro ano através dos meus coworkers. Dúzias de membros de empresas que fazem parte da Affinity Lab se tornaram meus clientes, criando oportunidades direta de renda. Recebi aproximadamente $50.000 em receita direta dos membros do Affinity Lab e outros $100.000 em referências. Relato retirado do livro Working in the unoffice (2011, p. 1). Obra disponível em: https://www.goodreads.com/ebooks/download/14745356-working-in-the-unoffice. Acesso em: 23/09/2014. 78

105

e trocas coletivas, que apesar das inúmeras condenações que podem sofrer dentro do contexto que se insere, pode também contribuir para as singularidades desejantes ao invés de fomentar individualidades modeladas. O nosso entendimento acerca das micropolíticas se alinham aos de Guattari (1996). Para o autor, A questão micropolítica – ou seja, a questão de uma analítica das formações do desejo no campo social – diz respeito ao modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais amplas (que chamei de “molar”), com aquele que chamei de “molecular”. Entre esses dois níveis, não há uma oposição distintiva, que dependa de um princípio lógico de contradição. Parece difícil, mas é preciso simplesmente mudar de lógica. Na física quântica, por exemplo, foi necessário que um dia os físicos admitissem que a matéria é corpuscular e ondulatória, ao mesmo tempo. Da mesma forma, as lutas sociais são, ao mesmo tempo, molares e moleculares... (GUATTARI, 1996, p. 127)

A rede é a arena dessas micropolíticas advindas de um novo momento, e como tal, depende das relações e relativizações que nela são inseridas por seus indivíduos. Se na modernidade a resistência obedecia a uma matriz dialética, de oposição direta das forças em jogo, com a disputa pelo poder concebido como centro de comando, com as subjetivações identitárias dos protagonistas definidas pela exterioridade recíproca e complementariedade dialética, o contexto pós-moderno suscita posicionamentos mais oblíquos, diagonais, híbridos, flutuantes. Criam-se outros traçados de conflitualidade. Talvez com isso a função da própria negatividade, na política e na cultura, precise ser revista. Certas dinâmicas urbanas (nomadismos sociais, novos corpos pós-humanos, redes sociais de autovalorização, devires minoritários, êxodo e evacuação de lugares de poder) exemplificam essa mutação na lógica da resistência, indo além das figuras clássicas da recusa. (PELBART, 2003, p. 136)

Nesse sentido, não se trata de criar uma massa em prol da revolução, mas de “pensar a constituição de um 'corpo' múltiplo com suas relações específicas de velocidade e de lentidão” e dessa forma “pensar um corpo grupal como essa variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como afetação recíproca entre potências singulares, numa certa composição de velocidade e lentidão” (PELBART, 2008, p. 2). De qualquer maneira, construir algo é sempre uma questão de experimentação entre os indivíduos e desses com os seus contextos, que por vezes são diversos. Behavioral studies have long shown that sharing and collaboration can lead to instances of creativity and innovation in the workplace. It only makes sense that organizations and small businesses find that they gain more from working together, rather than alone. This type of collaborative working doesn’t mean you surrender your independence and lose your individuality, but instead share resources and space— and in the process find common ground with each other, lend expertise, and share ideas. (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 4)

Entendemos por meio desse trabalho que, para conquistar a verdadeira potência das redes, e assim, dar início ao fomento da tão buscada autonomia, é necessário que tal organização 106

ultrapasse a homofilia79 que muitas vezes a define. Na verdade, os meios de mudar a vida e de criar um novo estilo de atividade, de novos valores sociais, estão ao alcance das mãos. Falta apenas o desejo e a vontade política de assumir tais transformações. É verdadeiramente indispensável que um trabalho de ecologia social e de ecologia mental seja realizado em grande escala. Essa tarefa concerne às modalidades de utilização do tempo liberado pelo maquinismo moderno, novas formas de conceber as relações com a infância, com a condição feminina, com as pessoas idosas, as relações transculturais... A condição para tais mudança reside na tomada de consciência de que é possível e necessário mudar o estado de coisas atual e de que isso é de grande urgência. É apenas em um clima de liberdade e de emulação que poderão ser experimentadas as vias novas do habitat e não através de leis e de circulares tecnocráticas. (GUATTARI, 1992, p. 174)

No entanto, como podem essas pequenas revoluções acontecerem em meio a disseminação de estratégias que cada vez mais têm como alvo a dominação da subjetividade? Como a rede, na mesma medida que pôde vir a trabalhar para estratégias de dominação e limitação modelizante, pode ser cada vez mais consciente de seu poder molecular, ou seja, de sua capacidade de transformar dominações totalizantes em insubordinações transformadoras? Deveremos esperar transformações políticas globais antes de empreender tais “revoluções moleculares” que devem contribuir para mudar as mentalidades? Encontramo-nos aqui diante de um círculo de dupla direção: de um lado a sociedade, a política, a economia não podem mudar sem uma mutação das mentalidades; mas, de um outro lado, as mentalidades só podem verdadeiramente evoluir se a sociedade global seguir um movimento de transformação. A experimentação social em grande escala que preconizamos constituirá um dos meios de sair dessa “contradição”. Apenas uma experiência bem-sucedida de novo habitat individual e coletivo traria consequências imensas para estimular uma vontade geral de mudança. (GUATTARI, 1992, p. 175)

O que podemos dizer até agora é que envolver a experiência do homem em suas ações e construções é tanto o primeiro passo para uma tomada de consciência a respeito de suas afetações como também é o que buscamos em uma análise de redes, que visa entender as influências presentes na vida dos indivíduos que constroem estruturas coletivas com o objetivo de garantir aumento de autonomia, seja em seu contexto social, econômico ou político, visando assim emancipar-se das subordinações capitalísticas. Assim como pontua Hardt e Negri (2001): O que precisa ser analisado [...] é justamente a produção de localidade, ou seja, a máquina social que cria e recria as identidades e diferenças que se costuma entender como locais. As diferenças de localidade não são preexistentes nem naturais, mas efeitos de um regime de produção. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 64)

Portanto, a partir do momento que articulamos o indivíduo – tendo como base uma análise prévia do contexto social em que se insere – bem como as características de suas ações, informações que pinça e distribui, à formatação de uma estrutura de rede, a qual coloca em

79

Marques, E. (2005, p. 41).

107

contato interesses, desejos e visões de mundo, podemos visualizar como essas experiências moleculares podem ser capazes de condená-los ou absolvê-los dos moldes dominantes de reprodução social capitalística. Elias (1994) já havia salientado sobre a importância de entender a combinação das relações dos indivíduos: [...] a combinação, as relações de unidades de menor magnitude – ou, para usarmos um termo mais exato, extraído da teoria dos conjuntos, as unidades de potência menor – dão origem a uma unidade de potência maior, que não pode ser compreendida quando suas partes são consideradas em isolamento, independente de suas relações. (ELIAS, 1994, p. 7)

Giddens (2003), em sua teoria da estruturação também nos ajuda a complementar tal visualização: De acordo com a teoria da estruturação, o momento da produção da ação é também um momento de reprodução nos contextos do desempenho cotidiano da vida social, mesmo durante as mais violentas convulsões ou as mais radicais formas de mudança social. Não é correto encarar as propriedades estruturais de sistemas sociais como “produtos sociais”, já que com isso tende-se a sugerir que atores pré-constituídos se reúnem, de alguma forma, para criá-las. Ao reproduzirem propriedades estruturais (…) os agentes também reproduzem as condições que tornam possível tal ação. A estrutura não tem existência independente do conhecimento que os agentes possuem a respeito do que fazem em sua atividade cotidiana. Os agentes humanos sempre sabem o que estão fazendo no nível da consciência discursiva, sob alguma forma de descrição. Entretanto, o que eles fazem pode ser-lhes inteiramente desconhecido sobre outras descrições, e talvez conheçam muito pouco sobre as consequências ramificadas das atividades em que estão empenhados. (GIDDENS, 2003, p. 31)

Tomando a observação de Giddens (2003) como medida, não queremos desconsiderar o potencial de ação dos indivíduos na pós-modernidade, pois entendemos que assim como o campo de controle e reprodução do sistema capitalista se configura a partir das subjetividades e da vida dos indivíduos, temos em mente que é também a partir dessas mesmas dimensões que se torna capaz a insurgência de transformações genuinamente contribuintes para o desenvolvimento de uma verdadeira subjetividade e, consequentemente, autonomia e emancipação. É nessa direção que partiremos à importância da micropolítica. Entender como as redes, universos menores, grupais, desejantes, que como já vimos são inúmeras vez usados em prol de estratégias dominantes ao contribuir para internalização de práticas limitantes, podem também ser também ninhos nos quais podem se dar experiências capazes de atingir e transformar o âmbito macro da vida social. Propulsores ou limitantes, realizamos desse capítulo um contraponto ao anterior, pois ele se faz muito necessário. No entanto, não deixamos de ter em mente que “nossa tarefa mais urgente será denunciar incansavelmente as formas econômicas que por enquanto reinam absolutas e incontestadas – uma coisificação e mercantilização

108

que se tornaram tão universalizadas que parecem entidades quase naturais e orgânicas” (ANDERSON apud JAMESON, 1999, p. 147).

Concluímos, portanto, que para visualizarmos a “identidade” de uma rede, ou seja, para qual finalidade se propõe, se faz necessária uma discussão sobre a importância das análises micropolíticas na contemporaneidade. Sabemos que para uma análise de redes que tem como objetivo tirar avaliações sobre os resultados de sua organização, torna-se necessário uma abordagem tanto sociológica, a qual empreendemos até então; quanto antropológica, que trouxemos nos capítulos anteriores através das definições acerca da subjetividade do indivíduo. Por mais que a sociologia tenha dado o tom até o presente momento, como já vimos, a análise das redes não é um trabalho que se dá através de uma única abordagem, e assim, a perspectiva antropológica, e em certa forma política, também se fazem cruciais. Sabendo disso, no caso das redes de coworking, vimos através da articulação dos dados do survey e da teoria social contemporânea a respeito das redes o quanto componentes de um discurso sócio-econômico está embutido na dimensão cultural e simbólica, contribuindo ambos, para a construção de uma subjetividade modelizada, ou seja, um comportamento coerente para o sistema de organização e reprodução do capital. A visualização e análise desse discurso presente tanto na teoria quanto na fala dos indivíduos nos ajudou a entender, paralelamente através dos dados empíricos do coworking, o quanto essa dominação capitalística da pós-modernidade é dada como elemento cultural, fundamental, disfarçado sob o código da flexibilidade como liberdade. Por isso, na observação das micropolíticas da pós-modernidade, esse diálogo entre a dimensão sociológica e antropológica se faz ainda mais fundamental, uma vez que lida com microcosmos de grupos, coletividades contextualizados em universos macrossociais da vida em sociedade. A interação entre indivíduo e sociedade, por mediação de estruturas definidas – que no nosso caso, é a rede – revela influências e resoluções recíprocas, que brotam de experiências tanto práticas quanto simbólicas. As pontuações de Sahlins (2011) nos ajudam e muito nessa empreitada. A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. A síntese desses contrários desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, as pessoas envolvidas. Porque, por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural. (SAHLINS, 2011, p. 7)

Já nessa introdução, Sahlins (2011) sintetiza as colocações que viemos tecendo até os capítulos anteriores, principalmente a partir das observações de Guattari. No entanto, o que 109

queremos salientar a partir de agora é o fato de que é no universo das micropolíticas que se dão as interações dialéticas, as relações de construção de subjetividade, as criações transformadoras ou modelizantes; tudo isso, partindo do pressuposto que é também por meio das relações micropolíticas que visualizamos mais fácil o jogo de afetação recíproca que existe entre o indivíduo e a sociedade, o molecular e o molar, o estruturado e o estruturante. (…) o modo como uma pessoa decide e age desenvolve-se nas relações com outras pessoas, numa modificação de sua natureza pela sociedade. Mas o que assim se molda não é algo simplesmente passivo, não é uma moeda sem vida, cunhada como milhares de moedas idênticas, e sim o centro ativo do indivíduo, a direção pessoal de seus instintos e de sua vontade; numa palavra, seu verdadeiro eu. O que é moldado pela sociedade também molda, por sua vez: é a auto-regulação do indivíduo em relação aos outros que estabelece limites à auto-regulação destes. Dito em poucas palavras, o indivíduo é, ao mesmo tempo, moeda e matriz. Uma pessoa pode ter mais funções de matriz do que a outra, mas é sempre também uma moeda. (ELIAS, 1994, p. 52)

A rede deve ser entendida por nós como uma construção que se dá por meio de micropolíticas. Apesar de termos pretendido desvelar as falácias existentes na naturalização de algumas concepções a respeito das práticas dos indivíduo e das estruturas que o envolve, não podemos deixar de pontuar o potencial de transformação que essas organizações trazem em si. Many of the solutions to issues we face today— such as reducing our environmental impact on the planet or figuring out the complexities of ownership in the digital age— can be traced to the fundamentals of collaboration and sharing. (DEGUZMAN; TANG, 2011, p. 3)

Sem usar o termo micropolítica, Gilberto Velho (2004) nos esboça como se dariam essas relações: A idéia de que em qualquer sociedade e cultura ou situação social existe um campo de possibilidades parece-me crucial para perceber a mudança. É a partir da delimitação desse campo que se podem perceber a gênese e a viabilidade de projetos específicos. (…) É evidente, portanto, que existem ambigüidades e que os projetos, especialmente em uma sociedade complexa heterogênea, não absolutamente coerentes e monolíticos. Na prática social aparecem contradições e complicações que vão, por sua vez, atuar sobre os projetos originais, transformando-os. De qualquer forma, o sujeito do projeto pode conscientemente mudá-lo, renegociando a realidade, em confronto com outros sujeitos – indivíduos ou grupos. O conflito entre projetos pode levar a situações de drama social, na acepção de Victor Turner, com a manipulação de paradigmas e versões da realidade (Turner, 1975). Desse confronto, novos paradigmas e versões podem surgir ou ser elaborados – mudança social e cultural, portanto. (VELHO, 2004, p. 108)

Dessa forma, ao realizarmos uma análise de rede, devemos ter em mente que estamos analisando também relações micropolíticas, as quais ocorrem tanto entre indivíduos dentro dessa estrutura, como entre esses indivíduos e o mundo exterior, previamente ou posteriormente a rede. Isso porque devemos levar em conta que, As redes sociais são padrões complexos de relações de diferentes tipos acumuladas ao

110

longo de trajetórias de vida e em constante transformação. Elas são heterogêneas – variam de indivíduo para indivíduo – são intrinsecamente dinâmicas e podem ser mobilizadas por eles de diversas maneiras dependendo da situação. Mesmo o sentido e o uso dessas redes podem variar para indivíduos de grupos sociais distintos. (…) devemos considerar que até mesmo as estratégias individuais e as representações dadas às situações sociais nas quais estão inseridos não existe previamente ou fora dessas relações. Consequentemente, as redes devem ser consideradas simultaneamente relacionais (no sentido de serem constituídas de relações) e relativas (no sentido de que sua mobilização pode variar dependendo da situação). Para conseguir essas dimensões plenamente, os estudos devem capturar ao mesmo tempo a sua estrutura (as próprias redes e suas características) e a sua mobilização na sociabilidade cotidiana. (MARQUES, 2005, p. 16)

Sendo nosso objeto de estudo a rede, não perdemos de vista dentro de uma análise micropolítica o fato de que esta é formada por indivíduos cuja os interesses, objetivos, desejos e subjetividades podem estar mais ou menos imbricado aos padrões molares que visam, através da ilusão de flexibilidade, liberdade e acessibilidade informacional, organizar e modular o grande caldo heterogêneo da pós-modernidade. Nessa perspectiva, a concepção micropolítica de Guattari (1996) nos é muito útil para entendermos o quanto essas relações podem gerar, em maior ou menor grau, possibilidade de ruptura com as máquinas modelizantes a fim de realmente liberar o indivíduo para o desenvolvimento de uma subjetividade singular. Tanto faz se as pulsões são diretamente remetidas a instintos do tipo etológico, ou definidas como pulsões muito mais elaboradas do ponto de vista semiótico na perspectiva freudiana, ou determinadas em sistemas estruturalistas que situam o imaginário em relação ao simbólico, ou ainda situadas em relação a sistemas de coação do sistemismo. (…) Essa problemática tem incidências micropolíticas e políticas imediatas. Nos movimentos de emancipação social, fora dos quadros tradicionais de organização, encontramos, quase que sistematicamente, a importação desses modelos maniqueístas (por exemplo, a oposição centralismo democrático versus espontaneísmo). Penso haver uma homeostase entre esse debate existente a nível político e social e todas as outras referências teóricas que se encontram na psicologia, na psicologia social, na psicanálise, etc. Sempre se volta para a idéia de que há necessariamente uma modelização simbólica, uma primazia de linguagens bem ordenadas, de modos de estrutura bem diferenciados, os quais teriam, necessariamente, de assumir e sobrecodificar uma economia supostamente indiferenciada do desejo e da espontaneidade. (GUATTARI, 1996, p. 214-215)

A rede necessita de uma análise em suas micropolíticas pois é através delas que iremos captar as experiências dos indivíduos que dela fazem parte, e dessa forma, poder vislumbrar os objetivos a que servem. Essas experiências se dão em meio a rede e resultam significados para fora dela, diante de outros grupos sociais e em relação ao contexto da vida em sociedade de maneira geral. Mas o que nos interessa aqui é que, a rede também é formatada por indivíduos cuja as subjetividades são construídas previamente a interação na rede, e por óbvio, influi na sua experimentação e portanto, nos arranjos que dão forma e caráter a rede em si. Por isso é preciso desconfiar desse tipo de categorização – molar/molecular –, que separa demasiadamente os campos. As máquinas produtivas capitalísticas funcionam mal, ou até nem funcionam, se não há essa captura de microprocessos de desejo, de

111

liberdade de singularização, pouco importa como chamemos. (GUATTARI, 1996, p. 129)

O que queremos deixar como conclusão é que podem haver rede mais emancipatórias que as outras e isso se deve ao conjunto de significados, formatados anteriormente, que é a ela articulado pelos seus membros. O homem como ser social traz em suas práticas e experiências informações e conceitos constituídos fora de si que podem ser mais ou menos internalizados em sua personalidade. Os elementos dinâmicos em funcionamento – incluindo o confronto com o mundo externo, que tem determinações imperiosas próprias e com outros povos, que têm suas próprias intenções paroquiais – estão presentes por toda a experiência humana. A história é construída da mesma maneira geral tanto no interior de uma sociedade, quanto entre sociedades. (…) Os homens em seus projetos práticos e em seus arranjos sociais, informados por significados de coisas e de pessoas, submetem as categorias culturais a riscos empíricos. Na medida em que o simbólico é, deste modo, pragmático, o sistema é, no tempo, a síntese da reprodução e da variação. (SAHLINS, 2011, p. 9)

Não se trata de querermos avançar sobre a rede uma visão psicanalítica, mesmo porque, esta aos moldes de ciência que comporta, não nos convém. Suas constatações não intuem e liberam transformações genuínas, mas contribuem para a conformidade e a ordenação dentro de máquinas capitalísticas modelizantes. Para além disso, se há o profundo interesse em lançarse sobre o campo da psique do indivíduo dentro da medida que nos é conveniente em uma análise sociológica e antropológica, essa se daria sob a forma de uma que não a institucionalizada80, uma vez que lidamos com um momento no qual tanto o exterior quanto o interior do indivíduo se encontra fragmentado e, no sentido tempo-espaço, passível de acomodação ou ruptura. Em linhas gerais, podemos dizer que não existe uma resposta única e direta à pergunta feita na introdução desse trabalho. Mais do que chegar a uma resposta pontual e específica, o trajeto que percorremos nos permitiu a pensar sobre a forma pela qual deve ser feita a análise das redes e o julgamento do que seria uma subjetividade consciente ou sujeitada. Por isso, todo nosso caminho até aqui pode, de certa forma, ser compatível ao que propôs Hardt e Negri (2001) em suas observações sobre as multidões e suas subjetividades: [...] Não estamos propondo a enésima versão da inevitável passagem pelo purgatório De acordo com Guattari (1996), “enquanto a psicanálise partia de um modelo de psique fundado no estudo das neuroses, baseado na pessoa e nas identificações, agindo a partir da transferência e da interpretação, a esquizoanálise inspira-se antes nas pesquisas que versam sobre a psicose; ela recusa a calcar o desejo nos sistemas personológicos; ela denega toda e qualquer eficácia à transferência e à interpretação.” Tradução do glossário escrito por Guattari para a edição inglesa de La Révolution Moléculaire (Molecular Revolution – Psychiatry and Politics, Peguin Books, 1984) incluído em F. Guattari, Les années d´hiver. Ed. Bernard Barrault, Paris 1986, acrescido de trechos de cartas de Guattari a S. Rolnik. 80

112

(aqui sob disfarce de uma nova máquina imperial) para oferecer uma centelha de esperança de futuros radiantes. Não estamos repetindo os esquemas de uma teleologia ideal que justifique qualquer transição em nome de um prometido fim. Ao contrário, nosso raciocínio aqui é baseado em duas abordagens metodológicas que pretendem ser não dialéticas e absolutamente imanentes: a primeira é crítica e desconstrutiva, visando subverter as linguagens hegemônicas e as estruturas sociais e, desse modo, revelar uma base ontológica alternativa que reside nas práticas criadoras e produtivas da multidão; a segunda é construtiva e ético-política, buscando conduzir os processos da produção de subjetividade para a constituição de uma alternativa social e política, um novo poder constituinte. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 66)

Assim, dizer que as redes de coworking servem estritamente como mecanismo de estranhamento, nos impede de ver o quanto a biopotência pode se fazer presente nas relações entre os indivíduos, mesmo estes estando em meio a um ambiente que visa molda-los. Nesse sentido, o que podemos dizer é que apenas comportar discursos em prol da flexibilidade e liberdade não garantem aos indivíduos uma maior participação autônoma sobre a vida em meio a sociedade, e dessa forma, não garante-se também uma melhor representatividade de seus interesses, uma vez que estes podem não promover de maneira positiva sua emancipação em relação as estratégias dominantes. Por isso, as redes não podem ser entendidas de forma unilateral. Podemos dizer que as redes, quanto formação estrutural, são neutras, ou seja, não têm um objetivo que por si só é prévio. Por isso, é através de suas ações, ou sejam, os discursos, informações e práticas que as circunscrevem que podemos dimensionar e colocar em análise o quanto as micropolíticas que as permeiam podem estar subordinadas a um comportamento dominante, sujeitado, homofílico, ou voltada para a insurgência de alternativas conscientes da verdadeira potência e das singularidades diversas do sujeito. Concluímos, portanto, que mais do que chegar a uma resposta hermética, conseguimos por meio do nosso trabalho colocar em pauta uma nova perspectiva de análise das relações em rede em nossos tempos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ANDERSON, Pierre. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. BARROS, Alexandre Moço. SILVA, José Roberto Gomes da. Percepções dos indivíduos sobre as consequências do teletrabalho na configuração home-office: estudo de caso na Shell Brasil. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, artigo 5, Mar. 2010. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BENTLEY Kaye. YOONG Pak. Knowledge work and telework: an exploratory study. Internet Research: Electronic Networking Applications and Policy, Nova Zelândia, v.10, n.4, p.346-356, 2000 113

BOLTANSKI, Luc. CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas: introdução, organização e seleção Sérgio Miceli. – São Paulo: Perspectiva, 2007. BRESSAND, Albert; DISTLER, Catherine. La planéte relationnelle. Paris: Flammarion,1995. DANNER, Fernando. O sentido da biopolítica em Michel Foucault. Revista Estudo Filosóficos, São João del-Rei, n. 4, p. 143-157, 2010. DEGENNE, Alain e FORSÉ, Michel. Introducing Social Networks. London: Sage, 1999. DOSSE, François. O império do sentido: a humanização das Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2003. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _________________. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1989.. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992. _______________. Micropolítica: cartografias do desejo. – 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996. _______________. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. HARDT, Michel. Negri, Antonio. Império. 2ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 23ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. LUCENA, Carlos. Trabalho, precarização e formação humana. Campinas, SP: Editora Alínea, 2008. LOPEZ-RUIZ, Oswaldo J. Os executivos das corporações transnacionais e o espírito do capitalismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro, Azougue, 2007. 114

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. MARCUSE, Hebert. Teoria das pulsões e liberdade. In: FROMM, Erich; MARCUSE, Hebert; MILLER, Karl. Marcuse polêmico. Lisboa: Presença, 1969, p.101-147. MARQUES, Eduardo. Redes sociais, segregação e pobreza. São Paulo: Unesp, 2010. MARTELETO, Regina Maria. Informação, rede e redes sociais – fundamentos e transversalidades. Informação & Informação. Londrina, v. 12, n. esp., 2007. MAUSS, Marcel. Catégories collectives de pensée et liberte. In: Oeuvre. Ed. Cit. V II, 1921. p. 121-125. PATRICKSON, Margaret. Teleworking: potential employment opportunity for older workers? International Journal of Manpower, Adelaide, Austrália; v.23, n.8, p.704-715, 2002. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. _________________. Vida e morte em contexto de dominação biopolítica. In: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, Out. 2008. _________________. Elementos para uma cartografia da grupalidade. In: SAADI, F.; GARCIA, S. (Org.). Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. PORTUGAL, Sílvia. Contributos para uma discussão do conceito de rede na teoria sociológica. Oficina do CES, nº 271, março de 2007. SAHLINS, Marshall. Cultura na prática. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. ________________. Ilhas de história. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. SHULTZ, Theodore W. O capital humano: investimento em educação e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. SILVA, Rogério Ramalho da. Home-officer: um surgimento bem sucedido da profissão pósfordista, uma alternativa positiva para os centros urbanos. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, Curitiba, v. 1, n.1, p. 85-94, jan./jun. 2009 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000. ____________. Desigualdade Reexaminada. 2ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 2008. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 14ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. 115

VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 150 p. VIANA, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013. WATTS, Duncan J. Seis graus de separação – A evolução da Ciência de Redes em uma era conectada. São Paulo: Leopardo, 2009. ŽIŽEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011. REFERÊNCIA MATERIAL DA INTERNET: BBC. Flexible working rights extended to all. Disponível em: . Acesso em: 23/09/2014 COWORKING OFFICES. Conceito coworking. Disponível em: . Acesso em: 09/06/2014. COWORKING WIKI. Disponível em: . Acesso em: 09/06/2014. COSTA, Anderson. O coworking é uma das únicas práticas de negócio que prolifera, independente da situação econômica. Disponível em: Acesso em: 23/09/2014 _______________. Trabalho flexível passa a ser um direito na Inglaterra. Disponível em: Acesso em: 23/09/2014 _______________. O ritmo ultradiano: prensando nossa produtividade de modo cíclico. Disponível em: . Acesso em: 06/10/2014. DEGUZMAN, Genevieve; TANG, Andrew. Working in the unoffice: a guide to coworking for indie workers, small bussiness and nonprofits. San Francisco: Night owl press, 2011. Disponível em: Acesso em: 23/09/2014. DULLROY, Joel. Coworking operators as expert community managers. Disponível em: . Acesso em: 05/09/2014 FOERTSCH, Carsten; DULLROY, Joel. 2nd Annual Global Coworking Survey. Disponível em: . Acesso em: 09/06/2014. ___________________________________. First results of the 3rd Annual Global Coworking Survey. Disponível em: 116

. Acesso em: 09/06/2014 GITAHI, Yuri. O que é uma startup? Disponível em: http://exame.abril.com.br/pme/noticias/o-que-e-uma-startup/ . Acesso em: 02/10/2014. GOMES, Marcos. Cronobiologia – os ritmos da vida. Disponível em: . Acesso em: 06/10/2014. GONÇALVES, CARLOS; QUARESMA, José Gabriel. Out of the office. Lisboa: Vida Econômica, 2013. Disponível em: . Acesso em: 23/09/2014. O GLOBO. Profissionais estão preferindo flexibilidade no trabalho a aumento de salário. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2014. OLIVEIRA, Jonas. Home office X Coworking. Disponível em: . Acesso em: 05/09/2014. TIKI-TOKI. The history of coworking presented by Deskmag. Disponível em: . Acesso em: 09/06/2014.

ANEXO PERGUNTAS – PESQUISA SOBRE ESPAÇOS DE COWORKING 1) O que motivou você a fazer parte de um espaço de coworking? 2) Há quanto tempo você faz parte do espaço? 3) Quais valores você acha importante para realizar seu trabalho hoje em dia? 4) Quais valores você acha importante compartilhar dentro do ambiente do coworking? 5) Qual tipo de flexibilidade mais te interessou a princípio quando você procurou saber mais sobre o coworking: de horários, de locais, número de pessoas compartilhando o espaço, ou algum outro aspecto? 6) O que as experiências no coworking propiciam a você no nível social e profissional? 7) Agora que você participa de um espaço de coworking, você pensa em voltar a trabalhar em 117

home office ou em um centro empresarial/escritório formal? Por quê? 8) Você fez amizades dentro do espaço de coworking? Se sim, com que frequência vocês se encontram fora do espaço de trabalho 9) Você costuma trabalhar em dupla ou equipe com os demais coworkers no desenvolvimento de um projeto/trabalho? 10) Na sua opinião, quais são os principais aspectos que deveriam ser modificados no mundo do trabalho tradicional? 11) Qual sua idade e nível de escolaridade?

118

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.