Redes de caminhos: uma proposta de sistematização

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Atas do XVI Congresso Ibero-americano de Urbanismo. Sociedade e Território: Novos Desafios

Redes de caminhos: uma proposta de sistematização Paulo Silvestre Doutorando em Planeamento do Território, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto [email protected]

1.

Introdução

Os caminhos, entendidos como o conjunto de vias de comunicação terrestre associadas a modos de deslocação não motorizados, representam a mais elementar infraestrutura de transporte instalada no território. Apesar da sua aparente inadequação ao contexto presente, da hiper-mobilidade, correspondem a um recurso que poderá ser fundamental para o desenvolvimento sustentável de uma região (LEADER, 2001; Davies et al., 2012). Os caminhos permitem ao indivíduo movimentar-se pelo território de uma forma activa e num ritmo orgânico, usando todos os sentidos, na apreensão do contexto (Martins, 2012). Estas infraestruturas permitem ao urbanitas uma outra percepção do espaço-tempo, oferecendo uma experiência distinta da do seu mundo-da-vida, marcadamente mecanizado. Diametralmente oposto às "altas velocidades", encontra-se a slow-motion. Tomada a partir da cinematografia, esta designação remete para as propostas pós-modernas do slow movement ou da slow food. Estes movimentos defendem uma mudança cultural que procura abrandar o ritmo de vida 142. A slow-motion será um modo de percorrer o território de forma activa, com reduzido impacto ambiental mas procurando uma experiência intensa. Independentemente do modo escolhido, privilegia-se o contacto próximo, corpóreo, com a realidade física e imaterial do local. O modo de deslocação pode ser, portanto, variado: a pé, de bicicleta, a cavalo, numa pedelec, tendo apenas como condição o utilizador (ou um animal) contribuir com a sua energia para o movimento. Esta forma de deslocação apresenta vantagens em comparação aos modos motorizados, representando ganhos em diversos domínios, nomeadamente na saúde - combatendo o sedentarismo e aumentando o bem-estar físico e mental da população -, e na área ambiental - ao contribuir para a redução das emissões de CO2 no acto de viajar (Sallis et al., 2004; Schasberger et al., 2009; Starnes et al., 2011; Weston e Mota, 2012). A esta forma de descoberta do território podem-se associar várias modalidades turísticas, como o Turismo Activo - que se centra nas actividades ao ar livre -, ou o Turismo Rural, o Turismo de Natureza, o Ecoturismo, que procuram compatibilizar o desenvolvimento económico, com a manutenção e valorização das qualidades ambientais e patrimoniais locais. Recentemente, surgiu o conceito de Slow Travel, nomeadamente com o contributo da revista Hidden Europe, cuja editora Nicky Gardner, em 2009, avançou com um manifesto por uma outra concepção de viagem turística. Advoga-se que os viajantes devem envolver-se mais profundamente com as comunidades ao longo da jornada. Apresentando valores comuns com o Ecoturismo, estes modelos dão preferência a viagens que representem um reduzido impacto e que defendem um compromisso mais forte com as populações locais.

Na origem destas perspectivas estará o protesto de Carlo Petrini contra a abertura de um restaurante McDonalds na Piazza di Spagna, em Roma, em 1986. A acção levou à criação da organização Slow Food. O conceito tem-se desdobrado em várias sub-culturas, e em diversas áreas, como as Slow Cities, o Slow Living, o Slow Travel, e o Slow Design. A este propósito veja-se: http://www.slowfood.com/welcome_eng.lasso. 142

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Os caminhos constituem uma infra-estrutura básica para estas várias tipologias de actividade económica, respondendo a um consumidor com critérios exigentes e com maior consciência social e ambiental (Cupeto, 2009). Os percursos estão ao serviço do viajante mas também dos recursos endógenos, apoiando a sua conservação. Nesse sentido, os caminhos podem constituir uma enorme mais-valia para a região: por um lado, produto turístico e, por outro, instrumento de ordenação. A própria legislação nacional143 considera, directa ou indirectamente, que o desenvolvimento das infraestruturas ligeiras, podem representar um importante contributo para: -

a descoberta e fruição dos valores naturais e culturais dos territórios locais; a atracção de turistas e visitantes, nacionais e estrangeiros, que decorrente da sua permanência na área promovem a actividade económica da região; a revitalização e divulgação dos produtos artesanais tradicionais, e das manifestações sócio-culturais características de cada contexto; a conservação da natureza.

A infraestrutura ligeira pode estar assim intimamente coligada à actividade económica local 144, respeitando e pondo em evidência os valores ambientais e histórico-culturais da região (Afonso e Gonçalves, 2003). Este é um aspecto chave dos caminhos: a unidade que desenvolvem com a sua envolvente. Percorrer o caminho só faz sentido num território valorizado (LEADER, 2001). Daí que seja, muitas vezes, mais difícil e contraproducente delinear um novo traçado, asséptico, virginal nas suas relações, do que capturar a riqueza acumulada durante séculos de alguns caminhos existentes. Estas estruturas já não são dissociáveis do seu contexto, formando uma simbiose orgânica, englobando o património natural e construído, seja de grande ou pequena escala.

2.

Problemática

Baixo a designação de caminhos agrupa-se um conjunto de infra-estruturas muito diversas, desde as vias romanas aos pequenos atalhos, das antigas sendas aos carreiros rurais, das rotas de transumância aos trilhos selvagens (Afonso e Gonçalves, 2003). Se se admitir que a rede de caminhos pode penetrar na cidade, então, abre-se ainda uma outra gama de realidades, pertencente ao espaço urbano pedonal (CCPC, 2007). Ou seja, o nível de ‚antropização‛ do território - percorrendo todo o espectro entre o urbano e o espaço natural - induz a transfiguração dos caminhos 145 e diferentes formas de apropriação. Nos últimos 140 anos, vários percursos têm vindo a ser balizados, adaptando-os à prática do pedestrianismo. Esta actividade, situada entre o desporto e o turismo, com raízes no movimento cultural do Iluminismo146, entende os caminhos como uma ‚infraestrutura‛, alvo de intervenção e regulação. Passaram-se a sinalizar rotas, com marcas e códigos internacionalmente conhecidos e aceites. Os caminhos balizados tornaram-se, pouco a pouco, uma infra-estrutura comum na Europa147. No universo dos caminhos podem-se distinguir três realidades, em função do nível de regulação: Destaca-se a Resolução do Conselho de Ministros n.º 112/98 de 25 de Agosto que cria o Programa Nacional de Turismo de Natureza, aplicável na Rede Nacional de Áreas Protegidas, e o Decreto Regulamentar n.º 18/99, de 27 de Agosto, que disciplina a animação ambiental nas modalidades de animação, interpretação ambiental e desporto de natureza nas áreas protegidas. 144 Associado ao Slow Travel temos todo um mundo de actividades e produtos, abrangendo o recreio e lazer; as práticas desportivas; a gastronomia; o artesanato; a animação turística. 145 Ainda que no âmbito deste trabalho não se faça propriamente a distinção entre caminhos e trilhos, em países com realidades territoriais muito distintas, ainda com a presença de grandes espaços selvagens, esta diferenciação ganha sentido. 146 Segundo Cuiça (2011) Jean-Jacques Rousseau ao escrever Les Reveries d’un Promeneur Solitaire - uma obra autobiográfica na qual celebra a natureza e a magnificência das montanhas -, influencia o lançamento da moda de andar a pé. 147 A implantação destes percursos iniciou-se em Portugal nos anos oitenta. Actualmente, encontram-se homologados em território nacional, pela Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal (FCMP), 157 ‚Pequenas Rotas‛ (PR) e 29 ‚Grandes Rotas‛ (GR), perfazendo um total de 2500km. Já percursos registados, mas não homologados, totalizam mais de 6400km. 143

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os caminhos indiferenciados, sem qualquer ordenação técnica ou destino programático preciso; os percursos temáticos, alvo de uma intervenção mais ou menos metódica; os percursos para a prática de actividade física148, sujeitos a regulamentação própria.

Nos últimos anos, a profusão de iniciativas para a definição de rotas territoriais, com base em distintas motivações, deu lugar a um caleidoscópio de difícil sistematização. Com base na pesquisa efectuada e na revisão bibliográfica, compreende-se que a rede (por vezes sinalizada mas não organizada) de caminhos agrega diferentes interesses e mundos simbólicos. Desde logo, os amantes do ar livre que encontram nos percursos pedestres uma forma de se aproximarem da natureza, caminhando. Este grupo abarcará o pedestrianismo (trekking) e o montanhismo, como as modalidades para-desportivas de descoberta do espaço extra-urbano. Optando-se pela bicicleta ou pelo cavalo teremos derivações daquelas actividades que congregam outro tipo de ‚tribos‛ (touring, randonneuring, hipismo). Há também um conjunto de indivíduos que aproveitam os caminhos sobretudo como suporte de actividades desportivas mais especializadas e intensas, como a escalada ou o hidrospeed. Os percursos aproximam-se, nestes casos, da noção de instalação desportiva. Mais recentemente os percursos têm vindo a convocar outros utilizadores, tomando partido do potencial pedagógico dos trilhos ou da permanência temporal dos caminhos. Constituem-se rotas interpretativas ou temáticas, que combinam infra-estrutura e informação. Neste caso, os caminhos vêm a sua vocação estendida, tornando-se suporte de actividades turísticas, culturais e educativas. Os caminhos balizados constituem, portanto, uma infraestrutura com várias aplicações, dependendo do destino programático. Existe também uma certa nebulosidade semântica em relação a vários termos do campo lexical deste domínio da realidade. Importará, por isso, distinguir as noções de caminho, rota e circuito. Se a designação ‚caminho‛ se refere a uma via de comunicação terrestre, a ‚rota‛ corresponde a um itinerário, a uma proposta de percurso que é feita ao visitante. São estabelecidos os lugares de passagem, onde poderão ser oferecidos um conjunto de actividades ou serviços. Muitas vezes, estas rotas estão subordinadas a um tema. Já o termo ‚circuito‛ associa-se a uma visita organizada, podendo envolver a oferta combinada de um conjunto de serviços turísticos (Ferreira, 2011). Faz-se assim a distinção entre aquilo que é infra-estrutura daquilo que é serviço, que pode ser montado com base em caminhos sinalizados. Alguns autores associam, ainda que não explicitamente, a especialização programática dos caminhos, à diversificação dos produtos turísticos. Ferreira (2011), por exemplo, associa os percursos pedestres ao turismo da natureza, as rotas temáticas ao turismo cultural, os caminhos de peregrinação ao turismo religioso, os circuitos urbanos aos City Breaks. <

s entido l oca l

s entido terri tori a l

Percurso

Itinerário

Recreio

Desporto

Ci cl ovi a ; PL ; PR …

Ecovi a ; Ecopi s ta ; GR ...

Visita

Viagem Temática ; Peregrinação

Ci rcui tos

Rotas temá tica s e ci vi l i za ci ona i s

< 30 Km 1 dia

> 30 Km vários dias (etapas)

>

Natural Corpóreo Ca mi nhos -i ns tal a çã o

Cultural Imaterial Ca mi nhos -i nforma çã o

Figura 1 – Mapa conceptual dos caminhos em função do seu programa.

Existe uma grande variedade de modalidades desportivas e para-desportivas relacionadas com os caminhos. Destacam-se duas: o Pedestrianismo, pela sua incontestável centralidade, e o Cicloturismo, representando a possibilidade de utilizar a infraestrutura recorrendo às tecnologias de transporte. 148

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Existem também múltiplas escalas de caminhos. Surgiram rotas que cruzam continentes e outros que garantem simples ligações locais. A aproximação económica, política e cultural entre países, em particular na Europa, tem motivado o surgimento de itinerários transnacionais que procuram reforçar os laços de cooperação e o sentido de pertença a uma comunidade de escala maior. Desconsiderando as antigas fronteiras administrativas nacionais, estas rotas 149 têm contribuído para o descobrimento de uma história comum, reforçando o sentimento de uma identidade civilizacional partilhada. Porém, dada a extensão de alguns destes itinerários, algumas rotas encontram-se concretizadas apenas parcialmente, como segmentos soltos e desarticulados. Perante o nível de fragmentação dos caminhos, a pluralidade de iniciativas e as descontinuidades nas rotas, importa reequacionar a forma de implementação dos percursos balizados (independentemente do seu programa), com uma perspectiva mais abrangente da realidade, procurando que estas infraestruturas ligeiras façam parte de um plano de acção integrado. Urge ter presente o conceito de rede, conectando e combinando caminhos. Ao assumir uma abordagem de rede, em que os caminhos estão conectados aos trilhos, as ciclovias às rotas cicláveis, teremos um sistema sem disrupções (CCPC, 2007).

3.

Objectivos O trabalho tem como principais objectivos: -

4.

situar e mapear a área temática, entrelaçando-a com as questões urbanísticas; destacar alguns eixos de intervenção para a sistematização de uma rede de caminhos; convocar alguns casos que ilustrem (projectos de sistematização da) rede de caminhos, sublinhando as boas práticas encontradas.

Metodologia

Tendo como pressuposto o mapeamento do campo temático e a detecção de boas práticas, procurou-se que a recolha de informação fosse relativamente aberta, não se cingindo unicamente à literatura científica. A presença online de organizações, entidades e praticantes revelou-se um fundo de informação indispensável para o estudo e conhecimento desta área. O maior volume de documentos encontrado prende-se com manuais e guias para o projecto de trilhos e caminhos balizados, espelhando a relativa pouca atenção que a comunidade académica tem dado a esta temática.

5.

Por uma sistematização das redes de caminhos

Apesar da extensão da oferta, a actual "rede" não constitui um conjunto organizado ou hierarquizado. A própria malha existente não é evidente para o utilizador. Os visitantes não a conseguem detectar, em resultado de não se encontrar mapeada, nem sinalizada. Mesmo os caminhos balizados do pedestrianismo, ou as rotas temáticas, não são facilmente detectáveis. No terreno, existe hoje um somatório de iniciativas, não uma rede articulada e coerente, criteriosamente estabelecida. A oferta instalada encontra-se fragmentada por pequenos mapas, em inúmeras plataformas online (mais ou menos actualizadas), ou em brochuras impressas (cujos exemplares se espera continuem a circular).

A European Ramblers Association (ERA), que agrega 55 organizações europeias de pedestrianismo, tem vindo a promover o desenvolvimento de percursos à escala continental. Actualmente, existem 12 percursos de muito longo curso, sendo que Portugal está conectado por dois deles: o E7 (entre o Atlântico e o Sul da Hungria) e o E9 (toda costa noroeste da Europa, até ao Mar Báltico). 149

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Tais factos retiram valor à rede existente porque não permitem a sua efectiva utilização. A falta do seu mapeamento, ordenação e sistematização condiciona a intensidade de uso e compromete a sustentabilidade do conjunto. Sistematizar significa não só ganhar escala mas também seleccionar e hierarquizar trilhos e caminhos, projectos e iniciativas. A robustez do conjunto – ou, pelo menos, de conjuntos regionais -, é a garantia da possibilidade de continuar a desenvolver uma rede de caminhos e apoiar um modelo de desenvolvimento local. O processo de sistematização implicará três eixos de acção: -

organizar a teia de trilhos e caminhos numa rede (ou conjunto de redes) coerente, segundo um programa; dotar e combinar a infraestrutura ligeira com equipamentos e serviços, transformando a rede num sistema integrado, e harmonizado a nível territorial; assegurar a acessibilidade à rede, atendendo a toda a cadeia de deslocação dos utilizadores, promovendo a inclusão social e reduzindo o impacto ambiental da actividade de transporte.

Em termos estratégicos, este exercício de organização deverá ser integrado no planeamento, tratando-se de um processo que exige congregação de saberes, concertação e regulação de interesses. Organização da rede O desenvolvimento de uma rede de trilhos e caminhos não implicará grandes intervenções, atendendo à extensão e estrutura ramificada dos percursos sobre o território. Antes uma adequada (re)programação. A concepção da rede implicará convocar o planeamento e a gestão urbanística para o processo. Importará avaliar a malha existente, seleccionar caminhos e pontos de interesse, para direccionar as intervenções. O sistema de trilhos e caminhos resultará de uma acção reflexiva sobre a realidade presente, desenvolvendo-se um novo conceito de rede. Os antigos caminhos que eram previamente usados para outras actividades (como a exploração agrícola ou florestal, ou a extracção de inertes) poderão já não ser adequados ao novo programa da rede, com propósitos recreativos, desportivos, turísticos e/ou ambientais. Poderá ser importante a renaturalização de trilhos e a requalificação de sítios (CCPC, 2007). A implementação de uma rede à escala territorial exigirá não só a definição de uma estratégia intermunicipal, como a consensualização de princípios e metas entre os vários municípios. Sem uma forte liderança que reboque a iniciativa e vença os atritos administrativos será um projecto de difícil concretização (Shapins e Moss, 2000). Para o estabelecimento de uma rede de caminhos, importa ainda aflorar a questão da configuração geométrica do sistema150. A forma como os percursos se dispõem e se interligam é fundamental para responder ao princípio de rede. O sistema não tem que necessariamente constituir uma malha fechada, regular e homogénea. A rede pode ser constituída por diferentes conjuntos formais. Antes de mais, o processo deverá implicar a hierarquização e clarificação da teia original de caminhos. A nova rede deverá exponenciar a diversidade de alternativas para a realização de percursos, permitindo explorar intensivamente um dado território. A criação destas redes (ou seja a sua formal definição e rotulagem) obriga à consideração da sua viabilidade e sustentabilidade económica. Tal como em outras infra-estruturas de transporte, importa garantir que o serviço que é organizado justifique o próprio suporte físico, correndo-se o risco deste se tornar um peso financeiro injustificável ou entrar em degradação muito rapidamente. A ETE (2007) alerta para a importância de uma avaliação cuidada, que não deixe de considerar a operação futura. Este cálculo financeiro deverá incluir os custos de planeamento, infraestruturação,

Os percursos pedestres podem desenvolver-se no território adoptando diversas formas. Braga (2006) considera seis tipos: linear, circular, em forma de oito, em anéis contíguos, em anéis satélites e em labirinto. Cada configuração apresenta as suas vantagens e inconvenientes. 150

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construção, manutenção, assistência aos utilizadores e protecção ambiental. A detecção e obtenção de financiamento para a operação serão, também, essenciais. Tal como defende Babo (2006) torna-se necessário pré-definir o serviço e a forma de utilização da infra-estrutura. Afinal, «são os serviços montados sobre as infra-estruturas e não estas, que concorrem como factores de competitividade» (Babo, 2006, p. 45). Tão mais verdade no caso de caminhos, em que muitas vezes já existem e não correspondem a uma qualquer mais-valia. É pela estruturação, programação e divulgação do itinerário que este pode trazer valor acrescentado à região. Organização do sistema Terá sentido entender uma rede de percursos pedestres como um sistema, isto é, um conjunto de elementos interrelacionados que formando um todo organizado permitem o usufruto do território. Os caminhos per si não são suficientes. Constituem apenas uma componente. Recorde-se as vias romanas que associavam a infra-estrutura de transporte a uma cadeia de alojamentos. Estes equipamentos, os mansios151, ofereciam aos oficiais, ou àqueles em missão oficial, um local seguro para pernoitar, ao longo de uma via que fazia a ligação entre os principais centros urbanos. Estas instalações encontravam-se distanciadas de uma forma regular e conveniente, correspondendo à distância de viagem de um dia. Estavam normalmente apetrechados de estábulos, permitindo trocar de animais, para continuar o transporte. A estratégia mantém-se válida, nos dias de hoje. Para além da dotação de infraestruturas e equipamentos de apoio ao viajante, na sistematização dos caminhos deverá ser considerada a forma como as pessoas se deslocam e usam a rede. A extensão das etapas emerge assim como um dos aspectos relevantes. Em projectos especialmente orientados para a dinamização económico- turística de uma região, as etapas devem ter uma extensão que permita os caminhantes terem tempo para usufruir das amenidades locais. Os percursos devem passar junto dos pontos turísticos e das actividades, a fim de favorecer o seu uso. Corroborando esta estratégia, a organização da rede de percursos deve também permitir que cada visitante efectue passeios a partir do seu local de alojamento, incitando a prolongar a sua estadia (LEADER, 2001). Contudo, o nível desejável de infra estruturação da rede não é algo evidente. O conjunto de instalações ou equipamentos necessários ao funcionamento do sistema é fortemente variável, tendo em conta nomeadamente o seu programa de uso. Adaptando o Decreto Regulamentar n.º 18/99, de 27 de Agosto, que regulamenta a animação ambiental nas áreas protegidas, podem-se apontar os seguintes elementos como constituintes básicos de um sistema de caminhos: A. Porta de entrada: local devidamente equipado, destinado à recepção de visitantes e à prestação de informação sobre o percurso e o território, podendo dispor de serviços específicos, associados ao viajante. Este espaço pode ser entendido como uma interface ou praça de acolhimento. A previsão de outras portas ou interfaces, secundárias, aumenta as possibilidades de se estabelecerem diferentes itinerários, e uma maior articulação em rede (evitando trilhos lineares herméticos). B. Caminho: o principal elemento do sistema. Possibilita a deslocação em modos activos, em condições de segurança. Usualmente tem como finalidade proporcionar ao visitante, através do contacto com a natureza e o património, o conhecimento dos valores naturais e culturais da região.

O sistema era então constituído não só pelas vias (infra-estrutura) e marcos milenares (sinalização) como por equipamentos para alojamento, tendo ficado o conjunto conhecido como o cursus publicus. Um livro do século IV, que descreve a rota entre Bordeaux e Jerusalém para peregrinos, apresenta uma lista de alojamentos à beira da estrada, tipificando-os como civitates, mansiones ou mutationes. O documento foi concebido para viajantes a cavalo, e em que os alojamentos se encontravam distanciados entre si cerca de 50km. Para mais informação consulte-se: http://wasfuman-mansios.blogspot.pt/. 151

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C. Sinalização: elemento fundamental para a orientação do viajante 152. D. Infra-estrutura informacional: equipamentos ou dispositivos destinados a proporcionar ao visitante o conhecimento global e integrado do percurso e do território. E. Pólo de visita: ponto de atracção e actividade, podendo corresponder a um monumento, um sítio de interesse, um equipamento desportivo ou de lazer. Constitui uma das razões de ser das rotas temáticas. F. Pólo de serviço: local devidamente equipado para apoio ao viajante. Organização da cadeia de deslocação Tendo em mente o desenvolvimento de um Turismo Baixo Carbono e a importância de um planeamento integrado, a questão da eficiência de toda a cadeia de transporte, entre a origem dos utilizadores e os pontos de entrada na rede de caminhos coloca-se de uma forma aguda. Isto porque, apesar dos caminhantes substituírem a viagem motorizada na função recreativa, a propensão para conduzirem até ao ponto de partida das suas incursões mantém-se como uma questão por resolver (Davies et al., 2012). Nos percursos em que seja possível, será recomendável o estabelecimento de acessos directos desde as áreas urbanas, possibilitando aos utilizadores não ficarem dependentes de transporte motorizado. A garantia de continuidade dos percursos pedestres, entre diferentes contextos, permite maiores possibilidades de uso e ver o território como uma unidade. A rede de caminhos transforma-se numa infra-estrutura de lazer e desporto, para a comunidade local, como num itinerário mais diverso para os turistas (Gobster, 1995). Para além de que a promoção das caminhadas a pé até à envolvente próxima é uma opção barata para encorajar um modo de vida mais saudável nas urbes (Davies et al., 2012). O sistema de caminhos pode também constituir um convite ao urbanitas a compreender a necessidade vital de outros espaços para o metabolismo da cidade (produtos alimentares, recursos naturais, retenção de CO2). Alguns exemplos felizes desta articulação podem-se encontrar em pequenas vilas (como a ligação entre Serpa e o rio Guadiana) ou em grandes metrópoles (como os trilhos de Barcelona pelo Collserola). No caso de percursos lineares ou quando a rede de caminhos (o produto) se encontra geograficamente muito afastada dos potenciais utilizadores (o mercado), importará atender à articulação das redes ligeiras com o transporte colectivo, se se quiser dar a oportunidade de reduzir o uso automóvel (Davies et al., 2012). A questão da intermodalidade revela como um planeamento integrado é fundamental neste tipo de produtos turísticos. O acesso à rede de caminhos por sistemas de transporte colectivo (seja por serviço regular ou a pedido153) pressupõe que a viagem implique a realização de uma ou mais correspondências, envolvendo alguns transbordos. Dada a probabilidade do caminhante ou ciclista trazer algum equipamento, mais ou menos volumoso, mais ou menos pesado, as interfaces ao longo da cadeia de transporte devem garantir a ligação entre modos de transporte de uma forma rápida, confortável e segura (IMTT, 2011). As portas de entrada na rede de caminhos devem ser, elas próprias, entendidas como interfaces. Estes espaços de recepção constituem os nós onde o passageiro muda de modo de transporte e entra numa outra escala espaço-temporal. Ali se inicia uma desaceleração e vinculação com o meio envolvente.

A sistematização das redes poderá contribuir para o refinamento e uniformização da sinalização (componente regulamentar) e da sinalética (componente informativa) dos caminhos. A sua harmonização, a nível regional ou até nacional, poderá ser uma estratégia a seguir, contribuindo para uma maior legibilidade e unidade dos sistemas. 153 No caso das redes de caminhos poderá ser importante equacionar sistemas de transporte flexíveis – "Demand Responsive Transport" –, ajustados à flutuação da procura e a reduzidos volumes de passageiros. 152

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Integração do processo de sistematização no planeamento Ainda que os caminhos correspondam a infra-estruturas ligeiras, por vezes imperceptíveis, a rede deverá ser integrada no sistema de planeamento, assegurando-se a optimização do conjunto de percursos, e uma cuidada articulação com outros domínios sectoriais. Porém, tratando-se de um campo relativamente novo na área urbanística, os técnicos apresentam alguma dificuldade em incorporar esta problemática na prática disciplinar (CCPC, 2007). Integrar a questão no processo de planeamento permitirá tornar mais consistente o conjunto de percursos, detectar descontinuidades na rede existente, apontar corredores potenciais, dimensionar o sistema (atendendo à capacidade de gestão e manutenção), definir prioridades, estabelecer pontes com outros domínios de acção. A ETE (2007) advoga que o desenvolvimento da rede deverá ser equacionado no contexto do planeamento regional, nomeadamente em relação às componentes ambientais e turísticas. O plano deverá definir objectivos concretos para o desenvolvimento do sistema, como identificar as instituições responsáveis pela preparação, implementação e regular monitorização da rede. A CCPC (2007) observa que os caminhos deverão ser considerados ao nível do planeamento como qualquer outra rede. O plano deverá definir a estrutura e o sentido programático do sistema, abarcando todo o caleidoscópio das infraestruturas ligeiras. O instrumento de ordenação deverá apontar parâmetros gerais para os percursos 154, nomeadamente a sua classificação funcional (associada aos modos de transporte admitidos). O plano deverá também definir eixos prioritários e estabelecer um processo faseado para a consolidação da rede. Aquela entidade advoga, ainda, que os percursos deverão ser mapeados como corredores 155, perspectivando o caminho como algo mais que uma simples linha de transporte. O espaço-canal considerado englobará uma diversidade de situações, abarcando áreas florestais, unidades paisagísticas particulares, sítios históricos, ou, até incorporar outro tipo de percursos, como rotas navegáveis ou vias de escalada. Ou seja, os caminhos deverão ser alvo de um planeamento integrado, que não se resume ao traçado da infraestrutura mas a todo o seu contexto. O percurso está inscrito num eixo espacial, mais ou menos natural, mais ou menos citadino, que o enquadra e justifica. O percurso passa a ser entendido como uma estrutura paisagística. As questões em torno de uma rede de caminhos também poderão ser integradas no planeamento através de planos de mobilidade ligeira, caso tenham a abrangência e o detalhe suficientes, tal como assinala a CCPC (2007). Nesses casos, o plano atentará não só aos espaços de circulação não-motorizada dentro do perímetro urbano, como aos percursos e aos recursos patrimoniais e naturais exteriores. A provisão de uma rede de caminhos deveria implicar uma actualização às cartas de ordenamento, nomeadamente no que se refere ao sistema rodoviário, aos usos do solo, às condicionantes. A planificação da rede deveria reflectir-se nos instrumentos de ordenamento, em consequência de um planeamento compreensivo (CCPC, 2007).

6.

Casos de estudo

O desenvolvimento de uma rede de caminhos deverá implicar um trabalho prévio de recolha de boas práticas, analisando alguns exemplos de sistemas que constituam casos de interesse maior, em particular pela proposta original que representam (um breakthrough), pela intensidade de uso que revelam ou pelo valor simbólico que adquiriram no tempo.

As questões relacionadas com os aspectos técnicos de construção e o dimensionamento, deverão estar dissociadas do plano, ficando antes alocadas a níveis de regulação inferior, em jeito, por exemplo, de normas ou manuais. 155 O corredor corresponde a um espaço-canal que poderá sofrer apertos ou dilatações, em resposta ao contexto no qual se integra. A CCPC sugere a consideração de uma largura mínima de 22,5 metros. 154

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Procurando contribuir para esse trabalho de análise, convocam-se três casos que poderão constituir modelos de acção: a Rota Vicentina, no Sudoeste de Portugal; a GeoRoute Ruhr, no estado alemão da Renânia do Norte-Vestefália; e o Caminho Francês, a rota jacobeia que cruza o norte de Espanha. Rota Vicentina Do território nacional, convoca-se a Rota Vicentina, não só por constituir um dos troços em território nacional do Trilho Europeu de Grande Rota GR11 – E9, mas sobretudo pela robustez do projecto, recentemente concluído, e que teve o condão de congregar uma grande diversidade de entidades públicas e privadas. Esta rota ao longo da costa Sudoeste, resulta de uma criteriosa selecção de caminhos rurais e costeiros, entre a cidade de Santiago do Cacém e o Cabo de S. Vicente. O percurso com mais de 340km, está integralmente sinalizado, e dividido em etapas, que não ultrapassam os 25km, desenhadas para serem concluídas num único dia. A rota é formada por dois trajectos: o Caminho Histórico e o Trilho dos Pescadores, o que permite oferecer um produto mais complexo, ao propor dois mundos distintos, entre uma cultura rural e uma costa mais selvagem (integralmente dentro do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina). O Caminho Histórico percorre as principais vilas e aldeias, atravessando paisagens de montado, serra, vales, rios e ribeiras. Trata-se de uma ‚Grande Rota‛ (GR) que pode ser percorrida também por BTT. O Trilho dos Pescadores, junto ao mar, corresponde a uma single track, apenas passível de ser percorrida a pé, ao longo das falésias. O percurso é mais exigente do ponto de vista físico, até por causa do vento. Ambos os trajectos permitem o usufruto intenso desta área litoral, «que se encontra num precioso estado de conservação, no que respeita à paisagem, aos valores naturais e ambientais, à cultura e às tradições» (Associação Casas Brancas, 2012). O projecto resultou da iniciativa de um conjunto de empresários que procuraram montar uma rede de parceiros, públicos e privados, com o fim de desenvolver um trabalho conjunto em prol dos interesses do turismo, mas também do desenvolvimento da região. Estas entidades compreenderam a importância de uma estratégia de longo prazo, para a afirmação de um território no mercado internacional do Turismo de Natureza. A Rota Vicentina (articulando uma infra-estrutura balizada e um conjunto de serviços diversificados) representa um exemplo interessante de aproveitamento de uma rede de caminhos para a constituição de um produto turístico integrado e complexo, que contribui para a economia local e promove uma nova consciência colectiva de preservação e reforço dos valores ambientais. O consórcio tem procurado promover internacionalmente o produto. Neste sentido desenvolveu uma plataforma electrónica onde se disponibiliza um conjunto diversificado de informação sobre os caminhos pedestres e se apresenta a rede de serviços turísticos, desde o alojamento à restauração, do comércio local às actividades recreativas. Georoute Ruhr Como exemplo de congregação de diversos trilhos e redes de caminhos já estabelecidos e balizados, convoca-se o caso do GeoPark Ruhrgebiet. Este parque resulta da consideração do património geológico da zona do Ruhr, espelhando a íntima relação entre o mundo natural e o desenvolvimento económico da região. Até à década de 70 do século passado, o território foi marcado pela actividade mineira, que havia explorado de forma intensiva os recursos locais. Desde então, diferentes iniciativas têm procurado encontrar novas vocações para este território, nomeadamente com o estabelecimento de uma série de trilhos, associando-os à história da mineração e ao património geológico (Wrede e Muegge-Bartolovic, 2012). Dado que os primeiros trilhos foram resultado de iniciativas locais, não havia qualquer coerência entre si, ao nível do desenho, da informação, dos propósitos e das estratégias de promoção. O impacto dos trilhos era relativamente limitado. Pensou-se, então, na conformação de uma rede, procurando ganhar escala e desenvolvendo estratégias de marketing a nível regional. Recentemente, os vários ISBN: 978-972-97201-2-3

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projectos singulares têm vindo a ser consolidados e ligados entre si, por um novo percurso de longa distância, resultando numa complexa malha, com uma extensão superior a 300km. Esta rede constitui um segmento decisivo da infraestrutura turística, entendida como uma parte do processo de transformação estrutural da economia da região (Wrede e Muegge-Bartolovic, 2012). De modo a respeitar as características individuais de cada trilho e minimizar os custos, os caminhos continuaram a ser geridos individualmente mas de uma forma articulada, com base na nova rota de longa distância: a GeoRoute Ruhr. Um novo mapa foi produzido, assim como um guia descrevendo a rede e os 150 pontos de visita ao longo do sistema de caminhos. Tem-se promovido uma maior relação entre os trilhos e os percursos cicláveis, bem como a articulação com outro tipo de serviços turísticos como excursões de barco ou viagens em comboio histórico. Mas como sublinham Wrede e Muegge-Bartolovic (2012), a concretização da rede só foi possível com a efectiva cooperação entre as entidades que geriam as infraestruturas pré-existentes. Para além do desenvolvimento de um novo campo económico, ao nível do turismo local, baseado em visitas de curta duração, o geoparque funciona como instrumento pedagógico e campo de actividades, para escolas e universidades, contribuindo para a educação ambiental e a preservação do património histórico-industrial. Caminho Francês Completa-se a lista de casos, fazendo referência aos incontornáveis Caminhos de Santiago, que constituem uma rede de redes de caminhos. Destacam-se desta malha sete rotas históricas que dirigem o peregrino ao túmulo do Apóstolo: o Caminho Francês, o Caminho do Norte, a Vía de la Plata, a Rota Marítimo-Fluvial (de Arousa e Río Ulla), o Caminho Inglês, o Caminho Primitivo e o Caminho Português (Mendes, 2004)156. Ainda que o Caminho Primitivo seja provavelmente o primeiro itinerário jacobeu, unindo León, Oviedo e a capital galega, é o Caminho Francês aquele que canaliza o maior volume de peregrinos nos dias de hoje, sendo internacionalmente o mais conhecido (Rodríguez, 2009). Durante o ano de 2013, 70% dos peregrinos optaram por aquela rota, segundo dados estatísticos da Oficina del Peregrino de Santiago de Compostela. Nesse ano, aquele serviço acolheu um total de 215.880 peregrinos. Note-se a importância do Caminho Português neste domínio tratando-se da segunda rota mais calcorreada, com 13,7% do volume de viajantes. Detemo-nos no Caminho Francês, que tem o seu traçado praticamente fixo desde os finais do século XI, graças ao labor construtivo e de promoção de monarcas como Sancho III e Sancho Ramírez de Navarra e Aragão, assim como de Alfonso VI e seus sucessores 157. Santiago converteu-se - em particular na Idade Média -, na meta de peregrinos procedentes de todo o mundo cristão, e de pontos geográficos tão distantes quanto a Turquia. A partir da segunda metade do século XX, o Caminho Francês começou a revelar um recrudescimento de interesse158, ao combinar o seu acervo espiritual e sociocultural com o seu poder turístico, como renovado lugar de encontro - consigo próprio e com outras gentes e culturas (Rodríguez, 2009). Nos caminhos o movimento é intenso com o desdobramento de motivos para a jornada: a peregrinação, a busca interior, o contacto com a natureza, a actividade desportiva, o turismo ou a procura de aventura.

Dever-se-á ainda mencionar o caminho entre Muxía e Finisterra, percurso que tem o seu ponto de partida na cidade de Santiago e o seu término naquele cabo, local secular de culto, pagão e religioso, com crescente adesão de peregrinos. 157 As principais vias deste Caminho, através do norte da Península Ibérica, foram descritas com precisão em 1135 no Codex Calixtinus, livro fundamental do acervo jacobeu. O Livro V deste códice constitui um autêntico guia medieval da peregrinação a Santiago (Rodríguez, 2009). 158 Para tal terá contribuído não só a declaração de Santiago de Compostela como Património da Humanidade, pela UNESCO em 1985, mas também a declaração do Caminho de Santiago como ‚Conjunto Histórico-Artístico‛ em 1962, o reconhecimento pelo Conselho da Europa como "Primeiro Itinerário Cultural Europeu" em 1987, ‚Bem Património da Humanidade‛ pela UNESCO nos seus traçados ao longo de Espanha e França (em 1993 e 1998, respectivamente) e ‚Prémio Príncipe de Astúrias da Concórdia 2004‛, outorgado pela Fundação Príncipe de Astúrias. 156

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Em Espanha observa-se o desenvolvimento de uma indústria em torno dos Caminhos, o que faz com que a infra-estrutura ligeira seja apenas uma parte de todo um sistema que oferece um pacote integrado ao caminhante. Não se trata apenas de alojamento e restauração, ou outros equipamentos pesados, mas de uma panóplia de serviços que se associam à viagem, seja a pé, de bicicleta ou a cavalo. Apresenta-se, como caso paradigmático, a oferta de serviços de apoio à caminhada: grupos organizados que ajudam apenas no planeamento do percurso (‚Plan it and walk it yourself‛) ou organizam, por completo a viagem (‚Organized Camino de Santiago Walk‛), encarregando-se de todas as componentes, desde os aspectos logísticos aos religiosos.

Conclusões A constituição de uma rede de caminhos poderá representar um importante activo de um território, não só como instrumento de promoção da actividade física dos seus residentes e visitantes, mas também como uma infraestrutura essencial para o desenvolvimento económico, associado ao turismo e à valorização do património local. Porém, a malha de percursos existente em Portugal apresenta-se ilegível e abandonada. Desconsiderados como um recurso a optimizar, os caminhos têm-se mantido na sombra dos grandes investimentos e da infraestrutura pesada, do passado recente. Mesmo as iniciativas de balizamento de caminhos não inverteram o sentido desarticulado da malha e sua fragmentação, tendo dado origem a um conjunto desconexo de circuitos e rotas, dispersas pelo território. Surgiram caminhos-instalação que suportam actividades desportivas, mais ou menos especializadas, e caminhos-informação que suportam actividades turísticas, culturais e educativas, mas pouco articuladas com a malha existente e, ainda menos, entre si. Perante o nível de fragmentação dos caminhos, a pluralidade de iniciativas e as descontinuidades nas rotas importa reequacionar a forma de gerir e implementar percursos balizados, tendo presente o conceito de rede, conectando e combinando percursos diversos. A implementação de uma rede de caminhos coerente, legível e acessível, implicará três eixos de sistematização: (i) organização da rede, sob um programa pré-determinado; (ii) articulação da infraestrutura com equipamentos e serviços, segundo um plano de acção integrado e harmonizado territorialmente; (iii) resolução da acessibilidade à rede, atendendo à cadeia de deslocação dos utilizadores. Esta organização metódica da rede não implicará grandes intervenções mas antes a programação e o planeamento do sistema, bem como a harmonização de algumas regras, nomeadamente de desenho. Tem-se como objectivo oferecer um serviço centrado no utilizador. Isto porque a infraestrutura ligeira não é suficiente para criar valor. Importa não só conectar, sinalizar e mapear os caminhos, mas também compreendê-los como parte de um sistema articulado, oferecendo a possibilidade de usufruir do território de uma forma mais intensa e diversa, ampliando as possibilidades de uso, o raio de acção e o tempo de permanência dos utilizadores na região. Este entendimento da rede como um sistema exige a consideração da operação, tendo em vista a conveniência e a adequação da oferta, a qualidade e segurança da viagem. Se andar a pé ou de bicicleta representam actividades de grande simplicidade, a oferta de um sistema de percursos exige, paradoxalmente, uma organização discreta e complexa. Neste sentido, importa pensar em toda a cadeia de deslocação do utilizador-viajante. Será desejável não só melhorar a acessibilidade ao sistema, desde os aglomerados urbanos, interconectando os percursos citadinos com os percursos extra-urbanos, ampliando as funções dos caminhos, mas também assegurar serviços de transporte colectivo (regulares ou a pedido), reduzindo a dependência automóvel e promovendo maior equidade social, flexibilizando ainda o desenho dos itinerários, ao abrir a possibilidade de novas combinatórias ao viajante. Para este processo de sistematização importa convocar o planeamento. Advoga-se que esta temática deverá ser um vector de trabalho do planeador, com direito a um lugar próprio na teoria e prática disciplinares. O projecto de uma rede articulada de caminhos exige o "seccionamento" da realidade, cruzando escalas espaciais e temáticas sectoriais. Esta procura de uma acção integrada contribuirá para uma prática disciplinar mais robusta e consequente.

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O planeamento da rede exigirá uma grande dose de bom senso e equilíbrio, ao trabalhar em dois regimes muito distintos em termos de intensidade e escala de razoamento: o da sensibilidade às nuances dos lugares, da adequada articulação da infraestrutura ligeira com o território, da valorização do património e do respeito pelos recursos endógenos, da auscultação e envolvimento das organizações e das populações locais, e outro, diametralmente oposto, associado ao pensamento estratégico e às prioridades da economia nacional, ao planeamento das acessibilidades e redes de transporte, aos projectos intermunicipais. Trata-se de combinar os grandes gestos, das opções estratégicas e das políticas regionais, com o traço diáfano, da acção local. Encontram-se vários casos, sobretudo no âmbito internacional, que demonstram a possibilidade deste equilíbrio e a viabilidade e o interesse na sistematização das redes de caminhos. A partir de uma realidade fragmentada é possível constituir uma rede coerente e atractiva, e sustentável no tempo, que fomenta o desenvolvimento económico, a par da preservação do património e recursos endógenos. Atender aos caminhos é convidar os técnicos e disciplinares da área do planeamento, a considerar as especificidades locais, os elementos subtis e o indizível como matérias do seu exercício, compreendendo que a realidade e a identidade colectiva também se concretizam por este universo. 159

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