Reflexões Epistemológicas sobre a Ciência Política Brasileira

May 30, 2017 | Autor: S. Simoni Junior | Categoria: Thomas S. Kuhn, Political Sciences
Share Embed


Descrição do Produto

8º Encontro da ABCP 1 a 4/08/2012, Gramado, RS

Área Temática: AT04 – Ensino e Pesquisa em Ciência Política e RIs

Título do Trabalho:

Reflexões Epistemológicas sobre a Ciência Política Brasileira

Autores: Paulo Pirozelli (USP) Sérgio Simoni Jr. (USP) Fábio Lacerda M. Silva (USP)

1

Reflexões Epistemológicas sobre a Ciência Política Brasileira Paulo Pirozelli (USP) Sérgio Simoni Jr. (USP) Fábio Lacerda M. Silva (USP) Introdução A obra do filósofo da ciência norte-americano Thomas Kuhn teve uma influência decisiva no debate sobre a demarcação das ciências no século XX. Foi, com toda certeza, a que alcançou maior repercussão fora do âmbito da Filosofia da Ciência e até mesmo da própria Filosofia. No entanto, a despeito de sua reflexão profícua, Kuhn nunca especificou se e como ela poderia ser estendida para aqueles campos cuja cientificidade permanece até hoje em questão. Tal é o caso da Ciência Política, que, ao longo da segunda metade do século XX, viu se desenvolver em seu âmago uma teoria com pretensões a se tornar um paradigma científico, tal qual compreendido por Kuhn: a teoria da escolha racional. Movido pela reflexão acima, e orientado pela preocupação normativa sobre critérios de demarcação de atividades científicas, este trabalho apresenta um duplo empreendimento. Em primeiro lugar, pretende introduzir as concepções de Kuhn de “paradigma” e “quebra-cabeça”, e discutir as premissas centrais da teoria da escolha racional na Ciência Política. Feito esse esforço teórico, o trabalho apresenta um esforço de caráter empírico: uma análise histórica do desenvolvimento da teoria da escolha racional em uma comunidade científica específica, a saber, o Departamento de Ciência Política da USP. Acreditamos que este empreendimento é, até certo ponto, independente do primeiro. Mesmo que não seja consensualmente aceitável falar da teoria da escolha racional como paradigma kuhniano, é fato inconteste que ela se expandiu de modo considerável nos principais Departamentos de Ciência Política do mundo, adquirindo grande influência sobre suas produções científicas. É, portanto, mais do que justificável o esforço de investigar a expansão da escolha racional na USP. De modo a dar conta desta dupla empresa, este trabalho está dividido em três partes. Na primeira, detalhamos as noções de paradigma e quebra-cabeça e expomos brevemente a teoria da escolha racional. Na segunda parte, investigamos o trajetória histórica do Depto. de Ciência Política da USP, para num segundo momento, determinar o grau de desenvolvimento da teoria da escolha racional nele. Para tanto, analisamos a produção de alguns de seus integrantes entre 2000 e 2012. Por fim, a terceira parte apresenta algumas considerações finais.

1. Kuhn, paradigmas, quebra-cabeças e a teoria da escolha racional

2

1.1. O conceito de ciência para Thomas Kuhn A demarcação da fronteira entre a ciência e as demais atividades foi uma das questões centrais da filosofia da ciência contemporânea do século XX. Filósofos eminentes, como Popper, Lakatos e Carnap, escreveram extensamente sobre a dificuldade de diferenciar os campos científicos dos não científicos. 1 Diferentemente desses pensadores, entretanto, Thomas Kuhn nunca produziu qualquer estudo dirigido especificamente ao tema da demarcação. O artigo “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?”, de 1965, é de fundamental importância para nossa investigação. Dentre todos os escritos de Kuhn, é o que mais se aproxima de um tratamento explícito da questão da demarcação. Na primeira seção, Kuhn faz uma esclarecedora, ainda que breve, análise das diferenças entre a astronomia e a astrologia. 2 A real diferença entre ambas se baseia, segundo Kuhn, na existência de um tipo específico de problema encontrado nas ciências, que ele nomeia e quebra-cabeças, numa clara analogia com os jogos de montar. 3 Vejamos o que são estes. A primeira característica desse tipo de problema é que seu valor deriva de sua própria legitimidade; ou seja, que são importantes pelo simples fato de serem quebra-cabeças. Outro traço peculiar é que possuem uma solução (pretensamente) assegurada. Não obstante, o aspecto mais relevante à nossa análise é que, para ser um quebra-cabeça, o problema “deve obedecer a regras que limitam tanto a natureza das soluções aceitáveis como os passos necessários para obtê-las” (1970c: 61). Vejamos como tal situação se assemelha a que se dá com os jogos de montar: Solucionar um jogo de quebra-cabeça não é, por exemplo, simplesmente “montar um quadro”. Qualquer criança ou artista contemporâneo poderia fazer isso, espalhando peças selecionadas sobre um fundo neutro, como se fossem formas abstratas. O quadro assim produzido pode ser bem melhor (e certamente seria mais original) que aquele construído a partir do quebra-cabeça. Não obstante isso, tal quadro não seria uma solução. Para que isso aconteça todas as peças devem ser utilizadas (o lado liso deve ficar para baixo) e entrelaçadas de tal modo que não fiquem espaços vazios entre elas. Essas são algumas regras que governam a solução de quebra-cabeças (1970c: 61-62).

1

Os empiristas lógicos, por exemplo, viam na biporalidade das proposições empíricas o caráter particular dos enunciados científicos. Em outras palavras, a ciência seria aquele conjunto de sentenças que poderiam, em princípio, ser falsas, cabendo aos testes empíricos determinar sua verdade ou falsidade. Popper, por sua vez, considerava a testabilidade (por isso, o “falseacionismo”) o diferencial das proposições científicas em relação às proposições metafísicas. 2

O exemplo não é arbitrário. Se excluirmos a matemática, a astronomia foi a primeira das ciências a se estabelecer. A astrologia, como seu oposto, foi sempre o grande paradigma de pseudo-ciência na filosofia. Assim, temos, de certo modo, a velha questão da demarcação entre ciência e não-ciência. 3

Na Estrutura, a prática científica básica, chamada por Kuhn de “ciência normal”, pode ser entendida como uma atividade de resolução de quebra-cabeças.

3

Aqui nossa analogia encontra seu limite. Problemas científicos não seguem regras estritas, explicitamente articuladas. São, na verdade, modelados a partir de “soluções anteriores, freqüentemente com um recurso mínimo a generalizações simbólicas” (1970c). Sua aceitabilidade como solução se dá em razão de serem similares a estas realizações originais, aquilo que Kuhn chama de “exemplares” (ou paradigmas, no sentido fundamental do termo). O estudante, na sua formação como cientista profissional, deve descobrir uma maneira de encarar seu problema como se fosse um problema que já encontrou antes. Uma vez percebida a semelhança e apreendida a analogia entre dois ou mais problemas distintos, o estudante pode estabelecer relações entre os símbolos a aplicá-los à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado sua eficácia anteriormente. (1970c: 236) Tomemos um exemplo, frequentemente apresentado por Kuhn, extraído da Física. Segundo ele, a segunda Lei de Newton, f = ma, por exemplo, não passa de um esboço de lei. Passando de uma generalização a outra, a generalização simbólica se modifica, sem contudo deixar de ser uma instância de uma lei fundamental.

No caso da queda livre, f = ma torna-se se em

; no caso do pêndulo simples, transforma-

; para um par de oscilações harmônicas em ação recíproca

transmuta-se em duas equações, a primeira das quais pode ser formulada como ; e para situações mais complexas, como o giroscópio, toma ainda outras formas, cujo parentesco com f = ma é ainda mais difícil de descobrir (1970c: 236). É importante notar que todas essas fórmulas mais complexas são empregos de uma mesma lei, f = ma. O trabalho do cientista é exatamente aquele de mostrar como novas situações podem ser resolvidas de maneira semelhante às soluções paradigmáticas, ampliando a aplicação e precisão das leis. Em resumo, a atividade científica é, para Kuhn, uma atividade de resolução de quebracabeças. O cientista profissional aprende, por meio de treinamento e profissionalização, a enxergar diversas situações de problemas como semelhantes a uma situação original já solucionada. A partir daí, procura dar uma resposta a esse problema que seja análoga à solução original.

4

1.2. A teoria da escolha racional como paradigma kuhniano Nesta seção, apresentamos as premissas centrais da teoria da escolha racional (doravante 4

TER) . Muito embora Kuhn afirme que a consolidação dos paradigmas marque o início de uma ciência - sendo o período anterior a sua “pré-história” -, este trabalho não tem como objetivo principal a defesa da “cientificidade” da Ciência Política, nem tampouco a afirmação de que ela seria mais “científica” do que as outras Ciências Sociais. Partimos tão-somente da suposição de que o recente predomínio da TER na ciência política pode ser satisfatoriamente compreendido por meio dos trabalhos de Kuhn na Filosofia da Ciência. Este esforço não é de todo original. No caso da Ciência Política, referências à emergência de um paradigma na disciplina remontam ao discurso do então presidente da American Political Science Association, David Truman, em 1965.5 No ano seguinte, no encontro anual da Associação, a referência seria feita mais uma vez, mas desta vez por Gabriel Almond. 6 Mais recentemente, a identificação da TER como paradigma kuhniano na Ciência Política foi feito por Monroe (2001) e, na Economia, por Blankart e Koester (2006). A aplicação da noção de paradigma kuhniano nas ciências humanas também foi feita por Gow e Dufor (2000) na Administração Pública, e por Lijphart (1974) nas Relações Internacionais.7 Embora tenha muitos precursores, a TER se desenvolveu, na segunda metade do século XX, a partir dos desafios enfrentados pela teoria econômica de então. Não à toa, é frequentemente chamada de “abordagem econômica”. Em 1944, Neumann e Morgenstern publicaram seu Theory of Games and Economic Behavior, tentando reestruturar a teoria microeconômica a partir de escolhas individuais e suas interações, e enfatizando a maximização individual dos retornos dessas escolhas.

4 Ao nos referirmos às teorias da escolha racional, fazemos referência também aos campos da teoria dos jogos, teoria da escolha pública e teoria da escolha social. 5 Truman, no entanto, evita afirmar que a ciência política possua paradigmas tais quais os que Kuhn identifica nas ciências naturais. Em vez disso, refere-se à existência de “algo vagamente análogo a um paradigma”, um “acordo geral sobre o que fazer e como proceder dentro da disciplina” (Truman, 1965: 866). 6

Almond afirma que o desenvolvimento da ciência política é semelhante ao que apresenta Kuhn na sua teoria das revoluções científicas. No entanto, faz a ressalva de que, “se ela não se encaixa direito no modelo, então é preciso lembrar que as ciências sociais podem ter uma dialética assaz diferente das ciências biológica e física” (Almond, 1966: 875). 7

Por outro lado, nem todos concordam sobre a possibilidade de aplicação da obra de Kuhn na ciência política e nas ciências sociais em geral. Gunnel (2004), por exemplo, diz que “[o] que têm sido, e o que são comumente chamadas de teorias na ciência política (análise de sistemas, escolha racional, teoria da decisão, institucionalismo, realismo, entre outras) não são construções como as que Kuhn postulou. Esses esquemas conceituais da ciência política são mais apropriadamente descritos como molduras analíticas, abordagens ou modelos. (...). A questão que estou colocando é se teria havido mudanças paradigmáticas na ciência política logicamente comparáveis às que Kuhn tomou como representativas das ciências naturais” (2000: 48).

5

Em 1951, Kenneth Arrow publicou Social Choice and Individual Values, que, a partir de premissas da teoria econômica, tenta explicar escolhas sociais e políticas. Além desses, outros empreendimentos notáveis também partiram da moldura teórica da escolha racional, e, ao fazê-lo, tornaram-se referências fundamentais para os trabalhos posteriores. Dentre eles, destacam-se dois: An Economic Theory of Democracy (1957), de Anthony Downs, e The Logic of Collective Action (1965), de Mancur Olson. Downs tenta explicar a racionalidade subjacente ao comportamento de partidos políticos ao adotarem plataformas similares. Olson demonstra que pode não ser do interesse de indivíduos racionais contribuir para o esforço de melhorar a situação coletiva de todos. Para Baert (1997), não obstante a importância desses trabalhos, seria preciso ainda fazer referência a duas contribuições igualmente grandes da escolha racional às ciências sociais: Economic Approach to Human Behavior (1976), de Gary Becker; e Foundations of Social Theory (1990), de James Coleman. As premissas dos trabalhos supracitados, bem como daqueles que, posteriormente, perfilaram-se na esteira da TER apresentam variação. Por conta disso, seria possível afirmar que a TER não compreende apenas uma empresa, senão várias. Contudo, malgrado o reconhecimento da existência de várias teorias da escolha racional, apresentamos, a seguir, o que acreditamos serem premissas comuns a todas elas, e que compõem o que poderia ser chamado de hard core da escolha racional. São elas: (a) individualismo metodológico; (b) racionalidade instrumental; e (c) preferências estáveis, ordenadas e exógenas. O reconhecimento de um conjunto mínimo de premissas comuns não significa que elas não possam ser entendidas de distintos modos pelos adeptos da escolha racional. Existem divergências no que se refere à compreensão da racionalidade, à utilidade do individualismo metodológico, aos limites de aplicação da própria teoria, entre outras (MacDonald, 2003). Porém, mesmo apesar dos desacordos, é possível sustentar que as premissas apresentadas acima, e que serão explicadas a seguir, formam um mínimo denominador comum da TER. Individualismo metodológico A primeira premissa se refere ao fato de que, para os adeptos da TER, indivíduos são as unidades básicas de análise. As teorias, pois, referem-se necessariamente a atores individuais e começam com axiomas sobre suas ações (Riker, 1995). Isso não significa apenas assumir que indivíduos existem e agem no mundo social, algo bastante trivial. O que parece motivar o individualismo metodológico é, antes, a crença de que, qualquer que seja a ciência humana em questão, todos os fenômenos sociais dos quais ela trata podem – e em alguma medida devem – ser explicados a partir de ações individuais (Arrow, 1994; Elster, 1989). Apesar do nome, o debate opondo individualistas e holistas nem sempre se restringiu a um debate metodológico. O individualismo metodológico tem sido defendido e criticado também a partir de bases epistemológicas e ontológicas. Além disso, encontram-se na literatura versões mais fortes e mais fracas do individualismo metodológico. (Udehn, 2002).

6

Racionalidade instrumental A segunda premissa postula que os atores agem segundo uma racionalidade instrumental, definida como a busca intencional e eficiente de um agente pela realização de suas preferências (Hardin, 1987). A suposição de racionalidade não impede que uma ação seja feita como um fim em si mesmo, mas implica que os atores tentam escolher os melhores meios para atingir seus fins. Isso não significa que saibam necessariamente quais são os melhores meios. Tem-se na literatura modelos teóricos de informação perfeita e imperfeita, e discussões sobre a “formação de crenças dos estados do mundo”. É consensual, porém, que as ações não estão relacionadas aos fins de modo aleatório, e que, embora por vezes se enganem, os atores escolhem meios que acreditam serem os melhores para atingir determinado fim (Riker, 1995). A premissa da racionalidade significa também que os atores têm consciência de que os resultados de suas ações serão produzidos em conjunto com os resultados das ações de outros atores.

Preferências estáveis, ordenadas e exógenas A terceira premissa postula que os atores sabem quais são suas preferências, são capazes de ordená-las de modo transitivo e que elas se mantêm estáveis. Principalmente, as preferências são tratadas como exógenas nas teorias da escolha racional. Isso significa que as finalidades das ações dos atores não são problematizadas nos modelos teóricos e analíticos, antes são consideradas como formadas ou constituídas por processos psicológicos ou sociais, em momentos anteriores à ação. Note-se que esta premissa não especifica nenhuma preferência particular como universal, apenas que uma dada preferência é o fim de uma ação. A despeito das referências frequentes, muitas vezes mordazes, ao fato de que os atores da teoria da escolha racional seriam “egoístas” ou “autointeressados”, as preferências dos atores não precisam ser necessariamente egoístas. Pelo contrário, podem ser as mais altruístas possíveis. Isso, porém, não muda o fato de que, quaisquer que sejam elas, os atores buscarão o melhor meio de que dispõem para maximizálas. Somente neste sentido é possível dizer que atores racionais são autointeressados: eles agem de modo a maximizar suas preferências, sejam elas o acúmulo de capital, a reeleição ou a busca pela santidade. Embora tenha produzido uma quantidade volumosa de trabalhos de peso, a TER sofreu duras críticas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Uma análise detalhada dessas críticas está além do escopo deste trabalho. No entanto, é preciso fazer referência aquela que talvez seja a principal entre elas. Não é de todo claro, seja para seus adeptos, seja para seus detratores, até que ponto a TER seria puramente descritiva ou positiva, ou, pelo contrário, até que ponto implicaria na adoção de certos valores.

7

Segundo Hardin (2001), embora seja comumente considerada uma teoria positiva, isto é, uma teoria testável sem premissas axiológicas, a teoria da escolha racional se assenta em um valor. O termo “racional” é um termo substantivo que se refere ao valor do bem-estar do agente. No entanto, a afirmação de que o próprio bem-estar seja seu valor primeiro não é um achado empírico, e sim uma hipótese. Como diz Hardin, “[s]e produz boas predições e explicações, é uma boa hipótese; do contrário, é uma má hipótese” (2001: 58). Para Tsebelis (1998: 33), “há boas razões pelas quais os atores políticos devem ser racionais (um enfoque normativo), e razões adicionais pelas quais os atores políticos podem ser estudados utilizando o enfoque da escolha racional (um enfoque positivo)”. Este parece ser o centro das divergências sobre a TER, e nem seus críticos, nem seus adeptos possuem uma compreensão clara das posições em disputa. O componente central dessas divergências é epistemológico, referindo-se ao modo apropriado de conduzir uma investigação científica e como a TER pode contribuir para tanto. De um lado, há rational choicers para quem as premissas da teoria são claramente fictícias. Para esse grupo, dado que a construção de predições testáveis seria o aspecto mais importante de uma teoria, a racionalidade dos atores e suas preferências estáveis e ordenadas seriam apenas suposições que facilitariam o desenvolvimento de hipóteses generalizáveis e parcimoniosas (MacDonald, 2003). De outro lado, estão os rational choicers para quem a teoria não seria de todo fictícia; pelo contrário, ela permitiria a construção de explicações de mecanismos que operam em fenômenos sociais. Neste sentido, não seria apenas um modelo preditivo, mas teria algo a dizer sobre a própria realidade (Idem). A teoria da escolha racional sofreu críticas pelos dois lados. A defesa do poder explicativo real da teoria foi questionada por partir de premissas patentemente irreais – indivíduos têm racionalidade limitada, não sabem quais são suas preferências e elas certamente não são estáveis. 8 Ao mesmo tempo, a defesa do poder preditivo da teoria também foi colocada em questão, sobretudo por ter sido aventado como o critério último de cientificidade. Shapiro (2002) se detém longamente sobre o argumento de que o poder preditivo seria o critério último para definir a validade do esforço investigativo. Muitos problemas das ciências sociais não se prestam a teorias preditivas; nem por isso são menos importantes. De modo semelhante, Baert (1997) critica a suposição epistemológica de que a validade de uma teoria depende de seu poder de previsão. No entanto, a despeito das críticas, a teoria da escolha racional continua se expandindo pela ciência política e pelas demais ciências humanas.

8

Bianchi e Muramatsu (2005) argumentam que o conteúdo minimalista da escolha racional limita seu valor explicativo. Os adeptos desta abordagem não dão conta de explicar certos padrões comportamentais relativos à compromissos e planos. Isso porque certos planos e compromissos podem requerer escolhas “contraprefenciais”, o que é um problema para uma teoria baseada na noção de que a escolha do agente revela sua preferência. Segundo as autoras, isso é importante para que se entenda o que leva indivíduos racionais a manter promessas, levar adiante ameaças ou agir em conformidade com planos.

8

2. O desenvolvimento da teoria da escolha racional na USP 2.1. Um breve histórico da Ciência Política na USP O objetivo desta seção é apresentar a constituição histórica do campo ou da comunidade de Ciência Política na USP. Inicialmente, faz-se necessário contextualizá-la no cenário nacional. Frequentemente, a interpretação sobre a Ciência Política no Brasil data sua emergência entre o final dos anos 60 e meados dos 70, período no qual cientistas sociais e políticos estabeleceram contato e diálogo mais intenso com a produção de Ciência Política das universidades norteamericanas, por meio de estudos de pós-graduação. (Cf. Forjaz, 1997; Keinert e Pinheiro Silva, 2010). Evidentemente, essa avaliação tem pressupostos e implicações claras: considera que a Ciência Política é uma ciência social eminentemente americana, e o seu desenvolvimento alhures depende do seu diálogo, apropriação, contato, etc. com a produção lá formatada. Como bem assinala Forjaz (1997), esse movimento de conhecimento do campo estadunidense realizou-se por um grupo geracional e regional específico de cientistas sociais. A autora o denomina grupo mineiro/carioca. Trata-se de alunos e professores do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG), e do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Essas instituições, ambas formadas no final dos anos 60, com apoio financeiro da Fundação Ford, possibilitaram as condições para a formação intelectual de uma perspectiva que valoriza a política como um campo autônomo em relação a demais ramos das ciências sociais. 9 Como pode ser notado, a USP não se configura como um dos principais centros do início da Ciência Política no Brasil. O que pode ser à primeira vista paradoxal, visto que desde os anos 30 as Ciências Sociais como um todo encontraram nesta instituição um terreno fértil para seu desenvolvimento. Entretanto, o paradoxo pode deixar de existir quando se considera dois pontos: primeiro, os estudos sobre a política na FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras) da USP poderiam estar ancorados sobre outras bases intelectuais, diferentes do modelo americano trazido pelo grupo “mineiro/carioca”; segundo, a possibilidade do campo sociológico constituído, fortemente influenciado pela “missão francesa” (grupo de jovens professores europeus, sobretudo franceses, recrutado para a formação da faculdade) ter impedido ou dificultado o diálogo ou incorporação da Ciência Política estadunidense. Nos próximos parágrafos discutiremos esses pontos. De acordo com Quirino (1994), o ensino de Ciência Política nos primórdios da FFCL (anos 30) dava-se no interior de duas cadeiras: a de Sociologia I, como parte do curso de Sociologia Especial, sob a denominação Sociologia Política; e a cadeira de Direito Político. Enquanto esta era ocupada majoritariamente por juristas formados pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, 9 Alguns nomes importantes desse grupo são: Wanderley Guilherme dos Santos, Fábio Wanderley Reis, Bolívar Lamounier, Antonio Otávio Cintra, Simon Schwartzman, Amaury de Souza, Olavo Brasil de Lima Jr, dentre outros.

9

aquela era dirigida pelos professores da missão francesa. Em 1941, é constituída a cadeira de Política, substituindo a cadeira de Direito Político. Arbousse-Bastide, o primeiro catedrático, leva consigo como assistente Lourival Gomes Machado, talvez o primeiro grande nome de área de estudos políticos da USP. No ano seguinte, Gomes Machado defende sua tese de doutorado, intitulada “Alguns aspectos atuais do problema do método, objeto e divisões da Ciência Política”. Quirino (1941: 3401) assinala que a tese “apresenta como bibliografia básica, em meio aos seus 40 títulos, 23 autores, entre ingleses e americanos, muitos destes bem recentes (...), alguns alemães, outros franceses. (...) Percebe-se nessa obra, nitidamente, a preocupação em mostrar a necessidade do conhecimento dos fenômenos políticos, para se chegar ao entendimento da sociedade como um todo e estabelecer métodos de análise que possam ser mais adequados a essa ciência.” Assim, podem ser sublinhados dois aspectos: as variadas fontes nacionais da bibliografia de Gomes Machado, com a presença marcante de literatura anglo-saxã; e a importância concedida a discussões sobre o método científico 10. Em 1944, Lourival Gomes Machado assume a posição de catedrático de Política. Quirino (1994) apresenta a estrutura curricular dos cursos de Política por essa época. Segundo a autora, essa organização irá marcar o desenvolvimento da Ciência Política da USP. Trata-se de três grandes eixos: (1) Curso sistemático de introdução à Ciência Política; (2) Lições sobre a história das ideias políticas; (3) Seminário de leituras e comentários sobre os trabalhos dos alunos. O item (2) abarcou as leituras dos clássicos da teoria e filosofia políticas. O ponto (3), que nos anos 50 passou-se a chamar “Instituições Políticas Brasileiras”, consistiu no grande projeto de pesquisas e formação de alunos de Gomes Machado. Tratava-se de analisar a história política brasileira: sistema de administração da época colonial, o regime escravocrata, o pensamento político da Conjuração Mineira, o Império e a Primeira República, dentre outros. Dentro deste grande programa de pesquisa, formou-se um número considerável de futuros cientistas sociais e políticos centrais para o campo da USP.11

10 Esses pontos podem ser levantados como uma mitigação à interpretação segundo a qual a área de política da USP era fortemente centrada em autores franceses e não se preocupava com questões metodológicas. 11

Cabe apontar um aspecto intelectual interessante na proposta da Cadeira de Política: ao contrário dos dias que correm na Ciência Política brasileira (e uspiana), não existia uma forte separação entre pesquisa de teoria política, de pensamento político brasileiro, e de instituições políticas brasileiras. Tanto Gomes Machado, quanto outros, inclusive a própria Célia Galvão Quirino (que serve como guia do relato contado nesta seção), Paula Beiguelman (hoje professora emérita do Departamento de Ciência Política da USP), Oliveiros Ferreira, dentre outros, publicaram estudos que dialogavam temas e autores europeus clássicos e/ou modernos com obras de intelectuais brasileiros e com análise histórica das instituições políticas nacionais. Estas áreas de investigação não estavam compartimentadas e estanques, como sói acontecer na Ciência Política atual.

10

Logo, pode-se dizer que na USP até os anos 60 existia um leque considerável de pesquisas sobre a política, mas ancoradas em perspectivas outras que não os padrões do campo americano. Nas palavras de Brandão (2007: 26), “tudo somado (...), [essa tradição da USP] permite relativizar a ideia de que a ciência política no Brasil é uma invenção dos anos 80 ou algo que tem uma préhistória nos anos 1930 e 1950 e depois o silêncio antes do fiat lux pronunciado pelos heróis fundadores que estudaram nas universidades norte-americanas ou foram financiados pela Fundação Ford”. Por outro lado, retomando o segundo ponto que elencamos parágrafos acima, a hegemonia de determinados tipos de pensamentos sociológicos na antiga FFCL impactou os estudos políticos de tal modo que dificultou ou retardou a incorporação ou o diálogo intenso com as principais linhas de pesquisa da Ciência Política americana. Isso se deu principalmente pela transferência de alguns intelectuais, que à época bebiam na fonte marxista, da Sociologia para a cadeira de Política no final dos anos 60, notadamente Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort. O primeiro foi o último catedrático da área, em 1968, com a tese “Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes”. O segundo concluiu seu doutoramento no mesmo ano, cujo título é “Classes Populares e Política”. Ambos serão centrais para a compreensão do caminho tomado pela Ciência Política na USP. A tese apresentada por Cardoso contém no primeiro capítulo uma discussão teórica com a Ciência Política estadunidense centrada em torno dos temas da ideologia e do poder. O ponto que procura ressaltar o autor são os ganhos e as perdas que a tradição behaviorista/pluralista 12 logrou (Cardoso debate basicamente Dahl, Almond e Verba, Easton) ao se distanciar do por ele chamado “pensamento clássico”, que nada mais é que Durkheim, Marx e Weber. Explicitamente, o autor não se coaduna de todo com a visão empiricamente orientada para atores típica do pluralismo, e propõe ao final que os instrumentos metodológicos avançados propostos pela Ciência Política americana fossem utilizados sem deixar de lado as preocupações e discussões da Ciência Social clássica. Weffort, por seu turno, apresenta uma tese que marcará uma tradição de estudos sobre a política na USP: trata-se do tema do populismo. Este dizia respeito ao fenômeno da emergência das massas na democracia liberal, e dos impactos recíprocos entre a prática eleitoral e a luta de classes em países subdesenvolvidos 13. As pesquisas do autor ocorrem em paralelo com as ideias formuladas por Cardoso, em coautoria com Enzo Falleto, sobre dependência econômica da América Latina. Nestes estudos, os autores buscavam ressaltar a importância da dinâmica política para o desenvolvimento econômico, numa crítica ao determinismo economicista. Logo, tanto os estudos de Cardoso quanto os de Weffort representavam um primeiro passo para uma ênfase analítica na dimensão política.

12 Cardoso ressalta ainda as bases parsonianas do behaviorismo. 13 A temática sobre populismo é hoje retomada, no departamento de Ciência Política da USP, pelos estudos de André Singer sobre o lulismo, como veremos adiante.

11

Vê-se, assim, que esses estudos sobre política da USP foram conduzidos por autores formados no campo da Sociologia francesa e do marxismo, e, logo, apresentavam bases teóricas, epistemológicas e metodológicas dessemelhantes àquelas trazidas pelo grupo mineiro/carioca. Não à toa, como ressalta Forjaz (1997: 15), “várias polêmicas marcaram o relacionamento tenso entre o grupo mineiro/carioca e os paulistas”. A construção intelectual da Ciência Política fora da USP resultou em embates teóricos com abordagens da Escola Sociológica Paulista. Um dos exemplos mais conspícuos é o artigo escrito por Fábio Reis, “A propósito de Ciência e Dialética”, em 1966, no qual discute textos de José Arthur Giannoti, da área de Filosofia da FFCL, e as análises de Weffort sobre o populismo. Seguindo caminho, em grande medida, inverso ao tratado no primeiro capítulo da tese de Fernando Henrique Cardoso, Reis critica o tratamento excessivo das discussões teóricas e o descaso com as observações empíricas características, segundo ele, da Sociologia paulista. Weffort teve um papel central como orientador de vários futuros professores, como Maria Hermínia Tavares de Almeida, José Álvaro Moisés, Gildo Marçal Brandão (este mais recentemente), dentre outros. Liderou uma série de estudos sobre sindicalismo, classe trabalhadora, etc., sediados no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), órgão de pesquisa em Ciências Sociais fundado no final dos anos 60 por professores expulsos da USP pelo regime militar. Uma das alunas de Weffort, Maria do Carmo Campello Souza merece destaque por seu pioneirismo. Entre os anos 60 e 70, essa professora da área de Instituições Políticas Brasileiras empreendeu estudos sobre os partidos e os sistemas partidários da Primeira República e do período 46-64, com abordagens em muito semelhantes às desenvolvidas pelo referido grupo mineiro/carioca na mesma época. A defesa da autonomia das instituições políticas estatais sobre o desenvolvimento do quadro partidário levaram-na a um diálogo profícuo com a literatura estadunidense recente. Os trabalhos sobre política feitos por pesquisadores da USP começariam a mudar mais fortemente já na metade dos anos 70. Entretanto, eles eram desenvolvidos em outra instituição, no Cebrap. Referimo-nos aos estudos eleitorais e sobre partidos políticos, uma importante tradição de pesquisa da Ciência Política norte-americana. O principal nome nesta área é Bolívar Lamounier, um dos nomes de destaque do já referido grupo mineiro/carioca, mas que vem a São Paulo integrar os quadros do Cebrap. As pesquisas sobre a adesão ao MDB, o papel dos partidos da desintegração do autoritarismo, etc., também coordenadas por Cardoso, dialogaram com as teorias americanas vigentes sobre comportamento eleitoral e teoria de partidos políticos14. Nos anos 70, também sediado no Cebrap, realizam-se pesquisas sobre a estrutura social e econômica de São Paulo, pobreza e periferia, numa discussão da área de Sociologia Urbana ancorada em preocupações mais gerais sobre o desenvolvimento do capitalismo, e logo sobre 14

Maria D’Alva Kinzo, na época assistente de pesquisa, seria nos anos 80 e 90 um dos principais nomes da Ciência Política nacional

12

dependência e marginalidade. Um dos nomes que mais tarde integraria os quadros da Ciência Política da USP, e cujo trabalho se voltava para o estudo da marginalidade, é Lúcio Kowarick 15. Nos anos 80, a agenda de pesquisas em política não poderia ser outra que a redemocratização do País. É central o papel do Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), na promoção de pesquisas sobre movimentos sociais e cultura política, conduzidos principalmente por José Álvaro Moisés 16. Apenas no final dessa década, em 1987, tem-se a separação efetiva entre os três departamentos das Ciências Sociais uspianas: Sociologia, Antropologia e Ciência Política. A escolha racional como inspiração teórica apenas surgiria mais diretamente no departamento de Ciência Política da USP na segunda metade dos anos 90, por meio dos trabalhos de Fernando Limongi sobre as relações Executivo-Legislativo, o Congresso Nacional e os partidos políticos. No entanto, isso não ocorre sem apropriações importantes. Como veremos na próxima seção, na análise da produção dos docentes do DCP-USP entre os anos 2000-2012, parte das agendas de pesquisas construídas historicamente mantém seu fôlego, outras foram descartadas, e a expansão da teoria da escolha racional apresenta caráter heterogêneo.

2.2. A produção recente do Depto. de Ciência Política da USP (2000-2012) Quais são as sub-áreas do Depto. de Ciência Política da USP (doravante denominado DCPUSP) nas quais a TER mais se desenvolveu? Como veremos, a expansão da TER na USP ocorreu de modo gradual, e seu desenvolvimento apresentou grande variação entre os diferentes campos que compõem o Departamento. Para os propósitos do argumento esboçado neste trabalho, a produção do DCP-USP foi dividida em seis sub-áreas, que serão vistas em detalhes adiante: Relações Executivo-Legislativo; Eleições e Partidos; Judiciário; Estudos Urbanos; Cultura Política; e Sociedade Civil. Relações Executivo-Legislativo Dos cientistas políticos integrantes do DCP-USP, Fernando Limongi, Paolo Ricci e Marta Arretche são os que apresentam o maior uso da teoria da escolha racional. Todos estudam o funcionamento das instituições políticas brasileiras, e defendem teses semelhantes, quais sejam, de que a estrutura institucional não é um empecilho para a governabilidade 17. Limongi é o precursor desse grupo e maior responsável pela assimilação dos estudos legislativos americanos por parte da ciência política brasileira.

15

Cabe notar que esta agenda de pesquisas ainda hoje se faz presente neste departamento e nas pesquisas do CEM (Centro de Estudos da Metrópole), que conta em seus quadros alguns professores do DCP-USP, como Eduardo Marques, Marta Arretche e Adrian Lavalle. 16

Os trabalhos mais recentes de Adrian Lavalle também se inserem nesta temática.

17 Marta Arretche tem estudos sobre políticas públicas, que não serão aqui abordados.

13

A maior parte de seus trabalhos é empírica e trata do funcionamento da ordem democrática brasileira, particularmente das relações entre poder Executivo e Legislativo. A incorporação dos estudos legislativos marcou a ruptura com os estudos sobre as transições para a democracia, bem como o início dos estudos comparados sobre o funcionamento efetivo da democracia no Brasil. Dadas as peculiaridades do sistema político brasileiro, em muito diferente do americano, a assimilação da literatura americana exigiu uma alteração de foco em relação aos estudos pregressos sobre o processo político brasileiro. O foco, agora, era a relação entre Executivo e Legislativo. 18 Não obstante, o caso brasileiro contribuiu também para o debate dentro da perspectiva neoinstitucionalista, já que chamou a atenção para variáveis tais como os poderes legislativos do presidente e a organização dos trabalhos parlamentares (Limongi, 2010). Embora a maior parte de seus trabalhos seja de caráter empírico, alguns de seus artigos apresentam as preocupações normativas que orientam sua pesquisa aplicada. Há um deles que, embora partindo de uma discussão empírica, posiciona-se no debate travado entre perspectivas culturalistas e econômicas sobre as bases da democracia. Nele, Przeworski, Cheibub e Limongi (2003) apresentam manifestações claras de adesão às premissas da teoria da escolha racional. A discussão central dos autores é sobre se haveria evidências de que democracias podem emergir e subsistir apenas em determinados padrões culturais. Como se sabe, a resposta dos autores é um sonoro “não”. Porém, a despeito do desenvolvimento desse debate, o que nos importa ressaltar aqui é que, de modo a sustentar seu argumento central, Przeworski, Cheibub e Limongi se valem de modelos baseados nas premissas da escolha racional. Na verdade, esses modelos fazem parte de uma agenda de pesquisa comum aos três autores, e foram usados para formular hipóteses empíricas já testadas em seus trabalhos pregressos. 19 É igualmente digno de nota o esforço feito pelos autores para contrapor à concepção culturalista uma concepção não culturalista de democracia. Embora reconheçam que há boas razões para levar a concepção culturalista a sério, os autores tentam demonstrar a falta de evidências empíricas que a sustentam. A concepção não culturalista, por outro lado, “[T]em forte apoio empírico. Nessa visão, a democracia sobrevive porque é mais vantajoso para as forças políticas relevantes, pautando suas ações por puro interesse próprio, obedecer o veredicto das urnas do que fazer qualquer outra coisa. Os perdedores numa competição democrática podem ter incentivos no curto prazo para rebelar-se, não aceitando os resultados do turno atual. No entanto, se existir uma possibilidade de ganhar as eleições futuras e os benefícios esperados destas vitórias forem grandes o suficiente, perdedores preferirão aceitar os veredictos das urnas. (Idem, p. 20, grifo nosso)

18

A incorporação dos estudos legislativos americanos proporcionaram uma reviravolta no debate da ciência política brasileira. Neste sentido, os trabalhos de Figueiredo e Limongi (1999) foram pioneiros. 19 Ver Przeworski, Alvarez, Cheibub e Limongi (1996).

14

Colocamos o trecho acima em evidência porque ele revela como o argumento não culturalista, baseado nas premissas da escolha racional, teria, na visão dos autores, maior sustentação empírica. A teoria da escolha racional permite, então, que seja elaborado um modelo preditivo, do qual pode-se extrair hipóteses testáveis. Com isso, e supondo que os testes sejam satisfatórios, os autores conseguem tornar seu argumento mais convincente. Note-se que, no trecho ressaltado acima, a afirmação de que as forças políticas relevantes pautam suas ações “por puro interesse próprio” deixa entrever as premissas da racionalidade instrumental e das preferências estáveis e ordenadas.20 A produção de Ricci segue a agenda de estudos da relação Executivo-Legislativo aberta por Limongi. Seu trabalho se foca nas instituições eleitorais e legislativas brasileiras, com alguma atenção dedicada também às reformas institucionais italianas e à discussão metodológica sobre conceitos na ciência política. É importante ressaltar que a literatura de estudos legislativos norteamericana se apoia fortemente na TER. Um dos exemplos mais representativos é o de Mayhew (1974). De modo a compreender o comportamento dos congressistas americanos, Mayhew criou um modelo explicativo baseado nas premissas da TER, tratando os congressistas como se fossem “single-minded reelection seekers”. Com isso, Mayhew criou uma das hipóteses mais aceitas da ciência política, a “conexão eleitoral”, tese que, graças às suas premissas, é capaz de explicar as consequências da busca do congressista pela reeleição. Embora a transposição dos estudos legislativos americanos para o caso brasileiro tenha exigido adaptações, os trabalhos que se detêm sobre o funcionamento do sistema eleitoral e do Legislativo brasileiros estão quase sempre em diálogo com a literatura americana. Por isso, partem, em geral, dos mesmos pressupostos. No caso de Ricci, ainda que não se preocupe em explicitar sua adesão à TER, seus trabalhos sobre a produção legislativa brasileira (Ricci, 2003 e 2004) partem das mesmas premissas. Assim, por exemplo, embora Ricci (2003) questione as interpretações usuais sobre a produção legislativa brasileira – que, partindo da tese da conexão eleitoral de Mayhew, sustentam que os congressistas brasileiros produzem políticas paroquiais –, endossa as premissas da TER. Com efeito, o autor afirma explicitamente não questionar que congressistas brasileiros busquem a reeleição. Sua discordância com as interpretações pregressas está no fato de elas não terem levado em conta fatores internos ao Congresso. Marta Arretche adentra esse debate focando no aspecto federativo das instituições. De modo geral, suas pesquisas buscam responder a seguinte questão: teria a estrutura federativa brasileira um alto poder de demos-constraining (nos termos de Stepan), ou seja, de limitação às decisões do governo central, conforme defendido por maior parte da literatura? 20

Przeworski, Cheibub e Limongi (2003) dão muitas outras demonstrações de adesão à teoria da escolha racional, como, por exemplo, ao afirmarem que “[v]ários outros fatores afetam a sobrevivência das democracias, mas todos eles perdem sua força quando comparados à renda per capita. Dois deles são particularmente relevantes para a perspectiva da escolha racional.” (Idem, 22). A afirmação poderia muito bem ser encerrada desta forma: “Dois deles são particularmente relevantes para a perspectiva da escolha racional, à qual esposamos.”

15

Baseada em análises das reformas de políticas públicas dos anos 90, Arretche (2002) apresenta evidências empíricas que contrariam argumentos correntes, que ressaltam a força política dos atores subnacionais. Arretche e Rodden (2004) tem como objeto o federalismo fiscal, e buscam analisar de que forma são distribuídos os recursos entre os entes federativos. Depois, Arretche (2007) se detém a debater uma hipótese específica sobre o federalismo brasileiro: a de que os parlamentares seriam politicamente dependentes dos governadores de seus respectivos estados, e, logo, em determinadas votações no Congresso Nacional votariam conforme seus interesses, ainda que em detrimento da sua filiação partidária. Em todos os estudos citados, os dados levantados pela autora possibilitam-na rejeitar visões tradicionais da literatura. Suas explicações alternativas estão baseadas no neoinstitucionalismo da escolha racional, e em conceitos como arenas de políticas, antecipação de preferências, regras e poderes legislativos, etc. Em suma, tanto o debate no qual a autora se insere quanto as “hipóteses nula e alternativa” apresentadas são ancorados em supostos de racionalidade. Seus estudos nesta temática relacionam-se de modo direto com os de Fernando Limongi e Paolo Ricci sobre o funcionamento do Congresso Nacional. Eleições e Partidos A área de estudos eleitorais, ao lado da de estudos legislativos, é, talvez, a que apresenta maior volume de estudos na literatura da TER. No entanto, se nessa última a produção do DCPUSP estabeleceu um diálogo considerável com este paradigma, na primeira tal processo não ocorreu com intensidade. Discutiremos aqui os trabalhos de Maria D’Alva Kinzo e André Singer. A preocupação de Kinzo com essa temática das relações entre partido-eleitor deve-se a sua intenção mais ampla de discutir e avaliar o funcionamento do regime democrático nacional, apresentando, logo, um forte caráter normativo. A autora, que participou como assistente de pesquisas nos estudos eleitorais dos anos 70 no Cebrap, é discípula direta de Lamounier. Dessa forma, pode-se dizer que Kinzo não se filiava totalmente ao paradigma da escolha racional e dos estudos eleitorais fundados neste vertente, ainda que algumas vezes utilize ferramentas e autores desta vertente. Kinzo (2004) busca entender de que forma vem se dando a consolidação dos partidos no Brasil. Ainda que inicialmente a autora parta de uma concepção procedimental de democracia, ao final afirma que dimensões normativas devem se fazer presentes na análise, pois a dimensão da responsividade eleitoral seria precária no Brasil, comprometendo a qualidade da democracia que vem se consolidando. Em trabalho posterior, a autora deixa sua posição mais clara no debate brasileiro: não se pode avaliar os partidos apenas pelo seu comportamento parlamentar (vide Figueiredo e Limongi no debate nacional) ou como meros instrumentos das ambições dos políticos (vide Aldrich no debate internacional). A tese da autora é a de que os vínculos entre partidos e cidadãos são tênues, não apresentando sólida base. Isso seria fruto, principalmente, da estrutura institucional (regras

16

eleitorais, sistema de governo e federalismo, principalmente), que complexifica sobremaneira as informações necessárias para estabelecer distinções permanentes sobre os partidos. Sua crítica ao arranjo institucional brasileiro se reforça quando a autora expõe dados que mostram a existência de clivagens políticas mais ou menos claras ordenando os partidos (Kinzo, 2007). O problema seria especificamente a legislação eleitoral, que não contribuiria para a maturação das diferenças ideológicas. A não elevação, em séries temporais, da identificação partidária no Brasil é explicada pelas vicissitudes das legendas políticas, segundo Kinzo e Carreirão (2004). O funcionamento do sistema partidário não contribuiria para o surgimento de imagens políticas perenes. Em suma, um balanço que podemos fazer dos trabalhos de Kinzo acima discutidos, tendo em vista o objeto deste artigo é: a autora não se filiava na vertente de estudos eleitorais marcada pela escolha racional, ainda que, em algumas de suas hipóteses de investigação, procurasse construir explicações minimamente embasadas em supostos de racionalidade. Tem-se como exemplo o raciocínio segundo o qual as instituições políticas brasileiras incentivam comportamentos racionais que não favorecem a criação de vínculos de identidade estáveis entre partidos e eleitores. A parte isso, Kinzo procura trazer uma dimensão normativa sobre a qualidade da representação eleitoral no Brasil Os estudos de André Singer enquadram-se especificamente na temática das teorias do comportamento eleitoral. O autor se notabilizou na literatura nacional por defender uma tese específica sobre o eleitor brasileiro, e, mais recentemente, por discuti-la com a ascensão do PT ao governo federal. O autor, mais do que Kinzo, não se assenta no paradigma da escolha racional. Evidentemente, isso não significa ignorá-lo. Nada obstante, Singer explicitamente busca dialogar com conceitos e abordagens outras aos que consideramos ser o paradigma maior da Ciência Política. A posição defendida em Singer (2000) no debate sobre comportamento eleitoral brasileiro é a de que a identificação ideológica é um elemento essencial para a decisão do voto nacional. A construção teórica dessa hipótese é feita com base na reconstrução do debate internacional sobre comportamento eleitoral, e na ênfase em novos modelos da escola psicossociológica sobre as bases cognitivas da ideologia política em eleitorados de massa. Singer ainda pontua que tal visão é embasada nos modelos espaciais do voto, inspirados na escolha racional. Logo, se neste livro Singer se apoia, ainda que brevemente, nas suposições de um modelo da rational choice, seus textos mais recentes sobre Lula e o PT estão envolvidos em debates teóricos de outros gêneros. A hipótese do autor é a de que houve um realinhamento eleitoral em 2006, com os estratos mais pobres da sociedade apoiando Lula pela primeira vez, enquanto que a classe média aderiu mais fortemente ao competidor oposicionista. Segundo Singer, esse fenômeno das classes baixas apoiarem uma plataforma de esquerda seria inédito nas eleições presidenciais brasileiras, mas

17

apenas foi possível devido ao casamento entre as políticas de Lula e o conteúdo ideológico predominante neste estrato: o desejo de uma distribuição de renda capitaneada por um Estado forte, mas com a manutenção da ordem social. Assim, Singer busca uma interpretação de cunho mais “sociológico” para compreender as seguidas vitórias do PT. Sem minimizar explicações como o voto “econômico”, o autor concede ênfase ao substrato classista e ideológico da disputa partidário-eleitoral. Singer propõe no final de seu texto que a agenda de pesquisas da USP sobre o populismo dos anos 60 pode ser retomada para a compreensão dos fenômenos atuais da política nacional 21. Em seu texto especificamente sobre o PT, o “espírito” da interpretação de Singer é semelhante: o realinhamento ocorrido no primeiro mandato presidencial do partido corroborou uma síntese contraditória entre uma faceta radical e outra moderada do PT. A abordagem do autor se assenta nas duas correntes ideológicas opostas que coabitariam no partido, e suas respectivas bases sociais. Desse modo, Singer se posiciona num debate intelectual que não se enquadra nos parâmetros da escola da escolha racional. O autor não se atém em modelos sobre competição eleitoral e partidos políticos construídos pela literatura internacional inspirada naquela corrente. Judiciário Rogério Arantes e Matthew Taylor estão inseridos em uma sub-área de pesquisa diferente, sendo a maior parte de sua produção voltada ao estudo do poder Judiciário, onde o desenvolvimento do paradigma da TER é pequeno. 22 Porém, é importante salientar que, muito embora os estudos legislativos sejam, entre todas as sub-áreas da ciência política, a que mais usa a teoria da escolha racional, não há, a priori, nenhum impedimento para que o paradigma seja usado nas outras. 23 Arantes se destacou por suas pesquisas relativas ao Ministério Público (MP) e à judicialização da política no Brasil, bem como por suas análises da Constituição Federal de 1988. A judicialização de conflitos coletivos no país foi investigada por Arantes (2002) como resultado de um processo endógeno de reconstrução institucional do MP. O caráter marcadamente endógeno deste processo se refere às convicções de procuradores e promotores de que deveriam agir como defensores da sociedade, numa espécie de voluntarismo político. No que se refere à Constituição de 1988, Couto e Arantes (2006) investigaram como a constitucionalização de políticas governamentais trouxe dificuldades consideráveis para o sistema político brasileiro, obrigando sucessivos governos a modificar a Constituição para implementar suas políticas. 21 Não à toa o título de seu artigo, “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, remete ao de Weffort, “Raízes sociais do populismo em São Paulo”. 22

Segundo Kapiszewski e Taylor (2008), há muito poucos trabalhos sobre política judicial a utilizar a TER. 23

Para o uso da teoria dos jogos nos estudos do Judiciários, ver, por exemplo, Vanberg (2001).

18

Assim como Arantes, Taylor também vem se dedicando ao estudo do poder Judiciário e da judicialização da política. Taylor (2006) aplicou as teorias de veto players de Tsebelis (2002) aos tribunais de Justiça brasileiros, de modo a investigar o impacto do desenho institucional dos tribunais na política. Embora Taylor não faça referências à TER, a teoria de Tsebelis supracitada é um dos mais conhecidos exemplos de uso da teoria dos jogos na ciência política. Em outro artigo, Ríos-Figueroa e Taylor (2006) argumentam que a estrutura institucional do sistema legal de um país molda os resultados da produção legislativa de modo semelhante a outras instituições políticas, tais como o bicameralismo ou o sistema de comissões. Para justificar seu argumento e identificar alguns determinantes da judicialização da política, analisam os casos de México e Brasil. Posteriormente, Taylor (2007) descreveu o estado da literatura sobre Judiciário e política no Brasil, enfocando a relação madisoniana entre os três poderes republicanos. De modo a reforçar a importância de se considerar o Judiciário como ator na tomada de decisões do sistema político brasileiro, Taylor se utiliza de um pequeno modelo baseado na TER. 24 Embora seja um uso menor do paradigma, já que busca apenas fortalecer um argumento secundário, ainda assim é digno de nota. Cultura Política A área de cultura política no DCP-USP, é representada por José Álvaro Moisés. Tendo sua tese de doutorado orientada por Weffort, Moisés é professor do DCP-USP desde meados da década de 1970. Durante os anos 80, o autor produziu importantes estudos na área de movimentos sociais e estudos urbanos. Nos anos que correm, essas temáticas são tratadas no departamento em estudo por Adrian Lavalle e Eduardo Marques, autores que discutiremos abaixo. Durante o recorte temporal aqui analisado, a produção de Moisés se concentrou nos estudos sobre a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas (2005), sobre a percepção da corrupção (2008) e sobre o desempenho do Congresso brasileiro no presidencialismo de coalizão (2011). Porém, a despeito da variedade de temas, todos eles são investigados a partir de uma perspectiva culturalista. De toda a ciência política, a sub-área da cultura política é, talvez, a que se mostra mais refratária à incorporação da TER. Tal resistência é, até certo ponto, compreensível, se se considerar que perspectivas culturalistas costumam ressaltar aspectos estruturais em detrimento dos individuais. Seguindo essa tendência, a orientação teórica e metodológica dos trabalhos de Moisés sempre se manteve distante das premissas da TER. No período aqui analisado, os 24

Para exemplificar a importância do Judiciário, Taylor cria um modelo para explicar a reforma agrária de 1999-2000, durante o governo FHC. Seu objetivo é mostrar que o governo possuía um ponto ideal para a reforma distinto dos pontos do MST e dos latifundiários. Embora tenha editado uma Medida Provisória para alterar o status quo e aproximá-lo de seu ponto ideal, o governo desconsiderou a atuação do Judiciário. Para nossos propósitos, interessa ressaltar apenas que, de modo a fortalecer sua explicação, Taylor trabalha, ainda que implicitamente, com as premissas da racionalidade instrumental e das preferências estáveis e ordenadas. Com isso, consegue colocar em um gráfico euclidiano todos os pontos ideais dos atores envolvidos.

19

trabalhos empíricos de Moisés usaram diferentes surveys como fonte de dados. 25 Com efeito, uma das características marcantes da pesquisa feita na área de cultura política é o uso extensivo dessa metodologia, com o objetivo de captar avaliações e opiniões dos cidadãos sobre o sistema político. Este objetivo distancia as pesquisas de Moisés do paradigma da TER, que, por sua própria definição, ignora a formação de preferências dos atores. Na TER, as preferências são dadas a priori. A abordagem do autor tem um aspecto normativo claro, que consiste em avaliar a qualidade da democracia no Brasil, com base, em grande medida, em aspectos cognitivos de seus cidadãos. Estudos Urbanos As pesquisas sobre pobreza urbana desenvolvidos na USP e no Cebrap nos anos 70 e 80 reverberaram nos trabalhos de Eduardo Marques. Além desse tópico, o autor também se dedicou a analisar estruturas internas de governos municipais. Como exemplo de um estudo dessa temática, tem-se Marques (2006). Neste artigo, o autor faz uma síntese teórica de suas pesquisas26, nas quais procura defender a importância de uma abordagem centrada na dinâmica interna e relacional do Estado na produção de políticas urbanas. Sua discussão mais geral encaixa-se no debate das “teorias sobre o Estado” e sobre políticas públicas, e Marques filia-se na vertente neoinstitucionalista, ainda que com matizes importantes. Um desses matizes emerge da abordagem metodológica, a saber, a análise de redes sociais. Isso permite ao autor ressaltar os vínculos mais ou menos perenes entre atores estatais e entidades privadas, que conformam a dinâmica das políticas públicas. Concedendo igual ênfase à estrutura e à agência, focando a análise nas relações sociais e trabalhando com a ideia de racionalidade limitada, Marques levanta elementos analíticos que estão além de uma abordagem da escolha racional estrito senso. Sua agenda de pesquisas mais recente sobre pobreza urbana desenvolve-se, pode-se dizer, em duas abordagens. De um lado, o autor procurou ressaltar a importância do Estado e das políticas públicas na produção da segregação 27. De outro, Marques focou na importância das redes sociais nesse fenômeno. Um balanço teórico se encontra em Marques (2009). Por certo, este debate se insere mais no campo da Sociologia e da Economia que no da Ciência Política. A posição do autor é criticar tanto abordagens estruturalistas e holistas da pobreza, advindas de certa concepção sociológica, quanto individualistas e atomistas, fruto de algumas visões economicistas. O autor defende uma perspectiva relacional, que conjuga ambos elementos. Novamente, as redes sociais são o elemento chave da análise. Em suma, nesse breve balanço pode-se dizer que os estudos de Marques não se encontram nos parâmetros da escola da escolha racional.

25

Ver, por exemplo, Moisés (2008).

26 Como por exemplo Marques e Bichir (2002). 27 Ver Marques (2005)

20

Sociedade Civil Adrián Gurza Lavalle tem como principal temática os movimentos sociais, ou a política da sociedade civil. O autor, que outrora pesquisava mais diretamente na área de Teoria Política, adentrou no debate sobre sociedade civil buscando conceder ênfase aos espaços de interconexão entre Estado e atores societários. Em um texto no qual procede a uma interpretação da literatura sobre sociedade civil no Brasil, Gurza Lavalle (2003) procura argumentar que nos anos 80 e 90 constituíram-se modelos teóricos, fortemente normativos sobre a essência e o papel de movimentos da sociedade civil, que implicaram numa perda de consistência conceitual e acurácia empírica. Ao final, afirma que novas configurações políticas, como abertura de canais estatais para a sociedade civil, exigem um esforço conjunto da Ciência Política e da Sociologia para um enquadramento adequado da questão. De fato, os estudos do autor discutem temáticas afeitas tanto à área de Sociologia Política quanto a uma vertente empírica da Ciência Política diretamente ligada à Teoria Política. Assim, já fica claro que Gurza Lavalle não trabalha dentro dos limites do paradigma da escolha racional. Ainda que o autor critique concepções “minimalistas” de democracia, que tendem a desconsiderar a importância da sociedade civil no funcionamento do regime democrático, Lavalle e co-autores (2006a) também não endossa bandeiras normativas, como as que veem a nova sociedade civil como sendo indubitavelmente o agente de um processo de ampliação da democracia. Antes, procura mostrar que as instituições políticas tradicionais se imbricam com as entidades civis, num processo dinâmico que necessariamente reconfigura a representação política tradicional. O tema da representação política também é fartamente discutido pelo autor. Gurza Lavalle e co-autores (2006b) discutem diretamente com as teorias da representação, e com a ideia de que os sistemas políticos contemporâneos passam por processos de mudanças não triviais nessa área. A problematização dos autores versa sobre o estatuto representativo das associações civis. Uma solução teórica proposta é a ideia de representação virtual de Burke, o que já denota o afastamento analítico do autor em relação às abordagens mais tradicionais da escolha racional. 3. Considerações finais Este trabalho é apenas um pequeno passo numa proposta ambiciosa. Propusemo-nos a pensar em que medida a Filosofia da Ciência de Kuhn poderia nos ajudar a compreender a TER dentro da Ciência Política, e, em seguida, como se deu a expansão da TER em uma comunidade acadêmica específica, a saber, o DCP-USP. Como se sabe, as investigações de Kuhn não chegaram às ciências humanas, embora ele jamais tenha insinuado que tal empreendimento fosse inviável – ou mesmo indesejável. Buscamos colocar em evidência em que medida a TER poderia ser vista como um paradigma nos moldes daqueles existentes nas hard sciences. Depois, num segundo movimento, analisamos a trajetória do DCP-USP, de sua criação até sua fase atual (2000-

21

2012), que foi, então, vista de modo mais detalhado, com o objetivo específico de identificar o desenvolvimento da TER em cada sub-área departamental. O crescimento da TER no DCP-USP deve ser compreendido dentro dos marcos de diálogo, apropriação e utilização do mainstream da literatura de Ciência Política dos EUA. Como vimos, tradicionalmente os estudos sobre política da USP baseavam-se em outras perspectivas. Alguns deles continuam a influenciar a produção intelectual de docentes do Departamento, como os estudos sobre pobreza urbana, movimentos sociais e populismo. Por certo, os trabalhos mais recentes apresentam uma aproximação maior com a academia norte-americana que os de outrora, embora alguns ainda permaneçam distantes de assimilar a produção norte-americana strito sensu. As únicas áreas nas quais a TER faz-se presente são as de estudos das relações Executivo-Legislativo e de estudos do Judiciário, sendo a presença evidente no caso da primeira e sutil no caso da segunda. Entretanto, mesmo nas relações Executivo-Legislativo, a utilização dessa teoria combinou-se com discussões que escapam ao escopo tradicional de uma abordagem em teoria da escolha racional. Como afirma Limongi (2010), a área de relações Executivo-Legislativo surge dentro das discussões sobre consolidação da democracia no Brasil. De fato, essa preocupação é central na agenda de estudos do DCP-USP. Mais ainda, sua presença parece ditar até que ponto a TER é utilizada. Por um lado, o debate teórico-normativo sobre a consolidação da democracia brasileira, que opõe um grupo de pesquisadores de inclinação “otimista” a um mais “pessimista”, revela a falta de maturidade da Ciência Política no país, ao menos quando comparada à norte-americana. Por outro lado, esse mesmo debate suscita o uso – sobretudo por parte da corrente “otimista” – da TER e, de um modo geral, da produção da academia norte-americana para, justamente, fundamentar o diagnóstico de que a democracia no Brasil goza de plena consolidação e, assim, superar o debate teórico-normativo, que já não teria mais sentido. 28 Se a defesa da consolidação da democracia no país – tal qual encontrada nos trabalhos de Limongi, Ricci e Arretche – foi feita com base no uso da TER, o questionamento dessa consolidação, em grande medida, – como, por exemplo, nos trabalhos de Kinzo e Moisés, esse principalmente – continuou sendo feito com base em perspectivas mais sociológicas, que parecem reverberar as principais teses clássicas do pensamento social brasileiro 29.

BIBLIOGRAFIA

28 Cabe esclarecer que, se a TER é mais usada pela corrente “otimista” no Brasil, isso não significa que a literatura norte-americana não tenha se apoiado nela para questionar a solidez das instituições políticas brasileiras. Basta ver a produção de Ames, Mainwaring e Stepan, entre outros autores. 29 Pode-se fazer referência aqui ao texto de Werneck Vianna (1999) sobre a apropriação de Weber no pensamento social brasileiro, que mostra que este tem sido predominantemente lido pelo viés das formas patológicas de acesso à modernidade, em detrimento do aspecto central de sua obra: as patologias da própria modernidade.

22

ALMOND, Gabriel (1966). “Political Theory and Political Science”, American Political Science Review, vol. 60, no. 4, pp. 869-879. ARANTES, Rogério B. (2002). Ministério Público e Política no Brasil. São Paulo, Sumaré/Educ. ARRETCHE, Marta. (2002) “Federalismo e relações intergovernamentais no Brasil: a reforma de programas sociais”, Dados, vol.45, n.3. ARRETCHE, Marta & RODDEN, Jonathan. (2004) “Política distributiva na federação: estratégias eleitorais, barganhas legislativas e coalizões de governo”, Dados, vol. 47, n.3. ARRETCHE, Marta. (2007) “The Veto Power of territorial governments in Brazil: political institutions and representatives voting behaviour”, in: Brazilian Political Science Review, 2: 40-73. ARROW, Kenneth (1994). “Methodological Individualism and Social Knowledge”, The American Economic Review, vol. 84, no. 2, pp. 1-9. BAERT, Patrick (1997). “Algumas Limitações das Explicações da Escolha Racional na Ciência Política e na Sociologia”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, no. 35. BIANCHI, Ana Maria & MURAMATSU, Roberta (2005). “A Volta de Ulisses: Anotações sobre a Lógica de Planos e Compromissos”. Revista de Economia Política, vol. 25, no. 2, pp. 23-44. BLANKART, Charles B. & KOESTER, Gerrit B. (2006). “Political Economics Versus Public Choice”, Kyklos, vol. 59, no. 2, pp. 171-200. BRANDÃO, Gildo Marçal (2007). Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. Ed. Hucitec, São Paulo. CARDOSO, Fernando Henrique (1968). Política e desenvolvimento em sociedades dependentes. Tese apresentada para o concurso de cadeira de Política da FFCL – USP. __________; FALETTO, Enzo (1968). Dependência e Desenvolvimento na América Latina. COUTO, Cláudio G. & ARANTES, Rogério B. (2006). “Constituição, Governo e Democracia no Brasil”. Revistas Brasileira de Ciências Sociais, vol. 21, no. 61, pp. 41-62. ELSTER, Jon (1989). Peças e Engrenagens das Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Relume Dará. Partes I e II. FORJAZ, Maria Cecília Spina (1997) “A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, n.35. GOW, James & DUFOUR, Caroline (2000). “Is the New Public Management a Paradigm? Does It Matter?”, International Review of Administrative Sciences, vol. 66, no. 4, pp. 573-597. GUNNEL, John G. (2004). “The Real Revolution in Political Science”, Political Science and Politics, vol. 37, no. 1, pp. 47-50. GURZA LAVALLE, Adrián (2003) “Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990”, Novos Estudos Cebrap, n. 66. GURZA LAVALLE, Adrián, HOUTZAGER, Peter P. & CASTELLO, Graziela (2006). “Democracia, pluralização da representação e sociedade civil”. Lua Nova, no.67. GURZA LAVALLE, Adrián & co-autores (2006b) LAVALLE, Adrián Gurza, HOUTZAGER, Peter P. & CASTELLO, Graziela. “Representação política e organizações civis:novas instâncias de mediação e os desafios da legitimidade”. Rev. bras. Ci. Soc., Fev 2006, vol.21, no.60. HARDIN, Russel (1987). “Rational Choice Theories”. In: BALL, Terence (org.). Idioms of Inquiry: Critique and Renewal in Political Science. New York, State University of New York Press. HARDIN, Russel (2001). “The Normative Core of Rational Choice Theory”. In: MÄKI, Uskali (org.). The Economic Word View: Studies in the Ontology of Economics. Cambridge University Press. KEINERT, Fábio Cardoso; PINHEIRO SILVA (2010) “A Gênese da Ciência Política Brasileira”. Tempo Social, v.22, n.1. KINZO, Maria D’Alva. (2005) "Os partidos no eleitorado: percepções públicas e laços partidários no Brasil". Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 20, n. 57. KINZO, Maria D’Alva (2007). “Partidos, deputados estaduais e a dimensão ideológica”, in Kinzo, Maria D’Alva e Braga, Maria do Socorro, Eleitores e representação partidária no Brasil, São Paulo, Humanitas. KINZO, Maria D’Alva e CARREIRÃO, Yan (2004) "Partidos políticos, preferência partidária e decisão eleitoral no Brasil (1989-2002)". Dados, vol.47, nº 1. KUHN, Thomas. (1970a) “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?”, in A tensão essencial. São Paulo: UNESP, 2011.

23

KUHN, Thomas. (1970c) A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006. LIJPHART, Arend (1974). “The Structure of the Theoretical Revolution in International Relations”, International Studies Quarterly, vol. 18, no. 1, pp. 41-74. LIMONGI, Fernando (2010). “Estudos Legislativos”. In: MARTINS, Carlos B. & LESSA, Renato (orgs.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Ciência Política. São Paulo, Anpocs, vol. 1. MACDONALD, Paul K. (2003). “Useful Fiction of Miracle Maker: the Competing Epistemological Foundations of Rational Choice Theory”, American Political Science Review, vol. 97, no. 4, pp. 551-565. MARQUES, Eduardo. (2006) “Redes sociais e poder no Estado brasileiro”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 21, n. 60. MARQUES, Eduardo. (2009) “As redes sociais importam para a pobreza urbana?”, Dados, vol. 52, n.2. MARQUES, Eduardo & BICHIR, Renata (2002). “Clivagens ideológicas e empresas privadas nos investimentos públicos urbanos – São Paulo 1978-1998” Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, n.50. MARQUES, Eduardo. (2005) “Elementos conceituais da segregação, pobreza urbana e da ação do Estado”, in, MARQUES, Eduardo & TORRES, Haroldo (orgs.) São Paulo: segregação, pobreza urbana e desigualdade social. São Paulo, Ed. Senac. MOISÉS, José Álvaro (2005). “Cidadania, Confiança e Instituições Democráticas”. Lua Nova, no. 65, pp. 71-94. MOISÉS, José Álvaro (2008). “Political Corruption and Democracy in Contemporary Brazil”. Revista LatinoAmericana de Opinión Pública, vol. 1, no. 0, pp. 103-124. MOISÉS, José Álvaro (2011). “O Desempenho do Gongresso Nacional no Presidencialismo de Coalizão (19952006)”. In: MOISÉS, José Álvaro (org.). O Papel do Congresso Nacional no Presidencialismo de Coalizão. Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenauer. MONROE, Kristen R. (2001). “Paradigm Shift: from Rational Choice to Perspective”, International Political Science Review, vol. 22, no. 2, pp. 151-172. PRZEWORSKI, Adam, CHEIBUB, José A. & LIMONGI, Fernando (2003). “Cultura e Democracia: uma Visão Não Culturalista”. Lua Nova, no. 58, pp. 9-35. PRZEWORSKI, Adam, ALVAREZ, M., CHEIBUB, José A. & LIMONGI, Fernando (1996). Democracy and Development. Political Institutions and Economic Performance in the World, 1950-1990. Cambridge, Cambridge University Press. QUIRINO, Célia. (1994) “Departamento de Ciência Política”. Estudos Avançados USP, 8(22). REIS, Fábio Wanderley (1966) “A Propósito de Ciência e Dialética”. Revista Brasileira de Ciências Sociais (da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG), vol. IV, n.1. RICCI, Paolo (2003). “Conteúdo da Produção Legislativa Brasileira: Leis Nacionais ou Políticas Paroquiais?”. Dados, vol. 46, no. 4, pp. 699-734. RICCI, Paolo & LEMOS, Leany B. (2004). “Produção Legislativa e Preferências Eleitorais na Comissão de Agricultura e Política Rural da Câmara dos Deputados”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 19, no. 55, pp. 107-130. RIKER, William H. (1995). “The Political Psychology of Rational Choice Theory”, Political Psychology, vol. 16, no. 1, pp. 23-44. RÍOS-FIGUEROA, Julio & TAYLOR, Matthew (2006). “Institutional Determinants of the Judicialisation of Policy in Brazil and Mexico”. Journal of Latin American Studies, vol. 38, no. 4, pp. 739-766. SHAPIRO, Ian (2002). “Problems, Methods and Theories in the Study of Politics, or What’s Wrong with Political Science and What to Do About it”, Political Theory. SINGER, André. (2000) Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro. São Paulo, Edusp. SINGER, André. (2009) “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, Novos Estudos Cebrap, n.85. SINGER, André. (2010) “A segunda alma do partido dos trabalhadores”, Novos Estudos Cebrap, n.88. TAYLOR, Matthew (2006). “Veto and Voice in the Courts: Policy Implications of Institutional Design in Brazil”. Comparative Politics, vol. 38, no. 3, pp. 337-355. TRUMAN, David (1965). “Disillusion and Regeneration: the Quest for a Discipline”, American Political Science Review, vol. 59, no. 4, pp. 865-873. TSEBELIS, George (2002). Veto Players: How Political Institutions Work. Princeton, Princeton Univesity Press.

24

UDEHN, Lars (2002). “The Changing Face of Methodological Individualism”, Annu. Rev. Sociol., vol. 28, pp. 479-507. VANBERG, Georg (2001). “Legislative-Judicial Relations: A Game-Theoretic Approach to Constitutional Review”. American Journal of Political Science, vol. 45, no. 2, pp. 346-361. WEFFORT, Francisco (1968) Classes Populares e Política. Tese de doutorado, cadeira de Política – FFCL – USP. WERNECK VIANNA, Luiz. (1999) “Weber e a interpretação do Brasil”, Novos Estudos Cebrap, n. 53.

25

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.