(Re)Descobrir o mundo em livros, revistas e jornais. Hamburgo e as notícias de além-mar (1650–1700)

August 19, 2017 | Autor: M. dos Santos Lopes | Categoria: Cultural History, Print Culture, Book History (History)
Share Embed


Descrição do Produto

MARÍLIA DOS SANTOS LOPES

(Re)Descobrir o mundo em livros, revistas e jornais. Hamburgo e as notícias de além-mar (1650–1700) Apesar de distante, o Sacro Império Romano-Germânico revelou desde cedo grande curiosidade pelas viagens marítimas portuguesas e pelos descritos «mundos novos do mundo». Assim, e logo a seguir a Itália, foi a Alemanha o país da Europa Central que mais se interessou pela empresa ultramarina portuguesa, como já tivemos ocasião de demonstrar.1 Com efeito, a Alemanha seguiu atentamente o avanço para o Atlântico Sul, como, já em 1493, se pode comprovar, com a edição da famosa crónica-mundi de Hartmann Schedel.2 No capítulo que dedica a Portugal não só se faz já referência à riqueza da ilha da Madeira, nomeadamente ao lucrativo comércio do açúcar, como ainda se dá grande relevo às viagens de Diogo Cão. Hartmann Schedel pôde, na verdade, contar com o saber de dois compatriotas, Martin Behaim3 e Hieronymus Münzer4, detentores de informações sobre Portugal e a sua empresa marítima.5 Oriundos de Nuremberga6, ambos tinham visitado o reino 1

2 3

4

5

6

Veja-se Marília dos Santos LOPES, Portugal. Uma fonte de novos dados. A recepção dos conhecimentos portugueses sobre África nos discursos alemães dos séculos XVI e XVII. In: Mare Liberum 1 (1990), p. 205–308; Marília dos Santos LOPES, Os Descobrimentos Portugueses e a Europa. In: Máthesis 9 (2000), p. 233–241; ou ainda Marília dos Santos LOPES, Os Descobrimentos Portugeses e a Alemanha. In: Maria Manuela Gouveia DELILLE (org.), Portugal – Alemanha: Memórias e Imaginários, vol. 1, Coimbra 2007, p. 29–60. Hartmann SCHEDEL, Liber Chronicarum, Nuremberga 1493. Sobre Martin Behaim em Portugal veja-se G.R. CRONE, Martin Behaim, navigator and cosmographer, figment of imagination or historical personage? In: Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, Lisboa 1961, vol. II, p. 117–133; Günther HAMANN, Der Eintritt der südlichen Hemisphäre in die europäische Geschichte, Viena 1968, sobretudo p. 192–214; Armando CORTESÃO, História da Cartografia Portuguesa, vol. I, Coimbra 1969, p. 27–29. Já antes de vir a Portugal, Hieronymus Münzer escreve ao rei D. João II (1493), a fim de lhe sugerir a navegação para Ocidente, que considera ser o verdadeiro caminho para alcançar em curto espaço de tempo a oriental Catay. É possível que Martin Behaim tenha trazido a carta aquando do seu regresso de Nuremberga. Veja-se Jerónimo MÜNZER, Itinerário, Coimbra 1932. Ver ainda Luís de ALBUQUERQUE, Os Guias Naúticos de Munique e Évora, Lisboa 1965. Como o demonstra o relato de Jerónimo Münzer sobre a sua estada na Península Ibérica, concretamente sobre Portugal e a empresa marítima. Veja-se Jerónimo MÜNZER, Itinerário, Coimbra 1932. Sobre a importância de Nuremberga veja-se Ute Monika SCHWOB, Kulturelle

170

Marília dos Santos Lopes

português e muito souberam relatar sobre as novidades do que em Portugal se ouvia e via sobre outros novos mundos. Alguns anos mais tarde é a vez de Balthasar Springer, um dos alemães que viajou na frota de D. Francisco de Almeida (1505), trazer a lume na Alemanha, em 1509, o seu relato de viagem que se iria tornar num dos mais importantes documentos dos inícios da Carreira da Índia além-Pirinéus.7 De facto, este texto, que nas edições flamenga e alemã é acompanhado por ilustrações dos povos visitados, viria a contribuir significativamente para a difusão, na Europa Central, das notícias referentes às viagens dos portugueses. Enquanto relatos como estes circulavam pela Europa e em particular pela Alemanha, outros conterrâneos tinham já a oportunidade de apreciar algumas das raridades vindas de novas paragens em terras européias. O prestigiado pintor Albrecht Dürer, no seu diário de viagem aos Países Baixos, aponta as coisas maravilhosas e novas que, vindas de África e da Índia, viu e conheceu em Antuérpia.8 Para além da célebre gravura do rinoceronte enviado por D. Manuel I ao papa Leão X, o artista deixou-nos esboços de africanos, mormente de Catarina, a escrava do feitor português. São ainda o interesse e a curiosidade pela gesta lusitana que levam Konrad Peutinger9, o humanista e secretário do Imperador Maximiliano I, a defender a participação das casas comerciais alemãs nas viagens portuguesas10, que levam os Fugger, uma das famílias de mercadores mais influentes do sul da Alemanha e de grande poderio no comércio ibérico, a compilarem e colecionarem, por toda a Europa, testemunhos e livros sobre as terras descobertas, criando, deste modo, uma das mais

7

8 9

10

Beziehungen zwischen Nürnberg und den Deutschen im Südosten im 14. bis 16. Jahrhundert, München 1969; Lore SPORHAN-KREMPEL, Nürnberg als Nachrichtenzentrum zwischen 1400 und 1700, Nürnberg 1968; Hermann KELLENBENZ, Die Beziehungen Nürnbergs zur Iberischen Halbinseln, besonders im 15. und in der ersten Hälfte des 16. Jahrhunderts. In: Beiträge zur Wirtschaftsgeschichte der Stadt Nürnbergs, Nürnberg 1967, p. 456–493. Die Merfart und erfarung nüwer Schiffungen und Wege zü viln onerkanten Inseln und Künigreichen / von dem groszmechtigen Portugalichen Kunig Emanuel Erforscht / bestritten und Ingenommen ... Sobre Springer e o seu relato veja-se Renate KLEINSCHMIDT, Balthasar Sprenger. Eine quellenkritische Untersuchung, Viena 1966. Tagebuch der Reise in die Niederlande. In: Albrecht DÜRER, Schriften und Briefe, Leipzig 1982, p. 55–101. Sobre o impressor residente em Lisboa e informador de Konrad Peutinger, Valentim Fernandes, veja-se Marília dos Santos Lopes, «Vimos oje cousas marauilhosas.» Valentim Fernandes e os Descobrimentos Portugueses. In: A. H. de OLIVEIRA MARQUES – Alfred OPITZ – Fernando CLARA (org.), Portugal – Alemanha – África. Do Imperialismo Colonial ao Imperialismo Político. Actas do IV Encontro LusoAlemão, Lisboa 1996, p. 13–23. Como se pode comprovar pela correspondência com o Imperador. Cf. Entwürfe für Schreiben an Maximilian. In: Heinrich LUTZ, Conrad Peutinger. Beiträge zu einer politischen Biographie, Augsburg 2001.

Hamburgo e as notícias de além-mar

171

importantes bibliotecas da Idade Moderna11, ou que levam letrados como Martin Waldseemüller a publicar, em 1507, um mapa-mundi que, a partir das viagens dos descobrimentos portugueses, revolucionaria a imagem do mundo. Waldseemüller publicaria, mais tarde, ainda uma Geografia (1513) que, entendida como uma reedição de Ptolomeu, se tornaria um marco da cartografia europeia.12 Como podemos verificar, a distância não representava qualquer obstáculo para homens sedentos de saber. Nas suas funções de comerciantes, diplomatas, artistas, eruditos unia-os uma sólida e férrea vontade de conhecer mais sobre o mundo, curiosidade essa que poderiam saciar com as notícias dos mareantes portugueses, com as novas verdades sobre a terra e seus habitantes, tornando-se assim capazes de formular uma imagem mais exata e correta sobre o mundo e a humanidade. Se numa fase inicial se divulgavam na Alemanha pequenos textos noticiosos, depressa se evidenciou a necessidade de conhecer escritos de maior fôlego sobre a empresa marítima. Nomes como o de Luís de Cadamosto, cuja relação viria a lume na célebre coleção de viagens Paesi novamente retrovati13, os trabalhos de Damião de Góis sobre a Etiópia14, os primeiros livros da História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses de Fernão Lopes de Castanheda15, onde se relatam as viagens pelo Atlântico até à Índia, a obra de Duarte Lopes sobre a sua estada no Congo16 ou o grande andarilho Fernão Mendes Pinto e as suas 11 12

13

14

15

16

Veja-se, por exemplo, Paul LEHMANN, Eine Geschichte der alten Fuggerbibliotheken, 2 vols., Tübingen 1956–1960. Veja-se, entre outros, Matthias MEYN – Manfred MIMLER – Anneli PARTENHEIMER-BEIN – Eberhard SCHMITT (eds.), Die Großen Entdeckungen, München 1984, p. 13–15; Armando CORTESÃO, History of Portuguese Cartography, vol. 1, Coimbra 1969; Alfredo Pinheiro MARQUES, A Cartografia Portuguesa e a Construção da Imagem do Mundo, Lisboa 1991. Fracanzio da MONTALBODDO, Paesi novamente retrovati, Vicenza 1507, obra editada em Nuremberga, um ano mais tarde, em língua alemã, sob o título Newe unbekanthe Landte und ein newe weldte in kurz verganger zeythe erfunden, e também em latim: Itinerarium Portugallensium ... Damião de GÓIS, Fides, Religio, Moresqve Aethiopvm Imperio Preciosi Ioannis (quem vulgo Presbyterum Ioannem vocant) ..., Löwen 1540; ou ainda Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Joannis ad Emanelem Lusitaniae Regem, Anno Domini M.D.X.III., Antwerpen 1532. [Fernão Lopes de CASTANHEDA] Warhafftige vnd volkomene Historia / von Erfindung Calecut vnd anderer Königreich / Landen vnd Inseln / in Indien / vnd dem Indianischen Meer gelegen / So vormals von niemals mehr erfand / Daher biß auff den heutigen Tag allerley Gewürtz / Specerey und andere köstliche Waren in die ganze Christenheit gebracht werden, Wie dieselbigen durch des Königs auß Portugal Unterthanen zu Meer ersucht / gefunden und bekriegt worden / etc. Auß Frantzösicher Sprach jeßt newlich ins Teutsch gebracht, o. O. 1565. Duarte LOPES e Filippo PIGAFETTA, Warhaffte vnd Eigentliche Beschreibung dess Künigreichs Congo in Africa / und deren angrentzenden Länder / darinnen der Inwohner Glaub / Leben / Sitten vnd Kleidung wol vnd aussführlich vermeldet vnd angezeigt wirdt, Frankfurt a. M. 1597.

172

Marília dos Santos Lopes

peripécias no Oriente seriam naturalmente dados a conhecer em alemão.17 Se no século XVI é o sul de Alemanha que mais procura estreitar as ligações com Portugal, no século XVII verificar-se-á um reforço das relações entre lusitanos e as cidades da Alemanha do Norte, mais concretamente com a de Hamburgo. Na verdade, Hamburgo, um dos mais notáveis e significativos entrepostos comerciais da Alemanha do Norte, atrai as atenções não só de compatriotas, como testemunha Christian Ludewig von Griesheim (1709–1767)18, mas também além das fronteiras imperiais. Neste sentido, desde os meados do século XVII, a Península Ibérica em geral e Portugal em particular ocupam um importante papel como parceiro comercial, tal como o salientam os trabalhos do ilustre historiador Hermann Kellenbenz que em Unternehmerkräfte im Hamburger Portugal- und Spanienhandel 1590–162519 refere rotas, firmas e mercadorias que institucionalizaram os contactos entre Portugal e Hamburgo. Se à ida os navios levavam cereais, farinha, ou outros artigos alimentares, bem como armas e diversos produtos de metal, no regresso a Hamburgo, aos produtos de origem nacional como sal, azeite, cortiça, lã, conservas (em especial, confeccionadas de frutas, como a famosa marmelada, palavra portuguesa que ficaria no vocabulário alemão), juntar-se-iam outros, mais procurados, oriundos de África, do Brasil e do Oriente. Não é de admirar que o produto de maior procura e importância fosse o açúcar que, vindo em grande parte do Brasil, da Madeira e 17

18

19

Fernão Mendes PINTO, Wunderliche und Merkwürdige Reisen Fernandi Mendez Pinto, welche er innerhalb ein und zwantzig Jahren durch Europa, Asia und Africa, und deren Königreichen und Länder, Abyssina, China, Japan, Tartarey, Siam, Calaminham, Pegu, Martabane, Bengale, Brama, Ormus, Batas Queda, Aru, Pan Ainan, Calemfluy, Cauchenchina und andere Oerter verrichtet, Darinnen er beschreibet wie ihme zu Wasser und Land zugestossene grosse Noht und Gefahr; wie er nemblich sey dreizehnmal gefangen genommen und siebenzehnmal verkauft worden; auch vielfältigen Schiffbruch erlitten habe: Dabey zugleich befindlich eine gar genaue Entverfung der Wunder und Raritäten erwehnter Länder; der Gesetze / Sitten / und Gewohnheiten derselben Völcker; und der grosse Macht und Heeres Kraft der Einwohner, Amsterdam 1671. Christian Ludewig von GRIESHEIM escreve elogiosamente na sua obra Die Stadt Hamburg nach ihren politischen, oeconomischen und sittlichen Zustande, editada no ano de 1759 sobre esta cidade alemã: «Hamburg ist das grosse deutsche Magazin. Welcher vernünftiger Deutsche sollte sich mit diesen einländischen Magazin bey günstiger Gelegenheit nicht bekannt machen, und dasselbe mit seiner Heymat zu verbinden suchen? Das ist möglich, er mag in Deutschland wohnen, wo er will. Jeder Reisender sollte das nahrhafte Hamburg eben so aufmerksam betrachten, als das schöne, glänzende, und anmuthige der Regenten Hofhaltungen, und Wohnsitze des vornehmen Adels.« Cit. in: Martin KRIEGER, Geschichte Hamburgs, München 2006, p. 63. Hermann KELLENBENZ, Unternehmerkräfte im Hamburger Portugal- und Spanienhandel 1590–1625, Hamburg 1954.

Hamburgo e as notícias de além-mar

173

de S. Tomé20, irá tornar-se em Hamburgo, nas famosas Zuckerbäckerei (Zuckersiederei) do século XVII, um dos principais produtos de exportação. Procurados eram ainda a pimenta, a canela, o índigo ou a famosa porcelana chinesa. Nas mãos de vários holandeses e portugueses, estas trocas comerciais atestam a perfeita inserção de Hamburgo no intenso e promissor comércio internacional.21 Nó de grandes redes internacionais, Hamburgo faz parte deste «mundo em movimento»22, onde conseqüentemente todos os acontecimentos com ele relacionados se revelam a medida de todas as coisas e o grande horizonte político-cultural dos homens aí residentes. Daí que «… was in der Welt geschiehet» seja o que mais importa saber ou ainda dar a saber, como se afirma em Monatsgesprächen de Johann Rist, no ano de 1663.23 É, pois, precisamente a partir do século XVII que Hamburgo se torna, para além de um importante entreposto comercial, um selecionado e requisitado ponto de encontro da comunicação e da imprensa, aspirando a metrópole cultural no seio do Império. A sua central localização entre diferentes rotas comerciais, quer para o resto do país quer para a Europa Central e Ocidental, é uma insubstituível e favorável condição para a constituição de um pólo aglomerador das mais importantes notícias, dando conseqüente e obviamente origem a novas dinâmicas culturais. Começando por ser sede dos correios, intermediário e difusor de básicas informações econômicas e políticas, Hamburgo rapidamente se tornará num decisivo centro de informes e notícias sobre a Alemanha e o mundo.24 Se inicialmente eram, em grande parte, os homens dos negócios que estavam, quer diretamente envolvidos, quer mais interessados nas notícias diárias, o certo é que as redes e as dinâmicas informativas irão rapidamente dar lugar a um importante desafio, em que a comunicação e a cultura se tornam alvos de inovadores projetos, como a publicação de periódicos. A partir da década vinte do século XVII irão surgir vários jornais cujo principal objetivo é a oferta de informações atuais, sérias e 20 21 22 23

24

KRIEGER, Geschichte Hamburgs, p. 62–65. KELLENBENZ, Unternehmerkräfte, p. 58. A. J. R. RUSSEL-WOOD, Um Mundo em Movimento, Os Portugueses na África, Ásia e América (1415–1808), Lisboa 1998. Lê-se em Monatsgesprächen de 1663: «Und eben dises schätze ich für eine gahr grosse Glückseligkeit der Stattleute, das sie vermittelst ihrer Zusammenschreibung, Briefewechselung, oder Correspondenz fast alles, was in der Welt geschiehet, können erfahren. Es sind ja die Posten in den grossen Stätten, absonderlich in unserem Hamburg dermassen wol bestellet, das man in gahr kurtzer Zeit, [...] aus allen Ländern und Königreichen Briefe und Zeitungen haben.» Sublinhado nosso, cit. in KRIEGER, Hamburg, p. 69. Veja-se Carsten PRANGE, Die Zeitungen und Zeitschriften des 17. Jahrhunderts in Hamburg und Altona. Ein Beitrag zur Publizistik der Frühaufklärung, Hamburg 1978.

174

Marília dos Santos Lopes

completas sobre importantes acontecimentos, atos ou temas. Quem lia regularmente o jornal estava, pois, informado acerca dos principais acontecimentos políticos e militares das principais capitais europeias – não surpreende assim que, por exemplo, a notícia do noivado do rei português D. João V com D. Maria Ana, arquiduquesa de Áustria, filha da Casa de Habsburgo, pomposa e festivamente anunciado em Viena, venha a constituir uma longa e detalhada notícia nos periódicos côntemporâneos.25 Esta primeira tarefa, que significava desde já um importante exercicio de recolha e compilação de materiais, torna-se cada vez mais um verdadeiro exercício jornalístico com vista a sintetizar notícias capazes de suscitar grandes e atraentes títulos. As equipas editoriais tinham, pois, de reunir e selecionar correspondências – as notícias particulares são, como sabemos, os primórdios da edição de folhetos, como os famosos Flugschriften dos Fugger –, traduzir, estruturar e sintetizar adequadamente importantes relatos da atualidade, a fim de informar e divertir os seus leitores. Os diferentes periódicos adquirem, portanto, um caráter instrutivo e didático, desejado tanto por redatores como por conscientes leitores. E mais, chegam a todo o lado, mormente a diferentes e longínquas cidades como, por exemplo, a Lisboa, tal como sabemos pela correspondência do presidente da Câmara Johann Schulte a seu filho que, na função de comerciante, residia na capital portuguesa.26 Na verdade, «die Journale regulierten Debatten, informierten über neuesten Entdeckungen und stifteten durch das entstehende Rezensionswesen Überblick. Kurz, das neue Medium verlieh der gelehrten Kommunikation neue Effizienz und Qualität, weil es sie konzentrierte und beschleunigte»27, como significativamente refere Flemming Schock. Neste papel de determinantes mediadores da informação, os periódicos tornam-se um verdadeiro e inegável veículo da Aufklärung, como salienta Holger Böning. Assim, «Wir erhrlich Leute / die wir itzt in der Welt leben / müssen auch die jetzige Welt erkennen»28, ou seja, a divisa é conhecer o mundo atual, e isso só será possível não através de leituras sobre Alexandre ou César mas com a ajuda da imprensa periódica 25

26 27

28

Eberhard Werner HAPPEL, Relationes Curiosæ, Oder Denckwürdigkeiten der Welt: Darinnen Allerhand auf dem Schau-Platz der alten und neuen Zeit vorkommende remarquable Seltenheiten ... zusammen getragen ... worden, Hamburg 1709, vol. III, p. 106–109. J. SCHULTE, Briefe des Hamburgischen Bürgermeisters, cit. in PRANGE, Zeitungen, p. 193. Flemming SCHOCK, «Von diesen gelehrten und curieusen Männern.» Zur Kommunikation gelehrten Wissens in der ersten populären Zeitschriften Deutschlands (Relationes Curiosae), 1681–1691. In: Klaus Dieter HERBSt – Stefan KRATOCHWIL (eds.), Kommunikation in der Frühen Neuzeit, Frankfurt a. M. 2009, p. 119–134, aqui p. 121. Holger BÖNING, Welteroberung durch ein neues Publikum. Die deutsche Presse und der Weg zur Aufklärung. Hamburg und Altona als Beispiel, Bremen 2002.

Hamburgo e as notícias de além-mar

175

atual.29 Só os periódicos, na opinião dos coevos, poderiam abrir uma janela para o mundo envolvendo os leitores num imensurável e contínuo projeto de (re)descoberta. E neste amplo projeto, qual o lugar do mundo ultramarino, e mais concretamente, quais as referências ao mundo ultramarino de expressão portuguesa? Vejamos um exemplo. Entre 1681–1691 viriam a lume as Relationes Curiosae, a cargo de Thomas von Wiering, um importante e renomeado impressor da cidade de Hamburgo. Se o seu formato ainda recorda um livro, trata-se, contudo, de uma revista semanal que se irá tornar num dos maiores êxitos do mundo editorial no século XVII: várias edições, versões em diferentes línguas, dez anos contínuos de edições, reedições até aos finais do século XVIII refletem o impacto que teve junto do público. Na verdade, estamos perante um precoce e estratégico empreendimento por parte de Thomas von Wiering, que projeta a revista como suplemento do seu jornal «Relations-Courier», um dos mais bem sucedidos jornais de Hamburgo. Contando assim com um núcleo de leitores fiéis ao periódico diário, Wiering planeia Die grösten Denckwürdigkeiten dieser Welt: Oder so gennante Relationes Curiosae 30, cujo título indicia desde já o desejo do impressor de ir ao encontro dos interesses e curiosidades dos leitores sobre as grandes singularidades do mundo. Como editor e compilador responsável por este ambicioso programa editorial iremos encontrar Eberhard Werner Happel31 (de 1647 a 1690 em Hamburgo). Autor reconhecido de obras como Thesaurus Exoticorum oder eine mit Außländischen Raritäten und Geschichten wohlversehene Schatz=Kammer (Hamburg 1688) ou exóticos e «enciclopédicos» romances, Eberhard Werner Happel, ao coligir as curiosidades e singularidades do mundo, intenta formular uma nova ordem de saber, capaz de satisfazer a avidez informativa dos seus leitores. Tendo frequentado Medicina, Direito e Ciências da Natureza em Marburgo e Giessen, Eberhard Werner Happel irá tornar-se, em Hamburgo, um dos primeiros autores a viver da escrita, quer sejam romances, quer obras de compilação, como as Relationes Curiosae, onde se reflete o saber do seu tempo. Reconhecendo, pois, este ofício como o seu ganha-pão, torna-se um dos primeiros a viver deste seu trabalho, como afirma Holger Böning: «Der Herausgeber Eberhard Werner Happel, einer der ersten deutschen Autoren Schöner Literatur, die schon im 17. Jahrhundert vom Schreiben leben und zu diesem Zweck 29 30 31

BÖNING, Welteroberung, p. 134. Trad.: As maiores singularidades do mundo ou as assim chamadas Relationes Curiosae. Sobre Eberhard Werner Happel veja-se Theo SCHUWIRTH, Eberhard Werner Happel (1647–1690). Ein Beitrag zur deutschen Literaturgeschichte des Siebzehnten Jahrhunderts, Marburg 1908; Gerhard LOCK, Der höfisch-galante Roman des 17. Jahrhunderts bei Eberhard Werner Happel, Würzburg 1939.

176

Marília dos Santos Lopes

journalistisch tätig sind, will Wissen und Kenntnisse nach aktuellem wissenschaftlichen Stand vermitteln.»32 Tal como se assegura no prólogo das Relationes Curiosae, é a vontade de dar a conhecer importantes observações e conhecimentos sobre a história, a geografia, a botânica, ou os usos e costumes de todo o mundo que motiva o surgimento deste trabalho, que nasce desta maneira a pensar nas pessoas que, como destaca, gostem de conhecer as razões e as origens das coisas.33 Embora se dirija principalmente a um público letrado, não descura o intento de instruir e, se possível, divertir. Daí que não tenham sido esquecidas múltiplas ilustrações, também estas encaradas como meio veiculador de conhecimentos e distração. Na verdade, Eberhard Werner Happel está ciente de que os exemplos são o melhor meio para ensinar, como ele próprio afirma: «die Exempeln allwege besser lehren / alss blosse Ermahnungen und Warnungen»34. Tal como já habituara os seus leitores em outras obras, a comparação com exemplos de outros povos e culturas é de extrema utilidade, pelo que as páginas da sua revista se enchem de relatos sobre países, povos e costumes de além-mar. De modo a corresponder a este desafio, Eberhard Werner Happel revela-se um grande conhecedor de relatos ou descrições de viagens, onde obviamente encontra a matéria de que necessita para a redação dos seus escritos. Numa insaciável abertura a outras realidades, Happel será um importante divulgador dos novos dados acerca das terras e das gentes não-europeias, revelando-se um atento leitor das narrativas de viagens, inclusivé daquelas escritas por portugueses, como já tivemos oportunidade de salientar em outras ocasiões.35 Assim, quando nas Relationes Curiosae aborda o tema da caça ao elefante menciona «Garzius von Orta», que apresenta como um escritor contemporâneo, referindo o que este conta quando descreve a caça ao elefante no Pegu.36 No índice vimos a saber que Garcia da Orta é um médico português que praticou o seu ofício como cirugião do vice-rei da Índia durante mais de trinta anos.37 Também refere Fernão Mendes Pinto, mas nem sempre temos a 32 33

34 35

36 37

Cit. in BÖNING, Welteroberung, p. 105. «Glückselig ist der Mensch von jederman zu nennen / Der auch den Ursprung kan der Dinge recht erkennen.» Eberhard Werner HAPPEL, Relationes, T. 1, 1683, Vorrede. Eberhard Werner HAPPEL, Relationes, T.3, 1687, Vorrede. Veja-se Marília dos Santos LOPES, Afrika, Eine neue Welt in deutschen Schriften des 16. und 17. Jahrhunderts, Stuttgart 1992, p. 219–222; Marília dos Santos LOPES, Der Afrikanische Tarnolast. O português em terra alheia como herói de um romance alemão do século XVII. In: Henry THORAU (ed.), Heimat in der Fremde – Pátria em Terra Alheia, 7. Deutsch-Portugiesische Arbeitsgespräche, Berlin 2007, p. 236–245. Eberhard Werner HAPPEL, Relationes, p. 210. Eberhard Werner HAPPEL, Relationes, p. 539.

Hamburgo e as notícias de além-mar

177

sorte de ele mencionar as fontes utilizadas38, ficando assim a simples suspeita do autor ou da obra escondida por detrás das suas afirmações. Há regiões como a Guiné, o Congo, a China e o Japão em que verificamos a recorrência sistemática a obras de autores portugueses. Aliás, este processo já Eberhard Werner Happel usara na obra que coligira anteriormente, Thesaurus Exoticorum oder eine mit Außländischen Raritäten und Geschichten wohlversehene Schatz=Kammer 39, obra singular onde apresenta lado a lado povos de todas as nações do mundo. Também nesta grandiosa publicação, no intuito de proporcionar sensacionais e inéditas descobertas sobre estes «novos e maravilhosos mundos novos», verificamos que, por exemplo, ao descrever os guineenses refere os portugueses e que são as descrições da responsabilidade destes que manuseia como fonte por excelência.40 Aliás, introduz, por vezes, no seu texto vocábulos portugueses, como negro, pretto, indiciando quer as leituras feitas quer o impacto e a presença da língua portuguesa na abordagem destas regiões.41 Irreversível leitor e conhecedor de mundos possíveis, Eberhard Werner Happel transforma o enorme manancial de informes e dados em páginas e páginas de saber enciclopédico na convicta esperança de que estes se tornem, para os cidadãos do mundo, verdadeiras lições nas diferentes áreas do saber. Os redatores dos periódicos querem, pois, transmitir conhecimentos; os autores consideram importante divulgar informes úteis e práticos sobre o mundo, mormente sobre as diferentes realidades políticoculturais. Com o intento de informar – primeiro estádio para a constituição de um público esclarecido e ciente das suas opiniões –, contribuem sobremaneira para a formação intelectual dos seus leitores. As Relationes Curiosae são, neste sentido, um excelente exemplo do relevante papel que os periódicos, em particular, e a imprensa em geral tiveram para uma nova ordem de saber. E em mais nenhum lugar da Alemanha como em Hamburgo este processo editorial e educativo se fez sentir de uma forma tão clara e significativa. No cruzamento de diferentes redes comerciais e culturais, Hamburgo tornou-se, nos finais do século XVII, num dos maiores e reconhecidos centros informativos sobre «die grösten Denckwürdigkeiten dieser Welt».

38

39 40 41

Como acontece, por exemplo, amiudamente em Eberhard Werner HAPPEL, Thesaurus Exoticorum oder eine mit Außländischen Raritäten und Geschichten wohlversehene Schatz=Kammer, Hamburg 1688, como seja na p. 46. Eberhard Werner HAPPEL,Thesaurus Exoticorum, Hamburg 1688. Eberhard Werner HAPPEL, Thesaurus Exoticorum, p. 64–67. Eberhard Werner HAPPEL, Thesaurus, p. 67.

178

Marília dos Santos Lopes

Die Welt (wieder)entdecken in Büchern, Zeitschriften und Zeitungen. Hamburg und die Nachrichten aus Übersee (1650–1700) (Zusammenfassung) Während die portugiesischen Entdeckungen und überseeischen Unternehmungen im 16. Jahrhundert vor allem in Süddeutschland wahrgenommen worden waren, so verstärkten sich im 17. Jahrhundert Portugals wirtschaftliche und kulturelle Kontakte mit den Städten im Norden, allen voran Hamburg. In der Mitte des 17. Jahrhunderts standen – nicht zuletzt dank dieses Kontaktes mit Portugal – überseeische Realitäten im Mittelpunkt des Interesses, insbesondere auch im Buch- und Zeitschriftenwesen der Hansestadt. Das aufstrebende Publikationswesen, das sich um die Aufklärung und Bildung seines Publikums bemühte, reservierte den außereuropäischen Gegebenheiten einen gebührenden Platz. Der vorliegende Aufsatz zeigt dies am Beispiel der zwischen 1681 und 1691 von Thomas von Wiering gedruckten und von Eberhard Werner Happel herausgegebenen Relationes Curiosae.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.