(Re)Descoberta de um singular conjunto azulejar sobre Santa Teresa de Jesus

August 26, 2017 | Autor: Lúcia Marinho | Categoria: Iconography, Art History, Provenance, Azulejo
Share Embed


Descrição do Produto

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

(Re)descoberta de um singular conjunto azulejar sobre Santa Teresa de Jesus* Lúcia Maria Rodrigues Marinho** Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [email protected] Resumo Através do projeto de investigação, Devolver ao Olhar, que o Museu Nacional do Azulejo tem vindo a desenvolver, foi (re)descoberto um conjunto azulejar composto por dez painéis dedicados à vida e espiritualidade de Santa Teresa de Jesus. O projeto centra-se na organização e inventariação do “Fundo antigo”, constituído por conjuntos azulejares desconhecidos e de proveniências ignoradas. Sabendo-se que, estilisticamente, os painéis em estudo devem ter sido executados no terceiro quartel do século XVIII o conjunto levanta, contudo, várias questões significativas: proveniência, encomenda, autoria, incorporação no museu, etc. A diversidade iconográfica que apresenta varia entre visões e virtudes da santa carmelita. Paralelamente levanta uma outra questão que se mantém premente na história das coleções museológicas: o da descontextualização das obras de arte que, no caso dos revestimentos cerâmicos nacionais, é ainda mais relevante por estes terem sido concebidos para um determinado espaço. Abstrat Through the Devolver ao Olhar projet that the Museu Nacional do Azulejo has been developing, it was (re)discovered a set of azulejos (tiles) composed of ten panels dedicated to Saint Teresa of Jesus’ life and spirituality. The project focuses on the organization and inventory of the "Fundo Antigo", consisting of unidentified tiles, from unknown origins. Knowing that, stylistically, the panels should have been made in the third quarter of the eighteenth century, this set has raised significant questions: provenance, commission, authorship, incorporation in the museum, etc. The iconographic diversity varies between visions of the saint and her virtues. At the same time, it raises another question which remains crucial in the history of museum collections: the decontextualization of works of art that, in the case of the national ceramic coatings, is more relevant considering that they were originally designed for a specific place.

Integração de um conjunto azulejar sobre Santa Teresa de Jesus em contexto museológico Um problema comum a todo o património artístico que existe hoje fora das suas circunstâncias originais de aplicação é o da sua descontextualização. No caso do património azulejar o problema tem vindo a colocar-se desde o século XIX, sendo marcado por alguns acontecimentos-chave que contribuíram para a formação da coleção do atual Museu Nacional do Azulejo. 1 Destes acontecimentos destacamos a extinção das ordens religiosas em 1834, a Lei de Separação da Igreja do Estado de 1911, a ação de João Miguel dos Santos Simões, enquanto investigador de referência da azulejaria portuguesa e responsável pela elaboração e conceção do Museu do Azulejo (Loureiro, 2007) e, mais recentemente, a prospeção e inventariação que o projeto Devolver ao Olhar, apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem vindo a revelar.

* O presente estudo constitui o desenvolvimento de um trabalho apresentado ao colóquio Azulejar 2012, intitulado “Saint Teresa of Jesus: problematic of a (re)discovery”, realizado em Aveiro entre os dias 10 e 12 de Outubro desse ano, tendo sido publicado no âmbito desse colóquio em formato eletrónico. ** A autora é investigadora da Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões (RTEACJMSS) do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras, e bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (referência SFRH/BD/76753/2011). 1 Este conjunto cerâmico está a ser objeto de um estudo aprofundado no âmbito do nosso projeto de doutoramento, subordinado ao tema A Iconografia de Santa Teresa de Jesus a partir da Coleção do Museu Nacional do Azulejo, cujo objetivo é a reconstituição da sua memória e do seu contexto histórico-artístico, a par das propostas de reconstituição do espaço onde o conjunto se encontrava aplicado. 108

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

A incorporação no Museu Nacional do Azulejo do conjunto azulejar em estudo tem-se mostrado de difícil definição. Por um lado e face à iconografia do conjunto, pode colocar-se a questão de este ser originário, muito possivelmente, de uma estrutura carmelita extinta em 1834. Os painéis terão chegado ao antigo convento da Madre de Deus, eventualmente, no contexto das obras de adaptação do mesmo a Asilo D. Maria Pia. A incorporação de património deslocado poderá também ter ocorrido a partir de 1911, com a implantação da República e a Lei de Separação da Igreja do Estado. No entanto, é também possível que os azulejos tenham sido incorporados aquando da transferência da coleção de azulejaria do Museu Nacional de Arte Antiga para o antigo convento da Madre de Deus (Loureiro, 2007; Monteiro, 2007), através do Eng.º João Miguel dos Santos Simões,2 ou por uma outra via que desconhecemos. As possíveis formas de incorporação deste conjunto sobre a vida de Santa Teresa de Jesus no espólio do Museu Nacional do Azulejo continuam a ser apenas hipóteses, pois não se conhece qualquer documento que faça luz sobre esta questão. A inexistência dos respetivos registos de incorporação dificulta a investigação, mas esta continuará a ser desenvolvida na esperança de que algum dado, mesmo que indireto, permita avançar com hipóteses mais fundamentadas para a sua integração no designado “Fundo Antigo”.3 Em 1963, na sua obra Da Montagem e Apresentação Museológica de Azulejos, João Miguel dos Santos Simões afirmava o seguinte: Fundamentalmente o azulejo português só pode ser justamente avaliado quando integrado nos locais para onde foi concebido e realizado, nos conjuntos arquitetónicos nos quais ele funciona adjetivamente. É nas Igrejas e Capelas – juntamente com a talha dourada – nos palácios, formoseando enormes superfícies ou nos jardins, misturando-se com a vegetação floral, que o azulejo pode, realmente, ser compreendido, admirado ou estudado. No entretanto têm que ser recolhidos e conservados em museus aqueles exemplares que, por qualquer razão, foram retirados dos seus locais primitivos e que, na impossibilidade de serem reconduzidos numa ambiência própria à sua função decorativa, podem ainda assim funcionar didaticamente como exemplos, ou mais simplesmente, como relíquias de valor artístico ou arqueológico (Simões, 1963: 8-9). Tendo presente que qualquer revestimento cerâmico era sempre articulado e concebido para um determinado espaço, e de acordo com um programa iconográfico predefinido, o conjunto azulejar em estudo encontrava-se, com toda a probabilidade, aplicado em algum dos conventos masculinos ou femininos da ordem dos Carmelitas Descalços. Analisando o que deles chegou até nós, colocamos aqui algumas possíveis hipóteses de trabalho (ainda que sem comprovação documental). Os painéis poderiam ter entrado no Museu Nacional do Azulejo após a extinção das ordens religiosas em 1834. Nesta altura, o convento de Nossa Senhora da Piedade, em Cascais, foi extinto, procedendo-se, com o decorrer dos anos, à dispersão do seu espólio artístico. 4 Pela mesma época ocorreu a venda em hasta pública do convento de Nossa Senhora dos Remédios, sito às Janelas Verdes, em Lisboa, pertencendo o templo, atualmente, à Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica, com a parte conventual Esta coleção foi transferida para o convento da Madre de Deus a partir de 1960 (Loureiro, 2007; Monteiro, 2007), constituindo a génese do Museu do Azulejo considerado, a partir de 18 de Dezembro de 1965, um anexo oficial do Museu Nacional de Arte Antiga. A instalação no antigo convento beneficiou das condições museográficas criadas para a Exposição do Centenário da Rainha D. Leonor que aí decorreu em 1957. 3 O “Fundo Antigo” é composto por azulejos organizados em conjunto e avulsos, figurativos, decorativos e de padronagem e que, por diversos motivos, mantiveram-se nas caixas em que deram entrada na coleção. 4 Do património disperso, o caso mais emblemático que se conhece é a transferência de seis quadros de Josefa de Óbidos com passos da iconografia de Santa Teresa de Jesus, para a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, também em Cascais. 2

109

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

adaptada a instalações hoteleiras. Neste contexto é também de assinalar o convento de Santa Teresa de Jesus, em Santarém5 onde, após a extinção, foram instaladas várias repartições públicas, até que a Câmara pediu ao Governo a destruição do templo e das suas dependências para construir edifícios camarários. Refira-se, ainda, o desaparecido convento de São João da Cruz, em Carnide, fundado pela Infanta D. Maria, filha de D. João IV, cuja localização se situava perto do Convento de Santa Teresa de Jesus, do ramo feminino, local que a Infanta tinha elegido para viver. Instituído em 1681 degradou-se após a ordem de extinção, o que ditou o desaparecimento da igreja (Franco, 2010).6 Não só destes como de outros espaços conventuais é hoje depositário, no que ao azulejo diz respeito, o Museu Nacional do Azulejo. O elevado número de conjuntos azulejares, assim como as difíceis condições de incorporação, conduziram à existência de uma extensa reserva que tem vindo a ser reavaliada. Neste âmbito, o Devolver ao Olhar - projeto de investigação centrado nas reservas do MNAz, tem como propósito a organização das suas reservas, concentrando-se essencialmente no referido “Fundo Antigo”. O objetivo principal centra-se em garantir a renovação da coleção do Museu, enriquecendo a exposição permanente, assim como as exposições temporárias, com um processo bem definido e que passa pela identificação dos azulejos, agora retirados das caixas em que se encontravam guardados, inventariação, estudo, restauro e montagem ou reacondicionamento em caixas. Trata-se de um trabalho moroso uma vez que implica retirar os azulejos das caixas, dispô-los em superfícies planas e montá-los conforme vão surgindo, em jeito de puzzle. São posteriormente sujeitos a exames para determinar o seu estado de conservação e saber quais as ações necessárias para o seu restauro. Simultaneamente é identificada a cena representada e dá-se início a uma investigação no intuito de lhes devolver a memória e contexto inicial. 7 Esta investigação articula-se entre as áreas dos departamentos de Inventário e de Conservação e Restauro do Museu Nacional do Azulejo e, por vezes, com investigadores externos entre os quais nos incluímos. Foi neste contexto que se (re)descobriu o conjunto azulejar constituído por dez painéis dedicados à vida e espiritualidade de Santa Teresa de Jesus, sobre os quais pouco ou nada se sabe, apenas que, por comparação estilística com outros conjuntos, terão sido executados no terceiro quartel do século XVIII. A sua qualidade pictórica, a par da minúcia dos pormenores das reservas centrais ou ainda as influências do vocabulário rococó patentes nas guarnições, permitem situá-lo entre o ciclo da Grande Produção Joanina e o período rococó. Os painéis apresentam ainda algumas lacunas que se esperam vir a ser colmatadas com a (re)descoberta dos azulejos em falta (provavelmente em caixas ainda por abrir ou misturados com outros azulejos de padrão ou figurativos).

Santa Teresa de Jesus: uma iconografia inédita Santa Teresa de Jesus, também conhecida como Santa Teresa de Ávila, foi uma notável mística espanhola do século XVI. Teóloga da vida contemplativa através da oração mental, reformadora da Cujo projeto, aprovado pelos superiores carmelitas e pelas autoridades locais em Novembro de 1640, foi suspenso em virtude do movimento da Restauração da Independência, a 1 de Dezembro do mesmo ano, sendo retomado em 1656. 6 Não se pretendendo afirmar, em absoluto, que o conjunto em estudo teve origem num destes espaços conventuais, referimos estes apenas a título exemplificativo e pelo conhecimento que sobre eles se tem no campo da cripto-história. Existem, igualmente, outros tantos edifícios religiosos da Ordem de onde este ciclo azulejar sobre Santa Teresa de Jesus poderá provir e que serão, igualmente, objeto de estudo (por exemplo: o convento de Santa Teresa de Jesus de Setúbal, o convento de Nossa Senhora do Carmo de Tavira, de Braga, de Viana do Castelo, de Figueiró dos Vinhos, entre outros). 7 Neste complexo processo de abertura de caixotes e inventariação têm surgido muitas surpresas, pois muitos dos painéis agora (re)encontrados não eram montados desde a década de 1960 5

110

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

regra dos carmelitas e fundadora da ordem das carmelitas descalças, viveu numa era de exploração, tumultos e reformas, tanto políticas como sociais, e de turbulência religiosa. Nasceu em 1515 e faleceu em 1582, quase vinte anos depois do encerramento do Concílio de Trento. O «presente» de Deus a Santa Teresa, no qual e através dele se tornou santa, deixando a sua marca na Igreja e no mundo, é triplo: o ser mulher, o ter natureza contemplativa e ser uma reformadora ativa. O modelo de santidade que a distingue como mestra, mística e reformadora pode ser analisado e interpretado não só nas suas obras espirituais e literárias, mas também em várias manifestações artísticas como a gravura, a pintura, a escultura e a azulejaria. Aqui predominam as representações da sua vida e da sua personalidade, que nos remetem para a santa carmelita e para a sua experiência de vida, referência incontornável e de excelência da literatura teológica, espiritual e mística desde o século XVI (Álvarez, 2000). Entre estas manifestações destaca-se o conjunto azulejar em estudo, que veio trazer novas questões sobre como Santa Teresa de Jesus era entendida no contexto português de Setecentos. Ao contrário da grande maioria das obras de arte dedicadas a esta santa, os painéis do Museu Nacional do Azulejo não tiveram como modelo de inspiração o álbum de gravuras dos flamengos Adriaen Collaert e Cornelis Galle, datado de 1613 (B.N.P.: Collaert, 1630). Muito embora não tenha sido possível, até ao momento, determinar com exatidão as fontes gráficas que podem ter inspirado estas composições azulejares, recorremos às obras literárias de Santa Teresa de Jesus, às suas vivências espirituais e da Ordem, bem como à espiritualidade católica da sua época, numa tentativa de identificar os temas deste conjunto. Tendo presente que os painéis se reportam à vida espiritual e mística desta santa carmelita, a investigação em curso tem vindo a colocar a hipótese de as cenas representadas poderem ser associadas a uma outra santa, em virtude, principalmente, da similitude dos episódios representados, que eram apanágio da santidade praticada.8 Numa primeira análise concluímos que, dos dez painéis, três reportam-se à sua devoção pessoal e/ou da Ordem: a Sagrada Família na oficina de São José (ou São José Carpinteiro), Cristo em casa de Marta e Maria e Santo Agostinho lavando os pés a Cristo disfarçado de peregrino.9 Os restantes painéis dividem-se entre as representações místicas e de virtudes, como a caridade e a humildade. O painel Visão do Menino por Santa Teresa (FIG. 1) é um retrato da espiritualidade carmelita e devoção da Ordem, desde a sua antiga fundação à aparição do profeta Elias e de Nossa Senhora com o Menino Jesus. A cena, à direita da composição, parece aludir ao encontro que Santa Teresa teve com o Menino Jesus na escadaria principal do Convento da Encarnação de Ávila, encontro que a marcou profundamente. À esquerda observa-se a visão gloriosa do Menino Jesus sentado sobre nuvens e rodeado de anjos, com Santa Teresa em arroubo pela manifestação com a qual é agraciada. É possível que este seja um corolário, posterior ou não, da representação à direita, em acordo com o seu poema “Véante mis ojos”. Santa Teresa era grande devota do Menino Jesus e, logo no primeiro convento que fundou, em Ávila, colocou uma imagem do Menino, que era venerada em lugar de destaque. Esta devoção transformou-se num património comum dos carmelitas descalços, disseminando-se rapidamente por todos os carmelos existentes.

Referimo-nos, por exemplo, aos episódios da Caridade, Humildade e à metáfora do regar da árvore seca que iremos mencionar mais à frente. 9 Com cerca de 15 anos, Santa Teresa foi enviada para o cuidado e educação das freiras da ordem de Santo Agostinho, em Ávila. Posteriormente, e cada vez mais convencida de sua indignidade, invocava com frequência os grandes santos penitentes, Santo Agostinho e Santa Maria Madalena, aos quais estão associados dois fatores que foram decisivos na sua vida: ao primeiro, a leitura das Confissões de Santo Agostinho, à segunda, um chamamento à penitência que Santa Teresa experimentou diante de um quadro do Ecce Homo. 8

111

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

Por sua vez, o painel Comunhão mística de Santa Teresa (FIG. 2) remete-nos para uma das suas muitas experiências místicas perante “uma Majestade tão grande oculta em uma coisa tão pequena como é a Hóstia” (Santa Teresa de Jesus, 2000: 327). Observa-se, refletido na face de Santa Teresa de Jesus, o seu estado de alma de profunda admiração por ter sido agraciada com o Santíssimo Sacramento, reforçado pela presença de Cristo que, simultaneamente, retrata a união eucarística através da visão da Santa Humanidade de Cristo, em acordo com a sua piedade e experiência espiritual. A caridade de Santa Teresa encontra-se bem expressa no painel Santa Teresa dá o pão e trata as feridas dos pobres (FIG. 3). Poder-se-á tratar de uma representação das virtudes heróicas de Santa Teresa de Jesus com expressão nas obras de misericórdia corporais, neste caso dar de comer a quem tem fome e assistir aos enfermos, assumindo-se assim como intercessora das Graças e da Bondade de Deus. Na sua obra intitulada Relações Santa Teresa dá-nos conta de como encarava a situação de pobreza com que «conviveu» e que aqui encontramos refletida. A sua caridade é inteligível e faz parte da lembrança dos muitos que foram beneficiados por ela, segundo a aura da sua santidade e que, nos nossos dias, ainda é percetível e se espelha na ação dos que continuam as suas obras. Santa Teresa era, de igual modo, humilde. No painel Santa Teresa em penitência (Humildade) (FIG. 4) observamos, no gesto de limpar o chão, o timbre essencial da vida religiosa e, particularmente, um símbolo da pobreza e pureza que a vida carmelita impunha. No Livro da Vida, mais concretamente no capítulo 30, Santa Teresa retoma a narração das «tentações e trabalhos interiores» às quais se ia submetendo e, a representação escolhida para este painel poderá ser uma analogia às suas palavras quando diz: Parece também como um fogo que é grande e, para que não se apague, é preciso que tenha que queimar. São assim as almas que digo. Ainda que fosse muito à sua custa, quereriam trazer lenha para que não cessasse este fogo. Eu sou tal que, até com palhas que pudesse lançar nele, me contentaria. E assim me acontece algumas e muitas vezes: umas, eu me rio e outras me aflijo muito. O movimento interior incita-me a que sirva em algo - já que não sou para mais - em pôr ramitos e flores em imagens, em varrer, em compor um oratório, em umas coisitas tão baixas que me fazia confusão. Se fazia ou faço alguma penitência, era tudo pouco e de maneira que, a não aceitar o Senhor a vontade, via que era sem nenhum préstimo, e eu mesma me ria de mim. (Santa Teresa de Jesus, 2000: 249). Santa Teresa rega uma árvore seca (FIG. 5) pode ser uma alusão ao reflorescer da «figueira inanimada», uma metáfora do cultivo da virtude contra as raízes do mal e das faltas que pudessem incorrer a qualquer um de nós. Santa Teresa assim o diz na sua obra Conceitos do Amor de Deus: Verdade é não podermos estar sem elas, mas, ao menos, mudem-se para que não deitem raízes, que são piores de arrancar, e até poderão vir a nascer delas outras mais, pois se plantamos uma erva ou um arbusto e cada dia o regamos, far-se-á tão grande que, para o arrancar depois, é preciso pá e enxada. Assim me parece que é o cometer cada dia uma falta – por pequena que seja – se não nos emendamos dela. (Santa Teresa de Jesus, 2000: 986). A referência de Santa Teresa à «árvore» oscila entre a «árvore do mal» (seca e infecunda) e a «árvore das virtudes, do Bem». Para além desta «rega» que implica, no seu entender e em associação, quatro estágios de oração, o que aqui está em causa é a renegação do pecado e a necessidade de esconjurar a «má raiz» que nos tenta ao longo da vida. No entanto, uma observação mais atenta ao painel em questão permitiu avançar com uma outra hipótese de interpretação. A figura da santa apresenta, apenas neste painel, uma «marca» na testa que poderá indicar tratar-se de Santa Rita de Cássia.10 Este atributo, a par da cena representada, reforça Esta identificação é possível apenas neste painel, uma vez que, nos restantes, a figura da santa não apresenta a referida «marca». Esta poderá ter sido colocada como elemento iconográfico que melhor permitisse a identificação, porque, quando Santa Rita passou por esta provação, ainda não tinha sido agraciada com o espinho da coroa de Cristo, a quem tinha rezado e pedido para sentir a dor que o Senhor tinha sentido. 10

112

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

esta nova proposta de identificação, pois o ato de regar uma árvore pode estar relacionado com uma das muitas provações de Santa Rita, mais concretamente, uma que ocorreu durante o seu primeiro ano no mosteiro de Santa Maria Madalena, da ordem de Santo Agostinho, em Cássia, altura em que foi posta à prova quando lhe ordenaram que regasse de manhã e à tarde um galho seco. Com admirável simplicidade, ela obedeceu e regou o galho durante cerca de um ano, ao fim do qual este transformou-se numa videira (Bergadano, 2009). Dois outros painéis completam o conjunto, mas não há também certezas quanto à sua identificação. O primeiro, Passamento da mãe de Santa Teresa (FIG. 6), e a confirmar-se ser realmente a mãe de Santa Teresa no leito, é um anacronismo relativamente à figura da santa, que surge aqui já como monja carmelita. Santa Teresa ficou órfã de mãe muito nova, levando-a a implorar a Nossa Senhora que a recebesse como sua filha ainda antes de entrar para o Convento da Encarnação em Ávila. Poder-se-á tratar de uma metáfora deste episódio ou da(s) morte(s) de irmãs ou Madres a que a bondade da santa acudiu. O segundo painel, Entrega do pão ao Menino, relembra o tema tradicional, representado e associado a muitos outros santos, na expressiva atitude de dar o pão, nosso e quotidiano, físico e sobrenatural. É de crer, também, que a cena em questão possa constituir o símbolo geral da caridade de Santa Teresa, assim personificada e centrada na figura do Deus-Menino, mesmo que não seja Santa Teresa que figura no painel. Na verdade, a lacuna do azulejo que corresponde, precisamente, ao rosto da santa, não permite avançar muito mais nesta identificação, facto ainda agravado pelo reconhecimento do hábito como pertencendo à ordem dos franciscanos.11 Uma primeira tentativa de reconstituir a disposição original destes dez painéis encontrou um possível paralelismo com o coro-alto do Convento dos Cardaes em Lisboa, decorado com um dos mais ricos e complexos ciclos em azulejo dedicado a Santa Teresa de Jesus. O indício que nos levou a estabelecer esta ligação deve-se à evidência de, no painel Sagrada Família na Oficina de São José (São José Carpinteiro) (FIG. 7), existir o contorno de uma cruz na área inferior da composição, o que parece apontar para que o painel tenha sido colocado e recortado por forma a contornar um elemento arquitetónico ou escultórico, o que poderia denunciar a presença de um altar ou crucifixo pétreo no local onde o conjunto azulejar foi inicialmente colocado. A comprovar-se esta hipótese, a aplicação dos painéis poderá ter sido a seguinte: no lado do Evangelho as cenas associadas ao misticismo de Santa Teresa de Jesus (Comunhão Mística, Santa Teresa (ou Santa Rita de Cássia?) rega uma árvore seca, Visão do Menino), enquanto no lado da Epístola estaria o painel Passamento da mãe de Santa Teresa, a par das cenas que relatam as suas virtudes: Santa Teresa dá o pão e trata as feridas dos pobres (Caridade) e Santa Teresa em penitência (Humildade), e ainda o painel Entrega do pão ao Menino. Na parede de topo figurariam os painéis da Sagrada Família na Oficina de São José (São José Carpinteiro) ao centro, Cristo em casa de Marta e Maria à esquerda e, à direita, Santo Agostinho lavando os pés a Cristo disfarçado de peregrino. Na parede oposta estaria a grade com, provavelmente, dois outros painéis a ladeá-la (FIG. 8). Outra hipótese a considerar é a da aplicação dos painéis numa sala contígua à igreja12 ou numa capela, com os painéis dispostos, por exemplo, em dois registos, mas mantendo a ordem que acima enunciamos.

São Pedro de Alcântara, amigo e confessor de Santa Teresa, poderá ser uma possibilidade para esta identificação, assim como Santo António que «partilha», com Santa Teresa, da devoção pelo Menino Jesus. 12 No antigo convento de Santa Teresa de Jesus de Carnide, hoje transformado em espaço assistencial e educativo, existe uma sala contígua à capela-mor designada Sala do Túmulo, por lá se encontrar o túmulo da Infanta D. Maria, filha de D. João IV. Numa das paredes deste espaço podem ser observadas quatro cenas sobre Santa Teresa de Jesus e da ordem das Carmelitas. 11

113

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

Considerações finais No século XVIII a questão da disposição arquitetónica e decorativa dos templos da reforma carmelita, estabelecida por Santa Teresa de Jesus, foi tratada nos vários Capítulos nos quais participaram arquitetos da Ordem, que tentaram ir ao encontro da simplicidade e austeridade exigidas. No entanto, esta disposição nem sempre foi rigorosamente observada e, com o passar dos anos, os elementos decorativos e iconográficos enriqueceram os templos, muitas vezes em resultado da devoção dos seus patronos. O conjunto azulejar referido ao longo deste artigo é um exemplo deste crescente enriquecimento, «atualizando» as representações artísticas conhecidas desta santa carmelita e da Ordem das Carmelitas Descalças. É possível observar uma analogia entre os painéis e a espiritualidade, misticismo e virtudes neles patentes com as obras literárias de Santa Teresa, ainda que não sejam representações rigorosas, ao contrário de outros ciclos azulejares que se inspiraram, por exemplo, no álbum de Adriaen Collaert e Cornelis Galle, como acontece no conjunto da Basílica da Estrela, no do Convento dos Cardaes e no do Convento de Santa Teresa de Jesus de Carnide, em Lisboa. Paralelamente, os painéis do Museu Nacional do Azulejo podem enunciar uma doutrina que poderá ter estado presente aquando da sua conceção para um local específico. Neste caso, a maior ou menor exatidão do artista ao realizar as cenas apresentadas poderá refletir uma interpretação pessoal do encomendante, afastando-se um pouco do que na altura eram os modelos de representação artística da santa carmelita. Por exemplo, a mais recente leitura iconográfica permitiu perceber que, ao contrário do que normalmente se encontra nos ciclos acima enumerados (entre outros), no conjunto do Museu é Santo Agostinho que surge representado num dos painéis e não São João da Cruz, confessor de Santa Teresa e responsável, com ela, pela fundação do ramo masculino da ordem dos Descalços. Também a hipótese de ser Santa Rita de Cássia no painel em que a Santa representada rega uma árvore seca, não será de todo implausível. A devoção pela freira agostinha que, ao tempo de Santa Teresa, ainda não era santa, seria do conhecimento geral desde o século XV. Estas e outras perguntas como quem, porquê, como, onde, para quê e para quem, permanecem ainda por responder, encontrando-se a chave para a sua descoberta, muito provavelmente, em registos pouco estudados, ignorados ou até desaparecidos. É, por isso mesmo, nosso objetivo continuar a desenvolver a presente investigação, de forma a conhecer o contexto histórico-artístico deste significativo conjunto azulejar. As hipóteses que apresentamos são, como tal e para já, apenas hipóteses, facto que se deve, em grande medida, à reduzida informação disponível. Por outro lado, estes painéis perderam, desde a remoção do seu espaço original, a sua identidade, memória e «verdadeira» razão de existência adquirindo, no âmbito do projeto Devolver ao Olhar, um novo entendimento em contexto muito diverso do que presidiu à sua execução e que procuramos agora recuperar. Bibliografia ÁLVAREZ, Tomás (introd. e notas) – Teresa de Jesus, Hoje. In Santa Teresa de Jesus: Obras Completas. Paço de Arcos: Edições Carmelo, 2000. BERGADANO, Elena – S. Rita de Cássia, A santa de todos. Lisboa: Paulinas Editora, 2009. FRANCO, José Eduardo. MOURÃO, José Augusto. GOMES, Ana Cristina da Costa (eds.) – Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal. Lisboa: Gradiva, 2010. LOUREIRO, Fátima Dias – As Coleções de Azulejaria. Do Museu Nacional de Arte Antiga ao Museu do Azulejo. In João Miguel dos Santos Simões 1907-1972. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo, 2007, pp. 197-209. MARINHO, Lúcia – Saint Teresa of Jesus: Problematic of a (re)discovery. Atas do Azulejar – Congresso Internacional. Aveiro, 10-12 de Outubro de 2012 [texto distribuído em dispositivo eletrónico]. 114

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

MONTEIRO, João Pedro – Teórico e Historiador dos Azulejo em Portugal. In João Miguel dos Santos Simões 1907-1972. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo, 2007, pp. 31-47. SANTA TERESA DE JESUS – Obras Completas: Livro da Vida. Paço de Arcos: Edições Carmelo, Vasco Dias Ribeiro (trad.), 2000, cap. 30-20, p. 249. __________ – Obras Completas: Livro da Vida. Paço de Arcos: Edições Carmelo, Vasco Dias Ribeiro (trad.), 2000, cap. 38-21, p. 327. __________ – Obras Completas: Conceitos do Amor de Deus. Paço de Arcos: Edições Carmelo, Vasco Dias Ribeiro (trad.), 2000, cap. 2-18, p. 986. SIMÕES, João Miguel dos Santos – Da Montagem e Apresentação Museológica de Azulejos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Brigada de Estudos de Azulejaria, 1963. Biblioteca Nacional de Portugal (B.N.P.), COLLAERT, Adriaen; GALLE, Cornelis – Vita S. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum Excalceatorum piae restauratricis. Antuérpia: Apud Ioannem Galleum, 1630, E. A. 14P, fls 138-162. Site Poemas 911 – poema Véante Mis Ojos de Santa Teresa de Ávila. IN http://www.poemas911.com/poemaveante-mis-ojos-santa-teresa-de-avila-poemas-de-amor/ (2013-01-16). Site oficial da Catholic Tradition, página dedicada a Santa Rita de Cássia – http://www.catholitradition.org/ Cascia/rita2-3.htm#CONVENT (2013-02-16) Site católico norte-americano: Americancatholic – Biografia de Santa Teresa de Ávila. IN http://www. americancatholic.org/Features/Saints/Saint.aspx?id=1169 (2013-01-16) Site oficial da Ordem dos Carmelitas Descalços, Boletim de notícias da Província de São José, Brasil – http:// provsjose.blogspot.pt/2010/07/40-anos-da-proclamacao-do-doutorado-de.html (2012-06-26) Site oficial do Santuário do Menino Jesus de Praga – http://www.santuariomeninojesus.org/menino/menino_ devocao.php (2013-01-16)

115

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

Fig. 1 – Visão do Menino por Santa Teresa (fot. Arquivo pessoal, Lisboa, 2011)

116

n.1 (2013)

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

Fig. 2 – Comunhão mística de Santa Teresa (fot. Arquivo pessoal, Lisboa, 2013)

117

n.1 (2013)

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

Fig. 3 – Santa Teresa dá o pão e trata as feridas dos pobres: Caridade (fot. Arquivo pessoal, Lisboa, 2013)

118

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

Fig. 4 – Santa Teresa em penitência: Humildade (fot. Arquivo pessoal, Lisboa, 2013)

119

n.1 (2013)

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

Fig. 5 – Santa Teresa (ou Santa Rita de Cássia?) rega uma árvore seca. Pormenor da face (fot. Arquivo pessoal, Lisboa, 2013)

120

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

Fig. 6 – Passamento da mãe de Santa Teresa (fot. Arquivo pessoal, Lisboa, 2013)

121

n.1 (2013)

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

n.1 (2013)

Fig. 7 – Sagrada Família na oficina de São José (São José Carpinteiro) (fot. Arquivo pessoal, Lisboa, 2013)

122

CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

Fig. 8 – Possível disposição do conjunto azulejar

123

n.1 (2013)

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.