REFLEXÕES ÉTICAS SOBRE A VIOLÊNCIA TERRORISTA TRANSNACIONAL NO PÓS-11 DE SETEMBRO: EM BUSCA DE NOVAS FRONTEIRAS E ESPAÇOS DE DIÁLOGO PARA O PROBLEMA DA DIFERENÇA NO INTERNACIONAL

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REFLEXÕES ÉTICAS SOBRE A VIOLÊNCIA TERRORISTA TRANSNACIONAL NO PÓS-11 DE SETEMBRO: EM BUSCA DE NOVAS FRONTEIRAS E ESPAÇOS DE DIÁLOGO PARA O PROBLEMA DA DIFERENÇA NO INTERNACIONAL Carlos Maurício Ardissone Estou impressionado ao ver uma tal incompreensão do que é nosso país e como as pessoas possam nos detestar. Estou como a maioria dos americanos, não consigo acreditar, pois sei que somos bons. George W. Bush Em pouco tempo, em todo o mundo, muitos se dão conta de que muita coisa saiu do lugar; o que parecia estabelecido, quieto em sua calma, revela-se desconhecido. De repente instala-se a descontinuidade, instabilidade, aflição, medo, terror. O que parecia um acidente de engenharia, arquitetura ou urbanismo logo se revela acontecimento histórico, com implicações econômicas, políticas, sociais e culturais. Abala-se o mapa do mundo, movendo-se territórios e fronteiras, expectativas e horizontes, ideais e convicções, glórias e ilusões. Octavio Ianni Procurar um contexto mais amplo para situar os eventos de 11 de setembro não significa livrar-se da necessidade de condenar aqueles que se valeram de tal violência. R.B.J. Walker A proposta geral presente neste artigo é a do desenvolvimento de um pensar ético sobre o emprego da violência pelas redes terroristas transnacionais no campo da política internacional, tendo como marco os atentados de 11 de setembro de 2001. A reflexão está ancorada num esforço de compreensão da estrutura internacional das fronteiras territoriais como práticas sociais. Outro prisma do raciocínio concentra-se nas categorias de exclusão do internacional que estimulam um olhar crítico sobre a utilização da violência pelas redes terroristas globais. O uso em ampla escala destrutiva, performático e simbólico da violência por parte destes grupos transnacionais apresenta “algo novo” que merece ser compreendido e que desafia as formas tradicionalmente legítimas de emprego da violência. Entende-se que o 11 de setembro não deve ser simplesmente condenado ética e moralmente de acordo com a tradição da modernidade segundo a qual o Estado moderno soberano é o detentor per se do monopólio do uso da violência legítima. Terroristas globais não agem ou operam de acordo com uma visão das fronteiras como delimitando diferentes espaços soberanos. Não compreender tal lógica implica em contribuir para perpetuar e intensificar processos de exclusão e marginalização que caracterizam o internacional, sem uma resposta plausível para

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os que ainda procuram encontrar uma reserva moral de condenação do 11 de setembro – ou do terrorismo transnacional - que não mergulhe no discurso superficial do chauvinismo patriótico-nacionalista ou da superioridade de raça, cultura ou civilização. Uma suposição preliminar que se pretende apresentar é a de que o Estado nacional soberano avocou para si o direito do monopólio do uso da violência legítima, a partir de um movimento arbitrário, violento e bem sucedido de naturalização daquele suposto direito, que ganhou seus definitivos contornos legais e de reconhecimento na concepção weberiana do Estado. Entende-se que o processo de formação estatal ou de consolidação do que se convencionou chamar de sistema internacional westphaliano recorreu sistematicamente ao emprego da violência por parte de determinadas elites políticas e/ou religiosas e a processos de homogeneização patológica dos povos para garantir ao Estado e ao sistema e Estados sua viabilidade, continuidade e perpetuidade.1 Na sua origem, estas estratégias de recurso à violência tiveram seus momentos de marginalidade – de falta de uma fonte de legitimação – e de exploração de uma dimensão simbólica para auferir aceitação. O processo gradual de legitimação da violência estatal se deu de acordo com a convenção de categorias excludentes que exigem definir quem está dentro e quem está fora da vida política, sendo esta supostamente adstrita os limites territoriais do Estado Moderno soberano. A escalada transnacional do terrorismo, contudo, sugere desafios à visão do internacional como um espaço em que a vida política ocorre somente onde o Estado moderno diz que deve ocorrer. Como afirma WALKER, “a violência persiste, mas não da forma que nós esperamos e não, particularmente, nas formas obsoletas sancionadas, como a de guerras entre Estados soberanos” (2005:1). Clamores pelo emprego da violência em massa partem de algumas facções radicais dos povos que se sentem marginalizados das supostas benesses econômicas e sociais do processo global de acumulação capitalista, que questionam as práticas sociais e culturais ligadas os valores da tradição liberal, que se sentem ameaçados pela excessiva concentração do poder militar nas mãos de uma potência hegemônica e que não se identificam com a forma como as fronteiras territoriais foram traçadas na construção do internacional moderno: a visão das fronteiras territoriais “como cercas” a que alude WILLIAMS (2006). Em meio às reflexões sobre a possibilidade de um pensar ético sobre a violência das redes terroristas transnacionais, é importante considerar alguns movimentos da intelectualidade que, dedicados a dimensionar o impacto dos eventos de 11 de setembro, 1

Neste ponto, será fundamental a abordagem de RAE (2002).

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aparentemente incorreram no exercício de priorizar um entendimento estético e simbólico do fatal episódio, permanecendo, aparentemente, quase que indiferentes a um julgamento éticohumanista e obscurecendo uma instância normativa de análise. Importante parte das críticas aqui é dirigida à visão de BAUDRILLARD (2004) sobre os atentados. Importa também as críticas de outros autores que condenam a práticas de determinados maniqueísmos (NOGUEIRA, 2003) e hipocrisias (WALKER, 2003; WALLERSTEIN, 2004) na forma como conflitos internacionais passaram a ser objeto de inquirição no pós-11 de setembro. Debruçarse sobre estas críticas permite também medir o quanto é possível avançar em direção a uma compreensão do papel que hoje a violência desempenha como elemento desestabilizador das fronteiras territoriais dos espaços políticos soberanos que visam organizar o internacional moderno, mesmo reconhecendo que este continue se reproduzindo também por maneiras diferenciadas de violência (WALKER, 2005:1). A escalada da “Guerra contra o Terror” por parte dos Estados Unidos e de seus aliados pode ser considerada, pelo menos em parte, como uma tentativa de operacionalizar o progressivo ideal de inclusão que o internacional moderno encerra: a pretensão de bringing in dos outsiders, entre estes os Estados tidos como “parias” ou “fracassados”, como o Afeganistão e o Iraque. O trabalho perfila-se à preocupação de autores que julgam ser importante “[...] refletir sobre nossas próprias habilidades para questionar o espaço que a violência ocupa na vida política contemporânea, considerando-se a ferocidade da violência e da contra-violência [..]” expressa em eventos como o 11 de setembro (WALKER, 2003: 298). Portanto, o que se pretende não é desvelar todas as possíveis interpretações sobre os atentados.2 Esta não é uma análise detida sobre o 11 de setembro, mas sim sobre o significado ético da violência que ele encerrou, com seus desafios interpretativos. Assim, uma das pretensões deste artigo é a de questionar o impacto que o recurso a uma violência feroz e em larga escala por parte das redes terroristas transnacionais teve para desestabilizar as formas convencionais de aceitação do uso legítimo da força e abalar a suposição moderna de plena coincidência entre as fronteiras da vida política e as fronteiras da organização do espaço territorial em Estados nacionais soberanos. Trata-se de uma abordagem que explícita e confessadamente privilegia uma visão do internacional e das fronteiras territoriais como práticas sociais e não como meros fatos materiais, o que as

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Foi o 11 de setembro um “ataque terrorista”, um “ato político” ou uma “ação revolucionária”? Autores como IANNI entendem que as três respostas são válidas (2004:232).

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tornaria bastante receptivas a uma inquirição ética. Para tanto, o aporte de WILLIAMS (2006) será crucial. Outro objetivo do trabalho é refletir sobre as considerações acerca da existência de uma suposta “incomensurabilidade ética” no mundo da política que impediria qualquer julgamento sobre as formas de vida e os padrões éticos dos que identificamos como diferentes de nós – o ‘Outro’. Neste ponto, as discussões de INAYATULLAH & BLANEY (2004) podem proporcionar contribuições relevantes pelas respostas críticas de matriz etnológicas que apresentam ao problema da diferença, por muitas vezes o elemento catalisador da violência. Como oportunamente indagam os autores, é possível, num mundo de valores e visões diversos e habitualmente incomensuráveis [...], realizar os tipos de comparações e valorações necessários para sustentar um argumento ético que seja geralmente persuasivo? (INAYATULLAH & BLANEY, 2004:8-9) É essa a indagação que ora se apresenta em relação ao emprego da violência em larga escala pelas redes terroristas transnacionais, tal como ocorreu no 11 de setembro. Ela é desenvolvida com base na certeza de que “escolhas éticas e políticas não podem ser separadas” (WILLIAMS, 2006:9). Como demonstra NOGUEIRA, é possível oferecer outras interpretações que superem o mantra realista que durante muito tempo informou o relativismo moral com o qual o uso da violência é tratado pelos autores clássicos da política internacional, assim como por muitos “internacionalistas” (NOGUEIRA, 2003:82). 3 Enfim, a proposta geral da análise é a de estimular conhecimento sobre algumas referências intelectuais que permitam desenvolver um pensamento ético e uma reserva moral sobre a violência terrorista transnacional. O pós-estruturalismo de WALKER (1993, 2000, 2005), o olhar crítico de WILLIAMS sobre as fronteiras territoriais (2006) e a visão “a partir das margens” de INAYATULLAH & BLANEY (2004) são as bases conceituais sobre as quais construímos a análise, cuja pretensão é a de contribuir para formas positivas e pacíficas de erigir um internacional menos excludente e que priorize diálogos e espaços políticos que não têm lugar na modernidade.

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NOGUEIRA revela-se insatisfeito com as possibilidades oferecidas pelas teorias convencionais de relações internacionais para avaliar e analisar o uso corrente da violência na política mundial. Para o autor, “os limites da teoria se expressam na separação entre ética e política operada, tradicionalmente, pelo realismo, mas de fato inscrita no “problemática da anarquia” constitutiva do campo de estudos das Relações Internacionais”. (2003:8485).

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O TERROR DA VIOLÊNCIA E A VIOLÊNCIA DO TERROR Quaisquer discussões que tenham por escopo refletir sobre o papel da violência na política devem ser precedidas por um esforço mínimo de rigor conceitual e de clarificação teórica. Quando há uma referência à “violência no campo da política”, o que exatamente se quer dizer? Quais as diferenças substantivas entre a violência que se diz legitimamente empregada e a que é empregada pelo terror? Quais as diferentes funções políticas da violência? O que se pretende exatamente dizer quando há uma referência aos traços simbólicos que caracterizariam singularmente a violência terrorista transnacional? De forma conceitual, a violência pode ser compreendida como “a intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si mesmo)” (BOBBIO, MATTEUCCI et al, 2000:1291). Para que exista violência, entende-se que a intervenção física deve ser voluntária e ter por finalidade destruir, ofender e/ou coagir. Em geral, a violência é exercida contra a vontade da vítima, apesar da existência de casos excepcionais, como o do suicídio ou de atos de violência provocados pela vítima com finalidade de propaganda ou de outro tipo (BOBBIO, MATTEUCCI et al, 2000:1291). Do grau de sofrimento que poderia ocasionar o interventor físico dependeria, por um lado, a eficácia da ameaça de violência e, por outro, sua credibilidade. A credibilidade, por seu turno, estaria vinculada ao efeito demonstrativo que a violência carregaria consigo. O ameaçado deverá reconhecer que aquele que faz a ameaça possui os meios para efetuá-la, além de estar determinado a fazê-lo. O efeito demonstrativo seria ainda maior se o que impinge a ameaça já promoveu atos de violência em ocasiões anteriores e análogas. Este tipo de violência seria por muitas vezes utilizado para instaurar, consolidar ou ampliar o controle coercitivo de uma dada situação (BOBBIO, MATTEUCCI et al, 2000:1292-1293).4 No campo da filosofia política clássica e nos escritos de autores como Thomas Hobbes o recurso à violência é associado a um traço característico do poder político ou do poder de governo. Mas foi no enunciado sociológico de Max Weber acerca do monopólio da violência legítima que a acepção moderna sobre a legitimidade do seu uso encontrou sua expressão mais bem acabada. Vale sublinhar, no entanto, que mesmo no que WEBER chama de comunidades políticas “plenamente desenvolvidas” – aquelas nas quais se processa, ao 4

A “Guerra contra o Terror” pode ser entendida, em parte, como uma tentativa do Governo dos Estados Unidos da América de, com ajuda de seus aliados, pôr este efeito demonstrativo da violência em prática.

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redor de um poder central de Governo, um conjunto de comportamento a que podemos chamar de “política” que seria feito de partidos e facções que buscam a conquista do poder político e de grupos de pressão que buscam influenciá-lo de fora – o monopólio da violência não é absoluto. O Governo (ou poder político estabelecido) confere uma aparência de exclusividade de uso da violência por dispor de aparelhos especializados, como a polícia e as forças armadas que, em tese, dispõem de maneira preponderante e de melhores meios materiais para usá-la, se comparados a outros grupos internos da comunidade política, Contudo, isto não significa afirmar que a violência é o fundamento exclusivo e principal do poder político. Apesar do terror da violência (o receio da represália) ser uma motivação importante para os membros de uma comunidade política obedecerem aos comandos da forma de governo instituída, ela não é a única. Um grau mínimo de consenso estabelecido é necessário, ainda que restrito aos membros pertencentes ao aparelho especializado no emprego da violência, como ocorre em sociedades dirigidas de forma tirânica (BOBBIO, MATTEUCCI et al, 2000:1293-1294). O terror da violência, assim, é aquele que é sustentado de forma continuada e que visa punir condutas desviantes que foram determinadas com antecedência, procurando castigá-las com medidas que podem ir desde castigos com intervenções físicas até formas de punição que visam impedir materialmente alguém de cumprir uma ação, como acontece nas penas restritivas de liberdade. Este é o tipo de violência que provoca na população um temor racional e que permite à mesma calcular quais seriam os custos de um comportamento desobediente (BOBBIO, MATTEUCCI et al, 2000:1294). A violência do terror em muito se difere do terror da violência. Com efeito, a violência que alimenta uma situação de terror é incomensurável e imprevisível. A violência do terror, ou simplesmente terror, assim: “[...] atinge por acaso comportamentos não prefixados, nos quais se manifesta, ou pretende manifestar-se, também de maneira mais indireta e mais incerta, uma crítica ou uma oposição [..] a violência atinge estes comportamentos não de maneira discriminada e ponderada, mas cegamente, como uma fúria selvagem [...] Este tipo de violência gera na população um medo irracional, perenemente ameaçador e sem contornos precisos, impedindo qualquer cálculo e previsão” (BOBBIO, MATTEUCCI et al, 2000:1294).

A violência terrorista pode ser utilizada como método para garantir a estabilidade e perpetuidade de algum governo, tal como aconteceu com diversos regimes políticos contemporâneos de natureza totalitária. Mas o espaço político em que a violência

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terrorista pode se dar na contemporaneidade não se restringe apenas aos limites internos dos Estados nacionais com fronteiras territoriais aparentemente bem delimitadas – ou à dinâmica inter-estatal, em dilemas de guerra e paz. Para os pós-estruturalistas, é um espaço muito mais complexo, multifacetado, no qual o Estado territorial soberano deve ser compreendido como uma espaço-temporalidade específica e historicamente localizada que contribuiu para enclausurar a imaginação política (WALKER, 1993). Há, enfim, uma premente “[...] necessidade de entender as formas de violência em transformação no mundo contemporâneo”5 (WALKER, 2003:314) de forma que se busque escapar às convenções estipuladas pelas teorias convencionais da disciplina de Relações Internacionais, especialmente o realismo, que tendem a privilegiar as motivações de interesse e poder dos Estados (NOGUEIRA, 2003:8485). Algumas das funções ou objetivos mais óbvios da violência 6 são a de destruir adversários ou colocá-los na impossibilidade de reagir com eficácia – o que já aconteceu por diversas vezes em atentados contra líderes carismáticos – ou então a de dominar sua resistência e vontade – como ocorre, por exemplo, em casos de tortura (BOBBIO, MATTEUCCI et al, 2000:1295-1296). Mas é a função simbólica da violência a que, na maior parte das vezes, é visada e utilizada pelo terrorismo, justamente pelo fato de que destruir adversários ou submetê-los aos seus domínio e vontade revelam-se objetivos inatingíveis quando estes adversários detêm recursos econômicos e militares muito superiores. BOBBIO, MATTEUCI et al (2000:1296) fornecem referências importantes para compreender a função do caráter simbólico da violência, presente em práticas terroristas: Uma função crucial da violência de um grupo rebelde ou revolucionário em relação ao ambiente externo é de caráter simbólico [...] A Violência susta as regras da ordem social constituída; com a arma dramática e terrível da violência, os homens que a empregam quebram a lei e se autoproclamam legisladores em nome da justiça. Esta carga simbólica da violência depende de certas condições: por exemplo, a violência não deve ter sido desvalorizada por um uso endêmico ou por motivos leves; o ato de violência deve atingir o grupo antagônico, em particular homens e coisas que simbolizam a causa do estado de injustiça do grupo rebelde. 5

Segundo WALKER, “Muito do debate recente sobre segurança e assuntos militares foi tomado pela mudança, bem divulgada, das guerras abertamente internacionais para guerras civis nos chamados Estados fracassados por um lado, e o desenvolvimento das tecnologias de comunicação intensiva móvel (centrada em redes/centrada em informação) por outro. Os argumentos sobre a ameaça do terror são inseparáveis de ambos” (2003:314). 6 Além do terrorismo transnacional, outras práticas de violência no mundo contemporâneo seriam o genocídio, a limpeza étnica, o tráfico de pessoas, as guerras civis, entre outras. Aqui, interessa-nos apenas o terrorismo transnacional.

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Mesmo quando um ato violento não logre provocar os mencionados efeitos simbólicos, ele pode alcançar um efeito no ambiente externo que chame a atenção e que, através dos meios de divulgação de massa, confira bastante visibilidade e importância às reivindicações e ressentimentos do grupo terrorista. Um só episódio de violência pode afetar toda a humanidade e métodos de violência “espetaculares” cada vez são mais aprimorados (BOBBIO, MATTEUCI et al, 2000:1296). O 11 de setembro representa, com certeza, o episódio mais significativo de funcionalidade simbólica do terrorismo internacional, mas cujo integral alcance não foi, infelizmente, totalmente apreendido pela maior parte das análises, muitas delas motivadas pela Guerra contra o Terror. Como foi mencionado, há leituras que indicam um embate entre diferentes maniqueísmos que teriam sido contaminados por uma forma superficial de enxergar os conflitos internacionais (NOGUEIRA, 2003). Seria possível mencionar também uma série de hipocrisias nas abordagens que foram desenvolvidas pós-atentados (WALKER, 2003; WALLERSTEIN, 2004). Finalmente, a concentração de algumas interpretações no caráter simbólico do 11 de setembro como a de BAUDRILLARD (2004) contribuiria para que outras críticas (MATTEI, 2002) apontem para uma suposta indiferença a julgamentos éticos naquelas interpretações, enfim, para um tipo diferente de hipocrisia, não da mesma categoria das já citadas. A este conjunto de maniqueísmos e hipocrisias pretendemos nos voltar mais adiante, mas não sem antes examinar momentos em que o emprego da violência foi fundamental como instrumento de construção estatal e para auferir legitimidade e garantir a perpetuidade do Estado, o que terminou por desembocar num processo de naturalização da sua existência, como se esta obedecesse a uma dimensão “fora da história”. FORMAÇÃO

ESTATAL

POR

PRÁTICAS

DE

HOMOGENEIZAÇÃO

PATOLÓGICA: A CONTRIBUIÇÃO DE HEATHER RAE A abordagem de RAE (2002) defende que o processo de formação estatal “possui uma dimensão cultural crucial, subestimada por outras teorias de formação do Estado que consideram a cultura um mero instrumento de interesses econômicos” (RAE, 2002:2). Sob um prisma construtivista, a autora enfatiza o aspecto constitutivo que a cultura desempenha condicionando e sendo condicionada pelos agentes. Estes, por sua vez, têm seu papel examinado enquanto formadores do Estado (state-builders), sendo que a conceito de state-building é compreendido como “aquelas práticas que as elites mais ou menos

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empregaram para consolidar e centralizar poder dentro de fronteiras territoriais bem definidas”(RAE, 2002:4). Esta definição é importante para compreendermos que, para a autora, são elites (políticas e/ou religiosas) que construíram o Estado, e não os povos (o que reforça o diagnóstico de que a construção do sistema inter-estatal foi, segundo o seu ponto de vista, um processo histórico excludente). Para RAE (2002), diferentes práticas menos e mais violentas utilizadas pelos state-builders para consolidar politicamente o Estado moderno soberano foram apoiadas não somente em recursos materiais, mas também simbólicos, e nem sempre atenderam critérios de uma racionalidade instrumental.7 Em diferentes momentos da história, seria possível observar as elites responsáveis pela condução do Estado recorrendo a práticas que a autora reúne sob a alcunha de “homogeneização patológica”. Do ponto de vista conceitual, a homogeneização patológica se refere “aos métodos que os state-builders utilizaram para definir o Estado como uma ordem normativa e para fomentar a identificação, tendo como alvo àqueles considerados outsiders por meio de um tratamento discriminatório e frequentemente violento” (RAE, 2002:4). A homogeneização patológica dos povos, como técnica de constituição dos Estados nacionais soberanos, seria uma prática recorrente desde o século XV. Assim, pode-se dizer que para RAE o processo de construção do Estado precisa ser compreendido como um processo intersubjetivo cuja prioridade, mais do que estabelecer e defender fronteiras territoriais é demarcar bem suas fronteiras morais. É importante não perder de vista um aspecto, antes de avançarmos um pouco mais pelo trabalho de RAE. Por intermédio de uma gama de fontes históricas, a autora procura “traçar a construção das categorias de insider e ousider por meio da interação dos agentes e das estruturas culturais dentro das quais eles agem, e que sucessivamente suas ações remodelam” (RAE, 2002:11). Estruturas e estratégias culturais desempenhariam um papel fundamental na consolidação de identidades estatais coletivas e das fronteiras entre os Estados. Contudo, a possibilidade aceita por RAE de agentes manipulando símbolos culturais extrapolaria a própria estrutura e incorreria numa espécie de voluntarismo na forma como a autora trata a cultura e que impregnaria seu argumento de uma normatividade intersubjetiva voltada para o Estado. Mesmo admitindo-se a procedência desta observação, o que importa 7

A autora defende que a ação política não é determinada por indivíduos racionais e egoístas perseguindo interesses pré-determinados, uma vez que reconhecer isto implica em ignorar a agência e não considerar o processo – social, político e cultural – pelo qual os agentes interagem uns com os outros e, sucessivamente, com as estruturas sociais que a agência tanto cria quanto transforma (RAE, 2002:44).

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sublinhar aqui é que RAE demonstra que práticas violentas de conteúdo simbólico são mecanismos por muitas vezes habilmente manipulados pelas elites e que foram - e em alguns casos ainda são - importantes em processos de formação estatal. A manipulação simbólica, portanto, não é exclusiva das redes terroristas transnacionais. Significa dizer que o aporte principal da abordagem de RAE, para os propósitos deste artigo, é o de demonstrar que fenômenos violentos como assimilação, expulsão, segregacionismo, perseguições religiosas e políticas, limpezas étnicas, não guardam nenhum ineditismo e nem são exclusivos do mundo pós-Guerra Fria. Pelo contrário, são recorrentes na história, pelo menos desde o século XV, e em muito contribuíram para a consolidação de alguns Estados nacionais soberanos.8 Embora se possa questionar se o modelo de RAE tem validade explicativa para todos os casos de formação estatal - na realidade, poder-se-ia dizer que a proposta da autora é muito mais uma teoria de macrohistórica sobre a homogeneização patológica do que propriamente uma teoria geral sobre a formação estatal – o fato é que métodos de práticas violentas com a finalidade de consolidar o poder político do Estado foram e continuam sendo francamente utilizados em vários momentos da história por algumas elites políticas. Da mesma forma, no momento em que RAE reconhece que o processo de construção do Estado nacional soberano e de legitimação da sua autoridade política deve ser compreendido como um processo intersubjetivo cuja prioridade é demarcar suas fronteiras morais (mais do que as territoriais), demonstra que prioriza uma concepção evolutiva e social do fenômeno estatal e das fronteiras mais como fatos sociais do que materiais. As fronteiras territoriais foram na realidade artificialmente e arbitrariamente construídas e os Estado então emergem como ordem normativa e como fenômeno histórico com origens bem localizadas. No entanto, apesar de chegar a se reportar aos Estados como demarcados por fronteiras morais, não há por parte de RAE preocupação em avançar profundamente numa perspectiva ético-normativa sobre os processos sociais violentos ou sobre as práticas políticas totalizantes conexas à origem do sistema moderno de Estados. Este traço deve ser procurado em outras análises que se dispõem a enfrentar a questão das relações entre o ético e o político, confrontadas à tentativa que ora se coloca de interpretar a violência terrorista transnacional 8

Entre os casos estudados no livro de RAE, estão o da expulsão e perseguição dos mouros e judeus da Espanha, entre os séculos XV e XVII; as guerras religiosas entre católicos e protestantes na França, nos séculos XVI e XVII; as perseguições aos armênios que teriam ajudado a consolidar o Estado turco, especialmente durante o genocídio de 1915-1916; e as técnicas de limpeza étnica utilizadas nos conflitos da ex-Iugoslávia, no final do século XX.

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sob novas formas de espaço-temporalidades e de concepção das fronteiras do internacional, que logre desmistificar maniqueísmos e hipocrisias na forma convencional com que os conflitos internacionais são enfrentados. WALKER (1993, 2000, 2005), WILLIAMS (2006) e INAYATULLAH & BLANEY (2004) estão entre os que podem apresentar aportes significativos neste sentido. HIPOCRISIAS E MANIQUEÍSMOS EM MEIO ÀS TENTATIVAS DE UMA ABORDAGEM ÉTICA DA VIOLÊNCIA TERRORISTA TRANSNACIONAL O pós-estruturalismo de WALKER (1993, 2000) representa a primeira abordagem que pode ser útil para uma compreensão sobre o significado da ética na vida política contemporânea e, em particular, nos traços identificáveis de violência transnacional terrorista. A critica pós-estruturalista de WALKER é contundente e abala os alicerces das teorias convencionais no campo disciplinar das Relações Internacionais, em particular o realismo, que a partir da questão da anarquia como constitutiva do campo de estudo das Relações Internacionais, proclama uma separação entre ética e política (NOGUEIRA, 2005:84-85). Como esclarece NOGUEIRA sobre as teorias do mainstream (2005:85): [...] ao subsumir considerações de ordem ética à razão política (considerada como esfera autônoma) as teorias dominantes limitam a análise dos problemas cada vez mais complexos que caracterizam a realidade internacional atual à compreensão das variáveis tradicionais de interesse e poder que motivam a conduta dos Estados.

Alinhado com este diagnóstico, WALKER vai repudiar as tentativas que considera infrutíferas por parte dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha de reagir aos atentados do 11 de setembro a partir de uma postura ordenada de acordo com a tradicional clivagem entre o doméstico e o internacional que, em última instância, seria o sustentáculo da separação entre o político e o ético, entre o que é ou não legítimo: [...] algumas das questões mais difíceis com as quais nos defrontamos atualmente são familiares e há muito vêm deixando os pensadores modernos bastante desconfortáveis, porém não o suficiente. Elas têm origem nos critérios aceitos como válidos que compõem os pressupostos sobre a necessidade e a legitimidade ética da violência em um mundo moderno de Estados soberanos. Em última instância, essas questões se apóiam na hipocrisia fundamental, nos padrões duplos institucionalizados, por meio dos quais o mundo moderno, em geral, e os liberais,

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particularmente, vêm tentando alegar padrões universais de verdade e justiça, embora eles defendam argumentos paroquiais, de seus próprios Estados-nação, sobre verdade e justiça. Deus, ou civilização, ou a virtude, está sempre do lado de alguém e conhecemos muito bem o que isto significa para aqueles do lado de quem não está.[...] Os Bushs e os Blairs podem falar como se estivessem atuando em um mundo de Estados soberanos e moldar suas retóricas de acordo com isso. No entanto, nós, assim como eles, sabemos o suficiente sobre globalização, militarização e desigualdades em escala global para dar um desconto às suas retóricas, embora provavelmente não o bastante para fazer surgir uma explicação mais coerente sobre um mundo que passou a ser demasiadamente complexo [...] (WALKER, 2005:299).

Este comentário de WALKER, extraído do texto “Guerra, Terror, Julgamento”, além de bastante ilustrativo sobre as formas como os Estados nacionais soberanos com maiores prerrogativas materiais de sanção e coerção internacional (no caso, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha) ainda entenderiam que se instrumentaliza o uso da violência legítima, está em perfeita harmonia com os postulados centrais de sua abordagem pós-estruturalista. Por intermédio destes é que é possível compreender como WALKER afirma que “padrões de transformação estrutural-históricas desafiam, há bastante tempo, os critérios de autoridade legítima que são aceitos como válidos”.(2005:301) Com efeito, WALKER (1993) entende que o Estado-territorial-soberano representa a resolução espaço-temporal específica da modernidade que, na qualidade de categoria ontológica, procura informar os lugares da política e, via de conseqüência, da ética.9 A vida política moderna – a existência da política – só é possível dentro dos limites do Estado soberano. A conseqüência disto é que “[...] as relações entre os Estados são consideradas necessariamente apolíticas e aéticas”. (ALVES, 2005:415) Enfim, o pensamento moderno seria baseado num sentido de territorialidade e espacialidade. A partir da presunção de uma distinção entre o que ocorre dentro e fora do Estado – um “aqui” e um “lá” - é que se elaborariam múltiplas e variadas dicotomias de exclusão: entre universal e particular, entre presença e ausência da política, entre Amigo e Inimigo, entre Eu e o Outro. Em síntese, a distinção inside/outside, esteja ela colocada explicitamente, como nos livros de teoria das Relações Internacionais, ou tacitamente, como habitualmente se encontra nos textos sobre teoria política “continua a informar nosso entendimento sobre como e onde práticas políticas progressivas e efetivas podem avançar” (WALKER, 1993:13). WALKER pretende desestabilizar a concepção arraigada da modernidade sobre as fronteiras que separariam as duas esferas da política (internacional e doméstica), principalmente a distinção constitutiva 9

Sobre o pós-estruturalismo de WALKER, ver também ALVES (2005:415-416).

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entre o inside e o outside. No internacional moderno, o julgamento entre o que é ou não ético passa pela presunção desta dicotomia. O problema é que “o mundo construído pela regra da soberania não oferece respostas para as pluralidades de modos de ser que povoam a vida social [...]” (SHAPCOTT, 2001, apud NOGUEIRA, 2005:86). Esta situação é refletida na incapacidade de entender a forma de operar e agir de atores transnacionais como as redes terroristas globais. O resultado é que amplos comportamentos de natureza hipócrita tornam-se responsáveis pelas formas de reação à violência, seja como discurso ou ação política. WALKER reconhece a dificuldade em estabelecer julgamentos sobre o 11 de setembro. Como vimos10, o autor aponta a tentativa do mundo moderno, em geral, e dos liberais, em particular, de alegar padrões universais de liberdade e justiça que, na realidade, consistem em argumentos paroquiais de seus próprios Estados-nação (2005: 299). No universo de debates sobre os atentados, WALKER reputa alguns julgamentos como sábios e outros como irresponsáveis. Entre os sábios estariam os que procuraram dosar algum sentido de internacionalismo com uma noção de que os eventos precisariam ser apreendidos dentro de um contexto histórico e estrutural mais amplo. Por outro lado, os julgamentos irresponsáveis seriam aqueles que teriam se disfarçado “na roupagem da hipocrisia nacionalista mascarada de moralidade universal” (2005:301). Entre as hipocrisias modernas que se manifestaram como reações ao 11 de setembro, WALKER aponta, em primeiro lugar, para uma ética de revanche que teria moldado poderosamente os julgamentos dos Estados Unidos, amplificada pela mídia de massa. Esta ética teria servido para legitimar a exibição maciça de poder diplomático e militar pelo Governo Bush e deslegitimar qualquer política que desafiasse suas decisões soberanas. O “decisionismo” com que o governo norte-americano agiu teria resultado num processo de desencadeamento da violência em que, declarada a situação de emergência e definido o inimigo, o resultado teria sido a subordinação da democracia às alegações de necessidade do Estado (WALKER, 2005:301-302). WALKER dedica-se, em seguida, a tentar desvelar os tipos de emergência e de decisões que foram tomadas pelo Governo Bush. Da mesma forma, pretende entender o tipo de violência desencadeada pelos Estados Unidos e o tipo de ambição e legitimidade que a sustentou (2005:302). As críticas de WALKER voltam-se, neste ponto, para as críticas imediatas à ética da revanche que, valendo-se da contextualização de eventos e atraindo a atenção para outras exibições ultrajantes de violência (muitas delas com o envolvimento 10

Citação às pp. 12-13.

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americano), procuraram se desembaraçar de vários padrões de causalidades históricas e estruturais com capacidade para explicar, de alguma maneira, a violência que parecia não fazer sentido para muitos, exceto nas categorias de bem e mal (WALKER, 2005:302). Nisso reside um ponto sensível identificado pelo autor nas reações ao 11 de setembro. WALKER enxerga na fricção entre uma ética da convicção e uma ética de responsabilidade (uma distinção weberiana) muitas das dificuldades de emitir qualquer julgamento ético sobre o 11 de setembro. Enquanto a ética da convicção é resultado de apelos de autojustificabilidade – ou seja, de uma espécie de fervor ideológico que, ao longo da história, deixou de ser puramente religioso para transmutar-se numa política de poder puramente secular (ainda que não imune à dinâmica de apelos religiosos) –, a ética de responsabilidade é amparada pelo internacionalismo moderno, cujas esperanças buscam apoio na aposta de que as estruturas do sistema de Estados modernos, soberanos e seculares, continuariam fortes o suficiente para impedir e combater erupções de fervor ideológico. (WALKER, 2005:303-305). Ambas éticas tenderiam a se radicalizar, sem capacidade para dar conta das multiplicidades de perigo no mundo atual, numa mal fadada tentativa de pintá-lo “seja como um conflito de religiões ou como uma partida do grande jogo dos Estados soberanos” (WALKER, 2005:329). WALLERSTEIN (2004) é outro autor que se refere a um tipo de hipocrisia que impediria os norte-americanos de dimensionar corretamente a violência do 11 de setembro. A hipocrisia a que o autor se refere se assemelha à hipocrisia da autojustificabilidade em WALKER – ou talvez ajude a explicá-la parcialmente. WALLERSTEIN entende que afirmar que o mundo inteiro nunca mais será o mesmo depois do 11 de setembro é uma “hipérbole disparatada” (2004: 207).11 No entanto, admite que depois dos atentados a “mente americana pode nunca mais ser a mesma”. Trata-se da mente que tradicionalmente traz enraizada em si uma imagem de inferioridade do resto do mundo: “[...] somos o líder do mundo livre porque somos o país mais livre do mundo. Os outros olham para nós em busca de liderança, para erguer bem alto o estandarte da liberdade da civilização” (WALLERSTEIN, 2004:205). O sentimento de inferioridade nutrido pelos norte-americanos em relação ao resto dos povos e nações contribuiria para tornar as Torres Gemas uma metáfora perfeita. Elas representariam as aspirações ilimitadas dos Estados Unidos, seu avanço tecnológico e por estas razões poderiam ser interpretadas como um “farol para o mundo” (WALLERSTEIN, 2004:205). 11

BUZAN (2004) tende a concordar com WALLERSTEIN. Para o autor, o 11 de setembro “não mudou o mundo” e foi apenas uma hipérbole do momento.

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Quanto ao terrorismo transacional, WALLERSTEIN qualifica como um tipo de violência que permanecerá no mundo ainda por um longo tempo. O terrorismo transnacional é criticado por representar um modo ineficaz de tentar mudar o mundo e por ter potencial de despertar uma contra-força que pode frequentemente eliminar o conjunto de atores imediatos. O terrorismo, assim, seria contra-producente sob uma perspectiva utilitarista, já que tenderia a despertar forças de oposição bastante significativas capaz de anular sua capacidade de ação política. Entretanto, afirmar que o autor realiza somente uma abordagem ético-utilitarista sobre a violência empregada pelo terrorismo seria precipitação, já que a dimensão de reserva de uma escolha moral é vista como importante para melhorar o padrão de relacionamento dos norte-americanos com o resto do mundo, mesmo que estejamos diante de um futuro imprevisível (WALLERSTEIN, 2004:222-223). Portanto, há uma reivindicação humanista, ainda que subsumida. NOGUEIRA (2003) é outro que se preocupa em examinar os debates suscitados pelos atentados do 11 de setembro em questões da política mundial. De acordo com o autor, “[...] as reações à tragédia revelaram uma dualidade comum nas análises tradicionais de política internacional, que combinam a condenação ao massacre de milhares de civis inocentes, sem propósito declarado, com uma análise das motivações e do significado daquele ato baseada na power politics” (NOGUEIRA, 2003: 82). De forma coincidente, análises à esquerda e à direita teriam medido o impacto dos atos de 11 de setembro de 2001 tendo como referência suas conseqüências para a posição e prestígio dos Estados Unidos no sistema internacional, seja repudiando o terrorismo como forma de ação política ou reputando diretamente as causas do atentado a uma reação de grupos insatisfeitos com a política externa norte-americana para o Oriente Médio (NOGUEIRA, 2003:82-83). Por outro lado, NOGUEIRA entende que as divergências situaram-se na forma como foi conduzida a “Guerra contra o Terror” pelos Estados Unidos e seus aliados. O debate teria se polarizado entre, por um lado, os que demonizaram o terrorismo e quaisquer outros movimentos armados que se opõem à política dos Estados Unidos, e aqueles que, por outro, preferiram responsabilizá-los pelo acirramento dos conflitos sociais e políticos em todo mundo, reputando a barbárie terrorista da Al-Qaeda e de Bin Laden como uma tentativa de desmascarar a barbárie imperial dos Estados Unidos (NOGUEIRA, 2003: 83). Desenvolvendo argumento próximo ao que WALKER expõe acerca da existência de uma autojustificabilidade na postura dos Estados Unidos na reação aos

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atentados, NOGUEIRA defende que “o enquadramento do ato terrorista na categoria “do mal” obedece a uma lógica que sugere não haver explicação racional para a violência que causou tanta destruição e morte” (2003:83). O objetivo neste caso seria deixar de lado a discussão sobre o contexto político do ataque para poder retaliar sem a necessidade de uma justificativa política racional, como na invocação pelo Governo Bush da Guerra Justa (2003:83). NOGUEIRA nota, ainda, que uma espécie de maniqueísmo análogo poderia ser encontrado nas críticas à política externa norte-americana e à condução da “Guerra contra o Terror”, com base em discursos que apregoam que o recurso à violência por parte do terrorismo transnacional precisou substituir a política em razão da radicalidade do conflito – existencial e cultural – que encontra na eliminação do ‘Outro’ a única alternativa para a própria sobrevivência. Ambas perspectivas reproduziriam uma “ética da soberania” e uma “moralidade do Estado” e determinariam limites à reflexão sobre o uso da violência (NOGUEIRA, 2003:84). Escapar aos entendimentos restritos à “ética da soberania” e à identificação da política internacional como dinâmica inter-estatal é o desafio que o autor encara objetivando “[..] pensar parâmetros de regulação do uso da violência na política internacional a partir de uma redefinição da relação entre ética e política” (NOGUEIRA, 2003:87). Esta redefinição é proposta, basicamente, em termos de pensar as transformações que se operam na política internacional a partir de um quadro de referência que escape da “moralidade do Estado” – o ethos estatal – e também da noção de que a existência ou sobrevivência do Estado o reviste de um estatuto ético enquanto expressão maior da vida política - o ethos da sobrevivência (NOGUEIRA, 2003: 96). Como conclusão comum sobre o que foi examinado em WALKER, WALLERSTEIN e NOGUEIRA, pode-se deduzir que a tentativa de separar ética da política revela-se, por intermédio de um conjunto de hipocrisias e maniqueísmos, nociva aos objetivos de pensar às diferentes dinâmicas do internacional, entre as quais se inclui a violência. WILLIAMS (2006:4) é outro que explicita preocupação em tentar visualizar o mundo da ética como separado do mundo da política. Antes, contudo, de nos voltarmos para este autor é importante refletir sobre como a função simbólica da violência presente nos atentados de 11 de setembro foi captada, de diferentes formas, no campo da filosofia e da ciência política. Sendo a função política simbólica a função per se da violência terrorista transnacional, ela merece considerações mais detidas.

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VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO: “BARBÁRIE INTELECTUAL”? Entre os autores que refletem sobre os eventos do 11 de setembro sob uma dimensão atenta ao simbolismo do atentado, podem ser destacados IANNI (2004) e BAUDRILLARD (2004). Ambos se esforçam em demonstrar o alcance que a destruição material das Torres Gêmeas do World Trade Center e de parte do Pentágono – mas principalmente das torres – teve como contestação aos valores políticos, econômicos, sociais e culturais do capitalismo e, em última instância, de todo Ocidente. IANNI afirma que quando as Torres Gêmeas do World Trade Center e um dos ângulos do Pentágono desabaram, a opinião pública mundial defrontou-se com um acontecimento se caráter excepcional, revelador e heurístico. Diversos nexos sociais, políticos, econômicos e culturais, de permeio com jogos de forças sociais e operações geopolíticas, ganharam evidência, visibilidade e transparência, seja a nível nacional, regional ou mundial (IANNI, 2004:224). Prossegue IANNI: Em um instante, no centro da maior potência mundial, dois dos seus mais notáveis símbolos são agredidos e desmoronam, arruinados. Em um instante, o poder econômico e o poder militar, compreendendo o monopólio da exploração e o monopólio da violência, são postos em causa, deixando de ser intocáveis. São as duas principais alavancas da supremacia das elites governantes e classes dominantes norte-americanas no mundo. Simbolizam as teias, redes ou sistemas com os quais essas elites e classes se associam com elites governantes e classes dominantes na maioria das nações do mundo. Nesse sentido é que o mundo assiste atônito e assustado, surpreendido e fascinado, o desabar de dois pilares do neoliberalismo e do ocidentalismo, isto é, do capitalismo (IANNI, 2004:224-225).

Apesar das breves considerações de IANNI, é BAUDRILLARD, no texto “A Violência Mundial”, que vai verdadeiramente desenvolver uma argumentação mais acurada para procurar apreender o significado simbólico da arquitetura da violência no 11 de setembro. BAUDRILLARD dedica-se a realizar “[...] uma análise histórica e arquitetônica das Torres Gêmeas para apreender o significado simbólico de sua destruição” (BAUDRILLARD, 2004:32). Para o autor, a construção das torres, em 1973, representou uma mudança na imagem de Manhattan que, até então, experimentara um cenário de edifícios que

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se enfrentavam numa verticalidade concorrente (2004:32-33). Mas o grafismo arquitetônico das torres passou a encarnar um sistema no qual a concorrência desapareceu em benefício da concorrência e do monopólio: Paralelepípedo perfeito de 400 metros de altura, sobre uma base quadrada, vasos comunicantes, perfeitamente equilibrados e cegos – dizem que o terrorismo é cego, mas as torres também eram – monolíticos que não se abrem mais para o exterior e são submetidos a um condicionamento artificial. O fato de existirem duas significa o fim de qualquer referência original. Se só houvesse uma o monopólio não seria perfeitamente encarnado, somente a repetição do signo põe realmente um limite definitivo ao que ele deseja (BAUDRILLARD, 2004: 33).

As torres, como leciona BAUDRILLARD, não são da mesma raça dos arranha-céus, pois culminam no reflexo exato de uma sobre a outra. Elas não têm fachada, não têm rosto. Desaparece assim, além da retórica da verticalidade, a retórica do espelho. O que resta é uma espécie de caixa-preta, “uma série fechada no número dois, como se a arquitetura, à imagem do sistema, fosse proveniente de clonagem ou de um código geneticamente imutável” (BAUDRILLARD, 2004:34). Não é por acaso que as torres foram construídas em Nova York, única cidade do mundo que encarna, com fidelidade e perfeição, “a forma atual do sistema e todas as suas peripécias” (BAUDRILLARD, 2004:34). O desmoronamento das torres acaba por prefigurar uma forma de finalização dramática e, ao mesmo tempo, de desaparecimento dessa forma de arquitetura e do sistema mundial que ela simboliza. Atacando as torres, os terroristas atacaram o centro nevrálgico informático, contábil, bancário, financeiro e numérico do sistema. (BAUDRILLARD, 2004:34). Com sua argumentação sobre o caráter simbólico dos atentados de 11 de setembro, BAUDRILLARD quer demonstrar que “a violência mundial passa também pela arquitetura e, portanto, a contestação violenta da globalização passa também pela destruição dessa arquitetura” (2004:34-35). Com base nisto, BAUDRILLARD polemicamente afirma que, em relação ao drama coletivo enfrentado pelas quatro mil vítimas fatais, o pavor de morre nessas torres é inseparável do pavor de viver nelas, ou seja, do “pavor de viver e trabalhar nesses sarcófagos de concreto e aço” (2004:35). BAUDRILLARD se pergunta: as Torres Gêmeas foram destruídas ou desmoronaram? A pergunta caberia porque elas são, ao mesmo tempo, um objeto físico arquitetônico e um objeto simbólico (um símbolo do capitalismo financeiro e do liberalismo

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mundial). O objeto arquitetônico foi destruído, mas o objeto simbólico é que era visado e que se queria aniquilar. É por esta razão que BAUDRILLARD afirma que foi o desmoronamento simbólico das torres que levou ao seu desmoronamento físico e não o contrário. As torres desabaram como se a potência que possuísse “perdesse bruscamente toda energia, toda força, como se a potência arrogante cedesse bruscamente sob o efeito de um esforço intenso demais: justamente o de querer sempre ser o único modelo do mundo” (2004:37). É neste ponto da argumentação que BAUDRILLARD entra no aspecto provavelmente mais polêmico de sua argumentação. Para o autor, foi o poder crescente da potência que exacerbou a própria vontade de destruí-la como se ela fosse cúmplice de sua própria destruição: “O Ocidente, na posição de Deus (de potência total divina e de legitimidade

moral

absoluta)

torna-se

suicida

e

declara

guerra

a

si

mesmo”

(BAUDRILLARD, 2004:38). MATTEI (2002:12) critica frontalmente a hipótese baudrillardiana segundo a qual o desenvolvimento exponencial de uma potência a impele inevitavelmente a se destruir, de maneira que esta superpotência exasperada, no caso a do sistema Ocidental, é uma “cúmplice da sua própria destruição”.12 Entende que a reação de BAUDRILLARD é reveladora do apagamento progressivo do horizonte moral na paisagem intelectual contemporânea. Sua crítica mais frontal a BAUDRILLARD é a de uma “barbarização intelectual da existência” em que há uma indiferença a um julgamento ético incidindo sobre as ações criminosas dos terroristas. (2002:13-14). Para MATTEI, BAUDRILLARD teria substituído o juízo moral por um juízo estético, no qual “a realidade da violência é um espetáculo a que assistimos e que devemos interpretar em termos de ficção, mesmo se os mortos dos atentados são reais” (MATTEI, 2002:13). BAUDRILLARD não conseguiria discernir nos atentados de 11 de setembro, apesar das destruições objetivas dos prédios e dos homens, destruições de partes inteiras de mundo e de humanidade, mas sim um fenômeno subjetivo, dependente da ficção, que seria fixado muito mais pela imagem do acontecimento que pelo acontecimento em si. E encerra MATTEI com uma forte acusação: “ao terror dos criminosos responde a barbárie dos intelectuais, quando eles escolhem abolir, com sua inteligência crítica, toda relação com a realidade e todo recurso à ética” (MATTEI, 2002:22). 12

O texto de MATTEI, de 2002, critica BAUDRILLARD com base no artigo “O Espírito do Terrorismo”, publicado no Jornal Le Monde, em 03.11.2001. Apesar do texto de BAUDRILLARD, “A Violência Mundial” (aqui utilizado), ser de 2004, nota-se pelas críticas de MATTEI que ele possui conteúdo extremamente semelhante com o do que o artigo do Le Monde. Por isso, acredita-se que não há problema de realizar aqui esta leitura crítica de BAUDRILLARD a partir de MATTEI.

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Esta “barbárie intelectual” aparece “[...] quando o homem se recusa a olhar a realidade de frente e, pela via conseqüente, o terror, sempre que a realidade é terrível. Logo lhe dão um viés pela via da ficção, desrealizam-na por meio da retórica, destroem-na por via da metáfora” (MATTEI, 2002:19). O debate MATTEI x BAUDRILLARD demonstra uma clivagem filosófica importante em termos da possibilidade ou não do desenvolvimento de uma postura normativa e ética sobre a violência simbólica dos grupos terroristas transnacionais. Os elementos de representação ou “ficcionais” na narrativa baudrillardiana não podem ser simplesmente descartados como não tendo nada a oferecer, mesmo em termos éticos, como meios de resignificação do político. Contudo, não há como deixar de considerar a preocupação de MATTEI sobre a necessidade de desenvolver um olhar ético menos “intelectualizado” e mais humano sobre a violência do 11 de setembro. O “estado da arte” da polêmica é sinal de que ainda há um longo caminho a se percorrer no desenvolvimento de uma ética sobre a violência terrorista transnacional. Da mesma forma, se as teorias convencionais já demonstraram suas limitações explicativas à exaustão, talvez possamos avançar um pouco voltando nosso olhar para outras visões. PENSANDO ETICAMENTE AS FRONTEIRAS TERRITORIAIS: POR NOVOS ESPAÇOS DE DIÁLOGO NA DIFERENÇA Por intermédio de um olhar crítico sobre a Escola Inglesa na disciplina de Relações Internacionais e do desenvolvimento de um diálogo com a Geografia Política Internacional, WILLIAMS (2006) vai oferecer novas formas de problematizar a questão da definição do espaço político como constitutivo do internacional. Sua opção de problematização vai se centrar nas fronteiras territoriais como sendo compostas de uma ética intrínseca que necessita ser apreendida, a partir de uma perspectiva que lida com estas mesmas fronteiras não como fatos materiais, mas como práticas sociais. Justamente este tratamento das fronteiras territoriais como práticas sociais, mais do que fatos materiais, que as tornariam receptivas à inquirição ética (WILLIAMS, 2006:20). WILLIAMS contesta a idéia da política como separada da ética e argumenta que parte da tendência de separar esses dois mundos decorre da dificuldade em metodologicamente diferir a ética da mera opinião. Reconhece, inclusive, que é muito difícil

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saber exatamente qual o efeito que uma idéia ética exerce na ação política porque medir intenções seria extremamente difícil, bem como seria quase que impossível comparar os efeitos destas “idéias” e “opiniões” éticas nas decisões tomadas por diferentes atores (WILLIAMS, 2006:8). Mas ao abraçar a idéia de que as estruturas políticas são fundamentalmente ideacionais, ao invés de materiais, e assim produto da agência humana, WILLIAMS acredita que consegue ampliar bastante o campo e o papel da escolha na política internacional, sendo que com a escolha viria a ética (WILLIAMS, 2006:8). Apesar de querer desestabilizar a visão tradicional segundo a qual o papel das fronteiras territoriais seria a de delimitar espaços soberanos distintos, o autor acredita que o problema da separação ou da diferença toma e sempre tomou uma forma territorial e não haveria razões para acreditar que isso subitamente deixará de ser assim (WILLIAMS, 2006: 14). Por outro lado, enfatiza que o modo como foram traçadas as linhas territoriais nos mapas é também fonte potencial de conflito entre os Estados (2006:22) o que o leva à conclusão de que as “fronteiras como cercas” não podem deixar de ser levadas a sério, apesar da necessidade de evitar o erro da reificação. Entre os aspectos controversos presentes na análise de WILLIAMS, encontram-se indagações sobre como lidar com a violência do 11 de setembro e a Guerra contra o Terror de uma forma que escape à noção clássica, westphaliana, em que as fronteiras territoriais são essencialmente estáticas e obedecem a uma ética da soberania13, para passar a considerar apropriadamente um adversário político e militar – o terrorismo transnacional – que opera de maneiras não facilmente “fronteirizáveis” neste sentido clássico A dificuldade de responder de uma forma que não seja modelado pela fronteiras territoriais estaria demonstrada pela primeira incursão militar dos Estados Unidos na Guerra contra o Terror, que teve como alvo o Afeganistão, cujo governo teria fornecido bases de treinamento para a Al Qaeda, em território afegão (WILLIAMS, 2006:24). Por outro lado, a resposta norte-americana e de seus aliados ao 11 de setembro, apesar de ainda em muito socializada pela concepção westphaliana, também carregaria elementos do desejo de desmantelar a divisão entre o doméstico e o internacional.14 Isto estaria demonstrado de forma óbvia na preocupação demonstrada sobre a política doméstica 13

WILLIAMS entende que as fronteiras territoriais, como práticas sociais, podem existir independentemente da soberania (2006:18). Na ética da soberania, “as questões fronteiriças estão focadas na habilidade do Estado em controlar o que acontece através das fronteiras, como as invasões, crimes transnacionais, fluxos de refugiados e população” (WILLIAMS, 2006:23). 14 WILLIAMS reconhece a importância da virada pós-estruturalista para que a fronteira entre o doméstico e o internacional seja desafiada (2006:33).

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de um número de regimes e sobre sua tendência real ou potencial de dar refúgio a terroristas (WILLIAMS, 2006:33). WILLIAMS atenta para o fato de que, em suas justificativas para a Guerra contra o Iraque, o então Primeiro-Ministro britânico, Tony Blair, afirmou que a natureza da segurança mundial teria se transformado profundamente, tornando a divisão entre o doméstico e o internacional insustentável em razão do fato das organizações terroristas estarem aptas a utilizar as mesmas redes que sustentam as redes inter-digitais das finanças e dos investimentos transnacionais que fazem a economia global funcionar (WILLIAMS, 2006:35-36). Preocupado com que a presunção de que estaríamos superando a ordem westphaliana não implique em pôr um fim aos debates sobre a ética das fronteiras territoriais, WLLIAMS propõe pensar no papel imanente que as fronteiras territoriais, como práticas sociais, podem desempenhar para tornar o mundo mais justo (2006:121). A perspectiva ética sugerida é a que resulta da inquirição das sobre os aspectos de poder das fronteiras territoriais e sobre a forma pela qual a divisão do espaço político pode resultar em práticas violentas, repressivas e discriminatórias (2006:117). WILLIAMS sublinha a noção de border zones, tomada da geografia política, como “espaços de oportunidade para o engajamento, diálogo e discurso sobre as formas pelas quais as comunidades políticas podem desenvolver níveis de confiança e uma noção identificável de tolerância que vá além da indulgência” (2006:132). A proposta de INAYATULLAH & BLANEY (2004), apesar de originalmente voltada para o problema da diferença e para um entendimento do mundo pós-colonial, vai apresentar alguns aspectos que se aproximam da perspectiva de WILLIAMS. Partindo do pressuposto de que há uma incomensurabilidade ética resultante de uma inquirição social crítica acerca da complexidade cultural do mundo e do fato de que os bens da vida humana são muitos e não podem ser reduzidos a um só, ou a um só valor, aspiração ou desejo15, os autores defendem ser possível uma coexistência e uma inter-relação entre “diferentes”, de formas alternativas que não levem necessariamente a uma tentativa de fazer valer recursos de poder, enfim, de impor alguma espécie de dominação de um indivíduo sobre outro. Os autores procuram re-imaginar as Relações Internacionais como um campo privilegiadamente situado para explorar as relações de ‘todos’e ‘partes’ e da semelhança e da diferença – e sempre do ‘Eu’ em relação ao ‘Outro’ (INAYATULLAH e BLANEY, 2004:3). 15

Por outro lado, a reivindicação da incomensurabilidade ética não significa que visões e tradições alternativas de mundo são totalmente incompatíveis, impedindo qualquer superposição ou compartilhamento de valores ou meios de vida (INAYATULLAH & BLANEY, 2004: 8).

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Com base numa abordagem etnológica que parte de TODOROV e que também se abaliza na auto-descoberta cultural proposta por ASHIS NANDY , vão procurar compreender como é possível propor um diálogo que permita uma mútua reflexão do ‘Eu’ e do ‘Outro’ para o autocrescimento entendido como o auto-descobrimento exercido por ambos, o que pode se dar não só pelo contato com elementos libertários, mas também recessivos e opressores. Os espaços em que se dariam os momentos etnológicos para reflexões e práticas culturais seriam as “zonas de contato” que pressupõem a “co-presença de sujeitos previamente separados por disjunções geográficas e históricas, e cujas trajetórias se cruzam” (INAYATULLAH e BLANEY, 2004:9). Mesmo

que

abordados

de

forma

sintética,

percebe-se

que

tanto

INAYATULLAH e BLANEY - que propõem uma teoria de matriz etnológica para o problema da diferença nas Relações Internacionais -, como WILLIAMS - que se debruça sobre uma forma de pensar eticamente a questão das fronteiras territoriais -, conseguem, a despeito de seus propósitos distintos, aportar contribuições para lidar com a questão da ética da violência. No momento em que imaginam novos espaços políticos para diálogos entre diferentes - sejam eles border zones ou zonas de contato – rejeitam a concepção tradicional de uma espaço-temporalidade específica, o Estado, fundada numa separação entre ética e política. A criatividade intelectual e o caráter libertário destas abordagens não podem ser esquecidos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização de uma abordagem ética sobre a prática da violência terrorista transnacional continua sendo uma “tarefa em construção” para os teóricos e acadêmicos da disciplina de Relações Internacionais. Apesar de muitas leituras avançarem significativamente na identificação de hipocrisias e maniqueísmos na forma como estudiosos e tomadores de decisão reagiram ao fato dramático dos atentados de 11 de setembro, a natureza significativamente simbólica da violência terrorista transnacional tende a ser assimilada a partir de um prisma identificado como aparentemente alheio a questões morais e éticas. Outras referências intelectuais são excessivamente sujeitas a argumentos de autojustificação ou de um internacionalismo mainstream. Subverter estas tendências, bem como desmascarar as hipocrisias de diferentes matizes ideológicos que pretendem encapsular a imaginação intelectual no internacional moderno é um desafio que merece ser levado em consideração por

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aqueles que, insatisfeitos com a forma com que as fronteiras territoriais alijam atores de espaços políticos de reivindicação, apresentam alternativas de abertura e de aproveitamento de novos espaços que fujam das amarras do Estado territorial soberano. BIBLIOGRAFIA ALVES, Ana Cristina Araújo (2005). Além do Ocidente, Além do Estado e Muito além da Moral: Por uma Política Eticamente Responsável em Relação à Diferença – O Caso Ruandês, in Contexto Internacional. JUL/DEZ, vol. 27. n. 2. Rio de Janeiro, IRI/PUC-RIO. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; et al (2000). Dicionário de Política, vol. 2. Brasília, Editora UNB. BUZAN, Barry (2002). As Implicações do 11 de Setembro para o Estudo das Relações Internacionais, in Contexto Internacional. JUL/DEZ, vol. 24. n. 2. Rio de Janeiro, IRI/PUCRIO. BAUDRILLARD, Jean. (2004). A violência mundial, in BAUDRILLARD, J e MORIN, Edgard. A violência do mundo. Rio de Janeiro, Anima. IANNI, Octavio. (2004). Capitalismo, Violência e Terrorismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. INAYATULLAH, N. and D.L.BLANEY (2004). International Relations and the Problem of Difference. New York, Routdlege. MATTEI, Jean-François. (2002). A Barbárie da Inteligência ou o ground zero do Pensamento, in MATTEI, Jean-François e ROSENFELD, Denis (edit.). O Terror. Filosofia Política, III, n. 4, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

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