REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: DO CONSTITUCIONALISMO FORMAL AO DIÁLOGO ENTRE CONSTITUIÇÃO E JESSÉ SOUZA The lowering age of criminal responsibility: from formal constitutionalism to the dialogue between Jesse de Souza and the constitution

June 3, 2017 | Autor: Tarcísio Barros | Categoria: Constitucionalismo democrático, Maioridade Penal, Redução da maioridade penal
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REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: DO CONSTITUCIONALISMO FORMAL AO DIÁLOGO ENTRE CONSTITUIÇÃO E JESSÉ SOUZA∗

The lowering age of criminal responsibility: from formal constitutionalism to the dialogue between Jesse de Souza and the constitution Tarcísio Augusto Sousa de Barros∗∗ João Henrique Alves Meira∗∗∗



Artigo publicado na Revista da Procuradoria-Geral do Município de Belo Horizonte - RPGMBH, ISSN 19833490, Belo Horizonte, ano 8, n. 14, p. 201-213, jan./jun. 2016. ∗∗ Bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina - CEUT. Advogado. Especialista em Direito Eleitoral pela UFPI/EJE-PI. Mestrando em Direito Político pela UFMG. ∗∗∗ Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa-MG. Mestrando em Direito Político pela UFMG.

RESUMO: Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição nº 171/1993, que objetiva reduzir a maioridade penal no Brasil. O tema tem atraído relevantes debates jurídicos a respeito da constitucionalidade material e formal da aprovação da proposta de emenda. No entanto, em razão das desigualdades sociais existentes no Brasil, é possível e necessário tratar do tema numa perspectiva sociológica, evidenciando, por fim, se a aprovação da PEC 171/1993 traria mais benefícios ou prejuízos à sociedade. Esta é uma pesquisa de cunho bibliográfico e prático, pois há uma análise detida do livro "A Ralé Brasileira: Quem é e Como Vive", sem descuidar dos aspectos concernentes à tramitação de Proposta de Emenda à Constituição. Palavras-chave: Redução da maioridade penal. Constitucionalidade. Desigualdades sociais. Direitos sociais.

ABSTRACT: It is going through the legislative procedure at the Congress the Proposal of Constitutional Amendment nº 171/1993, which aims to lower the legal age of criminal responsibility in Brazil. The theme has encouraged relevant juridical debates with regard to the material and formal constitutionality of the amendments approval. Nevertheless, in virtue of the existing social inequalities in Brazil it is possible and necessary to attend this theme through a sociological perspective, showing if the approval of the PCA 171/1993 would bring more benefits or injuries to society. This is a bibliographic and practical research, analyzing the book “A Ralé Brasileira: Quem é e Como Vive and also regarding the procedural aspects of the Proposal of Constitutional Amendment. Keywords: Criminal responsibility. Legal age. Constitutionality. Social inequalities. Social rights.

INTRODUÇÃO

No mês de julho de 2015 a Câmara dos Deputados votou, em primeiro turno, o texto substitutivo e a emenda aglutinativa nº 16 da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 171/1993, que visa reduzir a maioridade penal no Brasil. O presente trabalho busca, justamente, discutir aspectos constitucionais e sociológicos desse tema, através da análise da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR), da tramitação da PEC 171/1993, da bibliografia pertinente e, em especial, do livro "A Ralé Brasileira: Quem é e Como Vive", organizado por Jessé José Freire de Souza. Consiste, assim, numa pesquisa de

cunho bibliográfico, mas que também tem um viés prático, notadamente quando se cuida da tramitação da PEC 171/1993. Importante destacar que a constitucionalidade material da PEC nº 171/1993 não será abordada no presente estudo, que cuidará, na primeira seção, de evidenciar a tramitação da PEC nº 171/1993 na Câmara dos Deputados e eventual (in)constitucionalidade formal no curso do processo legislativo. Na segunda seção, busca-se, através de uma aproximação entre constituição e sociologia, tratar da redução maioridade penal mediante as ideias do professor Jessé Souza. Após, conclui-se o trabalho demonstrando a visão dos autores sobre eventuais implicações da aprovação da maioridade penal.

1 REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E SUA VOTAÇÃO NA CÂMARA DOS DEPUTADOS: CONSTITUCIONALIDADE FORMAL

A Câmara dos Deputados está apreciando a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 171/1993, que trata sobre a redução da maioridade penal. Em decorrência da dificuldade de debater sobre a constitucionalidade material em poucas páginas, aqui serão feitas considerações apenas acerca das formalidades adotadas na votação da matéria na Câmara. Na madrugada do dia 01/07/2015 a Câmara votou e rejeitou1 (303 Deputados votaram a favor, sendo que o mínimo necessário para a aprovação eram 308 votos) o substitutivo adotado pela Comissão Especial à PEC nº 171 de 1993, cuja redação do artigo que interessa (art. 1º) era a seguinte: Art. 1º. O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de dezesseis anos nos casos de: I – crimes previstos no art. 5º, inciso XLIII; II – homicídio doloso; III – lesão corporal grave; IV – lesão corporal seguida de morte; V – roubo com causa de aumento de pena. Parágrafo único. Os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos cumprirão a pena em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e dos menores inimputáveis. (BRASIL. Câmara dos Deputados. Substitutivo adotado pela Comissão à PEC 171A, de 1993)

1

A votação não alcançou o mínimo de 308 votos para a sua aprovação, sendo que 303 Deputados foram a favor da sua aprovação, 184 contra e 3 se abstiveram.

Não obstante a rejeição do substitutivo adotado pela Comissão Especial, a Câmara votou sobre a maioridade penal novamente no dia seguinte, 02/07/2015, agora disciplinado pela emenda aglutinativa nº 16, cuja redação do artigo que interessa (art. 1º) é a seguinte: Art. 1º Dê a seguinte redação ao artigo 228 da Constituição Federal: Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de 16 anos, observando-se o cumprimento da pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos e dos menores inimputáveis, em casos de crimes hediondos, homicídios dolosos e lesão corporal seguida de morte. (BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 171, de 1993. Emenda Aglutinativa nº 16)

A referida emenda aglutinativa nº 16 foi aprovada, em primeiro turno, na votação do dia 02/07/2015, com 323 votos a favor da sua aprovação, 115 não e uma abstenção. A controvérsia encontra-se em uma suposta inconstitucionalidade formal, tendo em vista que a Constituição assim estabelece em seu art. 60: "§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa". A primeira, e mais óbvia, discussão seria, portanto, se a nova votação, ocorrida em 02/07/2015, violaria ou não § 5º, art. 60, CR. Mas há quem vá "além" e tente debater a constitucionalidade procedimental utilizando não só a Constituição, mas também, e principalmente, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD).

1. 1 Carlos Bastide Horbach x Alexandre Araújo Costa e Henrique Araújo Costa: a regularidade formal da votação da PEC nº 171/93 à luz do Regimento Interno da Câmara dos Deputados

Após a citada aprovação em primeiro turno da emenda aglutinativa nº 16 vários juristas se manifestaram acerca da (ir)regularidade formal da votação, sendo que, em especial, duas manifestações chamaram atenção por buscarem analisar a matéria através do RICD. Apesar de chegarem a conclusões diferentes, Horbach (2015), de um lado, e Costa e Costa (2015), de outro, partiram do mesmo pressuposto: não haveria inconstitucionalidade diretamente relacionada ao art. 60, § 5º, CR, que trata de "proposta de emenda rejeitada", pois a votação não foi da "proposta de emenda", mas, primeiro, do substitutivo e, depois, de uma emenda aglutinativa, razão pela qual não feriu o mencionado dispositivo constitucional. Segundo Horbach, como a Seção VIII do Título IV da Constituição Federal, intitulado exatamente 'Do Processo Legislativo', pouco esclarece sobre a real e concreta tramitação das

proposições legislativas, o constitucionalista deve buscar conhecer a dinâmica que exsurge do regimento interno das casas legislativas. […] É nesse contexto, de reconhecimento das limitações das normas constitucionais em matéria de processo legislativo e da importância do direito parlamentar, que deve ser interpretado o parágrafo 5º do artigo 60 da Constituição Federal. (2015, p. 1)

Eis a síntese do pensamento de Horbach: como a Constituição da República não enfrenta pormenorizadamente o tema, a solução deve ser dada a partir do RICD, restando "evidente que não se teve violação ao parágrafo 5º do artigo 60 da Constituição Federal, já que somente é possível considerar rejeitada a matéria de uma proposta de emenda à Constituição quando a proposição original - e principal - é rejeitada" (2015, p. 1). Como dito, Costa e Costa concordam com a interpretação de Horbach quanto à inexistência de afronta ao art. 60, § 5º, CR, pois a votação foi de emenda aglutinativa e não da redação original da PEC. Entretanto, Costa e Costa se valem da própria construção das emendas (aglutinativas e supressivas), à luz do RICD, para afirmar: Portanto, a emenda aglutinativa somente pode ser construída como forma de gerar a fusão de textos de outras emendas, ou de emendas relativas a uma proposição principal. No caso da EMA 16, fica claro que ela não funde textos das emendas à proposição principal da PEC 171/1993, mas que se trata de uma emenda supressiva, construída a partir do substitutivo que havia sido rejeitado, com a redução de partes do texto analisado no dia anterior. Portanto, ela poderia ser razoável como uma emenda supressiva ao substitutivo, mas ela de modo algum pode ser entendida como uma emenda aglutinativa referente ao texto principal da PEC 171/1993. (2015, p. 1)

Desse modo, embora aceitem a possibilidade regimental da votação de uma emenda aglutinativa posterior à votação de um substitutivo, Costa e Costa vão além, afirmando que, em verdade, o que foi aprovado na Câmara dos Deputados não ostentava os requisitos regimentais para se constituir em emenda aglutinativa, mas emenda supressiva. "Esse é um procedimento que colide com o regimento e viabiliza que todos os projetos cujos substitutivos forem rejeitados por margem pequena sejam posteriormente recortados" (COSTA, A; COSTA, H, 2015, p. 1), o que os autores o alcunharam de neoprocessualismo legislativo de turnos múltiplos para a rejeição (COSTA, A; COSTA, H, 2015, p. 1). Nesse caso, concluem Costa e Costa, "a votação de ontem, comemorada pelas bancadas mais conservadoras do Congresso Nacional, pode ser claramente considerada como uma manobra regimental ilícita, que compromete o sistema constitucional brasileiro" (2015, p. 1).

1. 2 A votação da PEC nº 171/93 à luz da Constituição da República

A par das abalizadas ponderações de Horbach e Costa e Costa, esse trabalho não irá tão longe, ficando "apenas" no próprio texto constitucional. Causa espécie, aliás, a análise da Constituição da República sob o prisma de uma norma hierarquicamente inferior, ainda mais quando a própria CR versa sobre o assunto. Streck, apresentando um livro de Cattoni de Oliveira, denuncia "uma blindagem exegético-positivista contra a aplicação da Constituição. Mais do que isso, muitas vezes a Constituição é interpretada de acordo com os códigos ou de acordo com súmulas" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 14); ora, se a interpretação da Constituição a partir de códigos e súmulas é criticada pelo jurista, certamente o revoltaria ainda mais a interpretação do texto constitucional a partir de regimentos internos. A atividade interpretativa do art. 60, § 5º, CR, em relação a votação aqui citada, deve focar, ao menos, dois vieses distintos, quais sejam: 1 - saber se as "matérias" do substitutivo e da emenda aglutinativa eram mesmo distintas; e 2 - saber se o vocábulo constitucional "proposta de emenda rejeitada" se refere tão só e unicamente ao texto original de uma PEC, ou a, no caso concreto, substitutivos e emendas aglutinativas - dialogando com os textos de Horbach (2015) e Costa e Costa (2015). O primeiro viés parece não deixar muitas dúvidas, uma vez que, como a emenda aglutinativa é mais restrita que o substitutivo, inegavelmente ambos tratam da mesma matéria. A emenda aglutinativa é apenas a redução do substitutivo. Ora, se um assunto acessório é mais restrito que um assunto principal, é também parte da matéria deste. A matéria de que tratava o substitutivo é a redução da maioridade penal e os crimes que estariam relacionados a ela. Nesse sentido, tanto o substitutivo quanto a emenda aglutinativa tratam da mesma matéria, atraindo a incidência do art. 60, § 5º, CR. Já em relação ao segundo foco de análise do § 5º, art. 60, CR, cumpre esclarecer que o Supremo Tribunal Federal (STF), no Mandado de Segurança nº 22.503, decidiu que "tendo a Câmara dos Deputados apenas rejeitado o substitutivo, e não o projeto que veio por mensagem do Poder Executivo, não se cuida de aplicar a norma do art. 60, § 5º, da Constituição" (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, a Constituição e o Supremo). Contudo, segundo Bustamante e Bustamante, agindo assim o Supremo Tribunal Federal está atuando com "uma forma de julgar que combina de maneira perigosa o passivismo em relação ao controle dos procedimentos e o ativismo em relação ao controle do mérito ou do resultado do processo legislativo democrático" (2015, p. 10). Com base nessa decisão do STF, o atual presidente da Câmara dos Deputados, que define a agenda legislativa, vem colocando em votação os substitutivos e as emendas

aglutinativas das matérias que bem entende, antes mesmo da votação do texto principal, aumentando a possibilidade de aprovação do que lhe convém (como foi o caso do financiamento privado de campanhas eleitorais). Entretanto, "a Constituição não é do Supremo Tribunal Federal, não é do presidente da República, não é do Congresso Nacional" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 87). "A Constituição é nossa, como projeto aberto e permanente de construção de uma sociedade de cidadãos livres e iguais; se não, não é Constituição" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 87), e a resposta sobre a (in)constitucionalidade formal da votação está no seu próprio texto. "Devemos assumir a responsabilidade, o destino que é nosso, e pararmos de transferir essa responsabilidade para um pretenso sucessor do imperador, esse é um erro que precisamos corrigir" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 88). É importante que se reconheça o equívoco cometido pelo STF na interpretação do leading case (Mandado de Segurança nº 22.503) que agora está fundamentando as ações casuísticas e calculadas do presidente da Câmara. A Constituição da República deve se impor como barreira a esse tipo de atuação política no decorrer do processo legislativo. Para Grimm, "Constituições podem bloquear a política. Isso está fora de dúvidas. Elas até mesmo falhariam em seu objetivo, caso não o fizessem" (GRIMM, 2006, p. 125). No mesmo sentido, Cattoni trata da relevância da observância das regras procedimentais no processo de reforma do texto constitucional: As normas constitucionais, portanto, que regem o processo legislativo de reforma constitucional não estão à disposição de maiorias políticas que pretendem subvertêlas; elas são, ao mesmo tempo, limites às deliberações majoritárias, verdadeiras garantias constitucionais aos direitos fundamentais das minorias, bem como condição sine qua non para a formação legítima, no processo democrático, de maiorias e de minorias políticas sempre mutáveis. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 72).

Vê-se que o disposto no § 5º, art. 60, CR, visa garantir e respeitar o espaço das minorias no Estado democrático. Não à toa que se sustenta que o constitucionalismo é "um sistema de prevenção dos excessos da maioria, o que importa dizer, por outras palavras, que se trata de um sistema de controle do poder" (PEREIRA, 2010, p. 67). A democracia não pode ser confundida com a vontade, pura e simples, da maioria. É bem verdade que, em regra, na democracia a vontade da maioria irá prevalecer; no entanto, não se deve esquecer de uma participação legítima das minorias no processo. "Decisões, ainda que majoritárias, violadoras de direitos constitucionais das minorias políticas e que, assim, subvertem as próprias bases

constitucionais para deliberação política, são, na verdade, autoritárias", e, portanto, expressão de "pura violência" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 72). Portanto, como garantia da participação legítima das minorias no debate democrático, ou direito de oposição, a ser exercido de maneira efetiva e concreta, não é possível entender o vocábulo constitucional "proposta de emenda rejeitada" de maneira restritiva, pois serviria de meio para calar a voz da minoria (como já está acontecendo) sempre que a maioria assim o quisesse. Cattoni de Oliveira já alertou quanto aos perigos das tentativas de fraude à Constituição, ressaltando que "um povo democrático e plural não está imune aos compromissos constitucionais que assume perante si mesmo, sob pena de auto dissolução" (2006, p. 74). A participação e, principalmente, o respeito à vontade e às decisões tomadas junto com as minorias certamente é um desses compromissos constitucionais, não podendo estar sujeito às nuances do RICD. Em assim sendo, independentemente da constitucionalidade material da alteração do art. 228, da Constituição da República, o procedimento adotado para a sua reforma foi incompatível com o art. 60, § 5º, CR, padecendo de inconstitucionalidade formal.

2 A VOZ DA MAIORIA NA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: DIÁLOGO COM JESSÉ SOUZA

Uma vez realizadas ponderações jurídicas técnicas do processo legislativo na PEC nº 171/1993, é necessário avançar para observações sociológicas e suas implicações constitucionais. Nesse sentido, de acordo com o pensamento de Jessé Souza, a política não é feita apenas "pelos burocratas da política, pelos jornalistas da política ou, menos ainda, pelos políticos profissionais da política" (SOUZA, 2009a, p. 51), mas sim por toda a sociedade (SOUZA, 2009c, p. 1) influenciada por autoridades científicas que imprimiram um "conjunto de ideias (e de valores e interesses ligados a essas ideais) e dos consensos sociais" (SOUZA, 2009a, p. 51) sobre seus (supostos) problemas políticos. Souza atribui a pensadores como Roberto DaMatta e Alberto Almeida a responsabilidade pela tradição brasileira em ver tudo acontecendo como se "todos os indivíduos

dessas

sociedades

'integradas

emocionalmente'

fossem

essencialmente

semelhantes, sem qualquer tipo de divisão de classes" (SOUZA, 2009a, p. 59), concluindo que "todo o processo de dominação social e de legitimação da desigualdade, ou seja, o núcleo

mesmo de qualquer teoria crítica da sociedade não pode ser discutido posto que não é sequer percebido como uma dúvida ou como uma pergunta fundamental" (SOUZA, 2009a, p. 59). Essa seção do trabalho tratará, ancorado nas ideias de Souza, da redução da maioridade penal como mais um meio de legitimação da desigualdade social no Brasil. Vários são os argumentos que os defensores da redução maioridade penal utilizam para conseguir sua aprovação junto ao Congresso Nacional, mas um deles merece destaque: quase 90%2 da população brasileira é favorável à redução da maioridade penal. Esse argumento, aparentemente pautado no princípio democrático, é estremecido por lições de Dworkin. Segundo o professor norte-americano: "democracia quer dizer regra da maioria legítima, o que significa que o mero fator majoritário não constitui democracia a menos que condições posteriores sejam satisfeitas" (DWORKIN, 1995, p. 2). A maioria, simplesmente por ser maioria, não consiste em democracia, devendo ser legitimada. Desta feita, não obstante válido, o argumento pautado na regra da maioria será confrontado por ponderações socais a partir do clássico "A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive". Souza evidencia que na cultura brasileira está enraizada uma visão economicista, que enxerga os problemas sociais e políticos à luz da acumulação econômica (2009b, p. 16). Essa visão economicista teria ganhado força a partir do dualismo mercado (Deus) x Estado (Demônio) (SOUZA, 2009b, p. 17), e legitimou o privilégio àqueles homens agentes do mercado (os burgueses), pois esses estariam afastados de toda e qualquer corrupção existente no Estado (SOUZA, 2009b, p. 16). Em outro texto, Jessé Souza afirma que esse dualismo não passa de uma forma de deslocar do centro do debate o real problema enfrentando no Brasil: A cortina de fumaça do falso debate acerca da demonização do Estado serve para deslocar a única e verdadeira questão do Brasil moderno: uma desigualdade abissal que separa gente com todos os privilégios, de um lado, de subgente sem nenhuma chance real de uma vida digna desse nome, de outro lado. (SOUZA, 2009c, p. 1)

Essa visão do homem econômico, eminentemente utilitarista, é elitista e tem espalhado na sociedade uma falsa ideia de igualdade entre os marginalizados e a classe média, pois, segundo essa visão, todos os indivíduos teriam o mesmo nível de consciência e educação ao tomar suas ações sociológicas e políticas (SOUZA, 2009b, p. 17). A perspectiva economicista considera "a pobreza como um atributo individual daqueles que não se empenharam para superá-la" (COUTO, 2010, p. 164). Essa mesma visão tem sido a responsável por reproduzir na sociedade a ilusão de que a escola é um local ideal, sem 2

Segundo Instituto Datafolha seriam 87% dos brasileiros (GLOBO, 2015); segundo Instituto IBOPE seriam 83% (IBOPE, 2014).

competição de classes, supervalorizando-se a meritocracia, uma vez que, supostamente, os indivíduos, a partir dos bancos escolares, passariam a competir em pé de igualdade, por seus méritos, sem sentir os reflexos da diferença de classes pré-existente à escola (SOUZA, 2009b, p. 18-22). Jessé Souza (2009b, p. 18), entretanto, combate firmemente essa visão, ressaltando que há precondições (sociais, emocionais, morais e culturais) à escola que provocam interferência direta na produção do conhecimento e no desenvolvimento psicossociológico dos indivíduos dentro da própria escola, de forma que as desigualdades sociais apenas seriam deslocadas para o seu interior. Dessa maneira, a visão deturpada da escola e da meritocracia na sociedade brasileira, ao invés de representar uma maneira de redução da desigualdade social, provoca o efeito inverso, o da legitimação dessa desigualdade (SOUZA, 2009b, p. 22). Souza (2009b, p. 19), então, aduz que são esses valores imateriais reproduzidos de pais para filhos ao longo dos anos que são os responsáveis pela perpetuação da distância entre os indivíduos de classes distintas e pela manutenção dos privilégios das classes mais favorecidas em relação às que são menos favorecidas. Contudo, também ressalta o sociólogo, a importância desses valores é esquecida pelo discurso da meritocracia, que tenta justificar o fracasso dos marginalizados por uma suposta culpa individual (SOUZA, 2009b, p. 20). Nesse contexto, Souza denuncia uma sociedade seletivamente modernizada, "onde só o que conta é a economia, o direito e as coisas materiais que se pegam com a mão" (2009b, p. 20), dividida em classe alta (detentora de capital econômico e de capital cultural transmitidos, em sua maioria, por herança), classe média (detentora do capital cultural) e a ralé ("não só sem capital cultural nem econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse é o aspecto fundamental, das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação") (2009b, p. 21). Esta última é a classe abandonada pela própria sociedade e pelos políticos, e está na gênese dos problemas sociais vividos no Brasil, pois à ela é atribuída a responsabilidade pela violência, carência na escola e na saúde pública e a fome (SOUZA, 2009b, p. 21). Portanto, incorporou-se na cultura brasileira o esquecimento dessa ralé e das suas precondições de inferioridade, que existem desde o seio das famílias dessa classe até a sociedade como um todo, fazendo com que a desigualdade apenas se reproduza, posto que nem o mercado, nem o Estado, nem as classes (inclusive da própria ralé) enxergam a relevância da desconstrução dessa tradição brasileira de pensamento "de caráter racista e conservador" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010, p. 49), que é motivo da perpetuação dos problemas sociais.

É nesse ponto que as lições de Jessé Souza são inteiramente contextualizadas com a redução da maioridade penal. Segundo os números das pesquisas acima citadas, em média, a cada dez brasileiros oito ou nove são a favor da redução da maioridade penal. Portanto, pelo que se percebe, mesmo os indivíduos dessa ralé são a favor da redução. Ocorre que tal medida acarretaria efeitos negativos contra essa própria ralé, que parece não ver os prejuízos a serem suportados diretamente por ela com a aprovação da redução da maioridade penal (sendo que, em decorrência disso, as outras classes também sofreriam os efeitos - indiretamente). Os membros da ralé "são as pessoas que estão sempre a um passo - ou com os dois pés dentro - da delinquência e do abandono" (SOUZA, 2009b, p. 25) e, ao contrário do legado culturalista existente em terrae brasilis, "não é o jeitinho brasileiro de 500 anos atrás que a cria, mas a impossibilidade afetiva, emocional, moral e existencial de 'in-corporação' dos pressupostos indispensáveis à apropriação tanto de capital cultural quanto de capital econômico" (SOUZA, 2009b, p. 25). A redução da maioridade penal, portanto, não passa, mais uma vez, da reprodução do culturalismo brasileiro, econômico e elitista, sendo medida paliativa de pouco condão resolutivo. Nesse sentido, Cattoni de Oliveira sustenta que apenas a alteração pura e simples do ordenamento jurídico não é suficiente para lhe conferir efetividade: Somente a promulgação de um novo texto constitucional não é capaz de transformar a realidade. Mais uma emenda constitucional não irá resolver o problema da falta de efetividade constitucional. Insistir nesse equívoco, mais uma vez excedendo as expectativas em relação ao Direito, contribui para mais frustração e para o agravamento do sentimento de fracasso constitucional. (2006, p. 71)

A redução da maioridade penal, como se percebe, relega a último plano o debate e o enfretamento da gênese dos problemas sociais no Brasil. Mais ainda, trata-se de medida que servirá para legitimar as desigualdades, conferindo "justiça" àqueles que jamais foram tratados como iguais. Assim como os privilégios atribuídos às classes mais abastadas não são tidos como "desigualdade fortuitas" (SOUZA, 2009d, p. 42), pois estão sendo legitimados, o encarceramento a ser suportado, em sua grande maioria pela juventude pobre e negra, não seria decorrência dos problemas sociais de gênese da sociedade brasileira, mas fruto da legitimação da atividade punitiva do Estado. Como disse Souza, o "'esquecimento' do social no individual é o que permite a celebração do mérito individual, que em última análise justifica e legitima todo tipo de privilégio em condições modernas" (2009d, p. 43); expondo-

se aqui, mais uma vez, o efeito desse "esquecimento" a ser suportado pela ralé: a legitimação da desigualdade. Jessé Souza ainda trata da "violência simbólica", fruto da falsa visão de que: 1) todos os problemas sociais do Brasil estariam "mapeados"; e 2) não seriam facilmente resolvidos, posto que enraizados na sociedade (2009b, p. 15). A redução da maioridade penal, no atual contexto, seria a mais perfeita manifestação dessa violência simbólica, pois não visa enfrentar os problemas sociais a fundo e não combate a sua gênese; ao contrário, naturaliza a desigualdade social e permite a sua reprodução para as futuras gerações da ralé brasileira. Desse modo, a redução da menoridade penal no Brasil representaria mais um capítulo da história elaborada pelos vencedores, a elite social, econômica e política, "que não apenas despreza a visão dos oprimidos, mas fecha os olhos para as lutas políticas por direitos e pelo reconhecimento da cidadania" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010, p. 48). Santos apud Freire (2012, p. 167) afirma que "sempre que as elites governamentais [brasileiras] produziram importantes decisões no plano da política social, quer sob pressão das massas, quer em movimento antecipatório, foram ao mesmo tempo capazes de impor retrocessos na ordem política vigente". A redução da maioridade penal, portanto, seria mais uma forma de tentar impor um pensamento de que todos os brasileiros são iguais, quando, em verdade, não são, uma vez que há completo desequilíbrio na distribuição dos valores imateriais estruturantes da sociedade brasileira. Ademais disso, ainda é bom que se diga que "ao contrário do que pensam os defensores do aumento das penas e da diminuição da maioridade penal, o medo ou mesmo o terror pela sanção não são os mecanismos psicológicos que levam à incorporação da disciplina" (COUTINHO, 2009, 341).

CONCLUSÃO

Ao fim deste trabalho é possível concluir que o procedimento utilizado na votação da emenda aglutinativa nº 16, da PEC nº 171/1993 não observou o exposto no art. 60, § 5º, CR, violando a participação das minorias e a decisão tomada em conjunto com a oposição quando da votação do substitutivo, padecendo de inconstitucionalidade formal. Mas, para além da técnica jurídica, há fortes questões de cunho sociológico, denunciadas por Jessé Souza, que envolvem a luta de classes permanente na sociedade brasileira, onde, corriqueiramente, a ralé tem suportado todos os efeitos negativos dos problemas sociais.

Não é simplesmente mudando a legislação que será resolvido o debate acerca da (falta de) segurança e dos demais problemas sociais (que a própria sociedade não procura sequer enxergar), uma vez que "o Estado não é o criador da sociedade, mas, ao contrário, é criatura desta" (PEREIRA, 2012, p. 28). É por isso que "precisamos romper com concepções, ingênuas e cínicas, segundo as quais bastaria mudar o texto das leis ou mesmo o da Constituição, para serem solucionados de uma vez por todas todos o problemas de descumprimento do Direito" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 75). Nesse sentido, além da inconstitucionalidade formal evidenciada neste estudo, a redução da maioridade penal deve ser vista sob prismas constitucionais-sociológicos que não podem ser deixados de lado (sob pena de haver legitimação de mais desigualdade social no Brasil), concluindo-se que o ideal é que a PEC nº 171/1993 não seja aprovada no Congresso Nacional, ou que o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade no procedimento.

REFERÊNCIAS

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