Reflexões acerca da oralidade como ferramenta na constituição de uma etnografia africana.

June 30, 2017 | Autor: Leandro Barbosa | Categoria: African Studies, Ethnography, Oral history, Orality
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REFLEXÕES ACERCA DA ORALIDADE COMO FERRAMENTA NA CONSTITUIÇÃO DE UMA ETNOGRAFIA AFRICANA Leandro Barbosa1

Resumo Este artigo se constituirá em uma análise da relação controversa entre o uso da história oral no registro da oralidade africana. Destacaremos sua função como instrumento de resistência, apontando esta interdependência, que assinala alguns de seus distanciamentos e aproximações no que tange a constituição de uma identidade negra. Será uma proposta que aportará às dificuldades indicadas nesta comunicação, e a importância dos diversos elementos constituintes da oralidade. Abordaremos como se compuseram estas afinidades, e o porquê existe esta altercação entre a história oral e a memória, ambas assinalando a constituição identitária dos povos africanos. Palavras-chave: Oralidade. Memória. Africanidades. Cultura. 1 INTRODUÇÃO

A oralidade contida na história dos povos africanos, em especial no Brasil, pode ser observada impressa no inconsciente da vida social, isto é, na música, no cotidiano, nas praticas sociais, permeando a cultura em todos os seus aspectos. Neste sentido a oralidade africana se constituiu dentro de nossa sociedade, como um elemento efetivo que nos transporta para uma análise profunda das estruturas sociais, restituindo o valor para uma sociedade sem escrita, e resgatando a sua história e valores culturais. Porém, necessitamos compreender que a história e a consciência histórica nem sempre concordam em questões fundamentais, e esta discórdia faz parte das altercações existentes entre a antropologia e a história. Nas últimas décadas no Brasil, tornou-se evidente o aumento do número de trabalhos que investigam os registros orais de grupos e culturas. Estes são elaborados em campos disciplinares distintos, dedicando seu enfoque para os modos pelos quais os indivíduos, famílias e grupos sociais, em diferentes períodos e espaços, estabelecem e afirmam a suas tradições. Refletindo sobre a constituição histórica destas populações africanas J. Vansina (2010) destaca que as civilizações africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande maioria civilizações que se utilizavam da oralidade, mesmo onde havia a escrita. Ele cita o exemplo da África ocidental do século XVI, onde poucas pessoas sabiam escrever, permanecendo a escrita muitas vezes utilizada em um plano secundário em relação às inquietações essenciais

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Historiador, Teólogo e Mestrando em Antropologia, Universidade Federal de Pelotas, Programa de PósGraduação em Antropologia (PPGA) - [email protected] An@is Fórum FAPA

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da sociedade. Ele destaca que seria um erro restringir a civilização da palavra falada meramente a uma negativa, “ausência do escrever”, e vincular este fato a uma desconsideração preconceituosa dos letrados pelos iletrados. Dar continuidade a esta interpretação errônea destas culturas, seria uma total ignorância sobre a origem e caráter dessas civilizações orais.

Como disse um estudante iniciado em uma tradição esotérica: O poder da palavra é terrível. Ela nos une, e a revelação do segredo nos destrói (através da destruição da identidade da sociedade, pois a palavra destrói o segredo comum) (VANSINA, 2010, p.139)

Contudo ao reconhecermos que cada sociedade possui uma cultura própria, e que a partir desta estabelece a sua história, torna-se importante compreender que toda esta discussão faz parte de um longo processo histórico que precede os princípios da modernidade. Nestas últimas décadas tornou-se evidente a abrangência dos debates a respeito do conceito de oralidade, patrimônio cultural, identidade e etnicidade, em dimensões que estão além das discussões já estabelecidas. Mas ainda encontramos certa resistência sobre o seu reconhecimento como um ponto de partida e chegada do indivíduo, em especial em questões que abrangem a sua diversidade, levando em conta a capacidade criativa humana de transformar o seu meio. Por várias razões o tema da oralidade como constituidora de um patrimônio intangível tem permeado os debates nas mais diversas categorias de análise dentro da antropologia contemporânea.

2. SOBRE ORALIDADE COMO FERRAMENTA E MÉTODO

Sobre a oralidade enquanto método, Queiroz (2009, p. 53) destaca que a oralidade comporta em si, eventos não catalogados por outro tipo de documento, episódios estes cuja documentação complementa, ou viabiliza uma visão diversificada da produção histórica. A oralidade registra a experiência de vida de um indivíduo, ou de vários indivíduos em um mesmo grupo. A autora segue afirmando que as fontes orais podem adquirir o formato de histórias orais de vida. Estes relatos orais de vida ou narrativas possuem sua referência na individualidade e experiência do narrador, descrevendo em fatos o que presenciou. Pensando na utilização da oralidade, podemos interpreta-la como um fundamental meio de comunicação na história humana, abrindo espaços para as diversas narrativas, promovendo os diversos diálogos entre os grupos sociais. Ela torna possível a comunicação entre diversas culturas, também a representação e aprimoramento dos meios de subsistência. Percebe-se que há uma An@is Fórum FAPA

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ligação intima entre oralidade e a origem da própria história humana. No que tange o desenvolvimento de pesquisa, muitos não se apropriaram dos recursos e benefícios que a oralidade proporciona ao meio científico. No sentido do registro das tradições de grupos e culturas, Verena Alberti (2004) esclarece que a tradição oral e história oral possui uma grande proximidade, principalmente se caracterizarmos as entrevistas como ações ou narrações, e não apenas relatos do passado. A tradição oral conteria narrativas sobre o passado universalmente manifestas em uma cultura, enquanto o depoimento ou a entrevista de História Oral se diferenciaria por versões que não são vastamente conhecidas.

A tradição oral é definida como um testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira de transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fácil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos (ALBERTI, 2004, p.158).

Quanto à questão da concepção das reminiscências orais, Vansina (2010) segue ressaltando que a tradição oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra. Suas distinções individuais são o verbalismo e seu modo de comunicação, na qual constitui uma diferença das fontes escritas. Por sua complexidade, não é uma tarefa fácil elaborar uma definição para tradição oral que venha a abarcar todos os seus aspectos. Um documento escrito constitui-se em um objeto, um manuscrito. Um documento oral pode ser caracterizado de diversas formas, em especial por estar submissa a articulação do sujeito e suas reminiscências. Neste sentido ocorrem na produção do relato uma sucessão de interrupções, recomeços, sentimentos e memórias recursivas, estas que emanam do momento em que estas são produzidas. O autor destaca que a significação arbitrária de um testemunho poderia representar todas as asseverações feitas por uma pessoa sobre uma mesma sequência de acontecimentos passados, esta premissa se estabelece levando em conta que a pessoa não tenha adquirido novas informações entre as diferentes reminiscências.

Caso aconteça o

acréscimo de novas informações, haveria uma alteração considerável e a transmissão seria transformada, nos levando a estarmos diante de uma nova tradição produzida (VANSINA, 2010, p.140-1). Neste sentido podemos ressaltar que é a persuasão que aprova coesão no grupo, esta integração coletiva, é idealizada como o espaço de conflitos e influências entre indivíduos (HALBWACHS, 2004, p.51-2). Já as reminiscências individuais são construídas a partir das

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menções e lembranças do grupo. Portanto, faz-se uma indicação a “um ponto de vista sobre a memória coletiva”. Percepção esta que deve ser analisada considerando o ambiente ocupado pelo sujeito no âmago do grupo e suas relações com outros meios (HALBWACHS, 2004, p.55). O autor segue afirmando que a memória individual permanece sempre a partir de uma memória coletiva, apontando que todas as reminiscências são constituídas no interno de um grupo. A procedência de vários ideários, ponderações, sentimentos, que atribuímos a nós são, na verdade, causadas pelo grupo. A proposição de Halbwachs acerca da memória individual refere-se à existência de uma intuição sensível.

Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível” (HALBWACHS, 2004, p.41).

Já Leda Martins (2001) destaca que a tradição oral africana pode ser observada como um depósito de “fórmulas de conhecimento” que auxilia o indivíduo na busca por integração com o tempo e espaço. Segundo a autora ela não pode ser esquecida ou desvalorizada. Como seres humanos, nos constituímos como seres de palavra, nossa voz e fala, necessitam ser valorizadas, sendo que estes usos não podem ser empregados para descaracterizar a dignidade humana. Neste sentido a oralidade se constitui em uma forma de registro, preservação e em especial na comunicação dos conhecimentos. Ela possui em si uma complexidade, sendo tão intricado o quanto a escrita, pois nela se concentra vários modos de nos expressarmos, por vezes ela é carregada de corporalidade, musicalidade, gestos, narrativas, danças, etc. Se nos permitirmos uma aproximação do assunto, perceberemos que oralidade seria uma adjacência extensa, que recupera os mais variados perfis de relatos alcançados através dos relatos. Na atualidade o passado e o presente, inclusive o futuro, estão cada vez mais se “patrimonializando”, e junto com estas mudanças, estão os aspectos referentes às novas formas de reconhecimento de uma cultura. Na atualidade há uma enormidade de grupos, etnias, populações, práticas e culturas que conquistaram o reconhecimento como patrimônio humano. Sendo que estes assumiram o caráter e a importância como constituidores de identidade, agregando valor aos mais diversos debates políticos, fortalecendo as reivindicações de grupos que antes não possuíam reconhecimento. Verena Alberti (2005) destaca que neste sentido o registro da oralidade tornou-se uma ferramenta decisiva dentro das mais tradicionais disciplinas antropológicas, em especial para a etnografia, e vem cada vez mais corroborando para a compreensão dos processos culturais An@is Fórum FAPA

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na atualidade. Ultimamente o uso do registro da oralidade já se consolidou como uma solução de pesquisa histórica admirável para a transmitância das experiências sociais, isso em consequência da preocupação de antropólogos, sociólogos e historiadores com o conhecimento contido na oralidade das culturas populares. Estes que hoje se destacam na produção de uma nova história social, em que os segmentos excluídos da sociedade, cujas versões eram ignoradas pela história tradicional, assumiram espaço ativo na construção da trama histórica. A autora sugere que um aprofundamento destes elementos por meio de conversas com pessoas sobre a experiência a memória individual, e ainda por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada uma. A indicação de uma metodologia de análise para fonte oral conjetura a compreensão do conteúdo e suas singularidades. Isto significa ter ciência de suas razões, os porque da produção e como esta será utilizada. Destaca-se a necessidade de compreender a fonte oral como conhecimento que deve ser tratado e reconstruído. A fonte oral é empregada em uma diversidade de áreas do conhecimento. Segundo Verena Alberti (2005) pode-se constatar as diferentes áreas em que a metodologia de História oral pode ser aproveitada.

O trabalho com História oral se beneficia de ferramentas teóricas de diferentes disciplinas das Ciências Humanas, como a Antropologia, a História, a Literatura, a Sociologia e a Psicologia, por exemplo. Trata-se, pois, de metodologia interdisciplinar por excelência. Além dos campos mencionados, ela pode ser aplicada nas mais diversas áreas do conhecimento: na Educação, na Economia, nas Engenharias, na Administração, na Medicina, no Serviço Social, no Teatro, na Música... Em todas essas áreas já foram desenvolvidas pesquisas que adotaram a metodologia da História oral para ampliar o conhecimento sobre experiências e práticas desenvolvidas, registrá-las e difundi-las entre os interessados (Idem, p.52).

Ressaltando esta afirmação, Alessandro Portelli (1997, p.15) assinala que o método de registro da oralidade, em especial o da História Oral, destaca-se como uma ciência e arte do indivíduo. Ele propõe que esta possui uma relação direta com a sociologia, antropologia, padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos. Ao refletirmos sobre a oralidade africana, trazendo questões relacionadas às perspectivas constitutivas da identidade cultural, e sua relação com o conceito de patrimônio, teríamos que nos acercar especificamente a alguns temas importantes decorrem da compreensão destes conceitos. Nesta perspectiva, destacam-se os processos que induzirão às alterações no conceito de identidade na percepção moderna até a pós-moderna, bem como os elementos distintos a esta análise. É importante destacar que a análise da fonte oral não implica na descoberta de uma verdade essencialista sobre a construção da(s) narrativa(s), mas a possibilidade de acesso a este mundo do outro, uma construção que por vezes pode ser imaginada, um recurso utilizado An@is Fórum FAPA

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pelo grupo como meio de ordenar a sua realidade trazendo sentido para o seu presente. Nesta perspectiva Marco Antônio Gonçalves (2007), em sua análise da obra cinematográfica do antropólogo e cineasta Jean Rouch (1917-2004), compreende que esta construção etnográfica se constitui a este acesso ao mundo do “outro”, onde muitas vezes o que é considerado como realidade vem a se fundir com a ficção, causando uma fusão entre o que é a percepção do real em relação ao que é constituído como uma ficção. Nesta perspectiva a imaginação é apreciada enquanto constituidora de realidade.

Essa condição da etnografia, de se ter acesso ao mundo do outro pela palavra do outro sobre si próprio e sobre quem lhe pergunta como é o seu mundo, da á etnografia a confiança de tomar o que as pessoas imaginam como sendo uma verdade, isto é, a verdade da etnografia (GONÇALVES, 2008, p. 115).

Na composição de uma etnografia sobre a oralidade, é na implicação desta relação entre o eu e o outro que se encontra a construção de sentidos, em especial no que é imaginado, espaço onde surge a realidade construída. Há uma tendência contraditória nas ciências humanas em descreditar o que é imaginado, acreditando que tal se constituiu em um polo de oposição ao que é considerado “real”.

3. PENSANDO EM UMA ETNOGRAFIA AFRICANA

Os estudos de Stuart Hall (2003) foram fundamentais na ampliação desta perspectiva, em especial em sua conceituação de cultura, e na abordagem sobre Estudos Culturais, alcançando reconhecimento como uma das principais referências no debate sobre cultura, identidade e etnicidade. Ele propõe um breve conceito de cultura que é fundamental na concepção de identidade cultural e suas articulações. Nesse sentido Stuart Hall propôs uma reflexão sobre as mutações sofridas pelos sujeitos ao decorrer da constituição do pensamento moderno, evidenciando que houve uma forte alteração no sentido das antigas identidades que davam harmonia e equilíbrio aos indivíduos. Esta perspectiva moderna carrega consigo um universo de possibilidades para a composição da identidade cultural, estas que são elementos distintivos de coexistência dos grupos.

A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu "trabalho produtivo". Depende de um conhecimento da tradição enquanto "o mesmo em mutação" e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse "desvio através de seus passados" faz e nos Capacitar, através da cultura, a nos produzir a nos mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nos fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão a An@is Fórum FAPA

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nossa frente. Estamos sempre em processo de formação Cultural. A cultura não e uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p.44).

Quanto à questão da oralidade africana como instrumento de reconhecimento, devemos ter por ciência que estas questões envolvem uma série de problemas relativos às questões étnicas, estas que fazem referência a um histórico de escravidão e resistência. Paul Gilroy (2002) destaca que a constituição da identidade e cultura negra surgiu primeiramente nas Américas como um elemento de resistência à escravidão, e ao terror racial imposto por ela. O autor associa as culturas e identidades negras, como recorrentes à sua experiência com a memória da escravidão, esta que ocorreu na diáspora africana sendo decorrente aos processos de racialização que dela brotaram. É importante destacar que o processo de racialização aparece de forma concreta, mas ainda hoje é pouco problematizada. Neste sentido a escravidão moderna é definida por Gilroy de forma integral, como a “escravidão racial”. Neste aspecto é importante destacar que esta relação de tensão existente na produção de uma oralidade negra, é permeada de questões que não operam somente em um passado, mas são ressaltadas através do sentimento diaspórico, chegando até o presente como uma problemática étnico-racial. Segundo a antropologia social moderna, o sentido de identidade de um sujeito, de um grupo ou nação, não se forma apenas pelo conhecimento, ou a aceitação e destaque oferecido às suas características e especificidades, mas também em especial, pelo contraste das mesmas com as características em reflexo com o outro. Ou seja, o sujeito se define tanto pelo o que acredita ser, como que pelo o que ele julga não ser. Isso é cognominado de "identidade contrastiva". Roberto C. de Oliveira (1976, p. 42-45), destaca que o caráter contrastivo nas construções identitárias, constitui-se em um atributo fundamental da elaboração da identidade, em principal da identidade étnica. Já Clifford Geertz (1997) vem a acrescentar na discussão, destacando a relevância do contraste, proporcionando significados, auxiliando na compreensão de nós e dos outros.

[...] só podemos comparar quando somos capazes de chegar ao coração do assunto, me parece pelo menos neste contexto, o exato reverso da verdade: é através da comparação, e de incomparáveis, que compreenderemos seja lá qual for o coração a que conseguirmos chegar (GEERTZ, 1997, p. 354).

Acentuando a complexidade do tema oralidade negra, tratando sobre a questão da diáspora africana, Stuart Hall (2003), observa que a as nossas sociedades não são compostas somente de um povo, mas de muitos. Ele ressalta a importância de reconhecermos que nossas origens não são únicas, mas passivas de uma diversidade muito abrangente. O conceito de An@is Fórum FAPA

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diáspora possui embasamento em uma concepção binária de diferença. Em uma esfera se encontra a perspectiva de um eu dependente da constituição do outro, firmando um contraste rígido que surge do interno para o externo.

A diferença sabemos é essencial ao significado, e o significado e crucial a cultura. Mas num movimento profundamente contra intuitivo, a linguística moderna “póssaussuriana” insiste que o significado não pode ser fixado definitivamente. Sempre ha o “deslize” inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente re-apropriado (HALL, 2003, p.33).

Hall destaca que o significado é um elemento decisivo para à cultura, utilizando-se da noção moderna pós-saussiriana, ele é incisivo em afirmar que o significado não pode ser fixado estaticamente, ele se caracteriza como um elemento de movimento constante. A perspectiva diaspórica da cultura seria uma percepção subversiva em relação aos modelos culturais tradicionais. Neste sentido, poderíamos afirmar que não é apenas uma oralidade africana, mas no sentido mais diaspórico de Hall, seriam muitas oralidades africanas, sendo que estas oralidades poderiam encontrar nas outras contrastes que seriam elementos essenciais de sua constituição identitária. Este elemento das diversas oralidades constitui-se em um desafio para a antropologia, em especial no reconhecimento das muitas culturas negras provenientes da diáspora africana, e as mutações a que estas foram condicionadas pelo sentimento da diáspora. Durante muitos anos, as questões do reconhecimento da oralidade africana como um elemento de características multifacetadas, foram submissas uma perspectiva colonial, esta que reduzia as perspectivas das produções dos estudos africanos a uma unidade cultural inexistente. Homi Bhabha (1998) em seu livro “O local da cultura” propõe um debate acerca da constituição e a desconstrução da identidade do outro por meio dos estudos Pós-coloniais. Ele analisa os processos ao qual o outro colonizado é qualificado de forma depreciativa pelo discurso do colonialismo Europeu. Segundo Bhabha o colonizado seria representado pelo colonizador como uma população selvagem carente de civilidade. Seria um discurso com embasamento em teorias raciais, onde o colonizador procuraria justificar o seu predomínio em todos os aspectos sociais e culturais. Segundo o autor a mímica estabeleceria um esquema estratégico bem intrincado, onde o colonizador estabeleceria o seu domínio, pois convenceria o colonizado de sua suposta condição de cultura subalterna. Este processo de submissão cultural, não só atestaria as ações do colonizador sobre o colonizado, mas procuraria eliminar os aspectos culturais do

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subordinado, o lançando em um espaço de vácuo identitário, o condicionando a referenciar-se sempre na cultura do colonizador. A constituição da consciência colonial ocorreu através de uma propaganda ideológica histórica produzida pelas metrópoles, sendo que indivíduo colonial era condicionado a pensar o seu lugar no mundo na perspectiva do colonizador. Este espaço do colonizador era um lugar transmissor de ideias que centralizavam o mundo em si. Mas quando este indivíduo colonial localiza-se na metrópole, lugar este que ele acredita ser o seu lugar, criando uma “comunidade imaginada”, ele acaba por ter que se deparar com a dualidade da alocução colonial. Este empasse acaba por colocar em conflito a sua constituição identitária, pois se evidencia que na metrópole não lhe é tolerado qualquer coexistência, torna-se inexistente a ideia de comunidade, não há coletividade. As cidades se constituem em representações concretas do individualismo moderno, elemento este que acaba por criar uma consciência bidimensional ao individuo colonial. O impacto da descoberta do embuste do discurso a que foi alvo ao longo de sua existência produz vazio e instabilidade, uma crise identitária que afeta diretamente a articulação de suas reminiscências. É importante ressaltar que diante da perspectiva pós-colonial, a cultura diaspórica nos remete a resistência por significado vivenciada por comunidades locais em situações históricas de deslocamentos. Estas que foram obrigadas a articular suas memórias em conjunto com as tensões propostas pelo terror racial, sempre dialogando com os pavores e traumas em busca de sentido, elaborando novas formas de consciência e identificação. O oferece destaque a questão da identidade, ressaltando-a como um posicionamento que cada indivíduo assume, porém ela se constitui em resultado de formações históricas, carecendo ser vivida por completa.

Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre híbrida. Mas é justamente por resultar de formações históricas específicas, de histórias e repertórios culturais de enunciação muito específicos, que ela pode constituir um ‘posicionamento’, ao qual podemos chamar provisoriamente de identidade (HALL, 2003 p. 432-3).

Paul Gilroy (2007) em seu livro “Nações, Culturas e o Fascínio da Raça” propõe que devemos superar o conceito de modernidade para uma pós-modernidade, abrindo-nos para uma nova concepção de raciologia, entendendo-a como um processo político-econômico, proporcionando com isso o rompimento com estas altercações metodológicas atuais em contidas em ambos os lados. Neste sentido o conceito de multiculturalismo nos ofereceria um novo projeto ético como contragolpe aos problemas patológicos do “racismo genômico”. Na atualidade a identidade pode também ser percebida como algo a ser possuído, carregando um An@is Fórum FAPA

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status de importância para os grupos, reforçando a coletividade entre eles. É importante destacar que este conceito pode ser desvirtuado devido às mutações dos meios sociais e tecnologia. Neste sentido, o uso do conceito de diáspora ofereceria uma compreensão mais ampla da cultura como um elemento enraizado que evidência uma dinâmica de definição transcultural. Faz-se necessário aludir, em especial diante das tensões a qual foi sujeita, a cultura africana encontrou uma forma de oferecer resistência modelando elementos culturais de maneira a comunicar-se com a própria cultura. Articulando com a cultura do colonizador, estes grupos ordenaram um empréstimo dos elementos africanos por outros proporcionados pela dominação colonial, mantendo mesmo assim uma perseverança para com as suas características de origem.

A respeito do primeiro, é apreciável a capacidade dos colonizados de usar o idioma colonial para externar seus desejos. Eis uma característica da cultura imposta que também pode ser libertadora. Igualmente, a construção das línguas crioulas, a partir do perfil africano, tem o valor de um arquivo que contém a essência da África imaginária, idealizada na memória. O fator persistência está ligado a uma instituição muito importante, imprescindível, e só aprofundando em seu estudo, poderemos chegar a conhecer a alma africana. Estamos falando no tambor. Raramente, os historiadores e os etnologistas ocidentais abordaram o estudo da rítmica percussiva como substituta da escritura na África (MONTIEL, 1999, p.28-32).

Por um longo tempo, empregou-se de um discurso que carecia elaborar antagonismos entre o passado e o presente promissor, entre o que era de conhecimento popular, e a ciência classificada como coerente e culta. No entanto, a oralidade africana não foi abandonada como forma de transmissão de saberes, principalmente daqueles ligados às reminiscências populares. Estes questionamentos ditos “científicos” invalidaram a importância das narrativas individuais, descaracterizando tudo o que não fosse de ordem documental, com isso, não levando em conta a oralidade como elemento importante na composição da história destes grupos e populações da diáspora. Novamente, Bhabha (1998) destaca como solução para a constituição de uma oralidade africana, a necessidade de articularmos com este conflito, referente à perda de identidade, a importância do resgate das reminiscências. Consistiria em o ato de recordar a trajetória do colonizado antes da colonização, rememorando o seu passado de escravidão e resistência. O ato de recordar não pode ser apenas condicionado a uma solução para conflitos identitários contemporâneos, isto somente criaria uma série de empecilhos na fluência deste passado. É preciso que e se componha a constituição de algo novo, distinto do que já foi instituído no passado, distante desta percepção proposta pela cultura colonizadora. Este An@is Fórum FAPA

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distanciamento não se constituiria em uma proposta de esquecimento destas reminiscências, mas e sim conscientização sobre este passado. Seria o ato de constituir um novo espaço de reflexão para este ser híbrido e que está perdido em meio a este “entre-lugar”. É literalmente a noção de que ele jamais será como o colonizador, pois possui em si algo único. O autor se utiliza da expressão “fixidez deslizante” quando se propõe oferecer uma distinção para a identidade do indivíduo colonial. Este perfil identitário é constituído de fixidez justamente por suas características de imutabilidade e coesão. Isto designa um contraste com a construção identitária moderna, esta que se estabelece através de processos contínuos de construção e desconstrução. Neste sentido, Bhabha propõe a constituição de uma possibilidade de deslizamento sucessivo entre distintos grupos como forma de elaborar possibilidades para que essa nova identidade coletiva possa se desenvolver.

4 CONCLUSÃO

Portanto é importante notar a acuidade dos estudos relativos à oralidade africana, estes que na atualidade são construídos a partir de diversas perspectivas, respeitando os interesses que são abordados nas diferentes disciplinas que se concentram no tema. Embora por vezes estas memórias sejam abordadas como uma variedade de manifestações culturais, assinaladas como sobrevivências de tradições esvanecidas, para a antropologia elas surgem como um reflexo da sociedade contemporânea atual, tornando-se excelente recurso para comunicação de significados para a sociedade. Neste sentido a oralidade africana contém em si todos estes elementos, sendo que Cada memória que é reconhecida e registrada, acaba por oferecer múltiplas possibilidades de análise na identidade, em especial da brasileira. Como já foi destacado, estas oralidades se constituem em um elemento essencial para a construção das relações individuais e coletivas. As populações africanas que foram sujeitas a escravização, transportaram em suas essências os seus ritos religiosos, suas linguagens, vestimentas, corporalidade, comidas, em especial a maneira como estabelecem as suas relações com os animais e a natureza. É um universo que se compõe, evidenciando a sua forma única de celebrarem as suas muitas culturas. Assim sendo, a produção de um registro destas oralidades permite um vislumbre da constituição de uma identidade nova, mas não imaginada como um elemento globalizante, totalizante, essencialista, mas sim como um componente passível de um processo de construção, um organismo vivo exalando vivacidade e mutação.

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REFLECTIONS ON USES OF ORALITY AS A TOOL IN THE CONSTITUTION OF AFRICAN ETHNOGRAPHY Abstract This article will constitute an analysis of the contentious relationship between the use of oral history in the record of African orality. Will highlight their function as a tool of resistance, indicating this interdependence, which marks some of their distances and approximations regarding the formation of a black identity. A proposal that will lead to difficulties indicated in this communication, and the importance of the various elements that constitute the orality. Will approach how to composed these affinities, and the reason there is this altercation between oral history and memory, both marking the identity construction of African peoples. Keywords: Orality. Memory. Africanities. Culture.

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