Reflexão e Proposta de Composição por meio de Colagens e Citações (tese de doutorado, sem anexos) - M. A. MACHADO

May 26, 2017 | Autor: M. Machado | Categoria: Musical Composition, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Collage, Quotes
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

MARCO ANTÔNIO CRISPIM MACHADO

Reflexão e Proposta de Composição por meio de Colagens e Citações

Reflection and Proposal of Composition by Collages and Quotations

CAMPINAS 2016

MARCO ANTÔNIO CRISPIM MACHADO

Reflexão e Proposta de Composição por meio de Colagens e Citações Reflection and Proposal of Composition by Collages and Quotations

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Música, na área de concentração em Música: Teoria, Criação e Prática.

Orientador: JOSÉ AUGUSTO MANNIS

Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno Marco Antônio Crispim Machado, e orientada pelo Prof. Dr. José Augusto Mannis.

CAMPINAS 2016

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

MARCO ANTÔNIO CRISPIM MACHADO

ORIENTADOR(A): PROF. DR. JOSÉ AUGUSTO MANNIS

MEMBROS:

1. PROF. DR. JOSÉ AUGUSTO MANNIS 2. PROF(A). DR(A). DENISE HORTÊNCIA LOPES GARCIA 3. PROF(A). DR(A). JOSÉ HENRIQUE PADOVANI VELLOSO 4. PROF(A). DR(A). ROGÉRIO LUIZ MORAES COSTA 5. PROF(A). DR(A). YARA BORGES CAZNOK

Programa de pós-graduação em Música na área de concentração Música: Teoria, Criação e Prática no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

DATA: 30.09.2016

RESUMO

Este trabalho trata em duas dimensões dos processos de colagem e de citação no âmbito da composição musical. Sendo a primeira uma dimensão reflexiva, conceitual e filosófica e a segunda a dimensão da práxis na escritura composicional e realização musical. Primeiramente será apresentada uma discussão acerca da análise musical em suas mais diversas linguagens e operacionalidades, quase todas devotas da trinca composta pelo iluminismo kantiano, organicismo goethiano e fenomenologia husserliana. A maquinaria de corte analítica se evidenciará como uma caixa de ferramentas para proceder as extrações, segmentações, estratificações. O trabalho aprofunda a reflexão quando discute os seguintes conceitos: (1) Colagem de Citações enquanto poética sustentada pelo autor; (2) Cubismo Analítico e Sintético trazidos das artes plásticas para um agenciamento com o campo da música; (3) Desterritorialização e Sincronicidade e a produção de entendimento em ambientes caóticos; (4) e ainda, Conversão, Subversão e Perversão, Textualidade Musical, Geografia do Pensamento Musical e Estética da Fosforescência – tudo tendo como alicerce referencial os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Além desses dois filósofos, também serve de apoio nesse texto apontamentos de Friedrich Nietzsche, Georges Bataille, Walter Benjamin e Baruch de Espinoza. A parte final do trabalho apresenta composições desenvolvidas nos últimos anos, além do modo como as potências reflexivas se transpõem nelas. Em anexo se encontram as partituras das composições.

ABSTRACT This work deals, in two dimensions, with the collage processes and quotation within the musical composition. The first dimension is reflective, conceptual and philosophical. The second dimension is practical and related to writing and realization of music. At the beginning it will be presented a discussion of musical analysis in its various languages, almost all tributaries of the trio composed by the Kantian enlightenment, the organicism of Goethe and the phenomenology of Husserl. The analytical cutting machinery will be seen as a toolbox to make the extractions, segmentations and stratifications. The work deepens the discussion as the following concepts are treated: (1) Collage of Quotations as poetic sustained by author; (2) Analytical and Synthetic Cubism, brought the plastic arts, for the agency with the musical field; (3) Deterritorialization and Synchronicity and the understanding production in chaotic environments; (4) and still, Conversion, Subversion and Perversion, Musical Textuality, Geography of Musical Thinking and Phosphorescence Aesthetic – all having foundation on the ideas and texts by Gilles Deleuze and Félix Guattari. Beyond these philosophers, this text finds support in the notes of Friedrich Nietzsche, Georges Bataille, Walter Benjamin and Baruch Spinoza. The final part of the work presents compositions developed in the recent years, and how the reflective potency are presented in these compositions. The scores of the compositions are attached in the end of the work.

Agradecimentos Agradeço ao Prof. Mannis pela companhia nessa trajetória, por afiar minha linha de argumentação, por tornar preciso o fio do meu sabre e por saber apontar com maestria as leituras que deveria fazer; à Prof.a Denise e aos demais professores do departamento de Música do IAR pelas orientações e ensinamentos; aos Professores Celso Mojola e Rodrigo Cicchelli pelas orientações passadas que de modo tortuoso me conduziram até aqui; ao meu irmão Guilherme e aos meus amigos Bruno e Dino pela parceria, inspiração, desafios, caronas e pelos trabalhos no TC; aos instrumentistas, cantores e regentes que possibilitaram a realização das peças apresentadas aqui nesse trabalho; aos meus alunos por serem a maior fonte de aprendizado para mim; à minha mãe Marilda por ser um profundo poço de incentivo puro; ao meu pai Norival pela sabedoria do silêncio e pelos valores éticos; e ao meu grande (maior de todos) amigo Pietro por ter me dado meu maior elogio. Agradeço à FAPESP pelo apoio financeiro por meio da bolsa de doutorado vinculada ao processo n° 2013/02260-0.

Lista de Figuras Figura 1 – Altura, profundidade e superfície – conversão, subversão e perversão

77

Figura 2 – Transdução dos nomes dos compositores do trio vienense em alturas

87

Figura 3 – Grupos de figuração repetidas ao longo do discurso I Have a Dream de M. L. King

114

Figura 4 – Acordes de referência para a produção do plano de buraco negro

118

Figura 5 – Sete compassos iniciais de Vetor, Complementaridade, Acorde Webern…: o material a ser vetorizado

122

Figura 6 – Material 04, extraído da Missa em Si Menor de Johan Sebastian Bach

126

Figura 7 – Trecho 19, recortado do Quarteto Op. 135, IV, de L. van Beethoven

127

Figura 8 – Ostinato extraído do Jazz Take 5 de Paul Desmond

137

Figura 9 – Ostinato extraído do primeiro Estudo Simples p/ violão de Leo Brouwer

137

Figura 10 – Redução harmônica para extração dos acordes do Estudo n° 4 de Villa-Lobos

138

Figura 11 – Escalas produzidas com o conjunto de alturas empregadas nos acordes por compasso

139

Figura 12 – Melodia extraída do Canto do Rouxinol de Stravinsky

140

Figura 13 – Extração harmônica de Regard du Père de Messiaen

143

Figura 14 – Estruturas homofônicas extraídas e reanotadas dos Prelúdios I, II e III do segundo livro de C. Debussy

144

Figura 15 – Cifragem dos compassos n° 6 das 32 Sonatas p/ piano de Beethoven e anotações de extração

148

Lista de Tabelas Tabela 1 – Materiais musicais possíveis por Ian Bent

30

Tabela 2 – Substância musical por Ian Bent

30

Tabela 3 – Metodologias de análise por Ian Bent

30

Tabela 4 – Meios de apresentação dos resultados por Ian Bent

30

Tabela 5 – Lista de recortes, minutagem e posição da extração

126

Tabela 6 – Lista de trechos com suas respectivas entradas temporais proporcionais e inseridas na linha de tempo de Amostras

130

Tabela 7 – Os números ordinais representam a sequência das entradas na linha temporal de Amostras, os números cardinais indicam o trecho determinado

131

Tabela 8 – Origem das extrações dos doze ostinatos utilizados na composição do primeiro movimento de ReComposição

136

Tabela 9 – Localidades dos recortes nas peças de origem e localidades de colagens em Fosforescência

150

SUMÁRIO

Introdução 1. Análise Musical, o Ouvir Minucioso 1.1 – Tradição Analítica 1.2 – Problemática Analítica em Música 1.3 – Metodologia Analítica em Música 1.4 – Crítica Analítica 2. Reflexão Conceitual 2.1 – De Colagem de Citações ao Ente do Intelecto 2.2 – Cubismo Analítico e Sintético 2.3 – Sincronicidade – Processos mânticos – Desterritorialização – Caos que cria 2.4 – Conversão, Subversão e Perversão na Segunda Escola de Viena 2.5 – Textualidade Musical 2.6 – Geografia do Pensamento Musical e Estética da Fosforescência 3. Processo Criativo 3.1 – Poética 3.2 – Guitar (1, 2 e 3) 3.2.1 – Guitar 1 e 2 3.2.2 – Guitar 3 3.3 – Vetor, Complementaridade, Acorde Webern… 3.4 – Amostras para Orquestra de Sopros 3.4.1 – As cinquenta e oito citações em Amostras 3.4.2 – Estrutura de Amostras 3.4.3 – Citações Orquestradas e Alocadas na Peça 3.5 – ReComposição para Orquestra de Câmara 3.5.1 – I Os 12 Obstinados 3.5.2 – II TINTAS 3.5.3 – III Auto-Retrato do Pai-Rei e a Catacumba 3.6 – Fosforescência para Orquestra de Cordas 4. Considerações Finais Referências Bibliográficas Anexo I – Guitar 1, 2 e 3 [partitura] Anexo II – Vetor, Complementaridade, Acorde Webern… [partitura] Anexo III – Amostras para Orquestra de Sopros [partitura] Anexo IV – ReComposição para Orquestra de Câmara [partitura] Anexo V – Fosforescência para Orquestra de Cordas [partitura]

12 18 20 26 32 37 42 43 53 60 76 88 95 105 105 107 107 110 120 123 123 128 131 135 136 139 142 146 151 155 164 290 301 340 375

L’homme est malade parce qu’il est mal construit. Il faut se décider à le mettre à nu pour lui gratter cet animalcule qui le démange mortellement, dieu, et avec dieu ses organes. Car liez-moi si vous voulez, mais il n’y a rien de plus inutile qu’un organe. Lorsque vous lui aurez fait un corps sans organes, alors vous l’aurez délivré de tous ses automatismes et rendu à sa véritable liberté. Alors vous lui réapprendrez à danser à l’envers comme dans le délire des bals musette et cet envers sera son véritable endroit. Antonin Artaud – Pour en finir avec le jugement de dieu

Introdução

Reflexão e Proposta de Composição por meio de Colagens e Citações é um trabalho fruto do amadurecimento de pesquisas, ensaios e perscrutações realizadas nos últimos sete anos. Desde o final do ano de 2004, entretanto, já faziam parte da minha prática como compositor, determinados processos de apropriação e reutilização. Mas é durante a realização do mestrado (2010-2012) que essas práticas emergiram com clareza para mim e chamaram minha atenção definitivamente. Minha dissertação de mestrado intitulada Análise Musical como Contribuinte do Processo Criativo (2012) tratou de como um compositor pode se valer da análise musical em seu trabalho criativo. O foco se deu na ‘tesoura’, ou na máquina de segmentação analítica e se buscou explicitar três mecanismos usuais: 1) extração formal; 2) extração de material; e 3) extração literal. Foi justamente tratando da extração literal que comecei a produzir colagens de citações e a observar detidamente certa prática criativa. O trabalho que se apresenta aqui, por meio deste relatório de pesquisa, está dividido em três partes compreendendo ainda mais cinco anexos. A primeira parte da redação se detém novamente sobre a análise musical entendendo-a como um vasto conjunto de ferramentas; na segunda parte se apresenta uma reflexão conceitual dividida em seis ensaios em estética e filosofia da música; a parte derradeira da redação é integrada de cinco composições inéditas e a descrição de seus mecanismos de extração e elaboração – essas mesmas cinco composições têm suas partituras anexadas ao fim do trabalho. Análise Musical, o ouvir Minucioso é o primeiro capítulo da tese. Posicionamos essa reflexão em separado das demais não só pela dimensão e particularidades que ela apresentou, mas também no sentido de evidenciar o ato da percepção, ou seja, o acontecimento que atravessa sensorialmente cada uma de nossas singularidades. Dizendo de outro modo, somos constituídos desses atravessamentos e o artista acaba realizando em suas obras ecos dos acontecimentos passados: ou seja, suas obras acabam explicitando a superposição de presentes heterogêneos que compõem seu ser. Na primeira subdivisão do capítulo de número um tratamos da tradição analítica: uma breve revisão histórica sobre a acepção do termo análise em um sentido geral. De certa maneira temos a noção de análise fortemente associada ao que podemos chamar de trinca Kant-Goethe-Husserl que por meio da analítica transcendental, do

organicismo e da fenomenologia influenciaram sobremaneira o pensamento da modernidade. Já no Sec. XX temos as contribuições de estruturalistas como Eco e LéviStrauss, dos lógico-linguistas como Russel, Moore e Wittgenstein e, por fim, dos chamados pós-estruturalistas como Foucault, Deleuze e Guattari. No segundo item do capítulo propomos um diálogo com os apontamentos de Ian Bent no livro Analysis (1990) onde há uma problematização em se pensar modelos analíticos quando tratamos especificamente do assunto musical. Tais problemáticas passam pela determinação da matéria musical, do entendimento musical na mente do compositor, do intérprete ou do ouvinte, ou mesmo, da determinação da substância musical em si. E, no item terceiro desse capítulo, continuo – a partir do texto de Bent – a apresentar as mais diversas e influentes técnicas de análise musical explorada nos últimos séculos. A última parte do primeiro capítulo é uma crítica analítica onde estabelecemos uma discussão com o artigo How We Got Into Analysis, and How We Get Out de Joseph Kerman. Seguindo na reflexão conceitual o segundo capítulo apresenta seis ensaios em estética: 1) De Colagem de Citações ao Ente do Intelecto; 2) Cubismo Analítico e Sintético; 3) Sincronicidade – Processos mânticos – Desterritorialização – Caos que Cria; 4) Conversão, Subversão e Perversão na Segunda Escola de Viena; 5) Textualidade Musical; e 6) Geografia do Pensamento Musical e Estética da Fosforescência. A seguir apresento brevemente cada um deles. - De Colagem de Citações ao Ente do Intelecto: nesse item apresentamos o conceito central da pesquisa que alia em si mesmo uma técnica oriunda das artes plásticas e um recurso da literatura e das artes do texto – colagem de citações. Defendemos aqui que de certo modo o ouvinte está sempre entre uma escuta sintática-textual e uma escuta imagética-sensorial. Em adição a isso se apresenta também de que modo a integração do ente do intelecto pode ser pensada a partir de uma colagem de citações. - Cubismo Analítico e Sintético: partindo de estudiosos das artes plásticas como Clement Greenberg, Paul Klee, Jean-Yves Bosseur e Ruth Markus, apresentamos esses dois conceitos consagrados com foco nos trabalhos de Pablo Picasso e Georges Braque na segunda década do Sec. XX. Depois estabelecemos uma ponte com certas práticas musicais de justaposição e sobreposição destacando obras de Igor Stravinsky e Charles Ives.

- Sincronicidade – Processos mânticos – Desterritorialização – Caos que Cria: aqui se pretende agenciar dois conceitos de origem e escolas muito distintas: a desterritorialização de Gilles Deleuze e Félix Guattari e a Sincronicidade de Carl Gustav Jung. Para tal empresa faço uso da noção de experiência negativa de Georges Bataille. - Conversão, Subversão e Perversão na Segunda Escola de Viena: Deleuze em Lógica do Sentido (2009) desenvolve uma reflexão sobre conversão, subversão e perversão em associação à estrutura do pensamento, às imagens de filósofos e à cultura de maneira geral. Nesse item aplicaremos esses conceitos diretamente ao fazer composicional e, mais diretamente, ao trio vienense da primeira metade do século XX. - Textualidade Musical: esse item serve para amarrar o agenciamento texto-música. Estabelece uma reflexão sobre os sentidos e de como a audição é frequentemente indiciária ou fronteiriça. Apresenta a ideia de Deleuze e Guattari de que a música é a mais nômade das artes e de como foi se apropriando de potências não sonoras ao longo de sua prática. - Geografia do Pensamento Musical e Estética da Fosforescência: no último item do capítulo dois aplicaremos a noção deleuziana de geografia do pensamento ao território da música e estabeleceremos o que vem a ser a estética da fosforescência a partir de apontamentos de Bergson, Benjamin e, mais uma vez, Deleuze. O terceiro capítulo da tese é intitulado Processo Criativo e nele apresentaremos cinco obras inéditas com as descrições do processo composicional e das motivações estéticas em aliança com as reflexões anteriormente tratadas. O primeiro item, entretanto, trata da poética criativa por trás das diversas obras: uma poética que envolve de certo modo toda prática composicional do autor e que tem como dimensões marcantes a extração, o caos e a mancia. As cinco obras apresentadas nesse trabalho evidenciam essa aplicação poética. Os itens que se seguem descrevem as peças conforme a ordem a baixo elencada.

- Guitar (1, 2 e 3): conjunto de peças realizadas em homenagem às obras homônimas de Picasso e Braque consideradas peças de transição entre o cubismo analítico e sintético. A Guitar 1 (4’) foi escrita para o conjunto Abstrai do Rio de Janeiro para a formação – violão, flauta, saxofone tenor e mezzo soprano. Guitar 2 (3’) foi escrita para o coletivo Tempo-Câmara de São José dos Campos para banjo de seis cordas, violão folk, baixolão e bandolim. Guitar 3 (21’) é um conjunto de cinco pequenas peças escritas também para o coletivo Tempo-Câmara para seis guitarras, contrabaixo elétrico, flauta, bateria e piano. - Vetor, Complementaridade, Acorde Webern..: composição em apenas um movimento (9’) para piano e saxofone soprano escrito para o Duo Mojola e Albino da cidade de São Paulo. A peça recorta e cola em si operando traduções e transduções fazendo-se valer de materiais musicais como o acorde Webern, e de recursos da matemática (complementaridade) e do design gráfico (vetor). - Amostras: peça escrita para a Orquestra de Sopros da Escola de Música da UFRJ (13’) concatena em seu bojo cinquenta e oito citações musicais. Esses recortes abrangem um vasto leque do repertório e foram costurados de modo a simular a heteróclita e caótica mente do compositor. Há também a produção de uma superestrutura que orienta o encaixe das citações. - ReComposição: esta obra foi desenvolvida para a Orquestra Sinfônica da UFRJ porém em formação de câmara com naipe de cordas reduzido e madeiras em solo. Ela é constituída por três movimentos – I Os 12 obstinados (6’); II TINTAS (6’); e III AutoRetrato do Pai-Rei e a Catacumba (9’). Cada um dos movimentos emprega modos diferentes de produzir as colagens, cada um desses mecanismos é explicitado nesse item. - Fosforescência (1770 – 2006): peça escrita para orquestra de cordas tem duração estimada de dez minutos. Explora em seu ínterim colagens de citações extraídas de obras pianísticas de Beethoven, Chopin, Liszt, Debussy, Messiaen e Ligeti. A costura segue de certo modo a linha temporal e teve seus encaixes determinados por mecanismos de identificação de similaridades. Dentre as peças apresentadas nessa tese essa é a única que ainda não recebeu exibição pública.

Após o término do terceiro capítulo temos as considerações finais, as referências bibliográficas e os anexos em número de cinco que trazem as partituras na mesma ordem em que as peças foram apresentadas e descritas no corpo do texto: 1) Guitar 1, 2 e 3; 2) Vetor, Complementaridade, Acorde Webern…; 3) Amostras para Orquestra de Sopros; 4) ReComposição para Orquestra de Câmara; e 5) Fosforescência (1770 – 2006) para Orquestra de Cordas. Feito os prelúdios dos capítulos e dos anexos da tese pretendemos ainda dar atenção ao desenvolvimento do pensamento filosófico que permeia de modo transversal todo o texto. Fazemos isso em caráter introdutório e com o intuito de explicitar as escolhas por certas linhas do pensamento. Há aqui uma pungente contribuição da filosofia de Gilles Deleuze e, em continuação, a de Félix Guattari. E nessa escolha se faz presente claramente a contribuição do orientador, o Prof. Dr. José Augusto Mannis, que em minha primeira orientação (início do ano de 2013) disse que o modo como eu procedia nos recortes musicais se assemelhava ao conceito deleuziano da desterritorialização. Sua recomendação foi que de início me debruçasse sobre a obra de Deleuze, pois isso poderia ser de grande valia para o trabalho. As leituras se converteram em intenso fluxo de desejo e os pensamentos de Deleuze e Guattari acabaram se tornando a cola universal deste trabalho. E, para além da desterritorialização, temos o texto todo permeado por ideias como agenciamento maquínico, fluxo do desejo, produção do sentido, plano de consistência e composição, fosforescência, perversão, CsO1 etc. Em um segundo nível de relevância aparecem conceitos e ideias de Georges Bataille, Friedrich Nietzsche, Walter Benjamin e Baruch de Espinosa. Essas escolhas convergem em uma filosofia da imanência tal como concebida por Espinosa, uma filosofia da vida que exerce preponderante influência em todo desenrolar das arguições. De

Bataille

fiz

uso

das

noções

de

experiência

negativa

para

agenciar

desterritorialização e sincronicidade, fiz uso também da ideia de dispêndio como sacrifício no plano do pensamento; Nietzsche foi importante para negar o historicismo monumental ou antiquário em prol de uma história criativo-dionisíaca. Benjamin e sua imagem do anjo diante da catástrofe histórica auxiliaram na montagem do conceito de colagem de citações e, depois, com seu conceito de reminiscência em um tempo cheio 1

CsO – Corpo sem órgãos.

de agoras contribuiu na estética da fosforescência. E Espinosa, além de permear a tudo com seu Deus imanente, contribuiu diretamente com sua noção de ente da razão. Não podemos deixar de citar aqui outros três pensadores que aparecem de maneiras mais circunstanciais. Carl Gustav Jung que em seu livro Sincronicidade apresenta uma ideia de um mundo psicóide não energético; Henri Bergson que em seu tratado Matéria e Memória nos apresenta a ideia de uma memória fosforescente; e Immanuel Kant que tem diversos conceitos apresentados na Crítica da Razão Pura agenciados nessa tese.

1 – Análise Musical, o Ouvir Minucioso A análise musical dentro da tradição da música ocidental recebeu destacada atenção ao longo dos últimos séculos. Desde os primeiros modelos organicistas, inspirados pelas premissas estabelecidas por Goethe em sua teoria do Fenômeno Primordial (Ur-phänomen) (MELO, 1998, p. 39), assim como, por meio da fenomenologia de Husserl, músicos práticos ou tratadistas elaboram mecanismos, procedimentos e/ou teorias acerca da análise musical. Alguns destes trabalhos tiveram como objetivo lançar luz à compreensão musical – como exemplo podemos citar Do Belo Musical (HANSLICK, 1854) ou Estilo e Ideia (SCHOENBERG, 1946) – outros fizeram parte de complexos arcabouços teóricos que por vezes buscaram desenvolver um método para produzir juízo de valor – por exemplo Structural Hearing (SALZER, 1962) ou Compositional Matrix (FORTE, 1961) – ou mesmo, justificar certa tendência estética ou prática composicional – por exemplo Technique de monlangage musical (MESSIAEN, 1944) ou Mort ou tranfiguration de l’harmonie (COSTÈRE, 1962). E, em qualquer dos casos citados, a maior parte dos modelos desenvolvidos compõem a chamada tradição analítica de certo modo tributária do esclarecimento kantiano (Aufklärung). A partir da segunda metade do século XX, com o advento da pós-modernidade e contando com as contribuições de pensadores como Bergson, Foucault, Deleuze e Guattari novas maneiras de se fazer uso da análise passam a ser pertinentes. A de uma ferramenta para o criativo. O compositor italiano Luciano Berio aborda este assunto em sua obra Remembering the Future: Análise não é apenas um prazer especulativo, ou um instrumento teórico da conceptualização musical; quando ela contribui na topologia do fazer musical e na transformação das formas sonoras (e não apenas pelos meios das novas tecnologias), ela pode produzir uma profunda e concreta contribuição no processo criativo (BERIO, 2006, p.138).2

Seguindo nessa linha o compositor enfatiza que muitas vezes um elemento extraído de uma peça pode receber “vida dupla”, “tripla” ou “múltipla” nas mãos de 2

Original em inglês: Analysis is not Just a form of a speculative pleasure or a theoretical instrument for the conceptualization of music; when it contributes to a topology of the coming into being and the transformations of sound forms (and not only by means of the new digital Technologies), it can make a profound and concrete contribution to the creative process.(Tradução Livre)

outro compositor (Ibid., p. 138). De fato, compor uma obra a partir de outra, ou sob influência de outra é um procedimento frequentemente constatado durante a história da música, sendo um dos exemplos mais relevantes a maneira como Mozart parece tomar instruções de Haydn em seus quartetos de cordas (ROSEN, 1997, p. 287). E, assim como Mozart, muitos compositores comentaram textualmente sobre onde e como procederam à tomada de material. Por vezes esse procedimento foi adotado como método de aprendizagem, outras para homenagear determinado compositor – como na Fantasia sobre um Tema de Thomas Thallis de Ralph Vaughan-Williams (1910), no Tombeau de Couperin de Maurice Ravel (1914-1917), ou mesmo, nas Bachianinhas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1930-1945) – ou ainda, porque extrair materiais formais ou temáticos de uma peça, ou escrever à maneira de outro compositor, era motivador do trabalho criativo de determinado autor. Outro ponto importante a ressaltar é o próprio ensino da composição musical que se vale muitas vezes do mimetismo no processo de aprendizado partindo do procedimento analítico. Geralmente os cursos de composição e a produção literária recente nesse domínio do conhecimento partem de análise de obras do repertório, para em seguida proceder à extração de modelos, que podem ser de ordem formal, rítmica, temática, para, por fim, serem geradoras de novas criações que serão apresentadas nas classes e para os professores (vemos isso em trabalhos de Allen Forte – The Structure of Atonal Music (1973) ou David Cope – New Directions in Music – 2001, por exemplo). O professor e compositor Celso Mojola comenta em sua tese de doutorado: É nosso ponto de vista que a análise do material é um procedimento básico para o desenrolar satisfatório de uma composição. De fato, uma das mais importantes capacidades de um criador é sua sensibilidade para o aproveitamento consequente das potencialidades do que tem às mãos. Em alguns casos, inclusive, o embate entre o compositor e o material parece ser um verdadeiro princípio estético (MOJOLA, 2003, p. 155).

Tanto Berio quanto Mojola usam a metáfora manual para se referir ao trabalho de transformação do material musical. De certo modo é comum que o compositor se sinta como se estivesse manuseando o material musical atribuindo ao labor da composição um lento e minucioso embate entre materiais-vetores e desejos de reverberação, como se de um lado se posicionassem os materiais históricos com orientações e forças e de outro a volição do compositor. Semelhante ao que afirmava

um astro do rock: “Tanto imitei Elvis Presley que me tornei John Lennon” (GOLDENBERG, 2015). E é nesse ponto que o embate entre o material e o criativo se torna um princípio estético em si mesmo. E aqui é importante que fique claro que não se trata necessariamente de uma situação de conflito ou de oposição. A volição do criativo poderá ser para negar o uso, transformar seu contorno, ou ainda, imitá-lo. De início vamos dar lugar aqui a uma breve revisão histórica partindo de uma reflexão acerca de debates na chamada Filosofia Analítica (MARCONDES, 2004, p. 7), bem como atualizações dos modos de pensar a análise. Seguidamente apresentar-se-á as principais vertentes metodológicas de análises musicais bem como seus embasamentos teóricos. Não tratará, no entanto, de um catálogo exaustivo de todos os procedimentos de análise já implementados. Mas sim, de uma amostragem geral com o intuito de estabelecer apenas um ponto de partida histórico para, vislumbrar o papel da análise em relação à teoria e à práxis musicais.

1.1 – Tradição Analítica “Para evitar o risco de se perder neste itinerário, é preciso, antes de percorrê-lo, reconhecê-lo aos pedaços” é o que nos aconselha Levi-Strauss (1991, p. 25) em O Cru e o Cozido. Tal afirmação aponta para a importância do modelo analítico na obtenção da coerência do discurso científico. Referindo-se às ciências humanas é patente, dentro do pensamento estruturalista, que são tantas as variáveis importantes para o estudo de um objeto que seria impossível produzir conhecimento nessa área senão por um modelo de análise atento e detalhado. Na antiguidade grega o termo análise era empregado como um método para se obter conhecimento de algo. Platão, por exemplo, em sua argumentação no diálogo intitulado Sofista, aponta a análise como o método a ser utilizado em toda a obra para a determinação precisa da classe dos sofistas. Do mesmo modo procedia analiticamente na abordagem dos argumentos dos próprios sofistas, desmontando-os um a um (PLATÃO, 2003, p. 4). Já na era moderna ressaltamos as contribuições de Kant em sua discussão acerca da representação. Ao se referir à análise afirma que por meio dela podemos distinguir melhor as partes do todo, de modo que a análise em si não confere nada ao conceito, mas pode clarificar seu entendimento ao sujeito (KANT, 1992, p. 35). Também são pungentes suas contribuições na Crítica da Razão Pura quando determina

a analítica transcendental e ainda a subdivide em analítica do conceito e analítica do princípio. Nesta obra Kant limita a esfera de ação da razão, pois a mesma é livre para estabelecer relações e proceder por infinitas análises fora do ambiente empírico e quanto a isso alerta: “Quando não aplicamos nossa razão somente para os objetos da experiência... mas ousamos estendê-la para além dos limites desta última, surgem teoremas sofísticos que na experiência não podem esperar confirmação nem temer refutação...” (Id., 2012, p. 361). Para Kant a epistemologia, ou seja, toda aquisição de conhecimento já se dá por um processo analítico. Quando ele denomina “inteligível àquilo que em um objeto dos sentidos não é ele próprio fenômeno” (Ibid., p. 432) ele separa o objeto em duas partes sendo uma delas fruto da experiência dos sentidos, o fenômeno mesmo, e a outra o sabido do fenômeno, o inteligível. Também procede analiticamente quando explica que o conceito é composto por conteúdo e continente, “já que sem conteúdo nada pode ser pensado em parte alguma” (Ibid., p. 236), ou quando designa matéria e forma como conceitos inseparavelmente ligados em qualquer uso do entendimento, sendo o primeiro o determinável em geral, e o segundo sua própria determinação (Ibid., p. 260). É no século XX, entretanto, que a concepção de análise passa por uma nova etapa dentro do pensamento filosófico. Como aponta Marcondes podemos seguir a divisão simples em três grandes períodos da Filosofia. O primeiro, do séc. VII a.C. até o séc. XV d.C., se dedicou ao conhecimento do ser, ou seja, filosofia ontológica. O segundo período vai do séc. XVI ao XIX, a chamada filosofia moderna. Esta mudou o foco para o conhecimento, ou seja, epistemologia (teoria do conhecimento), acreditando que antes de conhecermos o ser devíamos saber mais sobre o que é propriamente o conhecer. A partir do final do séc. XIX chegamos então ao terceiro grande período histórico que é comumente chamado de filosofia contemporânea. Esta introduz a questão lógico-linguística à discussão filosófica tornando a análise da linguagem algo imprescindível para entendermos o conhecimento em si (MARCONDES, 2004, p. 910). Da análise da linguagem passou a depender todo o desenvolvimento da filosofia e, para dar cabo disso, é que surge nesta época a escola da Filosofia Analítica. Dentro desta tradição diversos nomes foram, ao longo do séc. XX, fundamentais para nossa compreensão do termo análise nos dias de hoje. Dentre os quais enfatizam-se Bertrand Russel, George Edward Moore e Ludwig Wittgenstein. Mas foi também no séc. XX que alguns tratadistas levantaram questões sobre as possibilidades do método analítico no que concerne a produção de conhecimento.

Landford faz a seguinte advertência quanto ao caráter meramente tradutório que a análise pode receber (LANDFORD apud SCHILLP, 1968): Se a expressão verbal representando o analysandum [aquilo que está sendo analisado], tem o mesmo significado da expressão verbal representando o analysans [o resultado da análise], a análise estabelece uma simples identidade e é trivial; mas se as duas expressões não têm o mesmo significado, a análise é incorreta.

De fato, se a análise servir apenas como tradutora de uma proposição, gerando deste modo mais um enunciado para uma mesma coisa, ela terá muito pouco valor. E, evidentemente, ao gerar um conhecimento incorreto sobre a proposição analisada ela se torna falsa. Entretanto, o que Landford não considerou em seu conceito do ‘paradoxo da análise’ foi que talvez a análise não sirva ao conceito ou objeto analisado, de maneira que nada pode prover ao objeto. Dizendo de outro modo, nesta suposição, a análise, em princípio, não proveria nada ao objeto analisado nem ao conceito como resultado da análise, mas sim ao analisador. Se esse pode reconstruir em sua consciência o objeto observado a partir da estrutura de sua análise, estará dessa maneira concebendo-o segundo o prisma de seu entendimento. Se puder ainda fazer outra análise, a partir de outras bases, conceberá o mesmo objeto por outro prisma. Podendo decompor e ressintetizar o mesmo objeto com bases e processos distintos, significa que pode concebê-lo de maneiras equivalentes e poderá sintetizar outros objetos a partir de elementos de concepções variadas do mesmo material-objeto. Esse é o princípio da construção criativa. De qualquer modo Landford pensa dentro de uma filosofia que busca uma verdade, um real para ser encontrado e a análise finalmente acaba funcionando como um ponto de vista gerador de um projeto de subjetivação para algo a ser inventado. Seguindo nesse debate, vejamos como Marcondes (2004, p. 37) defende a ideia de análise, sempre parcial e não definitiva: Uma vez que a análise tem como seu objetivo a linguagem ordinária e como finalidade a caracterização dos elementos envolvidos em seu uso para assim explicar o significado dos termos e esclarecer os problemas filosóficos a eles associados, esse tipo de análise é sempre provisório, nunca definitivo, final, completo. Os problemas devem ser retomados, novos usos levados em consideração, novas relações podem ser estabelecidas. Não é possível então

eliminar todos os problemas de uma vez por todas. A análise é sempre parcial e deve proceder piecemeal (isto é, minuciosamente), sem a pretensão de um resultado definitivo (MARCONDES, 2004, p. 37).

Kant nega a possibilidade mesma de conhecer internamente as coisas, visto que, nossos sentidos, nos dão apenas condições de experimentar os fenômenos de maneira externa. A interioridade absoluta da matéria seria simplesmente uma quimera e deste modo “a observação e a dissecação dos fenômenos penetram o interior da natureza, e não se sabe o quão longe ela pode ir com o tempo” (KANT, 2012, p. 266-7). Isso corrobora que o projeto analítico-dissecador pode sempre ir adiante e promover novas ligações, sem nunca alcançar a realidade final, interna das coisas. Possivelmente porque não há uma realidade interna para ser descoberta e sim muitas realidades superficiais para serem inventadas, nesse caso já em uma perspectiva deleuziana. Podemos então observar a análise sempre servindo ao analisador, ou ainda, como afirma Berio, em Remembering the Future, quando fala do compositor como analista de uma obra musical: ...se por outro lado, o analista é o compositor, ele não precisa escolher e especificar as categorias e o critério que ele ou ela pretende adotar porque, de qualquer maneira, a análise será sempre a análise de si mesmo: compositores não poderão deixar de se projetar (sua poética) dentro das análises da obra. O compositor se revela através da análise da obra de outrem (BERIO, 2006, p. 125).

De fato, o que estamos discutindo é o que e como a análise se aplica no processo da construção do conhecimento. Como aponta Lévi-Strauss (1991, p. 13), analisar é similar a utilização de um microscópio ótico que não pode fornecer ao observador a estrutura final da matéria, apenas pode-se escolher, por meio dele, um determinado grau de aumento e, conforme o grau escolhido, certos elementos passam a ser estruturais e outros deixam de ser. Assim como o microscópio serve como ferramenta de amplificação de determinados aspectos da cognição humana, acreditamos que a análise possa desempenhar esse mesmo papel essencial. Ambas, percepção e análise, são ações mediatas, porém, a primeira é instantânea e direta enquanto que a segunda é minuciosa e recorrente.

Depois desse comentário de Lévi-Strauss seria importante, entretanto, diferenciarmos definitivamente no âmbito desse trabalho, os conceitos de forma e de estrutura. Para Eco (1976, p. 28) forma se refere à composição física de determinado objeto e estrutura a ‘analisabilidade’ do objeto, ou seja, a capacidade de ser decomposto em relações. Não que de fato existam dois objetos, ou ainda, que estrutura e forma sejam antagônicas, opostas, mas sim que o pensamento estruturalista já parte da ideia da análise como um poderoso meio de acepção de determinado objeto de estudo, talvez o mais indicado quando o objeto é complexo e possui muitas variáveis. Conformação física e ‘analisabilidade’ são dois pontos de partida para um estudo onde o primeiro se dedica a um levantamento quantitativo da natureza do objeto e o segundo a como nós, por meio de nossa mente, podemos encontrar um determinado número de relações intrínsecas ao objeto para podermos categorizá-lo, compreendê-lo, reconstruí-lo, corroborando o que apontamos acima a respeito de Kant, que separa o fenômeno em si salientando ainda sua afirmação de que penetrar o fenômeno e conhecê-lo realmente seria uma tarefa impossível, pois apenas temos acesso aos dados dos sentidos, à exterioridade do fenômeno. Dentro daquilo que é o inteligível Kant apresenta dois conceitos, o de matéria e o de forma, sendo o primeiro a determinação em geral e o segundo a determinação em particular. Pode se aproximar o conceito de matéria de Kant com o de estrutura de Eco, assim como, os conceitos de forma em ambos. Para exemplificar esses conceitos no campo da música observemos a matéria como o material básico e gerativo de uma obra, como o material temático, a paleta de timbres e as técnicas instrumentais que serão operacionalizadas, a estrutura dos agenciamentos próprios às técnicas e princípios de escritura musical (harmonia, contraponto, organização fraseológica, dinâmica e agógica) e finalmente o resultado consolidado apresentando uma forma. De maneira específica podemos tomar uma determinada sonata clássica e constatar suas quantidades, suas adequações à categorização geral, seus atributos. Ambos são projetos analíticos, mas nenhum alcança penetrar a coisa em si, e só o fenômeno da coisa. A todo momento estamos representando e decompondo o que recebemos, dando significado e atribuindo sentido, portanto interpretando os objetos de nossa análise, sejam eles proposições ou imagens. Há sempre uma categorização e um reconhecimento de relações internas. Deste modo, estamos sempre interpretando (sintetizando) o que percebemos e analisamos (MANNIS, 2014, p. 210-211, p. 232235). Fazê-lo de maneira mais minuciosa e dedicada é como afiar o sabre para que tenha

o corte mais preciso. Lévi-Strauss quando relaciona mitologia a música em O Cru e o Cozido afirma: ...o desígnio do compositor se atualiza, como o do mito, através do ouvinte e por ele. Em ambos os casos, observa-se, com efeito, a mesma inversão de relação entre o compositor e o receptor, pois é, afinal, o segundo que se vê significado pela mensagem do primeiro: a música se vive em mim, eu me ouço através dela. O mito e a obra musical aparecem assim como regentes de orquestra cujos ouvintes são os silenciosos executores (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 26).

Dar ao ouvinte a função de fazer sentido é, de fato, dar à capacidade de estruturar e analisar a responsabilidade de gerar entendimento (significado). Essa concepção de Lévi-Strauss vem ao encontro do enunciado de Berio (2006, p. 130) “Análise, como a própria música, faz sentido quando ela confirma e celebra um diálogo entre o ouvido e a mente”. Esta proposição enfatiza a proximidade entre os processos de análise e escuta, ressaltando a necessidade de identificar esse processo ao de um diálogo entre o ouvido e a mente, ou seja, entre o que é percebido (pelo ouvido) e o que pode ser estruturado (pela mente). Silvio Ferraz (1998, p. 246) adiciona outra perspectiva quando acrescenta a essa analogia a figura do compositor. Em sua proposta cada obra musical deve ter uma escuta particular e cada análise deve partir da própria escuta da obra. Em continuação, compor seria um desdobramento das escutas e análises. Essas ideias se aproximam do ideal de Schoenberg de que o verdadeiro crítico musical é o compositor, quando em El Estilo y la Idea disserta acerca do papel do crítico musical e diz: “...se estivesse inspirado não descreveria como deveria ter sido escrita a peça: a comporia ele. Isto é o mais rápido e o mais fácil para quem pode fazê-lo, e é o mais convincente” (SCHOENBERG, 1963, p. 28).3 Deste modo, analisar é como perceber minuciosamente e, a partir de categorizações e estruturações conceituais, poder ‘falar’ sobre o percebido. Por meio de análises o sujeito pode adquirir compreensão do objeto. Pode, pelo conhecimento de seus elementos constitutivos, chegar a apreender sua estrutura, ou seja, alcançar a lucidez que provém da síntese (KANT, 1992, p. 35) e, desta maneira, dominar sua sintaxe, reproduzi-la, desenvolvê-la, recriá-la, recriar, criar. 3

Original em espanhol: Si estuviese inspirado no describiría como debiera haber compuesta la pieza : la compondría él. Esto es lo más rápido y hasta lo mas fácil para quien pueda hacer-lo, y es lo más convincente. (Tradução Livre)

1.2 – Problemática Analítica em Música A História da Música ocidental nos apresenta desde meados do séc. XVI um variado leque de abrangências e possibilidades metodológicas no que diz respeito ao processo de análise musical. Seus primeiros tratadistas, como comenta Bent (1990, p. 6), tiveram suas obras dedicadas a explicar o modus operandi de um determinado estilo ou técnica composicional por meio da classificação de modos musicais ou apontando as diferenças na construção dos Tons Salmódicos, por exemplo. Posteriormente, já no séc. XVII, passaram às implicações do modelo retórico no processo composicional. Ao longo dos séculos XVIII e XIX surgiram modelos universalistas que propuseram acepções mais profundas do entendimento musical, bem como o entendimento de forma musical e desenvolvimento do material dentro do Organicismo. Tudo isso culmina no séc. XX quando conceitos matemáticos, estatísticos, probabilísticos, semióticos, categorizações cognitivas e reduções estruturais ampliaram definitivamente esta discussão. Mas antes de nos aprofundarmos, problematizaremos alguns pontos: Ian Bent aponta em seu trabalho Analysis (1990, p. 2) que um dos maiores problemas da disciplina de análise musical é a determinação efetiva de sua área de conhecimento, pois ao longo da história ela serviu como ferramenta para diversos profissionais desempenhando ocupações musicais, abrangendo compositores, intérpretes, críticos, historiadores e estetas. De maneira que a análise esteve sistematicamente aplicada a atividades distintas como – auxiliar um intérprete nas escolhas técnicas e interpretativas para a execução de uma peça; fornecer ao compositor determinada técnica ou procedimento identificado em uma obra analisada; prover argumentos ao esteta para sustentar teses sobre o papel social e artístico de uma obra ou um conjunto de obras; ou ainda, na constatação de um estilo etc. É importante aqui delimitarmos que, sendo o escopo deste trabalho limitado à área de processos criativos, a reflexão acerca da análise musical se aplica prioritariamente, senão exclusivamente, sob a ótica do compositor. Efetivamente, o compositor, por estar permanentemente diante do trabalho de manipulação do material musical, para operar com estes, necessita tratá-los com recurso sistemático a processos analíticos, além das instâncias de percepção e de síntese. De maneira que podemos conceber a própria composição musical como estando próxima da ideia de síntese de

Kant (1992, p. 35) enquanto consequência de um processo inteligente, consciente ou inconsciente, onde os resultados obtidos por meio das análises são reorganizados e aplicados (sintetizados) em uma nova obra. A composição musical seria, portanto, uma relação dinâmica micropolítica entre ideias musicais analisadas, ‘extraídas’ e/ou recortadas como no texto de Schoenberg: A composição exercita o ouvido para determinar o que deve ser recordado, ajudando assim a compreensão das ideias musicais. Os desvios característicos das normas, as irregularidades, servirão de guias neste agreste terreno das grandes ideias (SCHOENBERG, 1963, p. 198-199).4

O compositor pode munir-se da análise musical para extrair elementos e materiais de determinada obra aplicando-a para apreender: 1) uma técnica ou norma ali empregada; 2) alguns de seus elementos estruturais (campo harmônico, série, padrão rítmico); 3) elementos de escrita como orquestração ou fraseado, e ainda, elementos literais como determinada melodia ou marcha harmônica, para aplicar em seus processos construtivos (suas sínteses). Notemos que Schöenberg denomina o ato da composição de “exercício da escuta”, corroborando nosso apontamento anterior de que a análise seria como uma percepção minuciosa e perscrutadora. E afirmando ainda, à guisa de comentário, que o que geralmente nos serve como pontos de referência e, portanto, ‘guias’ nos terrenos das ‘grande ideias’ acabam sendo mais elementos referentes às irregularidades, aos desvios... Noção que se aproxima ao conceito deleuziano de linhas de fuga. Voltando à problematização da análise musical, outro fator que não pode ser ignorado é a dificuldade em se determinar o próprio material musical. Neste ponto Bent (1990, p. 5) enfatiza: “Música não é tangível ou mensurável como um líquido ou sólido o é para a análise química”. A seguir elenca quais seriam os materiais possíveis de serem analisados em música, a saber, 1 – a partitura; 2 – a imagem sonora na mente do compositor; 3 – a performance interpretativa; 4 – a percepção temporal do ouvinte, ou seja, a percepção em tempo real e, acrescentamos aqui a percepção temporal na memória. Claramente o resultado da análise dependerá do que for adotado como material a ser analisado. Se refletirmos acerca dessas quatro categorias de materiais musicais vamos constatar rapidamente por que a partitura (e o projeto de escuta 4

Original em espanhol: La composición ejercita el oído para determinar lo que debe ser recordado, ayudando así a la comprensión de las ideas musicales. Las desviaciones características de las normas, las irregularidades, servirán de guía en el agreste terreno de las grandes ideas.(Tradução Livre)

mediado por ela) foi escolhida pela maior parte dos estudiosos. É evidente que a imagem sonora na mente do compositor é algo quase inacessível. Análises do resultado sonoro de uma interpretação seriam inviáveis antes do surgimento de tecnologia capaz de registrar e reproduzir sons. E mesmo a percepção do ouvinte foi negligenciada e ainda caminha lentamente dentro das chamadas ciências cognitivas. Nattiez (1975, p. 52), em sua obra Fondements d’une Sémiologie de La Musique, defende a divisão da arte musical em três partes. A primeira seria a produção da obra pelo compositor, a segunda a obra em si como nível intermediário e, por fim, a percepção da obra pelo ouvinte. Ele denomina como poiesis o estudo do processo imaginário e criativo de composição (do compositor à obra) e de Esthesis o processo de percepção (da obra ao ouvinte). O nível intermediário, ou seja, a própria obra, em seu suporte, corresponde ao nível Neutro. Os métodos analíticos abordados nesse trabalho são quase todos elaborados a partir da partitura (nível neutro) como material musical. Contudo, esse modelo restringe-se à música grafada, ou seja, representada em partituras. Com o advento da música eletroacústica, ou mesmo de outras formas de arte sonora, registradas em suporte fixo (gravado, perfurado, magnético, óptico, digital etc.), o nível neutro passa a se localizar em rastros profundos de transdução em mídia física, representando um sinal sonoro físico e não mais uma representação simbólica abstraída-legível por um performer. É praticamente impossível a leitura humana a partir de um registro digital ou magnético de uma obra, bem como, a olho nu, interpretar os sulcos em um disco de vinil. De maneira que a análise em nível neutro demandaria o uso de ferramentas auxiliares e intermediárias de leitura e representação do sinal físico como analisadores de espectro ou outros aplicativos de análise do sinal. Se a partitura guarda certa distância entre ela e o resultado escutado, podemos dizer que a olho nu essa distância é bem maior em um disco de cera e ainda maior em um arquivo MP3. Com isso se inviabiliza a aplicação desse tipo de análise em música para suportes eletroacústicos, computacionais, mecânicos e eletromagnéticos, quando essas dispensam uma representação em partituras, pois nessas condições sua abordagem em nível neutro se torna impraticável. Outra problemática seria o fato de que o resultado das análises também estará relacionado com o que Bent chamou de ‘eixos de classificação determinantes’ (1990, p. 80). Estes seriam o entendimento que tem o analista, em particular, acerca da natureza musical, a substância, segundo sua concepção do termo, da música analisada, o método de operação e o meio de apresentação do resultado da pesquisa.

Bent (1990, p. 80) subdivide a substância musical em cinco categorias: a) Estrutura – rede fechada de relações e a soma de todas as partes; b) concatenação das unidades estruturais; c) Campo de dados e padrões que podem ser percebidos; d) processo linear; e) Símbolos e valores emocionais. Bent subdivide ainda os métodos em seis categorias: a) Técnica de redução (análise schenkeriana); b) Comparação, reconhecimento, identidade, similaridade, diversidade (análise retiniana); c) Segmentação das unidades estruturais (análise formal); d) Busca por regras de sintaxe (semiótica); e) Contagem de características/eventos (análise computacional); f) Interpretação de elementos expressivos, imagens e simbolismo. Já os meios de apresentação dos resultados analíticos Bent subdivide em nove grupos, sendo: 1 – Partitura anotada ou redução em linha contínua, como ocorre nos modelos schenkerianos; 2 – Partitura não linear trazendo todos os elementos juntos (teoria dos conjuntos); 3 – Lista de unidades musicais acompanhadas de descrições sintáticas (morfologia musical); 4 – Gráfico de redução apontando relações estruturais; 5 – Descrição verbal que poderá usar terminologia formal, poética, metafórica, programática ou de interpretação simbólica; 6 – Estrutura simbolizada por letras e/ou números, como na semiologia; 7 – Gráficos, contornos formais, diagramas, símbolos visuais; 8 – Tabelas ou gráficos estatísticos; 9 – Som por reprodução eletrônica, execução gravada ou ao vivo.

Para visualizar mais claramente as categorias analíticas de Bent, inserimos as tabelas abaixo: Materiais musicais possíveis: 1

Partitura

2

Imagem sonora na mente do compositor

3

Performance interpretativa

4

Percepção temporal do ouvinte 1 - Materiais musicais possíveis por Ian Bent

Substância musical: 1

Estrutura

2

Concatenação das unidades

3

Campo de dados que podem ser percebidos

4

Processo linear

5

Símbolos e valores emocionais 2 - Substância musical por Ian Bent

Metodologias de análise: 1

Técnica de redução

2

Comparação

3

Segmentação das unidades

4

Busca por regras de sintaxe

5

Contagem de eventos

6

Interpretação de elementos expressivos 3 - Metodologias de análise por Ian Bent

Meios de apresentação dos resultados: 1

Partitura anotada ou redução em linha contínua

2

Partitura não linear

3

Lista de unidades acompanhadas de descrições sintáticas

4

Gráfico de relações estruturais

5

Descrição verbal

6

Estruturação simbolizada por letras e/ou números

7

Contornos formais e símbolos visuais

8

Tabelas ou gráficos estatísticos

9

Som eletrônico, gravado ou ao vivo 4 - Meios de apresentação dos resultados por Ian Bent

Bent classifica e subclassifica com precisão o material musical, a substância musical, os métodos de abordagem e meios de apresentação dos resultados. Notemos, entretanto, que o autor não subdividiu ou categorizou o entendimento da natureza musical do analista (BENT, 1990). Como Bent afirma que “música não é tangível nem mensurável como um líquido ou um sólido o é para a análise química”5 (Ibid., p. 5) entendemos assim que a natureza musical na mente do analista seja algo dificilmente possível de ser compartilhado de maneira equivalente, e por esta razão não caberia uma subdivisão de algo não tangível. Contudo, o entendimento do analista acaba se manifestando nas escolhas das categorias anteriormente elencadas, ou seja, sua visão da natureza musical se explicita pelas suas próprias escolhas acerca do que vem a ser a substância musical, do método escolhido e da maneira de apresentação dos resultados. Recapitulando, o que percebemos é que há um grande número de variáveis influentes no resultado analítico musical por meio da escolha dos métodos, na incidência de diferentes substâncias, no meio escolhido para a apresentação, na escolha do material musical a ser focado e nos diferentes objetivos a serem buscados. E, portanto, muitas análises podem ser resultadas de uma mesma obra musical e não podemos dizer que uma análise em especial pode dar toda resposta possível, ou que é superior a outra. De fato, acreditamos que a análise mais do que uma possibilitadora de respostas parciais é uma problematizadora, uma ferramenta de novas problemáticas. E, em última instância, dizer que muitas análises podem resultar de uma mesma obra também é uma redução analítica – o que existem de fato são inúmeras obras, a dita ‘mesma’ sonata de Mozart cada vez que é tocada é uma, cada vez que é ouvida é uma, em cada vez que é ouvida pelo dito ‘mesmo’ ouvinte é uma, sempre diferente... Seriam, portanto, muitas análises provenientes de muitas escutas, muitas obras. Se observarmos o que foi apontado anteriormente notaremos que o analista está o tempo todo diante de escolhas, estas, no fundo, denotarão sua visão da natureza musical. Deste modo, o resultado será completamente pertinente ao sujeito, é um processo de subjetivação. Nesse sentido inclui Bent (1990, p. 5): “Nenhum método analítico revela a verdade sobre a música acima de todos os outros. Ainda que cada era tenha sentido que se move em direção ao método autêntico”. Lawrence Zbikowsky afirma o seguinte em sua obra Conceptualizing Music: 5

Original em inglês: Music is not tangible and measurable as is a liquid or a solid for chemical analysis (tradução livre).

Análises musicais são verdadeiros diálogos, não apenas diálogos entre os analistas e a escuta imaginada: análise musical é também um diálogo entre o analista e um corpo de conhecimento teórico. A análise raramente, senão nunca, apenas corrobora com a teoria: a análise puxa e a teoria empurra e isto expande e muda a teoria assim como expande e muda nosso entendimento do fenômeno musical (ZBIKOWSKY, 2002, p. 19).6

O apontamento de Zbikowsky enfatiza a qualidade subjetivadora da análise como uma verdadeira contaminação filosófica entre o receptor, o corpus teórico e o entendimento. Novos modelos surgiram sempre que os modelos existentes não foram suficientes. Deste modo se obteve aumento nas possibilidades analíticas. Pelo surgimento de novas perguntas possibilitou-se o vislumbre de novas respostas.

1.3 – Metodologia Analítica em Música Um dos modelos metodológicos mais influentes é a Estrutura Fundamental (Ursatz) da Análise Schenkeriana. Esse trabalho, aponta Bent (1990, p. 82), foi fundamental como pioneiro na ideia de redução dos elementos musicais por meio de abreviações e supressões de figurações de transição ou repetição. Teve forte contribuição no sentido de gerar uma escuta de longa duração e, apesar de se limitar ao repertório tonal por ter como a referência a tríade, até o final do séc. XX desempenhou papel de proeminência nas escolas analíticas. Outra importante contribuição de Schenker está na busca radical e em nível de profundidade de uma estrutura para o que está sendo percebido. Schenker (1954, p. 133) defendia a tríade como expressão acústica natural e acreditava que deste modelo, gerado pela série harmônica, evoluíra o processo composicional. A maior crítica recebida pelo modelo Schenkeriano seria a limitação de sua aplicação ao período da prática comum. Salzer (1969, p. 14), entretanto, o defende dizendo que algumas de suas acepções seriam universalistas. Ele cita, por exemplo, a divisão do entendimento musical em três níveis; plano superficial, plano intermediário e plano de fundo. Análise musical, portanto, seria um processo contínuo de conexão e integração destes três níveis de percepção musical. A ‘distância’ 6

Original em inglês: Musical analyses are in truth dialogues, and not just dialogues between the analyst and imagined audience: musical analyses are also dialogues between the analyst and some body of theoretical knowledge. Analysis rarely, if ever, simply corroborates a theory: analysis pulls theory and pushes it, extending and changing theory just as it also extends and changes our understanding of musical phenomena. (Tradução Livre)

entre Estrutura Fundamental (plano de fundo) e o resultado expresso, ou ainda, as diversas formas como isso pode suceder, seriam decorrentes das influências históricas, estilísticas e do próprio gênio do compositor. Outro modelo influente dentro das tradições da análise musical é o do Processo de Desenvolvimento Temático de Réti. O autor entende a música como uma exposição linear de elaborações e transformações de um elemento temático ou motívico, em sua estrutura harmônica/intervalar, de maneira não temporal, ao longo da obra. Esta concepção estrutural poderá ser responsável não só pelos desenhos melódicos, mas também pela construção de frases e períodos ou até mesmo pelo estabelecimento do sistema macroformal da peça (BENT, 1990, p. 85-88). Réti (1961, p. 66-105) se dedica de fato ao trabalho do compositor diante dos elementos temáticos, ou seja, sua proposta não se atém à pregnância, à semântica, ou à elementos estéticos. Mas concerne procedimentos recorrentes utilizados pelos compositores diante do trato de seus respectivos materiais musicais. Mojola insere o seguinte comentário quando se referindo às análises retinianas em sua tese de doutorado: ...suas análises eventualmente deixam dúvidas no que diz respeito à segmentação e aos procedimentos de transformação, além de se apoiarem em informações não sistemáticas. Apesar disso é nosso ponto de vista que elas auxiliam o entendimento do processo criativo do compositor, e constituem uma particular e interessante interpretação do pensamento motívico schoenberguiano (MOJOLA, 2003, p. 22).

Réti chega a categorizar em sua obra The Thematic Process in Music (RÉTI, 1961) diversos métodos de variação temática usados ao longo da história tais como a inversão, a reversão, a intervenção, mudanças de andamento, ritmo ou acentuação, compressão temática, alterações harmônicas ou modais. Se por um lado o modelo schenkeriano se propõe a explicar universalmente a música por meio de uma redução a partir da percepção da obra musical enquanto uma totalidade dinâmica, buscando entender os processos e transformações aplicados à sua pretendida estrutura fundamental, a saber a tríade básica, e não como uma sucessão de momentos ou uma justaposição de elementos contrastantes ou similares por seu conteúdo harmônico ou temático; por outro lado, o modelo retiniano se caracteriza como uma ferramenta de redução estrutural a processos e transformações aplicados a um motivo ou tema inicial, como elemento gerador da obra musical. Porém, se usados de maneira reversa, ambas

são propostas válidas, mas com métodos distintos, para engendrar novas maquinações em processos criativos. Bent (1990, p. 85) aponta que, semelhante ao trabalho de Réti, temos ainda a Análise Funcional de Keller, uma vez que, ambos os trabalhos se dedicam a um minucioso estudo dos desdobramentos de elementos temáticos e motívicos na construção musical. Porém a Análise Funcional de Keller concebe uma ora musical como uma unidade em meio a uma variedade. Keller considera em seu ponto de vista que uma obra musical compreende duas camadas, uma externa mais evidente, situada num primeiro plano (foreground), e outra de caráter básico, talvez mesmo como de suporte, denotando estabilidade e permanência, como um plano de fundo (background). A variedade se apresenta no primeiro plano, enquanto a unidade permanece em plano de fundo. Dessa maneira a ideia básica de um obra se encontra permanentemente presente em seu plano de fundo, enquanto que os processos de variação, desenvolvimento e transformação emergem ao primeiro plano, razão pela qual este se denomina como plano manifesto, sendo portanto de natureza contínua e linear, o que o torna inteligível para ser acompanhado pelo entendimento do ouvinte, ou seja, por seus processos cognitivos de percepção e análise. O plano de fundo é considerado por Keller como não manifesto, guardando em si, de maneira subjacente, a presença constante de uma ideia básica, a permanência da narrativa musical, a unidade que sustenta a coerência de toda variedade exposta em primeiro plano - Seria, portanto, o plano de fundo a verdadeira identidade da obra, enquanto o plano manifesto apresentaria todas as evoluções, contradições, transformações e debates a partir da ideia básica. A proposta de Keller se aproxima diretamente dos conceitos platônicos de: a) plano das ideias – correspondendo à dimensão da unidade e permanência no plano de fundo; b) plano material (manifesto) – como um ambiente de contradições e imperfeições, correspondendo às ocorrências em primeiro plano de: variação, contradição, oposição, transformação e desenvolvimento. A análise formal, ou análise das formas musicais, teve seus principais influentes nas figuras de Marx, Dahlhaus, Tovey e Kerman. Como enfatiza Bent (1990, p. 88) o princípio da análise formal é o de relacionar entre si as partes (A, B, C etc.) de um todo, por meio de processos de recorrência, contraste e variação, representados esquematicamente por AA, AB, AA’. Mune-se de terminologias como transição,

desenvolvimento, retorno, recapitulação, episódio, coda, codetta, sujeito grupo, seção etc. Nesta ótica aparecem as formas barrocas binária (AB) e ternária (ABA) como básicas e entendem como evolução da forma binária a forma-sonata (ABA’) e da ternária o rondó (ABACA) chegando ainda à síntese entre forma-sonata e forma-rondó que seria o rondó-sonata (ABACA’). Num plano mais interno e ao mesmo tempo próximo à sintaxe que os anteriores, há a Análise de Estrutura de Frase (Fraseologia) de Riemann que se foca na construção de cada frase musical observando a variação de energia durante o fluxo da narrativa musical (Ibid., p. 90). A unidade básica do fluxo é o motivo, o qual passa por sua primeira fase de crescimento, um ponto de articulação e, portanto, de stress, e uma fase final de caimento e desinência. Esse processo constitui assim uma frase. E a construção musical é reconhecida como o resultado de um agenciamento de frases. A métrica, os acentos, as ampliações, as elisões, as repetições, interrupções etc. são elementos pertinentes e característicos dessa abordagem. Ambas, análise formal e análise de estrutura de frase (fraseologia), são tributárias da síntese kantiana, ou seja, procuram a tese afirmativa, a antítese contrastante e o enfrentamento de amas como modelo desenvolvimentista de síntese. De modo que se tornaram eficazes ferramentas para o repertório do séc. XVIII e XIX além de permanecerem como linhas criativas do séc. XX. Em outro campo temos a Análise Categórica de La Rue e a Análise de Características de Crane e Fiehler. Ambas se dedicam à identificação de parâmetros musicais como timbre, instrumentação, acorde, intervalo etc. Porém a análise de La Rue também se dedica à mensuração dos parâmetros apresentados em quantidade como baixo, mediano e alto, ou seja, seguindo suas indicações metodológicas o analista pode atribuir valor às incidências dos parâmetros (BENT, 1990, p. 95). Nesta linha de pensamento temos cinco categorias básicas musicais: sonoridade; harmonia; melodia; ritmo; e crescimento. A melodia, por exemplo, é subdividida em três partes: alcance, movimento e padrões. Os subtipos dentro de ‘padrões’ seriam ascendente, descendente, onda, pico e ondulante. A enumeração desses eventos é normalmente apresentada por meio de tabelas e estas estratégias estão associadas às análises estilísticas onde se pode constatar quais eventos fazem certo número de obras pertencerem a um estilo ou uma época. A Semiótica Musical de Ruwet e Nattiez busca por meio de um sistema alfanumérico traduzir em símbolos todos os eventos musicais para compreender sua estruturação. Acaba sendo um desenvolvimento dos modelos de análise formal, porém

sem formalização pré-estabelecida. A própria obra poderia e deveria fornecer os elementos a serem desvelados. Seria uma ótima ferramenta para obras ainda dentro da tradição desenvolvimentista, mas que não seguem com simplicidade os padrões da escola de Viena, de autores como Alban Berg, Béla Bártok, Edgard Varèse, entre outros. Conforme aponta Bent, na segunda metade do séc. XX temos também a análise musical por meio da teoria dos conjuntos de Forte, Rahm, Schmalfeldt e Baker (BENT, 1990, p. 100-108). Nesse modelo se encontra a ampliação da ideia de análise harmônica, só que agora não mais vinculada ao sistema diatônico e sim ao total cromático, tornando-se praticamente uma análise intervalar. Têm como foco as explorações harmônicas do repertório atonal livre, dodecafônico, serial e pós-serial, mas também pode ser aplicado ao repertório tonal e à música antiga. A apresentação destas análises ocorre normalmente por gráficos de, por exemplo, intersecção, interpolação ou transição entre conjuntos. Mesmo parecendo um modelo mais abrangente que os demais criados quase que exclusivamente para a música tonal, a teoria dos conjuntos se limita à criação musical dentro da ‘lógica da nota’, tendo pouca relevância nos projetos estéticos de mergulho no sonoro, como por exemplo, o espectralismo, assim como em música conceitual, livre-improvisação, música eletroacústica e outras expressões artísticas sonoras que ocorreram a partir do séc. XX. Por fim, outra linha de pensamento que influenciou a análise musical na segunda metade do século passado foi a Teoria da Informação. Parte de uma visão de música linear que é organizada por uma sintaxe não pré-estabelecida, mas sim atualizada pela cadeia dos eventos expostos. O teórico Rob Speer (2005, p. 9-12) elenca em seu artigo intitulado Computable Theories of Music Analysis os parâmetros que podem ser mensurados em nível de informação computacional. Estes parâmetros, apresentamos em sequência: 

mapeamento de alturas;



segregação do fluxo (contraponto);



agrupamento estrutural das alturas;



métrica; harmonia;



escala e modulação;



prolongamento e redução.

As análises são apresentadas em tabelas estatísticas e buscam observar as condições de unidade e variedade da obra, o que remete parcialmente à proposta de Keller. Este arcabouço pode também ser aplicado à composição assistida por computador, como parâmetros de design para aplicativos de composição automatizada. Esse panorama de linhas metodológicas e de entendimentos acerca da música nos mostra a riqueza desta que é alvo de nosso empenho. Certamente o compositor ao longo da história e na atualidade faz uso de métodos analíticos em seu aprendizado e para a ampliação de suas noções musicais. Inúmeras vezes, inconscientemente, extraem materiais para seu uso, mas também em outras ocasiões extraem deliberadamente para reelaboração e desenvolvimento. Nas palavras de Nicholas Cook podemos nos dar conta da importante contribuição da ferramenta analítica à formação do compositor: Este tipo de imediatismo dá à análise um valor especial no treinamento composicional, como nos antigos livros de teoria ou de exercícios estilísticos que reduziam os desenvolvimentos do passado num grupo de regras e regulamentos pedagógicos. De qualquer maneira a análise tem se tornado a espinha dorsal no ensino da composição (COOK, 1987, p. 2).7

1.4 – Crítica Analítica Revisando textos de estudiosos em musicologia histórica, sobretudo tratando de períodos históricos nos quais se pode desenhar com clareza um padrão de estilo, ou seja, em épocas nas quais os compositores adotaram métodos comuns obtendo resultados musicais próximos ou semelhantes, podemos notar com certa facilidade o recurso ao re-uso de práticas ou procedimentos adotados por terceiros. Há, por exemplo, o que Charles Rosen em sua obra The Classical Style chamou de “Beethoven seguindo nos passos de Mozart” (1997, p. 470). Mozart, por sua vez, não fugiu da prática do re-uso. Rosen aponta parentescos entre procedimentos adotados por Mozart imitando a escritura de Haydn em algumas de suas obras, sobretudo quando se refere à sua produção camerística, em relação a qual Rosen chega a afirmar: “Mozart, novamente, parece se submeter à instrução de Haydn” (Ibid., p. 287).

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Original em inglês: This kind of immediacy gives analysis a special value in compositional training, as against the old books of theory and stylistic exercises that reduced the achievements of the past to a set of pedagogical rules and regulations. No wonder, them, that analysis has become the backbone of composition teaching. (Tradução Livre)

Apesar de que o aprofundamento na produção musical dos séculos XVIII e XIX não esteja no escopo deste trabalho, com esses exemplos buscamos apenas estabelecer pontos de tangência e intersecção mais explícitos entre práticas composicionais. Vários outros exemplos de Rosen centrados na chamada Primeira Escola de Viena podem também ser boas ilustrações de re-uso. Em razão dessa prática pretendemos aqui iniciar uma discussão acerca da utilização dos processos de análise em música propondo o uso da análise como ferramenta ou maquinário aplicados a processos criativos e não como uma prática com fim em si mesma. Para isso iniciemos então por um diálogo com o artigo de Joseph Kerman de 1980 intitulado: How We Got Into Analysis, and How We Get Out. O texto é portador de uma visão crítica em sua época acerca do papel da análise musical enquanto área de conhecimento e de pesquisa nos Estados Unidos da América. Representa o pensamento compartilhado naquele momento em relação à produção em análise musical desde os anos 1950. Kerman inicia sua explanação discutindo justamente o papel crítico da análise. Enfatiza que nos primórdios as análises musicais eram utilizadas para compor notas de programa e eram, deste modo, dotadas de juízo de valor. Entretanto, durante o séc. XX, sobretudo após os anos 1950, Kerman aponta que dentro dos círculos acadêmicos musicais surgiu um preconceito em relação a esse tipo de crítica. Ele afirma que o termo crítica estava normalmente associado a críticas jornalísticas e que, entre outras coisas, careceriam de profundidade (KERMAN, 1980, p. 311). Contatou-se que a partir daí ocorreu uma espécie de cientifização da análise musical. Quanto a isso o autor comenta: Artigos musicais produzidos, sobretudo após 1950, parecem imitar artigos científicos como se besouros ou moscas sul-americanas tentassem imitar as temidas vespas carpinteiras. Em uma prática até então não usual, o destacado analista Allen Forte escreveu um pequeno livro, The Compositional Matrix, do qual todos os termos de valoração (como ‘agradável’ ou ‘bom’) foram meticulosamente excluídos. A mesma tendência é evidente em grande parte da recente literatura periódica (KERMAN, 1980, p. 313).8

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Original em inglês: Articles on Music composed after 1950, in particular, appear sometimes to mimic scientific papers in the way that South American bugs and flies will mimic the dreaded carpenter wasp. In a somewhat different adaptation, the distinguished analyst Allen Forte wrote an entire small book, The Compositional Matrix, from which all affective or valuational terms (such as ‘nice’ or ‘good’) are meticulously excluded. The same tendency is evident in much recent periodical literature. (Tradução Livre)

Para Kerman não há possibilidade de que a análise não seja crítica. Historicamente analistas ‘validaram’ estéticas, compositores ou teorias. Afirma ainda: “O que Schenker fez por Beethoven e Lorenz fez por Wagner, Milton Babbitt e outros fizeram mais tarde por Schoenberg, Berg e Webern” (Ibid., p. 318). O que aconteceu após os anos 1950 foi uma ultra especialização da análise musical. Vários métodos como a análise schenkeriana, retiniana, análise funcional de Keller, análise categórica de La Rue, a análise a partir de uma abordagem semiótica de Nattiez, ou baseada na teoria dos conjuntos como formulada por Forte e mesmo a teoria da informação, entre outras, geraram gráficos e algoritmos complexos que acabaram representando essa cientifização apontada por Kerman. A partir desses acontecimentos, a análise pode ter tido sim uma tendência a ser aplicada e desenvolvida quase como um fim em si mesma, afastando-se, assim, de seus usos anteriores associados à crítica e à prática do compositor e do intérprete. Muitas vezes o que se encontra em trabalhos analíticos são argumentos corroborando uma teoria. O pesquisador e compositor Antenor Ferreira Corrêa aborda o problema da superficialidade que por vezes se encontra em algumas análises em sua tese de doutorado e critica ainda o caráter meramente descritivo de algumas delas: Todavia, é fácil observar (sobretudo em dissertações na área de performance musical) que algumas análises descrevem os acontecimentos, como se fora uma narrativa futebolística (saiu da tônica, passou pelo segundo grau, cruzou pela tonalidade relativa e chegou à região da dominante), sem apresentar posteriores conclusões a respeito de como aquela análise afetou ou influiu na maneira de tocar a peça. Ao que parece, faz-se uma análise tencionando descobrir a coerência interna de uma obra que já se sabia coerente (CORRÊA, 2009, p. 45).

Certamente uma análise meramente descritiva, mesmo valendo-se de qualquer metodologia estabelecida, quando não houver uma reflexão aprofundada ou uma abordagem relevante, pouco poderia contribuir para um performer ou um compositor. Isso remete a um ponto já discutido anteriormente (item 1.1, p. 11) quanto ao ‘paradoxo da análise’ de Landford, segundo o qual, se uma análise apenas produz uma proposição idêntica em sentido ao enunciado dado, seu resultado será sempre trivial, apenas gerando um arcabouço de sortilégios e nomenclaturas. Contudo, gostaríamos aqui de argumentar que justamente por produzir identidades entre diversas formulações, a

análise nos permite chegar a resultados semelhantes de modos e maneiras diferentes, o que é um recurso importante em processos criativos: como chegar ao mesmo resultado por diversos caminhos, ou como mudar os prismas para observar um mesmo raio luminoso ou como mudar as lentes para visualizar de outra maneira um mesmo objeto. Dessa maneira a análise está produzindo algo novo, fazendo surgir novos encontros, novos agenciamentos: permitindo-nos ver novas partes do todo, novos objetos. Isso muda significativamente os olhares e os corpora teóricos. A metodologia analítica ainda pode ser utilizada a partir da própria obra, ou melhor, de uma observação minuciosa da obra por meio do ‘solfejo’ de seus elementos constitutivos de tal maneira que o próprio compositor enquanto analista possa estabelecer um plano de ação, fazer ainda uso de alguma ferramenta analítica que já possua em seu repertório, ou mesmo, combinar várias ferramentas. De maneira geral, o analista deve sempre ter em mente com clareza qual é o objetivo pretendido para sua análise, como por exemplo: 

‘quero compreender a coerência interna para interpretá-la com maior propriedade’;



‘quero entender o tratamento timbrístico da obra para conduzir a orquestra de modo a produzir os contornos desejados pelo compositor’;



‘quero compreender a técnica de orquestração utilizada que possibilitou tamanho brilho’;



‘quero entender o tratamento harmônico para saber reproduzi-lo’.

Notemos aqui que o ‘querer’ é fundamental. Deve ser uma ação deliberada, um ativo pulsante, um agenciamento maquínico. Concordamos com José Augusto Mannis quando enseja: O processo criativo é constituído de ciclos de processos cognitivos de percepção, análise e síntese, que operam na consciência, mas com influência do subconsciente e do inconsciente, nos quais a volição tem papel determinante quando está em jogo a tomada de decisão (MANNIS, 2014, p. 212-213).

As análises podem produzir novos encontros e/ou novos entendimentos. Podem ainda atuar como ferramentas ou como máquinas de acordo com a esfera do desejo. Se a

volição for intensa o suficiente e atingir um grupo grande de demandantes, seus resultados são potências de teorias já que o “entendimento é tão somente o movimento da paixão que devém social” (DELEUZE, 2012, p. 10).

2 – Reflexão Conceitual Neste capítulo se apresenta a base conceitual e reflexiva desta tese de doutoramento. Entendemos que o coração do trabalho esteja aqui enquanto matriz energética das pulsões que o sustentam. Enquanto compositor considero que a reflexão conceitual e a filosofia estética têm relação direta com meu labor, não só no âmbito da motivação e inspiração, mas também na apropriação de conceitos filosóficos aplicados em meu fazer musical. Iniciaremos tratando diretamente de Colagem de Citações, termo que dá título a este trabalho, mostrando como uma costura entre escuta figural e textual permite agenciamentos criativos. Partiremos da proposta de uma ideia de escuta textual que visa encontrar no desenvolvimento dos elementos musicais um jogo de relação sintática, a saber, a produção de um fio teleológico, como na construção de uma narrativa. Em contra partida propomos ainda a ideia de escuta figural estabelecida por meio de uma metáfora entre o campo visual e o acústico na qual tomam importância os coloridos, os gestos e as potências de movimento. Essas duas escutas coexistem e se interconectam. A eventual preponderância de uma sobre a outra depende dos usos culturais, do intento criativo do autor e do desejo do ouvinte. A seguir, vamos propor uma interpretação do cubismo analítico e do cubismo sintético aplicados à composição musical. Veremos também de que maneiras a colagem surrealista pode ser estruturante na prática composicional do século XX. Na terceira subdivisão desse capítulo apresentaremos os conceitos de desterritorialização de Deleuze e Guattari e de sincronicidade de Jung, abordando o exercício de cortar e colar em um ambiente caótico (rizoma) e como este pode produzir sentido. No quarto item deste capítulo é apresentada uma aplicação das ideias deleuzianas de conversão (aceitação do alto), subversão (técnica de profundidade) e perversão (arte da superfície) associadas aos três principais nomes da chamada segunda escola de Viena.

Na quinta parte faremos uma reflexão sobre o entendimento da textualidade na prática musical, a partir da ideia de que a música, como arte nômade por excelência, é usurpadora dos atributos dos territórios que lhe avizinham. O derradeiro item apresenta finalmente a estética da fosforescência a partir de uma reflexão tangenciando Bergson, Benjamin e Deleuze.

2.1 – De Colagem de Citações ao Ente do Intelecto O que virá a seguir pode parecer fragmentado, até mesmo uma colcha de retalhos. Esperamos, entretanto, que o leitor não a refute a priori e se disponha a acompanhar nosso pensamento, superando códigos de lei, estruturas de poder e dogmas. Vamos, portanto, nos lançar no desafio de escrever sobre colagem de citações produzindo uma colagem de citações.

Existe algo de místico na colagem, produto de um descontrole, como aponta o artista-músico-performer tcheco Milan Knizak em entrevista concedida a Jean-Yves Bosseur no título Le sonore et le visuel: “a colagem possui algo de mágico” (BOSSEUR, 1992, p. 59). Essa dimensão mágica se dá na esfera da significação, visto que os sentidos abandonam o campo original dos elementos inseridos e passam a estabelecer entre si outras ligações. Recortes reutilizados em novas montagens, inseridos em ambientes caóticos (visuais, sonoros, textuais) podem adquirir não somente uma nova significação, mas muitas novas significações, que vão depender do ambiente, dos espectadores, das suas histórias, enfim, de suas culturas e seus mitos. Eis um modelo de destruição que cria: Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem restabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os modelos e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um fantasma (DELEUZE, 2009, p. 271).

Na história da música do século XX podemos estabelecer um paralelo com a dicotomia caos e criação apresentada por Deleuze, ao comparar o dodecafonismo schoenbergiano ao cubismo stravinskyano. Ambos destroem para criar.

Em primeira análise o projeto de Schoenberg para estabelecer uma renovação supera um sistema anteriormente estabelecido, dando talvez uma impressão de destruição do mesmo, mas de fato ele reconstitui as partes do mesmo de maneira a manter sua conservação. Schoenberg conserva as formas tradicionais, a escrita tradicional, e, acima de tudo, a essência desenvolvimentista da música ocidental, mesmo tendo levado ao extremo sua ideia de tonalidade expandida. Já no caso de Stravinsky, que aproximamos do cubismo analítico (MACHADO, 2014, p. 2), encontramos uma destruição de modelos e cópias instaurando um caos propício à criação. O desejo move o agente a empreender agenciamentos para atingir seus objetivos. Cada agenciamento do desejo gera uma territorialidade (HAESBAERT, 2012, p. 6-7). O desejo pode extrair e translocar territorialidades, promover desterritorializações e reterritorializações. Para Deleuze e Guattari um território pode ser qualquer coisa desde que produto de um agenciamento do desejo (Ibid.). No caso de um colador musical teríamos mais um desejo sonoro, como o deleite da escuta que motivará as extrações. Trazemos para esse debate um comentário de Levi-Strauss: ...entre todas as linguagens, ser esta (a música) a única que reúne as características contraditórias de ser ao mesmo tempo inteligível e intraduzível – faz do criador de música um ser igual aos deuses, e da própria música, o supremo mistério das ciências do homem... (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 26)

Lévi-Strauss dá à ciência musical o título de supremo mistério e justifica esse elogio pelo fato de comportar a contradição entre o inteligível e o intraduzível. De certo modo podemos olhar para o fluxo sonoro tomando-o como um texto ou tomando-o como uma imagem, ou grupo de imagens. É, por um lado, uma escolha do ouvinte, mas que pode também ser motivada por características da própria obra. Uma sonata de Beethoven, por exemplo, apresenta diversas características que demanda uma escuta textual, já uma peça como Music for 18 musicians de Reich pode promover uma escuta distinta, mesmo imagética. Mas também é importante ressaltar que essas necessidades estão vinculadas ao pressuposto de que há ouvidos adestrados, e podemos mesmo dizer, ouvidos de músicos. Contudo, é essencial para a música a existência, além da escuta do criador, a escuta de fruição, apaixonada. Um ouvido destreinado, que não conhece o sistema tonal, que não procura desenvolvimentos motívico-temáticos, pode ser incapaz

de encontrar a trama textual construída pelo compositor em uma sonata clássica. Esse ouvido estará então a gerar uma escuta talvez inesperada pelo compositor, talvez uma escuta totalmente renovada, o que acaba sendo essencial para a criação do novo. Também seria ingenuidade, e um equívoco, supormos que os ouvidos humanos podem ser divididos em apenas duas categorias: treinados e não treinados. Pelo menos pelo simples fato de que há incontáveis tipos e níveis de treinamentos. Um ouvido muito treinado em ragas hindus pode eventualmente não reconhecer uma cadência plagal. De modo que cada ouvido vai proceder a uma escuta peculiar, e que finalmente todas essas escutas serão inteligíveis para os próprios ouvintes e ao mesmo tempo intraduzíveis para os demais. Nesse campo de relações quase livres é que se estabelece o deleite musical. É ‘livre’ no sentido que o desejo demanda o fluxo de escolhas e é ‘quase’ na medida em que a história, os costumes, a tradição, os ‘jeitos certos’ impõem limites para o fluxo do desejo. Há sempre um conflito, um campo de batalha entre os territórios estabelecidos (tradição) e os exercícios nomádicos (fluxo do desejo) (DELEUZE e GUATTARI 2011c, p. 178). Barbosa e Barrenechea consideram o compositor como reinterpretador das obras que conhece tornando o conjunto de seus trabalhos uma espécie de intertexto reflexivo, reinterpretativo (BARBOSA e BARRENECHEA, 2003, p. 125). Contudo as singularidades podem ressignificar e projetar escutas inovadoras: “Criam-se novas modalidades de subjetivações do mesmo modo que o artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe” (GUATTARI apud BRITO, 2012, p. 9). Deleuze, a sua maneira, prefere não fazer uso do termo reinterpretação já que grande parte de sua obra conclama uma saída da lógica da interpretação para a lógica da experimentação. Em vez disso ele usa o termo ‘novas maquinações’ como indústria de sentidos: É, pois, agradável, que ressoe hoje a boa nova: o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundidade, mas é efeito da superfície, inseparável da superfície como de sua dimensão própria (DELEUZE, 2009, p. 75).

As ideias de criação de novas subjetivações de Guattarri e de ‘novas maquinações’ de Deleuze dão um caráter absoluto9 à noção de ‘colagem de citações’ apresentada aqui. Não sendo a tomada e reutilização de materiais resultantes apenas uma técnica composicional, mas, mais amplamente, toda uma experiência de construção do sentido e de subjetivação na vida humana. Em Mil Platôs Deleuze e Guattari propõem um exercício político de desrostificação (2011b, p. 35-68). Primeiramente por rosto entende-se segundo Deleuze e Guattari uma sobreposição de um muro branco (da ordem do significante e da sintaxe) e de buracos negros (da ordem dos significados subjetivos e da semântica). Por desrostificação Deleuze e Guattari propõem um exercício de descondicionamento dos hábitos, podendo criar novos desdobramentos semânticos a partir do muro branco, aplicando novos agenciamentos aos buracos negros. Na visão dos autores a identidade humana passa pelo dogma do rosto que compõe o ‘eu’ e, esse mesmo rosto, é formado de muro branco e buracos negros: “Procurem seus buracos negros e seus muros brancos, conheçam-nos, conheçam seus rostos, de outro modo vocês não os desfarão, de outro modo não traçarão suas linhas de fuga” (DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p. 64). Portanto, entendemos desrostificação como um exercício de nomadismo, podendo ser aplicado para ampliar as possibilidades poético-semânticas além dos recursos já estabelecidos na tradição. Anne Claire Gignoux apresenta em seu artigo De l’intertextuallité à l’écriture um breve levantamento histórico acerca da discussão sobre a intertextualidade. Ela aponta que a primeira aparição do termo ocorreu em 1967 e teve como pioneiros Bakhtine, Kristeva e Genette, mas só em 1987 Marc Eigeldinger expande o conceito da intertextualidade para todos os campos da cultura, como por exemplo às belas artes e à música (GIGNOUX, 2006, p. 2-4). Este levantamento mostra como essa reflexão é recente e ao mesmo tempo urgente. É justamente no fim da década de 1960 que normalmente aloca-se a crise da pós-modernidade, momento em que passa a ser difícil identificar e classificar artistas e pensadores em alguma escola ou estilo, devido a ausência de padrão de referência estética, e no geral de critérios bom e mal, de certo e errado, de verdadeiro e falso. Afortunadamente ideias como a raça dominante, a religião verdadeira, a música universal, o sexo forte começam a ser abandonadas e, é claro que no âmbito da produção artística, como produto da cultura, isto exerceu uma influência proeminente. Amplia-se a dificuldade de se estabelecer quais seriam decisões erradas 9

Semelhante ao conceito da desterritorialização absoluta apresentada na conclusão dos Mil Platôs.

ou falsas na elaboração de uma obra, qual seria o repertório adequado a se ouvir, qual conjunto de técnicas ou processos é superior a outro, e essa sobreposição de interferências extrapola os campos clássicos da arte (pintura-escultura-literaturadramaturgia-música). Vemos Joyce na Sinfonia de Berio, as experiências cinemáticas de Kagel e até mesmo uma partida de futebol em Santos Football Music de Gilberto Mendes. Também por conta disso surge uma série de criações que ficam em territórios sem nome, por vezes não sendo possível com precisão dizer o que é cênico ou instrumental, se é poesia ou artes plásticas, se é cinema ou música. De certo modo nos aproximamos de novo do ritual primitivo. Vivemos a época do advento do audiovisual, do prog-metal-sinfônico, da engenharia florestal e da psicologia ambiental. O artista passa a poder se munir, se alimentar de tudo. Pode justapor e sobrepor tudo e todos. Sua consequência maior é a atitude expressionista elevando a criação e a construção ao grau de meio de expressão, sua instância operacional (KLEE, 2002, p. 10). Poderíamos dizer que vivemos o supra-expressionismo-surreal-intertextual.

Voltamos a recorrer aos apontamentos de Danilo Marcondes que em seu tratado de Filosofia Analítica separa em duas grandes linhas de caráter a análise. “A primeira como decomposição da proposição, reconstruindo-a em termos de uma concepção lógica de linguagem, produzindo-se desse modo uma elucidação”. Essa linha supõe um fundo ontológico que seria alicerce para todo conhecimento científico. E “a segunda como elucidação do significado de expressões linguísticas, através do exame de seu uso”. Sem qualquer pressuposição ontológica direta (2004, p. 48). A segunda linha é como uma ferramenta para os artistas de hoje. Quando a unicidade do ser desapareceu, quando não mais procuramos investigar e encontrar o real, mas agora somos pluralidades singulares, inventores de realidades, passamos a coletar e agrupar os dados, reconfigurar, produzir novos sentidos. A análise nomádica, não ontológica, vem a ser uma máquina de guerra, um mecanismo de lançar mão a qualquer coisa que se deseje. De certo modo a práxis da análise musical também poderia ser entendida a partir dessas duas linhas propostas por Marcondes. Sendo as análises musicais da primeira linha aquelas que visariam explicar, elucidar, encontrar a real natureza da obra musical, ou seja, análises desenvolvidas no domínio da ontologia da música. Enquanto as análises da segunda linha buscariam jogar, se apropriar, manufaturar materiais e relações. Seria uma análise pró-criativa, um mecanismo de uso. A primeira linha

poderia se aproximar de um caráter científico e, portanto, tender a uma imparcialidade, enquanto que a segunda linha seria mais subjetiva e parcial. Mas talvez ambas acabassem sendo parciais e finalmente dirigidas por interesses singulares. Concordamos com a compositora Mariza Rezende quando afirma: “Estes dois autores (Charles Rosen e Leonard Meyer), pinçados dentre muitos outros, apenas reforçam minha sensação de quanto uma ferramenta ‘metodológica’ – a análise -, no caso, pode ser dirigida para esse ou aquele fim, e revelar um interesse específico de seus autores” (REZENDE, 2012, p. 254). O uso criativo do mecanismo é ressaltado, por outro lado, por Carlos Almada: “Os escritos teóricos de Schöenberg sobre forma (e, mais especificamente, sobre a construção temática) focalizado na obra dos grandes mestres e voltadas para suas estratégias didáticas, serviram também de base para sua própria prática composicional” (ALMADA, 2009, p. 41). E, é claro, nada precisa estar só de um lado ou só de outro – ainda se referindo às duas possíveis linhas de análise – Schoenberg analisa processos históricos e propõe regras gerais que publica em sua obra teórica; de outro modo os frutos das mesmas análises lhe nutrem criativamente e o produto de suas composições é inovador e criativo. Não há porque haver uma hierarquização entre as duas linhas de análise. Mas há nesse esquema um posicionamento de uma ante a outra e vamos, de uma maneira ou de outra, neste trabalho com escopo definido precisamente em processos criativos, puxar o cabo-de-força para o lado da análise criativa (maquinaria). De certo modo, se partimos da noção de que a análise elucidativa também é motivada pela subjetivação, mas em vez do uso ela estabelece uma regra geral, um nomos, um entendimento – de modo que esse é o seu próprio uso – é possível dizer que o interesse último do analista é marcar a posição de um fenômeno, ou de uma ‘coisa’. Portanto, ao se criar um conceito, cria-se também uma determinada posição para um evento (de ordem natural ou artificial). E, como diz Bataille, “A posição é inteiramente efeito dessa vontade deformada. A posição é, em certo sentido, o oposto de uma coisa: aquilo que funda é sagrado, e a ordem geral das posições recebe o nome de hierarquia” (BATAILLE, 2013a, p. 82), ou seja, não é outra a intenção do analista da primeira linha que utilizar de nomenclaturas tecnocráticas e virtuoses de categorização para participar do jogo de relações micropolíticas do entendimento. É um jogo de forças: ele quer posicionar a coisa, o objeto de estudo, mas o que ele cria é uma ‘não coisa’, o conceito da coisa. Notemos como isso tem implicações em todas as esferas sociais, em todos os campos do entendimento, em toda comunicação humana. Se Bataille diz que a posição é efeito da

vontade deformada, podemos dizer que a criação é efeito da vontade deformante. Então a análise elucidativa cria um conceito e estabelece uma posição enquanto a análise prócriativa é um novo uso, produz uma outra coisa. A imagem do anjo de Benjamin com as asas abertas diante da ruína vislumbrando a tempestade pode-nos oferecer outro modo de ver essa questão. O filósofo nos diz que, em vez de ver uma cadeia de eventos, o anjo vê uma catástrofe única que acumula ruína sobre ruína e que um vento muito forte sopra do alto mantendo-o sempre com as asas abertas e o impelindo para o futuro. Há aqui a imagem de ruína para representar o passado em vez de uma linha temporal de eventos e uma tempestade para representar o futuro, ou melhor, a força que move ao futuro, força que Benjamin chama de progresso (BENJAMIN, 2014, p. 246). A catástrofe única que acumula ruína sobre ruína é fruto da vontade deformada, da conceptualização dos eventos passados, dos campos de ciência, dos sensos comuns. E a tempestade é fruto da vontade deformante, do desejo, da máquina de guerra, da potência de agir. É interessante observar como toda abstração conceitual decorre de uma incorporação e uma metaforização material-espacial. Devido a nossa compleição material e nossa capacidade sensorial apenas podemos experimentar de maneira direta o espaço e as materialidades que o preenchem. Qualquer outro nível intelectivo é dependente de metáforas da experiência do espaço e da matéria que o ocupa. Isso está permanentemente presente na linguagem com expressões como ‘lá atrás, quando eu era uma criança’ (não tem nada de fato lá atrás, o antes do tempo não é atrás no espaço), ou ‘de repente a discussão ficou pesada e os humores se esquentaram’ (a gravidade não afeta o teor das discussões e tampouco existe variação de temperatura em estados emocionais). De fato, é muito difícil falar de qualquer coisa que não seja espacial sem recorrer a metáforas da experiência espacial. Mesmo toda a base do termo e do conceito é alicerçada nessa metáfora. Para Kant tudo que é pensado é um continente e tem, por sua vez, um conteúdo (2012, p. 236). É um recipiente que tem seu interior repleto de uma substância. De maneira que toda infraestrutura do pensamento é baseada na metáfora espacial e, deste modo, condicionada por nossos sentidos e corpos. A música é um campo onde essa metaforização ocorre constantemente. Bosseur em Le Sonore et le Visuel cita vários exemplos de conexão entre as artes visuais e musicais, e mesmo, entre composições onde o projeto de escuta dos compositores foram motivados por experiências do espaço, em especial, ao comentar Volumina de G. Ligeti: “tem como uma aspiração para uma fusão dos conceitos de tempo e espaço através de uma notação

que nos leva a uma imagem ideal10” (BOSSEUR, 1992, p. 11). A peça trabalha com densidade, volume e preenchimentos. Nos Estudos para Piano (1992, p. 11) também de Ligeti o autor aponta para diversos procedimentos de escritura espacial como na subida de l’Escalier du Diable ou em Coloana Infinita, ou ainda, como a sensação de queda iminente em Vertige. Um aspecto importante inerente ao processo de colagem é o da sobreposição de elementos. A tradição da música ocidental, em especial, se alimentou da sobreposição de elementos de diversas maneiras desde a polifonia contrapontística, à composição de blocos de acordes, passando pelo contraponto atonal livre, a heterofonia etc. A metáfora da colagem musical foi um recurso muito aplicado no decorrer do séc. XX e a sobreposição ganhou evidência tendo como efeito a politonalidade, polirritmia, polimetria, politextura (STUCKENSCHMIDT, 1976, p. 82-83). Cope acredita que a collage emerge como uma técnica aplicada a sobreposições: Alguns compositores somaram o elemento da collage às técnicas politonais. Esse efeito combina politonalidade com distintas ideias. Os resultados normalmente

contém

polirritmias,

polimétricas

e

politexturas

pela

superposição de diversos estilos musicais... Collage ainda provê uma técnica viável para estabelecer e clarificar a politonalidade (COPE, 2001, p. 7).11

A collage é, portanto, uma técnica inventiva, com origem na análise do material durante os processos criativos, que devém de uma força da vontade deformante. O campo onde os recortes são colados é um campo metafórico-espacial, os próprios recortes decorrem do uso de ‘tesouras’ espaciais metafóricas aplicados sobre ‘tapetes’ de música. A collage promove uma desterritorialização, e posterior reterritorialização do recorte na malha de trama de citações, já que a nova música poli-tudo é o próprio discurso da itinerância produzindo momentâneos sentidos diversos para cada singularidade fazedora do entendimento. Se por um lado entendemos collage como produto das artes plásticas importado para uso musical, outros tantos produtos de uso musical também foram exportados para as artes visuais como exemplifica Cristiá: “A fuga pictórica como gênero... tem sido

10

Original em francês: Il y a comme l’aspiration à une fusion entre desconcepts de temps et d’espace, à travers une notation qui en livre une image idéale. (Tradução Livre) 11 Original em inglês: Some composers add the elements of collage to polytonal techniques. This effect combines polytonality with distinctly different ideas. The results often contain polyrhythms, polymeters and polytextures from the overlapping of diverse musical styles. … Collage therefore provides a viable technique to establish and clarify polytonality. (Tradução Livre)

frequentada por Ciurlionis, Kandinsky, Kupka, Klee e Mardsen Hartley, entre outros” (2012, p. 2). A sobreposição, o recorte e a interlocução entre diversas linguagens ou modos de fazer, não deixam de ser formantes de pontos de conexão, como se observa desde a colagem surreal, no início do século XX e, de maneira mais generalizada nas artes a partir da década de 1950 e nas tendências contemporâneas do século XXI. Como afirma Deleuze, a sobreposição, a possibilidade de se contar ‘várias histórias’ ao mesmo tempo, “é o caráter essencial da obra de arte moderna” (2009, p. 266). Quando falamos de Colagem de Citações já no título do capítulo temos a interlocução entre dois processos técnicos artísticos. Colagem pressupõe recorte e reutilização. Sua origem está nas artes visuais e pressupõe uma composição figural ou de síntese visual (GREENBERG, 1958, p. 1). Por outro lado, Citação nos conduz às artes do texto, às textualidades, ao paradigma da referência e do sentido, da sintaxe e da semântica, levando-nos, então, a uma composição encadeada de sentidos referenciais e narrativos. Deleuze e Guattari nos falam sobre a ideia de desterritorialização em Mil Platôs, e evocam seu primeiro teorema nos seguintes termos: Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve ver a reterritorialização como o retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela aplica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade ao outro que também perdeu a sua (DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p. 45).

Na proposta estética de Colagens de Citações aqui em estudo, é como se a semântica e a sintaxe do texto se desterritorializassem da linguagem comunicativa e, similarmente, as espacialidades das artes visuais (ideias como justaposição, sobreposição, equilíbrio, mistura...) se desterritorializassem da comunicação visual. A música passa a ser produto das novas reterritorializações, os recortes (citações que serão coladas) passam a ser novos territórios para os textos, e os sentidos, novos territórios possíveis de serem recortados. Em Máquina de Guerra e Aparelho de Captura, os autores enfatizam de tal modo a potência da desterritorialização que colocam a própria estrutura do pensamento

humano como desterritorialização dos valores do Estado. Para Deleuze e Guattari a estrutura do Estado não é produto do pensamento humano, mas em grande medida a estrutura do pensamento é que se constituiu de desterritorializações do Estado. Para os pensadores, há dois estatutos, ou duas cabeças do Estado, a do imperador-mágico e a do sacerdote-jurista. O imperador opera sua fundação e outorga, portanto, a realidade última do Estado, enquanto que o sacerdote trabalha com os campos de compensação, justiça (distributiva ou retributiva). Esses dois estatutos passaram a compor todo ordenamento do pensamento humano: o imperador mágico opera a noção de verdade última, de transcendentalidade, de mundo ideal; o sacerdote jurista estrutura toda noção de causa e efeito, de evolução histórica etc. Os estatutos do imperador-mágico e do sacerdote-jurista presentes na estrutura do pensamento acabam por enrijecer e fortalecer o próprio Estado e suas instituições (DELEUZE e GUATTARI, 2011c, p. 45-46). A Música constitui todo um arcabouço, um emaranhado de desterritorializações e reterritorializações, produto de agenciamentos maquínicos do desejo. A Música se vale da linguagem textual em canções; também se vale das artes marciais e das expressões corporais na dança; da sintaxe textual na produção do discurso musical; da sintética kantiana no desenvolvimentismo do classicismo-vienense; assim como, de valores místicos ou numerológicos em diversas tradições musicais ritualísticas. No século XX tivemos na música influência de modelos computacionais e matemáticos aplicados a escritura musical, a observação-análise de fenômenos e sistemas acústicos e eletroacústicos aplicados à estruturação musical, além de outras apropriações. Todos esses campos citados são partes de territórios extraídos (recortados) de seu local de origem (desterritorializados) e reterritorializados (colados) em contexto musical e, por sua vez, estabelecendo novos territórios. É importante frisar que toda desterritorialização é produzida por um agenciamento e que todo agenciamento é um “traço extraído do fluxo” (recorte), ou seja, compõe uma seleção de um elemento a ser extraído. Um agenciamento é, portanto, “uma verdadeira invenção” (DELEUZE e GUATTARI, 2011c, p. 94). O agenciamento não vem de nenhum outro local que não seja o desejo, ou como afirmam Deleuze e Guattari: Os agenciamentos são passionais, são composições do desejo. O desejo nada tem a ver com a determinação natural ou espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado. A racionalidade, o rendimento de um

agenciamento não existem sem as paixões que ele coloca em jogo, os desejos que o constituem, tanto quanto ele os constitui (Ibid., p. 83).

Todo produto criativo é uma composição do desejo, todo automóvel é uma composição do desejo, todo poema é uma composição do desejo, todo savoir faire é uma composição do desejo, cada arma de fogo é uma composição do desejo, cada corte de cabelo é uma composição do desejo, a classificação taxonômica de árvores, os nomes de oceanos, das constelações, dos planetas… planeta-anão, gigante vermelha... Toda extração de um elemento a ser colado é fruto de um agenciamento, portanto, é uma composição do desejo. Toda inserção de elementos em um território em constituição é uma composição do desejo. A racionalidade não existe sem o agenciamento do desejo. Toda paixão que devém social acaba por se tornar um entendimento. E a totalidade dos coletivos das racionalizações vem a compor aquilo que Espinosa chamou de “ente da razão” ou “intelecto” (ESPINOZA, 2012, p. 67). Cada sonata de Beethoven pode ser considerada uma composição do desejo (cristalizada no tempo), cada ópera de Wagner, cada improviso de Charlie Parker, cada tom salmódico, cada canção do Pink Floyd, também. Por vezes um desejo devém social e assim se originam estilos, modos de fazer e pensar música, modos de escutar. E o que denominamos Música poderia corresponder a um emaranhado de desejos, agenciamentos que aglutinados constituem parcialmente o ente da razão.

2.2 – Cubismo Analítico e Sintético Neste item voltamos a atenção a Charles Ives (1874-1954) e Igor Stravinsky (1882-1971), por serem importantes pontos de articulação para a música do Séc. XX, sendo suas composições fundamentais para o entendimento do uso do recorte e da colagem na primeira metade do século. Cone identifica três tipos de procedimentos aplicados por Igor Stravinsky ao longo da sua vida (1962, p. 20): 1) estratificação: apresentação de ideias musicais de maneira incompleta e fragmentada, além do estabelecimento de tensão entre segmentos sucessivos; 2) interlocução: retardamento na satisfação de expectativas;

3) síntese: alocação de diversos elementos cada vez mais próximos uns dos outros, convergindo para uma conclusão final. Como aponta Edward Cone, o uso desses três mecanismos possibilita que vislumbremos o fio condutor do “progresso do método” de Stravinsky (Ibid., p. 20). Em Ives o que chama a atenção são seus “livres empréstimos de quase qualquer material que possa se adaptar a sua mensagem12” (COPE, 2001, p. 201), ou como aponta Miguel Roig-Francolí: “o uso de música pré-existente… citadas ou integradas em sua música de diversas maneiras13” (ROIG-FRANCOLÍ, 2008, p. 146). O cubismo foi uma revolução estética ocorrida entre os anos de 1907 e 1914 tendo como fundadores Pablo Picasso e Georges Braque (MAC USP, 2016). Entretanto, comparar procedimentos composicionais ao cubismo é uma tarefa complexa. Como comentado por Cintia Cristiá, no século XX um trabalho destacado de comparação entre música e artes plásticas é o do compositor Jean-Ives Bosseur, que busca estabelecer em seus textos correspondências sensoriais, interações tempo/espaço e equivalências estruturais (CRISTIÁ, 2012, p. 4). Mas como afirma o próprio Bosseur, essas comparações não estabelecem uma teoria unificadora, tampouco pretendem formar uma visão única acerca dos campos das artes sonoras e visuais, pois nascem do fato de que em muitos momentos, músicos foram influenciados pelas artes visuais e vice-versa. Nas suas palavras: Numerosos são, de fato, os compositores que tomaram como fonte de inspiração uma obra visual. Mais ainda numerosos são os pintores que adotaram pensamentos musicais, ou uma partitura em particular, como base de reflexão ou de impregnação sensorial para sua própria concepção do tempo14 (BOSSEUR, 1992, p. 5).

Acerca dessa conexão, Cristiá estabelece duas dimensões de relação entre artes visuais e música. A primeira é a dimensão da ‘migração’ – quando um determinado elemento, temática ou técnica é migrado de uma linguagem artística para outra. A 12

Original em inglês: …his free borrowings of almost any material that suits his message… (Tradução Livre) Original em inglês: ...the use of existeing music, which Ives quotes or integrates into his own music in a variety of ways. (Tradução Livre) 14 Original em Francês: Nombreux son en effect les compositeurs qui on priscomme source d’inspiration une oevre picturale; encore plus nombreux sont les peintres qui ont adopté la pensée musicale, ou bien une particion en particulier, comme base de refléxion ou de impregnation sensorielle pour leur conception du temps. (Tradução Livre) 13

segunda é a dimensão da ‘convergência’ – onde elementos encontram-se integrados em uma obra envolvendo duas linguagens artísticas (CRISTIÁ, 2012, p. 4). Neste trabalho o foco está na dimensão da migração, por haver uma interlocução entre os processos que abarcam o cubismo analítico e sintético e as composições de Stravinsky e Ives, que exerceram grande influência no desenvolvimento de técnicas de composição musical durante o século XX. É possível ainda fazer comparação entre música e literatura. Sobretudo quando a criação musical se envolve com princípios de texto, subtexto, intertexto e hipertexto. Nesta pesquisa, tem papel fundamental a dupla comparação entre música e artes visuais e entre música e literatura. O próprio termo Colagem de Citações faz uso de dois conceitos onde o primeiro é extraído das artes visuais – a Collage surrealista (FONSECA, 2009, p. 54), e o segundo da literatura – a citação como a extração de um texto para adquirir novo sentido ou embasar o discurso (BICKNEL, 2001, p. 185). Assim como esses paralelismos não pretendem aqui apontar para uma teoria unificadora, também se destacam problemas no uso de terminologias específicas a cada linguagem, ao migrá-las ou transpô-las de uma a outra. Gustavo Penha, ao desenvolver pesquisa no âmbito da relação da composição musical com a textualidade afirma: Vale ressaltar que os termos não se equivalem, muito pelo contrário, cada conceito possui seus próprios limites e carrega consigo um modo de funcionamento

particular;

ele

está

diretamente

conectado

a

uma

epistemologia a partir da qual foi criado e com a qual opera (PENHA, 2013, p. 1).

Nessa pesquisa, Penha propõe uma reflexão acerca da hipertextualidade sob a ótica de Genette e sua aplicação em âmbito musical. Num hipertexto há duas maneiras de se tratar o texto fonte: 1) relação indireta: “texto construído a partir de elementos constituintes de um vocabulário e uma gramática provinda de um corpus de texto que forma um gênero ou estilo”; e 2) relação direta: “reescrita de um texto a partir de um outro texto determinado”. Numa relação indireta poderíamos dizer outra coisa da mesma maneira e na relação direta, dizer o mesmo de maneira diferente (PENHA, 2013, p. 5-6). Anne-Claire Gignoux também estabelece dois tipos de relação para tratar de reescritura: réécriture (re-escritura) quando o produto é uma nova versão de um texto

determinado, e récriture (rescritura) quando se trata de escrever um novo texto à maneira de um determinado estilo ou gênero. Se a réécriture é intertextual, a récriture é genética (GIGNOUX, 2006, p. 4). Henrique Iwao faz referência a dois tipos de presença na escritura musical, uma que se refere a algo – evocação, e outra que chama a presença de algo – invocação: ...pode-se, no entanto, estipular uma diferença de ênfase entre dois tipos de presença: uma que envolve prioritariamente o referir-se a algo, e outra que envolve prioritariamente o colocar algo. A questão incide se a presença reforça o que não está ali ou, contrariamente, o que está ali. Desta forma é estabelecida uma diferença poética: dado um empuxo rumo ao referir-se a, coloca-se a citação como mais próxima à evocação, ao passo que se considera a colagem musical eletrônica como mais próxima à invocação (IWAO, 2012: p. 95-96).

As três abordagens acima expostas tratam das mesmas ideias: - criar algo novo a partir de um estilo ou gênero; - criar algo fazendo uso específico de excertos de um material determinado. Em todas elas encontramos a utilização de termos e conceitos que se referem à textualidade e à visualidade, da mesma maneira como quando tratamos de Colagem de Citações (item 2.1 p. 32-52). O aprofundamento na comparação entre o cubismo e procedimentos composicionais requer a abordagem da ideia de simultaneidade na arte. Para Stuckenschmidt houve uma clara influência da simultaneidade sobre os pintores no início do século XX: Várias formas novas de arte têm despertado e podem ser explicadas e compreendidas apenas por referência à moderna e tecnológica vida urbana. A noção de simultaneidade deu uma nova visão à geração de pintores dos anos de 191015 (STUCKENSCHMIDT, 1976, p. 71).

15

Original em inglês: Various new art-forms have arisen which can be explained and understood only by reference to modern technological city life. The notion of simultaneity gave a new vision to the generation of painters of 1910. (Tradução Livre)

A ideia de que na vida contemporânea há um jogo de sobreposições e, que nossas experiências em centros urbanos se assemelham a projetos de collage ou recombinação, está explicitada no comentário de John Cage em entrevista a Bosseur: “eu penso que nossas experiências hoje em dia são experiências de reflexões, de transparências e de colagens: como se diz, vemos muitas coisas ao mesmo tempo” (BOSSEUR, 1992, p. 121). Para Cage o horizonte está para a visão assim como o tempo está para a audição, de modo que ver muitas coisas no mesmo campo visual é como ouvir muitos materiais sonoros ao mesmo tempo (Ibid., p. 121). A simultaneidade, entretanto, na música exerce papel importante desde suas origens. Stuckenschmidt aponta em seu livro Twentieth Century Music procedimentos de simultaneidades não usuais desde o século XIII, alguns motetos, por exemplo, com sobreposição de textos em línguas diferentes e com sobreposição de processos musicais e métricas diferentes (STUCKENSCHMIDT, 1976, p. 71-72). De certa maneira a polifonia como era aplicada mesmo dentro dos moldes mais tradicionais não deixa de ser um rico e complexo processo de simultaneidades. O próprio autor reforça ainda que no século XX a simultaneidade adquire novo sentido e passa a ser explorada de maneira mais intensa. Ele elenca obras como Sarcasmes (1912-1914) de Prokofiev, Bagatelas (1908) de Bartok, Segunda Sonatina (1912) de Busoni, Pelléas et Mélisande (1902) de Debussy, Salomé (1905) de Strauss e a obra pianística de Scriabin (1884-1914) como exemplos de emblemáticos projetos de simultaneidades do começo do século XX (Ibid., p. 77-78). É interessante observar que o cubismo se desenvolveu nesse mesmo período. Conforme Aline Karen Fonseca o cubismo analítico (primeira fase) se inicia em 1903 e adiciona: Dois dos primeiros artistas a romperem com o conceito de perspectiva e utilizarem as novas influências foram Georges Braque e Pablo Picasso, com o simultaneismo, para quem, desmembradas todas as partes do objeto, elas são vistas ao mesmo tempo (FONSECA, 2009, p. 55).

Para a autora o que define a primeira fase do cubismo é a “decomposição do objeto que é reorganizado em planos diferentes” (Ibid., p. 55). Não mais a sujeição a um ponto de vista, mas, buscar capturar a essência do objeto representando-o de maneira múltipla e simultânea. Esse projeto de simultaneidade passou por três aspectos de

desenvolvimento. Ruth Markus identifica o primeiro desses aspectos como “simultaneidade compreensiva”: no qual os fragmentos mais óbvios da experiência visual do objeto são representados na obra. O segundo aspecto é denominado pela autora como “simultaneidade do interior e do exterior”: no qual há elementos da experiência visual somados a elementos estruturais, internos, daquilo que normalmente não é possível ver. O terceiro e último aspecto identificado é o da “simultaneidade entre objeto e espaço”: no qual há a mistura dos elementos do objeto (internos e externos) com elementos do espaço que o objeto ocupa e, ainda, com os usos que se faz do objeto (MARKUS, 2013, p. 235). Em seu tratado, Stuckenschmidt comenta que entende as técnicas de polirritmia, polimétrica e politonalidade como mecanismos musicais para estratificar planos em ‘pontos de vista’ variados. Em seguida complementa: “de maneira geral existem muitas conexões entre a arte surrealista e a música escrita em dois ou mais planos tonais16” (STUCKENSCHMIDT, 1976, p. 80). Em Stravinsky: The Progress of a Method (CONE, 1962) Cone encontra em obras de Stravinsky, sobretudo no período entre 1904 e 1920, processos de estratificação, interlocução e síntese, associados a sonoridades fragmentadas, recortes e montagens (CONE, 1962, p. 19-20). Ao comparar o cubismo analítico com a obra de Stravinsky constatamos que enquanto no primeiro se busca representar a essência de um objeto através de simultaneidades de diferentes planos e perspectivas, no segundo, portanto em música, não se percebe a representação de um objeto, mas sim a apresentação do mesmo, inclusive nos seus fragmentos e transformações. Assim sendo, enquanto no cubismo há uma fragmentação da experiência do objeto representado de maneiras simultâneas, no ‘cubismo’ musical identificamos uma fragmentação do próprio objeto (obra musical) sendo

seus

recortes

reorganizados,

justapostos

e/ou

sobrepostos,

operando

simultaneidades e, dessa maneira, jogando com planos de perspectiva. Trompe l’oreille ao invés de trompe l’oeil. No início da segunda década do século XX a prática de Picasso avançou para o que se denominou de cubismo sintético, podendo também ser chamado de papier collé ou simplesmente colagem. Markus considera Guitar (1912)17 de Pablo Picasso como a mais importante obra de transição entre o cubismo analítico e o sintético (MARKUS, 2013, p. 233). A autora entende que no cubismo analítico o foco se situa no objeto 16

Original em inglês: In general terms, too, there were very close connections between surrealistic art and music written on two or more tonal planes. (Tradução Livre) 17 2ª versão (1914)

representado, na expressão de sua essência por meio da sobreposição de planos de seus elementos. Já no cubismo sintético o foco se desloca para a própria visão subjetiva do artista, que reúne tudo que está ao seu alcance para realizar o produto a ser elaborado (MARKUS, 2013, p. 237). É como comenta Luiz Renato Martins: “a colagem combina referências óticas e elementos táteis. Na produção, recorre fragmentos de materiais diversos ao alcance da mão” (MARTINS, 2007, p. 8). Esta mudança de foco causa um forte impacto na maneira de se pensar arte no século XX, talvez a maior mudança de paradigma dentro do modernismo (GREENBERG, 1958, p. 1). Partindo desse referencial é interessante observar como a obra de Charles Ives estabelece pontos de conexão com o cubismo sintético. Algumas de suas obras são como que composições acústicas de ‘lugares’. Podemos citar como exemplo Central Park in the Dark (1909), Putnam’s Camp (1912) ou The Fourth July (1912). Em todas essas peças percebe-se como o compositor construiu a paisagem sonora de um ‘local’, colando e sobrepondo elementos de experiências musicais e sonoras previamente vividas ou simuladas nesse local, ou seja, fazendo uso daquilo que está ao alcance de suas ‘mãos’. Ora hinos religiosos ouvidos ao longe, ora canções da guerra civil americana, ou até marchas e fanfarras tradicionais de paradas comemorativas. Burkholder chega a elencar catorze categorias de meios de reutilização de material musical existentes na obra de Ives, as mesmas apontando para toda uma gama de possibilidades de re-uso (BURKHOLDER apud ROIG-FRANCOLÍ, 2008, p. 146147): 1) Modelagem, de uma obra ou seção de obra; 2) Variações de uma canção ou melodia; 3) Parafrasear uma canção existente para criar uma nova melodia; 4) Configurar uma canção existente com um novo acompanhamento; 5) Cantus Firmus, apresentar uma melodia dada com notas longas acompanhada por texturas mais movidas; 6) Medley, justaposição de melodias existentes; 7) Quodlibet, combinação de duas ou mais melodias existentes em um contraponto de rápida sucessão; 8) Alusão estilística, não a uma determinada obra, mas a um gênero; 9) Transcrição de uma obra para novos meios (instrumentação); 10) Citação programática, para expressar um programa extramusical;

11) Configuração cumulativa, onde a melodia citada só aparece claramente no fim da peça, antes, por toda ela, desdobramentos e transformações são apresentados; 12) Collage, um rodamoinho de citações e paráfrases ao mesmo tempo; 13) Miscelânea, onde dois ou mais fragmentos de melodias estão costurados juntos; 14) Paráfrase estendida, onde a melodia inteira de uma peça ou seção é a extração literal de uma melodia existente. De maneira resumida há a colagem por justaposição e/ou por sobreposição de elementos musicais ao alcance do compositor, como o trompe l’esprit de Picasso (MARKUS, 2014, p. 237). É de fato interessante observar a proximidade cronológica entre os eventos artísticos apresentados aqui. Os processos criativos e as escrituras musicais empregadas tanto nas primeiras obras de Stravinsky quanto nas obras de Ives se aproximaram respectivamente do cubismo analítico e do cubismo sintético. Sem pretender uma afirmação categórica, constata-se apenas que, por meios diferentes, vários gestos criativos similares se produzem em sincronia. Entende-se assim que os processos de fragmentação, recorte, estratificação e sobreposição por camadas integram o que seria uma tentativa de sobrepor planos de perspectiva no fazer musical. A esses processos podem se agregar outros de polirritmia, polimétrica, politextura ou politonalidade. Um passo adiante seria aceitar também a inserção de materiais externos pré-existentes, após recortá-los, reagrupá-los e transformá-los para acomodação em uma nova peça.

2.3 – Sincronicidade – Processos mânticos – Desterritorialização – Caos que cria

Sincronicidade é um conceito cunhado por Carl Gustav Jung em seu livro homônimo publicado em 1951. Segundo o próprio autor as ideias de sincronicidade já o ocupavam desde 1920, mas o livro só foi finalizado mais de trinta anos depois (JUNG, 1971, p. XI). Nele, Jung busca lançar luz ao que chama de “princípio de conexão acausal significativa”. Ou seja, acontecimentos da experiência humana que coincidem,

tem significado devido a essa coincidência, não havendo indícios para estabelecer uma relação causal (causa-efeito) que pudesse justificar a conexão. Dois fatores são necessários para a constatação da incidência de um fenômeno de sincronicidade: 1) Uma imagem inconsciente alcança a consciência de maneira direta (literalmente) ou indireta (simbolizada ou sugerida) sob a forma de um sonho, associação ou premonição; 2) uma situação objetiva coincide com esse conteúdo” (JUNG, 1971, p. 25).

Imagem pode ser qualquer estrutura inteligível, inclusive sonora. “Inteligível é aquilo que em um objeto dos sentidos não é ele próprio fenômeno” (KANT, 2012, p. 432). Ou seja, na mente do compositor, o material musical, o fluxo sonoro, estruturações e demais agenciamentos do material, por serem estruturações inteligíveis, são potências de imagens. No ato da composição, as imagens sonoras podem tanto ser produzidas por processos criativos conscientes, como por processos emergentes do inconsciente para o consciente. Além disso, a sobreposição arbitrária, ou aleatória, na composição por meio de colagem proporciona simultaneidades potencialmente significativas. Ainda mais se partirmos da ideia de que o sentido do objeto musical se dá por meio de um ato de vontade. Para Jung,

uma questão

desconhecida seguida de

uma resposta

incompreensível são as condições ideais para a experiência mântica (JUNG, 1971, p. 29). Adicionando que a causalidade do posicionamento dos recortes não obriga a natureza se manifestar, mas muitas vezes aponta para um caminho possível dentro de um determinado processo pré-estruturado, como um plano de imanência emergindo do causal encontro entre diferentes fragmentos. Jung, nesse pequeno tratado, tem dificuldade de estabelecer uma metodologia eficaz. O que é evidentemente esperado, pois se trata de um objeto de estudo acausal. Não estando, a sincronicidade, sob o jugo da lei de causa e efeito, qualquer tipo de metodologia formalista, estruturalista ou construtivista aí aplicada não seria eficaz. Percebendo que sua busca estava imbuída de ineditismo e que o pensamento dogmático da comunidade científica poderia tecer uma série de entraves em relação aos seus estudos, ele desabafa:

...que todas as épocas anteriores eram preconceituosas, e estamos, portanto, tão errados quanto todas as épocas anteriores que pensavam desta maneira. Quantas vezes não vimos a verdade condenada! É triste, mas infelizmente, é verdade que os homens não aprenderam a lição da História. Este fato nos trará as maiores dificuldades, pois, ao nos prepararmos para recolher o material empírico que lançará um pouco de luz sobre um assunto tão obscuro, estamos certos de encontrá-lo justamente onde todas as autoridades nos garantiram que nada poderia ser encontrado (JUNG, 1971, p. 27).

Jung estabelece, portanto, uma espécie de metodologia negativa. Ele apresenta casos ou estudos onde ocorreram conexões entre imagens emergindo ao consciente com eventos ou fenômenos experimentados onde não foi possível estabelecer nenhuma explicação causal e, tampouco, acreditar na probabilidade incidental da coincidência. Um dos estudos de Jung nos chamou a atenção por ilustrar bem as ideias de acausalidade na sincronicidade. Trata-se de um texto extraído da pesquisa do parapsicólogo Joseph Banks Rhine, que durante a década de 1930 publicou obras como Extra-Sensory Perception e New Frontiers of the Mind (JUNG, 1971, p. 16). Dentre os estudos de ESP18 apresentados por Rhine destacamos um que tratava da adivinhação de cartas sorteadas em um baralho. O baralho em questão tinha vinte cinco cartas agrupadas em cinco grupos, cada grupo contendo cinco cartas, a saber: cinco cartas com um círculo desenhado, cinco com uma estrela, cinco com um quadrado, cinco com uma cruz e cinco com três ondulações. O experimento seguia da seguinte maneira: Rhine embaralhava as cartas e sorteava uma. Em seguida olhava para a carta. O sujeito experimentado, que já conhecia as possibilidades da variedade de cartas, deveria dizer qual delas estava na mão de Rhine sem que pudesse vê-la. Evidentemente, como a probabilidade era de 5/25, esperava-se uma média de acertos de 1/5 (20%), correspondendo à media esperada de acertos para tentativas ao acaso. Cada participante foi experimentado oitocentas vezes e cada experimento consistia em dizer toda uma sequência de vinte e cinco cartas do baralho que havia sido sorteado. O experimento foi realizado com centenas de pessoas em períodos diferentes, faixas etárias diferentes e localidades diferentes entre 1930-31. A média geral de acertos foi de 6.5, o que demonstrou um desvio considerável em relação à média esperada (20% de 25 seriam 5 acertos). Entretanto, o que realmente chamou a atenção foram os resultados de um jovem adulto que obteve uma média de dez acertos ao longo da série de oitocentas 18

Extra-Sensory Perception

experimentações (que seria o dobro da média probabilística esperada). Em uma das experimentações ele acertou exatamente as vinte e cinco cartas, alcançando um resultado cuja probabilidade era de 1 em 298.023.223.876.953.125. Como os resultados desse jovem foram extraordinários, ele foi retirado do grupo de pesquisa e passado para experimentações especiais, tendo ficado nítido que se existisse percepção extrasensorial esse jovem era um exemplar habilidoso de prova afirmativa. O primeiro experimento especial consistiu em submeter o jovem a dizer quais foram as cartas sorteadas em distâncias diferentes. A uma distância de duzentos e cinquenta milhas ele alcançou uma média de 10.1 acertos. Em outra série de experimentos, estando na mesma sala do experimentador o jovem alcançou uma média de 11.4 acertos. Estando em uma sala adjacente obteve 9,7 acertos e, a duas salas de distância 12.0 acertos (sempre por 25 tentativas). As distâncias foram aumentadas para 960 (1.544 km) milhas ou até 4.000 milhas (6.437 km - Carolina do Norte – Iugoslávia) e os resultados médios se mantiveram estáveis. Quando foi inserido na pesquisa o fator temporal, os acertos surpreendentemente permaneceram. Ao invés de fazer os sorteios em tempo real, o cientista passou a fazê-los com um dia de antecedência. Depois, diante do experimentado, fingia estar sorteando as cartas do dito baralho enquanto o jovem dizia quais eram as cartas sorteadas, mas ainda nesse caso a média se manteve. E, por fim, o experimentador fingia estar tirando as cartas enquanto o jovem dizia a sequência, para somente depois as cartas realmente serem sorteadas. Mesmo nesse caso a média não teve alteração relevante. Observemos que antever o sorteio de uma carta sem poder vê-la é um claro e simples exemplo de sincronicidade, pois, conforme o próprio conceito de Jung, há uma imagem que emerge ao consciente (na mente do jovem) que coincide com um fenômeno experimentado (nas mãos do experimentador). Entretanto, o que revela essa experiência vai além disso. A suposição de que a explicação para fenômenos de ESP seja por meio de transmissão de energia não se verifica, pois o índice de acertos permaneceu constante apesar da variação espaço-temporal. O que Jung propõe a partir disso seria outra maneira de ver o mundo e a própria psique: Atribuo aos corpos em movimento uma certa propriedade psicóide que, como o espaço, o tempo e a causalidade, constitui um critério de seu comportamento. Devemos renunciar inteiramente à ideia de uma psique ligada a um cérebro e

lembrar-nos, ao contrário, do comportamento significativo ou inteligente dos organismos inferiores desprovidos de cérebro. Aqui nos encontramos mais próximos do fator formal que, como dissemos, nada tem a ver com a atividade cerebral (JUNG, 1971, p. 71).

Se por um lado tais eventos parecem não receber qualquer influência da causalidade espacial e da contingência temporal, por outro, há a indicação de que estão totalmente relacionados com o estado de ânimo dos indivíduos que os experimentam. No caso do jovem do experimento de Rhine sua média somente abaixava quando ele já demonstrava que estava entediado ou estafado devido aos experimentos sucessivos. Geralmente, no começo das séries, quando ainda apresentava grande interesse, as médias de acerto permaneciam altas. Jung lista outros casos, inclusive alguns clínicos de sua trajetória como psicanalista, como os de outros pesquisadores de parapsicologia, ou até mesmo relatos de alquimistas e magos de séculos anteriores, havendo em todos envolvimento emocional intenso daquele que experimentava a conexão acausal com o significado em sua consciência e o experimentado fenômeno. Repassando: o que Jung defende com o conceito de sincronicidade é que há na experiência humana a co-incidência entre eventos psíquicos que emergem à consciência e eventos materiais que são experimentados enquanto fenômenos. Esta co-incidência aponta para uma ligação direta entre as experiências psíquica e material que se relacionam, e acabam fazendo sentido, mas sem haver qualquer indício de causalidade que as conecte. Jung não propõe que deva haver algum tipo de causalidade ainda não conhecida, mas, ao contrário, a existência de um mundo acausal, de tipo psicóide, onde não há causalidade, nem tampouco transmissão de energia. Além disso, Jung evidencia que

práticas

mânticas

se

encontram

nas

mais

diversas

culturas

como

ferramentas/mecanismos para estabelecer tais conexões com o inconsciente. Em Sincronicidade (JUNG, 1951), Jung dá atenção destacada ao I Ching e à Astrologia em meio a diversos outros processos mânticos. Apresentamos aqui uma relação comentada das práticas mânticas mais conhecidas, na tentativa de encontrar algum viés em comum em seus usos. Para tanto listamos aqui algumas práticas e os respectivos processos de adivinhação (DEL RIO, 2000, p. 148-188).:

1) Aeromancia: método de adivinhação por meio das direções e intensidades de ventos, posição e forma das nuvens; 2) Aleuromancia: método de adivinhação por meio de biscoitos da sorte; 3) Antracomancia: por meio do carvão incandescente; 4) Apantomancia: por meio de encontros inesperados com animais; 5) Astromancia: por meio dos astros, suas posições e movimentos; 6) Bibliomancia: por meio da interpretação de palavras ou frases extraídas de livros abertos ao acaso; 7) Cafeomancia: por meio da interpretação do formato da borra do café; 8) Cartomancia: por meio do sorteio de cartas, seus símbolos e sua numerologia; 9) Cleromancia: por meio do sorteio de dados; 10) Cristalomancia: por meio das formações em cristais, bola de cristal; 11) Necromancia: por meio da posição de ossos ou restos mortais; 12) Oniromancia: por meio de experiências vividas em sonhos; 13) Quiromancia: por meio do formato da mão, e das linhas e marcas nas mãos e unhas. Por mais que pareçam métodos completamente heteróclitos - até por serem oriundo de culturas, épocas e povoações distintas – podemos encontrar um aspecto comum a todos eles: o caos aparente. De certo modo, cada mancia procura uma relação com o caótico aparente, ou pelo menos com ausência de controle. Essa relação se dá de duas maneiras possíveis (DEL RIO, 2000): ou buscando respostas em formações complexas que a observação sensorial não possibilita uma explicação causal dedutiva (posição dos astros, borra do café, formato das linhas na palma da mão), ou em um jogo direto com o acaso em prática dinâmica (lance de dados, sorteio de cartas, lançamento de runas ou búzios). No primeiro caso se observa passivamente o produto do caos aparente em sua duração. No segundo, o próprio desejo ativo do observador anima os objetos para propiciar a formação (pseudo-)caótica. De um ponto de vista positivista poder-se-ia alegar que não há nada de aleatório na posição dos astros, nuvens, borras... e que o conhecimento das leis da natureza e precisão nos cálculos poderiam explicar cada um desses acontecimentos e suas formações. Mas não é esse o foco aqui: se o fosse usaríamos Hume e sua noção de hábito que refuta inapelavelmente a causalidade cartesiana (HUME, p. 73-75). Mas a questão é, de fato, como a cognição humana se comporta diante de objetos que, sem

cálculos e averiguações dedicadas, acabam se formando de maneira acausal. Constatase que a racionalidade é superada pela evidência do fenômeno em sincronicidade. No caso da aplicação de processos mânticos às artes, do ponto de vista criativo, pode-se operar da mesma maneira, ou seja, construindo ambientes de grande complexidade para então induzir a percepção a uma condição de ausência de controle; ou, ainda, produzindo um jogo direto com o caos por meio da aleatoriedade. Em ambos os casos a atenção dedicada poderá fazer emergir do inconsciente uma conexão de sentido acausal. As pessoas brigam por liberdade de expressão, quando deveríamos brigar por liberdade de impressão (ALVIM apud Groza, 2015, p. 151).



Uma ajuda de Bataille:

Faremos aqui algumas considerações conceituais a partir da obra de Georges Bataille. Em O Erotismo Bataille nos fala sobre a continuidade e a descontinuidade do ser. Sendo descontinuo tudo aquilo que participa da vida, da experiência fenomênica, onde, tudo que vem a se manifestar, são objetos parciais. Por outro lado, a continuidade está sob o domínio da morte, força destruidora que a todos os objetos parciais corrompe para a sustentação contínua e eterna de Deus: Da continuidade do ser, limito-me a dizer que ela não é, a meu ver, cognoscível, mas, sob formas aleatórias, sempre contestáveis em parte, sua experiência nos é dada. Em minha opinião, a experiência negativa é a única digna de atenção, mas essa experiência é rica. Jamais devemos esquecer que a teologia positiva tem como duplo uma teologia negativa, fundada na experiência mística (BATAILLE, 2013b, p. 46).

Nesse enunciado o pensador usa os termos ‘teologia positiva’ e ‘negativa’, ‘experiência negativa’ e ‘experiência mística’, apontando para aquilo que nos é dado na experiência, mas de modo aleatório, fragmentado, incognoscível. Justamente por isso, esse tipo de experiência é facilmente contestada no campo do senso comum, dentro dos processos de pensamento racionalista ou formalista. Mas Bataille reafirma seu interesse justamente na experiência negativa:

Ela (a experiência negativa) introduz, no mundo dominado pelo pensamento ligado à experiência dos objetos (e ao conhecimento do que a experiência dos objetos desenvolve em nós), um elemento que não tem lugar nas construções desse pensamento intelectual, salvo negativamente, como uma determinação de seus limites. Com efeito, o que a experiência mística revela é a ausência de objeto. O objeto se identifica à descontinuidade e a experiência mística, na medida em que temos a força de operar uma ruptura de nossa descontinuidade, introduz em nós o sentimento de continuidade (Ibid., p. 46).

Ou seja, cada objeto, em suas parcialidades, são membros do mundo da descontinuidade (efemeridade, disjunção). Mas a experiência mística participa da nossa vida por contágio, nos permitindo um vislumbre da continuidade, da morte, do inconsciente, do sublime. Aqui, entendemos que a ideia de continuidade de Bataille se aproxima ao conceito de mundo psicóide e não energético de Jung. Mundo esse que apenas podemos experimentar de forma desconexa, fragmentada e sem causalidade, o que dá sustentação ao mundo do fenômeno. Normalmente experiências de sincronicidade ocorrem mediante envolvimento emocional intenso produzindo alteração do estado de consciência e permitindo o vislumbre da experiência negativa ou do mundo psicóide. Para trazer a experiência (negativa) do mundo psicoide para o mundo positivo seria necessário um processo de emersão no qual intuímos poder ser alcançando através de uma conexão mântica. Certamente deveríamos refletir com muito mais atenção a respeito da relação entre o envolvimento emocional nos experimentos aqui apresentados e o deleite estético no caso de uma contemplação artística.

Já o conceito de desterritorialização de Gilles Deleuze e Félix Guattari se refere à condição humana vinculada a territórios e processos de trânsito (migração, passagem) pelos mesmos (a produção do caos que cria). Nesta reflexão, território pode ser qualquer coisa, tanto algo geográfico, como emocional ou relacional. Como já vimos no item 2.2 os territórios são agenciamentos do desejo: ...o desejo cria territórios, pois ele faz uma série de agenciamentos... o território é um agenciamento. Os agenciamentos extrapolam o espaço geográfico, por esse motivo o conceito de território de Deleuze e Guattari é

extremamente amplo, pois, como tudo deve ser agenciado, tudo pode ser também desterritorializado e reterritorializado (HAESBAERT e BRUCE, 2012, p. 5).

Podemos adicionar ainda que “Pensar é desterritorializar, isso quer dizer que o pensamento só é possível na criação e para se criar algo novo, é necessário romper com o território existente, criando outro.” (HAETSBAERT e BRUCE, 2012, p. 9). A música em si é um exercício de desterritorialização, ou como diz Deleuze: “eu chamo, estritamente, de máquina abstrata musical o processo de desterritorialização sonora.” (DELEUZE, 1973, p. 183). Por assim dizer: a música é o som desterritorializado. Mas toda desterritorialização é seguida de uma reterritorialização. Então o som se desterritorializa pelo artifício do homem na música. Porém, o som musical novamente se reterritorializa na própria obra resultante e na cultura (estilo, maneira, período, técnica, processo). O recorte é uma nova desterritorialização (ou redesterritorialização) e a colagem, em seguida uma nova reterritorialização. A análise musical se dá no ato de recortar territórios pré-existentes. Estes territórios podem ser literais, transformados ou estilísticos. O agenciamento sistemático de desterritorializações e reterritorializações pode configurar um esquema difuso, portanto de multiplicidades, adquirindo um caráter rizomático. O “rizoma funciona através de encontros e agenciamentos, de uma verdadeira cartografia de multiplicidades” (HAESBAERT e BRUCE, 2012, p. 4). Num rizoma, os elementos articulados, os conceitos, não estão hierarquizados, não partem de um ponto central nem de um centro de poder ou de referência. Nesse modelo “criam-se novas modalidades de subjetivações da mesma maneira que o artista plástico cria novas formas a partir da paleta que dispõe” (GUATTARI apud BRITO, 2012, p. 9). O modelo rizomático pode promover o caos que cria. Esse ambiente pode ser denominado como fluxo da multiplicidade, fluxo este alcançado na obra de Stockhausen, comenta Deleuze: “fluxos que se descodificam, se desterritorializam, construindo verdadeiramente uma multiplicidade” (DELEUZE, 1973, p. 60). O ambiente alcançado é complexo e, por vezes, incompreensível. Um ambiente-escuta desterritorializante. Esse descontrole, esse não lugar comum pretendese que seja um ambiente múltiplo e irracional, favorável à emersão.

Dialogando com os platôs intitulados 1227 – Tratado de Nomadologia: A Máquina de Guerra e 7000 a.C. – Aparelho de Captura do quinto volume dos Mil Platôs de Deleuze e Guattari (2011c) podemos resumir a seguinte ilustração de como os autores entendem a desterritorialização: na era dos primeiros homens, milhares de anos atrás, enquanto que para as demais povoações animais a migração somente ocorria por necessidade, ou seja, quando alimentação, ecossistema ou procriação eram ameaçados, para as povoações humanas o nomadismo ocorria num plano no qual esses três pilares estivessem em harmonia. Em outras palavras, se havia caça para se alimentar, casais para procriar e condições climáticas e geográficas adequadas, as espécies animais não migravam, como continuam não migrando nos dias de hoje. Por outro lado, mesmo com as condições básicas de sobrevivência asseguradas, o homem continuava seu trânsito. Além de desenvolver vestes pesadas contra o frio, procedimentos para conservar alimento e água na travessia de um deserto, sistemas de carga, escalada etc. o homem ainda tinha a necessidade de conhecer o que havia por detrás de uma montanha, ou em cima dela. O nomadismo seria então característica pulsante essencial na natureza humana (DELEUZE e GUATTARI, 2011c, p. 135-137). As mudanças de condições e hábitos envolvidos na passagem de um contexto nômade para o sedentário implicam em enfrentamento de desafios a novos fluxos, códigos, procedimentos, rotinas, tecnologias, o que, portanto, caracteriza uma saída de um território e um ingresso e uma acomodação num outro. Quando o homem pôde repousar suas pernas e braços ele passou a se desterritorializar no, então, neófito mundo do pensamento. Por isso dizemos que todo pensamento é uma desterritorialização (HAETSBAERT e BRUCE, 2012, p. 9). No nomadismo, cada desterritorialização pode ser sucedida por uma reterritorialização. Atrás de cada montanha, de cada desconhecido, pode haver um novo território. Desterritorializações de pensamentos, de conexões entre pensamentos, de linguagens, tradições (orais ou registradas), religiões, maneiras de viver, culturas, técnicas, processos, métodos, conhecimentos, hábitos, rituais, moedas. Os torpedos SMS desterritorializados e reterritorializados como whatsapp em nova plataforma deixaram o território da telecomunicação via satélite e entraram no domínio da internet. O SMS, por sua vez, veio do BIP, este via radio, que veio do telegrama, via onda hertziana, que veio do telegrama, via cabo, e assim essa ordem seguiria sucessivamente.

Quando dirigimos nossa atenção ao campo da estética, percebemos que se evidenciam configurações de territórios. Livros de história da arte podem ser considerados quase como livros de ‘geografia artística’ no qual os territórios conhecidos e consagrados são apresentados e categorizados. Não como continentes, países, ilhas, rios, relevos, mas como linguagens, gêneros, práticas, técnicas, estilos, movimentos, nos respectivos períodos históricos. ‘Lugares’ inóspitos, novos, pouco explorados, podem causar desconforto aos tratadistas. No campo específico da música, temos comumente a categorização por estilo que combina período histórico, localização geográfica e materialidade musical: a primeira escola de Viena, o romantismo russo, o barroco tardio, são exemplos dentro da chamada música erudita, popularmente conhecida como música clássica [sic]. E, por outro lado, exemplos como o punk britânico, o rock progressivo, o jazz-fusion, na esfera da comumente denominada música popular. Assim como em mapas, temos territórios dentro de territórios, municípios dentro de estados, estados dentro de países. Os territórios estéticos se encontram em estados e ambientes extremamente dinâmicos, nos quais, contágios, influências, interferências, transformações e desterritorializações podem ocorrer em função dos regimes de velocidades em jogo. Há contaminações do rock no manguebeat, do jazz na bossa nova, das ragas em Messiaen. Diante dessa efervescente volatilidade (nomadismo) constatada propomos aqui que o agente no campo das artes possa transitar entre territórios de três maneiras distintas: 1) Negação - negar a todo custo a transformação e a contaminação corrosiva. Esse tipo de agente costuma viver preso ao passado e, normalmente, acredita que já sabe tudo, e que já possui e domina tudo. Nessa categoria abundam certos tipos de intérpretes, críticos de arte, musicólogos... inclusive estetas e historiadores; 2) Aceitação - deleite nos contágios por vizinhança. Interesse em manter os olhos abertos e os ouvidos apurados para perceber linhas de fuga, correntes de intensidades. Nessa maneira temos o ambiente repleto de artistas práticos que se encantam com os contágios, as interferências, as influências suscitando movimentos e fluxos; 3) Devir – o agente além de perceber as intensidades no fluxo, passa também a atuar como modulador/potencializador destas, se torna agente do caos que cria.

Tais agentes funcionam como dínamos, bombas, máquinas, que passam o tempo todo produzindo choques, novos encontros, planos de fuga. Aqui temos os artistas marginais, os supostamente ou demasiadamente excêntricos e os pesquisadores incansáveis. Todo esse processo de contágio, interferência e influência promove uma criação contínua e renovada, como identifica Deleuze e Guattari, um Juízo de Deus: Os ritmos remetem a esses movimentos interestráticos, que são, igualmente, atos de estratificação. A estratificação é como a criação do mundo a partir do caos, uma criação contínua, renovada, e os estratos constituem o Juízo de Deus. O artista clássico é como Deus, ao organizar as formas e as substâncias, os códigos e os meios, e os ritmos, ele cria o mundo (DELEUZE e GUATTARI, 2011c, p. 230-231).

Nesse ponto entendemos ser fundamental apresentarmos a noção de dupla visão de mundo elaborada por Deleuze e Guattari, segundo os quais há dois modos de se relacionar com o mundo. O primeiro foi denominado: plano de organização, plano de transcendência, ou ainda, plano de desenvolvimento. O segundo, plano de consistência, plano de composição. A seguir temos uma apresentação dos dois planos em oposição dicotômica: 1) Formas desenvolvem-se, sujeitos formam-se, em função de um plano que só pode ser inferido (plano de organização-desenvolvimento); 2) só há velocidades e lentidões entre elementos não formados, e afectos entre potências não subjetivadas, em função de um plano que é necessariamente dado ao mesmo tempo que aquilo que ele dá (plano de consistência ou composição) (Id., 2007, p. 57).

De modo que o plano de transcendência ou de organização somente pode ser inferido, pois se trata do efeito de criações mentais do agente diante do mundo, das quais decorrem estratificações. Formações territoriais e construções de muros e fronteiras bem delimitados. O modo de ver o mundo através do plano de transcendência é hegemônico e participa dele, em grande medida, as ciências naturais, a história, a estética, a religião, e até mesmo a filosofia escolástica. Um exemplo possível desse modo de ver seria observar como a biologia separa, através da taxonomia, os seres em

grupos de categorias: reinos, filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies. Sendo o reino um grupo de filos, um filo um grupo de classes, uma classe um grupo de ordens etc. Entretanto, essas classificações são apenas interpretações (inferências) da natureza e não objetos originalmente dados por ela. Certamente não é possível experimentar a presença física de níveis de classificação, pois não são nada mais do que categorias criadas artificialmente pela razão humana. Não esperem encontrar diante de si o reino animalia, ou o filo chordata, tampouco a classe mammalia, ou ainda, a ordem carnivora, a família canis, o gênero canidae ou a espécie canis familiaris. Todas essas classificações foram criadas pelos pesquisadores interpretando o que observavam. A única coisa que podemos constatar é aquilo que percebemos. Portanto observar um cão que aprende a atravessar a rua no semáforo, ou que aprende trejeitos faciais e corporais para dizer que quer ser alimentado. A percepção por meio do plano de transcendência agrupa conteúdos já inventariados em função de suas características. De modo que cães tem focinho, lobos também; cães tem apetite por carne, lobos também; cães tem olfato apurado, lobos também. E por colecionarem uma grande gama de características semelhantes estão no mesmo reino, filo, classe, ordem, família e gênero. Mas dificilmente teremos a presença de um lobo e de um cão juntos na mesma cena (exceto se frequentar as rinhas da pior categoria). Por outro lado, encontram-se muitos cães no colo de seres humanos e pulgas nos pelos dos cães. Mesmo homens, pulgas e cães tendo cada um suas classificações taxonômicas muito distintas. O que os coloca juntos são suas velocidades e lentidões, seus agenciamentos, suas cartografias. Aquilo que de fato “é dado no exato momento em que se dá”; no plano de consistência. Eis o lema da etologia, o lema do plano de consistência: Assim como evitávamos definir um corpo por seus órgãos e suas funções, evitamos defini-lo por características Espécie ou Gênero: procuramos enumerar seus afectos. Chamamos ‘etologia’ um tal estudo, e é nesse sentido que Espinosa escreve uma verdadeira ética. Há mais diferenças entre um cavalo de corrida e um cavalo de lavoura do que entre um cavalo de lavoura e um boi (grifo nosso) (Ibid., p. 42).

Alguém poderia imaginar que essa argumentação serviria como crítica aos adeptos do plano de transcendência, ou que essas palavras defendem que tal plano seria

falso ou irreal. Mas, categoricamente, não é esse o caso. O que está sendo explicitado aqui é que o plano de transcendência é fruto da criação mental, e como algo que foi criado, existe (o piano foi criado e existe, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado e existe). O que está sendo denunciado aqui é que certas correntes de pensamento, habitantes do plano de transcendência, acreditam que suas categorias, agrupadoras de coleções de características, sejam categorias a priori, ou seja, que essas organizações sejam inerentes ao mundo e não inventadas pelos seres humanos. Nenhuma das acepções do termo música clássica é naturalmente inerente ao mundo, mas se formaram progressivamente por estratificação no pensamento humano. Ora, talvez o mundo da arte seja aquele sobre o qual mais fortemente as estratificações no plano de transcendência exerçam poder. Pois o mundo da arte é habitado apenas por artifícios, elaborações do pensamento, desterritorializações e reterritorializações, ocorrendo no plano mental. Os biólogos inferem categorias de famílias ou filos sobre todos os seres que observam na natureza. Os astrônomos estabelecem constelações, galáxias e outros sistemas, sobre corpos celestes que observam no cosmos. No caso das ciências humanas a atribuição de categorias se dá de maneira mais complexa. Tomemos como exemplo a teoria de classes de Marx (1991, p. 1012-1013); evidentemente que a classe proletária é uma inferência tributária do plano de transcendência, estabelecida através de um inventário de teres (em última análise, na quantidade de filhos que se tem). Mas diferente da Biologia, onde os animais agrupados em um filo realmente existem na natureza, na Sociologia, os homens agrupados sob a categoria do proletariado em parte existem na natureza e, em parte, existem enquanto construções socioculturais (em última análise construções em nível de estratificação mental). Já no campo estético os objetos a serem classificados são todos artificiais, pois nenhum deles é dado, enquanto tal, pela natureza. Assim, as sinfonias clássicas da primeira escola de Viena, não são produtos naturais. Nem a tela Compotier et verre (1912), óleo e areia sobre a tela, de Braque, expoente do cubismo sintético, nem o objeto nela representado, podem ser encontrados na natureza. Alguns poderiam, diante dessas afirmações, não dar a devida importância, alegando não haver grande diferença entre um cão e um quadro de Braque, já que ambos existem materialmente. Mas chamamos a atenção para o fato de que no campo estético a materialidade do objeto (entenda materialidade aqui como fisicalidade,

substância no mundo material) é superada por sua função na composição que integra. O que realmente afecta é a potencialidade de transposição de pensamento que determinado objeto carrega. Percebemos isso como pura desterritorialização, e também pura composição de matéria mental. Afecção. Cumpre dizer agora, que todo campo estético é constituído de uma infinidade de relações de velocidades, estratos e cortes, chegando a constituir agregados e sistemas de grande complexidade, considerando o acúmulo inumerável de gêneros, estilos, técnicas, modos de fazer, de apreciar, pressupostos culturais… Contudo, o campo estético constitui apenas uma das esferas (espirais) do plano de transcendência, sendo que linhas de fuga no campo estético podem fazer contato com outras espirais como: a espiral do senso comum; da cultura de massa; da comunidade científica; da moral (das morais); do mercado; dos jogos políticos; das revelações misteriosas... entre muitas outras que formam os continentes do mundo da mente humana. Mas então, qual seria o papel da modalidade do devir, do artista marginal, ou do louco, diante desse mundo de transcendência dura e de estratificações mentais? Ora, o habitante do modo de devir pode enxergar tudo de outra maneira. Ele não percebe categorias, mas é submetido a afectos. Não percebe estratificações, mas produz e é atingido por linhas de fuga. Não considera coleções de teres, mas é sensível a metamorfoses. Nessa teogonia do pensamento ele recorta e cola o que quer, não se importa com certos e errados, só se importa em ser convincente. É mais do que um mago, é um demiurgo (DELEUZE e GUATTARI, 2011c, p. 230-231). Neste ponto a que chegamos temos a desterritorialização como uma ferramenta estratégia a indução de estados caóticos sobre os quais os artistas podem exercer atividades mânticas para seus processos criativos.

Caminhando para o fim deste item dedicado a sincronicidade de Jung, a desterritorialização de Deleuze e Guattari, no sentido de produzir processos mânticos a partir de estímulos caóticos (caos que cria) ressaltamos que conforme Deleuze e Guattari todo agenciamento expressivo é um agenciamento coletivo (DELEUZE e GUATTARI, 1990, p. 45), ou seja, há uma sincronicidade de agenciamentos convergindo para a emergência de um novo modo de expressão simultâneo e compartilhado.

É possível notar como este é um empreendimento laborioso, pois, envolve pensadores de orientação e latitudes muito diferentes. Jung é um idealista, aliando empirismo à intuição. Um simbolista politeísta alinhado a um plano de transcendência. Por outro lado, Deleuze e Guattari são pragmatas por excelência, filósofos da vida, do plano de consistência, amantes das hecceidades e da realteridade. E, de certo modo, utilizamos de Georges Bataille para chegar a um ponto de união: a experiência mística. Este texto não é conclusivo, nem poderia ser. Depois de tanto insistir em apontar os vícios do pensamento não produziríamos aqui um estrato totalitário estético, ou uma categoria-inventário. Ou seja, este texto é simplesmente propositivo e, ademais, inclui uma reflexão poética. Pretendemos que cada artista (fazedor, apreciador, estudioso) seja responsável pelo campo estético no qual atua. Podemos passivamente aceitar os estratos de categorias (Juízo de Deus) estabelecidos. De outro modo, podemos ainda produzir encontros e linhas de fuga, bem como estar expostos a fluxos descodificados. Eis aqui novamente a ética de Espinosa, enfatizando o conhecimento, e não a razão, como produtor do amor (ESPINOSA, 2012, p. 140-141). Nesse mergulho somos objetos parciais, e a vida, o encontro entre objetos parciais. Mais significativa é a vida que promove o maior número de encontros com o maior número de parcialidades distintas. Em outras palavras, mudar de caminhos, ares, processos, modos. Esse salto nos colocaria diante do rizomático ente da razão: “... de todas as ideias que cada um tem, fazemos um todo (o que vem a ser o mesmo) um ente da razão, a que chamamos de intelecto” (Ibid., p. 67). Mas somente cavar não basta, o que propomos é que a imersão seja seguida da emersão. Diante do caos rizomático do plano de transcendência cada um poderá produzir novas relações, fazer novos recortes e colar circunstâncias jamais antes agenciadas. Quando emergir para a superfície, poderá criar algo de novo, realmente novo. Lovecraft (1890-1937) colou demonologia arcaica com teorias de espaço não euclidianas. Xenakis (1922-2001) colou cartografias de sistemas dinâmicos em um plano com orquestração. Lévi-Strauss (1908-2009) colou formas musicais e apreciação musical com mitologia. De algum modo, a razão se imobiliza diante do caos, e assim entramos em estado mântico, ou propício à mancia. As mancias podem fazer emergir elementos do mundo não sensível, não metafórico e real que pertence ao plano de nossas construções mentais. Por outro lado, não há necessidade de fazer uso de mancias categorizadas,

consagradas e estratificadas. Podemos inventar nossas mancias. O que esta tese apresenta, em última análise, é musimancia. Portanto, através de desterritorialização e reterritorialização, chegamos finalmente ao estado de caos que estávamos buscando, o caos que cria.

2.4 – Conversão, Subversão e Perversão na Segunda Escola de Viena Neste item vamos estabelecer uma relação entre as formas de orientar o pensamento como proposto por Deleuze em sua ‘Décima oitava série de paradoxos: Das três imagens de Filósofos’, publicada no corpo da obra ‘Lógica do Sentido’ (DELEUZE, 2009) e as práticas musicais criativas dos compositores da segunda escola de Viena. As três formas de orientar o pensamento foram denominadas pelo autor como: altura, profundidade e superfície. Deleuze propõe a altura como o plano das ideias, de característica transcendente. A profundidade como o plano da essência, da mônada, ou como o inconsciente. A superfície como sendo o campo pragmático onde se pode acessar altura e profundidade, mas sempre em um jogo com o corpo e com o acontecimento (Ibid., p. 221-223). Para Deleuze existem três imagens possíveis de filósofos, duas das quais são consagradas historicamente e outra que era nova, e que ele se propunha a nomear. A primeira imagem corresponde à tradição platônica, idealista, voltada para as verdades vindas da altura e, portanto, fundadora de uma filosofia de conversão: “a operação do filósofo é então determinada como ascensão, como conversão, isto é, como o movimento de se voltar para o princípio do alto do qual ele procede” (Ibid., p. 131). A segunda imagem corresponde aos pensadores pré-socráticos exemplificados nos nomes de Empédocles e Diógenes de Sinope. Estes seriam os filósofos que não abandonaram as cavernas (alusão ao mito da caverna na República de Platão) e que acreditavam que a orientação do pensamento deveria ser voltada para as profundezas: “os pré-socráticos instalaram o pensamento nas cavernas, a vida na profundidade” (Ibid., p. 132). Deste modo as asas platônicas se opunham às sandálias de chumbo de Empédocles, enquanto as investidas dos filósofos platônicos se voltavam para o alto

(mundo das ideias), as reflexões dos filósofos pré-socráticos eram voltadas para a profundidade em sua iconoclastia-subversiva (Ibid., p. 136). Já os cínicos e os estoicos (Diógenes o Cínico, Crisipo de Solis) pareciam estar promovendo uma nova orientação do pensamento, fundando uma nova imagem (Ibid., p. 136). Por meio de zombarias destituíram a virtude de uma ideia das alturas ou a excelência da essência das profundezas. Tudo em favor do acontecimento, que era lateral, não no alto, nem em baixo, mas ao leste19, na superfície. O grande herói do estoicismo, Hércules, era um autêntico senhor da superfície: seus inimigos estavam nas alturas (Hera, a ciumenta) e nas profundezas (Cérbero e mais onze). Hércules vencia os deuses das alturas olímpicas e as feras das profundezas do Hades, sempre na superfície, onde desferia seus golpes de porrete: acontecimento por acontecimento. Como nomear a nova operação filosófica enquanto ela se opõe ao mesmo tempo à conversão platônica e à subversão pré-socrática? Talvez pela palavra perversão, que convém pelo menos ao sistema de provocações deste novo tipo de filósofos, se é verdade que a perversão implica uma estranha arte das superfícies (Ibid., p. 136).

A seguir, inserimos uma figura com o intuito de ilustrar as três formas de se orientar o pensamento e as técnicas de operação dos mesmos:

Figura 1 – Altura, profundidade e superfície – conversão, subversão e perversão.

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Referência ao nascimento do sol

Dito isso, vamos começar a aproximar essas reflexões conceituais de um movimento específico da prática musical do século XX. Mas antes, é importante lembrar, que o próprio Deleuze já havia feito uso dessas acepções para estabelecer relações junto ao campo estético, mais especificamente ao campo das artes da comédia. Deleuze entende que há técnicas de altura (conversão), técnicas de profundidade (subversão) e técnicas de superfície (perversão) na orientação do pensamento. E no campo da comédia entende que a conversão produz a ironia por meio de equivocidade, eminência e analogia; já a técnica de subversão produz a sátira como arte prodigiosa das regressões (alimentares, sexuais, ruidosas); e é fruto da perversão o humor, mais precisamente o de tipo non sense, onde a arte da superfície permite o translocar mais livre, onde a lógica do sentido é outra, onde há paradoxo. A ideia aqui é tentar aproximar essas três técnicas de orientação do pensamento ao fazer musical da chamada Segunda Escola de Viena. É possível observar a produção do trio vienense entre os anos de 1920 e 1950 através de diversas linhas de pensamento e variados modos de abordagem. Aqui apontaremos para as diferenças entre os três compositores no modo de manusear as alturas com a técnica (serial) de doze sons tentando, com isso, traçar paralelos com as orientações do pensamento anteriormente apresentadas (conversão, subversão e perversão). O projeto estético-técnico de Schoenberg foi inovador na organização dos sons e na natureza das sonoridades exploradas. Damos ênfase ao caráter de conversão predominante em Schoenberg evidenciado pelo contraste entre a grande inovação estrutural musical implementada e a manutenção da forma tradicional e do modelo desenvolvimentista da tradição ocidental clássico-romântica. Deste modo, abordaremos aqui a obra de Schoenberg como trazida do alto com um caráter de conversão. Observemos como exemplo o primeiro parágrafo do artigo A Composição Dodecafônica20 publicado em El Estilo y la Idea: Para compreender a verdadeira natureza da criação, há que se ter em conta que a luz não existia antes que Deus dissera: ‘Faça-se a luz’. E quando ainda não havia a luz, a onisciência divina abarcou sua visão e sua onipotência a fez surgir (Id., 1963, p. 142).21 20

Original em espanhol: La Composición Con Doce Sonidos (Tradução Livre) Original em espanhol: Para comprender la verdadera naturaleza de la creación, hay que tener em cuenta que la luz no existía antes de que Dios dijera: “Hágase la Luz”. Y cuando aún no había luz, la omnisciencia divina abarcó su visión, y Su omnipotencia la hizo surgir. (Tradução Livre) 21

Percebe-se que Schoenberg está procurando compreender a ‘verdadeira natureza da criação’, existindo uma grande vontade de verdade em seu discurso. Ao longo de sua arguição vamos sempre encontrar a ideia de uma verdadeira obra, e de uma verdadeira forma de criar, ou mesmo, o modo de criação como elucidador, como um mecanismo de compreensão: “A composição dodecafônica não tem outra finalidade que a da compreensão”22 (Ibid., p. 143). O modo de pensar de Schoenberg é devoto do idealismo, não poderia ser diferente, até mesmo no título de sua coleção de cátedras e artigos se evidencia isso. Ele acredita haver uma verdade a ser descoberta, essa verdade é a das alturas, é divina, é celestial; caberia a nós o esforço para alcançá-la. Em outra abordagem ele diz assim: Nenhum principiante é capaz de projetar uma composição em seu todo e deve, portanto, proceder gradualmente, do mais simples ao mais complexo. As formas padrão simplificadas, que não correspondem sempre às formas artísticas, auxiliarão o estudante a adquirir o senso formal e o conhecimento dos fundamentos da construção (Ibid., p. 28).

Schoenberg entendia que sua nova proposta de composição não era da ordem da invenção, não pretendia revolucionar os pilares da tradição, não se opunha a todo processo histórico de transformação dentro da música ocidental. Ele acreditava que estava dando um passo adiante na história da música e dessa maneira contribuindo para a evolução das forças produtivas23. E, com efeito, do ponto de vista materialista podemos observar que certos usos da prática composicional schoenberguiana produziram resultados inovadores e até, de certo modo, revolucionários como: 1) a proposição da organização em grupos e subgrupos de classes de notas para superar a força de polarização da tríade e de toda pontuação sintática do discurso tonal; 2) estabelecimento de um discurso polifônico baseado em novas estruturas – além do tradicional padrão dissonância-consonância (tensão-relaxamento). Como já dissemos anteriormente, seria possível uma abordagem da obra de Schoenberg por outros caminhos, apresentando desdobramentos de sua obra musical como estabelecendo novos territórios. Mas essa abordagem chama a atenção para como a obra do compositor austríaco é devota da característica mais intensa da música ocidental de concerto: o 22

Original em espanhol: La composición con doce sonidos no tiene otra finalidad que la comprensión. (Tradução Livre) Sob uma ótica marxista de transformação das forças na ordem de manufatura, da intelectualidade e da história (MARX, 1996a, p. 386-422) 23

desenvolvimento. Se partirmos da premissa kantiana de que um conceito é um continente onde os conteúdos são as características ou categorias que o compõem, podemos dizer que em se tratando do conceito de ‘música ocidental de concerto’ encontramos o seguinte conjunto de categorias: 1) Sistema de organização de alturas musicais – as alturas musicais são prioritárias em relação aos demais parâmetros sonoros; 2) Sintaxe – um conjunto de processos de estruturação coordenando a escritura musical, a condução dos materiais e a organização interna; 3) Discurso Cronológico-Teleológico – a produção de sentido por meio da condução dos elementos em ordem cronológica segundo a qual se determina sua função musical (HEGEL, 2004, p. 39); 4) Desenvolvimento – processo de elaborações sobre o material musical por meio de identidade e variação, diferença e repetição. Desenvolvimentismo e teleologia estabelecem muitos pontos de contato, assim como, é possível vislumbrar próximo parentesco entre a sintaxe e o sistema de organização de alturas. De certa maneira a técnica de composição de Schoenberg coloca em cheque vários desses pilares. É possível vislumbrar que ao abandonar a lógica da tensão e relaxamento (dissonância-consonância) vários desses elementos puderam ser deixados de lado. Sem tensão e relaxamento não era mais tão evidente um sistema de pontuação na sintaxe musical, pois sem uma sintaxe claramente delimitada torna-se difícil estabelecer uma teleologia cognoscível. Para ilustrar isso propomos o seguinte exercício: 1) escute com atenção o Minueto da Suíte Op. 25 de Schoenberg. Mas o faça sem acompanhar a partitura. O dito Minueto, como é de se esperar, apresenta uma série de ritornelos; ele executa duas vezes a parte A do minueto, depois duas vezes a parte B; em sequência vem o trio, que tem também duas repetições da parte A e mais duas da parte B; por fim vem o Minueto da capo, que repete todas as partes mais uma vez sem os ritornelos; 2) Perceba como é difícil reconhecer os ‘retornos’ das partes. Mesmo havendo repetições literais, é pouco provável apreender com clareza todos os trechos.

É claro que esse exercício não tem valor se o ouvinte já conhecer muito bem a obra, tendo analisado, tocado ou mesmo escutado muitas vezes. Tampouco seria possível realizá-lo se a gravação ou a execução na gravação for de baixa qualidade. Mas o que questionamos é: – As repetições literais são percebidas como lidamos na construção da fraseologia, na concepção dos motivos, sujeitos, e de antecedente e consequente? – A lógica sintática teve que ser repensada, tanto no processo de composição quanto no de interpretação e performance. Outro pilar que balança é o sistema de organização de alturas musicais. Por mais que o dodecafonismo estrito seja, por excelência, um sistema de organização de alturas musicais, há uma importante produção criativa de Schoenberg durante os períodos que se caracterizam como atonais livres ocorridos tanto antes como depois do período dodecafônico propriamente dito. O seu sistema de organização de alturas privilegiou intervalos dissonantes, formando blocos estranhos ao vocabulário da música tonal através da exploração do total cromático. Isso ao mesmo tempo o conduziu à pretendida tonalidade suspensa, mas provavelmente deve ter dificultado a ouvidos comuns acompanhar e decifrar o processo conduzido. Isso situou o sistema de organização de alturas musicais no nível de infraestrutura, deixando na superfície um novo campo de descoberta para a apreciação musical, um campo muito mais povoado de intervalos, texturas e processos do que as habituais conduções melódicas. Efetivamente, em Beethoven o sistema de organização de alturas é evidente aos ouvintes, pois podemos perceber os empréstimos modais, as movimentações através das funções harmônicas etc. No caso do sistema de organização de alturas musicais não podemos dizer que houve um abandono ou uma ruptura, mas sim uma mudança de condição relevante na obra de Schoenberg. Mudança significativa para a música de vanguarda que viria nas décadas seguintes. Ao transformar a pregnância do sistema de organização de alturas musicais, lançando-o a níveis infraestruturais, desfazendo o jogo de expectativas anteriormente protagonizado pela intercalação entre tensão e relaxamento, Schoenberg acabou provocando um deslocamento abaixo da superfície da percepção para a escuta das alturas. Isso possibilitou, de certo modo que os elementos como o timbre, a duração e a intensidade passassem a exercer protagonismos, emergindo para a superfície da

obra, portanto da escuta. No vídeo Yehudi Menuhin, Glenn Gould play Bach, Beethoven, Schoenberg há um diálogo entre Gould e Menuhin acerca da Fantasia para piano e violino Op. 47 onde eles apontam que na construção dessa peça há uma impassível linha desenhada pelo violino e a inserção de sujeira por parte do piano. Menuhin coloca que não havendo mais a dicotomia entre dissonância e consonância, o que havia agora era a pontuação entre som e silêncio. Em seguida Gould acrescenta que isso possibilitou uma nova escuta onde o importante são os timbres, os crescendi do piano, os tremolos dobrados em junção com o trinado do violino etc (GOULD, 2002). Entretanto, o pilar do desenvolvimento é o grande eixo de conversão de Schoenberg. A ideia de variação para produzir riqueza e interesse aliada à ideia de identidade e compreensibilidade para produzir um discurso coerente e de unidade, permeia toda obra do compositor. Não apenas na prática da escrita musical, como também nos seus textos e palestras: Portanto, chegou a estar claro para mim que a obra de arte é, como qualquer outro organismo completo, tão homogênea em sua composição que em cada pequeno detalhe revela sua essência mais íntima e verdadeira. Ao separar qualquer parte do corpo humano sempre brota o mesmo: sangue. Ao escutar um verso de um poema, um compasso de uma composição, estamos à disposição de compreender o todo. E de igual maneira, uma palavra, um olhar, um gesto, o modo de andar, ou mesmo a cor dos cabelos, são suficientes para revelar a personalidade do ser humano24 (SCHOENBERG, 1963, p. 29).

Se por um lado a conversão opera no plano da ironia, portanto em um único sentido

25

(do alto para a superfície), por outro lado, a subversão opera no plano da

sátira, sendo sua movimentação dotada de duplo sentido – do senso e do contrassenso. No campo da subversão, ainda prevalece o mesmo mundo de ações, mas uma série de escavações, aprofundamentos tem por intenção mudar grandezas e intensidades das ordenações. Dizendo de outro modo, se mantêm as formas e as estruturas para subverter apenas seus usos, e não suas essências.

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Original em espanhol: Por tanto, llegó a estar claro para mí que la obra de arte es, como cualquier otro organismo completo, tan homogénea en su composición que en cada pequeño detalle revela su esencia más íntima y verdadera. Al separar cualquier parte del cuerpo humano, siempre brota lo mismo: sangre. Al escuchar un verso de un poema, un compás de una composición, estamos en disposición de comprender el todo. Y de igual manera, una palabra, una mirada, un gesto, el modo de andar, o incluso el color del cabello, son suficientes para revelar la personalidad del ser humano. (Tradução Livre) 25 Na ironia pode se utilizar A para significar A ou B para significar A, mas o que importa é que sempre é claro o que se quer significar.

Webern percebeu na obra de Schoenberg potências de subversão ainda por serem desenvolvidas. Havia então equivalência de hierarquia na organização de alturas, timbres, durações e intensidades. Em alguns momentos ampliou propriedades historicamente marginalizadas como na concepção da Klangfarbenmelodie26, em outros, criou planos de igualdades de valor hierárquicos em processos construtivos com o uso de palíndromos e, num flerte com o orientalismo, procurou composições de curta duração, porém intensas (BOULEZ, 1995, p. 326-327). A Sinfonia Op. 21 (1928) é nesse sentido emblemática, pois apresenta as principais técnicas subversivas de Webern. Destacamos também os Op. 10 (1911-13), 16 (1923-24) e 24 (1934) nos quais aplica o recurso da Klangfarbenmelodie - melodia de timbres. O conceito da melodia de timbres apresentado por Schoenberg (1974, p. 501) no Tratado de Harmonia quase que de maneira poética, explorada notadamente no Pierrot Lunaire, Op. 21 (1912), tem na obra de Webern seus desdobramentos frutificados. Vejamos como a subversão opera nessa simples técnica: na definição de melodia entendemos que se constrói uma espécie de homogeneidade nos campos do timbre, duração e intensidade. Poderão ocorrer crescendi, mudanças de figuras rítmicas e mesmo reinstrumentações, mas isso tudo seguindo transformações de segunda ordem de importância em relação ao campo das alturas musicais – então temos uma melodia para violino, em mezzo piano, com uso predominante de colcheias, mas que emprega uma dezena de alturas. No caso da melodia de timbres subverte-se o valor das alturas pelo dos timbres. Deste modo, se buscará um plano homogêneo de alturas, durações e intensidades para alcançar maior variação no campo do timbre. “Webern criou uma nova dimensão que poderíamos chamar dimensão diagonal, espécie de repartição dos pontos, dos blocos e das figuras, não mais no plano, mas no espaço sonoro” (BOULEZ, 1995, p. 328). Esse apontamento de Boulez sugere que a subversão na obra de Webern produziu de maneira inédita uma música num novo plano de imanência. Mesmo que a escrita de Webern seja estrita e que se atenha ao eixo temporal de durações e ao eixo espacial das alturas musicais, a escuta de sua obra foge do paradigma até então habitual ao ouvinte. Estabelece-se uma escuta transversal de objetos sonoros, de gestos. Nesse outro ponto Boulez comenta o Trio Op. 20 de Webern: “é, por certo, a obra em que se observa maior autonomia dos diversos componentes da linguagem e, diríamos, a maior discrepância entre os meios adotados no campo da semântica e da retórica” (Ibid., p. 329). Maior autonomia dos diversos 26

Melodias de timbre

componentes da linguagem seria a estratégia subversiva da justaposição; as discrepâncias entre semântica e retórica se dariam por meio de aumentações e diminuições. Já a obra de Alban Berg, consideramos como orientada pela perversão. Deleuze faz uma oposição entre perversão e subversão nos seguintes termos: “tal é o mecanismo mais geral da perversão, com a condição de distingui-la como arte da superfície e a subversão como técnica da profundidade” (DELEUZE, 2009, p. 250). Em vez de lançar uma única seta (conversão), ou duplas setas (subversão), a arte-pensamento na perversão produz incontáveis setas, que seria o mesmo que dizer que não produz nenhuma. Por isso seu ambiente não é o do senso ou do contrassenso, mas sim o do nãosenso. Sobre a superfície o artista-perverso pode operar de toda e qualquer maneira, joga um jogo ideal27. É importante ficar claro, entretanto, que ainda que termos como perversão ou não senso possam tomar sentidos como de valorações negativas na esfera do senso comum, o que pretendemos afirmar aqui, em consonância com os apontamentos de Deleuze, é que é no âmbito da perversão que a arte alcança a expressão de sua maior potência. A Lógica do Sentido, de Deleuze, é ao longo de toda sua extensão costurada e permeada por citações de diversas obras de Lewis Carroll. Este é tomado pelo filósofo como emblemático autor do campo do nonsense (perversão). Há também perversão na obra de James Joyce, no dadaísmo e, em certa medida, em toda prática que chamamos de surrealista ou Merz. A característica principal consiste que em nível de superfície o artista pode jogar (permutar, transvalorizar, ocultar, equalizar...) com qualquer potência que possui em mãos – como no caso do cubismo analítico, quando Picasso e Braque sobrepuseram planos de perspectiva; ou como quando Carroll elaborava palavras esotéricas sem sentidos conhecidos (puras telas brancas onde o leitor lança suas tintas); ou em um sistema de sorteio de palavras para um verso dadá. A obra de Berg é orientada pela perversão em seu bojo. Observemos, por exemplo, o Concerto para Violino composto em 1935. O primeiro ato de perversão se dá na construção da série dodecafônica. Diferentemente das séries de Webern ou Schoenberg que privilegiavam intervalos como os de segundas, sétimas e trítonos, justamente para produzir polifonias que fugissem do dicionário dos acordes e da harmonia tradicional, a série de Berg é toda construída sobre terças, mais precisamente consta de oito intervalos de terças (maiores e menores) em sequência e depois três 27

Referência ao capítulo décimo da Lógica do Sentido.

intervalos de segunda maior (BOULEZ, 1995, p. 291). Essa série vai o tempo todo remontar às esquinas ou guetos da música tonal. O jogo perverso proposto por Berg produz um resultado estético que permite um paralelo entre a densidade e a dissonância. Ao longo do concerto sempre que há pouca densidade (pequena instrumentação, pequena dinâmica e espacialização) há também predominância de consonância, até mesmo com a possibilidade de reconhecimento de tríades ou encadeamentos tradicionais. Mas, de outro modo, conforme aumenta a densidade (tuttis e dinâmicas intensas) aumenta também a dissonância que acaba por impossibilitar a escuta de funções outrora possíveis. Num tutti orquestral de Musorgsky podemos ter setenta instrumentos tocando apenas três alturas (como no acorde de mi bemol maior ao fim de Quadros de uma Exposição28) – nas peças de Schoenberg independentemente da instrumentação ou densidade, teremos sempre um ambiente de dissonância constante. A estética de Berg não se assemelha com a do romantismo nem com a do modernismo. O agenciamento ruína-lacuna (ISHISAKI, 2015, p. 180) que ele promove é um jogo perverso de superfície que produz um som inédito. Boulez posiciona Berg como o mais ligado ao passado dentre os membros trio vienense. De certo modo, ele pormenoriza sua obra ao dizer que seria um grande compositor da ópera do século XX, ou mesmo por ter uma ligação com o pósromantismo, ou receber muita influência da composição de Mahler e das primeiras obras de Schoenberg (BOULEZ, 1995, p. 283-4). De fato, em alguns momentos podemos escutar na superfície da obra de Berg coleções sonoras que evocam Strauss, Wagner ou Mahler. Por vezes, com esses gestos, Berg poderia estar invocando gêneros, compositores de períodos históricos, como coloca o próprio Boulez: ... encontra-se nele [Berg] uma obsessão pelas citações tanto de um texto musical (primeiros compassos de Tristão, canções populares) quanto de forma determinada de orquestra (orquestra da Sinfonia de Câmara de Schoenberg para uma das principais cenas de Wozzeck); enfim, ao escrever variações sobre um coral de Bach ele tentou uma síntese entre o mundo tonal com o mundo não tonal usando um recurso bastante engenhoso que consistia em fazer coincidir as quatro primeiras notas do coral com as quatro últimas da série que serve de base ao Concerto para Violino (Ibid., p. 283-4).

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Na orquestração de Maurice Ravel

O que temos aqui é Boulez descrevendo uma série de artifícios de superfície, ou seja, procedimentos de perversidade operados por Berg. Destacamos aqui que em nosso entender o compositor não olha para o passado preso a ele, mas em um elã benjaminista ele recorta; passa então a “retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura” (BENJAMIN, 2014, p. 184). Entende que a “produção artística começa com imagens a serviço da magia” (Ibid., p. 187). E, enfim, presume que “a moda tem um faro para o atual, onde quer que ele se oculte na folhagem do antigamente” (Ibid., p. 249). Sua memória e sua escuta histórica estarão ao alcance de suas ‘mãos’ para operar suas maquinações, sua perversidade. Stuckenschmidt no livro Twentieth Century Music dá especial atenção à obra de Berg no capítulo intitulado Simultaneity no qual aborda o Concerto de Câmara: Os dois primeiros movimentos são o Thema Scherzoso com Variazioni, para piano e sopros, e o Adagio para violino e sopros; o terceiro movimento Berg chama de Rondo Ritmico com Introduzione, para piano, violino e sopros. Berg fez uma análise da obra em uma carta que enviou a Schoenberg, por ocasião do seu quinquagésimo aniversário... ‘finalmente, o terceiro movimento é a fusão dos dois precedentes... Existem três principais métodos de combinação entre os movimentos I e II: primeiramente, contraponto livre de partes correspondentes; depois, sucessiva justaposição em um tipo de dueto de frases particulares e trechos pequenos; e por último, adicionando junto partes completas dos dois movimentos29’ (STUCKENSCHMIDT, 1976, p. 88).

Berg, nessa epístola, apresenta os três procedimentos de recorte e colagem adotados por ele na elaboração do terceiro movimento do Concerto de Câmara. Tais procedimentos se assemelham a alguns dos que foram utilizados por Charles Ives ao longo de sua obra e que foram numerados por Burkholder (ROIG-FRANCOLI, 2008, p. 146-7). Além de reescrever, justapor e sobrepor, o próprio sistema de organização de alturas musicais da peça trata-se de uma citação representativa (aliada a um processo de transdução30): os conjuntos de notas utilizados na construção dos temas e em toda organização harmônica é produzido a partir dos nomes de Arnold Schoenberg (la-ré-

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Original em inglês: The first two movements are a Thema scherzoso com variazioni, for piano and Wind, and an Adagio for violin and Wind. Berg made an analysis of the work in a letter to Schoenberg, for whose fiftieth birthday… ‘Finally, the third movement is a fusion of the two preceding… There were really three main methods of combining movements I and II: firstly, free counterpoint of corresponding parts; secondly, successive juxtaposition in a kind of duet of particular phrases and small sections; and thirdly, adding together exactly whole passages from both movements.’ (Tradução Livre) 30 Em uma relação com a abordagem de Padovani a partir dos apontamentos de Simondon (PADOVANI, 2013, p. 95-103).

mib-dó-si-sib-mi-sol), Anton Webern (la-mi-sib-mi) e Alban Berg (lá-sib-lá-sib-mi-sol) (BOULEZ, 1995, p. 280). Procedimento que exemplifica o que foi denominado por Deleuze como arte da superfície.

Figura 2 – Transdução dos nomes dos compositores do trio vienense em alturas (WHITTALL, 2008, p. 71).

Para Stuckenschmidt a obra de Berg é inovadora: Sua música é em grande medida governada pela noção de simultaneidade assim como a maior parte das pinturas de Max Ernst, ou as futuristas de Picasso. Essa surpreendente mistura entre imaginação livre e conformidade com as regras aponta para o futuro distante31 (STUCKENSCHMIDT, 1976, p. 89).

Em vias de concluir esse item reiteramos que haveria uma série de outras maneiras de se abordar a produção musical da segunda escola de Viena entre os anos de 1920 e 1950. Outras abordagens produziriam outros resultados, outras posições e papéis desempenhados pelos autores. É importante ficar claro que esse breve período da história é cruzado e entrecruzado por uma rede complexa de valores, características, potências. Cada compositor não é homogêneo ou uma peça sólida. Cada peça possui sua própria rede de relações. Cada analista e cada olhar do mesmo analista é afetado por forças do rizoma incidindo sobre a escuta e o entendimento musical. Neste item comparamos e criticamente aproximamos processos de estruturação e desenvolvimento (pilar da música ocidental de concerto) na obra de Schoenberg como predominantemente orientada à conversão. Na obra de Webern identificamos uma orientação à subversão e, na obra de Berg, pela perversão. No âmbito da conversão temos um direcionamento claro, uma única seta. Na subversão as setas são duplas e produzem ambigüidades. No plano da perversão temos setas múltiplas e há a instauração do não senso. 31

Original em inglês: His music is a much governed by the notion of simultaneity as are some of the major paintings of Max Ernst, the Futurists of Picasso. It’s astonishing blend of free-roving imagination and strict compliance with rules points far into the future. (Tradução Livre)

Esta aventura do humor, esta dupla destituição da altura e da profundidade em proveito da superfície, é primeiro a aventura do sábio estoico. Mas, mais tarde, é também aquela do Zen – contra as profundidades bramânicas e as altitudes búdicas (DELEUZE, 2009, p. 139).

2.5 – Textualidade Musical Nesse breve item discutiremos alguns aspectos não abordados sobre a ideia de textualidade na produção musical. No item 2.1 foram levantadas algumas considerações ao tratar de citações que merecem ainda maior elaboração. O conceito de maior intensidade em todo esse trabalho é o da Colagem de Citações – tal conceito é, estética e tecnicamente, um ponto de convergência em meu trabalho pessoal como compositor, analista e até mesmo como apreciador de música. De certo modo, como foi comentado anteriormente, esse conceito aponta não só para duas maneiras de manusear o material durante o fazer musical, mas também em como escutar um objeto ou obra musical. A colagem pressupõe a existência de algo que corte, separe (tesoura) e algo que una, junte (cola), e antes disso, uma figura, uma imagem, seja visual, textual, sonora ou de qualquer outra natureza. A citação pressupõe um conteúdo e uma referência, um código no qual o conteúdo se exprima, uma sintaxe permitindo uma narrativa e um fluxo de informação, uma semântica, pretendida pelo emissor, e a interpretação do receptor do conteúdo citado. Então, enquanto escuta, o ouvinte estará sempre em um jogo de escolha, onde pode optar por ouvir uma figura, uma paisagem, um rosto, ou, de outro modo, um texto, desdobramentos do discurso, comentários. E essa escolha vai levar em conta a cultura, a microcultura, a materialidade da música em questão e o desejo do ouvinte. A cultura seria a instância onde se estabelecem as pretendidas ‘maneiras adequadas’ de se ouvir, ou seja, a maneira de portar a atenção, durante a escuta a determinados repertórios – a cultura nos diria que não devemos procurar textos nos cantos da tribo Aka Pygmy, pois nessa cultura centroafricana os cantos são ricos na livre e espontânea expressão, se busca uma intensa variação timbrística normalmente no intento de imitar sons da natureza. Na microcultura, por outro lado, se trata mais de como cada um de nós nos acostumamos a ouvir determinados repertórios, ou seja, tem a ver com o uso, com o hábito em uma perspectiva humeniana. A música em sua materialidade pode pretender uma escuta

textual ou figural, mas isso dependerá da vontade, capacidade e disposição do ouvinte. Para construir uma obra com essa pretensão será necessário um projeto composicional adequado e pregnante, ou seja, que tenha ideias explícitas no plano de superfície da escuta – o caso, por exemplo, de um tema com variações composto por Mozart. E é claro que o desejo também pode exercer papel importante, mesmo que a cultura, os hábitos e materialidade pregnante peçam uma escuta textual, o ouvinte experimentalista pode propor uma escuta figural e vice-versa. Audição e visão gozam de certo privilégio ao nos fornecerem dados que utilizaremos para interpretar o mundo. Mas há uma diferença preponderante a ser discutida neste momento: enquanto a visão nos fornece, de maneira geral, dados claros, positivos, nos possibilitando perceber posição, estado, condição dos fenômenos experimentados; a audição, normalmente, nos apresenta indícios, rastros (GINZBURG, 1983). Podemos imaginar a figura do caçador nômade de milênios atrás empreendendo sua atividade em plena selva: num momento dado ele se encontra cara-a-cara com uma fera e deve rapidamente tomar uma decisão. Fugir ou enfrentar o animal. Para evitar isso teria sido necessário escutar atentamente os ruídos em meio à mata de maneira a perceber indícios, antecipando os riscos iminentes, ouvindo os ruídos e comparando-os com seu dicionário de sons conhecidos. Quando a informação é indiciária a tomada de decisão requer uma análise e uma interpretação, pois os indícios são produtos da análise daquilo que percebemos e a interpretação dos mesmos resulta de uma construção, uma síntese de supostas causas possíveis.

É claro que o conhecimento indiciário não se restringe à audição - o que recebemos pelos nossos sentidos menos privilegiados são quase sempre indícios, e mesmo, grande parte do que recebemos pela visão pode ser indiciário: como pegadas, rastros, detalhes... Conan Doyle nos deixou uma série de brilhantes exemplos. A diferença está no fato de que parte dos dados visuais nos chega com grande clareza e precisão o que acaba por coroar a visão sobre os outros sentidos, esta posição de hierarquia nos leva o tempo todo a construir imagens visuais a partir de indícios não visuais (às vezes até a partir de indícios visuais). Marcus Groza nos mostra em seu artigo Para deixar de ter rosto III a importância do desabrochar da ciência indiciária a partir do renascimento com estudos

de Mancini, depois tomada pela burguesia do sec. XVIII tendo seu expoente em Voltaire, e, por fim, ganhando corpo no final do sec. XIX e começo do sec. XX com a semiologia e a psicanálise (GROZA, 2016, p. 144-146). Esta maneira de fazer ciência se colocaria em oposição ao “saber do cientista natural pós-Galileu, que visa se desfazer do erro dos sentidos, construindo... conhecimentos absolutos e universais” (Ibid., p. 146). A ciência indiciária está ligada à ideia de que “remontar a uma realidade complexa não é experimentável diretamente” (GINZBURG apud Groza, 2016, p. 144) e seus procedimentos se dedicam aos detalhes, aos vestígios – “Essa abordagem é chamada de paradigma indiciário e, a depender do contexto, também é dita venatória, divinatória ou semiótica” (GROZA, 2016, p. 144). Por fim, sua metodologia implicaria em produzir traduções. Esta pesquisa em processos criativos focada dedicadamente ao campo da composição musical considera a audição como sentido principal por seu potencial de perscrutação. E, em face do que foi apontado anteriormente, entendemos que os dados auditivos (musicais, por exemplo) constituem um complexo campo de informações indiciárias. Diante desses indícios somos convidados a produzir um sistema de tradução em tempo real fazendo com que a experiência do deleite musical seja sempre uma experiência de intertextualidade, interlocução e interferência, ou seja, uma rede de trocas entre textos, lugares e referências. No item 2.2 nos detivemos sobre como esse jogo de tradução entre o sonoro e o visual ocorre tendo apresentado exemplo no campo da colagem surrealista. Porém aqui, vamos nos ater à maneira como na escuta textual há também um jogo de traduções, e como essas traduções também ocorrem em troca com a visão. A metáfora da música como texto não só é pertinente enquanto projeto de escuta musical, mas também, em grande medida, porque fazia parte (e ainda faz) de diversos projetos composicionais. É claro que a música, dentre os ramos da arte, é conhecida pela sua propriedade de se emprestar a outras linguagens, outras expressões: quando se empresta ao corpo surge a dança; quando se empresta ao texto poético surge a canção; quando se empresta ao texto dramatúrgico surge o melodrama, o teatro, a ópera; quando se empresta à imagens digitais surge o cinema, o audiovisual etc. Entendemos, entretanto, que é no contato com o texto que se estabeleceu o maior nível de contágio e miscigenação entre as linguagens. E não afirmamos isso apenas por conta da potência e vigor que as canções alcançaram na vida popular e no imaginário artístico, mas também pelo fato do berço da

música tradicional ocidental ter se dado no clero medieval, onde o agenciamento vozmelodia-escritura foi determinante da maioria dos caminhos que se abriram em seguida. No início de toda a tradição da escrita musical havia uma supremacia da voz e, portanto, do texto: as cláusulas gregorianas formavam um projeto ideológico de música que deveria se sujeitar às sagradas escrituras e a uma determinada poética de sobriedade e altivez do cristianismo-apolínio. Pouco a pouco a instrumentação foi adicionada, mas apenas para dar acompanhamento ao texto cantado. As composições eram norteadas pelo conteúdo do texto: em função do conteúdo a composição seguia por determinadas veredas; se o texto acrescentava algo a criação musical poderia seguir por outro caminho. E, por centenas de anos, a música foi subserviente ao poder do texto de produzir sentido, nexo, orientação. Durante o renascimento a música não escapou do jugo do texto, mas a rica polifonia contrapontística, fruto do capricho criativo, acabou gerando em alguns momentos obras onde não era possível compreender as palavras cantadas, o sentido da letra: como exemplo nas peças Intemerata Mater Dei (1487) de Ockeghem e Spem in Alium (1570) de Thomas Tallis. São obras textuais e, ademais, em ambas a composição é orientada pelo sentido do texto, mas a riqueza e complexidade do contraponto acabaram por produzir um objeto sonoro-musical cada vez mais distante da clareza de uma canção ou de um cantochão. Depois, com a seconda pratica e ao longo de todo o período barroco, se empreendeu o grande projeto da música ocidental que foi o do desenvolvimento da música instrumental. Sem um texto para orientar suas produções as obras corriam o risco de se tornarem monótonas ou repetitivas como comenta Bukofzer na emancipação da música instrumental em Frescobaldi (BUKOFZER, 2009, p. 58). Era preciso um mecanismo para desenvolver a música ela própria como escritura: para tanto a retórica foi a ciência de apoio, que nutriu os compositores com ideias sobre a elaboração de um discurso coerente, sobre o tempo de exposição de uma ideia, sobre a necessidade de repetições, variação, contrastes etc. Em consequência vieram noções como sujeito, contra-sujeito, frase, semi-frase, tema, antecedente e consequente (pergunta e resposta), introdução, desenvolvimento, conclusão... (LEMOS, 2008, p. 48-50) Em outras palavras, podemos dizer que ao longo desses três grandes períodos da história da música o texto e o som vêm se entrelaçando, chegando por vezes a produzir uma emulsão quase homogênea, uma amálgama de confluência. Na idade média o texto era superestrutural e dominante, acima do som. No renascimento houve um intermediário jogo de superfície, de equilíbrio de forças. E no barroco o metabolismo do

bicho música acabou por digerir o texto para absorver dele os nutrientes que lhe apeteceram: nexo, teleologia, desenvolvimento, sintaxe. É possível dizer que a noção de textualidade foi importante para a música como a noção da perspectiva linear foi para a pintura. Ambas as noções foram produzidas lentamente ao longo de séculos e criaram projetos de expressão de grande indústria e potência. Essa simbiose entre música e texto, esse jogo de traduções e interlocuções foi o que propiciou todo o chamado período da prática comum. É nesse ponto que entendo a música muitas vezes como um hospedeiro, um invasor que devora e traduz, ou como nas palavras de Deleuze e Guattari: A música nunca deixou de fazer passar suas linhas de fuga, como outras tantas ‘multiplicidades de transformação’, mesmo revertendo seus próprios códigos, os que a estruturam ou a arborificam; por isto a forma musical, até em suas rupturas e proliferações, é compatível à erva daninha, um rizoma (DELEUZE e GUATTARI, 2011d, p. 29).

Para os autores seria como uma máquina de guerra, uma máquina de contágio: Então, plano, plano de vida, plano de escrita, plano de música, etc., só pode fracassar, pois é impossível ser-lhe fiel; mas os fracassos fazem parte do plano, pois ele cresce e decresce com as dimensões daquilo que ele desenvolve a cada vez (planitude32 com n dimensões). Estranha máquina, ao mesmo tempo de guerra, de música e de contágio-proliferação-involução (Ibid., p. 59).

Aqui nos dedicamos a mostrar como todo projeto musical parte de ‘imusicalidades’, justamente nesse jogo de trânsito e de fronteira. A música conceitual de Cage, a geometria-arquitetura-música de Xenakis, o serialismo de Boulez e Nono... seriam procedimentos arbitrários de tradução, ou até mesmo de transdução, revelando itens musicais a partir de dados não musicais como os vetores de vento em uma carta meteorológica, aplicação de técnicas de estúdio na composição orquestral, jogo do I Ching, formulações matemáticas, cadeias de Markov... Mas é justamente isso que acontece no campo da arte, talvez até de maneira especial no campo da música, uma

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Deleuze e Guattari não entendem plano em uma concepção geométrica nem no sentido de um projeto com metas ou passos a cumprir. Plano seria o campo de ações que podem ser da ordem da transcendência ou da imanência e que na superfície atravessam pela fenda do acontecimento. Planitude seria, portanto, o campo de aglutinação de todos os agenciamentos, um rizoma multidimensional.

série de apropriações, ou como explica Silvio Ferraz: “a arte torna sensível o que não é do universo da percepção, e assim ela [música] passa a ser a arte de tornar audíveis as forças não audíveis” (FERRAZ, 2010, p. 70). Deste modo, a música tradicional, dotada de centro harmônico, melodia, discurso, dicotomia tensão-relaxamento, é também um projeto de tradução, ou seja, de tomar para si forças do texto e fazer sonoro o que não produz ruído. Se de fato a música é a mais nômade dentre as artes e se, com isso, sempre foi se apropriando das vizinhanças33, sempre aumentando suas intensidades, estendendo seu plano de consistência, seria talvez possível dizer que não há nada mais não musical do que a música – semelhante a quando dizem os filósofos: “Na verdade, não há senão inumanidades, o homem é somente feito de inumanidades, mas bastante diferentes, e segundo naturezas e velocidades bastante diferentes” (DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p. 68).

Chegando ao fim deste item, alcançaremos a seguir a ideia de como a metáfora da música textual é também uma metáfora, em última análise, imagética. Não faremos isso afirmando que o conteúdo do texto enquanto escrito é transmitido por meio da leitura e necessariamente pela visão. Ora, o texto existe antes da grafia e além dela. E tampouco será por meio da oralidade que abordaremos a textualidade, pois desse modo estaríamos falando do texto sonoro e isso poderia excluir a visualidade. A escrita e a fala são tão somente meios de transmitir o conteúdo do texto e não o texto em si (do mesmo modo que a partitura não compreende toda a música). O texto tem por trás de si a ideia de narrativa, combinações de sentido, semântica e, na base de tudo isso, a conceptualização – aqui voltando à concepção de conceito no entendimento kantiano (KANT, 2012, p. 236). Se a sintaxe atua na organização e na condução dos fluxos no uso da linguagem, a semântica procura o sentido e fundamento da narrativa. Bataille nos fala em A Parte Maldita (2013a) sobre o sacrifício nas mais diversas culturas e naturezas, e de como a ideia de perder para ganhar é determinante nas sociedades. Chama a atenção, sobretudo, como se dá esse sacrifício no âmbito do saber: “O problema último do saber é o mesmo que o da consumação. Ninguém pode ao 33

Entender aqui vizinhança tanto no âmbito geográfico estrito (da música persa que se apropriou de usos da música indiana), como no âmbito dos planos de saber (da música que rouba da expressão corporal, do texto, da astronomia).

mesmo tempo conhecer e não ser destruído, ninguém pode ao mesmo tempo consumir a riqueza e aumenta-la” (BATAILLE, 2013a, p. 83). Para o pensador a experiência em si é indizível, inenarrável, vive fora do texto e, enquanto não se produz um saber sobre ela, a experiência se mantém vívida e pulsante. Mas quando a nomeamos, a conceptualizamos ela é destruída: passa a ser um saber, e eu passo a ter poder sobre ela (e outros que também adquirirem esse saber), mas ela em si foi aniquilada. É como que sentado ao pé de uma árvore (que ainda não tem nome) o homem a experimentasse de maneira única e particular, exatamente como ela realmente é: única e particular. Mas ao nomeá-la árvore ele, antes de mais nada, produz uma equidade, pois, o conceito de árvore coloca em condição de igualdade todas as árvores do mundo, as que ele experimentou, experimentará e mesmo as que nunca experimentará. Com o advento do conceito se tornaria então mais difícil a percepção da unicidade e particularidade do acontecimento. O homem que conhece a palavra árvore, quando olha para uma delas, experimenta o conceito e é de grande dificuldade a tarefa de perceber suas peculiaridades, sua excelência, sua natureza. O homem que conhece a palavra árvore pode prescindir da experiência de ver uma, mas adquire poder sobre elas, pois pode submeter o objeto representado a processos mentais, estudá-lo, estabelecer funções e implementar tratamentos e transformações a esses objetos: definir suas categorias, analisar suas características, estabelecer usos e processar seu material. Voltemos agora nossa atenção especificamente a como se dá o processo de produção de um conceito. Kant nos fala de continente e de conteúdo (KANT, 2012, p. 236), ou seja, que o conceito é um continente, portanto, um invólucro, uma caixinha, que armazena em seu interior determinados conteúdos – o conjunto de categorias que o compõe. A semiologia nos diz que a semântica é como uma seta, ou uma flecha, que aponta para o objeto: então se estabelece que a palavra árvore seja tão somente um direcionamento que nos conduz ao objeto árvore no ente da razão. Deleuze nos diz categoricamente que o sentido não existe no conceito ou na palavra, mas insiste neles (DELEUZE, 2009, p. 36-37). Sentido seria então fabricado, como um plano de insistência: se cria o plano vazio ou em branco nomeado de árvore; depois por meio do uso e da insistência do mesmo uso o sentido se estabelece. Isso é facilmente verificável: se o sentido existisse no conceito alguém poderia gritar no meio da Praça da Paz Celestial em Pequim a palavra árvore e na tela mental de todos os chineses ao redor se faria visível o tal objeto com raiz, tronco, galhos, folhas, flores e frutos.

É, pois agradável, que ressoe hoje a boa nova: o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundidade, mas é efeito de superfície, inseparável da superfície como de sua dimensão própria (DELEUZE, 2009, p. 75).

Na construção do sentido e na produção conceitual observamos estrita relação com a visualidade: flechas que apontam e produzem direcionalidades; continente e conteúdos; superfície de insistência. Na base da textualidade encontraremos ideias como referência, trama de relações, objeto direto, conjunção, prefixo, morfologia, que vão o tempo todo produzir sentido em agenciamento com nossa experiência visual. Propomos aqui que se a escuta figural é por um lado um projeto de relações que trabalha a metáfora com o visual em primeiro grau, a escuta textual tem, por outro lado, relações em segunda ordem, ou seja, da música para o texto e depois do texto para o visual. Portanto procedimentos de corte e colagem no âmbito da composição musical seriam agenciamentos diretos com a visualidade e procedimentos de citação, interconexão, referência, desenvolvimento seriam agenciamentos indiretos com a visualidade.

2.6 – Geografia do Pensamento Musical e Estética da Fosforescência: A última reflexão deste capítulo aborda aspectos ontológicos, estéticos e musicológicos. Partiremos de ideias anteriormente apresentadas para refletir sobre o conceito de desterritorialização em agenciamentos com o campo musicológico, bem como na concepção de uma estética a partir da ontologia fosforescente (DELEUZE, 2009, p. 321). A ideia de geografia do pensamento passa pela noção de desterritorialização já apresentada, sobretudo no item 2.3, e tem como alicerce o nomadismo na intelecção. Dizendo de outro modo: tudo pode ser um território (HAESBAERT e BRUCE, 2012, p. 6-7). Os fluxos e movimentos sobre esses territórios promovem desterritorializações e reterritorializações. No mundo do pensamento (ente do intelecto) não é diferente e, portanto, ao estudo dos territórios do intelecto denominamos aqui: geografia do pensamento (MACHADO, 2009, p. 11-15).

Nos campos de consistência do ente da razão há uma planitude, ou seja, um emaranhado de planos ou territórios. Tais planos foram desbravados quando de suas inaugurações, em seguida seus limites foram estabelecidos, suas características climáticas, seus percursos, seus centros e códigos normativos. Assim, podemos pensar o território da ciência natural como um grande continente dentro do qual outros territórios se posicionam. A física, a química e a biologia seriam exemplos de países dentro desse continente. Dentro da biologia teríamos o estado da anatomia, depois, o município da fisiologia, o bairro da endocrinologia, e assim por diante. Entretanto, diferentemente dos mapas cartográficos onde os territórios se posicionam sempre lado a lado, os territórios no ente da razão ficam entrelaçados, em uma composição intrincada e complexa. Desse modo o território da endocrinologia pode se relacionar com o da química orgânica ou até mesmo o da psicologia comportamental – essa sobreposição de planos ou platôs vem a ser denominada: planitude (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 59). A partir disso alguém poderia dizer que a metáfora por meio do território e da geografia é ineficaz, já que o posicionamento dos territórios no mundo do pensamento não segue a lógica de uma cartografia planisférica. Mas, se observarmos em uma análise detida, poderemos constatar que também na geografia os territórios não se posicionam lado a lado exclusivamente. O mapa cartográfico é apenas um meio de estruturação da geografia. Em adição a geografia estuda os recursos naturais, a orientação política, a cultura, inclinação religiosa etc. A Caxemira é um território dentro da Índia, porém em interlocução direta com o oriente-médio e as tradições islâmicas; a Itália penetra o Brasil por meio de suas colônias nas regiões sul e sudeste; o Panamá está mais próximo dos Estados Unidos do que Cuba, quando o assunto é orientação política e mercantil. E o mesmo ocorre em nível pessoal: eu posso estar no meio do estado de São Paulo, mas contaminado por um modo de viver, por uma afetividade, por um olhar de uma localidade longínqua em termos de cartografia. Nietzsche em sua Segunda Consideração Intempestiva apresenta uma reflexão que pode nos auxiliar neste ponto. O filósofo denuncia certos vícios do historicismo e aponta três modos de se fazer história: 1) monumental – tende a ver o passado como um conto de grandes heróis da virtude e da sabedoria, colocando-os em patamares inalcançáveis: esse modo acabaria apenas por produzir frustração e descontentamento por nunca, no presente, reconhecermos o mesmo heroísmo; 2) historicismo-antiquário – que olha para o passado como um construtor de valores e padrões a serem respeitados,

portanto, um passado que produz tradição e cultura, ou seja, um passado engessador, duro, que não permite o devir; e 3) modo crítico – esse é o modo proposto por Nietzsche, que deveria agenciar arte e ciência em uma produção estética da história. Para Nietzsche toda história é uma ficção, já que não é possível se debruçar objetivamente sobre o passado, qualquer narrativa sobre ele é uma construção, um produto da mentalidade. De modo que não é o presente consequência do passado, senão o contrário, o passado consequência do presente. É o nosso entendimento paradigmático sobre o passado que o define – desse modo a história deveria assumir seu posicionamento estético, como campo do saber em conjugação com o da criação. Para o filósofo, isso seria fundamental na instauração do estado dionisíaco (NIETZSCHE, 2003, p. 6-13). De certo modo, a história estética de Nietzsche se agencia com a geografia do pensamento, integram o ente da razão: a primeira como um projeto de revolvimento que envolve imersão criativa e emersão narrativa e a segunda como uma rede de contaminação por lateralidade e vizinhança em uma superfície. No território de saber da música essas relações ocorrem de maneira análoga. Temos também uma geografia de planitude onde territórios se intercomunicam a todo o momento. Os territórios musicais podem ser categorizados quanto ao estilo ou gênero: barroco tardio, free jazz, maxixe; ou por disciplinas do saber: harmonia, regência, arranjo; há territórios-instrumentos: viola caipira, oboé do amor, bateria; há territóriospessoas: Beethoven, Miles Davis, Chiquinha Gonzaga; territórios de pesquisa: sonologia, musicologia, etnomusicologia. E ainda outros em sucessão. E é claro, que todos esses territórios terão subdivisões em primeira, segunda e terceira ordem – harmonia, harmonia tradicional, baixo de Alberti. O campo do saber musical já é notoriamente reconhecido como um campo estético, portanto um campo de criação e transformação. Consideremos, com isso, preponderante refletirmos sobre nosso comportamento diante das territorialidades, sobre como nos posicionamos, se estamos em movimento e em que velocidade, se traçamos pontes para a intercomunicação de territórios, se percorremos linhas de fuga. Para tanto é importante estabelecer três principais posições dentro de um território: 1) centro; 2) periferia; e 3) fronteira. Em uma concepção rizomática de planitude não existe de fato um centro absoluto nos territórios, não existe um centro real de identidade, mas existe um posicionar-se ao centro, um fazer ressoar com o centro, ou em função de um centro (DELEUZE e GUATTARI, 2011c, p. 194). No centro se encontram reunidas as

principais categorias ou características que compõem o território, ou seja, o território paradigmático, ou o lugar comum – O território do rock tem como características centrais os pulsos quaternários, as guitarras elétricas, a bateria com alternância entre bumbo e caixa, o vocalista masculino com voz levemente rasgada e uma temática de rebeldia – As diversas periferias que qualquer território terá são localidades com desvios do centro, isso ocorrerá tanto por apresentar características não convencionais, como por não apresentar as características convencionais – Uma banda de rock com uma cantora lírica, ou com flautas e violino, ou um rock ternário – Estar na fronteira, por sua vez, não consiste de fato em estar em um determinado território, a posição de fronteira é uma posição limítrofe, onde se conjugam dois ou mais territórios. Nessas condições será difícil estabelecer um consenso sobre qual é o território: uns dirão jazz, outros rock progressivo, outros fusion. A fronteira é a morada do mago: Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos e dos bosques. Eles assombram as fronteiras. Eles se encontram na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos. O importante é sua afinidade com a aliança, com o pacto, que lhes é um estatuto oposto ao da filiação. Com o anômalo, a relação é de aliança (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 28).

O anômalo busca as fronteiras e seu estatuto é o da aliança. Um estatuto que visa passar linhas de fuga e, como em uma espiralóide, se mover de maneira centrífuga, se afastando do centro. O estatuto da filiação é centralizador, circulo fechado, centrípeto. Ele conduz seus adeptos para o padrão majoritário e vazio que é o lugar comum. É o estatuto da filiação o responsável por uma sociedade patriarcal, falicista, por uma cultura de tradição, família e propriedade, por um mundo que cultua livros sagrados e tecnocracia. Em face disso diferenciamos aqui o papel do agente da cultura e o agente da arte. O primeiro é filiado a uma tradição, a um território, procura sem descanso seu centro, sua mais pura maneira de se expressar. O segundo é aliado dos ventos e da correnteza, não reconhece centros nem certos, estabelece moradas temporárias na fronteira de reinos e, em momentos de genialidade, cria territórios completamente novos. Messiaen habitou em momentos a tríplice fronteira entre as ragas, o canto dos pássaros e o cristianismo.

A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso já diz o suficiente para o materialista histórico. Todos os que até agora venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores de hoje conduzem por sobre os corpos dos que hoje estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo triunfal, como de praxe. Eles são chamados de bens culturais (BENJAMIN, 2014, p. 244).

O conceito de fosforescência nos conduz a uma espécie de geologia do pensamento. Aqui não abordaremos o conceito de território no ente da razão como produto da mentalidade humana para fora dela, mas buscaremos por uma ontologia do pensamento criativo, na confecção do próprio ser. Por definição, fosforescência é a propriedade de brilhar na obscuridade. A emissão luminosa nessas condições deve se produzir sem calor sensível e, para se caracterizar como tal, a luminescência deve persistir por um tempo superior a 10-8 segundos após a remoção da fonte de excitação. Portanto, é uma energia que permanece, é um brilho de resistência. Para empreender essa abordagem no sentido de estabelecer uma estética da fosforescência iremos nos valer da reflexão de três pensadores: Bergson, Benjamin e Deleuze. É importante deixar claro, entretanto, que o conceito como entendemos aqui somente aparece de forma clara e definida na obra de Gilles Deleuze. As ideias exploradas em Matéria e Memória de Bergson (1999) e em Sobre o Conceito de História de Benjamin (2014) apresentam embriões ou brotamentos do que vem a ser a estética da fosforescência. Essa abordagem que partirá de Bergson e de Benjamin para depois alcançar Deleuze acaba sendo uma espécie de genealogia do entendimento sobre a fosforescência no campo da ontologia. Henri Bergson faz uso dessa terminologia em Matéria e Memória, basicamente, como o próprio subtítulo diz, um Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Ao longo de todo o texto o autor estabelece comparativos entre duas correntes de orientação do pensamento: o idealismo e o realismo. O foco do texto é uma discussão sobre o funcionamento da percepção, portanto, nesse campo a diferença entre idealismo e realismo se dá no fato de que no primeiro a verdade existe no mundo das ideias e o corpo e a matéria apresentariam indícios, muitas vezes vacilantes, que devem ser utilizados com cuidado e sob o crivo da correção intelectual. Já no segundo, as ideias,

pensamentos, seres são apenas produtos da materialidade, criados a partir dela. Imbuído nessa dicotomia ele insere o conceito de fosforescência: Uns veem em nossa percepção consciente uma fosforescência que segue esses movimentos e lhes ilumina o traçado; outros desenvolvem nossas percepções numa consciência que exprime sem cessar, à sua maneira, os estímulos moleculares da substância cortical (BERGSON, 1999, p. 22).

É como se os estímulos da matéria na sensibilidade pudessem produzir tamanha impressão que os rastros luminescentes não se apagassem instantaneamente como o tempo o faz. O que pretendemos afirmar é que cada evento na vida ocorre em um momento único e efêmero, não chega a durar nem mesmo uma fração de segundo, mas não vivemos os eventos em si, e sim, experimentamos sua fosforescência, o presente enquanto duração. Bergson continua nos seguintes termos: É verdade que se fingirá não dar nenhuma importância a essa representação, vendo nela uma fosforescência que as vibrações cerebrais deixaram atrás de si: como se a substância cerebral, as vibrações cerebrais, inseridas nas imagens que compõem essa representação, pudessem ser de natureza diferente delas! Todo realismo fará portanto da percepção um acidente, e por isso mesmo um mistério (Ibid., p. 23).

É como se o cérebro funcionasse de modo semelhante ao fundo do oceano onde uma coletividade de lulas, águas-vivas e outros seres bioluminescentes ao se reunirem provocassem o aparecimento de ritmos de brilhos com durações diversas. Nessa perspectiva bergsoniana se produz o entendimento de que natureza afetaria a todos os seres vivos e os mecanismos de percepção seriam, assim, como que mecanismos de duração. Se algo muda ao nosso redor a percepção vai valorar o peso dessa mudança e reagir por fosforescência: quanto mais importante o evento, no sentido da ação e da afecção, maior a duração (Ibid., p. 29). Na percepção-memória de um peixe ou réptil haverá uma gama de percepções de curta duração que vão sempre demandar rotas de fuga, planos de caça, busca de abrigo. Mas na percepção-memória humana haverá um rico campo de sobreposições, durações das mais ligeiras até as milenares, uma sobreposição de agoras, uma crise de velocidades. Para Bergson as sensações seriam como fosforescências deixadas pelas modificações provocadas pelo mundo e caberia a

nós produzir meios de tradução da linguagem da matéria para a linguagem da alma, ou do entendimento (Ibid., p. 250). Em continuação, para dar outra dimensão à essa genealogia, trazemos para a discussão o texto intitulado Sobre o Conceito de História (2014) de Walter Benjamin. Esse pequeno texto com dezoito aforismos e dois apêndices publicados no compêndio Magia e Técnica, Arte e Política (2014) causa polêmicas até os dias de hoje. Foi escrito no ano da morte de Benjamin (1940). Alguns críticos consideram como o texto mais revolucionário desde os escritos de Marx e outros apontam um retrocesso no próprio pensamento benjaminiano. As polêmicas se dão pelo fato do autor propor um jeito de se pensar história completamente inédito, talvez uma história fosforescente. Na verdade, o autor usa a palavra reminiscência que aqui tratarei como semelhante. Para Benjamin o tempo não é vazio e homogêneo como concebido por Kant no fim do sec. XVIII. Em face disso, estabelece uma argumentação contra a ideia de linha do tempo ou de história teleológica que acaba por condenar todos os discursos de progresso e desenvolvimento: “A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de seu andamento no interior de um tempo vazio e homogêneo (BENJAMIN, 2014, p. 249)”. O autor fala de Jetztzeit34, um tempo preenchido de agora, cheio e heterogêneo. Como em uma superposição de durações: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de tempo de agora (Ibid., p. 249)”. Somente existe o agora (ou agoras), que é preenchido de muitos tempos que duram, formando um rizoma de durações. Alguns eventos duram dez, outros cem, outros mil anos. E vivemos, no dia a dia, uma porção de agoras diferentes. Eu posso dizer: agora estou divorciado – esse é uma agora que dura cinco anos; ou, agora pratico esportes – esse é um agora de cinco meses; ou ainda, agora estou com fome – um agora de cinco minutos. O mesmo ocorre em nível de história: agora vivemos uma crise no presidencialismo brasileiro (agora de poucas semanas); agora o Brasil é uma república (agora desde 1889); agora o Brasil é uma nação independente (agora desde 1822); agora esse lugar se chama Brasil (agora desde 1507). Como aponta Benjamin, os agoras duram conforme dita a classe dominante. É muito importante para os dominadores terem o controle sobre a narrativa histórica para posicionarem seus triunfos sobre as mazelas dos outros. Estudar história de maneira 34

Tempo de agora.

crítica exige dar um “salto de tigre” sobre essa planitude de durações, porém quem comanda essa arena é a classe dominante: Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma ideia de como o tempo passado é vivido na reminiscência (Ibid., p. 252).

Semelhante à percepção de Bergson que se dá pela sobreposição de planos de duração que se estabelecem conforme seus graus de importância, a

história

de

um

tempo heterogêneo de Benjamin se dá pela sobreposição de tempos de agora que tem suas durações também marcadas pelos graus de importância. A fosforescência da sensibilidade de Bergson opera no microcosmo da percepção, nas relações corticais, na memória pessoal. A reminiscência na história de jetztzeit de Benjamin opera no macrocosmo das memórias sociais. Ora, até aqui apresentamos uma fosforescência da percepção (Bergson) e uma fosforescência histórica (Benjamin), mas é por meio de apontamentos de Gilles Deleuze que alcançaremos uma ontologia fosforescente. No apêndice publicado junto a Lógica do Sentido (2009) intitulado Michel Tournier e o Mundo sem Outrem o filósofo estabelece uma reflexão crítica acerca da produção literária do contista e romancista francês. Em especial a análise se dedica ao romance chamado Sexta-feira ou os limbos do Pacífico35 (TOURNIER, 1972) e em como se dá a relação de alteridade na obra. Para Deleuze não se trata de uma tese sobre a perversão, mas de um romance que desenvolve a tese de seu personagem central “Robinson: o homem sem outrem em sua ilha” (DELEUZE, 2009, p. 314). E, no desenvolvimento de suas argumentações, o filósofo estabelece uma dicotomia entre o outrem e o eu que alcança o seguinte enunciado: Se outrem é o mundo possível, eu sou o mundo passado. E todo o erro das teorias do conhecimento é o de postular a contemporaneidade do sujeito e do objeto, enquanto que um não se constitui a não ser pelo aniquilamento do outro. Ora, o sujeito e o objeto não podem coexistir, uma vez que são a mesma coisa, primeiro integrado ao mundo real, depois jogado fora como rebotalho (Ibid., p. 320).

35

Original em francês: Vendredi ou leslimbesdu Pacifique. (Tradução Livre)

Aqui notamos uma contundente denúncia a respeito de grande parte da epistemologia na tradição do pensamento ocidental. Tanto a teoria do entendimento em Kant como a fenomenologia de Husserl, dois dos mais influentes projetos epistemológicos, apresentam a relação do sujeito com o objeto em contemporaneidade, ou seja, em um só momento o sujeito experimenta o objeto por meio da manifestação fenomênica. Em outras palavras, João, o sujeito, experimenta o sabor do sorvete, o objeto: e em nossa mentalidade sempre, ambos coexistem. O senso comum do entendimento sobre o que é a vida nos diz que se trata do desenvolvimento de um sujeito diante de uma série de fenômenos que vão coexistindo com ele em justaposição: num primeiro momento um sujeito experimenta o sorvete; num segundo momento o mesmo sujeito experimenta uma aula de literatura; num terceiro momento uma viagem em um ônibus super lotado... Porém, Deleuze nos diz que um só existe quando da aniquilação do outro, ou seja, que o sujeito somente existe a partir da aniquilação do objeto. De modo que os objetos, o outrem, compõem a coletividade de forças que integram o mundo real – no presente somente existe objeto. Quando determinada força é aniquilada, ou seja, deixa de existir, se torna passado, a intensidade da impressão que ela produziu será determinante na escolha do uso de seu rebotalho para a confecção do ser – “eu sou o mundo passado” (Ibid., p. 320). Então, no presente apenas existe objeto, enquanto que no passado apenas existe sujeito. Assim, a vida passa a ser uma fenda de atravessamentos, alguns desses atravessamentos são tão pregnantes que acabam por se colarem nas bordas da fenda. A costura que se realiza com esses vetores que deixaram rastros compõe aqui o que chamamos ser ou eu. Com essa mudança na orientação do pensamento o ser deixa de se apresentar como uma figura de luz que projeta seu entendimento sobre as coisas. Agora ele é consequência da força das coisas em si, ou como diz o próprio Deleuze: “A consciência deixa de ser uma luz sobre os objetos para se tornar uma fosforescência das coisas em si” (Ibid., p. 321). Deste modo, aquilo que chamamos ‘nossa natureza’, ‘personalidade’, ‘ego’, ‘meu jeito de ser’, é, afinal, um brilho que resiste, uma luminescência que sobra, melhor dizendo: vários brilhos e luminescências de intensidades e durações diferentes. Somos a fosforescência das coisas que eram, que nos atravessaram. Em uma concepção ontológica a fosforescência não é o inconsciente, não é a memória pessoal, não são os traumas de infância. A fosforescência são os acontecimentos que nos atravessaram, ou seja, as coisas em si, já aniquiladas e presentes como rebotalho. O ser vem a ser a fosforescência das coisas.

Depois de apresentarmos a fosforescência na percepção, na história e na ontologia, para encaminhar o fim deste item e com ele o capítulo segundo desta tese, entendemos ser possível estabelecer a estética da fosforescência: – A estética da fosforescência consiste de nunca apreciar uma obra de arte sob a lógica da interpretação – para interpretar é necessário que exista um sujeito contemporâneo ao objeto observado – O que se propõe aqui é a lógica da experimentação: viva apenas o atravessamento do objeto; experimente suas intensidades e velocidades, suas afecções. Quando o objeto se aniquilar, se tornar passado, faça uso de suas potências fosforescentes na confecção do seu ser metamorfo. O espírito não é sujeito, ele está sujeito (DELEUZE, 2012, p. 22).

3 – Processo Criativo No presente capítulo apresento obras por mim elaboradas nos últimos anos com o intuito de estabelecer uma descrição tanto no âmbito da poética como da técnica. Tais descrições tem por finalidade explicitar os mecanismos, os procedimentos, as tomadas de decisão no fazer enquanto compositor. Ora, o título da tese fala de uma reflexão e proposta de composição, mas de fato, o que temos são diversas reflexões e propostas de como se pode compor. Pluralidade e diversidade são termos caros aqui. Ao longo das leituras meu interlocutor deve ter percebido que não é meu anseio traçar uma linha única, buscar universalidade ou unidade centralizadora. Mas, de outro modo, o que se busca é justamente as plurais lateralidades, a empresa de projetos polifacéticos – a condução em uma arte de superfície (perversão): “o mais profundo é a pele” (VALÉRY apud Deleuze, 2013, p. 113). Após uma breve reflexão poética apresentarei a descrição dos processos nas peças Guitar I, II e III, em seguida na obra Vetor, Complementaridade, Acorde Webern…, depois em Amostras para orquestra de sopros, ReComposição para orquestra de câmara e, ao final, em Fosforescência para orquestra de cordas. A maior parte destas obras foi estreada em ocasiões onde pude tomar gravações amadoras, portanto, juntamente com as descrições colocarei links de internet para apreciação em áudio e/ou vídeo das mesmas. Também é importante ressaltar que as partituras integrais das obras listadas estão nos anexos desse relatório de pesquisa. O leitor poderá acompanhar as descrições por meio da numeração dos compassos.

3.1 – Poética Com toda essa heterodoxia consigo visualizar um ponto de convergência entre as mais diversas práticas e visões que conjugo no ato de compor: vou chamar esse elo de apropriação. Podemos ver apropriação no ato de recortar e colar, podemos ver apropriação em extrair e citar, produzir uma referência, um fazer à la manière… e mesmo, há apropriação nos projetos de tradução ou transdução. Essa apropriação é semelhante à concepção deleuziana de história como fruto de uma enrabada36. Dentre outras coisas, é nesse sentido que os conceitos cunhados por Deleuze é pujante neste 36

Palavra utilizada pelo próprio filósofo.

trabalho. Em Conversações (2013), Deleuze explica que quando escreveu sobre Kant ele procedeu como que por meio de uma enrabada – era assim que ele entendia a história da filosofia. Ele se imaginava como que chegando pelas costas de determinado autor para lhe fazer um filho – uma “imaculada concepção”. Tal filho tinha a necessidade de ser um autêntico filho do autor, mas tinha também que ser monstruoso “porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas” (DELEUZE, 2013, p. 14-15). De maneira muito semelhante procedo minhas apropriações quando reescrevo um tema clássico, quando recorto e redistribuo acordes, sobrepondo e justapondo o que estiver ao alcance de minhas mãos. Entretanto, no meu trabalho se diferenciam dois níveis de apropriação: intermusical e extramusical. As apropriações intermusicais são as que ocorrem sobre materiais consagradamente musicais, no caso, tanto as práticas que chamo de colagem como as que eu chamo de citação. As apropriações extramusicais ocorrem, por sua vez, sobre materiais não consagradamente musicais, como se apropriar de um algoritmo, de uma carta celeste, de um conceito filosófico. Como já comentado em capítulos anteriores, muitos dos atributos ditos musicais foram outrora frutos da empresa de se apropriar de potências extramusicais e, até mesmo, os conceitos que polarizam essa tese: a colagem das artes plásticas e a citação da arte literária. Mas a diferenciação aqui estabelecida não se dá pelo fato de determinado elemento ter a origem dentro ou fora da música, mas se, em um determinado momento, tal elemento é considerado musical de maneira consagrada ou não. Minha poética abrange as apropriações inter e extramusicais. Seria o mesmo dizer que se permite a nomadismos entre os subterritórios da nação musical, mas também em viagens mais longínquas, ao estrangeiro. Outro elemento poético que me contamina e que vai permear em grande medida minha composição é o interesse pelo caos. De diversas maneiras e em vários procedimentos insiro jogos com a aleatoriedade ao longo do processo composicional – uma busca por musimancia. Às vezes o acúmulo de sobreposições (polimetrias, poliritmias, politonalidades) e o exagero da técnica levada ao extremo já darão conta da produção de um objeto musical caótico. Mas em outras ocasiões, jogos ativos de aleatoriedade são produzidos: cartas, sorteios, dados, moedas etc. Por fim, um terceiro elemento incorpora de maneira intensiva minha poiesis. Seria algo entre o Merz e a poética da ruína, ou mesmo, algo semelhante à escrita automática do dadaísmo. Aqui a escrita ecoa uma memória destroçada, esfolada e

desgastada – os elementos são justapostos e os sentidos são renovados na produção não de um senso, mas de um não-senso. Percebo também que as constantes práticas de livre improvisação servem como uma escavadeira ou uma draga que revolve todos os escombros trazendo coisas de baixo para cima e ocultando materiais outrora supervalorizados. As improvisações (solitárias ou em coletivo) alimentam minha escrita assim como escrever injeta energia para novos improvisos. O som de determinada improvisação fica, por semanas, na minha imaginação, e não é verdade que quando escrevo componho o improviso, mas sim, que o processo criativo acaba sendo o processo de digestão da sonoridade. De maneira que a intercombinação de apropriação (inter e extra musicais), caos/aleatoriedade e escrita automática em agenciamento com a livre improvisação formam o eixo poético da minha prática.

3.2 – Guitar (1, 2 e 3) O segundo subitem do capítulo terceiro dedico ao ciclo de obras das Guitar. Trata-se de três obras escritas em homenagem e referência às primeiras colagens surrealistas de Picasso e Braque. As peças são heterogêneas e exploram abordagens distintas da colagem, sendo as duas primeiras curtas e em apenas um movimento e a de número três mais longa e integrada por cinco movimentos. Para tornar clara a explanação vou subdividir esse item em duas partes. 3.2.1 – Guitar 1 e 2 Guitar 1 foi escrita para o conjunto Abstrai da cidade do Rio de Janeiro com a seguinte formação instrumental: soprano, flauta, saxofone tenor e violão. A peça foi estreada no dia 7 de novembro de 2014 no Centro Mexicano para la Música y las Artes Sonoras na cidade de Morelia (México) e teve uma segunda execução dois dias depois no Museo de Arte Contemporaneo na Cidade do México. A partitura pode ser apreciada junto aos anexos do trabalho e a gravação segue no link abaixo: https://soundcloud.com/mamachado/guitar?in=mamachado/sets/guitar

A construção da peça foi inspirada nas primeiras obras de colagem de Pablo Picasso desenvolvidas entre 1912 e 1914. Tais obras integram a série de Guitars: violões construídos por meio de colagens de diversos materiais a partir de jogos com a perspectiva. Na composição musical me propus a construir uma colagem lançando mãos a materiais do repertório guitarrístico. Porém, em minha re-escritura esses materiais deveriam ser executados por outros instrumentos. Ao observar a partitura se perceberá que não há uma sequer nota escrita para violão, há apenas indicações cênicas, mesmo assim, a peça deve ser executada por um violonista e não um ator. Então, enquanto o saxofone, a soprano e a flauta executam passagens guitarrísticas o violonista apenas faz menção de tocar, dubla, dorme, se sente confuso… Outra importante característica cênica da peça é a constituição do palco. O violão deve estar no centro e de frente para o público, se houver iluminação ela deve estar focada nele. Os outros instrumentistas devem estar ou escondidos ou de costas para a plateia. Havendo iluminação de palco a cantora, o saxofonista e o flautista devem possuir iluminação apenas necessária para a leitura. No momento do agradecimento, apenas o violonista fica, se levanta e agradece, os demais músicos saem rapidamente do palco. Para produzir a colagem de citações escolhi materiais de apenas três obras, todas ligadas às tradições populares onde a guitarra/violão tem importante relevância. Para representar o rock e a guitarra elétrica escolhi a canção Dogs composta por David Gilmour e Roger Waters (Pink Floyd), dentro da tradição flamenca elegi Fuente y Caudal de Paco de Lucia e na tradição do choro Um a Zero de Pixinguinha e Benedito Lacerda. As extrações se deram por meio de análises fraseológicas riemannianas. Foram extraídas frases que eram ao mesmo tempo representativas para as obras e para a técnica e sonoridade guitarrística. Os três instrumentos que tocam de fato em Guitar 1 ficam intercalando as citações que ocorrem sempre simultaneamente ao longo da peça. Essa interconexão se dá da seguinte maneira até o compasso 37: 

C. 1 ao 14 – Soprano – Dogs; Flauta – Fuente y Caudal; Saxofone – Um a Zero.



C. 16 ao 28 – Soprano – Um a Zero; Flauta – Dogs; Saxofone – Fuente y Caudal.



C. 30 ao 37 – Soprano – Fuente y Caudal; Flauta – Um a Zero; Saxofone – Dogs.

A partir do compasso 39, e até o fim da peça, os próprios materiais utilizados na peça são reempregados, elaborados e variados, como que em uma tentativa de aprofundamento ou aproximação com os mesmos. O texto expresso pela soprano tem recortes das canções Dogs e Um a Zero, há também o título Fuente y Caudal que é cantado em um momento e a expressão trompe l’oreille37, ao final, para parodiar o trompe l’oiel38 de Picasso. Guitar 2 é também uma miniatura musical. Tem pouco mais do que três minutos e explora um campo semelhante ao da primeira, mas em uma nova perspectiva. Em vez de um grupo de instrumentos completamente distintos do violão executando recortes de obras do repertório guitarrístico, temos agora um quarteto de instrumentos que guardam parentesco com o violão, vivem em uma zona fronteiriça com ele. A peça foi escrita para o coletivo Tempo-Câmara na seguinte formação: bandolim, banjo, violão folk e baixolão. A estreia ocorreu em 23 de julho de 2014 no auditório da Faculdade VillaLobos do Cone-Leste Paulista em São José dos Campos-SP. Abaixo insiro o link onde pode-se apreciar a gravação da estreia: https://soundcloud.com/mamachado/guitar-2-estreia-23-07-14 Nenhum deles é de fato um violão, ou seja, o instrumento padrão, em formato francês ou espanhol, com seis cordas (E-B-G-D-A-E) de nylon. No caso do bandolim temos um instrumento de quatro cordas (cordas duplas em uníssono) de aço com afinação análoga a do violino. O banjo utilizado na peça se trata de um banjo de seis cordas com afinação idêntica a do violão, porém seu timbre é metálico por conta do material das cordas e confecção do corpo do instrumento. O violão folk é um instrumento elétrico (semi-acústico) e com cordas de aço. E, por último, o baixolão, que tem a afinação do contrabaixo elétrico e é semi-acústico, ou seja, algo entre o baixo e o violão.

37 38

Enganar o ouvido Enganar os olhos

Outra diferença, é que em Guitar 2 não parti de citações de materiais do repertório guitarrístico ou de qualquer outro repertório. Aqui, busquei produzir uma montagem a partir de usuais modos de se tocar. Ao longo do laboratório de composição fiquei com os quatro instrumentos em casa e lançava as mãos sobre eles frequentemente sem qualquer tipo de pré-estruturação. A intenção era chegar a matérias ‘naturais’ produzidos pelo agenciamento de minhas mãos com tais instrumentos, que não eram de minha prática de domínio. A anotação desses gestos e materiais produziu um arcabouço ou um inventário semelhante aos alcançados com as análises categóricas de La Rue. Após muito experimentar, alguns gestos eram excluídos e outros elegidos. Em sequência a esse jogo de improvisação categórica comecei a escrever as linhas instrumentais a partir de materiais que eram recorrentes e confortáveis no tocar dos instrumentos. Anotei as linhas em pautas separadas para que uma não influenciasse a outra no sentido de produzir algum tipo de contraponto ou verticalidade. Depois as posicionei na grade e aparei as arestas: defini andamento, compasso, ajustei métrica. Esse processo se deu do compasso 1 até o 24 da peça. Do compasso 26 até o 33 temos um interlúdio contrastante que foi escrito sob a influência das partes lentas de Agon de Stravinsky (à lá manière), novamente em uma abordagem estilística por categorização. A partir do compasso 34 os elementos apresentados anteriormente começam a se mesclar e se transmutar, passeando entre os instrumentos. Alguns desses materiais acabaram adquirindo força e pregnância e começaram a se apresentar como hegemônicos. Então, a partir do compasso 79, interrompi o ostinato apagando paulatinamente as notas de modo aleatório por meio de lance de dados. 3.2.2 – Guitar 3 Guitar 3 encerra o ciclo das Guitars. Ela difere de suas antecessoras por não se tratar de uma peça curta já que tem pouco mais de vinte e um minutos de duração. Entretanto, ela é, na verdade, uma suíte de cinco peças pequenas e independentes. Isso quer dizer que não há uma ordem específica de como se deve apresentá-las nem mesmo é necessário que todas as cinco sejam apresentadas em um determinado concerto. Portanto, não funcionam como movimentos de uma obra ou capítulos de um livro.

Aqui irei apresentar as descrições dos processos composicionais na ordem em que foram executadas na estreia da peça. Isso se dará, apenas, para facilitar a apreciação da partitura e da gravação. A composição foi escrita para o coletivo Tempo-Câmara com o seguinte efetivo: guitarra de sete cordas; 5 guitarras elétricas; contrabaixo; flauta; piano; e bateria. A estreia ocorreu no teatro do SESC-SP em São José dos Campos no dia 1° de março de 2016 sob a regência do Mto. Evaldo Marrano. A partitura segue em anexo e a gravação pode ser apreciada seguindo os links abaixo: https://soundcloud.com/guitarraadoroguitarra/guitar-3-marco-antonio-machado https://www.youtube.com/watch?v=jeJOXTd9X3Q O ponto de unidade que pode se estabelecer entre as cinco peças que compõem Guitar 3 é que todas foram batizadas com conceitos cunhados por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Conceitos que foram apresentados e publicados em duas de suas obras: Anti-Édipo e Mil Platôs. Os conceitos não só dão nome às peças, mas integram importante ponto de partida para as composições. Os cinco conceitos/títulos são: Molar/Molecular; Contaminações (Crise de Velocidades); Máquina de Cortar Presunto; Muro Branco-Buraco Negro; e Mecanosfera. Em sequência passo a descrever o processo composicional em cada uma das peças. Molar/Molecular é uma dicotomia produzida por Deleuze e Guattari e implica uma ideia de dupla visão de mundo, duplo regime de signos, duplo modo de agir. Na ordem da molaridade estão os objetos rígidos, categorizações finalizadas, estado e, no campo da molecularidade temos os fluxos, as transmutações, devir. Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos tornamos são coletividades moleculares, hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos molares que conhecemos fora de nós, e que conhecemos à força de experiência, de ciência ou de hábito (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 67).

Na composição busquei sobrepor um projeto de molaridade a um de molecularidade, um de fluxo e outro de segmentaridade. Para isso, inicialmente, separei

a instrumentação em dois grupos: as cinco guitarras, guitarra de sete cordas e contrabaixo integraram o conjunto a realizar a parte molecular; flauta, piano e bateria formaram o grupo para realizar a parte molar. A partir dessa divisão dois regimes de escrita se estendem ao longo da peça. A parte molecular foi construída por meio de uma colagem de citações onde selecionei alguns riffs39 consagrados no repertório da guitarra elétrica. A seguir insiro a lista de riffs recortados e utilizados na montagem: 

Echoes – Pink Floyd



Come as You Are – Nirvana



Phantom of the Opera – Iron Maiden



From Whom the Bell Tolls – Metallica



Astronomy Domine – Pink Floyd



The Thing That Should Not Be – Metallica



Haeven Can Wait – Iron Maiden



Undertow – Pain of Salvation



Black Dog – Led Zeppelin



Secret Place – Megadeth



Pretty Woman – Roy Orbison



Holy Smoke – Iron Maiden



Lithium – Nirvana



Home – Dream Theater



Trust – Megadeth



Tom’s Diner – Suzana Veiga

Cada um desses riffs foi utilizado apenas uma vez na montagem da peça, porém eles nem sempre aparecem integralmente podendo haver cortes, supressões, repetições de elementos internos, interpolações e prolongações. As citações dos riffs, ao longo da peça, vão se encadeando de acordo com a similaridade intervalar e rítmica entre eles. A ideia era produzir um tapete de simultaneidades que soasse como um fluxo contínuo de riffs de guitarra.

39

Como que pequenos temas, geralmente repetitivos e utilizados em introduções ou pontes sobretudo no rock.

Para a elaboração da parte molar propus uma escritura distinta. A organização das alturas parte da sobreposição politonal de três grupos de dois acordes cada, basicamente Mi maior sobre Fá menor, Láb maior sobre Ré maior e Ré menor sobre Fá menor. A escrita tem também uma métrica mais tradicional. Normalmente há uma homofonia onde o piano executa a harmonia, a flauta a melodia e a bateria marca os ritmos. Essa oposição de regime de escrita sucede do primeiro compasso até o de número 52. A partir do C. 53 a molaridade apresentada pelo piano e pela flauta tenta carregar consigo as guitarras que acabam por se animarem no compasso 56. Entretanto, o que acontece é que, a partir da ascensão descontrolada iniciada no C. 63, toda instrumentação acaba se pervertendo ao devir molecular. Contaminações (Crise de Velocidades) guarda em seu título dois conceitos criados por Deleuze e Guattari e publicados em Mil Platôs (2007). Os pensadores opõem o estatuto da filiação ao da aliança estabelecendo que o primeiro é vertical e genético e o segundo lateral e contagioso. Defendem que as influências laterais exerceram mais pujantes transformações do que as influências genéticas-evolutivas: A rua compõe-se com o cavalo, como o rato que agoniza compõe-se com o ar, e o bicho e a lua cheia se compõem juntos… O clima, o vento, a estação, a hora não são de uma natureza diferente das coisas, dos bichos ou das pessoas que os povoam, os seguem, dormem neles ou neles acordam. É de uma só vez que é preciso ler: o-bicho-caça-às-cinco-horas. Devir-tarde, devir-noite de um animal, núpcias de sangue. Cinco horas é este bicho! Este bicho é este lugar! (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 50)

A tuberculose era um vírus que há milhares de anos atrás apenas afetava bovinos, aí houve a pecuária: agenciamento lateral homem-boi. Com o passar do tempo: homem-boi-vírus. São José dos Campos, minha cidade, foi considerada no começo do sec. XX cidade de bons ares40 (climatérica), ou seja, propícia para tratamento da tuberculose. Isso trouxe grande volume de capital para a cidade que depois teve condições de abrigar o CTA, Petrobrás, INPE, Embraer e se converter no pólo tecnológico brasileiro. O agenciamento homem-boi-vírus-cidade produziu a doença que salvou São José, pelo menos a salvou do esquecimento. Isso tudo não ocorre de cima 40

Hoje em dia é sabido que foi fruto de uma manobra política para atrair recursos estaduais e federais para cidade.

para baixo, de gene para gene, mas sim de lado a lado, na fronteira, em zonas de contágio. Na composição da peça eu queria ser contaminado por algum meio de expressão não musical para depois escrevê-lo de forma musical. Para essa empresa escolhi o discurso I Have a Dream de (KING, 1963) Martin Luther King, na verdade seus últimos cinco minutos, onde se alcança o ápice dramático. É possível apreciar esse trecho do discurso no seguinte link do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=3vDWWy4CMhE De certo modo, o discurso retórico não se posiciona muito longe da música instrumental ocidental, mas de fato, era o que eu buscava. Queria uma região de fronteira uma zona de contaminação. O primeiro que fiz foi anotar musicalmente o discurso, nota por nota. Para isso fiz uso da escala cromática o que me obrigou a operar certas aproximações de afinação. Na escolha das figuras rítmicas também tive de operar aproximações já que King não seguia fórmulas de compasso e andamento. Ao terminar de anotar observei que havia certos grupos de figuras que se repetiam diversas vezes, tanto no que diz respeito ao ritmo como na direção intervalar. Totalizavam sete grupos que se repetiam muitas vezes ao longo da anotação, esses grupos foram designados para serem executados especificamente pelos seguintes instrumentos: piano, guitarra 1, guitarra 2, guitarra 3, guitarra 4, guitarra 5 e contrabaixo.

Figura 3 - Grupos de figuração repetitivas ao longo do discurso I Have a Dream de M. l. King

Certamente, entretanto, essas figurações não davam conta de todas as notas transcritas do discurso. Para executar as notas fora dos padrões repetitivos elegi a flauta e a guitarra de sete cordas. Observemos como aqui as seis metodologias de análise propostas por Bent são aplicadas. Temos técnica de redução (pro meio de aproximações), processo de comparação (identificando semelhanças), segmentação das unidades (separando em grupos de categorias), contagem dos eventos (para determinar gestos recorrentes ou isolados), busca de regras de sintaxe (na produção do nexo no discurso) e interpretação de elementos expressivos (já que cada elemento integrado a grupo de semelhança tinha sua especificidade expressiva) [tabela 3, p. 19]. Para os instrumentos que executam os padrões rítmicos-intervalares defini que atacassem em fortíssimo nos momentos determinados, e, em seguida, repetissem esses padrões

diminuindo

sua intensidade

lentamente até

desvanecerem-se.

Esses

diminuendos somente são interrompidos quando outro padrão semelhante deve ser atacado em fortíssimo antes de ter findado seu gesto. Por exemplo, no compasso 5 a guitarra 4 ataca seu padrão em fortíssimo e começa a diminuir a intensidade, mas no segundo tempo do compasso 6 ela entra novamente em fortíssimo com outra posição de seu padrão, isso antes de ter findado com naturalidade o diminuendo do padrão anterior. Já para a guitarra de sete cordas e para flauta, que deveriam tocar as notas fora dos padrões evidentes, a estratégia foi diferente. No caso da guitarra eu iniciava a anotação pelo registro mais grave possível no instrumento (a partir do si 0, onde o dó 3 é o dó central) e as notas que se seguiam escrevia sempre mais alta do que a anterior, ou seja, ia sempre subindo na escala do instrumento. Isso até alcançar o registro mais alto na guitarra (mi 5). Na flauta fiz o contrário, sempre a primeira nota executada era escrita no registro mais alto possível (dó 6) e, em sequência, a escrita prosseguia de maneira descendente até o registro mais grave possível (dó 3). Máquina de Cortar Presunto é também um conceito apresentado por Deleuze e Guattari, mas nesse caso em O Anti-Édipo (2011a). Insiro aqui as palavras dos próprios autores: Uma máquina se define como um sistema de cortes. Não se trata de modo algum do corte considerado como separação da realidade; os cortes operam

em dimensões variáveis segundo a característica considerada. Toda máquina está, em primeiro lugar, em relação com o fluxo material contínuo (hylê) que ela corta. Funciona como uma máquina de cortar presunto41: os cortes operam extrações sobre o fluxo associativo. Como o ânus e o fluxo de merda que ele corta; a boca e o fluxo de leite, mas também o fluxo de ar e o fluxo sonoro; o pênis e o fluxo de urina, mas também o fluxo de esperma. Cada fluxo associativo deve ser considerado como ideal, fluxo infinito de um imenso pernil de porco (DELEUZE e GUATTARI, 2011ª, p. 55).

A tese dos filósofos trata cada um de nós como sendo máquinas desejantes por onde o contínuo fluxo da natureza passa; nossas deliberações, vontades, intenções operam por segmentarização, ou seja, produzimos cortes no fluxo. Cortes para extrair e aglutinar, cortes para produzir camadas, cortes para fabricar tijolos e muros… Para a composição da peça homônima fiz uso de materiais oriundos de duas origens apenas: Medula Oblongata (1999) do grupo de música eletrônica californiano The Dust Brothers; e Feste Romane I – Circences (1928) do compositor italiano Ottorino Respighi. Eu procurava um som ou peça para tratar como fluxo contínuo, aí me recordei da trilha sonora do filme Clube da Luta (FINCHER, 1999) que apresentava uma série de sons mecânicos sobrepostos a grooves que se repetiam incessantemente. Encontrei o disco da trilha que fora produzido pelo The Dust Brothers e escolhi a Medula Oblongata (1999) dentre as faixas. Essa música faz uso de bateria, contrabaixo e alguns efeitos eletrônicos, então ao transcrevê-la fiz uso igualmente da bateria e do contrabaixo e utilizei a flauta e o piano para executar os outros sons e efeitos. De modo que essa levada repetitiva com apenas uma parte levemente contrastante se sustenta ao longo de toda minha composição. Novamente seria o grupo das seis guitarras que exerceriam papel de desestabilização. O primeiro movimento do poema sinfônico de Respighi se caracteriza por uma batalha entre o naipe de cordas contra o naipe de metais, por vezes associado ao naipe das madeiras. O naipe das cordas executa melodias, ora enigmáticas, ora de certa doçura, mas, ao longo da peça, os sopros simplesmente intervêm com blocos dissonantes, sempre com ataques fortes, quase como solavancos ou turbulências. Foi aí que operei meu corte de extração, tomei para mim as intervenções dos metais e

41

Grifo nosso

madeiras e joguei fora as melodias das cordas. Na partitura original de Respighi tais intervenções ocorrem do compasso 31 ao 61. Na montagem da Máquina de Cortar Presunto estendi o groove da Medula Oblongata como o fluxo a ser cortado e os cortes são as intervenções dos sopros de Respighi agora transcritos para as seis guitarras. Em minha composição tais intervenções ocorrem do compasso 10 ao 48. Do compasso 49 até o fim da peça a formação instrumental completa se une para citar a coda do primeiro movimento de Feste Romane. Muro Branco-Buraco Negro também é um conceito apresentado em Mil Platôs e trata da especificidade de um plano de significância e outro de subjetivação, como uma nova semiótica; ou como dizem os pensadores: …

Agenciamento

concreto

de

poder

despótico

e

autoritário



desencadeamento da máquina abstrata de rostidade, muro branco-buraco negro – instalação da nova semiótica de significância e de subjetivação, nessa superfície esburacada… a relação do rosto com a máquina esburacada que o produz; a relação do rosto com os agenciamentos de poder que necessitam dessa produção social. O rosto é uma política (DELEUZE e GUATTARI., 2011b, p. 55).

O muro branco é o campo de significância, ou seja, o plano ou continente onde se insistem os sentidos. Tal insistência se dá de modo social. Cada buraco negro é uma subjetivação: um eu, um meu, uma singularidade desejante. Todo jogo da comunicação e da política se estabelece na superposição desses campos: talvez o exemplo matricial onde isso se dá esteja na própria noção de rostidade. Para Deleuze e Guattari desfazer o rosto é crucial, é urgente despactuar-se com a despótica estrutura do muro branco e do buraco negro: Fosforescência acobreada como um rosto no fundo de um buraco negro. Trata-se de sair daí, não em arte, isto é, em espírito, mas em vida, em vida real. Não me tirem a força de amar… Para isso são necessários, sem dúvida, todos os recursos da arte, e da mais elevada arte. É necessário toda uma linha de escrita, toda uma linha de picturalidade, toda uma linha de musicalidade… Pois é pela escrita que devimos animais, é pela cor que devimos

imperceptíveis, é pela música que devimos duros e sem recordação, ao mesmo mo tempo animal e imperceptível: amoroso (Id (Id., 2011b, p. 63).

A composição de Muro Branco-Buraco Negro busca emular algumas das potências conceituais aqui expostas. A ideia básica trata de sobrepor dois planos onde o primeiro é liso, branco, homogê homogêneo, quase vazio, e o segundo, rugoso, segmentado, singular e cheio. Para elaborar o plano do muro branco busquei trabalhar com o agregado do total cromático que deveria se apresentar de maneira ininterrupta sem métrica ou ritmo previsível e em dinâmica pred predominantemente ominantemente suave. Para isso, ao longo da partitura existem coleções de alturas que aparecem entre parênteses nos compassos 1, 16, 31 e 46, sempre em pares. A determinação das alturas quanto à designação da instrumentação se deu por meio de sorteio de da dados. dos. A execução das alturas devem respeitar a dinâmica estática pianissíssima (ppp)) e as alturas devem ser encaradas como classes de nota: é incentivado que as mesmas sejam exploradas nos mais diversos registros, fazendo uso de harmônicos naturais ou artif artificiais iciais e outros efeitos. É também indicado que cada instrumentista crie algum tipo de periodicidade na execução de suas coleções de notas, mas é fundamental que essas periodicidades sejam heterogêneas de executante para executante. A interpretação das coleções ções de notas deve dev se manter ao longo da peça toda, nos compasso compassos indicados apenas se troca o par a se executar. Cada intérprete somente para de executar a coleção quando em determinado momento de sua partitura aparecer uma escrita tradicional. Esta deverá ser executada de maneira normal. Logo após seu término o instrumentista volta a tocar a coleção de notas que estava executando antes. O plano do buraco negro são rugosidades, ou seja, linh linhas as de escrita, linhas de picturalidade e linhas de musicalidade qque ue são lançadas sobre essa pasteurizada parede sonora. Para produzir tal rugosidade escolhi quatro acordes tradicionais do repertório do violão popular e que me provocam deleite (uma subjetivação).

Figura 4 - Acordes de referência para produção do plano de buraco negro

Esses acordes são distribuídos na ordem apresentada na figura e cada um deles é executado em um quarto da peça: C. 1 – 15; C. 16 – 30; C. 31 – 45; e C. 46 – 60. Para a escritura de suas alturas estabeleci um grupo de formas de ataques que eram das possibilidades dos instrumentos e de meu interesse acústico. Essa coleção de ataques me serviu como uma palheta de cores para lançar as linhas. Temos portanto: temolo dobrado, tremolo simples palhetado, tremolo simples rasgueado, tremolos simples com a almofada dos dedos, frulato, trinado ascendente e descendente, trinado com tapping de palheta e slaps com dobramentos em oitavas. Para falar de Mecanosfera insiro o último parágrafo dos Mil Platôs: Existem tipos de máquinas abstratas que não param de trabalhar umas nas outras, e que qualificam os agenciamentos: máquinas abstratas de consistência, singulares e mutantes, com conexões multiplicadas; mas também máquinas abstratas de estratificação, que circundam o plano de consistência com um outro plano; as máquinas abstratas sobrecodificadas ou axiomáticas42, que realizam as totalizações, homogeneizações, conjunções de fechamento. Deste modo, toda máquina abstrata remete a outras máquinas abstratas: não

apenas porque

elas

são

inseparavelmente

políticas,

econômicas, científicas, artísticas, ecológicas, cósmicas – perceptivas, afetivas, ativas, pensantes, físicas e semióticas –, mas porque entrecruzam seus tipos diferentes tanto quanto seu exercício concordante. Mecanosfera (Id., 2011c, p. 245).

Mecanosfera é o nome dado por Deleuze e Guattari para essa enorme e intrincada justaposição e interconexão universal de máquinas, uma rede complexa de intensidades, cortes e nomes, um rizoma. Para a composição da quinta peça do ciclo da Guitar 3 agenciei as máquinas utilizadas nas outras quatro peças. Ou seja, há a sobreposição e justaposição de recortes extraídos de Molar-Molecular, Contaminações (Crise de Velocidades), Máquina de Cortar Presunto e Muro Branco-Buraco Negro. O agenciamento se deu a partir do seguinte mecanismo: eu deveria reescrever para os instrumentos as partes que eles já executaram nas outras peças, mas somente os trechos dos quais eu me recordava vividamente (imagem sonora na mente do compositor). Partindo da premissa 42

Grifos dos autores

bergsoniana de que a memória é do objeto só a parte que me interessa, a lembrança está associada a potência acústica de determinados trechos. Os trechos que ia me recordando foram anotados de instrumento por instrumento não tomando nenhum crivo de organização vertical. Ou seja, eu trabalhava sobre a flauta, por exemplo, e ia anotando tudo que me recordava. Depois, ignorando a camada da flauta eu passava a anotar o piano. Assim ocorreu sucessivamente com os dez instrumentos da camerata. Essa produção de camadas se dá do compasso 1 até o 57. O que ocorre depois (C. 59 até 98) é uma grande coda. A idéia é que fosse como a palavra ‘mecanosfera’ posta entre dois pontos ao final dos Mil Platôs. Musicalmente é a sobreposição de diferentes acordes em diferentes métricas, mas agenciados por semelhante ritmo. Os acordes também foram determinados pelos recortes anteriormente expostos, ou seja, cada instrumento executa o acorde que considerei mais pregnante, mais potente na escuta, operando assim uma redução harmônica dos materiais apresentados.

3.3 – Vetor, Complementaridade, Acorde Webern... Dentre as peças apresentadas e descritas aqui no capítulo três Vetor, Complementaridade, Acorde Webern… é a que guarda menor relação direta com o procedimento central de colagem de citações. Mesmo assim, entendo ser importante falar dela brevemente aqui, pois em dois aspectos o processo composicional utilizado tangencia o arcabouço explicitado nessa tese: perversão na manipulação dos materiais; e contaminação em jogo com a visualidade. A peça foi escrita para saxofone soprano e piano, tem pouco mais de nove minutos de duração e teve sua estreia executada pelo Duo Mojola e Albino no estúdio da Faculdade da Cantareira em São Paulo-SP no dia 27 de Outubro de 2014. A partitura pode ser apreciada em anexo e o áudio da estreia no link abaixo inserido: https://soundcloud.com/mamachado/vetor-complementariedade-acorde-webernmachado A primeira ideia musical que deu início à composição me ocorreu após as provas para entrar no doutorado. Uma das avaliações que fiz tratava de analisar as Variationen

Op. 27 de Anton von Webern. Fato que me favoreceu, pois já havia dedicado bastante tempo debruçado sobre essa obra quando da minha formação como compositor anos antes. Durante o tempo que tinha disponível fui me relembrando dos mistérios envolvidos naquela escrita e de como Webern trabalhava com simetrias e eixos. Saí da prova bastante estimulado mentalmente e comecei, nas semanas seguintes, a experimentar improvisos e escritas a partir do acorde webern e da ideia de complementaridade com o total cromático. Cheguei a escrever alguns trechos, mas que não me satisfaziam de maneira plena. Foi então que em uma conversa com um amigo surgiu a ideia do vetor. Naquela ocasião esse amigo estava morando em Florença por conta do mestrado que realizava na área de design gráfico. Mantínhamos contato via skype corriqueiramente. E, em uma dessas conversas, eu lhe mostrei uma arte feita por uma amiga aqui de São José dos Campos que havia sido publicada em uma revista local. Pietro (meu amigo) disse que gostou muito do trabalho e adicionou que se tratava de um vetor. Eu conhecia o conceito matemático e físico homônimo, mas não entendi como se aplicava àquelas imagens. Ele me explicou que uma arte gráfica feita em vetor é elaborada a partir de um algoritmo: primeiramente o artista desenha, depois digitaliza, por último ele passa os dados por um software que traduz em um complexo algoritmo que descreve com precisão todos os vetores do desenho. A utilidade de se fazer isso se dá na liberdade que o design terá futuramente para trabalhar com a imagem nas mais diversas dimensões e meios de comunicação. Uma imagem muito boa em resolução para uma revista ficaria muito desfocada em um outdoor, por exemplo. A partir do vetor o artista pode exportar o arquivo para a dimensão que cabe a cada momento. Foi a partir dessa conversa que a ideia de vetor foi colada aos procedimentos de composição da peça. Dentre os esboços que tinha experimentado havia um preferido. Era apenas um pequeno trecho de sete compassos, mas foi ali que consegui a sonoridade harmônica procurada.

Figura 5 - Sete compassos iniciais de Vetor, Complementaridade, Acorde Webern...: o material a ser vetorizado. vetorizado

Tratei esse pequeno trecho como o de menor resoluç resolução ão possível. Aqui temos a apresentação doo resumo dos materiais, aquilo que só poderia ser visto de longe, ou sem o auxílio de um microscópio ótico. As seções apresentadas em sequência são cada vez mais extensas, como se eu aumentasse a resolução da imagem, ou a potência da lente. A peça tem, portanto quatro seções, todas sep separadas por barras duplas. 

Seção 1 – C. 1 ao 7



Seção 2 – C. 8 ao 41



Seção 3 – C. 42 ao 87



Seção 4 – C. 88 ao 172 Aqui, é como se aplicássemos de maneira reversa os procedimentos de redução

propostos por Schenker ou Salzer. Partindo de uma espécie de ‘estrutura fundamental’ se buscou uma ampliação e um detalhamento. Importante frisar que a ampliação realizada na segu segunda nda seção foi baseada nos materiais da primeira, a feita na terceira, baseada nos materiais da segunda e a ampliação derradeira elaborada sobre os materiais apresentados na terceira. Com esse procedimento a sonoridade da obra expressa uma unidade raramente encontrada em minhas composições que, normalmente, expressam multifacetadas e desconexas bricolagens. A segunda seção é aproximadamente cinco vezes mais extensa que a primeira; a terceira é aproximadamente nove vezes mais extensa que a primeira; e a quartaa é pouco menos de doze vezes mais extensa que a primeira. Esse processo poderia

durar infinitamente, mas cessa com o intuito de se alcançar uma duração esperada para música de câmara.

3.4 – Amostras para Orquestra de Sopros Amostras é uma peça em apenas um movimento desenvolvida para orquestra de sopros com a seguinte formação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetas, clarone, 2 fagotes, 2 sax alto, sax tenor, sax barítono, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, euphonium, tuba, contrabaixo, tímpanos, pratos, bumbo e harpa. A peça tem duração estimada de treze minutos e foi elaborada para a Orquestra de Sopros da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A estréia foi realizada no dia 31 de maio de 2012 sob a regência do Mto. Marcelo Jardim dentro da programação do XXVI Panorama da Música Brasileira Atual. A partitura integral se encontra no anexo III e a gravação da estreia pode ser apreciado nos links abaixo: https://soundcloud.com/mamachado/amostras-p-orquestra-de-sopros https://www.youtube.com/watch?v=oFW4xdJwm_Y Esta obra foi desenvolvida para ser uma trama de citações musicais simultâneas. É por excelência uma colagem de citações. A idéia básica da peça é gerar uma espécie de panorama da mente musical do compositor, ou ainda, uma egrégora ou nuvem de pensamentos musicais. Para tanto foram escolhidas cinquenta e oito citações musicais para serem encadeadas ao longo de uma estrutura pré-estabelecida. Para maior clareza na explanação deste item a apresentarei em três partes onde, primeiro, abordo a escolha das cinquenta e oito citações, em um segundo momento trato do desenvolvimento da estrutura de encadeamento para, por fim, apresentar como se deu a inclusão das citações na peça. 3.4.1 – As cinquenta e oito citações em Amostras A escolha dos cinquenta e oito trechos musicais se deu de acordo com meu gosto pessoal, fluxo do desejo. Pretendi com essa obra reproduzir a minha mente musical

como uma amálgama inconsciente de elementos acústicos recebidos ao longo de anos. Por isso o número grande de citações se fez necessário. O procedimento se deu da seguinte maneira: na tarde que comecei a desenvolver a obra criei uma lista de quais músicas eu gostaria de ouvir naquele dia, como se eu estivesse criando uma coletânea para deleite pessoal; depois de terminada essa lista, me dediquei a selecionar qual trecho de cada música era mais pregnante para mim, ou seja, quando pensava em determinada música que parte vinha à minha mente em primeiro lugar. A única restrição que tive foram meus arquivos digitais de música, eu deveria possuir registro das músicas escolhidas. Também é importante apontar que procurei ser o mais eclético possível, variando em períodos e estilos. Abaixo insiro a tabela com as obras selecionadas. Notemos que as obras estão listadas por ordem cronológica, da mais antiga para a mais recente. Na coluna mais à direita está a minutagem do trecho escolhido para recorte. Compositor/Grupo

Título da Obra

Duração da Obra

Minutagem do trecho43

01 – Gregoriano

Gaudeamus

3’19’’

1’’ – 20’’

02 – Guiraut de Bornelh

Reis Glorios

6’45’’

4’50’’ – 5’10’’

03 – Josquin Des Prez

Pater Noster

4’40’’

3’50’’ – 4’40’’

04 – J. S. Bach

Missa em Si menor

12’11’’

1’’ – 45’’

05 – J. S. Bach

Invenção a 2 vozes n° 4

45’’

20’’ – 30’’

06 – J. S. Bach

Chacona para violino

13’56’’

10’04’’ – 10’34’’

07 – J. S. Bach

Arte da Fuga n° 1

3’42’’

58’’ – 1’15’’

08 – Norov Banzad

Uyakhan Zambw

3’48’’

2’06’’ – 2’29’’

09 – C. P. E. Bach

Sonata p/ flauta em Lá

5’20’’

4’30’’ – 4’48’’

7’48’’

5’35’’ – 6’05’’

3’16’’

1’59’’ – 2’49’’

menor 10 – Mozart

Concerto para clarineta – II

11 – Mozart

Isis e Osiris (Flauta Mágica)

12 – Haydn

Sinfonia 104 – I

8’34’’

6’14’’ – 6’66’’

13 – Beethoven

Quarteto Op. 18 n° 1 – II

9’24’’

8’15’’ – 8’55’’

14 – Beethoven

Sonata p/ piano n° 13 – II

2’04’’

1’50’’ – 2’04’’

15 – Beethoven

Sonata p/ piano n° 23 – I

10’04’’

9’13’’ – 9’45’’

16 – Beethoven

Quarteto Op. 59 n° 2 – I

8’59’’

5’20’’ – 5’51’’

17 – Beethoven

Concerto p/ piano n° 5 –

8’34’’

5’09’’ – 5’40’’

II

43

18 – Beethoven

Sinfonia n° 7 – I

11’26’’

1’’ – 35’’

19 – Beethoven

Quarteto Op. 135 – IV

6’53’’

4’07’’ – 4’49’’

Tanto a duração como a minutagem do trecho se referem ao arquivo digital escolhido como referência.

20 – Schumann

Cenas Infantis Op. 15 n°

2’09’’

1’40’’ – 2’09’’

2’39’’

57’’ – 1’17’’

12 21 – Schumann

Cenas Infantis Op. 15 n° 13

22 – Chopin

Valsa Op. 64 n° 2

3’44’’

1’14’’ – 1’35’’

23 – Brahms

Sinfonia n° 1 – I

17’18’’

1’’ – 39’’

24 – Brahms

Sinfonia n° 3 – I

13’21’’

5’53’’ – 6’21’’

25 – Liszt

Sinfonia Dante – III

7’18’’

3’52’’ – 4’18’’

26 – Wagner

Marcha Fúnebre de

7’30’’

3’58’’ – 4’24’’

15’58’’

5’28’’ – 6’16’’

Ziegfried 27 – Wagner

Tristão e Isolda – Prelúdio

28 – Wagner

Parsifal – Prelúdio

11’48’’

4’46’’ – 6’38’’

29 – Tchaikovsky

Sinfonia n° 6 – I

19’18’’

12’53’’ – 14’48’’

30 – Debussy

De l’Aube ao Midi sur La

9’23’’

8’16’’ – 9’23’’

8’40’’

7’02’’ – 7’33’’

Mer 31 – Ravel

Concerto p/ piano em Sol maior – I

32 – Ravel

Quarteto – III

7’50’’

4’26’’ – 4’59’’

33 – Bartok

Música p/ cordas

7’30’’

4’06’’ – 4’56’’

percussão e celesta – I 34 – Barber

Adagio para Cordas

8’09’’

5’03’’ – 5’56’’

35 – Schoenberg

Suíte p/ piano Op. 25 –

2’38’’

1’59’’ – 2’38’’

Giga 36 – Stravinsky

Anthen

3’42’’

2’20’’ – 2’56’’

37 – Villa-Lobos

Choros n° 2

2’55’’

1’39’’ – 2’02’’

38 – Villa-Lobos

Concerto p/ violão – II

8’23’’

2’17’’ – 3’02’’

39 – Messiaen

Quarteto para o Fim dos

7’24’’

5’50’’ – 6’38’’

2’58’’

2’22’’ – 2’45’’

Tempos – VIII 40 – Messiaen

Vingt Regards sur l’Enfant-Jesus – III

41 – Brouwer

El Decameron Negro – II

4’48’’

2’39’’ – 3’02’’

42 – Ligeti

Outono em Varsóvia

4’27’’

4’00’’ – 4’27’’

43 – Ligeti

Escada do Diabo

5’16’’

1’58’’ – 2’28’’

44 – Pink Floyd

Nobody Home

3’12’’

2’10’’ – 2’55’’

45 – Pink Floyd

Mother

5’34’’

2’49’’ – 3’20’’

46 – Berio

Chemins IV

9’34’’

6’’ – 1’06’’

47 – Chico Buarque

Construção – Deus lhe

6’24’’

5’20’’ – 6’24’’

pague 48 – Rush

Double Agent

4’53’’

1’33’’ – 2’05’’

49 – Pat Metheny

April Joy

8’15’’

2’33’’ – 2’58’’

50 – Murail

L’Esprit dês Dunes

15’59’’

27’’ – 1’01’’

51 – Iron Maiden

No Prayer for the Dying

4’24’’

3’27’’ – 3’50’’

52 – Djavan

Capim

4’17’’

51’’ – 1’31’’

53 – Foo Fighters

Everlong

4’11’’

1’25’’ – 1’59’’

54 – Nelson Faria

Juliana

3’57’’

51’’ – 1’31’’

55 – Dr. Sin

Isolated

4’00’’

2’30’’ – 3’22’’

56 – Dream Theater

Voices

9’54’’

3’55’’ – 4’53’’

57 – Lindberg

Concerto p/ clarineta

25’03’’

13’18’’ – 14’00’’

58 – Muse

Butterflies and Hurricanes

5’02’’

1’44’’ – 2’38’’

5 – Lista de recortes, minutagem e posição da extração

Essa lista contempla diversos gêneros musicais dentro e fora da tradição da música de concerto. Temos representadas as músicas: medieval, renascentista, períodos barroco, clássico e romântico, além do modernismo francês, serialistas, nacionalismo, música etnográfica, tnográfica, e mesmo rock, jazz e MPB. Isso contribuiu para o enriquecimento do colorido na obra. Notemos também que as durações dos trechos variam consideravelmente, sendo que o mais curto trecho é o de número 05, extraído da Invenção n° 4 de J. S. Bach, tendo apenas dez segundoss de duração e o trecho de maior extensão é o de número 29, extraído da Sinfonia n° 6 de Tchaikovsky, tendo um minuto e cinquenta e oito segundos. A escolha desses trechos terem sido baseadas em arquivos musicais digitais se deu pelo fato de eu não querer extrair os materiais de partituras ou outros meios de registro. Preferi, deste modo, escrever de próprio punho aquilo que eu percebia na escuta dos trechos das obras. Isso já constitui constituiu um filtro de elementos, sendo anotado apenas as o que minha escuta julgou pertinente. Esse trabalho se deu em quase todas as extrações, excluindo apenas alguns casos onde a robusta harmonia ou complexidade rítmica me fez recorrer às partituras, como por exemplo as duas peças para piano de Ligeti que configuram as extrações 42 e 43. A seguir insiro, em caráter ilustrativo, alguns desses manuscritos:

Figura 6 - Material 04 extraído da Missa em Si menor de Johan Sebastian Bach

A figura 1 apresenta a transcrição do material 04 que foi extraído da Missa em Si menor de Bach. Nesse caso a recorte se operou no princípio da obra, ou seja, do primeiro segundo até o quadragésimo quinto. Em seguida insiro a extração material de número 19,, efetuada sobre o Quarteto Op. 135 de Beethoven, nesse caso, o trecho selecionado se situa na parte final da peça (4’07’’ – 4’49’’):

Figura 7 - Trecho 19, recortado do Quarteto Op. 135, IV,, de L. van Beethoven

De maneira semelhante procedi com a seleção, recorte e anotação das cinquenta e oito amostras. Em suma, as peças foram escolhidas de acordo com o que desejei ouvir em uma determinada tarde, depois, os trechos a serem recortados deveriam ser os que em minha memória são os mais potentes dentro das citadas músicas, por fim, a produção manuscrita produzida a partir da escuta dos áudios acabaria por lançar mais

um filtro da minha escuta (e do meu deleite estético) sobre os objetos selecionados. No tópico seguinte abordarei a construção da estrutura da peça. 3.4.2 – Estrutura de Amostras Para a definição da estrutura das entradas das citações foi levado em consideração a posição temporal dos trechos em suas obras originais. Para isso foi feita uma estimativa que determinou proporcionalmente o início dos trechos em relação a totalidade da obra da qual foi extraído. Esse valor proporcional foi tomado como base para a construção da estrutura de entradas em Amostras. Na composição estipulei uma linha temporal de seiscentos segundos (10 minutos) onde marquei as entradas dos cinquenta e oito trechos. Abaixo insiro a tabela com os cinquenta e oito recortes, o valor proporcional da localização dos trechos nas obras de referência e o valor absoluto das entradas na linha de seiscentos segundos a ser utilizada na peça: Lista de

Tempo proporcional transcorrido na obra de

Posição da entrada na linha de 600

trechos

referência no momento da entrada

segundos em Amostras

1

0%

0’’

2

71,6%

7’10’’

3

82,1%

8’11’’

4

0%

0’’

5

44,4%

4’26’’

6

72,2%

7’13’’

7

26,1%

2’37’’

8

55,3%

5’32’’

9

84,4%

8’26’’

10

74,8%

7’30’’

11

60,7%

6’04’’

12

72,8%

7’17’’

13

89,4%

8’56’’

14

88,7%

8’52’’

15

91,6%

9’07’’

16

59,4%

5’56’’

17

60,1%

6’01’’

18

0%

0’’

19

59,8%

5’59’’

20

77,5%

7’40’’

21

35,8%

3’35’’

22

33%

3’18’’

23

0%

0’’

24

44,1%

4’25’’

25

51,8%

5’11’’

26

52,9%

5’16’’

27

34,2%

3’27’’

28

41,5%

4’08’’

29

66,8%

6’43’’

30

88,1%

8’49’’

31

81,2%

8’07’’

32

56,6%

5’40’’

33

54,7%

5’28’’

34

62%

6’11’’

35

75,3%

7’32’’

36

63,1%

6’19’’

37

56,6%

5’40’’

38

27,2%

2’43’’

39

78,8%

7’53’’

40

79,8%

7’59’’

41

55,2%

5’31’’

42

89,9%

8’59’’

43

37,3%

3’43’’

44

67,7%

6’46’’

45

50,6%

5’04’’

46

1%

6’’

47

83,3%

8’20’’

48

31,7%

3’10’’

49

30,9%

3’05’’

50

2,8%

17’’

51

78,4%

7’51’’

52

19,8%

1’59’’

53

33,9%

3’23’’

54

21,5%

2’09’’

55

62,5%

6’15’’

56

39,6%

3’58’’

57

53,1%

5’20’’

58

34,4%

3’26’’

6 – Lista de trechos com suas respectivas entradas temporais proporcionais e inseridas na linha de tempo de Amostras.

O ordenamento das entradas fica assim posicionado: 1° - 01

30° - 32

2° - 04

31° - 37

3° - 18

32° - 16

4° - 23

33° - 19

5° - 46

34° - 17

6° - 50

35° - 11

7° - 52

36° - 34

8° - 54

37° - 55

9° - 07

38° - 36

10° - 38

39° - 29

11° - 49

40° - 44

12° - 48

41° - 02

13° - 22

42° - 06

14° - 53

43° - 12

15° - 27

44° - 10

16° - 58

45° - 35

17° - 21

46° - 20

18° - 43

47° - 51

19° - 56

48° - 39

20° - 28

49° - 40

21° - 24

50° - 31

22° - 05

51° - 03

23° - 45

52° - 47

24° - 25

53° - 09

25° - 26

54° - 30

26° - 57

55° - 14

27° - 33

56° - 13

28° - 41

57° - 42

29° - 08

58° - 15

7 – Os números ordinais representam a sequência das entradas na linha temporal de Amostras, os números cardinais indicam o trecho determinado.

Essa linha temporal de dez minutos foi considerada como o miolo da peça. Esse miolo foi envolvido por uma introdução e um fechamento de cerca de um minuto e meio cada. Deste modo a peça compreende uma duração total de cerca de treze minutos, sendo que nos dez minutos centrais se posicionam as exposições das citações. Podemos imaginar a peça como tendo dois planos dimensionais distintos. O que há do começo ao fim é a exposição de preenchimentos harmônicos com reduções dos materiais das citações embaralhados pela orquestra. E a partir do segundo minuto da peça (compasso 39) até o minuto décimo primeiro (compasso 213) seria outro plano. Este, caracterizado pela apresentação literal das citações: o plano das colagens de citações convive paralelamente ao plano de preenchimentos harmônicos. Essa mistura funciona como uma metáfora do procedimento da imaginação musical. É como se esse plano de fundo, composto por elementos estáticos, embaralhados e atemáticos, representasse o caos mental onde a soma de impressões acústicas desorganizadas vive. Entretanto, em algum momento, lembranças claras vêm à tona e emergem à superfície desse oceano. Essa sucessão de citações promove ao longo da peça uma variedade de densidade de materiais. Logo, a partir do compasso 39 temos a entrada de quatro citações em sobreposição. Porém, em seguida, a densidade diminui bastante para se manter entre uma e três citações simultâneas no primeiro terço da peça. Temos um primeiro pico por volta de 34% dessa seção de seiscentos segundos onde ocorrem seis citações simultâneas. Em seguida diminui novamente a densidade para retomar fôlego e alcançar a maior densidade da peça por volta dos 59% do trecho, tendo oito citações simultâneas. Depois desse clímax novamente diminui a densidade, porém a peça se mantém com no mínimo cinco citações simultâneas até o fim desse trecho central. 3.4.3 – Citações Orquestradas e Alocadas na Peça Neste item apontarei as entradas das citações. A indicação será feita pela numeração de compasso de modo que o leitor possa acompanhar na partitura em anexo.

Abaixo listo cada uma das citações, a numeração de compasso (começo e fim) da citação e a instrumentação utilizada: 

Citação 01 (Gaudeamus – Gregoriano): C. 3944 - 45; trombone 1.



Citação 04 (Missa em Si menor – J. S. Bach): C. 39 – 50; trompas 1 e 2, trompetes 1 e 2 e trombones 2 e 3.



Citação 18 (Sinfonia 7 – Beethoven): C. 39 – 48; piccolo, flautas, oboés, clarinetas, clarone e fagotes.



Citação 23 (Sinfonia 1 – Brahms): C. 39 – 47: saxofones altos, sax tenor, sax barítono e tímpanos.



Citação 46 (Chemins IV – Berio): C. 41 – 56: corninglês.



Citação 50 (L’Esprit dês Dunes - Murail): C. 47 – 57; trompetes 3 e 4 e oboés.



Citação 52 (Capim – Djavan): C. 76 – 87; Clarineta 1.



Citação 54 (Juliana – Nelson Faria): C. 80 – 95; saxofones altos.



Citação 07 (Arte da Fuga 1 – J. S. Bach): C. 91 – 102; flautas, oboés, corninglês e fagote 1.



Citação 38 (Concerto p/ Violão – Villa-Lobos): C. 93 – 110; piccolo, clarinetas, trompas, trombones, clarone, fagotes e harpa.



Citação 49 (April Joy – Metheny): C. 101 – 111; trompete 1.



Citação 48 (Double Agent – Rush): C. 102 – 115; saxofones altos, clarineta 1 e trombones.



Citação 22 (Valsa Op. 64 n°2 – Chopin): C. 105 – 111; piccolo e flautas.



Citação 53 (Everlong – Foo Fighters): C. 106 – 116; corninglês, trompas 3 e 4 e euphonium.



Citação 27 (Tristão e Isolda – Wagner): C. 108 – 128; flautas, oboés e trompas 1 e 2.



Citação 58 (Butterflies and Hurricanes – Muse): C. 125 – 129; trompetes 2 e 3, trombones 2 e 3 e tuba.



Citação 21 (Cenas Infantis 13 – Schumann): C. 110 – 116; piccolo e clarineta 1.



Citação 43 (Escada do Diabo – Ligeti): C. 115 – 124; piccolo, clarineta 1 e sax alto 1.



Citação 56 (Voices – Dream Theater): C. 120 – 139; clarone, trompetes 2 e 3 e trombones 2 e 3.

44

Utilizaremos ‘C.’ para abreviar a palavra compasso.



Citação 28 (Parsifal – Wagner): C. 124 – 153; flauta 2, corninglês e trombone 1.



Citação 24 (Sinfonia 3 – Brahms): C. 129 – 135; flautas, oboés, clarineta 1, fagotes e saxofones altos.



Citação 05 (Invenção n°4 – J. S. Bach): C. 130 – 133; piccolo e contrabaixo.



Citação 45 (Mother – Pink Floyd): C. 139 – 147; trompetes e trombone 1.



Citação 25 (Sinfonia Dante – Liszt): C. 139 – 145; trompas, trompete 1 e tuba.



Citação 26 (Ziegfried – Wagner): C. 145 – 150; oboé 1, clarineta 1, clarone, sax barítono, trombones e euphonium.



Citação 57 (Concerto p/ Clarineta – Lindberg): C. 143 – 148; piccolo e flautas.



Citação 33 (Música para Cordas, Percussão e Celesta – Bartok): C. 143 – 148; oboés, corninglês e clarineta 2.



Citação 41 (El Decameron Negro – Brouwer): C. 146 – 153; harpa.



Citação 08 (Uyakhan – Banzad): C. 146 – 152; sax alto 1 e sax barítono.



Citação 32 (Quarteto de Cordas – Ravel): C. 146 – 158; oboé 1.



Citação 37 (Choros n°2 – Villa-Lobos): C. 147 – 155; piccolo e clarineta 1.



Citação 16 (Quarteto Op. 59 n°2 – Beethoven): C. 152 – 155; trompa 2 e trompetes.



Citação 19 (Quarteto Op. 135 – Beethoven): C. 159 – 164; trompas, euphonium e tuba.



Citação 17 (Concerto p/ Piano n°5 – Beethoven): C. 154 – 162; oboés, fagotes e harpa.



Citação 11 (Isis e Osisris – Mozart): C. 154 – 162; trombone 2.



Citação 34 (Adagio p/ Cordas – Barber): C. 156 – 170; piccolo e flautas.



Citação 55 (Isolated – Dr. Sin): C. 156 – 171; clarineta 1.



Citação 36 (Anthen – Stravinsky): C. 159 – 165; saxofones altos, trompete 3 e trombone 3.



Citação 29 (Sinfonia n°6 – Tchaikovsky): C. 161 – 182; clarinetas 2 e 3; trompetes, trombones 2 e 3 e tuba.



Citação 44 (Nobody Home – Pink Floyd): C. 163 – 175; clarone e harpa.



Citação 02 (Reis Glorios – Bornelh): C. 168 – 172; corninglês.



Citação 06 (Chacona – J. S. Bach): C. 171 – 177; flautas.



Citação 12 (Sinfonia 104 – Haydn): C. 172 – 188; oboés.



Citação 10 (Concerto p/ Clarineta – Mozart): C. 175 – 181; clarinetas e fagotes.



Citação 35 (Giga – Schoenberg): C. 176 – 181; flautas, clarone, sax barítono e harpa.



Citação 20 (Cenas Infantis 12 – Schumann): C. 180 – 185; harpa.



Citação 51 (No prayer for the Dying – Iron Maiden): C. 180 – 184; trompetes 2 e 3 e trombones.



Citação 39 (Quarteto para o Fim dos Tempos – Messiaen): C. 182 – 192; corninglês, clarinetas e clarone.



Citação 40 (Vingt Regards III – Messiaen): C. 187 – 188; trompete 1, trombones 2 e 3, euphonium e contrabaixo.



Citação 31 (Concerto p/ Piano – Ravel): C. 189 – 196; trompetes e harpa.



Citação 03 (Pater Noster – Josquin): C. 189 – 204; sax barítono, trompas e trombone.



Citação 47 (Construção/Deus lhe pague – Chico Buarque): C. 190 – 204; oboés, saxofones, trompetes, trombone 1 e harpa.



Citação 09 (Sonata p/ Flauta – C. P. E. Bach): C. 193 – 198; piccolo.



Citação 30 (La Mer – Debussy): C. 197 – 217; flautas, oboés, corninglês, clarinetas 1 e 2 e contrabaixo.



Citação 14 (Sonata n°13 – Beethoven): C. 199 – 202; oboés e sax barítono.



Citação 13 (Quarteto op. 18 n°1 – Beethoven): C. 199 – 207; piccolo e trompas 1 e 2.



Citação 42 (Outono em Varsóvia – Ligeti): C. 202 – 208; fagotes e contrabaixo.



Citação 15 (Sonata n°23 – Beethoven): C. 204 – 214; clarinetas, clarone, saxofones, trombones, euphonium e tuba.

Na escolha da instrumentação para a escrita das citações levei em consideração as possibilidades técnicas de cada instrumento, a tessitura e, evidentemente, o caráter expressado no trecho citado. A instrumentação original não foi determinante na citação. Muitas vezes a harpa desempenhou o papel do piano ou do violão como em Nobody Home do Pink Floyd ou no Concerto p/ Violão de Villa-Lobos. As melodias marcantes normalmente foram expostas pelos instrumentos de alcance mais agudo. Bicordes guitarrísticos como em Everlong ou Double Agent foram designados aos trombones e trompas pelo aspecto metálico de seus timbres.

Outra questão interessante em relação à reescrita das citações foi a combinação de andamentos diferentes. Em quase todos os casos houve aproximação, ou seja, se o andamento original era de setenta batidas por minuto e se, naquele trecho, Amostras estava com sessenta batidas por minuto, se escrevia assim mesmo, sem alteração. Porém, quando a peça original estava em noventa e Amostras estava em sessenta procurei escrever em quiálteras para aproximar do andamento original. Em outros momentos, por exemplo, transformei a figura de unidade de tempo de uma semínima para colcheia pontuada para assim obter um andamento mais rápido e mais próximo da origem da citação. Quando quis reproduzir um andamento mais lento transformei a unidade de tempo de semínima para semínima pontuada ou mínima. Com esse procedimento sempre operei aproximações, ou seja, não se emprega com exatidão os andamentos originais das peças recortadas.

A composição de Amostras foi minha primeira experiência com citações literais de materiais musicais. Em outros momentos trabalhei a partir de outras obras, por vezes, extraindo modelos formais, também elaborei séries intervalares a partir de materiais temáticos e, mesmo, mesclei elementos musicais entre duas ou mais obras. É claro que para a percepção do ouvinte é como se em Amostras eu estivesse também mesclando materiais, já que na maior parte do tempo há no mínimo duas citações concomitantes. Porém, do ponto de vista do compositor o processo é consideravelmente diferente. Construir colagens musicais é como se ao invés de tijolos utilizássemos paredes ou cômodos prontos para a montagem de uma casa.

3.5 – ReComposição para Orquestra de Câmara ReComposição45 foi escrita para a Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ e teve sua estreia realizada no dia 12 de setembro de 2013 sob a regência do Mto. Ernani Aguiar. A obra tem aproximadamente vinte e um minutos de duração e está dividida em três movimentos: I – Os 12 obstinados (6’40’’); II – TINTAS (5’40’’); e III – Auto-retrato do Pai-Rei e a Catacumba (8’40’’). A formação instrumental consiste de flauta/piccolo, oboé, clarineta em sib, fagote, saxofone tenor, 45

Peça premiada pela Secretaria de Estado da Cultura do Rio de Janeiro.

duas trompas em fá, tímpanos, caixa-clara, bombo, sinos tubulares, e cordas. As partituras estão inseridas em anexo. Abaixo insiro os links para apreciação da gravação amadora da estreia: https://soundcloud.com/mamachado/sets/recomposi-o-p-orquestra-de-c https://www.youtube.com/watch?v=8MfnptFZQYE Subdivido esse item em três partes, onde em cada uma delas me proponho a descrever o processo composicional de cada movimento.

3.5.1 – I Os 12 Obstinados: Como estratégia composicional estabeleci a ideia de dois campos de materiais, ou seja, recortes de materiais de duas naturezas foram efetuados e depois esses campos foram sobrepostos na elaboração da peça. 1°

campo:

escolhi

doze

ostinatos

e

os

extraí

de

suas

obras

originais

(desterritorializados): Nome da obra

Compositor ou grupo

1

Billie Jean

Michael Jackson

2

Take Five

Paul Desmond

3

She Wolf

Megadeth

4

Vecchio Castello

Modest Mussorgsky

5

Oiseux Exotiques

Olivier Messiaen

6

A Change of Seasons

Dream Theater

7

Quarteto Op.18 n°1, Allegro com brio

Ludwig van Beethoven

8

Estudos Sencillos n°1

Leo Brouwer

9

Sonata Op.31 n°2, Tempest

Ludwig van Beethoven

10

Sonata p/ Flauta, Viola e Harpa, Final

Claude Debussy

11

Le Sacre Du Printemps, Danses des Adolescentes

Igor Stravinsky

12

Prelúdio n°24

Frédéric Chopin

8 – Origem das extrações dos doze ostinatos utilizados na composição do primeiro movimento de ReComposição

Abaixo insiro dois dos ostinatos para exemplificar as extrações:

Figura 8 - Ostinato extraído do Jazz Take 5 de Paul Desmond

Figura 9 - Ostinato extraído do primeiro Estudo Simples p/ violão de Leo Brouwer

Determinei que cada um dos doze ostinatos deveria ser tocado um total de doze vezes ao longo da peça (primeiro movimento). Deste modo, fazendo uso de um dado de doze faces (um dodecaedro) determinei aleatoriamente as entradas dos ostinatos. Importante observar que nesse procedimento não houve a necessidade de se esgotar uma série de doze ostinatos para iniciar outra. Isso possibilitou uma sequência menos controlada tendo ostinatos que chegaram a doze utilizações muito antes que outros sendo, deste modo, abandonados na obra. Conforme os ostinatos tinatos iam sendo sorteados eles eram dispostos na partitura. Não propriamente em justaposição, mas buscando uma sobreposição paulatina até alcançar o tutti orquestral. Quando o tutti fora alcançado produzi cortes dramáticos e novamente iniciei a sobreposição ição dos ostinat ostinatos. os. Há três picos de densidade: o primeiro ocorre ao final do compasso 59, quando o tutti é abruptamente cortado e já inicia uma nova sequência com o piccolo, depois fagote e assim por diante; o segundo corte é menos abrupto, há um esvaziamento ento que alcança o silêncio no compasso 121; novamente a orquestra vai se enchendo com as sobreposições dos ostinatos e temos o terceiro corte ao fim do compasso 218, onde finda esse movimento.

2° campo: Aqui houve a extração e elaboração do modelo harmônico a ser seguido. Os materiais foram extraídos do Estudo para Violão n°4 de Heitor Villa-Lobos, também conhecido como Estudo dos acordes repetidos. O estudo de Villa-Lobos tem sessenta e cinco compassos e cada compasso apresenta de um a seis acordes diferentes, totalizando duzentos e dezoito acordes. A análise prosseguiu da seguinte maneira: posicionei em uma nova pauta os duzentos e dezoito acordes em seus compassos respectivos, ou seja, uma espécie de redução harmônica, abandonando os ritmos e repetições (conforme o item 1 da tabela 4).

Figura 10 - Redução harmônica para extração dos acordes do Estudo n°4 de Villa-Lobos

Foi criada, então, uma escala para cada grupo de notas apresentado nos compassos do Estudo.. Por exemplo: no primeiro compasso temos três acordes sendo a) Sol Maior (sol-si-ré), ré), b) Si bemol com o baixo na sétima (lab (lab-ré-fa-sib) sib) e c) novamente Sol Maior. Desse conjunto de notas resultou a seguinte escala: sol sol-lab lab-sib-si-ré-fa. E assim procedi em sequência cia gerando sessenta e cinco escalas a partir dos duzentos e dezoito acordes.

Figura 11 - Escalas produzidas com o conjunto de alturas empregadass nos acordes por compasso. compasso

Em seguida determinei que a peça devesse ter exatamente duzentos e dezoito compassos e que os grupos de compassos iriam fazer uso das escalas das quais os grupos de acordes foram geradores. Ou seja, do compasso um a três da peça se utiliza a escala produzida do conjunto de notas extraído dos acordes de um a tr três do Estudo de Villa-Lobos, Lobos, nos compassos de quatro a seis se faz uso da escala produzida a partir dos acordes de quatro a seis do Estudo, e assim sucessivamente. Deste modo pôde-se se construir um esqueleto harmônico. Sobre esta estrutura é que ostinatos foram ram escritos. No uso dos ostinatos os padrões rítmicos e as direções intervalares foram respeitados, mas as alturas deveri deveriam am ser as das escalas extraídas, Estas últimas funcionando como um filtro diatônico. 3.5.2 – II - TINTAS: Na elaboração de Os 12 Obstinados busquei explorar as reiterações rítmicas e uma textura coral com grandes blocos. Já em TINTAS procurei uma escrita mais horizontal, melódica-polifônica. polifônica. É importante dizer que o título TINTAS (em maiúsculas) é na verdade fruto de um acróstico:

canTo Imortal e soNâmbulo ao concerTopAssacalha em Sol maior Essa montagem se deu a partir de um jogo de palavras com os títulos das cinco obras escolhidas para se fazer os recortes extrativos. Eis a lista das obras: A) Quarteto para o Fim dos Tempos - Louvor à Imortalidade de Jesus – Olivier Messiaen B) Trio - Passacalha – Maurice Ravel C) Cesare, il Sonambulo – Celso Mojola D) Concerto p/ Piano em Sol Maior – Maurice Ravel E) Canto do Rouxinol – Igor Stravinsky O que se buscou com essa seleção foi a constituição de um conjunto de peças onde o emprego de melodias marcantes fosse característico. De cada uma dessas obras extraí, portanto, uma melodia.

Figura 12 - Melodia extraída do Canto do Rouxinol de Stravinsky.

Em seguida cada uma dessas melodias foi dividida em trechos. Foi determinado que TINTAS seria escrita em um andamento de quarenta e oito batidas por minuto e com a unidade de tempo da semínima, portanto cada tempo musical teria duração de 1,25 segundos. Ao operar as divisões das melodias em trechos, cada um deles deveria ter aproximadamente 1,25 segundos. Não há aqui, desse modo, uma separação dos trechos

pela sintaxe, ou levando em conta características formais ou motívicas. Há aqui uma separação analítica arbitrária. Como as melodias tinham tamanhos diferentes, o número de trechos variou da mesma forma. Usando a ordem alfabética listada anteriormente as divisões dos trechos ficaram da seguinte maneira: Melodia A – 258 trechos Melodia B – 48 trechos Melodia C – 23 trechos Melodia D – 195 trechos Melodia E – 18 trechos Há grande heterogeneidade na proporção numérica de trechos, a menor das melodias (Canto do Rouxinol) tem menos de 30 segundos e a maior (Quarteto para o Fim dos Tempos) tem mais de 5 minutos, porém essa supremacia numérica das melodias A e D, por exemplo, não se explicita na escuta da obra finalizada, justamente por conta do processo empregado que veremos a seguir. Posteriormente criei uma única melodia através do encadeamento justaposto dos trechos. Novamente entra aqui o elemento aleatório. Recortei bilhetes com as inscrições A, B, C, D e E na quantidade respectiva a de trechos. Ou seja, duzentos e cinquenta e oito bilhetes A, quarenta e oito bilhetes B, assim por diante. Os bilhetes foram colocados em uma sacola para realizar o sorteio. Assim produzi um mapa da melodia principal, tal melodia funciona, de certo modo, como um cantochão sobre o qual outros procedimentos vão se assomando. Além desse cantochão, que transcorre a peça toda, adotei um procedimento para gerar polifonia. Cada trecho da melodia que ia sendo inserido na partitura haveria de ser reproduzido por outro naipe da orquestra. Mas esta ‘reprodução’ poderia ser para frente ou para trás no tempo, ou seja, uma antecipação no caso de ser para traz no tempo. Portanto, para cada trecho se lançava uma moeda, caso caísse ‘cara’ o trecho era reproduzido à frente, se caísse ‘coroa’ o trecho seria antecipado. Depois do ‘cara ou coroa’ um dado de seis faces era lançado para determinar em quantos compassos adiante ou para trás o trecho deveria ser reutilizado.

Evidentemente, com esse procedimento a peça ia se densificando cada vez mais. Então quando não mais era possível desdobrar a orquestração operei cortes onde interrompi as reproduções, permanecia apenas a grande melodia principal. Assim como no primeiro movimento há três momentos de máxima densidade. O primeiro corte ocorre ao final do compasso 15, o segundo durante o compasso 53 e o terceiro demarca o fim da composição. 3.5.3 – III - Auto-Retrato do Pai-Rei e a Catacumba: O título desse movimento também foi construído a partir de uma montagem com títulos de algumas obras das quais os materiais foram recortados. A saber: Regard du Pére (primeira no ciclo Vingt Regards sur l’enfant-Jésus) de Olivier Messiaen ; Catacumba (da obra Quadros de uma Exposição) de Modest Mussorgsky; e, por fim, O King (segundo movimento da Sinfonia) de Luciano Berio. Considerando que no primeiro movimento da obra explorei a textura coral por meio de ostinatos e que no segundo movimento ocorreu um desenvolvimento polifônico-horizontal, optei por elaborar o terceiro movimento pela ótica da homofonia. Assim como em Os 12 Obstinados ao se desenvolver a estratégia de composição estabeleci dois campos de extração para o trabalho. 1° Campo: analisei as harmonias das obras citadas acima. Em seguida extraí todos os seus acordes em sequência, gerando a seguinte coleção de materiais: 

Regard du Pére – 13 acordes



Catacumba – 28 acordes



O King – 29 acordes

Utilizei, para isso, uma noção ampliada do que se entende por acorde. Da peça de Mussorgsky foram extraídos coleções verticais do dicionário da música tonal, já em Messiaen temos acordes oriundos de seus modos de transposição limitada com polifonias de até oito sons, e os acordes extraídos de O King seriam mais precisamente agregados sonoros com polifonias chegando ao número de dez alturas simultâneas. A título de exemplo abaixo insiro as extrações harmônicas em Regard Du Père:

Figura 13 - Extração harmônica de Regard du Père de Messiaen.

Esta coleção nos deu ao todo setenta acordes. Esses acordes foram sequenciados através de um sorteio aleatório de bilhetes, semelhante ao procedido em TINTAS. Com essa nova ordenação agrupei os acordes para alcançar vinte e dois conjuntos. Por exemplo, os acordes de um a três formaram o conjunto um, o acorde de número quatro formou o conjunto dois, o acorde de número cinco formou o conjunto três, os acordes de seis a oito formaram o conjunto quatro. Assim até totalizar vinte e dois conjuntos. O número de acordes que pertenceriam a cada conjunto foi novamente determinado por lance de dados de seis faces, de maneira que os menores conjuntos foram compostos por um acorde apenas e os maiores por até seis. Esses conjuntos de alturas formaram então vinte e duas escalas que em seguida foram reservadas. 2° Campo: os dois livros de prelúdios de Claude Debussy foram escolhidos para se efetuar as extrações de estruturas homofônicas. De cada um dos vinte e quatro prelúdios recortei um pequeno trecho onde fosse possível constatar uma clareza homofônica. Os trechos extraídos variaram de um a oito compassos de duração. Os recortes foram reanotados e dois deles foram excluídos, pois se necessitava de vinte e dois trechos apenas, para coincidir com os vinte e dois conjuntos de alturas reservados no primeiro campo. Os trechos excluídos foram os pertencentes aos Prelúdios IV e IX do primeiro livro.

Figura 14 - Estruturas homofônicas extraídas e reanotadas dos Prelúdios I, II e III do segundo livro de C. Debussy.

O ordenamento pelo qual as vinte e duas estruturas homofônicas foram utilizadas na composição não foi previamente ou aleatoriamente determinado. Durante a composição o meu interesse é que foi determinante para o encaixe das vinte e duas estruturas. A composição prosseguiu da seguinte maneira: dentre as vinte e duas estruturas homofônicas uma era escolhida, ela servia de base para a escritura, mas as alturas eram determinadas pelos conjuntos no campo número um. De acordo com os desdobramentos ocorridos eu então escolhia uma segunda estrutura homofônica, excluindo as já utilizadas anteriormente. Esta segunda estrutura, por exemplo, era escrita respeitando as alturas do próximo conjunto. A sucessão das vinte e duas estruturas com os vinte e dois conjuntos de alturas se dá até o meio da peça, mais precisamente até o compasso de número 74. No

compasso 75 temos uma pausa dramática com uma fermata e, a partir do C. 76, muda-se completamente o modus operandi. Intuitivamente criei uma longa melodia cantabile. Criei a melodia improvisando com minha voz. Em seguida a anotei. Cada naipe da orquestra passa a ‘solar’ a melodia. As entradas se dão na seguinte ordem: saxofone tenor (C. 76); viola (C. 82); clarineta (C. 88); violino II (C. 100), fagote (C. 124); violino I (C. 136); trompa II (C. 148); flauta (C. 154); trompa I (C. 162); e oboé (C. 174). Essa melodia vai sendo tocada pelos instrumentos simultaneamente, porém as escrituras foram elaboradas com atrasos, mudanças rítmicas, mudanças de registro, preenchimento com mais notas, de maneira que a melodia soasse ‘borrada’ quase como uma heterofonia. Se aplicou aqui os procedimentos de transformação temática de Réti, mas a execução se deu em sobreposição ao invés de em justaposição. Os naipes da orquestra enquanto não executando a melodia fazem um acompanhamento em tutti. Esse acompanhamento escrevi a partir de desdobramentos de elementos motívicos dos materiais já apresentados nesta peça, ou seja, extraídos da primeira metade da mesma. Assim uma nova homofonia é estabelecida. As partes A e B desse movimento aí encontram sua unidade. Depois do clímax da grande melodia os materiais vão sendo resumidos, indo para o grave e se suavizando, como em um efeito de fade out, onde se finda a obra.

ReComposição é uma obra toda desenvolvida a partir da análise de outras, precisamente quarenta e três obras já existentes. Em alguns momentos as análises extraíram materiais harmônicos, em outros motívicos e até métricos e formais. Estes materiais foram armazenados, reagrupados, resignificados e, por fim, utilizados em um projeto de recomposição. Além de recortes e colagens foi empregado o uso da aleatoriedade para a determinação de escolhas, tais procedimentos envolveram lance de dados (seis e doze faces), sorteios de bilhetes e jogo de cara ou coroa. A escrita automática foi empregada sempre nos preenchimentos das lacunas, mas, com maior relevância na metade em diante do terceiro movimento da obra. ReComposição é uma peça que apresenta os principais processos de meu fazer composicional.

3.6 – Fosforescência (1770 – 2006) para Orquestra de Cordas Fosforescência (1770 – 2006) para orquestra de cordas foi escrita durante o ano de 2014 e, dentre as peças nesta tese apresentadas, é a única que ainda não teve execução púbica. De modo que as considerações que expresso nesse item são em ainda maior nível referentes ao processo criativo. A peça tem duração estimada para pouco menos de dez minutos e pode ser apreciada a partitura junto aos anexos desse trabalho. Como apresentamos no item 2.6 entendemos a fosforescência como uma ideia de consciência que deixa de ser a luz que o ser lança sobre os objetos para se tornar a luz de sobra dos objetos em si. Portanto, a composição do ente é o passado das coisas, na intensidade que as coisas atravessam a fenda do acontecimento. É a partir dessa ideia de reverberação de atravessamentos que a peça é desenvolvida. O subtítulo da peça traz duas datas que delimitam na linha do tempo da história a origem dos materiais. A saber, o que utilizei como extração em Fosforescência são materiais do repertório pianístico compostos por Beethoven, Chopin, Liszt, Debussy, Messiaen e Ligeti. 1770 é o ano de nascimento de Beethoven e 2006 é o ano de falecimento de Ligeti. Como a composição para piano desses compositores é vasta escolhi dentro de cada uma delas um determinado grupo de peças: 

Beethoven – 32 Sonatas46 p/ piano



Chopin – 24 Prelúdios p/ piano



Liszt – 12 Estudos Transcendentais p/ piano



Debussy – 24 Prelúdios p/ piano



Messiaen – 20 Olhares sobre o menino Jesus p/ piano



Ligeti – 18 Estudos p/ piano Essas coleções de peças apresentam certa homogeneidade estilística e

processual. Cada grupo de obras pode ser encarado com um bom representante da mentalidade poética e do resultado estético do seu tempo. O desenvolvimentismo nas Sonatas de Beethoven, o lirismo e o virtuosismo nos Prelúdios de Chopin e nos Estudos de Liszt, os modalismos e a emancipação da dissonância nos Prelúdios de Debussy, a ideia fixa, as simetrias e as polimetrias nos Vingt Regards de Messiaen e a pregnância, 46

Para as Sonatas foram considerados apenas os primeiros movimentos de cada uma delas.

ilusão acústica e técnica estendida nos Estudos de Ligeti. E há também pontos de conexão entre essas seis ilhas: o piano; a escrita tradicional e precisa; e a relevância no meu imaginário. A ideia da peça é percorrer linearmente esses conjuntos de obras, de maneira que Beethoven somente agencia Beethoven, Chopin agencia Chopin, Liszt agencia Liszt, e assim por diante. Então estabeleci que a peça teria seis sextos justapostos em sequência cronológica. Deste modo haveria a seguinte correspondência: Beethoven – 1° sexto; Chopin – 2° sexto; Liszt – 3° sexto; Debussy – 4° sexto; Messiaen – 5° sexto; e Ligeti – 6° sexto. As extrações ocorreram sobre dez compassos de todas as peças de cada um dos grupos. Determinei que os materiais a serem extraídos deveriam ser oriundos de localidades nas peças referentes à proporcionalidade produzida. Ou seja, as extrações em Beethoven ocorreram sobre os dez primeiros compassos. Mas em Chopin se calculou onde aproximadamente iniciava-se o segundo sexto de cada um dos 24 Prelúdios e se recortou os dez compassos a partir daí. O mesmo procedi com os Estudos de Liszt só que partindo do terceiro sexto das peças. A partir do quarto sexto em Debussy e do quinto sexto em Messiaen. Sobre os Estudos de Ligeti operei o recorte sobre os dez últimos compassos de cada uma das peças. Não fiz, entretanto, uso de todos os materiais de todas as cento e vinte peças – produzi um sistema de seleção. Uma das coisas que busquei nessa peça era produzir uma costura mais alinhavada do que as que foram elaboradas anteriormente. Então estabeleci um elemento de conjunção, um eixo para determinar quais das sonatas, prelúdios, estudos deveriam ser utilizadas dentre a totalidade de extrações. Tal eixo veio a ser a harmonia, o conjunto de alturas. Vou exemplificar esse procedimento a partir das Sonatas de Beethoven. No caso das Sonatas de Beethoven eu tinha trinta e duas peças e, especificamente, os dez primeiros compassos de cada uma delas. Comecei fazendo uma análise harmônica com o objetivo de cifrar todos esses compassos. Em seguida anotei as cifragens lado a lado por número de compasso: as trinta e duas cifragens dos compassos um; as trinta e duas dos compassos 2; etc. Ao comparar as cifras eu agrupava por identidade de incidência de acordes. E determinava, assim, o grupo com maior número de repetições – a moda. Esse grupo era escolhido, e somente os materiais desses grupos é que foram utilizados na composição de Fosforescência.

Figura 15 - Cifragem dos compassos n° 6 das 32 Sonatas p/ piano de Beethoven e anotações de extração.

Na figura acima exemplifico o processo com o trabalho feito sobre os compassos de número seis nas trinta e duas Sonatas para piano de Beethoven. O grupo de maior moda de cifras englobou as Sonatas de número onze, doze, treze, vinte e um e vinte e dois. Nesse grupo temos a incidência repetida da tríade de Si bemol maior que por vezes tem a adição da sétima. Somente esse grupo foi extraído para uso e, para isso, anotado literalmente como aparece na figura.

Esse procedimento foi feito sobre os grupos de dez compassos pré-selecionados de todos os grupos de composições dos seis autores já elencados. A única diferença se deu no modo de se observar o conjunto de alturas. Em Beethoven, Chopin, Liszt e Debussy a ideia de cifrar a partir de um dicionário de acordes tradicionais foi efetiva. Mas, em Messiaen e em Ligeti tal procedimento não foi eficiente. Então, em vez de cifragem de acordes, anotei conjuntos de classes de alturas e, do mesmo modo, os compassos que apresentavam conjuntos de maior semelhança foram escolhidos para a extração. Os grupos de moda variaram de duas peças no mínimo até seis no máximo. Depois de ter extraído todos os compassos selecionados eu tinha em mãos todo o material a ser utilizado na costura/colagem de citações. Os materiais foram transcritos na sequência predeterminada: Fosforescência tem, portanto, sessenta trechos que costuram os elementos extraídos. Temos então os materiais dos compassos 1 de Beethoven, seguidos pelos materiais dos compassos 2, depois 3 etc. E assim, Beethoven de 1 até 10, Chopin de 11 até 20, Liszt de 21 até 30, Debussy de 31 até 40, Messiaen de 41 até 50 e Ligeti de 51 até 60. Os grupos de um a sessenta não guardam relação com a numeração de compasso da composição final, pois como havia grande quantidade de materiais sobrepostos preferi ter liberdade de tempo para expô-la. E, além disso, há uma espécie de layering47 na transição de um grupo para o outro: enquanto elementos do grupo n aparecem ainda escritos para o violoncelo e para o violino I, elementos do grupo n+1 já são esboçados na viola, por exemplo. Entretanto, essa estratificação somente ocorre intrinsecamente aos grupos ligados aos materiais de cada compositor e não do grupo de citações de um compositor para o outro. Ou seja, não há esse tipo de encaixe entre os grupos 10-11, 2021, 30-31, 40-41 e 50-51. Nesses casos busquei cortes mais precisos e marcados, até para que fosse possível perceber a transformação dos materiais. Origem dos recortes

32 Sonatas p/ piano –

Seção das peças de

Emprego das citações por

origens onde foram

numeração de compassos em

aplicados os recortes

Fosforescência

10 primeiros compassos

1 – 30

10 compassos a partir

31 – 69

Beethoven 24 Prelúdios p/ piano –

47

Como um entrelaçamento ou interconexão de estratos ou camadas.

Chopin

do segundo sexto das peças

12 Estudos Transcendentais

10 compassos a partir

– Liszt

do terceiro sexto das

70 – 89

peças 24 Prelúdios p/ piano –

10 compassos a partir

Debussy

do quarto sexto das

90 – 129

peças 20 Olhares Sobre o Menino

10 compassos a partir

Jesus – Messiaen

do quinto sexto das

130 – 197

peças 18 Estudos p/ piano - Ligeti

10 compassos finais

198 – 243

9 – Localidades dos recortes nas peças de origem e localidades das colagens em Fosforescência

4 – Considerações Finais Reflexão e Proposta de Composição por meio de Colagens e Citações traz em seu bojo uma coleção de pensamentos, reflexões poéticas, anseios estéticos e aplicações técnicas de naturezas e singularidades distintas. O que alcançamos construir diz respeito a potências que se aglutinaram de forma lateral ao corpo do compositor. Deste modo, entendemos esse trabalho como rizomático e superficial48 – produto de intensidades em coextensividade. No lugar de um desenvolvimentismo linear, temos aqui uma apropriação de tudo que se deseja e que esteja ao alcance, ou como se definiu anteriormente: uma colagem de citações. Deleuze, na Lógica do Sentido (2009) nos fala do Acontecimento49, uma espécie de paradoxal aglutinação de acontecimentos encerrados em uma vida, ou em um corpo. Seria como se cada uma de nossas vidas fosse afinal uma grande fenda por onde atravessa o Acontecimento. Por essa fenda passa tudo: As metamorfoses ou redistribuições de singularidades formam uma história; cada combinação, cada repartição é um acontecimento; mas a instância paradoxal é o Acontecimento no qual todos os acontecimentos se comunicam e se distribuem, o Único acontecimento de que todos os outros não passam de fragmentos e farrapos (DELEUZE, 2009, p. 59).

Grande parte dos acontecimentos que cruzam a fenda passa sem deixar rastros ou vestígios. Mas alguns acabam se afixando nela, fragmentos e farrapos que passam a compor com a fenda do Acontecimento, construindo uma história. O que colou na fenda e de que maneira se colou dependeu do fluxo do desejo, da cultura, dos tempos de agora, dos encontros entre corpos. E esse campo de possibilidades sem fim permite que cada Acontecimento seja uma rica e singular colagem de citações. O título da tese fala de reflexão e de proposta de composição e, a partir disso, busquei atribuir a esse trabalho essa dupla função. A primeira função, de ordem conceitual, foi explicitada nos primeiro e segundo capítulos da tese. A segunda função, de ordem criativa-prática, foi apresentada no capítulo três e nos anexos do trabalho.

48 49

Em uma perspectiva deleuziana, conforme foi apresentada no item 2.4, p. 60. Com A em maiúsculas conforme o uso de Deleuze.

Não houve uma proposta dicotômica entre teoria e prática, mas sim, em primeiro lugar, buscar a posição conceitual no sentido de produzir (contribuir) um enunciado coletivo, para, em seguida, demonstrar pelas escolhas feitas, as singularidades do processo aplicado. Para a reflexão conceitual parti de uma visão crítica sobre o pensamento analítico de maneira geral, e em seguida inserido ao campo musical. Esse ponto de partida se deu porque antes de pensar em colagens e em citações era necessário refletir sobre recortes e extrações. Para isso, no primeiro capítulo, além do entendimento sobre a tradição analítica, alcançamos também o inventário das principais ferramentas desenvolvidas no campo da análise musical. A ideia foi permitir ao ouvido desejante do compositor um rico dicionário de possibilidades para que pudesse escolher determinada ferramenta de extração aplicando para isso escutas específicas, ou mesmo, recursos de combinação de duas ou mais ferramentas, ou até desenvolver novos mecanismos, novas maquinações. É no segundo capítulo, entretanto, que a reflexão conceitual alcançou suas mais intensas contribuições. Pudemos delimitar o conceito de Colagem de Citações por meio de uma argumentação conjugando a visualidade com a textualidade no entendimento (análise) e no fazer (síntese) musical. Pudemos também nos valer do entendimento das artes visuais sobre o cubismo analítico e sintético para produzir um agenciamento com o campo musical. Associamos os conceitos de sincronicidade e de desterritorialização no sentido de produzir um entendimento mântico para objetos musicais de alta complexidade (caos que cria). Aproximamos as noções de conversão e subversão como técnicas de altura e de profundidade, respectivamente, e de perversão como arte da superfície ao campo da criação musical. E, ao final, pudemos convergir essas abordagens e planos de visão no que denominamos estética da fosforescência. O grande eixo que ligou as diversas maneiras de analisar música neste trabalho passou pelos recursos da colagem e da citação potencializados pela mancia (sincronicidade). Isso pode nos conduzir ao caos que cria através da prática da desterritorialização e da reterritorialização entendida como arte de superfície. Isso tudo foi entendido como um ferramentário que nos permitiu conduzir até a estética da fosforescência, onde os sentidos são produzidos por atravessamentos no Acontecimento. Meu trabalho criativo continuou em curso de modo concomitante com a produção da reflexão teórica. Foram ao todo cinco obras que totalizam por volta de

setenta e cinco minutos de duração. As composições apresentam variados estilos além de usos distintos das potencialidades conceitualmente abordadas neste trabalho. Em suma, entende-se que este trabalho contribui com o ente da razão no sentido de produzir novos agenciamentos fazendo-se valer de conceitos filosóficos da contemporaneidade para elaborar fazeres criativos no campo da composição musical. Também estabelece uma relação direta entre a produção de entendimento e o campo da experimentação quando aplica cada potência poética, atribuindo-lhes consequências estéticas. Esta tese, ademais, cumpre seu papel quando permite a pesquisadores do campo da música um debruçar-se sobre os pensamentos de Gilles Deleuze e Félix Guattari e de como são pungentes suas contribuições no campo estético. Dentre as abordagens aqui expostas destacam-se a estética da fosforescência que vem a ser um chamado para o câmbio do paradigma da interpretação para o da experimentação, uma saída do mundo onde há a contemporaneidade entre o sujeito e o objeto para o mundo onde um só vem a existir quando da aniquilação do outro. Entende-se, ainda, que há importante contribuição no tocante à práxis composicional. Apresentou-se aqui uma série de modos de fazer e de agenciamentos maquínicos para se apropriar de materiais musicais (e não musicais). Procedimentos de corte e remontagem, construção de superestruturas, condução por mecanismos aleatórios, aglutinação por semelhança de materiais, uma linha do tempo preenchido de agoras. E claro, dependendo da origem dos materiais, dos mecanismos de corte e colagem, e ainda, do fluxo do desejo do compositor, tais ou quais sonoridades se apresentaram, se evidenciaram. A aplicação dessas técnicas e a observação sobre os resultados poderão auxiliar outros compositores que se interessarem em produzir colagens. Por fim, desdobramentos poderão em continuação frutificar os apontamentos aqui inseridos. Novos estudos complementares poderão ampliar o arcabouço para uma estética musical da realteriade, da diferença em uma música sem órgãos, em uma experimentação rizomática. Gostaria de enfatizar que me é sensível constatar que passei por um evidente amadurecimento da prática composicional, tanto no campo técnico como poético. Creio

que aquisições obtidas por meio dessa tese comporão minha fenda do Acontecimento como novas ferramentas para, no futuro, engendrar novas maquinações. O mundo do sujeito é a noite: essa noite movente, infinitamente suspeita, que no sono da razão engendra monstros. Afirmo em princípio que do ‘sujeito’ livre, de modo algum subordinado à ordem ‘real’ e estando ocupado somente com o presente, a própria loucura dá uma ideia suavizada (BATAILLE, 2013b, p. 72).

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