Reflexão sobre o in dubio pro reo no júri à luz do direito comparado

June 13, 2017 | Autor: André Myssior | Categoria: Criminal Law, Criminal Procedure, Direito Processual Penal, Direito Penal
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A TENSÃO ENTRE O SIGILO DAS VOTAÇÕES, A SOBERANIA DOS VEREDICTOS E O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO NO TRIBUNAL DO JÚRI – ESTUDO DE DIREITO COMPARADO

Resumo: O presente artigo aborda a dificuldade de se compatibilizar o princípio constitucional in dubio pro reo com a disciplina legal do procedimento de competência do Tribunal do Júri, tendo em vista a possibilidade de decisão por maioria simples e a imensa importância dada pela lei ao sigilo da votação e à soberania dos veredictos. A partir de estudo de direito comparado baseado em decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, busca-se estabelecer a relação com a disciplina do processo de competência do Tribunal do Júri no Brasil. São, em seguida, analisadas as principais características do processo de competência do Tribunal do Júri no direito brasileiro, para construir a hipótese central deste estudo: se o privilégio legal ao sigilo das votações e à soberania dos veredictos permite que o princípio in dubio pro reo tenha verdadeira efetividade no Tribunal do Júri. Essa hipótese é testada através de pesquisa da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em apelações fundadas no art. 593, inc. III, alínea d, do Código de Processo Penal e, a partir dos resultados obtidos, conclui-se que o referido princípio constitucional não possui a efetividade desejável no Tribunal do Júri brasileiro. Por fim, indicam-se possíveis soluções de lege ferenda para aumento da sua efetividade. Palavras chave: Júri. Direito comparado. Estados Unidos da América e Brasil. In dubio pro reo.

Abstract: This article addresses the difficulty on harmonizing the constitutional principle in dubio pro reo (proof beyond a reasonable doubt) with the Jury’s legal discipline, given the possibility of conviction by simple majority and the great importance given to the secrecy of the jurors’ decision processes and sovereignty of the verdict. The Article starts by, through a compared law study based on the U.S. Supreme Court rulings, establishing a relation with the legal discipline of the Jury’s procedure in Brazil. This raises the main question addressed by the Article: whether the legal supremacy of the vote’s secrecy and the sovereignty of the decision allow the principle in dubio pro reo to achieve real effectiveness. This hypothesis is tested by a research of the jurisprudence of Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Minas 1

Gerais State Court of Appeals) regarding appeals based on article 593, n. III, a of Brazilian Penal Procedure Code. Considering the obtained data the Article reaches the conclusion that the aforementioned constitutional principle does not have the desired effectiveness in Brazil’s Jury procedure. Finally, possible solutions are given, in order to seek increased effectiveness of the principle. Keywords: Jury. Compared law USA and Brazil. In dubio pro reo.

Sumário: 1. Introdução; 2. A decisão pelo tribunal do júri no direito brasileiro; 3. Apodaca v. Oregon – a votação do júri e o devido processo legal; 4. A tensão entre o sigilo da votação e a presunção de inocência; 5. A apelação e o definitivo sacrifício do in dubio pro reo; 6. Conclusão

1. INTRODUÇÃO

Em 2009 foi submetida à Suprema Corte do Estados Unidos arguição de inconstitucionalidade de dispositivo da Constituição do Estado de Oregon que prevê a possibilidade de haver condenação pelo júri, mesmo não sendo unânime a votação dos jurados. Permite a Constituição daquele Estado a condenação do réu, desde que dez, dentre os doze jurados, assim o decidam.

O caso em que a inconstitucionalidade da permissão da condenação não unânime (desde que os votos pela absolvição não fossem mais do que dois) foi submetida à Suprema Corte foi o processo nº 08-1117, Scott David Bowen v. Oregon.

Em 8 de dezembro de 2008 foi solicitada autorização para requerer o Writ of Certiorari, distribuída ao Juiz Anthony M. Kennedy, que deferiu o pedido. O writ foi impetrado em 4 de maio de 2009. Foram apresentadas manifestações por amici curiae a favor e contra o pedido do peticionário Bowen e, em 5 de outubro daquele ano, o caso foi recusado.

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Conforme explica João Gualberto Garcez Ramos1: “Hoje, é indiscutível que a Suprema Corte exerce ‘poder de supervisão’ (supervisory power), sobre as decisões judiciais de qualquer tribunal do país, seja ele estadual, seja ele federal. Esse poder se exercita, na prática, de uma única maneira: através dos ‘mandados de certificação’ (writs of certiorari). (...) Por meio dos atuais ‘mandados de certificação’, a Suprema Corte requisita dos demais tribunais informações a respeito de um determinado caso por eles julgado, revê os argumentos utilizados na decisão; colhe, se achar necessário, novos argumentos orais, discute os fundamentos e emite uma decisão sobre a correta interpretação da Constituição nesses casos”. A recusa deveu-se ao fato de que a Corte entendeu não ser o caso de rever os precedentes datados de 22 de maio de 1972 – Apodaca v. Oregon, 406 U.S. 404 e Johnson v. Louisiana, 406 U.S. 356 – que, na ocasião, afirmara não ser inconstitucional a possibilidade de condenação não unânime pelo júri. A esse propósito, mais uma vez a lição de RAMOS:2 “Como padrão, esse aceite ocorre quando os juízes entendem (a) que o caso envolve uma questão federal importante, (b) que há conflito relevante de interpretação da lei ou da Constituição entre Cortes estaduais ou entre estas e Cortes federais ou (c) que a decisão envolve ‘questão de direito’ que merece rediscussão no âmbito da Suprema Corte”. Não verificada qualquer dessas hipóteses, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu manter seus precedentes no sentido de que a possibilidade de condenação não unânime não ofende a Constituição daquele país. Ainda assim, as discussões travadas nas decisões de 1972 fornecem um subsídio interessante para refletir acerca da forma legal de decisão pelo Júri no Brasil.

Assim, neste estudo, abordaremos como é a disciplina legal da decisão do Tribunal do Júri no Direito brasileiro, no que pertine ao objeto deste estudo. Em seguida, examinaremos a decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Apodaca v. 1

RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 90. 2 Idem, p. 91.

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Oregon e Jonhson v. Louisiana. Por fim, relacionaremos essa análise à disciplina do Júri no Brasil.

2. A DECISÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI NO DIREITO BRASILEIRO

Não é exagero afirmar que, dentre os princípios envolvidos diretamente no processo e, sobretudo, no julgamento pelo Tribunal do Júri no Brasil, dois deles estão, senão completamente, em grande medida ausentes.

Um é o da fundamentação das decisões (CF, art. 93, IX). Conquanto esteja o princípio da fundamentação das decisões inserido no meio de extenso rol de artigo da Constituição que trata do funcionamento do Poder Judiciário (ao lado de outros incisos que tratam de subsídios e de aposentadoria), não se nega – e nem se poderia – a natureza fundante desse princípio dentro da ordem constitucional.

Trata-se de verdadeira condição de legitimidade do ato de força exarado pelo Poder Judiciário. É dizer, somente será legítimo o ato de força contido no comando sentencial quando ao jurisdicionado for dado saber com exatidão os motivos de fato e de direito que levaram o julgador a decidir desta ou daquela maneira. A lição de Aury Lopes Jr:3 “A motivação das decisões judiciais é uma garantia expressa no art. 93, inc. IX, da Constituição e é fundamental para avaliação do raciocínio desenvolvido na valoração da prova. Serve para o controle da eficácia do contraditório, e de que existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência”. Logicamente, não há que se falar em fundamentação das decisões no julgamento pelo júri, na medida em que as decisões dos jurados são tomadas com base na íntima convicção e a condição de validade do veredicto é exatamente o sigilo da votação. Ou seja, se no processo de competência do juiz togado4 a fundamentação da decisão é condição de legitimidade e validade do ato, no caso do júri, é a falta de fundamentação que o legitima e lhe confere validade. Fernando da Costa Tourinho Filho sustenta:5 3

LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 243. Não será usada a terminologia empregada pelo Código de Processo Penal “de competência do juiz singular”pois, nesse caso, estar-se-ia excluindo indevidamente as ações penais originárias. 5 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal v. 4. 32ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 142. 4

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“Julgando de acordo com a sua íntima convicção, sem a obrigação de dar satisfação a quem quer que seja, a não ser à sua própria consciência, julgar sabendo que sua decisão é soberana, visto porvir do povo, assim o Tribunal do Júri ampara mais ainda o direito de liberdade. É, como afirmou o Professor Lauria Tucci em sua obra já citada, ‘a mais democrática instituição jurídica brasileira”. A conclusão deste trabalho mostrará que a opinião exposta na tradicional obra citada é por demais otimista. Sigilo e soberania não são necessariamente suficientes para assegurar a democracia. Afinal, o júri está a exercer um (grave) poder e o exercício de poder sem accountabilty pode levar ao arbítrio, salvo se suficientemente amparado o indivíduo submetido a esse poder por um sólido arcabouço de garantias fundamentais.

Por outro lado, não seria, logicamente, o caso de afirmar pura e simplesmente a inconstitucionalidade (ou não recepção pela Constituição de 1988) dos dispositivos do Código de Processo Penal que levam a essa situação porque, na verdade, toda essa ordem de ideias encontra amparo no próprio texto constitucional.6

A questão, então, é saber se é possível compatibilizar a garantia do jurisdicionado de saber por que foi condenado com a garantia do jurado de que sua decisão é sigilosa. Esse é um dos temas que serão abordados.

O outro princípio constitucional que não se apresenta no processo e julgamento pelo júri é o da presunção de inocência7. E nesse caso, a não incidência desse princípio não conta com qualquer amparo constitucional. É o regramento legal do procedimento que o exclui da equação. Veja-se por que:

Pode-se, simplificando, dizer que, no procedimento dos crimes dolosos contra a vida, há três decisões fundamentais: a que recebe a denúncia; a que pronuncia o acusado; e o 6

Art. 5º, inc. XXXVIII, alínea b. Esse princípio, enunciado com base no art. 5º, inc. LVII, da Constituição da República, recebe denominações as mais diversas na doutrina (estado de inocência, presunção de não culpabilidade, dentre outros). Entendemos que o tradicional presunção de inocência permanece sendo o mais adequado porquanto trata-se, efetivamente, de presunção. A situação inercial de qualquer cidadão que se vê investigado, indiciado ou processado pelo Estado é, efetivamente, a de inocente. E sobre essa situação incide, sim, uma presunção, o que significa que essa inércia somente será rompida pela efetiva prova da existência do crime (fato típico, ilícito e culpável) e de sua autoria e, ainda, se for estritamente observada a garantia do devido processo legal. 7

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veredicto do Conselho de Sentença. Supostamente, aquelas duas primeiras estariam, realmente, fora da incidência de referido princípio, que incidiria nesta última decisão que, efetivamente, aprecia em sua inteireza o mérito da questão. As duas primeiras, segundo se diz, são orientadas pelo dito princípio in dubio pro societate. O veredicto do Conselho de Sentença seria, então, orientado pelo in dubio pro reo. A lição de Eugenio Pacelli de Oliveira:8 “É costume doutrinário e mesmo jurisprudencial o entendimento segundo o qual, nessa fase de pronúncia, o juiz deveria (e deve) orientar-se pelo princípio do in dubio pro societate, o que significa que, diante de dúvida quanto à existência do fato e da respectiva autoria, a lei estaria a lhe impor a remessa dos autos ao Tribunal do Júri (pela pronúncia)”. Sobre essa dicotomia – in dubio pro societatis contra in dubio pro reo – entendemos relevante uma reflexão breve, mas que merece mais do que uma nota de rodapé.

Essa dicotomia parece-nos de todo imprópria. Afinal, falar em in dubio pro societate contra in dubio pro reo indica que, no processo penal, o réu está em posição de antagonismo em relação à sociedade. Para um contratualista, faz até sentido afirmar que o delinquente, quando comete o delito, põe-se em posição antagônica em relação à sociedade. Mas, por força do próprio princípio da presunção de inocência, a confusão entre acusado e delinquente é inconstitucional.

Conquanto seja lugar comum (em especial na primeira hora e meia de debate no Tribunal do Júri) a afirmação de que o titular da acusação representa o interesse da sociedade, pensamos não ser verdadeira essa afirmação. Não, ao menos, no marco do Estado Democrático de Direito que tem em seu núcleo mais elementar a cláusula do devido processo legal. O próprio OLIVEIRA9 adverte: “... não vemos como aceitar semelhante princípio (ou regra) em uma ordem processual garantista”.

8 9

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de processo penal. 16ª edição. São Paulo: Atlas, 2012, p. 722/723. Idem.

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Afinal, se o processo penal se desenvolve e se decide em cada uma de suas fases com base nessa dicotomia, a decorrência lógica seria que toda absolvição por insuficiência probatória seria uma decisão contrária ao interesse social. Pensamos, contudo, que a decisão que dá efetividade a garantia fundamental (no caso, a da presunção de inocência) está em total e absoluta consonância com o interesse público na máxima efetividade do sistema de garantias.

Assim, é constitucionalmente mais adequado dizer que, na fase de recebimento da denúncia e na fase de pronúncia, afirmar que, nelas, a dúvida se resolve a favor do prosseguimento do processo.

Mas, seja como for, o fato é o seguinte: ao deliberar sobre o recebimento da denúncia, a dúvida sobre autoria/materialidade leva ao seu recebimento; ultimada a fase de sumário, havendo dúvida sobe autoria/materialidade, pronuncia-se. E, apesar de, lamentavelmente, o recebimento de denúncia continuar sendo um mero despacho (isso quando não é um mero carimbo), a pronúncia requer concreta e idônea fundamentação, nos termos do art. 413 do CPP.

E na sessão de instrução e julgamento em plenário, quando, supostamente, o in dubio pro reo deveria se manifestar em todo seu esplendor, o que acontece? Aury Lopes Junior, ao comentar a apelação que se funda na alínea d do permissivo legal, sintetiza com maestria10: “Tudo isso evidencia, uma vez mais, a problemática estrutura do júri brasileiro, pois não efetiva a garantia constitucional do in dubio pro reo contida na presunção constitucional de inocência. No Tribunal do Júri, o réu pode ser condenado a partir de uma prova frágil e ilhada no contexto probatório, e seu recurso não será admitido, mesmo com uma prova amplamente favorável à sua tese defensiva, pois a decisão dos jurados não é absolutamente desconectada da prova dos autos”.

E é verdade. A lógica que preside cada fase decisória do processo, a decisão por íntima convicção e a sistemática recursal excluem a garantia da presunção de inocência.

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LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 1244/1245.

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Essa somente se aplica – mas tampouco se verifica – se estiver dentro da consciência de cada um dos membros do Conselho de Sentença.

A questão que se propõe, então, é a seguinte: as cláusulas constitucionais do sigilo das votações e da soberania dos veredictos são óbice intransponível a que o in dubio pro reo tenha real e efetiva aplicabilidade no Tribunal do Júri?

As decisões proferidas pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América em Apodaca v. Oregon e a discussão travada em Bowen v. Oregon podem servir de parâmetro interessante para tentarmos propor soluções para a questão aqui proposta.

3. APODACA v. OREGON – A VOTAÇÃO DO JÚRI E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

A instituição do júri nos Estados Unidos da América deita raízes na Common Law britânica e no sistema judicial das Treze Colônias. A Sexta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América dispõe: In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury of the state and district wherein the crime shall have been committed, which district shall have been previously ascertained by law, and to be informed of the nature and cause of the accusation; to be confronted with the witnesses against him; to have compulsory process for obtaining witnesses in his favor, and to have the assistance of counsel for his defense.

Como se vê, em não mais do que um parágrafo, a garantia do juiz natural, da ampla defesa, do contraditório são claramente enunciadas. No que se refere ao objeto deste estudo, é assegurada constitucionalmente a submissão do acusado da prática de qualquer crime a julgamento pelo júri, do local onde a infração, em tese, foi cometida.

Há dois casos paradigmáticos julgados pela Suprema Corte que trataram de duas questões extremamente sensíveis ao funcionamento do Júri naquele país: Williams v.

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Florida (39 U.S. 78, decidido em 22 de junho de 1970)11, em que se debateu sobre o número de jurados que deve compor o júri e Apodaca v. Oregon (406 U.S. 404, decidido em 22 de maio de 1972)12, em que se debateu a necessidade de unanimidade no júri e ao qual daremos mais atenção.

Em Williams, a questão submetida à Suprema Corte foi se a lei do Estado da Florida, ao prever, em casos em que não era cabível a pena de morte, que o júri seria composto de seis pessoas ofendia a Sexta Emenda à Constituição.

O juiz White, redator da decisão da Corte, expôs as possíveis teorias e opiniões acerca da exigência de serem doze os membros do júri, relatando que esse costume incorporou-se à Common Law no século XIV. E conclui: The question before us is whether this accidental feature of the jury has been immutably codified into our Constitution. Após interessante histórico da matéria, a decisão chega ao ponto central de sua fundamentação, ao afirmar que a garantia constitucional do julgamento pelo júri não se relaciona com o número de jurados. Afirma a decisão: …the essential feature of a jury obviously lies in the interposition between the accused and his accuser of the common sense judgment of a group of laymen, and in the community participation and shared responsibility that results from that group's determination of guilt or innocence. The performance of this role is not a function of the particular number of the body that makes up the jury. To be sure, the number should probably be large enough to promote group deliberation, free from outside attempts at intimidation, and to provide a fair possibility for obtaining a representative cross-section of the community. But we find little reason to think that these goals are in any meaningful sense less likely to be achieved when the jury numbers six than when it numbers 12 -particularly if the requirement of unanimity is retained. Como se vê, um dos aspectos centrais que mantém a função principal do júri – interposição entre acusação (Estado) e acusado – não se vincula propriamente ao número de jurados, mas à exigência de que a decisão seja unânime. Em outras palavras, a Suprema Corte 11

Disponível em http://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/406/356#writing-USSC_CR_0406_0356_ZS lido em 13/10/2014. 12 http://www.law.cornell.edu/supct/search/display.html?terms=unanimous%20jury&url=/supct/html/historics/US SC_CR_0406_0404_ZO.html, lido em 26/08/2013

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declara em Williams que aqueles princípios fundamentais enunciados na Sexta Emenda são assegurados pela exigência de unanimidade na decisão dos jurados.

Dois anos depois, a questão atinente à unanimidade foi submetida à Suprema Corte – Apodaca v. Oregon – sendo a opinião da Corte relatada pelo mesmo juiz White. Mais uma vez, White faz um resgate das origens do costume de se exigir decisão unânime dos jurados. Relata-se que a proposta original de redação da Sexta Emenda, na Câmara dos Deputados, continha a exigência de unanimidade. Essa redação, contudo, foi modificada no Senado. Após mais discussão na Câmara, a Emenda veio a ser aprovada com a redação que transcrevemos acima, sem qualquer referência a unanimidade.

No caso em questão, Robert Apodaca, Henry Morgan Cooper Jr. e James Arnold Madden foram acusados (em processos distintos) de agressão armada, furto a residência e apropriação indébita, respectivamente. Apodaca e Madden foram condenados por 11 votos a 1 e Cooper por 10 votos a 2.

O Art. I, § 11 da Constituição do Estado do Oregon, no que é pertinente ao caso, estabelece: … in the circuit court ten members of the jury may render a verdict of guilty or not guilty, save and except a verdict of guilty of first degree murder, which shall be found only by a unanimous verdict, and not otherwise.

Na petição à Suprema Corte, o argumento central da defesa era que a possibilidade de que o júri (salvo no caso de homicídio doloso) possa condenar e absolver por decisão unânime seria contrária exatamente ao princípio in dubio pro reo ou, na locução comum norte-americana, proof beyond a reasonable doubt.

A essa alegação, a Corte respondeu:

Petitioners' argument that the Sixth Amendment requires jury unanimity in order to give effect to the reasonable doubt standard thus founders on the fact that the Sixth Amendment does not require proof beyond a reasonable doubt at all. The reasonable doubt argument is rooted, in effect, in due process, and has been rejected in Johnson v. Louisiana, ante, p. 356. 10

O julgamento mencionado, Johnson v. Louisiana tinha o mesmo objeto de Apodaca v. Oregon, já que o Estado da Louisiana é o outro cuja Constituição prevê a possibilidade de condenação ou absolvição por júri não unânime. Ambas decisões são de 1972.

Em linhas gerais, o que restou decido em Johnson e em Apodaca é que a previsão da possibilidade de um júri não unânime decidir pela condenação não viola a regra da prova além da dúvida razoável. Entretanto, a decisão da Corte sublinha que, tanto no Oregon quanto na Louisiana, a lei exige ampla maioria de votos; a divergência manifestada por duas (Apodaca) ou três (Johnson) pessoas dentre um conjunto de doze não é bastante para por em dúvida a culpa do acusado. Ainda que essa minoria tenha manifestado dúvida acerca da culpa, se uma ampla maioria dos jurados não se convenceu com essa divergência, deve-se privilegiar o juízo de certeza que nove, dez ou onze jurados partilharam.

Neste ponto, é essencial realçar que o sistema de decisão pelo júri nos Estados Unidos é radicalmente diferente daquele que se adota no Brasil. Nosso Código de Processo Penal previa e continua a prever depois da reforma de 2008 a absoluta proibição de qualquer contato entre os jurados. Na verdade, embora coletiva, a decisão do júri no Brasil não é colegiada, decidindo cada membro do Conselho de Sentença conforme sua intima convicção. Não há uma decisão; há sete decisões, que se somam.

Nos Estados Unidos, os membros do júri, em total isolamento e sigilo, debatem a causa sob seu julgamento, sendo não só permitido, mas incentivado que os jurados tentem persuadir uns aos outros sobre a opinião que formaram a partir do exame da prova e do debate entre as partes.

Assim, a Suprema Corte concluiu nos dois casos em análise que, se o debate entre os jurados resultou em certeza para a ampla maioria, a regra da reasonable doubt não restou violada e, tampouco, a cláusula do devido processo legal (14ª Emenda) da qual ela decorre diretamente.

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Não obstante, é conveniente ressaltar que em um e outro caso, a larga maioria é destacada como elemento que conserva a efetividade dessa regra.

4. A TENSÃO ENTRE O SIGILO DA VOTAÇÃO E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

A despeito da diferença entre os sistemas de decisão adotados no Brasil e nos Estados Unidos, no que se refere à interação entre os jurados em busca de um consenso sobre culpa ou inocência do acusado, há um ponto comum: o sigilo. Em um e outro sistema, não é dado ao jurisdicionado saber qual o caminho lógico percorrido pelo jurado para alcançar essa ou aquela conclusão. No sistema norte-americano, não se pode propriamente falar em íntima convicção plena dos jurados, na medida em que as opiniões de cada um são debatidas. No sistema brasileiro, em virtude da absoluta incomunicabilidade, a convicção é completamente íntima.

A despeito disso, sendo os debates dos jurados norte-americanos secretos, os motivos que levaram à decisão do colegiado são desconhecidos, assim como no sistema brasileiro.

Como já observado anteriormente, não há como postular o afastamento desse sigilo, na medida em que é previsto constitucionalmente. Logo, o mecanismo de controle da eficácia do princípio da presunção de inocência que ordinariamente funciona no processo de competência do juiz togado (a fundamentação da decisão como condição de validade do ato) não há de funcionar no júri.

Sendo, porém, o in dubio pro reo princípio de inegável índole fundamental (cláusula pétrea, na verdade) há de se encontrar outra forma de se garantir sua presença no tribunal do júri. E, registre-se, aqui não se está a afirmar que os júris decidem ordinariamente sem consideração pelo in dubio pro reo. O que se afirma é que, pela sistemática legal do procedimento de competência do Tribunal do Júri, não se tem a menor ideia se, tendo havido dúvida, em que sentido ela se resolveu: se a favor do réu ou a favor da acusação. É dizer, em caso de condenação, podemos mesmo ter segurança de que os jurados não tinham qualquer 12

dúvida acerca da culpa do acusado? Dizemos segurança e não certeza porque essa, nunca teríamos, considerado o sigilo da votação.

A esta altura, já está claro que o ponto central é a previsão legal de que as decisões do Tribunal do Júri são tomadas por maioria. Quatro dentre sete votos são suficientes para condenar o acusado.

Se a quase metade dos jurados não está convencida da culpa do acusado, não há como afirmar que culpa não seja duvidosa. Mesmo considerando como adequadas as decisões da Suprema Corte norte-americana em Apodaca e Jackson, exige-se ampla maioria de votos para preservar o in dubio pro reo. A ampla maioria, disse a Suprema Corte, conserva a confiabilidade do sistema. A condenação por meros quatro votos possui, mesmo, essa confiabilidade?

O constituinte brasileiro elegeu os crimes dolosos contra a vida para submissão ao júri sob a consciência de que, pela natureza singular desses delitos, o julgamento deve ser deixado a cargo do juiz de fato, do membro do povo. Entende-se que o julgamento deve ser popular e não técnico. E costuma-se dizer que aqueles sete cidadãos que decidem sobre a liberdade do acusado da prática de crime doloso contra a vida são representantes da sociedade local. É a comunidade do local em que o crime foi praticado a quem toca a grave função de decidir pela culpa ou inocência de seu co-cidadão.

Insista-se: se a quase metade dos jurados não está convencida da culpa do acusado, não há como afirmar que aquela comunidade efetivamente acredita na culpa do réu. Qual a segurança desse veredicto cuja motivação é e sempre será sigilosa? Sublinhe-se que o que aqui se defende não é a abolição do sigilo (até porque seria defesa inconstitucional), mas que se busque um meio minimamente eficaz de se o conciliar com o in dubio pro reo.

E se, na sistemática anterior à Lei 11.689/2008, essa realidade já era presente, duas modificações por ela trazida tornam ainda mais obscuro o caminho da condenação, mais distante a possibilidade de ter o mínimo de segurança de que o in dubio pro reo dirigiu o veredicto. 13

Já dissemos sobre a não fundamentação da decisão dos jurados. A sistemática anterior, contudo, assegurava, de certa forma, algum conhecimento ao jurisdicionado sobre os motivos que levaram os jurados a esta ou aquela decisão.

A exigência da redação anterior à do art. 484 do Código de Processo Penal, no sentido de que fosse formulado um quesito para cada ponto da acusação e da defesa permitia que as partes soubessem com bastante segurança porque o júri condenou ou absolveu. A crítica que se fazia a essa sistemática – e que foi acolhida na reforma para abolir tal sistema em troca do quesito genérico sobre a absolvição – era exatamente a sua complexidade e, por conseguinte, o relevante número de anulações de julgamentos por defeito na formulação dos quesitos ou falha na forma de submissão à votação do Conselho de Sentença.

No entanto, na sistemática anterior, se, por exemplo, o réu que alegou ter agido em legítima defesa própria restasse condenado, saberia que o foi porque o júri considerou que o uso dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio não foi feito moderadamente e que esse excesso decorreu de dolo. O Ministério Público saberia que o réu foi absolvido por inexigibilidade de conduta diversa e não por legítima defesa.

Em busca de simplificação do procedimento e de se evitar possíveis nulidades, sacrificou-se o pouco de fundamentação que a lei garantia ao veredicto do júri.

A outra modificação trazida pela Lei 11.689/2008 que também sacrificou a possibilidade de se, ao menos, tangenciar os motivos da decisão (e, portanto, ter alguma segurança de que o princípio in dubio pro reo foi observado) foi a previsão de que, na votação dos quesitos, apurado o quarto voto “sim” ou “não”, encerra-se a apuração. Tal determinação, por óbvio, visa a reforçar ainda mais o sigilo das votações. Louvando essa inovação, afirma TOURINHO FILHO:13

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Op. cit. p. 146.

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“... ao chegar à quarta cédula com o ‘sim’, ou o com o ‘não’, a sigilação será perfeita. Ninguém saberá como votaram os outros 3 jurados”.

Mas sacrifica ainda mais o conhecimento da decisão pelas partes. Afinal, se os quatro primeiros votos no quesito referente à autoria são afirmativos, nunca se saberá se a sua afirmação é unânime ou por maioria. É possível que, se os quatro primeiros votos foram “sim”, os outros três que não foram apurados tenham sido “não”.

O projeto de Novo Código de Processo Penal (PL nº 8045/10 da Câmara dos Deputados) traz interessante iniciativa, aumentando de sete para oito o número de jurados no Conselho de Sentença (art. 349), permitindo, assim, o empate na decisão que, obviamente, tem por consequência a absolvição.

Exige-se, dessa forma, uma maioria um pouco mais larga do que de apenas um voto para que seja o acusado condenado. É inegável o reconhecimento de que um veredicto decidido por apenas um voto é duvidoso.

Mais adequado seria que, em um conselho formado por oito jurados, fosse exigido um mínimo de seis votos pela condenação. A condenação por cinco votos corresponde a menos de dois terços do conselho e esse quorum qualificado atribuiria muito mais segurança ao veredicto.

O fato é que, na sistemática atual, na tensão entre o sigilo da votação e a presunção de inocência, a segurança quanto aquela retira quase por completo a segurança desta.

5. A APELAÇÃO E O DEFINITIVO SACRIFÍCIO DO IN DUBIO PRO REO

Se, no julgamento pelo júri, a proteção ao sigilo da votação retira a garantia de efetividade do princípio da presunção de inocência, em grau recursal esse princípio é definitivamente sacrificado com a entrada em cena da soberania dos veredictos.

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Assim como o sigilo das votações, a soberania dos veredictos tem assento constitucional, no inc. XXXVIII, do art. 5º. O fato, porém, de o veredicto ter assegurada a soberania não o torna intangível. Até porque soberanas são todas as decisões emanadas do Poder Judiciário, sejam proferidas pelos juízes de fato, sejam pelo juiz togado.

E não se olvide que o mesmo inc. XXXVIII, do art. 5º da Constituição assegura a plenitude da defesa. Que obviamente pressupõe a possibilidade de ter a decisão do júri submetida a revisão por outro juízo e também faz pressupor a presunção de inocência.

E assim, a sistemática recursal envolve também uma tensão: a soberania dos veredictos contra a plenitude da defesa e, por conseguinte, o in dubio pro reo. É por isso que o art. 593 do CPP estabelece que, quanto ao mérito da questão, a apelação somente procede se a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. Ou seja, mesmo que o Tribunal de segundo grau se convença de que a prova dos autos é duvidosa, mantém-se intocado o veredicto porque, afinal, ele é soberano. E toda a jurisprudência é nesse sentido, sendo bastante para ilustrar a Súmula Criminal número 28 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.14

Pode-se tentar justificar esse rigorismo afirmando que, se o escopo do julgamento da apelação tivesse a amplitude da apelação que se funda no inc. I, do art. 593, haveria o risco de o Tribunal de Justiça substituir-se ao Tribunal do Júri, dele usurpando a competência constitucional para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Além, é evidente, de vulnerar a soberania do veredicto. OLIVEIRA15 defende: “Por mais compreensível e louvável que seja a preocupação com o risco de erro ou desvio no convencimento judicial do júri popular, o fato é que o aludido dispositivo legal põe em xeque a rigidez da soberania das decisões do júri”.

Neste ponto, ousamos discordar do autor citado. Não existe, a nosso ver, poder, soberano que seja imune a controle jurisdicional. Quando nada, porque assim o exige o inciso 14

A cassação do veredito popular por manifestamente contrário à prova dos autos só é possível quando a decisão for escandalosa, arbitrária e totalmente divorciada do contexto probatório, nunca aquela que opta por uma das versões existentes. 15 Op. cit. p. 884.

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XXXV, do art. 5º, da Constituição. Afinal, se o sufrágio, universal e secreto, fonte do próprio poder do Estado, na forma preâmbulo da Constituição, não é alheio ao controle da Justiça Eleitoral, ao se cassar um mandato obtido mediante abuso de poder econômico ou político está-se a pôr em xeque a soberania popular?

Não temos dúvida em afirmar que a dita soberania dos veredictos, mais que princípio inerente ao Tribunal do Júri, é verdadeiro dogma. Mas esse dogma cria o seguinte problema, que pôde ser empiricamente identificado.

No site de busca de jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, informando as expressões de busca “júri”, “apelação” e “manifestamente”, limitando a pesquisa aos acórdãos publicados entre 01 de janeiro 2014 e 30 de setembro de 2014, foram retornados 476 resultados16.

Desses 476 resultados retornados, 9 se referem, na verdade, a apelações contra impronúncias ou absolvições sumárias ou recursos em sentido estrito e foram, portanto, excluídos dos cálculos.

Assim, foram localizadas 467 apelações fundadas no art. 593, inc. III, alínea d do Código de Processo Penal, ou seja, cuja fundamentação é o julgamento manifestamente contrário à prova dos autos.

Foram analisadas as apelações interpostas pela defesa e pelo Ministério Público. Dentre as apelações defensivas, foram contabilizadas as providas, as não providas e as não conhecidas (por força da disposição do § 3º do art. 593 do CPP). Dentre as apelações interpostas pelo Ministério Público, foram contabilizadas as providas e as não providas, já que todas foram conhecidas. Esclareça-se que, para fins de definição e categorização em “provida” e “não provida”, foi levado em consideração apenas o acolhimento ou não, pelo Tribunal, da alegação de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos. Eventuais provimentos

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Acesso em 30/09/2014.

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parciais para redução ou aumento das penas aplicadas foram desprezados, por fugirem ao objeto deste estudo. Não houve nenhum acórdão, dentre os analisados, que tenha reconhecido nulidade posterior à pronúncia. Não houve, também, análise da fundamentação dos acórdãos ou consulta aos autos dos processos. Portanto nenhum juízo ou crítica se faz sobre o acerto ou não das decisões ou de cada decisão isoladamente.

Assim, aplicando-se os critérios acima explicados, constatou-se: dentre as 467 apelações fundadas na alínea d do inc. III do art. 593, do Código de Processo Penal, 372, ou 79,66% foram interpostas pela defesa e 95, ou 20,34% foram interpostas pelo Ministério Público.

Dentre as 372 apelações defensivas, 10 (2,69%) não foram conhecidas por aplicação do § 3º do art. 593 do CPP17. Quanto às 362 que foram conhecidas, 350, ou 96,69% não foram providas e apenas 12, ou 3,31% foram providas, determinando-se a submissão do réu a novo julgamento.

Já quanto às apelações interpostas pelo Ministério Público, 55 delas (57,89%) não foram providas e 40, ou 42,11% foram providas, cassando-se o veredicto e determinando a realização de novo julgamento.

Para melhor visualização dos dados coletados, vejam-se os gráficos seguintes:

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Se a apelação se fundar no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

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Figura 1 – Total de apelações com acórdão publicado entre 01/01/2014 e 30/09/2014

Figura 2 – Resultados dos recursos interpostos pela defesa

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Figura 3 – Resultado dos recursos interpostos pelo Ministério Público

É necessário esclarecer que a crítica não é, de modo algum, destinada ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais ou mesmo ao teor dessas decisões, até por não terem sido, como já dito, examinadas as provas de cada processo.

Não obstante, é possível afirmar com segurança que a absolvição ou decote de qualificadora ou, ainda, o reconhecimento de causa de diminuição de pena tem maior chance de ser cassada em sede de apelação do que a condenação, o reconhecimento de qualificadora ou a rejeição de causa de diminuição de pena. O fato de haver mais recursos defensivos do que ministeriais, em si, não causa surpresa. Considerando que, na pronúncia, afirmou-se a real probabilidade de a acusação ser acolhida em plenário, é de se esperar mais condenações que absolvições. Se o número de absolvições fosse maior ou mesmo igual ao de condenações, haveria sério problema na pronúncia. Entretanto, o número de recursos defensivos ser quase o quádruplo do que o de ministeriais sugere um desequilíbrio. E, sobretudo, o fato de, nos nove meses apreciados, quase metade dos recursos do Ministério Público terem sido providos e apenas 3,31 % dos recursos defensivos que foram conhecidos terem recebido provimento torna a suspeita de desequilíbrio uma quase certeza.

E isso não pode ser creditado apenas a entendimentos de determinados desembargadores ou câmaras. É a própria sistemática legal do júri, inclusive em sede recursal, que causa essa disparidade. 20

E a raiz disso está na fórmula legal “julgamento manifestamente contrário à prova dos autos” e na sua interpretação jurisprudencial (exemplificada pela já mencionada Súmula 28 do TJMG).

O que se aprecia no recurso é se há o mínimo de prova a sustentar o veredicto, não se esse observou o princípio in dubio pro reo. E essa constatação é suficiente para explicar o porquê de, nos nove meses analisados, apenas 3,31% dos recursos defensivos conhecidos terem sido providos.

Ora, considerando-se que a denúncia foi recebida e que o réu foi pronunciado, é evidente (salvo caso de vício na própria pronúncia, que se existe, decorre do malfadado in dubio pro societatis) que o mínimo de prova contra o réu existe.

E é aí que reside a verdadeira perversidade: pronuncia-se o réu ante o menor indício de autoria; no julgamento pelo júri, não se conhece (e nem se poderia conhecer) o fundamento da decisão de cada jurado; a condenação pode ser (e sequer teremos certeza, salvo em caso de a apuração dos votos empatar em três a três) pela diferença de um voto. E o réu, condenado, não será socorrido pelo in dubio pro reo em sede recursal.

O princípio in dubio pro reo, que não pode ser dissociado da plenitude da defesa, é suplantado amplamente pelo sigilo das votações e pela soberania dos veredictos.

O balanceamento dessa situação de vulnerabilidade do réu somente pode ser alcançado por dois meios: exija-se, senão unanimidade, larga maioria de votos, como destacado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Apodaca e Johnson; ou se altera o cabimento da apelação contra a decisão do júri, passando-se a admitir a cassação do veredicto não só em casos de decisão “escandalosa, arbitrária e totalmente divorciada do contexto probatório”, para usar os termos da Súmula 28 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, mas

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sempre que o Tribunal verificar que a decisão foi baseada em prova duvidosa, deverá cassar o veredicto para submeter o réu a novo julgamento.18

6. CONCLUSÃO

O resultado da pesquisa realizada nos acórdãos publicados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais no período especificado impressiona pela imensa disparidade entre o número de recursos defensivos providos e não providos. Sobretudo, se comparados com os números referentes aos recursos interpostos pelo Ministério Público.

Parece difícil compreender porque, ao decidir contrariamente ao réu, o júri está errado em apenas 3,31% das vezes e, ao decidir favoravelmente, o júri está errado em 42,11% dos veredictos. O percentual de erros a favor da defesa é, realmente, 14 vezes maior?

O que se nos afigura é que o próprio critério legal de controle jurisdicional das decisões do júri não é constitucionalmente adequado. É compreensível que, com imensa frequência, a condenação não seja considerada manifestamente contrária à prova dos autos, isso é, proferida em absoluta dissonância com o conteúdo probatório dos autos. Afinal, se o réu foi pronunciado (presumindo-se que a pronúncia obedeceu ao art. 413 do CPP), alguma prova convincente contra o réu há de ter sido produzida durante o sumário.

O que se verifica, então, é que, na verdade e na prática, os requisitos necessários para pronunciar e para condenar o réu não são substancialmente diferentes. Afinal, para uma e para outra decisão (aquela, juízo de mera admissibilidade; essa, juízo de mérito) serem mantidas, basta a existência de prova a respaldar a tese acusatória.

O sigilo das votações e, sobretudo, a permissão legal para que se condene o réu por maioria simples afasta o in dubio pro reo do julgamento pelo júri. A lógica do art. 593, inc. III, alínea d do CPP afasta o in dubio pro reo do julgamento da apelação. Se a prova produzida no sumário é duvidosa, pronuncia-se; se a prova em se baseou a condenação é

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Não se admitindo, porém, novo recurso sob a mesma fundamentação, completando a conciliação do in dubio pro reo com a soberania dos veredictos.

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duvidosa, mantém-se o veredicto, pois havendo prova que sustente uma e outra tese, a decisão não terá sido manifestamente contrária à prova dos autos.

Em suma, o júri, mesmo em dúvida, está autorizado a condenar e a lei não oferece qualquer remédio contra isso. A sistemática do procedimento de competência do júri é inteiramente alheia à garantia constitucional da presunção de inocência. Se se pretende dar a devida eficácia a essa garantia fundamental, é essencial que seja aumentado o número de jurados e exigida, no mínimo, maioria qualificada para condenar o réu. Sem que haja essa necessária alteração legislativa, a jurisprudência deveria passar a interpretar a alínea d do inc. III do art. 593 do CPP de modo diverso, admitindo a cassação do veredicto em caso de dúvida manifesta. Afinal, é mesmo contraditório que o órgão julgador negue provimento a recurso em sentido estrito contra a pronúncia por haver dúvida e, não produzida nenhuma prova nova em plenário , em apelação, o mesmo órgão (prevento) mantenha a condenação que se proferiu com base na mesma prova outrora dita duvidosa.

BIBLIOGRAFIA

LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de processo penal. 16ª edição. São Paulo: Atlas, 2012

RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 90.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal v. 4. 32ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010

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