Reflexões sobre a alegoria da devastação nos textos: O rei menos o reino (Augusto Campos), Fábula de Anfion, O cão sem plumas e O rio ou a relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (João Cabral de Melo Neto).

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Reflexões sobre a alegoria da devastação nos textos: O rei menos o reino (Augusto Campos), Fábula de Anfion, O cão sem plumas e O rio ou a relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (João Cabral de Melo Neto).

Michele Leite (Graduanda em Letras pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP) Tudo permanece em seu lugar. Podem-se ver as flores, os rios, os cães, as pessoas... As mudanças à vista são mínimas, porém no interior de cada coisa, de cada ser e de cada objeto já permeia o sentimento de que algo está errado e deve ser mudado, de que nada mais é totalmente puro ou limpo, de que a devastação já tomou conta da maioria e que, aos poucos, vai dominar o que resta (e que isso não é algo tão ruim quanto se imaginava). Nos textos de Augusto de Campos (O rei menos o reino) e João Cabral de Melo Neto (Fábula de Anfion, O cão sem plumas e O rio ou a relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife) vê-se a relação criada pelos autores entre o ambiente retratado e os sentimentos de angústia e desespero dos personagens retratados. A vida passa a ser um reflexo das situações e do estado no qual se encontra o homem. Também suas mazelas ajudam a potencializar e espalhar essa sensação de que tudo se torna diferente a cada instante. As certezas ficaram no passado e os personagens tem que aceitar as mudanças na realidade e buscar se adaptar a ela ou buscar um meio de mudá-la conforme suas necessidades. Em O rei menos o reino temos uma série de metáforas utilizadas por Augusto de Campos para expressar sentimentos de angústia, negação e de perda de poder e importância. Há uma comparação entre o passado, onde havia mais certezas e tudo se encontrava em um lugar previamente determinado, e o presente, hostil, solitário e confuso, que jogam uma luz em um futuro incerto, sem regras definidas e que só se faz possível com o esforço e o desejo de mudança do poeta. Na segunda parte, sexta estrofe temos: Vinde e vereis florir um sol no céu E um céu se desdobrar do olhar do sol, Neste reino onde o céu é o vosso ar alto,

Onde o sol é de pedra como o Canto. (CAMPOS, 1951, p 10)

Como na Divina Comédia¹, de Dante, vê-se a relação do sol, do céu e do Canto com o divino, o sagrado e com o poeta como o criador de uma nova visão, onde cabe apenas a ele, e não a Deus (ou a qualquer outra pessoa), criar um reino, obra ou legado, sólido com as pedras e areia de seu mundo. Essa ideia de se tornar seu próprio rei, de ser o único responsável por suas ações e por seu caminho é presente em todo o texto e pode ser percebida claramente na parte quatro, segunda estrofe: O referido reino onde os tristes vassalos Nunca encontram o rei que em si mesmos procuram E onde o rei se coroa à falta de vassalos E onde à falta de reino pisa o próprio corpo (Duro reino), (CAMPOS, 1951, p 12)

O poeta expressa seu sentimento de pena por aqueles que não conseguem se encontrar como donos de suas próprias vidas, senhores de si, por aqueles que não conseguem mudar sua forma de pensar sobre si mesmos e sobre o mundo. Aqueles que, perdendo suas referências no mundo, acabam por ter seus espíritos devastados por suas incertezas. Para eles mundo passa existir apenas para pressioná-los, para oprimi-los. Tudo ao redor se torna um reflexo da incerteza presente no interior do ser, toda a criatura observa, aguardando um deslize para se aproveitar do homem perdido. A alegoria criada por Campos serve para expressar o desejo de se ver livre do aprisionamento vindo das imposições e ideais do passado. O autor usa a obra para definir sua oposição quanto ao que era “regra” para a poesia da “geração de 45”². Para ele a quebra com as ideias, padrões e modelos já definidos a primeiro momento pode ser vista como a uma forma de destruição de algo já sacramentado, porém é através dela que se consegue a liberdade para se criar algo novo. É o novo que surge após a destruição do antigo. Assim como em O rei menos o reino temos essa ideia de quebra com o passado e construção do novo nos poemas Fábula de Anfion, O cão sem plumas e O rio todos de autoria de João Cabral de Melo Neto. Na Fábula de Anfion temos uma reconstrução do mito grego da criação de Tebas. Na mitologia Anfion (Anfião) era filho de Zeus (Júpiter) com uma de suas amantes, Antíope. Anfion utilizou uma lira que o deus Apolo lhe deu para mover pedras e blocos e construir a muralha de Tebas usando apenas o poder de sua música. Na

versão de Melo Neto Anfion faz uso de uma flauta rústica ao invés da lira. Essa troca do instrumento representa o desejo de liberdade na criação, o desejo de mudança. Há também a associação entre pedra e palavra, o que reforça a ideia da construção de um modelo de escrita mais livre, porém não menos sólido e bem estruturado. Nos poemas O cão sem plumas e O rio se fala sobre o rio Capibaribe, rio que corta a cidade de Recife. O autor associa a degradação do rio a sociedade na qual ele se localiza. O rio é o reflexo do homem e a fragilidade de ambos é disposta no decorrer da obra. Em O cão sem plumas, parte dois, estrofes doze e treze temos: Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem.

Difícil é saber se aquele homem já não está mais aquém do homem; mais aquém do homem ao menos capaz de roer os ossos do ofício; capaz de sangrar na praça; capaz de gritar se a moenda lhe mastiga o braço; capaz de ter a vida mastigada e não apenas

dissolvida (naquela água macia que amolece seus ossos como amoleceu as pedras). (MELO NETO, 1949-1950, p 110,111)

Essas passagens mostram o sofrimento do rio e do homem como algo semelhante. Há a secura e a umidade que se contrapõe, porém se harmonizam na lama, assim como as alegrias e mazelas ser tendem a procurar por um ponto de equilíbrio, uma forma de paz. A dor é colocada como um meio de conhecimento do mundo e é através dela que o homem é levado a buscar a mudança e a partir para um futuro baseado em novas atitudes. O rio como um reflexo do povo que vive em suas margens mostra que mesmo na destruição se pode aprender algo, se pode adquirir o desejo de começar de novo, de mudar. Tanto no poema de Augusto Campos quanto no de Melo Neto se tem a devastação como parte de um processo de evolução (do ambiente, do mundo, do pensamento, da escrita). E é em meio ao caos que permeia as obras que se pode vislumbrar a possibilidade de um futuro cheio de possibilidades que dependente unicamente do desejo e esforço de cada ser. Futuro esse onde não existem regras cristalizadas que não possam ser alteradas com o intuito de se obter melhores resultados. Para os autores o ambiente de destruição nada mais é que um convite para fazer diferente, para encontrar a beleza onde antes só se via a feiura. Um convite para se repensar o que já foi feito e encontrar uma forma melhor de seguir em frente.

Notas: ¹ Divina Comédia: Obra de Dante Alighieri concluída em 1321, poema narrativo simétrico e planejado que narra uma odisseia pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. Escrito utilizando uma técnica original conhecida com terza rima, onde as estrofes de dez sílabas, com três linhas cada, rimam da forma ABA, BCA, CDC, DED, etc. Exerceu grande influência em poetas, músicos, pintores, cineastas e outros artistas nos últimos 700 anos.

² Geração de 45:

Terceira geração modernista que nasce no contexto pós 2ª Guerra

Mundial e, no Brasil, depois da ditadura Vargas. O traço formalizante caracteriza essa geração de poetas, várias obras foram publicadas nessa época, na prosa os gêneros conto e romance tiveram destaque. O regionalismo recuperou seu espaço, a sondagem psicológica foi desenvolvida, o espaço urbano foi, também, objeto de enfoque. Os escritores dessa geração que mais se destacaram foram: Rubem Braga, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa e Mário Palmério.

Bibliografia: - CAMPOS, Augusto; O rei menos o reino, 1950. In Viva vaia: poesia 1949 – 1979, Cotia: Ateliê, 2001, p 9 – 15; - MELO NETO, João Cabral; Fábula de Anfion, O cão sem plumas e O rio ou a relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife. In: Poesia completa e prosa. Organização do autor com Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994; - AGAMBEN, Giorgio; O que é contemporâneo? In: O que é contemporâneo? e outros ensaios, Tradução Vinícius Nicastro Honesko, Chapecó: Argos, 2009, p 55- 73. - Visita à página: http://www.stelle.com.br/pt/index_comedia.html, em 11/08/2014 às 15:52h; -

Visita

à

página:

http://sibila.com.br/critica/a-vanguarda-como-estereotipo-uma-

analise-da-poesia-de-augusto-de-campos/5182, em 11/08/2014 às 12:45h; - Visita à página: http://www.portugues.com.br/literatura/a-geracao-1945---um-retornoforma-.html em 11/08/2014 às 16:20h;

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