REFLEXÕES SOBRE A CRISE DAS IDENTIDADES NACIONAIS E O MULTICULTURALISMO NA AMÉRICA DO SUL

July 8, 2017 | Autor: Hugo Suppo | Categoria: Multiculturalism
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5º Encontro Nacional da ABRI PUC Minas, Campus Coração Eucarístico, 29, 30 e 31 de julho de 2015

História das Relações Internacionais e História da Política Externa

Trabalho para Apresentação em Painel: REFLEXÕES SOBRE A CRISE DAS IDENTIDADES NACIONAIS E O MULTICULTURALISMO NA AMÉRICA DO SUL

Hugo Rogelio Suppo (Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, PPGRI-UERJ)

 

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Resumo: O multiculturalismo pluralista, que predomina nas atuais políticas públicas dos Estados sul-americanos, é uma resposta ao enfraquecimento das identidades nacionais. Em nome da luta contra as desigualdades, o racismo e o "colonialismo interno", estão sendo reabilitadas as identidades étnicas. Soma-se a isso o fato de que os direitos humanos foram transformados em ideologia, na qual a tolerância e a diversidade cultural são valores absolutos. Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, o multiculturalismo não é fruto, essencialmente, do antagonismo entre imigrantes e nativos, dado o número relativamente inexpressivo de imigrantes atualmente na região. A análise desenvolvida neste trabalho a respeito do ethnic revival na América do Sul, pautado na auto-definição, elucida as origens do fenômeno, suas características e possíveis consequências. Palavras-chave: multiculturalismo, identidade nacional, etnicismo

 

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Introdução

 

A nation-building é uma metáfora arquitetônica, segundo a qual a nação é construida através de programas governamentais, incluindo o recrutamento militar e a escolaridade nacional em massa. Anne-Marie Thiesse elaborou uma “check-list” identitária, matriz de todas as representações de uma nação: ancestrais fundadores, continuidade da nação através das vicissitudes da História, galeria de heróis, língua, monumentos culturais e históricos, lugares de memória, paisagem típica, folclore e identificações pitorescas (costume, gastronomia, animal emblemático) (THIESSE, 2000, p. 52). Estes elementos comuns são misturados, de forma singular, por cada uma das nações na construção de sua identidade. Os termos nation-building e state-building, muitas vezes confundidos, significam coisas bem distintas. O primeiro tem a ver com a solidez do Estado e a capacidade de suas instituições, já que refere-se à própria população, unida pela identidade, história, cultura e língua. O segundo se refere à construção das infra-estruturas, do regime político (ou sistema de governo), da governança (a constituição), e um conjunto de instituições estatais (ou organizações), tais como as forças armadas, o parlamento e o sistema de justiça. As teorias da nation-building, em voga nos anos 1960 e 1970, consideravam que a homogenização identitária (assimilação com erradicação das etnias particularistas e locais) era condição sine qua non para uma integração bem sucedida. Desse modo, a construção da nação e a integração nacional eram dois lados da mesma moeda, ou seja, simplesmente duas formas de descrever o mesmo processo. No contexto da descolonização da África, por exemplo, esse processo era apresentado como modelo a ser seguido pelos Estados recémcriados. Em 1972, segundo Walker Connor, apenas 9% dos estados do mundo podiam ser considerados etnicamente homogêneos. Entretanto, as ciências sociais ignoravam esse tema e ficavam apenas preocupadas com outras clivagens - entre burgueses e camponeses, nobres e plebeus, elites e massas. Segundo Connor, o processo de nationdestroying, provocado pelas fracassadas tentativas de homogeneização, tinha causado o revival étnico, com confrontos com minorias nacionais, o que deu origem a muitas crises e conflitos secessionistas. Os avanços nas comunicações e nos transportes tinham aumentado a consciência cultural entre as minorias, fazendo seus membros mais conscientes das diferenças que definiam sua própria comunidade em relação aos outros grupos. Sendo assim, a aculturação - processo de aquisição de valores e competências

 

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modernas - não leva necessariamente à assimilação mas, frequentemente, ao aumento da consciência e a significação da etnicidade. Em 1972, Arthur M. Schlesinger Jr., o decano dos historiadores norte-americanos, chega até falar de ressurgimento do tribalismo: “Hoje, por todos os lados, a etnicidade é a causa da desagregação de nações. A União Soviética, Iugoslávia, Índia, África do Sul estão todas em crise. As tensões étnicas perturbam e dividem Sri Lanka, Burma, Etiópia, Indonésia, Iraque, Líbano, Israel, Chipre, Somália, Nigéria, Libéria, Angola, Sudão, Zaire, Guiana, Trindade e outras nações. Mesmo nações estáveis e civilizadas como a Inglaterra e a França, a Bélgica, Espanha e Tchecoslováquia enfrentam crescentes perturbações étnicas e raciais. O tribalismo (...), adormecido por anos reacende para destruir nações” (The disuniting of America (reflection on a multicultural society), citado por IANNI, 1996, p. 2)

Em 2008, segundo o SIPRI - Stockholm International Peace Research Institute1, dezesseis grandes conflitos armados estavam ativos em quinze localidades ao redor do mundo - dois a mais do que em 2007. Esses conflitos eram guerras civis, frequentemente étnico-religiosas, e não conflitos interestatais. Contudo, nos últimos anos, aumentou o número de conflitos interestatais que se internacionalizaram2. Diante de tal quadro, observamos que o momento é de crise do Estado-nação. A emergência atual de tensões identitárias no seu interior, por sua vez, é devida, principalmente, ao choque entre a globalização cultural e o respeito às identidades culturais, aos desafios tecnológicos e às novas simbologias impostas pela sociedade multimídia. O novo sistema midiático globalizado da chamada "era da informação" é um novo campo de enfrentamento onde ocorre o embate entre os Estados, as empresas transacionais e os novos movimentos sociais. O poder, num mundo dominado pelo sistema midiático, consiste no controle da produção e na manipulação de símbolos que possam seduzir. O imenso poder da indústria cultural, do global democratic marketplace, provoca nas unidades políticas nacionais fenômenos de "insegurança cultural" e desencadeia processos de resistência (por exemplo, a reivindicação da exceção cultural e a defesa da diversidade cultural como "bem público comum", como a água, a educação, a saúde e o ambiente), de aculturações contraditórias. Por outro lado, para muitas dessas unidades políticas a "economia da cultura" (também chamada do saber, da informação ou do conhecimento) é um setor altamente estratégico. Tendo em vista esse cenário, este trabalho visa, em primeiro lugar, a apresentar uma análise dos conceitos de etnia e de multiculturalismo e, em segundo lugar, a fornecer algumas reflexões gerais sobre como essas questões influenciaram as políticas públicas na

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Disponível em http://www.sipri.org/yearbook/2009/02/02A. Acesso: 13-06-2015. Disponível em: http://www.sipri.org/yearbook/2014/files/SIPRIYBSummary14.pdf. Acesso: 11-052015.  

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América do Sul.

O  revival  étnico     O termo ethnicity se impôs nas ciências sociais americanas a partir dos anos 1970, sobretudo após a criação da revista especializada Ethnicity, em 1974. Durante essa década, o grande número de artigos publicados, congressos, programas de pesquisa e de conferências sobre o tema, levou alguns autores a denunciar a criação de uma "indústria acadêmica da etnicidade". O termo permitiria não só concorrer com o de "classe social" como novo paradigma das ciências sociais, mas, também, colocar em relação fenômenos até então analisados de forma separada: o tribalismo (Nigéria), o comunitarismo (Índia) e o conflito linguístico (Canadá). Assim, o processo de globalização, com sua decorrente uniformização e dominação cultural e linguística, estava provocando nos países desenvolvidos - mesmo naqueles considerados culturalmente homogêneos - as mesmas resistências que no chamado Terceiro Mundo. (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2005, pp. 24-25) Nesse mesmo período, Suécia, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Holanda, Reino Unido e Estados Unidos adotaram políticas públicas multiculturais. Na América Latina começou uma onda de mobilizações indígenas (cf. TREJO, 2006), e, a partir dos anos 1990, foram implementadas políticas públicas multiculturais, no momento em que alguns Estados colocavam em vigor, gradativamente, mudanças institucionais (bilinguismo), medidas de exeção (direitos diferenciados) ou instauraram um reconhecimento, por vezes institucional, de certos grupos (estadísticas étnicas e raciais). Entretanto, o estudo desse processo ficou praticamente fora dos principais debates teóricos da ciência política e da sociologia. Atualmente, contudo, o tema volta a ocupar uma posição de destaque no âmbito internacional. Sendo assim, é de vital importância formular respostas para as seguintes perguntas: quais são os atributos de um grupo étnico? qual seria a melhor forma de estudar o ressurgimento das identidades étnicas? Segundo Anthony D. Smith (The ethnic origins of nations, Oxford, 1986), seis atributos definem as etnias: nome próprio coletivo, mito ancestral comum, memórias históricas comuns, um ou mais elementos diferenciadores de uma cultura comum, associação com uma “terra natal” específica e sentido de solidariedade para setores significativos de população. Já Adrian Hasting (The construction of nationhood, 1997, Cambridge) define uma etnia a partir da existência de uma cultura comum compartilhada - e transmitida por uma língua comum - sobre aspectos básicos da vida: tecidos e roupas; estilo das casas; forma de relacionamento com animais domésticos e terreno agrícola; trabalho

 

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essencial; divisão de trabalho entre homens e mulheres; forma de organizar a caça; as respostas ao homicidio e ao roubo; forma de organizar a defesa frente a intrusos ameaçadores; como se transmite a propriedade e a autoridade; rituais (nascimento, matrimônio e morte); costumes de cortejar; provérbios; canções; história e mitos compartilhados; crenças sobre o que há após a morte e em Deus. No entanto, o valor heurístico dessas taxonomias, elaboradas com critérios ditos objetivos, pode ser questionado, uma vez que sempre poderemos encontrar exceções: grupos que possuem esses atributos mas que não se sentem etnias, ou grupos que não os possuem, mas que se consideram etnias. Desse modo, o importante é analisar como a diversidade étnica é socialmente articulada e perpetuada, tendo como base as distintas abordagens teóricas existentes sobre o tema. As abordagens teóricas sobre a etnicidade podem ser classificadas em sete grandes paradigmas (cf. POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2005; e TREJO, 2006), a saber: 1) o primordialismo: a etnia é uma característica natural herdada, de ordem emocional, biológica, fixa e objetiva; 2) o paradigma sócio-biológico: a etnicidade é uma extensão das ligações de parentesco. Na realidade, é uma variante das teorias primordialistas clássicas, com ênfase na tendência genética de favorecer os próximos em detrimento dos outros; 3) as teorias instrumentalistas e mobilizacionistas: a etnicidade é a expressão de interesses comuns, ou seja, é um instrumento pragmático para a mobilização social com o objetivo de enfrentar as novas condições da modernidade. A identidade étnica é uma forma dissimulada e racionalizada, a fim de atender interesses situados em outro nível3; 4) as teorias neo-marxistas: a etnicidade é um reflexo dos antagonismos econômicos, ou seja, o sistema capitalista cria as divisões étnicas e raciais para dominar a força de trabalho; 5) as abordagens neo-culturalistas: a etnicidade é um elemento simbolico importante dentro do sistema cultural, ao permitir aos individuos encontrar um lugar na ordem social;

                                                                                                                3  Dentro desta abordagem temos ainda duas variáveis, uma baseada no individuo e outra na teoria do poder político: a) as teorias da "escolha racional": os grupos étnicos se formam quando um número relativo de indivíduos desejam obter ganhos (riqueza, poder) e não o conseguem pelas vias individuais. Os individuos são considerados atores racionais que tentam aumentar seus benefícios em função do cálculo de seus interesses. As identidades coletivas são fruto de escolhas racionais, resultado da interação social entre indivíduos auto-interessados; b) a teoria do "colonialismo interno" (HECHTER, 1975): a etnicidade é um instrumento político (papel similar ao que tinha a idelogia na teoria marxista) de luta coletiva, é uma forma de solidariedade e resistência ante a discriminação e a desigualdade.  

 

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6) a etnicidade como forma de interação social dos grupos: é um processo continuo de dicotomização entre nós e os outros, que deve ser expresso e validado na interação social da ethnic boundary, através de sinais culturais socialmente diferenciadores. Dessa forma, a relação de alteralidade entre nós-outros é dinâmica e se recompoe constantemente (urbanização, migrações, colonização); 7) o pós-modernismo (construtivismo discursivo): considera as identidades “artefatos socialmente construídos”, “comunidades imaginadas”, na famosa fórmula de Benedict Anderson. Em suma, não há, atualmente, uma teoria geral sobre a etnicidade. Contudo, já existe consenso sobre duas questões: 1- as identidades não são essenciais e/ou primordiais, mas fruto de relações; 2- as identidades são dinâmicas, portanto, não-estáticas. Os teóricos da chamada "nova etnicidade" introduziram na sociologia americana, durante os anos 1970, a concepção subjetivista, baseada na auto-definição dos grupos étnicos. Nesse caso, o objeto de estudo passaram a ser os fatores (econômicos, culturais, políticos, psicológicos) que explicam a emergência e a persistência das diferenciações étnicas (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2005, p. 92). Entretanto, essas definições subjetivas - a consciência de pertencer - são problemáticas também, uma vez que são tautológicas e elaboradas a posteriori. Em suma, os debates versam sobretudo sobre a natureza da etnicidade (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2005, pp. 136-153): ela pode ser considerada um fenômeno político ou um processo simbólico cultural? Trata-se um fenômeno circunstancial e arbitrário ou substancial? De uma escolha individual ou um constrangimento social? Possui caráter perene ou contingente? O fato é que tais debates ainda não se encerraram. No entanto, no que diz respeito ao caso específico da América Latina, três explicações foram dadas pelos especialistas, segundo Juliet Hooker (cf. HOOKER, 2006), a fim de explicar por que, a partir da década de 1970, as nações que se imaginavam mestiças e relativamente homogêneas, começaram a se definir como multiculturais e multiraciais: 1- reação dos indígenas ao neo-liberalismo, que colocaria em risco sua autonomia local e modo de vida; 2- instrumento para legitimar o Estado em período de crise e falta de recursos; 3- meio utilizado pelo Estado para evitar reivindicações mais radicais. Segundo Trejo, essas explicações são macroestruturais e ignoram as análises micro. A crise das identidades de classe, provocada pela adoção de políticas neoliberais no campo e pelo colapso do comunismo em 1989, são fatos que facilitaram o movimento, mas que aconteceram posteriormente. O "retorno do índio" tampouco pode ser considerado uma reação às políticas de assimilação dos Estados e das Igrejas Católicas e Protestantes, já

 

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que as políticas indigenistas contribuíram para manter viva a identidade dessas populações. Inclusive, a maioria dos líderes indígenas são originários do seio das Igrejas, onde foram educados em duas línguas. Surge ainda uma outra questão: as causas do ressurgimento da identidade indígena são as mesmas que explicam o ressurgimento de outras identidades, em particular da identidade negra? Na realidade, o que constatamos é que as reformas visando a cidadania multicultural nem sempre consideraram os afrodescendentes: “Dos quinze países latino-americanos que implementaram algum tipo de reforma visando à cidadania multicultural, somente Brasil, Colômbia, Equador, Guatemala, Honduras e Nicarágua estenderam alguns direitos coletivos aos afrodescendentes. Mas mesmo nos casos em que obtiveram esses direitos, em quase nenhum país os afrodescendentes foram contemplados da mesma maneira que povos indígenas. De fato, em apenas três países da região – Honduras, Guatemala e Nicarágua – indígenas e afrodescendentes têm direitos coletivos iguais. Além disso, apenas um pequeno subconjunto de afrodescendentes – em geral comunidades rurais que descendem de escravos foragidos – conquistou direitos coletivos durante as mencionadas reformas. Apesar de a grande maioria dos afrodescendentes estar excluída das recentes reformas que asseguraram direitos coletivos, somente o Brasil e a Colômbia estão tentando elaborar outros meios legais para combater o racismo, como a legislação relativa aos direitos civis.” (HOOKER, 2006, p. 90)

Por que os afrodescendentes não conquistaram na América do Sul os mesmos direitos que os índios? Poderiamos citar quatro causas: 1) o contingente populacional dos indígenas é maior do que o dos afrodescendentes; 2) a maior capacidade de organização dos indígenas; 3) a insuficiente mobilização dos afrodescendentes; 4) as elites foram mais favoráveis às demandas dos indígenas. Juliet Hooker, contudo, discorda dessas explicações, ao considerar determinante o modo pelo qual esses grupos foram considerados pelo Estado. O grupo indígena sempre foi visto como detentor de uma cultura diferente, à exceção de Nicarágua e Honduras, de uma identidade cultural distinta do próprio Estado-Nação, ao contrário do negro. Por exemplo, os negros brasileiros não teriam etnicidade própria, uma vez que o processo antropofágico de criação da chamada cultura nacional criou uma síntese mestiça, na qual todos os brasileiros se identificam: “Os negros não são vistos como portadores de uma cultura “tradicional” ou ancestral. Assim, com a introdução das reformas de cidadania multicultural, o que mudou não foi, necessariamente, os atributos associados ao povo indígena, mas o valor dado a eles: hoje, a posse de uma cultura ancestral não é mais marca de “atraso”, mas de possibilidade de preservar essa cultura por meio de direitos coletivos especiais. Isso é particularmente verdade para aquelas culturas que, segundo se afirma, teriam dado contribuições cruciais para a identidade nacional mestiça contemporânea. Os movimentos indígenas da América Latina adaptaram suas estratégias a essas novas condições e, em vez de reivindicar direitos coletivos em nome de uma minoria oprimida, invocaram sua identidade como “povo” distinto com direito aos territórios que habitavam antes da chegada dos colonizadores. Em alguns países, essa mudança pode ser notada na substituição do termo “indígenas” por “pueblos”.” (HOOKER, 2006, pp. 102-103)

 

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Juliet Hooker conclui: “Em suma, os grupos indígenas conquistaram mais direitos coletivos do que os afrodescendentes em parte porque os novos regimes de cidadania multicultural da região são mais sensíveis a demandas formuladas com base na diferença cultural ou na identidade étnica do que na discriminação ou diferença racial, e essa forma de justificar os direitos coletivos determinou o maior êxito dos índios.” (HOOKER, 2006, p. 104)

Segundo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, no Brasil: “a prática duradoura de incorporação de tradições africanas às culturas inibiu historicamente mobilizações de origem étnico-cultural e favoreceu aquelas puramente raciais (ou seja, aquelas que se pautavam pelo combate às consequências sociais do preconceito e da discriminação raciais.” (GUIMARÃES, 2006, p. 275).

Os supostos “afro-brasileiros”, portanto, não possuem e nem possuíam língua ou costumes comuns, incluindo os religiosos e alimentares, exceto no caso de certos grupos linguísticos e religiosos concentrados na Bahia, identificados com a religião islâmica. Segundo Paulo Roberto de Almeida, os afro-brasileiros: […] “são o resultado da mais trágica e desumana “emigração” conhecida em toda a história da humanidade, processo ocorrido ao longo de séculos e séculos de transferência forçada de lotes inteiros de indivíduos, arrancados de grupos de origem que poderiam ser bantos, ovambos, ibos, haussas ou quaisquer outros capturados pelos mercadores. Contrariamente aos imigrantes voluntários, eles não tiveram condições de preservar — salvo casos extremamente restritos — línguas ou costumes de origem, que de resto se espalhavam por várias regiões africanas. Uma história sem dúvida alguma trágica, mas esta é a herança de vários séculos de escravismo e de colonização do Novo Mundo.” (ALMEIDA, 2004)

Por esse motivo, o movimento negro no Brasil considera a questão cultural prioritária, uma vez que o objetivo de “inventar” uma identidade cultural negra4 - a chamada negritude - auxiliaria na transformação da raça (ancestralidade e genética) em etnia. Dessa forma, houve a importação do discurso identitário dos Cultural Studies 5, que postula a

                                                                                                                4  O processo de criação de uma etnia afro-brasileira é mais avançado nos quilombos onde está sendo "fabricada" uma identidade coletiva similar à dos povos indígenas.   5  A expansão dessa corrente, segundo Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, é devida também a razões pouco acadêmicas: "os cultural studies, campo híbrido, nascido nos anos 70 na Inglaterra que deve sua difusão internacional a uma política de propaganda editorial bem-sucedida." (2002, p. 23). Segundo esses autores, o objetivo primordial da difusão desse discurso aparentemente contestador seria atender aos interesses do imperialismo cultural norteamericano: "Do mesmo modo que os produtores da grande indústria cultural americana como o jazz ou o rap, ou as modas de vestuário e alimentares mais comuns, como o jeans, devem uma parte da sedução quase universal que exercem sobre a juventude ao fato de que são produzidas e utilizadas por minorias dominadas, assim também os tópicos da nova vulgata mundial tiram, sem dúvida, uma boa parte de sua eficácia simbólica do fato de que, utilizados por especialistas de disciplinas percebidas como marginais e subversivas, tais como os cultural studies, os minority studies, os gay studies ou os women studies, eles assumem, por exemplo, aos olhos dos escritores das antigas colônias européias, a aparência de mensagens de libertação. Com efeito, o imperialismo cultural (americano ou outro) há de se impor sempre melhor quando é servido por intelectuais progressistas (ou “de cor”, no caso da desigualdade

 

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necessidade do negro recuperar traços culturais de seus antepassados africanos, já que somente dessa forma pode ser considerado afrodescendente6. Dado o exposto, vejamos agora como o tema do etnicismo pode ter o seu escopo ampliado, ao analisarmos questões teóricas e conceituais ligadas à questão do multiculturalismo.

O  Multiculturalismo   A palavra multiculturalismo possui caráter polissêmico, e foi formulada recentemente. Stuart Hall considera que devemos fazer uma distinção entre os termos multicultural (qualitativo) e multiculturalismo (substantivo). O primeiro, "descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade, na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retém algo de sua identidade original." (HALL, 2003, p. 52). Já o segundo surge na Grã-Bretanha, e serve para denominar as estratégias e políticas públicas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade gerados por uma sociedade multicultural. Essa preocupação com as chamadas minorias, que teriam sido excluídas pelo chamado liberalismo igualitário e neutralista, atinge também a academia entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, com os trabalhos de autores como Will Kymlicka, Charles Taylor e Marion Iris Young. Três fatores contribuíram, segundo Stuart Hall (2003, pp. 55-59), para que o

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          6  Desde

racial), pouco suspeitos, aparentemente, de promover os interesses hegemônicos de um país contra o qual esgrimem com a arma da crítica social." (2002, p. 27)  

os anos 1980 os estudos sobre os colonizados de ontem constituem um vasto campo de pesquisa. Ante o racionalismo universalista de ocidente eles são considerados depositários da sensibilidade, das emoções e dos comportamentos afetivos. Esses grupos "minoritários" não só desafiam o domínio de ocidente como são o centro de novas sensibilidades não mais ligadas ao lugar, gerando tensões entre o nacional e o internacional. As obras de Paul Gilroy, There ain't no black in the Union Jack (1987) e Black Atlantic (1993) são as mais significativas de esta crítica ao etnocentrismo nas abordagens sobre a cultura. No primeiro livro estuda os estilos de vida e as criações artisticas das comunidades de negros e asiáticos na Grã-Bretanha. No segundo livro, as mestiçagens culturais ao longo da história no espaço Atlântico. Em ambos livros o objetivo é ressaltar a importância da diáspora negra a partir da influência cultural que ela exerce. A questão da identidade é ao cerne dessas reflexões, em particular nos debates em torno dos fenômenos de hibridismo, das identidades múltiplas ou complexas. Homi K. Bhabha, uma das figuras mais importantes dos estudos pós-coloniais, cunhou, desde uma ótica pós-estruturalista, uma série de neologismos e conceitoschave, tais como o hibridismo, mímica, a diferença, ambivalência, para descrever as maneiras pelas quais os povos colonizados resistiram e resistem ao poder do colonizador. O colonialismo não é algo do passado, ele permanece no presente no "hibridismo cultural e histórico do mundo pós-colonial" (BHABHA, 1998, p. 46).

 

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multiculturalismo tenha se tornado um dos elementos centrais no campo da contestação política: 1) o fim do antigo sistema imperial europeu, seguido da geração de novos EstadosNações multiétnicos e multiculturais (processo ligado ao fenômeno do pós-colonialismo); 2) o fim da Guerra Fria e a reconstrução da ordem mundial capitaneada pelos Estados Unidos; 3) resistência ao processo de homogeneização cultural promovido pela globalização (um dos paradoxos da globalização é a "proliferação subalterna da diferença"). Ainda segundo o autor, existiriam atualmente seis tipos de multiculturalismo (HALL, 2003, p. 53): 1-conservador (assimilação das diferenças às tradições e costumes da maioria); 2-liberal (integração dos diferentes grupos culturais, promovendo uma cidadania universal e tolerando algumas práticas culturais particularistas no âmbito privado); 3pluralista (concessão de direitos específicos para as diferentes comunidades); 4-comercial (reconhecimento da diversidade através oferta de produtos específicos para o consumo diferenciado das diferentes comunidades, sem qualquer necessidade de redistribuição de poder ou recursos); 5-corporativo (administração das diferenças culturais da minoria, visando aos interesses da maioria); 6-revolucionário ou crítico (insurgência contra as hierarquias de poder entre comunidades). Após a implementação do multiculturalismo, alguns analistas europeus consideraram a politização da cultura e o relativismo de valores como uma catástrofe, porque daria margem à destruição do Estado-Nação e, até mesmo, à guerra civil. Para citar um exemplo, o enfraquecimento das identidades nacionais estaria levando à introdução de práticas islâmicas integristas, como a poligamia, a segregação feminina, as restrições à liberdade de opinião e à banalização do anti-semitismo (RIOUFO, 2007). Dentro dessa perspectiva, muitos autores denunciam a manipulação da culpa unilateral sobre a escravidão, bem como a colonização de países muçulmanos. Assim, as identidades étnico-religiosas passam a ser reabilitadas em nome da luta contra o racismo, ao passo que os direitos humanos foram transformados em ideologia, fazendo da tolerância um valor absoluto (GRJEBINE, 2011, pp. 113-114). Giovanni Sartori, inclusive, publica, no ano 2000 um ensaio polêmico, no qual denuncia que a sociedade aberta ocidental, alicerçada na democracia, no estado de direito, na liberdade, na tolerância, no valor da diversidade e no pluralismo político estaria em perigo, por conta da avalanche migratória descontrolada. O surgimento de comunidades teocráticas no interior dos estados europeus teria provocado a ultrapassagem do "limiar de tolerância", da capacidade de recepção, e poderia provocar a desintegração étnica e tribalização das sociedades. Desse modo, o multiculturalismo, elevado a valor supremo e essencial, entraria em

 

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choque com o pluralismo tolerante, uma vez que a integração não seria mais baseada na reciprocidade, no consenso, mas na consolidação de culturas homogêneas isoladas e enfrentadas. Segundo Sartori, a sociedade pluralista não pode acolher estrangeiros que a rejeitam sem desintegrar-se. Isso porque a sociedade deixaria de ser pluralista ao aceitar nessas comunidades a poligamia, a mutilação genital de meninas e a discriminação contra as mulheres. Sendo assim, Sartori chama a atenção para o fato de que permitir que a comunidade muçulmana se organize como comunidade teocrática com direitos diferenciados faria ressurgir a xenofobia e o racismo no Ocidente, uma vez que a lei corâmica não reconhece os direitos do indivíduo como universais e invioláveis, além de não separar o mundo político do religioso. Além disso, esses grupos exigiriam reconhecimento e tolerância, beneficiandose dos princípios da sociedade que os recebe. Em contrapartida, porém, não aceitariam aplicar esses mesmos princípios para com o outro, entrando em choque frontal contra os princípios laicos e liberais das sociedades democráticas. Dessa forma, os islamistas consideram os ocidentais infiéis, mas o Ocidente não os pode condenar. Em suma, as sociedades democráticas não se sustentam com políticas de relativismo cultural: "atribuir a todas las culturas igual valor equivale a adoptar un relativismo absoluto que destruye la noción misma de valor" (SARTORI, 2001, pp. 79-80). Sartori ainda se posicionou de forma veementemente crítica aos argumentos defendidos no livro intitulado "Multiculturalism: Examining the politics of recognition", à época uma referência sobre o tema. Seu principal embate se deu com Charles Taylor, um dos defensores do comunitarismo multiculturalista, baseado nas affirmative action, como forma de compensar diferenças. Dessa forma, fica claro que, segundo Sartori, o multiculturalismo é uma estrategia ideológica capaz de tornar reais as identidades potenciais, fechando-as em guetos, e, consequentemente, fabricando e multiplicando diferenças ao violentar a igualdade legal. Seria, portanto, em função dessas mesmas razões que o melting pot nos Estados Unidos teria entrado em crise, uma vez que a pressão dos fluxos migratórios e a doutrina multiculturalista estariam colocando em perigo a sociedade americana. Segundo Sartori, haveria dois tipos de multiculturalismo, o submetido aos critérios do pluralismo e o antipluralista. Este último é dominante, e sua origem se encontra na mistura situada entre um certo pietismo católico de esquerda, o neomarxismo e o feminismo :

"Antes de llegar a Estados Unidos y de americanizarse, el multiculturalismo arranca de

 

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neomarxistas ingleses, a su vez fuertemente influenciados por Foucault; y se afirma en los colleges, en las universidades, con la introducción de “estudios culturales” cuyo enfoque se centra en la hegemonía y en la “dominación” de una cultura sobre otras. También en América, pues, los teóricos del multiculturalismo son intelectuales de amplia formación marxista, que quizá en su subconsciente sustituyen la lucha de clases anticapitalista, que han perdido, por una lucha cultural anti-establishment que les vuelve a galvanizar. Y como en Estados Unidos es más difícil ignorar el pluralismo que en la tradición marxista europea, resulta así que los marxistas americanos llegan a un multiculturalismo que niega el pluralismo en todos los terrenos: tanto por su intolerancia, como porque rechaza el reconocimiento recíproco, y porque hace prevalecer la separación sobre la integración." (SARTORI, 2001, p. 4)

Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant consideram que a expansão mundial do multiculturalismo é resultado do imperialismo cultural americano, com o objetivo de mascarar a luta de classes, a dominação, a exploração e as desigualdades engendradas pelo capitalismo. Nesse sentido o “multiculturalismo” seria um “discours-écran” - não um conceito nem uma teoria, nem um movimento social ou político – “ainda que pretenda ser tudo isso ao mesmo tempo” (BOURDIEU e WACQUANT, 2000). Para evitar demandas mais radicais, os Estados reconhecem ou cedem direitos às suas minorias, fundamentalmente indígenas e negras, que desafiariam, caso contrário, a ordem econômica neoliberal. Esta explicação, quando avaliada sob uma perspectiva crítica, apresenta um problema sério, uma vez que não explica porque tais ideias tiveram tamanho sucesso, a ponto de mudar radicalmente as posições de muitos ativistas negros e intelectuais. As razões determinantes, portanto, são de política interna, e não de ação externa do imperialismo. Dominique Wolton contribui para o debate, ao indagar-se sobre o que fazer ante o revival identitário onde três são os perigos: irredentismo cultural, multiculturalismo, comunitarismo (WOLTON, 2004, p. 61). Este considera que é essencial ter em mente que o multiculturalismo - combinação de múltiplas identidades culturais no interior dos Estados Nações - não é a mesma coisa que diversidade cultural - pluralidade de culturas no plano internacional - nem interculturalismo - considerada como uma determinada concepção do multiculturalismo. Desse

modo,

como

consequência

do

"triangulo

infernal

identidad-cultura-

comunicación", existem dois tipos de identidade cultural: a "identidade cultural-refúgio" que é defensiva e nacionalista, e a "identidade relacional", aberta à cooperação. Esta última seria dominante na Europa e em países de grande extensão e com população numerosa como a Índia e o Brasil (WOLTON, 2004, pp. 68-69).

 

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"La democracia ha sido primeramente política y después social. En el siglo XXI será cultural, en el sentido de que individuos y colectividades reconocerán múltiples identidades culturales así como la obligación de pensar sus relaciones en un registro político, es decir, en un registro que garantice las identidades y a la vez ofrezca el medio de trascenderlas." (WOLTON, 2004, p. 70)

Wolton, portanto, aponta para o fato de que deve-se evitar insistir na etnificação e no multiculturalismo das sociedades, uma vez que ambos podem provocar guerras culturais devido ao fato de reificar as identidades culturais. A fim de melhor elucidar a questão, vale destacar que nos últimos anos, alguns desses estados, devidamente respaldados por boa parte da opinião pública, começaram a questionar os resultados dessas políticas de defesa da diversidade cultural. Tal tendência tem se acentuado nos últimos tempos, quando alguns fatos pareceriam confirmar as piores previsões do famoso pensador italiano. Para citar alguns exemplos, no dia 19 de agosto de 2014, os jornais do mundo inteiro noticiaram que o jornalista norte-americano James Foley tinha sido decapitado, na Síria, por um integrante do grupo jihadista Estado Islâmico (EI), de nacionalidade inglesa. Não era a primeira vez que um cidadão inglês participara desse tipo de atrocidade. Em 2002, Omar Sheikh, na época com 27 anos, nascido no norte de Londres e diplomado na prestigiada London School of Economics (LSE), participou de um atentado a bomba contra um centro cultural norte-americano em Calcutá, além de organizar o sequestro seguido de decapitação de Daniel Pearl, jornalista do Wall Street Journal. Por fim, em 2003, Asif Hanif, de 21 anos, originário de Hounslow, no oeste de Londres, junto a Omar Khan Sharif, de 27 anos, egressado do King's College, outra universidade renomada, cometeram um atentado suicida num bar de Tel-Aviv. Agora, se deslocarmos o foco dessas questões para o âmbito da América do Sul, como essas dinâmicas se estabeleceriam?  

O  revival  étnico  e  o  multiculturalismo  na  América  do  Sul   Segundo a Constituição brasileira de 1988, o Estado tem o dever de proteger as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e as dos outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”, inclusive fixando datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. O objetivo é valorizar a “diversidade étnica e regional” do Brasil. A fim de atingir tal objetivo, o próprio ensino de História do Brasil deve ser alterado,

 

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para levar em conta “as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.” Aos indígenas, lhes são reconhecidos “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” O ensino fundamental regular deve ser ministrado em língua portuguesa, mas as comunidades indígenas podem continuar usando “suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. O “patrimônio cultural brasileiro”, doravante composto de “bens de natureza material e imaterial”, portadores de “referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, deve ser protegido. A Constituição estabelece que o Poder Público “promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, bem como através de outras formas de acautelamento e preservação”, declarando que “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.” É importante ressaltar que o Brasil não foi o único país a passar por esse processo. Nas décadas de 1980 e 1990, a maioria dos países latino-americanos implementaram reformas visando à cidadania multiétnica, como alternativa ao segregacionismo e ao assimilacionismo até então aplicados. Atualmente somente cinco constituições dentre as vinte e uma latinoamericanas não incorporam direitos indígenas: Belize, Chile, Guaiana Francesa, Suriname e Uruguai. As Constituições de Colômbia e Equador são consideradas as mais “avançadas”. Além disso, todos esses países, com exceção de Chile, Nicarágua e Panamá, ratificaram a Convenção 169 (1989) da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais (HOOKER, 2006, pp. 89-90). Os direitos reconhecidos dos povos indígenas, que deixaram de ser chamados de silvícolas e autóctonos, são os culturais (identidade e idioma), territoriais (usufruto terras comunais e demarcação de novas terras) e de autogestão (sistemas legais próprios – ordem social, costumes, autoridades, leis) (cf. BARIÉ, 2003). A Bolívia, inclusive chegou até a trocar de nome para "Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario". O alcance e a profundidade dessas medidas transformadoras implicaram o abandono do modelo de nação “homogênea”, constituída por uma única identidade nacional, e sua posterior substituição pelo modelo de nação multicultural e multiétnica. Todos os países da América do Sul, exceto a Guiana (1966) e a República do Suriname (1975), conquistaram sua independência no século XIX. Nesse sentido, se diferenciam da maioria dos Estados da Ásia e da África, que conquistaram as suas apenas no século XX. Trata-se, portanto, de Estados "velhos" quando comparados aos asiáticos e africanos e, em

 

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consequência, a crise atual vivida pelos Estados-Nações sul-americanos poderia ser comparada com a vivida pela Europa, uma vez que em ambos os casos é flagrante o questionamento das identidades nacionais, aparentemente já constituídas.

Se pensarmos especificamente na questão da crise envolvendo os Estados-nações de ambos os continentes, veremos que ela está submetida à inúmeras interpretações, conforme verificamos através dos aspectos teóricos abordados ao longo do texto. Contudo, há um elemento diferenciador entre Europa e América do Sul que nos parece essencial: as migrações transnacionais não foram determinantes, no caso da América do Sul, para a implementação de políticas públicas multiculturais. Para citar alguns exemplos, atualmente a população estrangeira no Brasil é de aproximadamente 1,5 milhão de pessoas, o que corresponde a menos de 1% da população total do país. Na América Latina e no Caribe a maior parte das migrações transnacionais são regionais, e existem várias hipóteses para explicar esse aumento: crescente integração regional, sobretudo na América do Sul, políticas do Mercosul referentes à circulação de pessoas dentro bloco, crise econômica nos países europeus e melhoria das condições de vida nos países da região. "Para 2013, la mayoría de los inmigrantes en los países de ALC vinieron de otros países dentro de la región: 8 de cada 10. En Argentina fueron 96%, en Costa Rica 93%, en Chile 91%, en Ecuador 68%, en México 65%, en Colombia 63% y en Brasil 33% (OEA, 2015a). El bajo porcentaje de la inmigración regional en Brasil se explica en parte por la barrera del idioma, ya que este es el único país en la región dónde el idioma oficial es el portugués. Los datos surgieren que la disminución del stock de migrantes en Brasil se basa en la disminución de inmigrantes extra-regionales, mientras el crecimiento en los otros países de la región se atribuye precisamente a flujos regionales. (Dinámicas migratorias en América Latina y el Caribe (AlC), y entre Alc y la Unión Europea, mayo 2015, Organización Internacional para las 7 Migraciones (OIM), p. 112 )

Levando em consideração o cenário atual apresentado, eis que uma seara de novas questões ainda devem ser respondidas, a partir de novas pesquisas, tais como os limites do poder de atuação dos movimentos sociais e de intelectuais, das iniciativas estatais, de instituições intergovernamentais e fundações filantrópicas internacionais, além dos fóruns multilaterais nesse processo.

Considerações finais Consideramos que a América do Sul está atravessada pelo paradoxo provocado pelas tendências de integração e fragmentação, ao passo que o mesmo acontece ao redor do mundo. A questão é que o espaço sul-americano tem a sua especificidade. No entanto,

                                                                                                                7  Disponível em http://publications.iom.int/bookstore/free/Dinamicas_Migratorias_2015.pdf    

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vale atentar para o fato de que a singularidade sul-americana não a isenta das consequências decorrentes da aplicação dessas políticas multiculturais. Para alguns autores, por exemplo, não haveria o perigo de fraturas maiores na região. Néstor Garcia Canclini, um dos defensores desta linha de pensamento afirma: "Debido a esta historia diferente, no predomina en los países latinoamericanos la tendencia a resolver los conflictos multiculturales mediante políticas de acción afirmativa. No han faltado en América Latina fundamentalismos nacionalistas y etnicistas, que también promueven autoafirmaciones excluyentes –absolutizan un solo patrimonio cultural, que ilusoriamente se cree puro - para resistir la hibridación. Hay analogías entre el énfasis separatista, basado en la autoestima como clave para la reivindicación de los derechos de las mujeres y las minorías en Estados Unidos, y algunos movimientos indígenas y nacionalistas latinoamericanos que interpretan maniqueamente la historia colocando todas las virtudes del propio lado y atribuyendo los déficits de desarrollo a los demás. Sin embargo, no fue la tendencia prevaleciente en nuestra historia." (CANCLINI, 1995, p. 8)

Ainda dentro da mesma perspectiva, Cletus Gregor Barié afirma que os movimentos indígenas, após anos de mobilização, não sugerem uma “balcanização” da América Latina mas, ao contrário, tentativas de organização à escala continental (BARIÉ, 2003, p. 555). Entretanto, Stuart Hall alerta para os perigos o retorno da etnicidade em sua forma "etnicamente absolutista", que poderia provocar enfrentamientos violentos: "Este retorno a etnicidade essencializa sobremaneira a diferenca cultural, fixa os binarismos raciais, congelando-os no tempo e na historia, confere poder a autoridade estabelecida sobre os outros, privilegia os "pais e a Lei" e leva ao policiamento da diferença. Esta parece ser a fronteira crltica onde o pluralismo cultural ou o comunitarismo etnico encontra seu limite liberal." (HALL, 2003, p. 89)

Nesse mesmo sentido, Eric Hobsbwam considera que, por causa da pouca participação política dos cidadãos nas democracias eleitorais, houve uma ruptura do tecido social e “desorientação social”. Originou-se uma luta entre grupos minoritários por recursos essenciais: “Esto da a los grupos formados en guetos una enorme influencia potencial. Assimismo, por razones tanto de política como de ideologia, y también de la organización econômica cambiante, se atrofia el mecanismo para diluir las tensiones interétnicas al assignar “nichos” separados a los diferentes grupos. Ellos compiten agora, no por recursos comparables (“separados pero iguales” como decía la frase), sino por los mismos recursos en el mismo mercado laboral, de vivienda, educación u otros. Y en esta competência, al menos para los que tienen poças ventajas, la presión de grupo para favores especiales (“acción afirmativa”) es el arma disponible más poderosa.” (HOBSBWAM, 2000, p. 179).

De toda forma, ainda é cedo para avaliar a real dimensão das mudanças em curso. Nesse sentido, tornam-se cada vez mais necessárias novas pesquisas - sobretudo estudos de caso e comparativos - inspiradas nas abordagens teóricas analisadas ao longo do texto, com o intuito de responder às seguintes questões: a América do Sul está realmente imune

 

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às “batalhas étnicas” e ao comunitarismo? Há risco de balcanização na região? Os conceitos de “raça” e "etnia" estariam substituindo os de “cultura” e “classe social”, até então dominantes no pensamento social?

Bibliografia   ALMEIDA, Paulo Roberto de. Rumo a um novo apartheid? Sobre a ideologia afro-brasileira. Revista Espaço Acadêmico, revista eletrônica organizada por membros da UEM Universidade Estadual de Maringá), nº 40, setembro de 2004. Disponível em : http://www.espacoacademico.com.br/040/40pra.htm. Acesso: 12-06-2015. BARIÉ, Cletus Gregor. Pueblos indígenas y derechos constitucionales en América Latina: un panorama. México, D.F.: Instituto Indigenista Interamericano: Comisión Nacional para el Desarrollo de los Pueblos Indígenas/México, Gobierno de la República; Quito, Ecuador: Editorial Abya-Yala (Ecuador); La Paz, Bolivia: Banco Mundial Fideicomiso Noruego, 2003. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. BOURDIEU, Pierre et WACQUANT, Loïc. La nouvelle vulgate planétaire. Le Monde Diplomatique, maio 2000, pags 6 e 7. ____________________________________ Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 1, 2002 (original 1998), pp. 15-33. BRUBAKER, Rogers. Nationalism Reframed. Nationhood and the national question in the New Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. CANCLINI, Néstor García. Consumidores y ciudadanos. Conflictos multiculturales de la globalización. México: Ed. Grijalbo, 1995. CONNOR, Walker. (1972) Nation-building or nation-destroying? World politics, Princeton, vol XXIV, no 3, p. 319-355. GONZALEZ, Jorge A.. "La Volonté de tisser : analyse culturelle, fronts culturels et réseaux du futur", Hermès 28, 2000, pp, 37-52. GRJEBINE, André. La régression multiculturaliste. La réhabilitation des appartenances ethnico-religieuses au nom de l’antiracisme. Controverses, numéro 16 - Mars 2011, pp. 113135. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Depois da democracia racial. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, v. 18, nº 2, pp. 269-287, novembro de 2006. GUTMANN, A., comp., Multiculturalism: Examining the politics of recognition, Princeton University Press, Princeton, 1994. HALL, Stuart. Da diaspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasilia: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

 

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