Referências à cidade de Coimbra na obra de Ramalho Ortigão: \"O Culto da Arte em Portugal\"

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Referências à cidade de Coimbra na obra de Ramalho Ortigão: “O Culto da Arte em Portugal”. José Alexandre Milheiro

O trabalho desenvolvido por Ramalho Ortigão, na salvaguarda do património artístico português, muito particularmente em relação ao património edificado, reveste-se de um genuíno sentimento nacionalista, em linha com o que se passava na europa coeva. A consagração do monumento histórico, na qualidade de elemento identitário, assume uma importância determinante na construção da memória colectiva de cada estado-nação, o próprio Ramalho identifica assertivamente esse sentimento: a história dos monumentos é para cada povo, a história da sua individualidade, porque não há monumento artístico que não traduza, mais ou menos directamente, a acção intelectual e política da sociedade que o concebeu 1. Reclama ainda, com cândido entusiasmo, o propósito de incutir nas almas dos portugueses, a arte como religião da nacionalidade2. A questão central era precisamente o culto prestado ao património monumental, e a promoção de bases sólidas para a sua salvaguarda. O seu pensamento é enformado por uma forte influência de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, autores cuja reflexão e brados em favor da defesa do património, já tinham concretizado obra na historiografia portuguesa. Importa ainda referir as influências trazidas da europa por um conjunto de intelectuais, forçados a exílios prolongados pela turbulência política do primeiro e segundo quartel do século XIX. É introduzida em Portugal uma nova consciência e atitude, fruto de uma discussão mais amadurecida, acerca da conservação dos edifícios como testemunhos históricos, dos desmazelos cometidos pela arbitrariedade, e pela letra morta do pioneiro alvará que D. João V assinou em 1721. A partir de 1834 é crescente a reacção ao abandono e à vulnerabilidade a que a lei da desamortização das casas religiosas, com uma rápida e imprudente aplicação, votou inúmeros edifícios seculares. A obra “O Culto da Arte em Portugal” é acima de tudo uma contundente crítica à incúria a que muitos monumentos eram condenados, quer por abandono ou destruição, quer por intervenções de restauro desastrosas. Ninguém como Ramalho fustigou com mais sagrada indignação e com mais

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ORTIGÃO, Ramalho, “O Culto da Arte em Portugal”, António Maria Pereira, Livreiro-Editor, Lisboa, 1896, p.153; Idem, p.172.

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graça a incúria, a estúpida incompreensão que chegou ao sacrilégio com que algumas das mais veneráveis obras de arte tinham sido destruídas ou restauradas3. A cidade de Coimbra, que meia centúria depois da obra em apreço de Ramalho viria a ser palco de um dos maiores atentados ao património, com a demolição de mais de 200 edifícios4 para a construção da nova cidade universitária, é citada por três vezes. As duas primeiras, dando conta da demolição da torre sineira da Sé Velha e da possível venda do Convento de Celas, e a terceira, com o elogio da empreitada de restauro da Sé Velha iniciada em 1893. Estas referências possibilitam-nos a abordagem a três temáticas distintas, três vectores de análise que consideramos da maior importância. Ramalho Ortigão reporta-se pela primeira vez a Coimbra, para apontar a simplicidade de processo com que se comete um estúpido vandalismo5. Imputa, desde logo, a responsabilidade aos poderes públicos, que por falta de aconselhamento artístico são incompetentes para proteger o património. Mas levanta uma problemática que é tão pertinente hoje, como era no final do século XIX. O peso e influência da modernização na conservação do edificado, e ainda o melhor uso a dar a um edifício para se garantir a sua conservação e/ou restauro. Com efeito, o processo que termina com a função da Sé Velha como catedral de Coimbra, em que está inserida a demolição da torre sineira, resulta exemplarmente paradigmático na relevância do tipo de ocupação de um monumento. Em 1772 data da Reforma Pombalina da Universidade6, o Marquês de Pombal cedeu a Igreja do Colégio de Jesus ao cabido da catedral, em virtude da Sé Velha ser pequena para as solenidades pontificais, caracterizadas por uma grande teatralidade. O bispo-reitor, D. Francisco de Lemos, com a protecção do Marquês, procurou adoptar medidas para uma transição permanente: o edifício da Sé Velha é doado à Misericórdia, e o claustro é cedido à Universidade para a instalação da imprensa privativa. Para além da demolição da torre sineira, que tirava luz à casa da imprensa, também o andar superior do claustro é totalmente demolido. Curiosamente este processo levanta ainda uma questão colateral, o impacto da intervenção num edifício no todo urbano circundante. A Misericórdia assina em 1778 uma escritura de cessão e desistência da Sé Velha, o que faria com que o sacerdote da Igreja paroquial de S. Cristóvão, com um templo próximo em adiantada degradação, obtivesse a transferência da sede de freguesia para a Sé Velha. A igreja de S. Cristóvão, com fábrica

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ALVES, Alice, Tese de Doutoramento em História na especialidade de Arte, Património e Restauro, “Ramalho Ortigão e o culto dos monumentos nacionais no século XIX”, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009, p.109; 4 VILAS BOAS, Rúben Neves, Dissertação de Mestrado e Arquitectura, “A Rua Larga de Coimbra – Das origens à actualidade”, FCTUC, Universidade de Coimbra, 2010, p.49; 5 ORTIGÃO, Ramalho, “O Culto da Arte em Portugal”, António Maria Pereira, Livreiro-Editor, Lisboa, 1896, p.66; 6 PONTES, Maria Leonor Cruz, Dissertação de Mestrado em Museologia e Património Cultural, “A Sé Velha de Coimbra: uma proposta de interpretação museológica”, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009, p. 35;

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anterior à construção da Sé Velha, do início do século XII, depois de arruinada é demolida com aproveitamento dos materiais para a construção do Teatro D. Luiz. Ramalho ortigão volta a referir Coimbra ironizando a notícia da hasta pública de uma parte do convento de Celas, incluindo o claustro, que o autor apelida de delicado monumento7, pela quantia de um conto de réis. Junta a sua voz a um protesto anónimo proveniente da cidade de Coimbra, contra semelhante desacato8. O Mosteiro de Santa Maria de Celas foi possivelmente fundado em 12219, por D. Sancha, filha de D. Sancho I, e o seu claustro é uma obra-prima da escultura medieval portuguesa. É o único claustro historiado actualmente existente em território português10, apresenta uma preciosa narração visual orientada num programa iconográfico que Ramalho Ortigão já descreve de forma pormenorizada e apaixonada. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica foram extintas as casas religiosas de todas as ordens, ficando no caso das ordens femininas, as freiras sujeitas aos respectivos bispados, até à morte da última, o que neste caso viria a ocorrer em 15 de Abril de 1883. O mosteiro acabaria por não ser vendido em leilão, mas acabou por não ser destinado a melhor sorte, foram as suas instalações utilizadas como asilo de cegos e aleijados, sanatório de mulheres, integrado no hospital pediátrico, e hoje jaze esquecido com nítidos sinais de degradação. As reais consequências da célere aplicação da lei de desamortização é ainda um fértil alfobre de estudo, para a história da salvaguarda do património edificado, as hastas públicas não realizaram, de todo, os pressupostos iniciais. Entre 1835 e 1843 foram postos em leilão 17.240 prédios, adquiridos por 1876 compradores11, dos quais, 63 (3,4%) ficaram com lotes correspondentes a metade do valor total das vendas. A última nota a Coimbra, na obra “O Culto da Arte em Portugal”, vai no sentido de apresentar o restauro da Sé Velha empreendido pelo bispo-conde D. Manuel Bastos de Pina, como exemplo do que melhor foi feito pelas entidades oficiais. Nos finais do século XIX, em virtude do abandono gerado pela perda do estatuto catedralício, e pela descaracterização fruto de sucessivas modificações ao longo do tempo, o estado do monumento era desolador. O grande mentor do empreendimento foi António Augusto Gonçalves, que procurou restituir a unidade arquitectónica e as feições primitivas à Sé despromovida. Toda a empreitada foi envolta de grande polémica, em intrigas e conflitos, com grande entusiasmo e picardias tornadas públicas na discussão acesa que 7

ORTIGÃO, Ramalho, “O Culto da Arte em Portugal”, António Maria Pereira, Livreiro-Editor, Lisboa, 1896, p.75; Idem 72; 9 TEIXEIRA, Francisco Manuel, Tese de Doutoramento em História da Arte, “A arquitectura monástica conventual feminina em Portugal, nos séculos XIII e VIV”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Algarve, Faro, 2007, p.59; 10 Idem p.61; 11 RAMOS, Rui “História de Portugal”. Esfera dos livros, Lisboa. 2009, p.512; 8

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ocorreu nos periódicos da cidade. No cerne da discussão estava o conflito entre a visão de António Augusto Gonçalves, que procurava a reposição do estilo original, antagónica do entendimento da Comissão dos Monumentos Nacionais, que defendia a preservação das várias fases de intervenção ao longo do tempo, como marcas da história do edifício. Ramalho Ortigão acabou por ter um papel relevante enquanto vogal nomeado pela comissão12, no dirimir do conflito.

Bibliografia: ALVES, Alice, Tese de Doutoramento em História na especialidade de Arte, Património e Restauro, “Ramalho Ortigão e o culto dos monumentos nacionais no século XIX”, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009; ORTIGÃO, Ramalho, “O Culto da Arte em Portugal”, António Maria Pereira, Livreiro-Editor, Lisboa, 1896; PONTES, Maria Leonor Cruz, Dissertação de Mestrado em Museologia e Património Cultural, “A Sé Velha de Coimbra: uma proposta de interpretação museológica”, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009;

RAMOS, Rui “História de Portugal”. Esfera dos livros, Lisboa. 2009; TEIXEIRA, Francisco Manuel, Tese de Doutoramento em História da Arte, “A arquitectura monástica conventual feminina em Portugal, nos séculos XIII e VIV”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Algarve, Faro, 2007; VILAS BOAS, Rúben Neves, Dissertação de Mestrado em Arquitectura, “A Rua Larga de Coimbra – Das origens à actualidade”, FCTUC, Universidade de Coimbra, 2010.

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ALVES, Alice, Tese de Doutoramento em História na especialidade de Arte, Património e Restauro, “Ramalho Ortigão e o culto dos monumentos nacionais no século XIX”, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009, p.225.

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