REFLEXOES-SOBRE-APRECIACAO-MUSICAL-COM-BANDAS-DE-MUSICA-ESCOLARES-jair-dos-Santos-Goncalves-2012

Share Embed


Descrição do Produto

8 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE ARTES E LETRAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM LICENCIATURA PLENA EM MÚSICA

REFLEXÕES SOBRE APRECIAÇÃO MUSICAL COM BANDAS DE MÚSICA ESCOLARES DE IJUÍ-RS

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DE GRADUAÇÃO

Jair dos Santos Gonçalves Santa Maria, RS, Brasil 2012

1

REFLEXÕES SOBRE APRECIAÇÃO MUSICAL COM BANDAS DE MÚSICA ESCOLARES DE IJUÍ-RS

Jair dos Santos Gonçalves

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação de Licenciatura Plena em Música, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Música

Orientadora: Dr. Ana Lucia de Marques e Louro-Hettwer

Santa Maria, RS, Brasil 2012

2

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Artes e Letras Curso de Graduação em Licenciatura Plena em Música

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação

REFLEXÕES SOBRE APRECIAÇÃO MUSICAL COM BANDAS DE MÚSICA ESCOLARES DE IJUÍ-RS

elaborada por Jair dos Santos Gonçalves

como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Música

COMISSÃO EXAMINADORA:

_____________________________ Ana Lúcia de Marques e Louro Hetwer, Drª. (UFSM) (Presidente/Orientadora) _____________________________ Eduardo Guedes Pacheco, Dr. (UERGS)

_____________________________ Guilherme Sampaio Garbosa, Dr. (UFSM)

Santa Maria, 21 de Junho de 2012.

3

Agradeço a todos os que me apoiaram nesta luta, em busca do conhecimento musical. Agradeço a todos os amigos. Aos meus queridos e guerreiros pais Valdemar e Generosa, que são exemplos de vida, humildade e dedicação ao trabalho e à família; aos irmãos de sangue e música Gilmar, Alexandre e Jocemar companheiros desde infância, a todos os familiares, tios, avó, sobrinhos, padrinhos que sempre apoiaram meu trabalho; ao apoio incondicional daquela pessoa que está quase sempre ao meu lado; aos verdadeiros amigos que me incentivaram; à madrinha Fátima Iemthes, por ter me ajudado em momentos difíceis; a todos os professores que contribuíram com minha formação; aos educandos das bandas de música de Ijuí em que atuo, principais protagonistas neste trabalho, à direção das escolas em que atuei e nas quais realmente recebi apoio ao trabalho de educação musical, à minha Orientadora Ana Lúcia, que me abriu as portas para os caminhos da pesquisa dentro da academia, sendo para mim um grande exemplo de humanidade, profissionalismo e fé; a todos tenho a dizer: MUITO OBRIGADO!!!

4

Considero minhas obras como cartas que escrevi à posteridade sem esperar resposta. (Villa-Lobos)

5

RESUMO Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Graduação em Licenciatura Plena em Música Universidade Federal de Santa Maria

REFLEXÕES SOBRE APRECIAÇÃO MUSICAL COM BANDAS DE MÚSICA ESCOLARES DE IJUÍ-RS AUTOR: JAIR DOS SANTOS GONÇALVES ORIENTADORA: ANA LÚCIA DE MARQUES E LOURO-HETTWER Santa Maria/RS, 21 de Junho de 2012.

O objetivo desta pesquisa foi refletir sobre a utilização de cenas musicais do cotidiano, como recurso para aulas de apreciação com educandos participantes de bandas de música. A pesquisa baseou-se em um estudo da apreciação musical em bandas de música, no ensino fundamental na cidade de Ijuí-RS. Através dos diários de aula, tornou-se possível analisar os direcionamentos que o educador musical deu aos dilemas encontrados. As aulas de apreciação ajudaram a melhorar os ensaios da banda, além de propiciarem o contato com a realidade social. Esta pesquisa pretende contribuir para o debate sobre o ensino de música em bandas na educação básica, bem como a importância da atividade de apreciação em grupos instrumentais. Além disso, almeja somar esforços com outras pesquisas que problematizam a formação continuada do professor, através dos diários de aula, como metodologia de reflexão e pesquisa. Mais ainda, deseja instigar aos leitores a este olhar para a vida cotidiana das cidades, como problematização na formação de cidadãos, ampliando escutas e visualidades das “belezas” e “feiuras” que podem mover a ações transformadoras da sociedade.

Palavras-chave: Cenas Musicais do Cotidiano. Bandas de Música. Apreciação Musical. Diários de Aula. Educação Musical.

6

ABSTRACT Monografia de Especialização Curso de Graduação em Licenciatura Plena em Música Universidade Federal de Santa Maria

REFLEXÕES SOBRE APRECIAÇÃO MUSICAL COM BANDAS DE MÚSICA ESCOLARES DE IJUÍ-RS (REFLECTIONS ON ASSESSMENT MUSICAL WITH BANDS MUSIC SCHOOL FROM IJUI - RS) AUTHOR: JAIR DOS SANTOS GONÇALVES ADVISER: ANA LÚCIA DE MARQUES E LOURO-HETWER Santa Maria/RS, 21 de Junho de 2012.

The objective of this research was to reflect on the use of musical scenes of everyday life as a resource for students with classes of assessment participants’ bands. The research was based on a study of musical appreciation in bands in high school in the city of Ijuí-RS. The classroom every day become possible to analyze the direction the music educator gave the dilemmas. The classes of assessment helped to improve the band rehearsals, as well as providing input into contact with social reality. This research aims to contribute to the debate on the teaching of music in bands in basic education, as well as the importance of activity assessment in instrumental groups. Furthermore, it aims to join efforts with other studies that question the teacher's training continued through the daily lesson, as a method of reflection and research. Moreover, would entice readers to look at this everyday life of our cities, such as questioning the formation of citizens, and expanding wiretapping visualities of "beauty" and "ugliness" that can move us to action of transforming society.

Keywords: Musical Scenes of Everyday Life. Music Bands. Music Appreciation.Daily Lesson. Music Education.

7

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................

9

2 LIGAÇÃO COM O TEMA................................................................................... 11 3 ESCOLHA DO TEMA............................................................................................ 13 3.1 Objetivo Geral.............................................................................................................. 13 3.2 Objetivos específicos.................................................................................................... 13 3.3 Justificativa

13

4 APROXIMAÇÕES COM A BANDA DE MÚSICA ................................... 15 4.1 Revisão da Literatura.................................................................................................. 15 4.2 A experiência docente com as Bandas de Música de Ijuí......................................... 24 4.3 Processos de ensino nas Bandas ................................................................................

25

4.4 A rotina de organização e preparação dos ensaios................................................... 25 4.5 Os estudos e execução de Ritmos................................................................................ 27 4.6 A utilização da apreciação para resolução de problemas........................................ 29 4.7 A explicação de Pulso Rítmico nos ensaios coletivos................................................ 30 4.8 Ensaio e ensino coletivo de instrumentos heterogêneos........................................... 31

5 UM PONTO DE VISTA QUE INCLUI APRECIAÇÃO....................... 33 5.1 A banda como proposta efetiva de educação............................................................

34

5.2 Por que a necessidade da apreciação e amadurecimento estético musical com os educandos...........................................................................................................................

36

5.3 A Apreciação como ferramenta para o amadurecimentos musical dos educandos das bandas.......................................................................................................

38

6 CENAS MUSICAIS DO COTIDIANO: UM OLHAR SOBRE A VIDA..............................................................................................................

41

6.1 Uma pedagogia que toque e faça surgir novas idéias............................................... 43 6.2 As cenas musicais do cotidiano como ferramenta de arte.......................................

45

7 METODOLOGIA..................................................................................................... 50 7.1 Ponto de vista interpretativo......................................................................................

50

8 7.1 Procedimentos metodológicos..................................................................................... 52

8 DADOS – Análise/Resultados ............................................................................. 53 8.1 Apreciação Musical x Aprendizados Musicais das bandas.....................................

53

8.2 Apreciação x Interpretação e Expressão musical..................................................... 56 8.3 Apreciação x Prática de Conjunto e Técnica Instrumental..................................... 58 8.4 Apreciação Musical x Formação de Cidadania........................................................ 60 8.5 Breve relato sobre a apreciação dos vídeos............................................................... 63 8.6 Considerações acerca da discussão com os educandos sobre Cenas Musicais do Cotidiano............................................................................................................................

68

8.7 Apreciação Musical x Ensaio das Bandas.................................................................

70

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................

71

REFERÊNCIAS............................................................................................................ 76

9 1. INTRODUÇÃO:

Este é um estudo qualitativo que investigará dilemas originados de minha prática profissional de educador musical, com bandas de música de escolas do município de Ijuí–RS, onde realizei a regência de quatro fanfarras. Atualmente, na mesma cidade, sou regente e ensino teoria musical, instrumentos de sopro, (tuba, bombardino, saxofone Sib, clarinete, trompete, trombone, flauta, trompa), instrumentos de corda (violino, viola, violoncelo), que são parte de uma banda de música que estou construindo em uma das escolas. Atendi, até o momento, cerca de duzentos educandos, em um período de quase dois anos de atividade. Existem inúmeras diferenças entre os públicos das escolas, no que diz respeito à questão sócio-econômica. Mesmo assim, procurei enfatizar o trabalho de pesquisa com dados trazidos das escolas em que os educandos têm maior vulnerabilidade social, pois, nesses locais, as oportunidades culturais são precárias. Penso que a realização do trabalho de educação musical com bandas em comunidades carentes tem um maior impacto social, talvez pela necessidade cultural dos alunos e por não existirem tantos projetos para juventude nestes locais. A realização do trabalho teve início no mês de Julho de 2010 até a presente data, cerca de quase dois anos. Neste período, ainda estudo no curso de Licenciatura Plena em música, ao mesmo tempo em que atuo profissionalmente como instrutor de Banda Marcial no município de Ijuí-RS. Necessitei então, além de reger as quatro bandas no município, viajar cerca de 1000 quilômetros mensalmente, para atender esses educandos. Durante um ano e meio, viajei com uma motocicleta de 125 cilindradas, entre as cidades de Santa Maria-RS e Ijuí-RS. Foi um período difícil que serviu de contexto para as análises efetivadas na presente pesquisa. Aqui, será estudado o desenvolvimento do trabalho de apreciação musical com os músicos aprendizes das bandas. Todo o estudo será orientado dentro do campo epistemológico da Educação Musical, tendo como principal escopo o estudo e a busca de conhecimentos e alternativas para a realização do trabalho com bandas de música, no sentido de incentivar o desenvolvimento musical e da cidadania dos participantes. Os dilemas surgiram aos poucos, com a incompreensão dos educandos em relação a alguns conteúdos musicais, dificuldades de cantar juntamente com os toques de ritmo percussivo, hesitações em realizar solfejos de partes rítmicas, até mesmo a compreensão mais profunda do conceito de banda de música. Desse modo, será revelado como foi necessário realizar atividades de apreciação para obtenção desse senso crítico, para o amadurecimento do

10 conhecimento musical e do contato com a música do cotidiano social dos alunos. Parti então da autorreflexão da minha prática pedagógica, descrevendo situações de ensino e aprendizagem, através de diários de aula, onde são narrados dilemas, dificuldades e vitórias no processo de ensino de música. Será explicado também como surgiu a necessidade de oferecer uma reflexão de novos meios que permitissem aos educandos diferentes possibilidades de entender a música, não somente como prática, mas como produto cultural da humanidade. Trata-se de um estudo que pode se tornar relevante para outros educadores, na medida em que reflete a prática inserida no contexto da banda de música escolar. Além disso, este estudo buscou problematizar as intenções da minha prática pedagógica como professor de música, com as múltiplas experiências dos educandos, mescladas às cenas musicais do cotidiano, pensando em amadurecer o trabalho com o grupo. Será estudado um pouco da história das bandas, desde o seu surgimento até sua chegada ao Brasil, baseado em diversos pesquisadores, dentre os quais Nüske (2008), Lima (1995), Grove, Borba e Graça (1956), Randel, Andrade (1989), Nascimento (2007), Souza e Silva (2008), Barbosa (1994), Almeida (2006), entre outros que pesquisaram a importância das bandas de música, a forma como se organizam tecnicamente, a realização de performances, a elaboração de arranjos e todo o desenvolvimento de um trabalho nesse nível. Será trazido o conceito, discutida a função social das bandas e também as dificuldades de criar, manter e projetar a ideia de banda de música dentro de uma lógica de educação musical, que se distancie dos interesses político partidários, institucionais e administrativos, em prol de um interesse mais educacional. Também serão discutidas as ferramentas e metodologias possíveis de utilização para a organização do ensino que vise à obtenção de conhecimentos mais aprofundados sobre música. As teorias do cotidiano serão enfatizadas através de autores como Souza (2008), Heller (1993), Gomes (1998), Gonçalves (2009), Maciel (2004), Freire (1998), Patto (1993). Essas teorias estudam inclusivamente as cenas musicais do cotidiano que serão utilizadas para a apreciação, e consequente facilitação do aprendizado musical dos integrantes das bandas de música estudadas. As ferramentas de pesquisa e coleta de dados serão os diários de aula tendo como principal autor Zabalza (2004) e Abreu (2011). Os diários serão ferramentas de coleta de dados onde serão descritos e narrados diversos encontros educativos realizados. Através dos diários, serão possíveis reflexões e discussões de dilemas encontrados durante a prática de educação musical.

11 Quanto à metodologia de pesquisa, em termos de classificação da mesma, foram privilegiados conhecimentos através dos estudos de Bortoni-Ricardo (2008), Caramella (1998), Gil (2010), Rodrigues (2007) e Severino (2007). Por último, temos os autores que ajudam a entender a apreciação musical como importante ferramenta de educação musical. Dentre eles, Swanwick (2003), Gohn (2005), Cornelissen (2011), Moreira (2010), Rizzon (2009), Sugahara (2003) e Thezolim (2005), uma vez que trazem as pesquisas e as justificativas da utilização das audições para o desenvolvimento dos conhecimentos musicais dos educandos. A dialógica entre os assuntos será explorada, pois, de um lado, haverá reflexões pessoais juntamente com as dos autores. O resultado final será o cruzamento desses dados para que se consiga chegar a uma teoria concisa e teoricamente fundamentada.

2. LIGAÇÃO COM O TEMA:

No decorrer do ano de 2010, assumi o cargo de Instrutor de Banda Marcial, no qual fui incumbido de realizar a tarefa de planejar e organizar ensaios e apresentações de bandas de música nas escolas do município onde trabalho. Logo que assumi o cargo, quando já cursava o sexto semestre do curso de Licenciatura em Música, percebi algumas questões que me instigaram a refletir sobre diversos dilemas no desenvolvimento deste trabalho. No começo, eu não entendia muito bem o que era uma banda marcial. As primeiras aulas foram muito importantes, pois aprendi com os educandos como funcionava uma banda marcial. Percebi como tocavam e se organizavam no grupo de instrumentos de percussão, sendo que ali existiam bumbo, caixa, tarol, prato, surdo e cornetas. Depois dessa “iniciação”, eu comecei a reorganizar os ensaios das bandas das escolas, planejei ensaios, compus ritmos alternativos (baseado no modelo deles), busquei novos arranjos, para percussão e instrumentos de sopro. Resolvi colocar diversos ritmos da cultura brasileira e populares como samba, baião, pop rock, maracatu, inferindo que a proposta até então desenvolvida com as bandas das escolas sofreu forte influência de uma didática militarizada, uma vez que os instrutores anteriores faziam parte do quadro de militares de um quartel da região. Os ritmos tocados pela maioria das bandas eram de estilo militar, de modo que são muito utilizados em demonstrações cívicas e marchas militares, como as de quartel.

12 Dentro dessa ótica, irrompeu a ideia de problematizar o ensino das bandas no seguinte sentido: se estou dentro de uma escola, por que não realizar o papel de educador musical, ensinando a música como um todo, conforme sugere Swanwick (2003) no seu método TECLA, valorizando a música e todo o contexto em que ela foi criada. 1 Quando me deparei com a situação real das bandas, surgiu o seguinte questionamento: “Como fazer para os educandos tenham outra visão do que é uma banda de música? Como fazer para que eles tenham a visão mais ampla de que música é algo mais profundo? Como fazer para que percebam a música que está em seu cotidiano? Como formar um educando no sentido de que ele seja um cidadão, comprometido politicamente com a realidade social? Como, através da música, se pode chegar a um aprendizado mais consciente das questões que envolvem música, sociedade, cultura e política? Aos poucos, fui percebendo a necessidade de organizar uma estratégia para ter êxito na superação destas dificuldades que, como já foi destacado, surgiram da prática pedagógica com educandos de escolas inseridas em comunidades mais carentes, onde parecia haver a necessidade palpável de um projeto com música.

1

Fonte: SWANWICK, Keith. Teaching Music Musically / Ensinando Música Musicalmente – Tradução de Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.

13 3. ESCOLHA DO TEMA

3.1 Objetivo Geral

Analisar os direcionamentos que eu, como educador musical, dei aos dilemas encontrados frente à proposta de realizar aulas de apreciação para educandos participantes de bandas de música em Ijuí-RS.

3.2 Objetivos Específicos:



Pontuar a relevância da utilização das cenas do cotidiano para a formação da cidadania;



Descrever os aprendizados musicais envolvidos nas aulas de apreciação;



Destacar relações entre as aulas de apreciação e os ensaios das bandas;

3.3 Justificativa

Esta pesquisa é relevante à área de educação musical, pelas circunstâncias que aborda o tema da apreciação musical como meio de formação musical a integrantes das bandas de música. Discute como é possível, através da apreciação, contribuir com o aprendizado de assuntos importantes dentro da música, tais como os conteúdos ritmo, dinâmica, percepção musical, prática de conjunto, técnicas instrumentais, ensino coletivo, leitura e performance musical. A pesquisa discutirá o tema de cenas musicais do cotidiano de forma que, sendo apreciadas, possam contribuir com a formação cidadã dos educandos das bandas. Esta visão de aproximar a música do dia-a-dia da vida dos educandos torna-se importante à educação musical do educando, pois possibilitará que reflita sobre questões sociais, culturais e políticas, que emergem da vida em sociedade. Dentro dos objetivos desta pesquisa, haverá a possibilidade de aprofundamento e estudo nas questões que envolvem a apreciação musical, sendo que esta ferramenta de ensino de música é muito relevante à formação musical, tanto do educando como do educador, e

14 poderá revelar como tais apreciações podem interferir como resultado prático no ensaio de um grupo de música. A presente pesquisa também se soma a outras pesquisas já realizadas, bem como aborda a literatura referente a bandas de música e seus principais autores, contribuindo com o estudo do tema proposto, que é amplamente discutido na área de música. Além disto, este estudo dá continuidade a uma série de pesquisas já realizadas, tendo a música do cotidiano como tema a ser estudado. Em diversos congressos de educação e educação musical, tenho defendido a ideia de uma educação musical que considere a música produzida no meio urbano das cidades, nas praças e ruas, em todo local possível, em que os fenômenos musicais podem ser observados e estudados posteriormente. Esta visão também é defendida por diversos pesquisadores. Através desta proposta, é possível conceber a ideia de que poderão surgir novas pesquisas, considerando que traz reflexões e estudos aprofundados sobre o ensino de bandas, apreciação musical e cotidiano. De modo prático, afirma-se que mostrará, através de uma vivencia pessoal, de que maneira um educador pode superar dificuldades inerentes a realização de sua prática, além de ser importante e contribuir para que outros educadores visualizem as possibilidades, ao considerarem as discussões e estudos aqui relatados.

15 4. APROXIMAÇÕES COM A BANDA DE MÚSICA

4.1 Revisão da Literatura

Começaremos esta pesquisa, buscando definir o conceito “Banda”, bastante fácil de confundir, pois existem variações sobre este tema, que pode se apresentar, dependendo do número de instrumentos, do período e da localidade em que surgiu, e também do tipo de gênero musical a que pertence. Há que se considerar as pesquisas de diversos autores sobre o assunto, além disto, temos as definições de enciclopédias especializadas em música. Randel (2001 ,p.76) coloca o conceito de banda, pensando na origem do termo em alguns países

sendo que, na França, chama-se bande, na Espanha e Itália: banda, e

Alemanha: Kappelle. Curiosamente, a Itália não foi citada por este autor.

Banda: [Fr. bande; Ger. Kapelle; It, Sp.. Banda] (1) Qualquer conjunto instrumental. maior do que um conjunto de câmara, incluindo, especialmente no uso britânico, a orquestra. Os primeiros conjuntos com o nome incluem o século 17 vinte quatro violinistas do rei (la bande grande) e os 24 violinistas de Charles II (Banda privada do rei).(2) Um conjunto de instrumentos de sopro, às vezes também com percussão. Veja Banda de metais, música militar, banda Sinfônica. (3) Qualquer conjunto diferente de uma das combinações artísticas tradicionais de música ocidental, por vezes identificados pelo tipo de instrumento (s) incluído ou pelo repertório realizado, por exemplo, banda de acordeões, banda de jazz, bandas de baile, big band, banda de cordas, jug band, bluegrass band, banda de rock. (4) [Ela]. Os metais e seções de percussão da orquestra. 2

A próxima definição sobre o termo banda a ser vista é a de Borba e Graça (1956), e faz parte de seu pequeno resumo histórico a origem deste importante agrupamento musical. É interessante notar, nos escritos do autor, o processo histórico pelo qual passaram as bandas, 2

Fonte: Randel, Don Michael. The New Harvard dicionary of music. 2001Rev. Ed. Willi Apel. 2ed. 1969 - Band: [Fr. bande; Ger. kapelle; It., Sp. Banda] (1) Any instrumental ensemble larger than a chamber ensemble, including, especially in British usage, the orchestra. Early ensembles bearing the name include the 17th-century *vingt-quatre violons du roi (la grande bande) and the 24 fiddlers of Charles II (The king´s private Band). (2) An ensemble of wind instruments, sometimes also with percussion. See Brass band, Military music, Synphonic band. (3) Any ensemble other than one of the traditional combinations of Western art music, sometimes identified by the type of instrument (s) included or by the reperthory performed, e.g., accordion band, jazz band, dance band, *big band, *string band, *jug band, *bluegrass band, *rock band. (4) [It.] The brass and percussion sections of the orchestra. (Tradução minha)

16 tais como origem, formação e papel de cada grupo de instrumentos. É de se notar também a maneira com que as bandas, historicamente, tiveram forte ligação com o militarismo, ou seja, com grandes formações dentro do exercito, ou em atividades deste porte. Além, é claro, das formações vinculadas a instituições de ensino. Há que se convencer de que as bandas de música são um importante espaço de educação musical, não obstante os seus formatos sejam militares ou escolares. Existe um grande poder de formação musical coletivo intrínseco no âmago da banda. Muitos autores consideram-na como sendo um verdadeiro conservatório não formal de músicos, da qual provêm diversos nomes importantes da música contemporânea brasileira, advindos de bandas das cidades interioranas. Andrade (1937) explica que muitos cidadãos têm oportunidade de aprender a tocar, reger e até mesmo compor neste espaço de realização musical:

Do que estamos completamente convencidos, entretanto, é da eficiência da banda de música como elemento de educação musical não formal, no aprendizado e prática eficazes dos instrumentos de sopro e percussão. E, aqui, como comprovação do que afirmamos, é suficiente citar que é por esta razão que a banda de música é considerada como “CONSERVATÓRIO OU ESCOLA DE MÚSICA DO INTERIOR”, onde começaram seu aprendizado musical, importantes músicos do país. (ANDRADE, 1989, p. 13).

Percebo que, ao realizar este estudo, entra-se em contato com uma espécie de conservatório informal de educação musical, o qual tem um papel político-educacional, ou seja, convence-se de que, por existir em grande número em cidades do interior do Brasil, o acesso à cultura musical através da banda de música - seja ela marcial fanfarra ou sinfônica, é dado pela realização deste trabalho. Isto acontece devido aos inúmeros ensaios, estudos de partituras, busca de conhecimentos sobre teoria musical, sobre a vida de compositores e períodos culturais importantes em que a humanidade produziu conhecimentos musicais. O autor enfatiza alguns nomes como Carlos Gomes, Anacleto de Medeiros, Zequinha de Abreu, André Filho, Benedito Lacerda, José Siqueira, entre outros músicos de destaque nacional, que passaram por “bandinhas do interior”. Neste sentido, é importante retirar o preconceito com o trabalho de bandas marciais, fanfarras e de música, que são vistas como muito “barulhentas”. Nüske (2008) salienta também a importância das bandas no processo da formação dos músicos. Estas ideias são quase que consenso entre todos os escritos de diversos autores. Deste autor, destacamos que “o trabalho com bandas de música é de grande importância no

17 sentido de que serve de formação musical inicial para seus integrantes, muitos destes ingressando posteriormente no ensino superior de música, ou então exercendo a profissão de músico nos mais diversos ambientes musicais” (NÜSKE, 2008, p. 9). Por este motivo, é preciso batalhar pelo espaço para os grandes núcleos geradores chamados de bandas de música. Elas fazem com que a música ressoe, com rufos incansáveis de tambores e ressoar dos metais. Temos nós, regentes e maestros, que acordar “Beethovens”, “Mozarts” ou “Wagners” escondidos nas ruas, nos guetos, nas favelas das comunidades das cidades interioranas e também das metrópoles, através do trabalho. Para resgatar o valor do elemento ‘banda’ para a sociedade, e, principalmente, para a comunidade escolar. Encontramos em Andrade (1989) uma importante e esclarecedora definição sobre banda de música, sendo que ele a define como “um conjunto de instrumentos de sopro e percussão”(ANDRADE, 1989, p.19), mas deixa clara a diferença entre banda de música e ‘outras bandas’, como há incidência em encontrar por todo o país. Este autor destaca algumas delas como “bandas marciais, bandas escolares, bandas de carnaval, fanfarras, banda de clarins, banda de corneteiros e outras” (ANDRADE, 1989, p.19). Coloca ainda a divergência na aplicação dos termos banda marcial e fanfarra, sendo que a primeira é um conjunto com os principais instrumentos de metais e percussão e a segunda é um conjunto de instrumentos lisos (sem pistões) e percussão3. As fontes parecem não concordar muito quanto ao início e utilização do termo banda. Ao que se vê, Andrade (1989) tem, através de suas pesquisas, informações de onde é originária essa formação:

O conjunto musical objeto deste capítulo (Banda de Música) é originário da Alemanha do século XV, quando tais “bandas” consistiam, principalmente, de oboés e fagotes, fazendo parte da vida militar. Entretanto, anteriormente a esta organização e emprego das bandas nas tropas militares da Alemanha, por muitos anos, grupos de instrumentos de metais e percussão eram empregados pelos povos orientais, principalmente, nas unidades de cavalaria. Os cruzados, de volta da Terra Santa, trouxeram a riqueza dos instrumentos musicais usados pela Guarda do Sultão, Imperador da Turquia. (ANDRADE, 1989, p. 24)

O autor ainda classifica por categorias os tipos de bandas. Do período do Renascimento temos as Bandas Militares, também conhecidas como fanfarra de cavalaria, que eram compostas por instrumentos de metal de grupos da época medieval. Os conjuntos de trompas que faziam cortejos nas caçadas dos reis e nobres também eram conhecidos por fanfarras, sendo geralmente formados por sopro e percussão: trompa, trombeta, clarim, 3

Fonte ANDRADE, Hermes. O B da BANDA. Rio de Janeiro, Editora Jodima, 1989.

18 charamela, flauta, trombone de vara, tuba (trombeta romana), pratos, tímpanos e tambores. Em um congresso de História e Teoria Musical, no ano de 1900, em Paris, um número mais exato, que deveria ser adotado em convenção, sendo que a Banda Militar teria 66 instrumentistas e a Fanfarra teria 49 instrumentistas. Outra classificação encontrada é a banda civil, que teve maior desenvolvimento após a revolução francesa e foi impulsionada pela estética do romantismo. Como houve muitas mudanças no contexto social, o interesse na organização de bandas de música se tornou, conforme o autor, um conjunto de execução musical extremamente popular. Destaca-se nesta época o surgimento de pistões4 desenvolvidos por Adolfo Sax, que também contribui com modelos de formação do grupo de banda de música, os quais foram adotados em toda a Europa.5 Nos Estados Unidos, este tipo de formação se desenvolveu muito especialmente no exército e em grandes Universidades e instituições do país. Quanto ao número de instrumentos, Andrade (1989) também classifica as categorias de bandas. Inicia com a descrição em tabelas destes agrupamentos. Espelhado em Andrade (1989), incluirei estas tabelas, que ajudam a perceber a diferença entre uma categoria e outra:

Tabela 01 – Categoria Fanfarra

FANFARRA INSTRUMENTO

QUANTIDADE

Bombo

07

Caixa Clara

07

Caixa surda

07

Lira

07

Corneta

07

Pífaro

14

Total

49

Fonte: ANDRADE, 1989, p.20.

4

São as válvulas encontradas nos instrumentos de sopro. Nota: “Spontini e Adolfo sax, estabelecem um efetivo parra as bandas de música, o que seria possivelmente um modelo para toda a Europa”. Estas bandas seriam formadas por 50 músicos.” (ANDRADE,1989, p 27)

5

19 Tabela 02 – Categoria Fanfarra B

FANFARRA B INSTRUMENTO

QUANTIDADE

Bombo

04

Caixa Clara

04 (pares)

Caixa surda

04

Tambor Surdo (vertical)

08

Cornetas Sib

12

Cornetas Fa

08

Cornetão Sib

04

Total

48

Fonte: ANDRADE, 1989, p.21

Tabela 03 – Categoria Banda Marcial

BANDA MARCIAL INSTRUMENTO

QUANTIDADE

Bombo

06

Caixa Clara

04

Caixa surda

06

Pratos

02(pares)

Contrabaixo Sib

03

Contrabaixo Mib

03

Bombardino

06

Trombone

06

Trompete

12

Trompa em Mib (saxhorn)

06

Buble em SimBemol

06

Total

60

Fonte: ANDRADE, 1989, p.21

20

Tabela 04 – Categoria Banda de Música

BANDA DE MÚSICA INSTRUMENTO

QUANTIDADE

Flautim

01

Requinta

01

Clarinete

06

Saxofone Alto em Mib

01

Saxofone Tenor Sib

01

Saxhorne em Mib

03

Trompete em Sib

04

Trombone

04

Bombardino

02

Saxhorne barítono(barítono

01

Sib)

Contrabaixo Sib

02

Contrabaixo Mib

02

Bombo

01

Prato

01 (par)

Surdo

01

Tarol (Repique)

01

Total

32

Fonte: ANDRADE, 1989, p.22

21 Tabela 05 – Categoria Banda Sinfônica

BANDA DE MÚSICA INSTRUMENTO

QUANTIDADE

Flautim

01

Flauta

03

Oboé

02

Corningles

02

Fagote

03

Clarineta

16

Clarineta Alto

02

Clarineta Baixo

02

Saxofone Alto

01

Saxofone Tenor

01

Saxofone Barítono

01

Trompa

08

Trompetes, Cornetins e

08

Bugles Trombones Tenores

04

Trombones Baixos

02

Bombardinos

03

Contrabaixos (tuba)

06

Contrabaixos de Corda

02

Harpa

01

Percussão e Teclado

05

Total

73

Fonte: ANDRADE, 1989, p.22

As tabelas ajudam a esclarecer a diferença entre as categorias de bandas, pois o termo gera muita confusão. Então, aqui ficam esclarecidas as diferenças entre os tipos de bandas.

22

Como se vê, ao tentar definir o termo banda, é necessário ter bastante clareza de que conceito utilizar, pois, além destas, existem outras formações de bandas, como as de Jazz, de rock e diversos outros estilos e gêneros musicais. Além de entender que devemos conceituar corretamente o tipo de banda, hoje vemos, através de diversas pesquisas, que se destaca dentro de um trabalho de banda de música o ensino coletivo de instrumentos. As comunidades de aprendizes são um fenômeno positivo dentro dos grupos, pois ali acontecem diversas trocas de saberes, divergentes momentos de interação com ritmos, técnica e estilos, onde um ajuda o outro a aprender.

No interior do Estado do Ceará a manifestação musical coletiva parece orientar-se na direção da música instrumental. As bandas de música tornam-se, cada vez mais, alvo de grande procura dos jovens nas cidades interioranas constituindo-se como uma das manifestações musicais mais presentes nestas comunidades, difundindo amplamente a cultura e o ensino musical. Desta maneira, as bandas de música são importantes espaços de formação cultural, artística, profissional e, sobretudo, humana. (ALMEIDA, 2006, p.1).6

Percebemos que, aos poucos, as bandas de música vão se tornando um importante espaço de desenvolvimento musical para inúmeros jovens, sendo que eles serão os protagonistas do fazer musical de suas localidades, seja em locais metropolitanos ou não. É importante notar como em cidades do interior o fenômeno banda também é incidente, além do que, como afirma Souza (2008), o peculiar é que outra grande característica destas bandas é a relação com as comunidades próximas das sedes, entrelaçamento que acaba interferindo na constituição das bandas estudantis. A banda é algo muito notado na comunidade social em que atua. Afirmo isto, pois vivenciei algumas situações. Em minhas aulas em Ijuí, por inúmeras vezes, vi as pessoas saírem porta a fora, apoiarem-se nas janelas e portões de casas para apreciar o trabalho das bandas. Isto demonstra a relação da banda com a comunidade, de forma direta. Barbosa (1996) fala das vantagens do ensino coletivo de instrumentos, destacando a forma como os jovens encaram o processo de estudo, ensaio e aprendizado coletivo de música, através de participações em bandas:

O ensino coletivo gera certo entusiasmo no aluno por fazê-lo sentir-se parte de um grupo, facilita o aprendizado dos alunos menos talentosos, causa uma competição saudável entre os alunos em buscar sua posição no grupo, desenvolve as habilidades 6

Fonte: Disponível em: . Acesso em 28 de mar. 2012.

23 de tocar em conjunto desde o inicio do aprendizado, e proporciona um contato exemplar com as diferentes texturas musicais. A prova da qualidade dessa pedagogia pode ser comprovada através da qualidade dos concertos e gravações das bandas escolares americanas. (BARBOSA, 1996, p.41)

Visto pelo olhar de Barbosa (1996), o ensino mútuo de grupos de músicos se torna útil, pois as relações que se estabelecem entre grupos podem estimular não só a apreensão de conhecimentos, como também a elevação de autoestima, resgate de sentimentos de grupo e a possibilidade de elevação dos integrantes a um alto nível performático. É o que se vê em vídeos como o das universidades americanas, cujas apresentações de grande porte, as conhecidas marching bands, chegam a lotar um estádio inteiro de pessoas para tocar, sem contar o público e a alta qualidade do trabalho realizado. É interessante notar como aparecem, por exemplo, centros de interesse em realizar projetos de bandas de música, chegando a existir, em alguns estados do país, órgãos que fomentam com exclusividade este tipo de projeto, tendo em seu poder até mesmo um acervo de partituras para atender o mercado emergente das bandas.

No Ceará o Pró-Bandas passou a se chamar SEBAM (Sistema Estadual de Bandas de Música), o qual foi criado pela Lei 13.605 de 28 de Junho de 2005, a partir do Plano Estadual de Música elaborado em 1996 e vinculado a SECULT. O SEBAM tem por objetivo “sistematizar e implementar políticas de integração e incentivo às bandas de música de todo o Estado, com diretrizes estabelecidas de forma democrática e participativa, por estas instituições.”7 O Sistema Estadual de Bandas de Música, SEBAM, oferece cursos de formação e aperfeiçoamento musical para regentes e músicos, uma rede de integrações entre as bandas, políticas de difusão e o Acervo de Partituras que reúne diversos arranjos e que são distribuídos às bandas do Estado do Ceará, bem como disponibilizadas na internet. (ALMEIDA, 2008, p.1)

Outra consideração deve-se a Souza (2008), quando aborda que as pesquisas sobre bandas são escassas, apesar de existir um grande número delas no estado em que trabalha. Esse autor problematiza a questão das partituras, considerando que, geralmente, um repertório é imposto pela figura do maestro, além de analisar a ideia de que “o repertório executado pelas bandas pode se constituir de diversos aspectos inerentes ao ensino e aprendizagem que ali ocorrem. Neste repertório, também, pode está imbuído um currículo musical, por vezes, implícito, o qual autoritariamente é colocado pelo maestro” (SOUZA, 2008, p.2). No trabalho desenvolvido em Ijuí-RS, não contei com qualquer tipo de ajuda. Tive que descobrir o caminho sozinho. Reflito que, muitas vezes, o maestro regente poderá sentir 7

Fonte: Disponível em: Acesso em: 19 de abr. 2009. Grifos de Souza (2008).

24 dificuldades por falta de materiais, de partituras e de especialistas para auxiliar no ensino de cada instrumento específico. Não raro, o aprendizado acontece mais nas mãos e atitudes do instrumentista que têm acesso ao instrumento para ensaiar em casa, quando a escola pode emprestar o mesmo. Em alguns lugares, como no caso do estado do Ceará, existe a SEBAM (Sistema Estadual de Bandas de Música), que disponibiliza partituras, além de patrocinar diversos projetos e cursos, ao contrário da realidade do Rio Grande do Sul, onde são poucas as iniciativas parecidas. Destaca-se um fato parecido que é a escassez de pesquisas, bem como falta de materiais e pessoas especializadas no assunto, para que melhor orientem a formação de bandas de música.

4.2 A experiência docente com as Bandas de Música de Ijuí

Quando assumi o cargo de instrutor de banda marcial no município de Ijuí-RS, não existia naquela localidade um projeto “mais sério” referente à questão das bandas. Ao realizar diversas conversas ligadas à implantação da nova lei sobre educação musical com algumas direções de escolas, foram encontrados pontos de interesses comuns. Em uma das escolas, já havia o anseio de um projeto musical, a vontade de realizar uma atividade ousada com música. Como estávamos em um processo de adaptação da nova lei, isto fez com que as políticas fossem articuladas. Escrevemos um projeto musical e, cerca de seis meses depois, recebemos vários instrumentos que compõem a banda marcial, incluindo alguns da banda sinfônica e da banda de música. Além destes instrumentos, foram adquiridos instrumentos de corda como violinos, violas e violão. Penso que foi uma grande conquista este projeto. Como a regência de quatro bandas no município, resolvi levar mais alguns instrumentos a uma banda de outra escola, para que conseguíssemos fazer música, sem a limitação ao limiar da fanfarra que, a meu ver, restringe quando se quer realizar um trabalho mais completo em termos de melodia e harmonia, o que é impedido pela fanfarra por ter apenas cornetas lisas, sem pistos. A conquista de um efetivo de instrumentos para a realização do trabalho com as bandas no município foi muito benéfica, mas somente foi efetivado graças à ajuda do incentivo legal, ou seja, a lei 11769/08, além da vontade política de muitas pessoas como o presente pesquisador, a direção da escola e a Secretaria Municipal de Educação. Em função

25 disso, penso que a contribuição desta lei ainda irá facilitar a obtenção de muitos recursos para a área de música em todo o país.

4.3 Processos de Ensino nas Bandas

Geralmente, as aulas com as bandas começam com a reunião do grupo em uma sala de aula, para fazermos a chamada, realizarmos algumas atividades musicais de apreciação, leitura, solfejos e combinarmos o que será feito no ensaio. Após, passamos para a sala dos instrumentos, que se encontram guardados em grandes armários. Os instrumentos e acessórios (baquetas, talabartes) são distribuídos aos educandos. Logo em seguida, partimos para o ensaio. Os ensaios acontecem, na maioria das vezes, na rua, em frente à escola e geralmente duram um turno de três horas, com um intervalos de vinte minutos. Em um dos bairros existe ginásio; em outro, há o pavilhão de uma igreja, para ser utilizado quando chove. Quando a chuva é muito intensa, fica impossível ensaiar, mesmo sobre as coberturas. Então, realizamos atividades musicais em sala de aula. Em uma das escolas, há apenas o ensino de instrumentos de sopros, sendo que as aulas aconteceram inicialmente na sala onde eram guardados os instrumentos da Fanfarra. Os naipes de instrumentos são organizados em quatro fileiras, começando pelo bumbo (4 unid.), logo em seguida, tarol (12 unid.), e segue-se com caixa clara(6 unid.), surdo (4 unid.) e sopros sem pistos (4). Cada escola tem uma sequência diferente de ritmos a serem tocados. Durante o ano, cada uma delas tinha cerca de dez ritmos ensaiados, incluindo as cadências onde as cornetas faziam sua melodia.

4.4 A rotina de organização e preparação dos ensaios

A organização do ensaio se dá inicialmente com a revisão de ritmos tocados no ensaio anterior. Repete-se até que se consiga uma execução razoável. Quando os educandos firmam o ritmo, é acrescentado um novo toque até que consigam tocar. Quando firmam este novo toque, solicito que repitam os dois ritmos, sendo que a troca de um para o outro é dado por regência com o auxilio de gestos, baliza e apito.

26 Então, em cada aula, vamos construindo um repertório de sequências rítmicas. Cada parte rítmica, com cerca de quatro a oito compassos, é tocada do início ao fim com ritornelos. Geralmente, repete-se oito vezes a parte rítmica que os educandos definiram como “toques”. Na linguagem dos educandos, os ritmos são os “toques” que a banda executa. No final da oitava repetição, a banda é avisada pela regência ou pelo apito, então, o ritmo seguinte é executado. Todos estes estudos dos ritmos são feitos com a banda parada em um local seguro da rua. Estuda-se também a utilização de uma marcação do passo, que ajuda a demarcar o pulso dos ritmos executados. O corpo inteiro tem que se envolver, para que o ritmo seja internalizado. A maioria dos ritmos que os educandos tocavam antes de minha chegada era de estilo militar. Eram marchas militares. Além disto, em uma das bandas, existiam vozes de comando como, por exemplo, “Banda em Forma!”, “Banda, marcar passo!”.

4.5 Os estudos e execução de Ritmos

Foi sugerido aos educandos que tocassem outros estilos de ritmo. Então, foram propostos ritmos da cultura brasileira tais como o baião e o samba cruzado; ritmos regionais como o vaneirão, o chamamé; e populares como rock, reggae e hip hop. O exemplo seguinte é de um ritmo estilo militar que as bandas já executavam, o qual eu transcrevi ouvindo-os tocar.

Ex. 1:

27 Tendo como base a partitura do exemplo 1, vemos que existem cinco linhas de ritmo. Caixa e Tarol são os “Snares 1 e 2”, os bumbos são descritos como “bass drumm” e os pratos são o “cymbal”. Tendo em vista esse pequeno trecho musical, pode-se ter uma ideia da organização do ensaio, que é uma coisa bastante complexa. Uma sugestão nova de ritmo que propus para o grupo foi a do exemplo a seguir, que resolvemos chamar de Olodum, pois lembra bastante um ritmo utilizado na música baiana, o Axé. Trata-se de um ritmo dançante e alegre, que por ventura acabou se tornando muito mais interessante para os educandos, tanto na execução como na motivação.

Ex. 2:

Com a linha do surdo ocorreram muitos problemas de execução. Além dela, outras partes com pausas também foram difíceis. Mais adiante, irei relatar como foram resolvidas algumas destas dificuldades com as aulas de apreciação. Uma maneira que encontrei foi utilizar bastante a técnica do solfejo do ritmo todo com o grupo. Depois disto toco o bumbo e caixa ao mesmo tempo para que eles ouçam, uma vez que dão a ideia geral do ritmo. Parte-se então para uma tentativa de tocar em grupo. Quando

28 fica difícil e acontecem muitos erros, costumo estudar especificamente com o naipe que tem mais dificuldades. Nesse caso, solfejamos apenas a parte específica do naipe que está com maior dificuldade. Após a superação destas dificuldades, fica mais fácil acertar o ritmo esperado. Esta estratégia tem funcionado bastante, apesar dos educandos, muitas vezes, desconhecerem a técnica do solfejo rítmico, em que as notas são representadas por fonemas silábicos, como por exemplo, uma semínima escrita seja representada pelo monossílabo “tá”. Como exemplo, teremos o primeiro compasso do ritmo acima descrito. As notas são solfejadas em voz alta os monossílabos “ta, ta, ta, ta”, escritos em cima da cabeça das notas desenhadas no compasso do exemplo 3 abaixo:

Ex. 3:

Esta técnica de solfejo é citada em diversos livros como o Método Pozzoli, o Studying Rhythm, da autora Anne Carothers Hall, entre outros, os quais são bastante conhecidos em cursos superiores de música. A apreciação dos ritmos gravados em áudio também é feita antes de começarmos o ensaio da banda, naqueles momentos preparatórios, antes do grupo receber os instrumentos. Isto ajuda a resolver problemas de andamento e compreensão, depois de apreciarmos bastante os ritmos, são feitos solfejos e exercícios de toque, utilizando-se palmas, percutindo em classes e através de percussão corporal. Neste sentido, há a integração de aulas em que são realizadas atividades de educação musical com o grupo, visando melhorar a prática da execução e “performance” em grupo. Isto ajuda a desenvolver o ritmo com eles. A parte de solfejo melódico também é estudada, em

29 particular, com os educandos que participam tocando os instrumentos de sopro. Como o exemplo, a seguir, que acontece no final de uma sequência de quatro ritmos.

Ex. 4:

4.6 A utilização de apreciação para a resolução de problemas

O trecho musical acima não foi assimilado por inteiro em um dos ensaios. Desta forma, foram efetuadas diversas apreciações do arranjo feito por mim, de maneira que este era escutado por todo o grupo de sopros. Partimos então para um breve solfejo das notas da melodia e também da parte do ritmo.

30 Uma das partes que dificultou o entendimento foi a do compasso final, por haver um ritmo acéfalo, sendo que o som se destaca no meio do tempo. Circulo na figura a seguir, exatamente o trecho em que este problema apareceu:

Ex. 5:

Foi necessário estudar com o grupo a parte melódica e rítmica referida acima. Fizemos diversas apreciações do compasso através do som do que saia de um programa de computador para as caixas. Também solfejamos o compasso. Através disto, consegui que o grupo fosse desenvolvendo sua percepção musical, ao mesmo tempo eu mostrava a partitura e explicava as figuras, pausas, ritornelos contidos no arranjo. Eles também podiam acompanhar visualmente, pois o trecho foi tocado no programa Finale, que mostra tudo em tempo real. Assim, conseguimos resolver o problema deste trecho musical. Aos poucos, fui percebendo como a apreciação é importante para que se tenha um resultado no trabalho final com a banda, pois, além de ajudar na memorização dos trechos, ajuda na percepção do pulso musical, além de desenvolver a percepção dos educandos. Em diversas aulas foi trabalhado também o pulso rítmico, para que o andamento das músicas não fosse alterado. O programa de computador tem um recurso que toca o metrônomo junto. Fiz questão de deixar ligado para que eles percebessem que o pulso estava sendo tocado juntamente com os compassos dos trechos musicais estudados.

4.7 A explicação do pulso rítmico nos ensaios coletivos

31

Durante os ensaios surgiram muitos problemas com o pulso musical. A maioria dos educandos tinha chegado recentemente nas bandas, já que os ensaios foram retomados depois de quase um ano. Para tornar compreensíveis as ideias e explicações sobre este conteúdo musical, eu resolvi falar usando metáforas simples. Falei em diversas aulas para os educandos que o Pulso da música era que controlava a música. Era como se fosse o coração da música, e que existe a possibilidade deste coração bater mais muito acelerado, e, em outras vezes, menos. Relatei que o pulso musical devia ser o mesmo para todos. Que esta batida devia ser internalizada. Orientei que eles também pudessem seguir sempre este pulso ao executarem os ritmos coletivamente. Em uma das escolas, por exemplo, necessitei tocar o pulso da música em uma das caixas. Regi então a entrada da banda utilizando o pulso. Desse modo, aos poucos, fomos melhorando também a questão da dinâmica da banda. Durante as aulas de apreciação com os grupos de educandos participantes das bandas, eu repetia a estratégia de tocar os ritmos no programa Finale, para que eles pudessem ouvir o pulso tocando junto. Em uma das aulas, enquanto rodava o ritmo em repetição, pedi que todos do grupo acompanhassem com palmas, no mesmo andamento com que acontecia o pulso.

4.8 Ensaio e ensino coletivo de instrumentos heterogêneos

Também acontecem, em uma das escolas, o ensino e ensaio de diversos instrumentos de sopro ao mesmo tempo. Estou utilizando o método Da Capo, do autor Joel Barbosa, para orientar alguns tipos de prática de grupo. Escrevi alguns arranjos de melodias fáceis, pois a maioria dos educandos são iniciantes. Então estes arranjos facilitam o aprendizado de música em grupo. Em outros momentos, executamos músicas diversas em uníssono. Adoto esta estratégia para que um educando ao escutar o outro consiga aprender junto, ao observar que, quando um educando que sabe a melodia e a executa bem, ajuda o outro músico aprendiz a entender ambos. Essa comunidade de aprendizes, aos poucos, proporciona o incentivo e o aprendizado entre os educandos. O repertório de músicas inclui aqueles que se encontram nos métodos e os de músicas que se escolhe fora de métodos. A maioria das músicas do repertório é de conhecimento dos educandos, sendo que a maioria das músicas se enquadra dentro do estilo e gênero popular.

32 A aula coletiva tem vários momentos importantes. Primeiramente, quando são os sopros ensaiando, existe um aquecimento básico que é treinamento de respiração. Em um segundo momento, há o estudo de embocadura. Logo após, tocamos um pouco de escalas, prestando atenção na afinação. Tudo isto é feito com todos os instrumentos ao mesmo tempo. Sempre que é possível e necessário acontece a orientação sobre os cuidados com afinação. Após este momento inicial, partimos à apreciação das obras que iremos tocar. Neste momento, apresento a música e suas características e conversamos sobre o compositor. Logo em seguida, acontece outro momento em que os educandos, individualmente, farão a leitura da partitura da música. Então, eles se espalham pela sala, com suas estantes e suas partituras que costumo levar previamente. Permaneço o tempo suficiente orientando, auxiliando-os na leitura das obras. Geralmente, acontece dos educandos esquecerem posições, pois há instrumentos como o saxofone que tem muitas chaves. Às vezes, não entendem muito os ritmos e resolvemos tudo num breve solfejo deste ritmo e melodia. Tudo isto acontece ao mesmo tempo, sendo que os instrumentos que estão sendo ensinados no projeto de sopro são tuba, bombardino, trompa, trombone, clarinete, saxofone, trompete e flauta doce. Há também o ensino coletivo de instrumentos de corda, que são o violino, o violoncelo e a viola de orquestra, além do ensino de violão. Todos estes instrumentos são ensinados por mim no projeto da escola IMEAB de Ijuí. Os procedimentos para ensinar estes instrumentos são parecidos com os de sopro. Utilizo método Suzuki para cordas, Mascarenhas para flauta e Henrique Pinto para violão. O objetivo é fazer com que todos toquem ao mesmo tempo quando estiverem mais firmes nos instrumentos. O ensino coletivo é muito desafiador para mim. Por enquanto, eu realizo o ensaio das cordas e dos sopros separadamente. Há um momento em que todos se encontram para tocar juntos. A banda de música contém sopros e as cordas que fazem parte da orquestra. Os autores enquadram a banda que contém instrumentos como cordas, dentro de uma categoria que se chama banda sinfônica. No final da aula, sempre há um momento de avaliação do que foi aprendido na aula. Realizo um momento de apresentação em que os educandos sobem ao palco para mostrarem um pouco do que conseguiram realizar no dia, onde procuro organizar uma maneira bem dinâmica para a aula coletiva. A cada aula revisamos as músicas anteriormente aprendidas e entramos em novas. Alguns recitais já foram organizados onde toda a banda de música pode tocar junto. Após as

33 apresentações, sempre existe um diálogo sobre as apresentações realizadas, pois considero importante falar com todos os educandos sobre a execução das músicas em público.

5. UM PONTO DE VISTA QUE INCLUI APRECIAÇÃO

Um dos principais pontos para uma educação mais completa, conforme ponderado por Swanwick (2003), é uma vivência não só de execução musical, mas também de apreciação. As preocupações deste autor com a educação musical remetem o educador musical a se preocupar com a formação que está oferecendo, sendo que a música proporciona inúmeras possibilidades de aprendizado, além da execução. Esse autor afirma:

Um dos objetivos do professor de música é trazer a consciência musical do último para o primeiro plano. Quando a música soa, seja lá quem a faça e quão simples ou complexos os recursos e as técnicas sejam; o professor musical está receptivo e alerta, está realmente ouvindo e espera que seus alunos façam o mesmo. (SWANWICK, 2003, p.57)

Baseado nesse pensamento, assumi um compromisso profissional, estabelecendo alguns critérios através da metodologia de Swanwick (2003), para que eu conseguisse desenvolver um trabalho coeso com as bandas. Percebi que conteúdos muito simples da música não estavam ainda sendo levados em conta pelos educandos. Estava na hora de instigar um amadurecimento. Então, foi necessário realizar uma espécie de “conscientização”, ou seja, realizei diversas atividades como o uso de dinâmicas, formas simples musicais, expressão, composição, estudo de outros tipos de formações musicais, estilos e gêneros desenvolvidos para a linguagem de banda de música. Neste jogo entre material sonoro, expressão, forma e valor, proposto por Swanwick (2003), é interessante que o educador perceba que conexões os educandos fazem de conteúdos que parecem isoladas em música, o que pode fazer com que a consciência musical esteja em um último plano como sugere o autor. O foco da preocupação do educador musical está em trazer esta consciência musical para um primeiro plano, ou seja, que este educando seja capaz

34 de interpretar a obra, de escutá-la conscientemente, de entender seu contexto histórico, suas estruturas, pensando também em melhorar a própria forma com que toca. Neste sentido, a apreciação tende a fazer os educandos aprenderem a ter consciência também da música que os cerca, não somente via mídia, mas de perceberem os sons do ambiente, a música do cotidiano que os cerca, fora da sala de aula. Como por exemplo, pessoas que cantam nas paradas de ônibus, músicos de rua, cantores amadores nas praças. Esse olhar para os sons do cotidiano contribuem para inserir os sujeitos num universo sonoro total, pois o nosso dia-a-dia é repleto de sons que, muitas vezes, deixamos de perceber.

5.1 A banda como proposta efetiva de educação

Historicamente, conforme visto através das fontes e inúmeros autores, as bandas tiveram papéis muito importantes, no nível de formação e desenvolvimento de uma cultura de educação musical dos sujeitos participantes. Este é um aspecto que se mostra, dentro das pesquisas, sobre um olhar de desinteresse, da visão de quem administrava tais projetos. Em diversos momentos, notou-se que o interesse sobre as bandas não era a educação musical, mas sim o interesse político e mercantil. Com tantas teorias desenvolvidas por diversos educadores musicais, diversos mestres de bandas, músicos autodidatas e instrumentistas acerca da educação musical, ter interesse apenas no produto final é uma postura no mínimo desinteressante quanto ao papel de uma banda. De que forma se pensa na formação musical e humana do indivíduo se o interesse reside apenas em apresentações musicais em datas comemorativas? Será que o trabalho de bandas de música tem que ficar voltado a interesses de que a banda seja um instrumento de divulgação institucional, política e administrativa? Que importância se dá ao processo de aprendizado, aos momentos de convivência com os educandos, com os pais e amigos dos mesmos que, muitas vezes, são os que realmente se preocupam? Uma resposta a todos estes conflitos surge de uma decisão minha, que é uma decisão política, de crescimento mútuo para acrescentar ao trabalho, de formação musical integral, conforme sugerido por Swanwick (2003) em suas pesquisas. Penso que deva existir um desenvolvimento sistemático das habilidades técnico-auditivas – controle dos materiais sonoros, o desenvolvimento de um forte senso de “performance” musical expressiva e estruturada, e com a expressão e relações estruturais (SWANWICK, 2003,p.71) Daí a

35 organização de uma estrutura para o desenvolvimento da formação musical TECLA, ou CLASP:

Composição – geralmente como certa forma de improvisação, ocorreu freqüente e regularmente entro as crianças como uma parte natural de seu aprendizado instrumental. Por exemplo, os alunos eram insistentemente convidados a improvisar uma frase resposta para uma frase tocada pelo professor, e a invenção de motivos rítmicos fazia parte, muitas vezes, das lições de música, geralmente em forma de brincadeira ou com o espírito de um jogo; Estudos de Literatura – a oferta de informações sobre música, tais como definições de termos musicais e sinais, e itens de notação como tonalidade, clave, pauta e dinâmica, sempre ocorrerem no contexto da atividade prática; Apreciação Musical – não era prioridade nas principais sessões do grupo, embora tenhamos escutado três professores executando um trio para a classe. As crianças foram capazes de ouvir a si mesmas e a cada colega mais cuidadosamente nas chamadas aulas de suporte (aulas menores) geralmente para quatro a oito alunos. Nessas sessões havia a demonstração de uma nova peça pelo professor e uma performance ocasional de um aluno (ou um pequeno grupo de alunos) para o resto da classe, além do estímulo para uma audição mais crítica e analítica, por meio da performance de uma peça, com cada um tocando uma linha. (SWANWICK, 2003, p.71)

Até este trecho da citação, nota-se como organizar um procedimento um pouco mais aprofundado para a prática da educação musical escolar. Da mesma maneira com que os alunos da pesquisa de Swanwick (2003), penso que os educandos devem também receber este estímulo para a audição, pois o que eu pretendi também foi despertar essa maneira de escuta crítica e analítica. Em diversos momentos, refletimos sobre maneiras de tocar, como melhorar o toque, formas alternativas de aprender música, não importando o contexto em que esta música acontece. Seguindo a explicação de Swanwick (2003) sobre o método tecla, ainda temos: Aquisição de Técnica: o princípio da fluência em primeiro lugar era muito evidente como característica do programa, fortemente influenciado por Roland e Suzuki. O controle físico ou manipulativo era desenvolvido antes das habilidades de notação. A técnica de arco era ensaiada antes da técnica de mão esquerda, e tornava possível ter um toque rítmico desde o início, enquanto a liberdade e a flexibilidade eram estimuladas por meio de golpes de arco levantado e trêmulo. A técnica de mão esquerda era baseada numa posição naturalmente equilibrada do violino, e uma forma da mão era construída com exercícios para desenvolver fluência, tal como bater no tampo do violino em posições agudas. As bases da mudança de posição e vibrato eram logo apresentadas, por meio do desenvolvimento da mobilidade. A confiança rítmica era estimulada com palavras cantadas e vários jogos, em geral envolvendo movimento. O uso intensivo de cantos e solfejos ajudava a desenvolver habilidades de notação e discriminação de altura; Performance: Fazer música juntos era o foco essencial da estrutura, e a presença de bons pianistas permitia que, mesmo nos primeiros exercícios técnicos e melodias nas cordas soltas, nascesse a vida musical, dando caráter expressivo e estrutura ao mais simples dos materiais. (SWANWICK, 2003, p 71-72)

36

5.2 Por que a necessidade da apreciação e amadurecimento estético musical com os educandos?

No decorrer do trabalho com as bandas de música no município de Ijuí, percebi que eu deveria trabalhar orientado por uma proposta de Educação Musical, que proporcionasse um conhecimento mais amplo aos integrantes. Isto se fez necessário devido ao fato que, a maioria das bandas focavam seus esforços mais na execução linear dos ritmos musicais, mas não tanto em coisas importantes e inerentes a esta prática, como por exemplo: a origem dos ritmos, andamentos diferenciados e dinâmicas. Em diversas ocasiões eu também discuti o conceito de banda de música, sendo que não havia uma definição segura sobre ela. Ao questioná-los sobre o que era uma banda de música, a maioria das respostas havia sido vaga, com respostas muito simples sobre o que realmente era uma banda. Mais adiante perguntei também como eles percebiam a música no cotidiano, se conheciam situações musicais diferentes ou se tinham visto alguma outra banda diferente da sua e que outras situações musicais do cotidiano eram de seu conhecimento até aquele momento. Pensei em realizar então diversas atividades de apreciação musical com os educandos, para ampliar a proposta de Educação Musical da banda de música e, de certa forma, oferecerlhes um momento de maior aprendizado, já que, durante minha caminhada dentro da área de Educação Musical, entendi que a música vai além de apenas performances. Por ser um educador que se importa com os educandos, que está em contato direto com o conhecimento, buscando respostas para minhas dúvidas e a dos educandos, assumi uma meta de levar esses novos conhecimentos para que eles também tenham a oportunidade de crescer, como eu cresci musicalmente. Diante disso, foi importante eu ter percebido que, apesar da longa caminhada que os grupos tiveram anteriormente, a visão de Educação Musical dentro destes grupos não demonstrava clareza e maturidade o suficiente, não havia um entendimento mais aprofundado de conteúdos básicos como intensidade, harmonia, ritmo, dinâmicas, entre outros conteúdos que são tão importantes para que os educandos aprendizes cresçam no seu fazer musical. Do ponto de vista filosófico, é necessário ir além, provocar a dúvida, a curiosidade, desconstruir e reconstruir conceitos, pensar no que se está fazendo, ou pelo menos ter um

37 pouco de coragem, desafiando-se no sentido de buscar um aprendizado significativo, e também uma docência que encoraje o educando neste difícil caminho de amadurecimento para a vida. O papel do educador é de mediação, entre as expectativas destes sujeitos cheios de anseios e necessidades humanas urgentes. Fazenda (1999 apud Furlanetto, 2007) deixa claro que a atitude recomendável a um educador que se preocupa com a formação dos educandos é aquela em que ele também está disposto a amadurecer constantemente o próprio conhecimento:

a atitude que adotamos frente às questões de interdisciplinaridade tem sido de respeito às praticas cotidianas dos professores, às suas rotinas. Porém, esse respeito impele-nos a fazê-los acreditar e conhecer novos saberes, novas técnicas, novos procedimentos. Nosso trabalho parte do pressuposto que as práticas dos professores não se modificam a partir de imposições, mas exige um preparo especial no qual os mesmos sintam-se participantes comprometidos. Trabalhamos a partir da descoberta e valorização de quem são os professores, de como atuam, indicando caminhos alternativos para seus fazeres (FAZENDA, 1999, p. 158)

Hühne (2006) analisa, do ponto de vista estético, que o ser humano, para desenvolver a obra de arte, deve fazer um processo de criatividade e de desconstrução deste material artístico. Isto é, a desestruturação do material presente (imagens, cenários, figuras, músicas, paisagens), carregados de um passado, visando buscar nesses objetos inspiradores novas potencialidades, visando dar nova direção a maneira de ver estes materiais. A autora sugere que aconteça um jogo de construção e desconstrução baseado na observação do material inspirador, na desconstrução das idéias e conceitos existentes sobre este, na reelaboração destes conceitos e recriação de novas idéias. Pondera ainda que desta maneira algo novo pode vir à tona, sendo que o artista desmonta a realidade existente. Nesta recriação existe um jogo da permanência e mudança, o jogo do ser (o que já existe) e do vir-aser (novas criações) para alcançar os recursos necessários à criação da obra de arte. Desconstrução e reconstrução, na lógica da autora é: destruir algo pronto, deixando irromper novas potencialidades que se mostram em obra de arte. 8 Percebi que a renovação se fez importante no processo do trabalho com as bandas musicais com as quais realizei o que se propõe em educação musical, olhando do ponto de vista da apreciação, que considero uma importante atividade para que os educandos aproximassem seu olhar mais para o sentido de estar fazendo música. Como afirma Rizzon (2009 apud Beyer e Kebach, 2009), a música tem que ser discutida como possibilidade de um

8

Leitura encontrada no livro Curso de Estética de Leda Miranda Hühne, Editora UAPÉ, Rio de Janeiro, 2006.

38 discurso simbólico, pois a música é também uma obra de arte, e, de acordo com Barthes (1982, p.43), deve-se “contemplar a construção de conceitos e significados da música, baseado em um enfoque semiótico da obra de arte, em que acontece a captação poética, ou seja, a leitura da obra.” Neste ponto, chegamos ao limiar da escuta consciente. Rizzon (2009), ao analisar este aspecto da formação musical, fundamenta-se em Barthes, pois ele classificou o campo da escuta em três tipos distintos. Ele problematiza o ato da audição, colocando que deve haver a distinção entre o ouvir e o escutar, sendo que o primeiro é um fenômeno intrínseco ao que o ser humano tem de mais biológico, inerente às condições fisiológicas do ouvido. A autora descreve os três tipos de escuta, considerados fundamentais na presente pesquisa. 1. a audição é orientada para indícios, o que determina que homem e animal estejam no mesmo nível quanto à escuta, pois, o cão, por exemplo, escuta um ruído que o põe em alerta da mesma forma que a criança escuta os passos da mãe e também se põe em alerta. 2. é uma decodificação, o que já nos diferencia dos animais, pois apenas o homem pode captar signos e escutar através da leitura desses códigos. Por exemplo, um trecho musical, em que a leitura de um som de flauta executando uma melodia é o canto de um pássaro; 3. é uma abordagem que não visa ou espera signos determinados, desenvolve-se n espaço intersubjetivo, apensa concebível com a determinação do inconsciente. O que é escutado, não é a vinda de um significado, objeto de um reconhecimento ou uma decifração, é a própria dispersão, a cintilação dos significantes incessantemente introduzidos na corrida de uma escuta que produz incessantemente novos significantes, sem nunca parar o sentido: a este fenômeno de cintilação chama-se significância (distinta da significação) (BARTHES, 1982, p.121 apud BEYER E KEBACH, 2009, p.52)

É desejável que o educador musical, eleve o nível de escuta de seus educandos, não no sentido de impor audições de seu gosto, por exemplo, mas utilizando estratégias para que eles entendam melhor as músicas que ouvem, que pensem, no ato musical, em forma, em timbre, em melodia, em ritmo, em dinâmicas, entre outros elementos que compõem o fazer musical. Após identificarem, captarem o sentido metafísico da obra, ou seja, o mais elevado, considerado por Barthes (1982) como a terceira escuta, Rizzon(2009) comenta que essa escuta “nos faz interpretar que está intimamente ligado com a emoção sentida, ao nos depararmos com uma obra de arte” (RIZZON, 2009, p. 10)

5.3 A apreciação como ferramenta para o amadurecimento musical dos educandos das bandas

39 Ver a educação musical sobre a ótica do todo, ou seja, Técnica, Execução, Composição, Literatura e Apreciação; é pensar em uma educação contextualizada, que está em sintonia, por exemplo, com a seguinte ideia de Morin (1921):

O ser humano é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico. Esta unidade complexa da natureza humana é totalmente desintegrada na educação por meio das disciplinas, tendo-se tornado impossível aprender o que significa ser humano. É preciso restaurá-la, de modo que cada um, onde quer que se encontre, tome conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua identidade comum a todos os outros humanos. (MORIN 1921, p.15)

Assim sendo, por que não pensar em um ensino musical integrado, onde os conteúdos musicais são um todo, e não apenas parte de um estilo ou gênero apenas. A partir daí, entrei em profunda reflexão e pesquisa, para levar aos educandos novas visões sobre o que é música, sobre o que é uma banda de música, sobre novos ritmos. Novas ideias através da apreciação e outras atividades de educação musical tais como sonoplastia, música do cotidiano e cenas musicais do meio social. Do ponto de vista da estética, que é a teoria do conhecimento sensível, é interessante o despertar o olhar dos educandos para tudo aquilo que lhes passa despercebido musicalmente. Zamacois (1975) considera que estética musical e história da música estão intrinsecamente ligadas, como se fossem irmãs siamesas. Denota a grande importância de conhecer o que vai além do feio ou belo, pois a impressão que se tem de tudo isto depende, dentre tantos outros critérios, das impressões de cada indivíduo, da cultura que carrega, da maneira como aprecia. Por isso o autor afirma:

a interdependência entre a Estética da Música e a História desta, nos parece tão indiscutível como a existente entre duas irmãs siamesas com órgãos vitais comuns. Impossível demarcar completamente os campos e ocupar-se de uma sem fazer-lhe, pouco ou muito, da outra. É por isto que nos adentramos muitas vezes nos domínios da História da música, mas somente para coisas que consideramos indispensáveis, (ZAMACOIS, 1975, p. 12)9

Percebe-se que a obra tem mais a dizer. Que a obra carrega a história, a cultura, o conhecimento musical impregnado, a maneira de pensar do compositor, a vida da sociedade 9

La interdependencia entre la Estética de la Música y la História de esta última nos parece tan indiscutible como la existente entre dos hermanas siamesas com órganos vitales comunes. Imposible deslindar completamente los campos y ocupar-se de uma sin hacerlo, poço o mucho, de la outra. Es por esto que nos adentramos a veces em los dominios de la Historia de la Musica, mas sólo para cosas que consideramos indispensables, (ZAMACOIS, p 11 e 12, 1975)

40 do tempo, do espaço em que ela surgiu. Por isso, penso que deva ser dada importância a uma nova maneira de se abordar as obras de arte, e àquelas que, aos olhos de muitos, podem ser consideradas como “obras de não- arte”, dependendo do ponto de vista estético-cultural. Visto com este olhar, é possível ocorrer o amadurecimento musical dos educandos? É possível que eles consigam perceberem-se muitas vezes no mundo presente, como seres profundos, dotados de sentimentos capazes de interpretar, de conhecer, de aprofundar? Será possível um novo olhar deles à arte marginal, por exemplo, aquela que ninguém mais enxerga no nosso dia-a-dia? De que forma resgataremos a sensibilidade dos educandos para as cenas musicais do cotidiano, para a música que está em todos os lugares? Serão capazes de perceber que a vida é um palco musical? Poderão entender que as praças, as calçadas, os espaços públicos também são academias informais de conhecimento, onde, muitas vezes, a dura verdade pode nos surpreender até mesmo de forma musical? Quando os educandos tiverem condições, que devem ser estimuladas desde cedo, pode ser que entendam que cada obra contém sua beleza artística, uma vez que cada uma delas foi criada pelo homem, que é fruto da imaginação, da fantasia, da inspiração, das ideias do intelecto, que é também um produto de destreza técnica. Sendo que a produção de obras é feita para sua recepção, com objetivo pré-determinado pelo autor, com relação a sua repercussão nos espectadores/ouvintes. Se a obra não causar nada no receptor, no ouvinte, pode ser que ele esteja, de certa forma, alienado do verdadeiro sentido desta obra. Fromm (1962 apud HÜHNE, 2006) versa sobre o que é inevitável acontecer quando o indivíduo não atenta para o significado real de uma obra de arte:

Entendemos por alienação um modo de experiência em que a pessoa se sente um estranho. Poder-se-ia dizer que a pessoa se alienou de si mesma. Não se sente como centro de seu mundo, como criadora de seus próprios atos, tendo sido os seus atos e as conseqüências destes transformados em seus senhores aos quais obedece e aos quais quiçá até adora. A pessoa alienada não tem contato consigo mesma e também não o tem com nenhuma pessoa. (FROMM, 1962, apud HÜHNE, 2006 p. 117).

Deste modo, evidencia-se a importância de um ouvinte consciente, pois há a necessidade de depurar o gosto, de melhorar a escuta, de elevar o conhecimento musical, baseado em músicas que são peculiares ao contexto dos educandos. Mesmo tendo poucos ou muitos elementos, o que eles trazem como audições de seu cotidiano devem ser escutadas pensando-se nestas ideias, que não têm a intenção de impor, mas de sugerir um novo olhar sobre a apreciação possível de ser posta em prática com a maioria dos educandos.

41

6. CENAS MUSICAIS DO COTIDIANO - UM OLHAR SOBRE A VIDA

Diante de um mundo cada vez mais complexo, em que se desenvolve um cenário bastante desigual, tanto na distribuição econômica como cultural, podemos falar que a cidadania corre certos riscos de não ser efetivada, e, muitas vezes, não tem sequer espaço no ambiente da sala de aula. Perde-se por um lado a sensibilidade, o sentimento humanista, cada vez mais em prol de uma atitude darwinista que demarcou muito, desde o passado, as relações de poder na sociedade. Ainda hoje, esta lei do mais forte ainda prevalece, sendo que entre as relações humanas não é diferente. Neste sentido, como proposta político-sócio-formativa, são apresentadas algumas cenas musicais do cotidiano, as quais narram histórias de vida, manifestam sentimentos, expõem a realidade de pessoas excluídas. Ao apresentar as cenas colhidas no dia a dia, imprime-se uma importância significativa ao trabalho de educação musical dentro de sala de aula com as bandas de música, pois, ao mesmo tempo, serve de ferramenta de apreciação e conscientização, de empatia com a realidade em que todos estão inseridos. Pessoalmente, tenho a preocupação de formar o educando, no sentido de que seja cidadão. É importante definir o conceito de cidadão, pois, dentro deste conceito, abrimos o diálogo, ou pelo menos a mediação de uma conversa com a realidade social, da vida em comunidade, da valorização dos contextos de vida, do entendimento das relações políticas de poder, para que possam construir a própria realidade e libertarem-se da dominação cultural historicamente imposta. Assim, a cidadania é uma ferramenta de construção. Filho e Neto (2001) ponderam sobre a origem e significado do conceito de cidadania em sua pesquisa sobre a evolução do conceito. a cidadania é notoriamente um termo associado à vida em sociedade. Sua origem está ligada ao desenvolvimento das póleis gregas, entre os séculos VIII e VII a.C. A partir de então, tornou-se referência aos estudos que enfocam a política e as próprias condições de seu exercício, tanto nas sociedades antigas quanto nas modernas. Por outro lado, as mudanças nas estruturas socioeconômicas, incidiram, igualmente, na evolução do conceito e da prática da cidadania, moldando-os de acordo com as necessidades de cada época. (FILHO e NETO, 2001, p. 1)

Souza (1993) propõe que o único caminho para que essa cidadania seja alcançada é o da educação. Reflete que no Brasil os filhos de colonizadores portugueses iam para Lisboa

42 estudar e voltavam senhores. Criava-se então a elite brasileira, sendo que “foi assim que se criou a casa grande e a senzala. Filho de branco, doutor. Filho de negro, escravo analfabeto”. (p.1). O autor não vê alternativa para a mudança da sociedade se não for a educação, de modo que ela desenvolve esse potencial de cidadania nas pessoas.

Educar, por tudo isso, é fundamental. Qualquer país que quiser existir tem de educar. Qualquer cidadão que quiser se afirmar tem de se educar. Qualquer família que quiser sobreviver tem que educar todos os seus filhos e filhas. Educar é saber viver no mundo real, é se comunicar, é saber do passado e ter como construir o futuro. Educar é possuir tudo o que a humanidade acumulou ao longo de sua história. Por isso, um país pode ser avaliado pelo modo como trata sua educação, suas escolas, professores, crianças e jovens. No Brasil, a situação é grave. Tratamos tudo muito mal. Precisamos tratar tudo muito bem. Precisamos transformar a educação em prioridade real de todos. Precisamos construir um outro país, uma outra cultura. (SOUZA, 1993, p.1)

Filho e Neto (2001) ainda ponderam como é necessário desenvolver esse sentimento de cidadania, que se modificou bastante ao longo da história. Conforme exposto, existe uma conotação política ao se revelar a preocupação por uma educação que forme o cidadão.

A necessidade de compreender o conceito atual de cidadania à luz dessas questões sociais veio-nos como herança do processo de formação das democracias modernas. Como sabemos, a Independência dos Estados Unidos e o processo revolucionário francês acabaram por delinear um novo tipo de Estado. Os ideais de liberdade e de igualdade, embora tivessem uma origem propriamente burguesa, contribuíram para a inclusão e um maior número de indivíduos no corpus político das sociedades. Contudo, os anseios da população economicamente menos favorecida ainda não estavam vinculados ao campo dos direitos sociais. Isto explica, em parte, porque a grande maioria dos estudos contemporâneos sobre cidadania, como, por exemplo, os de Marshall e Barbalet, têm nas desigualdades de classe o componente fundamental (MARSHALL, 1967, BARBALET, 1989 apud FILHO e NETO, 2001, p.4).

Mesmo sabendo que a cidadania traz um sentimento de direitos e deveres, nem sempre a sociedade devolve ao sujeito o que ele merece em termos de direitos. Conforme vimos, historicamente, o desenvolvimento da cidadania ajudou a aumentar a inclusão social, apesar de ainda existirem tão fortemente na sociedade atual a exclusão e a não inclusão dos anseios da grande classe econômica, cultural e politicamente, fora de seus direitos sociais, mesmo que garantidos na constituição. De acordo com Freire (1999), há uma grande diferença no caminho do crescimento educacional de um ser humano. Há que ter-se claro o que é formar. Por isto, ele descreve o motivo da formação política e social, para que a educação tenha diferentes perspectivas:

43

é neste sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar. O educando no desempenho de destrezas. E por que não dizer também da quase obstinação com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e as mulheres, assunto de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez. Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia. Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de, não importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos. (FREIRE, 1999, p.15).

Diante destas argumentações, senti minha cidadania falar mais alto. Neste sentido, existe uma forte ânsia de mudança, um desejo profundo de contribuir com algumas ideias que chamarei de político-sócio-educativas. A pedagogia para a educação humana, como já foi dito, não pode ser superficial. Penso que o educando deve ser educado para a liberdade, diferente da libertinagem. É uma educação libertária com responsabilidade, consciente e cidadã, que tenho em mente, talvez a mesma contida em Freire (1998 apud Passeti, 1998):

a pedagogia que me toca é a pedagogia que escuta, provoca e vive a difícil experiência da liberdade, reconhecendo que há também uma distorção, o autoritarismo. Minha opção é por uma pedagogia livre para a liberdade, brigando contra a concepção autoritária de Estado, de sociedade. (FREIRE, 1998 apud PASSETI 1998, p.99).

6.1 Uma pedagogia que toque e faça surgir novas ideias

Deste modo, pensei como levar uma pedagogia nova, ou talvez uma pedagogia que toque, que faça surgir novos ideais, novas posturas, que revele novos comportamentos, de maneira que façam pensar e que, deste pensar, logo venha o agir, o fazer, como resultado da pedagogia desafiadora. A educação atual necessita se desprender das amarras de um autoritarismo que se perpetuou historicamente, que destruiu inúmeras perspectivas e histórias de vida, sendo regido principalmente, por interesses econômicos de grandes corporações mundiais, as quais são donas de todo poder econômico e político no mundo. A qual, por sua vez, dita de forma imperiosa, através de propaganda em meios de comunicação, divulgação de usos e costumes e estilos de vida invejáveis e inalcançáveis, a venda de falsos e mirabolantes sonhos, dando a sensação de prazer infinito para os jovens. Muitas dessas corporações chegaram a influenciar diretamente o desenvolvimento de nações, em suas organizações através de “patrocínios” de ditaduras, e venda de modelos

44 educacionais em instituições de ensino no mundo todo. Como exemplo, temos o fordismo, o taylorismo10, entre outras crenças e metodologias. Por isso, é importante colocar em contato a realidade social o olhar dos educandos, para que seja retirada a alienação do próprio eu, para que eles sejam narradores de si mesmos, de sua história. Para que tenham consciência de estarem vivos, de serem capazes, de terem claro para si como podem mudar a própria realidade e a de sua comunidade, que sejam incentivados, no plano ético construtivo de sua personalidade humana. Morin ensina: A ética não poderia ser ensinada por meio de lições de moral. Deve formar-se nas mentes com base na consciência de que o humano é, ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade, parte da espécie. Carregamos em nós esta tripla realidade. Desse modo, todo desenvolvimento verdadeiramente humano deve compreender o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e da consciência de pertencer à espécie humana. (MORIN, 1921, p. 17)

Dessa forma, sendo respeitado seu eu, em um meio social, e tendo certeza de que estes educandos fazem parte de um todo amplo e universal, que são sujeitos presentes, humanos e orgânicos, capazes de pensar, agir e modificar seu meio, é preciso pensar que papel a música deve desempenhar para contribuir com a formação destes futuros músicos, professores, advogados, médicos, professores. Destaca-se, neste momento a importância da cena musical do cotidiano. Assim, Souza (2008) nos convence de que “a perspectiva dessas teorias analisa o sujeito imerso e envolvido numa teia de relações presentes na realidade histórica prenhe de significações culturais” (SOUZA, 2008, p.7), realidade que é imersa de subjetividade, e que influencia o mesmo sujeito na tomada de decisões, na maneira como irá aprender música e adquirir seu conhecimento. Existe aprendizagem através das vivências, e ela pode se dar, conforme a autora, através de experiências que realizamos no mundo, pois a vida é um palco onde acontece a transmissão e recepção musical que se transformam também em práticas educacionais e socioculturais. Destaca-se, neste olhar para a vida, o cotidiano. Por se tratar de uma realidade diferente, é necessário analisar diferentemente as situações, com campos epistemológicos mais desafiadores. São pesquisas que remetem o pesquisador a uma busca incessante de

10

Seguindo os modelos Taylorista e Fordista a escola passou a fragmentar o conhecimento por campos de saber de acordo com os interesses econômicos e reduzir o tempo de escolarização para atender a demanda crescente do mercado. Tal modelo reproduzira exatamente aquele realizado na fábrica onde são seguidas sequências rígidas de conteúdo, modelos padrões de ensino, respostas padrões, controle por parte do professor e a divisão da teoria e prática, onde primeiro aprende-se os conteúdos e depois parte-se para a repetição dos exercícios na prática.

45 dados, justificativas, metodologias coerentes, pois, muitas vezes, o cotidiano, o saber informal não é aceito como conhecimento. Dessa forma, Souza (2008) justifica:

Privilegiando as abordagens qualitativas, os estudos buscam compreender como as pessoas dão sentido às músicas que ouvem e “vêem” no dia-a-dia e que, de certa forma, lhes oferecem um sentido para si próprias. Nesse tipo de pesquisa, o levantamento de dados empíricos é trabalhoso não apenas porque se levantam indicadores descritivos de um aspecto pedagógico-musical, mas também porque se pretende descobrir correlações entre diversos fatos objetivos. (SOUZA, 2008, p.8)

Pensando nos fatos objetivos do cotidiano, nossa visão se estende para a parte objetiva do fato, enfatizando uma leitura filosófica, sociológica, política e educacional do mesmo. O desafio é como trabalhar cenas musicais do cotidiano com os educandos, sendo que estamos realizando uma aula de música com bandas de música, pensando que tal fato pode ajudar na construção do conhecimento e que isto possa ter alguma relevância social.

6.2 As Cenas Musicais do Cotidiano como Forma de Arte

Segundo Aurélio (1993, p.47), a arte é a capacidade que tem o homem de, dominando a matéria, pôr em prática uma ideia. Artes plásticas: As que se manifestam por meio de elementos visuais e táteis, reproduzindo formas da natureza ou realizando formas imaginárias, belas artes. Outra definição de arte pode ser encontrada em Coli (1995, p. 12), que a “arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o discurso, o local, as atitudes de admiração, etc.”. Hühne (2006) esclarece que as atividades artísticas estão intrinsecamente ligadas à criatividade. Afirma que “a criatividade é um poder estético que revela a própria estrutura humana como produtiva, à medida que o homem tem de criar os meios para se orientar a cada instante na sua relação, eminentemente temporal, com o mundo” (HÜHNE, 2006, p.119). Dessa forma, quando o homem faz arte, dá vazão ao pensamento, que contém suas impressões sobre a realidade vista. Percebe-se a importância do papel da arte para o homem. Muitas obras de arte não são aceitas por não serem compreendidas. Ao revelar a cena do Invisível Social Cantando11, por exemplo, algumas pessoas tiveram visão preconceituosa, ao passo que outras se mostraram mais atentas ao sentido inscrito e subentendido na obra. Hühne (2006) expõe que muitas obras de arte não são aceitas porque são “muitas vezes, 11

Esta cena será descrita posteriormente.

46 associadas ou excluídas da vida social por forças das conjunturas políticas, mas embora sujeitos à ideologia, ainda assim, muitas obras se mostram eminentemente criativas” (HÜHNE, 2006, p.119). Para muitos, talvez as cenas não possam ser consideradas arte. Quando penso em levar para a sala de aula cenas de pessoas marginalizadas realizando música, no meu papel de fruidor e ser criativo, tenciono que reflitam sobre a empatia nas questões sociais, no envolvimento político dos educandos com a sua realidade e a de outros seres humanos iguais a eles. As cenas que mostro são fenômenos que podem oferecer um deleite, uma apreciação, são fenômenos estéticos que estão presentes no mundo e, como tal, carregados de sentido, estão abertos à imaginação de todos. Isto se apoia na visão de Hühne (2006) que afirma

que o homem como fruidor e ser criativo é aquele que sente, participa, e oferece a coisa criada. Seu mundo pode e passa a ser ocasião permanente de deleite e de choque à medida que os objetos criados aparecem como fenômenos estéticos abertos à imaginação do outro. Num banco de uma praça é possível fazer um conjunto de experiências estéticas e sociais, desde a contemplação de um lindo chafariz, de um belo verde gramado, da dança de pássaros e borboletas, ou sorrir ao ver os jogos de uma criança com os pombos. Posso ficar neste nível de gozo e vivência, recriando imagens dentro de mim, sem nada produzir. Se sou artista, posso esperar a hora mais amadurecida para trabalhar e deixar irromper algo que foi se metamorfoseando e quer ser trabalhado para ser obra de arte. O comportamento do artista envolve um processo de seleção, desconstrução, ideação, reconstrução. (HÜHNE, 2006, p.120)

Cabe aqui um desafio, a abordagem das cenas musicais como obra de arte: a análise como fonte de aprendizado informal. Pressupõe o abandono de preconceitos e pragmatismos. Requer um olhar sociológico, uma análise semiótica que considere todas as faces e representações que surgem dessas cenas. Caramella (1998, p. 24), em seu estudo sobre arte, questiona: “se toda a arte se reduz à mera contemplação da ideia de belo e à repetição de uma verdade formal imutável, perdendo assim seu caráter experimental, como se produziriam novas informações, novos procedimentos artísticos?” Existiria um fatalismo científico cruel, ao se pensar que a verdade já se esgotou na contemplação do belo e dentro de uma verdade formal imutável apenas. O caráter experimental da arte é um caminho para que se possa “crear”. As cenas musicais se enquadram também numa espécie de arte experimental, são uma forma “creativa” de encontrar indícios de arte em qualquer local. Segundo Rohden(1976), este “crear” seria a forma mais pura de um processo de invenção:

47 crear designa um novo início, a transição do Universal para o individual, ao passo que criar é apenas continuação, a transição de um individual para outro individual. Deus é o Creador do universo – o fazendeiro é um criador de gado. Um verdadeiro artista é um gênio creador – embora não seja talvez um criador. A conhecida lei de Lavoisier “na natureza nada se crea, nada se aniquila, tudo se transforma”, está certa nesta grafia; mas se escrevemos “nada se cria”, resulta totalmente falsa. (ROHDEN,1976, p.11)

Esta maneira de ver a música combinada aos fatos cotidianos como obra de arte é possível. Duchamp (s/a, apud ÁVILA, 2007), um famoso artista francês, se opôs a uma maneira de se pensar arte. Buscou quebrar com o conceito de que arte seria aquilo que apenas agrada os olhos – uma espécie de admiração cega do belo, desafiar a ótica para a aceitação do novo:

De fato Duchamp tinha suas próprias questões, como o estudo dos problemas óticos. O estudo do olhar sobre a arte interessou muito a Duchamp, que se opunha àquilo que ele chamava de “arte retiniana”, ou seja, que agrada à vista, que foi feita para não incomodar, para satisfazer. Nesse sentido Duchamp o esforço de Duchamp era no sentido oposto, de levar o público a refletir a partir da confrontação com algo novo e inesperado. O objeto que era a obra de arte não tinha o propósito de ser alvo de uma contemplação, admiração, ele devia levar a uma reflexão, e essa reflexão era o objetivo da obra. (AVILA, 2007)12

Da mesma maneira, eclode a intenção de questionar se é só no teatro e auditórios que existe e se ouve música de “bom gosto” como obra prima de arte. Somente as obras canonizadas da história que podem ser consideradas arte? Da mesma forma que Duchamp se opõe ao que chamou de “arte retiniana”, posso dizer que me oponho a uma espécie de “arte retiniana do ouvido”, ou seja, que simplesmente agrada ao ouvido, pela beleza, pela forma, pelo Status do compositor. Se assim for, corre-se o risco da criatividade artístico-musical encerrar sua trajetória. Estaria pregando, de modo cruel, o fim do direito ao fazer arte, pois esta está fortemente ligada ao ato de “crear”. Hühne (2006) confirma essa ideia, quando relaciona que a estética, ao ser estudada através da experiência e dos fenômenos estéticos, faz com que aconteça uma dimensão criativa do homem. Negar a existência de arte dentro da obra de arte A FONTE, de Duchamp, por exemplo, seria ao mesmo tempo negar essa dimensão criativa ou “creativa” do artista. Da mesma forma, seria quase que um “preconceito acadêmico-científico” não considerar a arte dentro das cenas musicais que provém, assim como na obra de Duchamp. 12

AVILA, Roberta. A influência de Marcel Duchamp na Arte Contemporânea. Disponível em: . Acesso em 12 abr.2012.

48 Depois destes argumentos, seríamos capazes de pensar que apenas o belo pode ser considerado arte? De onde provêm estas posições e modelos? Por que para a maioria das pessoas considera arte apenas aquilo que é belo ou que dá prazer? Estas questões são respondidas em parte por Danto (2008), que revela em sua pesquisa como o gosto sobre a égide da estética do século 18 influenciou a maneira de se pensar arte ao longo do tempo:

É bem verdade que o gosto, como conceito normativo, foi a categoria reguladora do século dezoito, quando a disciplina da Estética era dominante. O gosto era essencialmente conectado com o conceito de prazer, e o próprio prazer era entendido como uma sensação subordinada a graus de refinamento. Havia padrões do gosto e, com efeito, um curriculum de educação estética. O gosto não era meramente a preferência desta ou daquela pessoa diante das mesmas coisas, mas o que qualquer pessoa, indistintamente, deveria preferir. Ora, o que as pessoas realmente preferem varia de indivíduo para indivíduo, mas o que elas devem preferir é idealmente uma questão de consenso universal. (DANTO 2000, p. 15)

Esse consenso universal de padrão gosto, subordinado a graus elevados de refinamento, é quebrado por Duchamp, que foi o precursor do Dadaísmo. É com a mesma ideia que apresentamos as cenas musicais, como forma de quebra do padrão imposto também para a área da música e de todo conceito criado antes com os “padrões” estéticos do século passado. De certa forma, as cenas buscam sair de um “consenso Universal” para colocar em discussão outro “sensos” a serem percebidos e assimilados também dentro de um processo de “creação” artística. Busquei então, novas maneiras de abordar arte, com a inserção das cenas musicais do cotidiano nas aulas de música. Talvez, conforme Danto (2008) coloca, elas possam causar num sentido estético do gosto, o que Kant chama de repulsa. Mas o que se pretende é buscar um novo tipo de ouvinte, um espectador mais atento, que aprenda a assimilar aquilo que lhe traz repúdio, como possibilidade de um fazer artístico.

O repulsivo, curiosamente, foi considerado por Kant - como modalidade da feiúra refratário ao tipo de prazer que até mesmo as coisas menos aprazíveis como “fúrias, doenças e devastações da guerra” são capazes de suscitar quando representadas como belas por obras de arte. “Aquilo que suscita repulsa/ asco[Ekel]”, diz Kant, “não pode ser representado em conformidade com a natureza sem destruir todo o prazer estético”3. A representação de uma coisa ou substância repulsiva tem sobre nós o mesmo efeito que a apresentação da própria coisa ou substância repulsiva teria. Visto que o propósito da arte deve ser a produção de prazer (o que Duchamp mais tarde descreveria como “prazer retiniano”) no espectador, somente o mais perverso dos artistas se disporia a representar o repulsivo, o qual não pode “em conformidade com a natureza” suscitar prazer em espectadores normais. Certamente, há os que extraem um prazer perverso ao experimentar o que normalmente se considera repugnante: aqueles que têm, podemos assim dizer, “gostos especiais”. (DANTO, 2008, p. 16)

49

Seria contraditório dizer que as cenas do cotidiano oferecidas como arte aos educandos não estão nos holofotes da mídia e nem fazendo parte das discussões acadêmicas, que causam repulsa ou expressam a feiura artística. A fuga do debate político, social e cultural é que deveria causar repulsa, porque a sociedade não quer discutir a cura das próprias feridas. Com a falta de vontade, colocam-se as cenas em evidência, como forma de estranhamento, de desafio por um novo olhar talvez, que vá ao encontro com o que a humanidade precisa para melhorar a própria vida. Pode-se também acreditar que:

O dadaísmo não era exclusivamente um movimento artístico, literário, musical, político ou filosófico. Na realidade era todos eles, e ao mesmo tempo o oposto: antiartistico, provocativamente literário, divertidamente musical, radicalmente político mas anti-parlamentar, e por vezes simplesmente infantil. Muitos dos dadaístas orientavam os seus duplos talentos adequadamente. Como artistas executantes, não eram menos empenhados ou inventivos do que em relação às técnicas visuais. (ELGER, 2004, p.6)13

Esta forma de existir no mundo sem negar que somos parte dele, educandos cidadãos, com opinião político-cultural, incentivados a pensar, que tenham olhos para a realidade, é o que eu acredito enquanto educador. Por isso, há o interesse por questões como as cenas musicais, explorando a partir delas o sentido artístico e educacional como meio de aprendizagem para os integrantes das bandas de música com que trabalho nas escolas.

13

Fonte: Revista Taschen – Dadaísmo – Dietmar Elger - 2004

50

7. METODOLOGIA

A presente pesquisa pode ser classificada, segundo a área de conhecimento, como pertencente às Ciências Humanas. Segundo sua finalidade, pode-se classificar ainda como pesquisa básica estratégica (Gil, 2010)14. Quanto à forma de abordagem, como uma pesquisa Qualitativa. Rodrigues (2009) revela que a abordagem qualitativa é descritiva, que as informações obtidas não podem ser quantificáveis. Além disto, que os dados obtidos são analisados indutivamente, sendo que a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são básicos no procedimento de pesquisa qualitativa. O procedimento de pesquisa acima referido pode ser entendido, segundo BortoniRicardo (2008), quando pondera que a pesquisa qualitativa se insere dentro de um paradigma interpretativista da ciência. A pesquisa qualitativa está dentro deste paradigma e compreende um conjunto de métodos e práticas empregados na pesquisa do tipo qualitativa.

Segundo o paradigma interpretativista, surgido como alternativa ao positivismo, não há como observar o mundo independentemente das práticas sociais e significados vigentes. Ademais, e principalmente, a capacidade de compreensão do observador está enraizada em seus próprios significados, pois ele (ou ela) não é um relator passivo, mas um agente ativo. (BORTONI-RICARDO 2008, p. 32)

7.1 Ponto de vista interpretativo

Pode-se afirmar ainda que as pesquisas qualitativas necessitam de observação intensiva e de longo tempo num ambiente natural, o registro preciso e detalhado do que acontece no ambiente, a interpretação e análise de dados utilizando descrições e narrativas, entre outras. Elas podem ser etnográfica, naturalista, interpretativa, fenomenológica, pesquisaparticipante e pesquisa-ação. A abordagem da presente pesquisa encontra-se delimitada a uma pesquisa qualitativa interpretativa.

14

Pesquisa Básica Estratégica. Pesquisas voltadas à aquisição de conhecimentos direcionados a amplas áreas, com vistas à solução de reconhecidos problemas práticos. (GIL, 2010, p27).

51 A classificação quanto aos objetivos tem como caráter de ser uma analítica15 descritiva e interpretativa. Sabe-se que, através da pesquisa descritiva, procura-se observar, registrar, analisar e correlacionar fenômenos (variáveis) ou fatos, de forma que não sejam manipulados. Estuda-se por este viés a constância com que os fenômenos acontecem, as suas correlações e características no meio natural ou social. 16 Para Severino (2007), existe a possibilidade da descoberta de verdades através da interpretação, sendo que se coloca a visão de quem pesquisa em diálogo com a dos autores: Interpretar é tomar uma posição própria a respeito das idéias enunciadas, é superar a estrita mensagem do texto, é ler nas entrelinhas, é forçar o autor a um diálogo, é explorar toda a fecundidade das idéias expostas, é cotejá-las com outras, enfim, é dialogar com o autor (SEVERINO, 2007, p. 59).

Neste sentido, é possível entender que o texto, por si só, não trará a mensagem necessária, o entendimento só acontece quando se lê o que está subentendido, como fala o autor, nas entrelinhas do texto. Dessa forma, ao emitirmos uma opinião com o que foi escrito, estaremos utilizando a dialética interpretativista, ou seja, relacionando nossas ideias com outras, de forma que isto possa confrontar perceber o que há de comum e também entender o que há de diferente nas opiniões de ambos. Na análise de meus dilemas (Zabalza, 2004) como professor, busco compreender melhor minha própria prática, e, também, por empatia, auxiliar a reflexão de outros professores que se encontram em situações semelhantes as minhas. Estou falando em formação de professores na medida em que falo de minha própria formação enquanto professor e da possibilidade de empatia de outros professores com meus processos. É possível dizer que acontece dentro desta pesquisa uma subcategoria metodológica que é a Análise de trabalho, sendo que é o tipo de pesquisa que procura determinar a natureza de um trabalho particular e os tipos de treinamento, preparação e competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) necessárias para o sucesso e aprimoramento do trabalho profissional. Quando paro para refletir sobre meus escritos nos diários de aula, percebo que estou me preocupando com minha atuação profissional. Adoto uma postura político-educativo, sendo que pretendo formar cidadãos, e que as apreciações das cenas musicais do cotidiano são 15

As pesquisas analíticas envolvem o estudo e avaliação aprofundados de informações disponíveis na tentativa de explicar o contexto de um fenômeno. Elas podem ser categorizadas em histórica, filosófica, revisão e meta-análise. Fonte: idem a nota 27. 16

Disponível em:. Acesso em: 30 abr. 2012.

52 também um meio de se fazer enxergar a realidade da vida. Este enxergar tem aqui o sentido de um amadurecimento intelectual, humano, social e político dos educandos, para que sejam mais conscientes e socialmente mais interessados.

7.2 Procedimentos Metodológicos

Realizei a pesquisa a partir da análise de quinze diários de aula. Optei pelas narrativas de si, onde redigi os escritos que foram utilizadas como ferramentas diários de aula. Através destes diários foram identificados dilemas e situações que envolvem o trabalho docente. As narrativas de si, segundo Abreu (2011), surgem em uma época em que houve a necessidade de uma maior compreensão das subjetividades dos seres humanos em contraposição a uma história coletiva social, onde o indivíduo tem a necessidade de se impor. De certa forma, a autora considera tal fato como sendo um posicionamento político e ideológico, talvez, uma nova possibilidade para esses indivíduos:

a história de vida em formação aparece em fins dos anos de 1970, no contexto das transformações econômicas e sociais, mas emergem, também, dos questionamentos políticos e ideológicos que afetam as sociedades ocidentais. A corrente das histórias de vida em formação desenvolve-se no momento em que os indivíduos têm, cada vez mais, dificuldades para encontrar o seu lugar na história coletiva. O processo de formação pelas histórias de vida permite que sejam reconhecidos os saberes subjetivos adquiridos na experiência e nas relações sociais. (ABREU, 2011, p.47)

O problema de pesquisa emergiu através da análise destes diários. A partir disto, foi necessário reposicionar minha abordagem de ensino. As estratégias das aulas tiveram que ser mudadas, e passei a ter aulas de apreciação. Os caminhos metodológicos utilizados nesta pesquisa são determinados pela utilização de diários de aula, em que foram registrados diversos momentos relevantes das minhas aulas. Esses diários facilitaram anotações e relatos importantes da aula, sendo que foi possível também elaborar uma análise mais consciente dos dados obtidos. Zabalza (2004) traz o conceito de que os diários de aula “são documentos em que professores e professoras anotam suas impressões sobre o que vai acontecendo em suas aulas” (ZABALZA, 2004, p.13). Além disto, eles sugerem uma narração. Nesta narração, o profissional irá contar de forma representativa, redigindo suas ações profissionais diárias, semanais ou mensais.

53 Utiliza-se como enfoque metodológico e conduz os estudos em diversos campos de pesquisa. Zabalza (2004) afirma ainda que “do ponto de vista metodológico, os “diários” fazem parte de enfoques ou linhas de pesquisa baseados em “documentos pessoais” ou “narrações autobiográficas” (ZABALZA, 2004, p.14). Essa corrente, de orientação basicamente qualitativa foi adquirindo um grande relevo na pesquisa educativa dos últimos anos. O autor nos esclarece que modalidades dos diários variam, sendo que podem ser empregados enfoque jornalístico, analítico, avaliativo, etnográfico, terapêutico, reflexivo, introspectivo e criativo poético (ZABALZA, 2004, p.15). Segundo o autor, o diário oferece a “riqueza informativa” e a “sistematicidade das observações recolhidas”, viabilizando analisar como os fatos vão evoluindo. Além desta ferramenta de coleta de dados, foram efetuadas diversas observações e filmagens de cenas musicais do cotidiano, que serviram para discussão dos temas sociais. Assim foi possível dialogar com os autores do cotidiano, Heller (1993), Souza (2008), Louro (2008), entre outros, em especial os que estudam a educação musical através do viés das narrativas de si, da história oral e ciência do cotidiano. Essas visões facilitam que aconteça a valorização do ser humano e a inclusão de suas opiniões dentro de um coletivo social.

8. DADOS: Análise / Resultados

8.1 Apreciação musical x aprendizados musicais nas bandas

A apreciação foi uma ferramenta de trabalho muito importante na realização das atividades musicais com as bandas. Através delas foram trabalhados leitura, técnica instrumental, percepção, criatividade, prática de conjunto. Algumas aulas que desenvolveram os assuntos também de forma musical. Durante esta aula, com um data-show instalado, notebook e internet wireless ligado foi realizado um trabalho de escuta coletiva. A proposta foi a seguinte: todos os integrantes da banda iriam escolher uma música no Youtube, site que roda vídeos de todos os tipos e, com a ajuda do grupo, todos iriam tentar esboçar a forma musical daquelas obras. Em um trecho da carta de número quatro, são identificados os registros da aula com os educandos das bandas:

54 Vou relatar mais uma aula de música. Com a banda da escola Tomé de Souza. No dia não tinha como tocar na rua. Fizemos aula na sala de aula. novamente utilizei a estratégia da apreciação pra trabalhar forma musical. Eu queria que eles entendessem o básico do Rondó, que aparece em todas as canções quase que corriqueiramente. JAIR (diário de Aula 4, 2011)

Previamente, eu havia explicado aos educandos sobre a forma do Rondó e mostrei sendo que esta forma tem o formato ABACA básico e que o A era como se fosse o refrão da música e as demais letras, como se fossem os versos. Mais adiante, eles teriam que identificar se as músicas da Youtube que rodariam na caixa de som seriam parecidas. Pedi então para que desenhassem símbolos como quadrados, círculos, estrelas etc, para cada parte das músicas que escolheram e os educandos partiram para a busca dos vídeos. Escolhiam de forma aleatória e compartilhavam suas experiências musicais uns com os outros. O trecho do diário de aula a seguir mostra como isto aconteceu:

Deixei os educandos escolherem. E carregava os vídeos no youtube e todos ouviam um a música do outro. Bem interessante. Saíram críticas, risos, coisas interessantes de adolescente. Enquanto íamos escutando eu perguntava o que era isso ou aquilo, ou tal coisa da música, detalhes que eles não percebiam, como frases, motivos e outras coisas que marcavam as músicas. Foi muito legal, eles escolherem as próprias canções. Saiu Lady Gaga, Luan Santana, Beatles, Bandas da cidade de Ijuí, Guns N’ Roses, OASIS, CPM 22. Foi muito legal eles poderem mostrar cada um o seu gosto individual para os colegas... No final alguns educandos escreveram a forma de cada música que foi ouvida. JAIR (diário de Aula 4, 2011)

Essa atividade interferiu no relacionamento entre o grupo. Os educandos acabaram conhecendo-se musicalmente, fato que manteve o grupo em uma maior sintonia, numa maior harmonia, e notei mais compreensão entre eles. Alguns pareciam apreciar rock; outros, sertanejo; outros, hip-hop, música eletrônica, entre outras. Percebi então que são influenciados pelo gênero de música que apreciam, até mesmo na maneira com que se vestem. A importância desta atividade de apreciação foi também conhecer musicalmente meus educandos. No final da atividade conseguimos destacar o aprendizado do Rondó, que também tem a mesma estrutura de outras canções populares, sendo repetida sempre uma parte a do refrão. O resultado final foi muito interessante. Abaixo será exemplificado em uma tabela como foi a apreciação de um integrante da banda. Os símbolos representam as partes da música, como introdução, verso, refrão, solo, refrão e solo.

55 Ex. 6: MÚSICA: Sweet Child´O Mine – Guns N’ Roses

Representação Simbológica das Partes das Músicas escolhidas pelos Educandos Escritas em Figuras e Formas.

Forma Resultante Intro A´

Intro

Estrela Verso 1

B Guitarra A

Refrão

Circulo Intro/solo

Intro A´ Triângulo Circulado

Verso 2 C Cubo Tridimensional Solo Ponte A´´ Meia Lua Verso 3 D Cruz

Esta tabela exemplifica como a apreciação ajudou os alunos a desenvolverem o aprendizado sobre forma musical. Ao mesmo tempo estavam identificando mentalmente de que forma parecia cada parte da música. Isto remete a um grau profundo de criatividade. Acredito que, neste ponto, a apreciação conseguiu instigar a criatividade e a imaginação dos educandos das bandas. Pode-se dizer também que os educandos conheceram a música de maneira mais profunda. Isto resultou de modo prático, em uma postura mais madura dos educandos, pois quando executávamos as músicas eles começaram a perceber as partes nelas contidas, chegando a reconhecer coisas difíceis como pequenos trechos de transição que, no dia da aula de apreciação, chamamos de ponte. Em um dos ensaios um dos educandos colocou a ideia de que o trecho tocado pela corneta entre o ritmo quatro e cinco era a ponte. Eu dialoguei com ele dizendo que fazia muito sentido, e que tinha valido a pena ter realizado as aulas de apreciação musical, que interferiram diretamente no trabalho com a banda na prática do ensaio geral.

56 8.2 A apreciação x Interpretação e Expressão Musical.

Outra importante atividade de apreciação aconteceu quando levei um vídeo do Rowan Atkinson, popularmente conhecido como Mr. Bean. Neste vídeo17, o personagem toca a Moonlight sonata de Beethoven em um piano invisível. Apesar de não estar tocando, ele representa muito bem expressivamente as partes da música. Esta começa bem lenta e sentimental, é um tom menor. Durante a execução virtual do personagem, alguns educandos começaram a perceber o tom dramático e de tristeza do trecho musical, começaram a brincar naquele momento, como se estivessem chorando. Naquele momento, afirmei que tinham entendido a proposta. Seguimos com o vídeo, e havia um trecho que era tocado com gestos de raiva e logo de alegria. De repente, começa um trecho muito tenso, onde o personagem representava com caricaturas de angústia e choro. Os educandos estavam muito atentos neste trecho, pareciam hipnotizados. Comentavam a maneira de Mr. Bean fazia com os dedos, dando-lhes a impressão que esse estava tocando de verdade, uma vez que sua expressão era muito parecida com a de um pianista de verdade. Em outro momento a música vai para um andamento muito rápido. Acontece também contraponto imitativo e execução de grandes escalas com muito virtuosismo. Foi comentado que a música mudou de andamento, ficou muito rápida, e o personagem caricaturizou bem este trecho, com cara de pavor e esforço grandioso. O contraponto imitativo foi representado de forma que o personagem se expressava como se estivesse cantando um trecho e, logo em seguida, arremedando o mesmo trecho em outra região do piano conforme representado abaixo. Ex. 7:

Rowan Atkinson, o Mr. Bean arremedando e expressando visualmente o Contraponto Imitativo.18

17 18

Site do Video: http://www.youtube.com/watch?v=7v5BCX6bkLQ – Mr. Bean The Piano Player Site do Video: http://www.youtube.com/watch?v=7v5BCX6bkLQ – Mr. Bean The Piano Player

57 Em outro momento foi possível flagrar um dos educandos imitando o personagem do vídeo. Isto mostra a interação entre a música do Beethoven e a situação de apreciação.

Ex. 8:

Foto de Educando de camisa listrada interage com o Vídeo mexendo rapidamente os braços como Mr.Bean.

Este exemplo deixou muito claro como uma atividade de apreciação pode ser realizada de maneira interessante em uma atividade de educação musical e, durante várias oportunidades, as realizamos. O benefício desta atividade foi conseguir na banda realizar atividades onde eles podiam prestar mais atenção em expressões e dinâmicas musicais. Por exemplo, trabalhamos um ritmo de forma piano, forte e fortíssimo. Foi interessante e eles entenderam muito bem o propósito desta aula de apreciação musical. Mais uma vez, foi possível perceber os benefícios das aulas de apreciação musical, pois ajudaram a elevar os conhecimentos musicais dos educandos e na parte de prática de conjunto, ou seja, no ensaio coletivo da banda. Destaca-se novamente a relação entre as aulas de apreciação e os ensaios das bandas, pois realizei estas atividades com todas as bandas. No final da aula fiz uma pergunta geral para o grupo: O que é expressão em música? Procurei várias respostas deles. Perguntei o que Mr. Bean estava fazendo no vídeo e um deles, fazendo os mesmos gestos com os dedos, respondeu que “o Mr. Bean estava expressando sentimentos no piano”. Outro educando respondeu que o ator tocava, ficava imitando e gesticulando no piano. Quando o questionei sobre expressão em música, respondeu que “é fazer a expressão da música, se está rápida a música o cara deve se expressar tipo um louco, e se está calma o intérprete deve fazer como se tivesse sono”

58 Encerramos a aula após alguns educandos darem suas contribuições e opiniões. O aprendizado deste conteúdo musical ocorreu de forma muito espontânea, através da expressividade do humorista Rowan Atkinson, o Mr. Bean. A aula de apreciação atendeu o propósito e eu consegui atingir mais um objetivo relevante.

8.3 A apreciação x prática de conjunto e técnica instrumental

Através da apreciação de outros vídeos de performances de bandas de música foi possível também realizar algumas práticas diferenciadas em conjunto. Foram aprendidas técnicas de passagens rítmicas entre fileiras da banda, permitindo observar o vídeo USC Drumline – Orgasm19. Nesta performance, ocorreu o trabalho de dinâmicas musicais, passagens laterais de ritmo, sequências, crescendos e descrescendos musicais. O aspecto visual também foi desenvolvido, pois há diversas ações performáticas com as baquetas sendo que são giradas, trocadas de mãos entre outras coreografias. A banda atente diversos aspectos pedidos pelo regente. É feito um jogo de volume, explorando o forte e o fraco. Neste sentido, o forte passa por fileiras, saindo da direita para a esquerda, dando ideia de estereofonia. De forma criativa, há a alternância de ritmos e utilização dos pratos, sendo que alguns músicos tocam dois instrumentos ao mesmo tempo, como é o caso de alguns que tocam o quintotom e quadritom. Assim, os educandos tiveram mais uma oportunidade de exercitarem a performance de maneira conjunta, pois os vídeos apreciados trouxeram mais conhecimentos de performance e técnicas musicais. Em uma tarde, no meio do ensaio, combinei com o grupo que iríamos fazer igual os vídeos que tínhamos assistido. Trabalharíamos o forte e o fraco. Eu me utilizei de uma baliza apenas sem o apito. Fizemos um ensaio no qual eu me espelhei em idéias semelhantes às que tínhamos apreciado anteriormente nos vídeos da banda USC Drumm Line. No vídeo foi visto que o maestro, ao levantar a mão, era atendido pela banda tendo como resposta o Fortíssimo, que em música corresponde a execução de mais volume sonoro nos instrumentos. Se ele baixava a mão, a banda respondia com menos volume sonoro, que é o Piano em música.

19

Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=r3aOEy3-zrM – USC Drum Line – Orgasm.

59 Utilizei ritmos que as bandas já tocavam e executavam linearmente, sem dinâmicas e expressões. Então, no decorrer do ensaio eu sugeri que fossem alternados bastante a dinâmica e expressão rítmicas. Juntamente com isto, sugeri que executassem o fortíssimo e o piano musicais durante a performance. O resultado foi uma performance totalmente diferente da que o grupo havia conseguido anteriormente. Não parecia mais aquele ritmo quadrado e constante que eram acostumados a tocar. Na minha percepção de regente informado por uma escuta construída ao longo da minha história de vida, o toque militar se transformou num toque moderno e sofisticado. A performance musical do vídeo assistido aconteceu em um local público. Portanto, era uma cena musical do cotidiano. Pode-se afirmar que essa cena do cotidiano musical da banda USC ajudou na construção de uma prática coletiva diferente na banda de música da escola, pois foi aprendida a técnica da estereofonia, onde as fileiras tocam de um lado ao outro, dando também uma noção de movimentação do som de forma circular. Percebe-se como a apreciação foi importante para o desenvolvimento das atividades práticas, e também que esta cena do cotidiano da banda USC serviu de recurso, não só de apreciação como modelo importante a ser reproduzido. Esta técnica acrescentou uma nova roupagem ao ritmo em que foi testada.

Ex. 9:

Fortíssimo – baliza no alto

Pianíssimo – baliza em baixo

Forte – baliza no meio

Novamente, a apreciação parece ser um fator diferencial na performance da banda. Foi possível retirar a quadratura do ritmo tradicional militar que eles executavam. Aos poucos, foi desconstruída a ideia condicionada por uma nova possibilidade de execução deste ritmo, que ficou bastante diferente com o acréscimo destas técnicas instrumentais.

60 Não eram apenas os ritmos e os comandos herdados de instrutores com visões militaristas que eu deseja problematizar, mas também a visão de mundo dos educandos. Uma vez que eles iriam tocar, e muitas vezes, ensaiar na rua, desejei que a sua visão sobre o que ocorre nas ruas das cidades fosse ampliada. Neste sentido, trouxe às aulas de apreciação cenas do cotidiano com pessoas em situação de risco social.

8.4 Apreciação musical x Formação da cidadania

Como eu iria tratar de um assunto muito sério que é a miséria, a mendicância, as condições sub-humanas de vida, o desrespeito aos direitos humanos com os educandos da banda de música, eu tive que ambientá-los, ou seja, preparar o terreno para o tema. Assim, o que pensei foi tratar sobre a questão das refeições diárias que garantem a saúde e sobrevivência dos indivíduos. Eu quis chegar ao fato de que a grande maioria das pessoas no Brasil, e também na cidade de Ijuí, passam por situações de miséria, fome e desnutrição. Segundo Maciel (2004), a mendicância nas ruas é um dos temas em expansão, devido também ao contexto político histórico do país:

No Brasil, os estudos sobre população de rua têm se ampliado desde os anos 90. Tais pesquisas apresentam diferenças sobre tal população e indicam a diversidade dos que vivem nas e das ruas. São mendigos, catadores de lixo, flanelinhas, etc. Eles retratam o aumento da pobreza resultante do desmoronamento do Estado na Era do Neoliberalismo e das mudanças no mundo do trabalho. No país, a inexistência de redes eficazes de proteção social, agravam ainda mais tal problemática, visto que tais políticas se caracterizam historicamente pela seletividade e descontinuidade. (MACIEL, 2004, p.8)

Devido a tais problemáticas sociais, pensei na possibilidade transportar os alunos mentalmente para essa reflexão dos assuntos cotidianos, para que fizessem a ligação de suas lembranças e memórias com as coisas que iriam ver nos vídeos que eu selecionei para que apreciassem. Através de perguntas eu os conduzia a uma linha de raciocínio, o qual deveria destacar as questões sociais relevantes para aquele encontro educativo. Queria que eles refletissem e, principalmente, aprendessem a ter a empatia com a vida, com os seres humanos quebrando também os preconceitos.

61

Então elaborei algumas perguntas que eram chaves para o fechamento da atividade. Perguntei “quem aqui faz três refeições por dia, toma café, janta e almoça?” Um aluno respondeu: “eu só janto e almoço. A maioria levantou a mão confirmando que faziam as refeições. Então segui: “Muito bem”. Aí me dirigi a um educando e perguntei: “no almoço lá na tua casa o que tu come?”Ele responde: “Carne, arroz e bife, eu como uma comida boa. De “Restaurante”. Perguntei a um terceiro educando: “no café da manhã em tua casa o que tu come?” Respondeu então: “Eu como duas torradas”. Aí comentei: “Vocês devem estar se perguntando onde este professor maluco está querendo chegar com isto?”E continuei: “pessoal, nós somos abençoados por que a gente tem café da manhã, almoço e janta”. “Um educando entra na conversa ponderando que de vez em quando ainda fazia uma boquinha de tarde”. (Carta 15, 2012)

Como se pode ver, embora sejam de escola de bairro, a grande maioria não passa por dificuldades como as pessoas do vídeo que iriam ver. A situação destas pessoas, muitas vezes, se encaixa no que chamamos de anti-sociabilidade, onde as mesmas não têm dignidade, tendo uma vida insuportável, muitas vezes, esquecidos na multidão. Pensador (1993) descreve a situação de um mendigo através da canção “O Resto do Mundo”. Atinge artisticamente da forma mais dramática possível, narrando a história de um ser humano em condições sub-humanas de existência:

Eu queria morar numa favela. Eu queria morar numa favela. Eu queria morar numa favela! O meu sonho é morar numa favela... Eu me chamo de excluído como alguém me chamou, mas pode me chamar do que quiser seu doutor. Eu não tenho nome, eu não tenho identidade, eu não tenho nem certeza se eu sou gente de verdade! Eu não tenho nada, mas gostaria de ter. Aproveita seu doutor e dá um trocado pra eu comer! Eu gostaria de ter um pingo de orgulho! Mas isso é impossível pra quem come o entulho misturado com os ratos e com as baratas e com o papel higiênico usado nas latas de lixo! Eu vivo como um bicho! (ou pior que isso) Eu sou o resto. O resto do mundo eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo eu sou... eu não sou ninguém.20

O autor retrata uma condição de existência em que a última coisa que o personagem quer é morar numa favela, que já não é um dos melhores lugares. Mesmo assim, é melhor do que viver na tortura de ver os dias passarem sem as mínimas condições de sobrevivência. Esta é a realidade de inúmeras pessoas sobre o chão do nosso país. Desse modo, continuei tentando trazer a reflexão dos alunos para este contexto.

Aí entrei com mais uma pergunta chave para eles dizendo que a questão era para pensarem: “Será que todas as pessoas do nosso Brasil, tem a mesma benção que 20

PENSADOR, Gabriel. Gabriel O Pensador. Intérprete: Gabriel O pensador. In: Gabriel O pensador. [S.l.]: Sony Music Enterteinment, 1993. 1 CD. Faixa 10.

62 nós?” Todos Responderam:”NÃO”. Eu ponderei: “Café da manhã almoço e janta?”. Eles disseram: “NÃO”. Aí um aluno interfere levantando o dedo e dizendo assim: “Professor... Eu vi num DVD desses evangélicos, assim, lá na África, assim... aparece todos os ossos dele! Ele morre com fome”. Novamente perguntei: “Como é que a gente chama estas pessoas que morrem assim, sem ter o que comer?”. Responderam: “pobres. Mendigos”. ( carta 15, 2012).

Esta conversa possibilitou uma sensibilização com os educandos para a realidade social. As cenas musicais proporcionaram a reflexão e associação com outras situações trazidas pelos educandos. Este exemplo contribui em como pode ser levada a discussão de temas sociais para a sala de aula, e tornar a aula um momento de reflexão sobre os grupos sociais de risco. Maciel (1993) descreve inúmeros grupos sociais de risco em sua pesquisa, dizendo que era preciso definir quem eram estas pessoas que ele queria investigar:

Ou seja, como se diz nas ciências sociais, era preciso definir quem seriam os informantes: se homens e/ou mulheres; se velhos ou mesmo adolescentes. Ou ainda, se sozinhos(as) ou aqueles (as) acompanhados(as) de crianças pequenas; se acometidos de alguma doença exposta ou não; se visivelmente perturbados ou não; se aqueles(as) que propagam em voz alta sua miséria e rogam por ajuda ou aqueles(as) que falam com os olhos e gemem sem que sejam ouvidos, e, que de tão silenciosos e pouco percebidos, se encolhem nas calçadas e já não são vistos. Devo confessar que me compadeço dos que sofrem silenciosamente. Observei que, apesar das vicissitudes a que são expostos, têm um pudor que não se explica e uma postura que a ninguém afeta. Eles estão lá, mas parece que não querem ser vistos. Pedem, quando muito, com as mãos, porém, de modo tão discreto que não se caracteriza um pedido de socorro. Antes, para alguém desavisado, é um simples pedido sem muito valor ou importância. (MACIEL 1993, p.16)

A reflexão sobre o que foi ponderado pelo autor, permite pensar principalmente na questão de que estas pessoas que estão nas ruas não querem ser vistas, mas, ao mesmo tempo, discretamente, pedem a ajuda. Existem muitas pessoas que não se importam nem um pouco com a realidade social, nem com mendigos de rua. E muitas vezes têm atitudes preconceituosas mostrando-se indiferentes a todos estes problemas. Essa postura, indiferença, alienação, desumanidade é o que as cenas musicais coletadas e apreciadas tentarão combater. Busquei trabalhar com seriedade com os

educandos da banda de música em que atuo em Ijuí utilizando a ferramenta da apreciação musical.

63 8.5 Breve relato da apreciação dos vídeos

Os objetivos desta aula foram o desenvolvimento de uma atividade de apreciação de cenas musicais do cotidiano que continham, e, ao mesmo tempo, de música e situações sociais de risco. Os materiais utilizados formam dois vídeos que faziam ponte entre si. O primeiro se intitulava “Matei a formiguinha – Que dó” 21 e o segundo vídeo, produzido por mim, que tem o título de “Sou da Balada e Não Peço Arrego – (na voz de um invisível social)”22. Pensei que os dois vídeos poderiam dialogar um com o outro. O primeiro vídeo se tornou bastante conhecido na Internet, e trata de uma história vivida por dois irmãos gêmeos pequenos, sendo que um, o irmão A, estava chorando desesperadamente, pois o B tinha matado a formiguinha do A. Assim o irmão A pequeno desperta ingenuamente a curiosidade da sensibilidade, do apreço por um animalzinho tão pequeno como a “formiguinha”. A criança chora bastante e se queixa para a mãe que o irmão B matou a formiguinha e então, ele, em tom de desespero, sussurra: ai que dó. O outro irmão B parece que fica indiferente. Quando o pai pergunta a ele o que ele tinha feito com a formiguinha, ele responde eu “mati” (matei). O irmão A, suposto dono da formiga, se desespera e diz “Ai que dó, que dó que dó”. Através da inocência do irmão A, percebi um forte sentimento de “Dó”, que representava piedade, compaixão, por um animal tão pequeno. Por outro lado, tem o irmão B que não teve compaixão, mas demonstrou indiferença. Minha intenção era trabalhar estes valores com eles. Daí a relevância deste vídeo para a inserção do segundo vídeo, que iria tratar da situação difícil de um ser humano. Após essa escuta, partimos para uma discussão e uma reflexão.

Disse aos alunos: o vídeo parece ser engraçado mas aqui vai significar outra coisa. Essa formiga representa uma pessoa, um ser social. Digamos que essa formiga represente essa pessoa que não tem comida, ou aquela pessoa da África que o Cleverson comentou antes. (Aí reiterei que a criança B, havia matado a formiga sem pensar, sem entender o que ela fez) mas às vezes na vida real, às vezes se entende o que se faz. Por quê?(perguntei). As pessoas morrem por não ter alimentação, por não ter direito a cultura e o direito a escola... Não é? Depois deste tenho outro vídeo pra mostrar. (Trecho diário de aula – Professor. Jair).

21 22

Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Nq0GP4yQup4 acessado 18/04/2012. Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=qxx3MJF0AKk , acessado 18/04/2012.

64 Os educandos acharam um pouco engraçado e divertido. Pensei em levar este vídeo para deixar a aula um pouco mais leve o clima da aula. A meta era fazer com que percebessem a compaixão e a indiferença juntas numa mesma situação. Além disto, muitos deles estavam sendo um pouco indiferentes também, levando mais para o lado engraçado da questão. O próximo passo foi utilizar um espaço mais filosófico e dialógico da aula. Perguntei se eles tinham percebido a reação da criança A. Perguntei também: “por que será que a gente não fica assim? Quando será que a gente respeita os animais menores? Vez em quando a gente passa o dedo em cima da formiga, esmaga faz assim e não quer nem saber não é? Por que nós estudantes, quando a gente vê alguém quebrar, arrancar uma árvore... Por que a gente não tem dó também? Por que a gente não tem também a mesma sensibilidade daquela criança em relação ao meio ambiente? Como é que está a natureza hoje? Como é que vocês acham que está a natureza? O homem está respeitando a natureza? Responderam: “não”. Continuei: “O homem está aprendendo a escutar o outro? O homem escuta o seu semelhante ou não? Perguntei a um aluno que estava inquieto: “O que ele tinha achado do vídeo, se ele era engraçado ou dava pra aprender alguma coisa com o vídeo?” O aluno respondeu: “aprendo alguma coisa”. Pedi que explicasse o que se aprende, e ele respondeu: “aprende matar a formiga”. Coloquei para o aluno que essa era a coisa ruim que havia acontecido. Perguntei sobre a coisa boa que ele tinha visto. A resposta do aluno foi “aquele menino chorando dizendo que não era pra matar a formiga”. Continuei fazendo observações, tentando ajudá-lo à interpretação:

Este é o sentimento! Esta é a sensibilidade de uma criança mais sensível que a outra que matou e ficou fria. Quantas vezes a gente mata no sentido assim, a gente não presta atenção nas coisas. É! Várias coisas! Não é só a questão da formiga. É através de outras atitudes que a gente tem no dia-a-dia, não é? Ou a gente briga com o colega, a gente sacaneia alguém, e a gente faz igual lá o outro irmão que não estava nem aí para a situação, parecia. (Trecho diário de aula, Prof. Jair)

Logo em seguida passei o vídeo “Sou da Balada e Não peço Arrego – (Na voz de um Invisível Social). Foi efetuada uma breve apresentação verbal para todos os educandos da banda sobre o vídeo. Ficaram sabendo que se tratava de uma produção independente minha, filmada em Santa Maria–RS. A seguir, um breve trecho da conversa:

65 Tinha perguntado se eles faziam idéia por que eu havia perguntado se eles faziam três refeições por dia, logo no começo da aula. Coloquei algumas breves razões a eles dizendo que aquela pessoa que iriam ver na cena musical, não tem as três refeições, que ele não tinha família. Pedi que olhassem para os cadernos deles. Disse que olha só alguém teve que comprar para você, um familiar seu. E temos que aprender a valorizar isto. Temos que aprender a valorizar. Vamos assistir para ver que lições a gente tira deste vídeo. Existe a música ali no meio. Este é um trabalho que eu fiz lá, eu apresentei lá no Paraná. Aí os professores perguntaram por que eu não passava para os alunos para saber a opinião de vocês. Então hoje eu quero saber o que vocês pensam sobre isto. Tem música no meio, ele cria a música, mas ele fala da realidade... ele conta a história dele. (Trecho de diário de aula, Jair)

Esta fala demonstra que foi criada uma expectativa através das colocações prévias. Era necessário criar um contexto, interá-los mentalmente no contexto das relações sociais em desvantagem e ambientar os alunos com o que iriam apreciar. Como o mendigo iria cantar e, a partir da música, contar um pouco de sua história, dirigi-me a um aluno perguntando: “através de uma música você pode contar uma história? Você pode contar tua história? E da tua família? Ele ficou com dúvida. Respondeu assim: “Eu posso. Só que eu não sei”. Continuei falando do vídeo dizendo que: “ele (o personagem do vídeo) está contando uma história através da música. Vamos ver que história é essa”. Aí pedi que se concentrassem e assistissem. Soltei parte do vídeo. Apresentei a parte do vídeo em que o invisível social cantava: “Na noitada eu não peço arrego, sou vagabundo sem rumo e sem destino... A balada é minha terra a balada é meu irmão... Na noitada eu não quero arrego, sou vagabundo sem rumo e sem destino. A balada é minha terra a balada é meu irmão.” (Trecho do vídeo Invisível Social)23 Dei uma pausa no trecho do vídeo e perguntei a eles: “Quem será que é esta pessoa? Alguém já viu uma pessoa assim?” Muitos alunos disseram “o professor, eu já vi”. E eu disse novamente: “aqui em Ijuí tem ou não?” Todos responderam: “sim”. Pedi para que lessem o que ele estava dizendo. E repeti: “Sou vagabundo sem rumo e sem destino! Na noitada eu não peço arrego. O que é isso arrego? Alguém tentou responder. Depois, continuei explicando “Eu estou na noite, mas não peço ajuda. Será que ele não está pedindo ajuda?Não está pedindo mesmo?” Demos sequência no vídeo com o seguinte trecho: “Sou da noitada e eu não tenho arrego, sou vagabundo sem rumo e sem destino. A balada é minha terra a balada é minha mente, sou vagabundo sem rumo e sem destino... A bala é meu coração a balada é minha

23

“Invisível Social” é uma espécie de codinome que utilizei para descrever o personagem protagonista da cena, pois a maioria da sociedade não enxerga essas pessoas. (estas palavras são transcritas da fala do personagem protagonista na cena gravada)

66 mente. Sou vagabundo sem rumo e sem destino.” (fala do personagem da cena - Invisível Social)24 Aqui dei outra pausa no vídeo. E perguntei: “E aí pessoal”. Um aluno curioso. Perguntou a mim: “O que ele ta perguntando?” Eu disse aos alunos “agora é ele que está perguntando” Ele está dizendo que não quer ajuda! O tempo todo! Mas será que ele não está pedindo ajuda?” aí o mesmo educando perguntou “O Sor! É o senhor que tá cantando” (aqui não entendi por quê). Daí respondi “Não, era o homem mesmo que estava cantando”. Apesar da inquietação de alguns, das brincadeiras de outros, de alguns não ligarem expliquei que aquela era uma cena musical do cotidiano, que de certa forma também é uma forma de fazer música, de fazer arte. Nessa iniciativa de sair e pesquisar, sair “catando” cenas musicais, foi que encontrei casualmente esta pessoa que precisa de ajuda, e que, ao mesmo tempo estava realizando um ato musical. Quanto às questões musicais vou narrar o que foi discutido. Perguntei a eles em um momento: “ele (o Invisível Social) está ou não está fazendo música? Os educandos disseram: “sim”. Continuei falando: “então, este é um assunto em que a gente trabalha a música, a gente trabalha a audição. E através desta audição nós estamos interpretando uma cena da realidade e é uma cena social de uma pessoa que precisa de ajuda.? Não é? Agora vamos ver o que ele pergunta pra gente? Então veio a parte do vídeo em que o Invisível pergunta: “E você tem destino? E o futuro... Futuro de cachaceiro ou de maconheiro?” Eles não entenderam bem. Tive que explicar para facilitar-lhes a compreensão. Percebi que alguns alunos não gostaram da pergunta. Parecia que estavam falando de verdade com o homem. Estavam espantados com o que ele havia falado. As palavras “cachaceiro” e “maconheiro” foram que causaram mais indignação e agitação, pois percebi alguns alunos com ar de surpresa repetindo as palavras “cachaceiro”, “maconheiro”. Depois perguntei: “e por que ele disse? Será que ele não está frustrado com a vida que ele levou? Com essa falta de oportunidade? Por ele ter sido uma formiga social? Ó alguém chegou, pisou e matou a esperança dele e agora ele não tem mais oportunidade! O que ele vai fazer? Vai ficar na rua né? Então por que ele fala isto? Por que ele está dizendo que isto é o futuro? Porque ele não tem mais oportunidades! Ele não é igual a vocês que tem

24

“Invisível Social” é uma espécie de codinome resolvi utilizar para descrever o personagem protagonista da cena, pois a maioria da sociedade não enxerga essas pessoas. (estas palavras são transcritas da fala do personagem protagonista na cena gravada)

67 três refeições por dia. É por isso que ele está falando isto. Pessoal é um assunto social muito sério. A gente pode ter familiares da gente que passam dificuldades entendem. Então?” Continuamos assistindo a cena onde o homem falava: “Aí é que ta o futuro!” O homem depois baixa a cabeça demonstrando frustração, desconsolo e frustração. Parou por uns segundos olhando para o chão e continuou: “eu vou ficar bebendo aqui”. E com uma imensa tristeza, com tamanha dor e desconsolo seguiu dizendo “Desabando sozinho” Houve uma pausa e logo ouvi: “Desabando sozinho’. (pausa grande). Seguiu seu discurso dizendo: “eu queria ser um ator mas o povo não me entendia” (breve pausa) “Finado doutor Raul Seixas”. Então conversou um pouco mais com algumas pessoas que passavam e só ouvia o som dos automóveis, caminhões e ônibus, soterrando a voz daquela bendita alma . Nesta parte do vídeo, os educandos estavam mais atentos. Olhavam e comentavam coisas uns com os outros. Sempre que o vídeo era tocado eles prestavam muita atenção. Em uma nova pausa no vídeo novamente perguntei: “e a roupa dele aqui pessoal? Representa estar como? Limpinha igual a de vocês? Responderam: “Suja! Imunda! E a barba, a barba é branca” Continuei então perguntando: “e o lugar onde ele está será que é limpo?” Eles disseram “Não! É um muro assim!(fazendo cara de feia). Ai eu continuo: “imagina você morar todo o dia num lugar assim né?!” O restante foi apresentado, sendo que mesclado com a MÚSICA URBANA 225. Pedi que escutassem bem a letra. Enquanto Renato Russo cantava, percebi que eles eram só ouvidos. Eventualmente, um dos alunos se desconcentrava, mas inferi que haviam entendido a proposta, e que estavam apreciando a Música Urbana II, música que descreve muito bem aquela cena assistida por eles. Depois, perguntei: “aí pessoal o que quer dizer “Desabando Sozinho”? Um deles respondeu: “que ele tá sozinho, não tem ninguém...” Novamente perguntei: “Por que será que ele disse assim, eu queria ser um ator, mas o povo não me entendia. Por que será que ele disse isto? O povo não se importava com ele será?” O mesmo aluno respondeu: “Ele tava sozinho” Eu de novo indaguei: “por que será que ele ficou sozinho?” Outro educando meio que brincando disse: “por causa da cachaça...” Fiz então um novo questionamento: “Por que será que as pessoas as vezes acabam indo para o mundo das drogas do alcoolismo? Por que será?” A resposta do aluno: “por que não tem ninguém pra ajudar,ninguém pra conversar...” Pedi para que levassem as perguntas consigo para que refletissem e pensassem

25

RUSSO, Renato. Música Urbana 2. Interprete: Legião Urbana. In Legião Urbana Dois. [S.1] EMI Music (1986)

68 sobre o que aprenderam com aqueles dois vídeos. E o significado da frase Desabando Sozinho. Nesse momento, encerramos a aula.

8.6 Considerações acerca da discussão com os educandos sobre as cenas musicais do cotidiano

Destacarei alguns pontos que percebi no decorrer da aula, em que alguns educandos não compreenderam muito bem o sentido do vídeo. Muitas vezes, imitaram passagens de forma a dar um tom irônico a alguns trechos dos dois vídeos. Assim, foi necessário muito diálogo com eles, sempre ponderando que se tratava de um assunto sério e que não deveríamos torná-lo pejorativo, por se tratar de seres humanos que estavam em situações difíceis. Apesar de buscar com que os alunos fossem capazes de enxergar, e, possivelmente, terem compaixão sobre as pessoas em situação de risco social, não quis que as vissem como coitadinhas, mas que pudessem formar um senso de cidadania, no qual, talvez, no futuro apoiassem estas pessoas, enquanto cidadãos plenos, a encontrarem seus caminhos. Ao refletir sobre isto, penso que talvez o desenvolvimento de alguns preconceitos sociais aconteça por não haver compreensão em torno do que se é “pre-conceituado”. Muitas vezes, acontece por reprodução de ideias erradas sobre aquilo a que se direciona o preconceito. Não julgo as atitudes dos educandos, mas estou tentando entender por que existem os preconceitos, e qual a função destes. Diante dos questionamentos, houve momentos em que faltaram opiniões. Muitos educandos ficaram em silêncio durante a exposição dos vídeos e durante a discussão das cenas. A grande maioria acompanhou com atenção todas as partes. Fiz inúmeras perguntas tentando, através delas, conscientizá-los. Ao mesmo tempo, investiguei suas opiniões, suas ideias e representações. Nesses instantes, pode ser que estivessem se conscientizando e, mesmo sem dar opinião sobre o assunto, poderiam estar num momento de introspecção, criando suas visões sobre o que estavam apreciando. Lazzarin (1999) reflete que a “apreciação de uma mesma peça musical pode levar a múltiplas representações mentais. Estas representações serão a base para a formação dos conceitos em música”. Desta forma, com a apreciação realizada, pode-se perceber que cada educando teve seu entendimento, mesmo que as cenas tivessem partes musicais muito breves.

69 A partir do vídeo, penso que muitos educandos tiveram verdadeiras lições de vida. Por vários momentos ficavam perplexos, não sabiam o que dizer, tiveram dificuldades em interpretar o que tinham apreciado. Lazzarin (1999 apud Beyer, 2005) poderá sobre a dificuldade de compreender as audições, destacando o problema do “novo”, de forma que ele não é compreendido em seu real sentido. O autor pondera que

o que está, muitas vezes, por trás da nossa dificuldade em reconhecer o valor de determinadas manifestações musicais é a não compreensão de que música é uma estruturação do material sonoro, uma elaboração cultural, dentro de sua história. Muitas vezes assumimos uma posição etnocêntrica, que nos impede a compreensão do novo, rejeitando-o simplesmente ou rotulando-o de exótico e primitivo. (LAZZARIN, 1999 apud BEYER 2005, p. 28)

Talvez daí surja a não compreensão dos fatos musicais, em certos momentos. Fingir que não se vê. Apesar de em muitos momentos ter existido muita fixação no vídeo, especialmente, na parte onde havia música. Torna-se possível que aconteça o aprendizado. O aprendizado não está restrito apenas à sala de aula, mas em diferentes locais pedagógicos. A praça, a parada de ônibus, a rodoviária, todos estes locais estão cheios de conhecimentos a serem aprendidos e a se conhecer. Os vídeos podem ajudar neste processo de educação, por isso Gonçalves (2008 apud SOUZA, 2008) escreve:

assim trato o filme como um objeto cultural capaz de circular conhecimentos avalizados ou não pela área de educação musical, criando, instituindo e divulgando pensamentos pedagógicos compartilhados ou não pela comunidade acadêmica. Sob essa perspectiva, várias narrativas da cultura midiática disponibilizada através de novelas, seriados, desenhos animados e filmes assumem um papel de extrema importância na vida de alunos e professores de música. (GONÇALVES, 2008 apud SOUZA, 2008, p. 159)

Estes são fatores que ajudam a perceber a importância de um trabalho com tal proposta. Minha expectativa residia em levar este novo olhar, esta cena que choca, que provoca, que não tem o belo esperado, que possa talvez não ser tradicionalmente considerado uma obra artística. Intenciono incentivar os alunos das bandas a adquirirem uma visão sócio-econômica-política, embora para muitos isto pareça não ser importante, mas tendo a certeza que um dia eles irão se lembrar do trabalho proposto, do que o educador disse. Isto talvez aconteça quando as situações da vida chegarem até eles. Esta pequena certeza e esperança é o que traz sentido a um trabalho que talvez possa se consumar em alguma atitude nos educandos, uma atitude de

70 mudança cultural, quem sabe, por existir injustiças sociais e pessoas que passem fome, sede e frio.

8.7 Apreciação musical x Ensaios das bandas

No decorrer de minha prática docente com as bandas, posso afirmar que foi possível destacar as relações entre as aulas de apreciação com os ensaios das bandas. As apreciações trouxeram exemplos muito ricos, e os conteúdos musicais parecem ter sido trabalhados de uma forma mais madura com os educandos. Aconteceram atividades para desenvolver questões musicais e atividades de apreciação onde existia a música, mas inserida em um contexto menos musical, como foi o caso da cena do invisível social. As cenas musicais apreciadas de performance de conjunto auxiliaram no aprendizado de assuntos como expressão, forma, leitura, técnica instrumental, percepção, criatividade, interpretação e na prática geral, sendo possível mudar os ensaios influenciando na maneira de tocar. A formação de valores através das apreciações de cenas musicais do cotidiano visam contribuir um pouco com a formação humana dos educandos. Não se tem a pretensão de salvar o mundo, nem ser paternalista com os problemas da vida. Mas colocar o olhar, a visão para este viés através da utilização da música, talvez leve os educandos a desenvolverem uma maneira de pensar diferente, interessada política e culturalmente pela cidadania. Como os ensaios são feitos nas ruas, eles tem que ter um comportamento digno. A rua é um lugar público e não se pode agir de qualquer maneira. Se por acaso um dia eles virem uma pessoa em condições de vulnerabilidade social de vida, com certeza, irão se lembrar do que conversamos nestas aulas de apreciação, analisando os vídeos com músicas do cotidiano.

71

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da realização desta pesquisa foi possível pontuar a relevância da utilização das cenas musicais do cotidiano para a formação da cidadania. As cenas musicais aqui propostas proporcionaram diversos momentos de reflexão com os educandos das bandas de música estudadas neste trabalho. De forma alguma se pretendeu a reprodução de uma visão salvacionista para a apreciação das cenas. Ao contrário, o que se tentou fazer foi levar uma visão dos fatos do cotidiano que tivessem relação com a música e que pudessem trazer conhecimentos reflexões e ideias para serem discutidas com os educandos. Isto foi possível e a cidadania foi uma das principais metas almejadas. Chega-se à conclusão de que todo o educador tem que ter esse compromisso, mas que também formar um cidadão não é uma tarefa fácil. Tentou-se então motivar o olhar para tais questões, pois todo ser humano tem direitos políticos e deveres sociais a cumprir. Por meio da formação, o educando pode também contribuir, mesmo que com poucas atitudes, para melhorar um pouco a realidade social. Por isso foi importante levar as cenas do cotidiano para discutir assuntos sociais com todos os integrantes das bandas. Desse modo pode-se ponderar sobre a relevância da utilização das cenas musicais do cotidiano para a formação da cidadania. A apreciação foi uma importante ferramenta no processo de educação musical das bandas de música com as quais trabalhei. Não foram apreciadas somente cenas musicais do cotidiano que continham fortes temas sociais como miséria, exclusão social, mas outras cenas que tinham a ver com um processo mais tradicional em música. Penso que é importante desenvolver temas politizadores que são capazes de formar a opinião dos indivíduos. Durante várias oportunidades foram destacados neste espaço os aprendizados musicais envolvidos na atividade de apreciação. Além disto, ficou evidente como estas apreciações contribuíram para o desenvolvimento musical da banda, bem como os relevantes conteúdos musicais explorados a partir das mesmas. Destacou-se também a escuta consciente, que transportasse o educando para dentro da música, no sentido de que ele fosse desafiado a buscar um aprofundamento sobre as questões internas da obra, tendo assim maior consciência sobre forma musical, interpretação, criatividade, percepção, expressão, prática de conjunto, técnicas instrumentais. Pode-se concluir que os educandos das bandas obtiveram conhecimentos diferentes aos que já detinham.

72 As atividades de apreciação contribuíram com a formação dos educandos e também com a prática coletiva, pois melhorou os ensaios da banda como um todo. De modo prático, é possível dizer que o aprendizado antecipado dos conhecimentos musicais contribuiu na hora da realização das mesmas situações musicais apreciadas na hora dos ensaios. Não se está aqui dizendo que reproduzimos modelos, mas que as maneiras de realizar determinadas atividades musicais serviram de exemplo e viabilizaram a criação de uma maneira própria para a realização das atividades musicais. Foi possível também destacar exemplos que sugeriam maior desenvolvimento da técnica, no sentido da execução instrumental. Os exemplos sugeriam alto nível de desenvolvimento da técnica, pois muitos dos materiais audiovisuais proporcionaram a percepção das habilidades musicais dos executantes. Foram mostradas e posteriormente trabalhadas diversas técnicas, como por exemplo, as de caixa clara, a utilização das baquetas, embocadura para sopros, afinação, evolução do grupo musical, criatividade, entre outros. É importante também destacar as relações entre as aulas de apreciação e os ensaios das bandas. Os conhecimentos proporcionados com as atividades contribuíram diretamente na realização dos ensaios da banda. A apreciação de performances de grupos e bandas de música favoreceu o desenvolvimento de atividades musicais diferenciadas. Alguns aspectos da regência também foram exemplificados. A estereofonia foi um tipo de conhecimento apreciado e, logo em seguida, colocado em prática com o grupo. Durante diversas aulas, auxiliado por equipamentos e softwares musicais, houve um melhor entendimento de frases musicais, melodias, ritmos e harmonia e pulso musical. As diversas atividades de escuta proporcionaram o desenvolvimento de criatividade musical, ideias para a prática coletiva, exemplos para melhorar a pratica e técnicas individuais frente aos instrumentos. Assim, todos os objetivos específicos almejados foram concretizados. As cenas musicais do cotidiano que traziam discussões sociais, nas quais a música se fazia presente, serviram de exemplo e ajudaram a ilustrar os diversos meios sociais. Neste sentido, proporcionou o incentivo ao pensar cidadão, apesar da dificuldade para formar um cidadão. A apreciação foi a ferramenta fundamental e proporcionou todos os aprendizados acerca de conteúdos musicais, não obstante, a situações musicais do cotidiano. Foi possível entrar nos estudos científicos do cotidiano como sugestão e opção política-formativa, tanto para mim como para os educandos. Todas foram sugestões para incentivar os educandos às questões que envolvem os seres humanos, e que dizem respeito à inclusão e direitos humanos.

73 Por outro lado, a apreciação não contribuiu somente com esta visão, mas também com o aperfeiçoamento dos integrantes das bandas que participaram destas atividades. Eu atendi cerca de cento e dez educandos enquanto lecionei em quatro escolas da rede municipal. Com todos eles tentei propor estas visões, o que foi possível através das atividades de apreciação musical. As aulas de apreciação tiveram muita relação com todas as atividades, ensaios e apresentações das bandas, pois conseguimos resultados muito interessantes com os grupos. Os educandos foram bastante elogiados. Houve reconhecimento das autoridades do município, as quais relataram em público que o trabalho que eu realizava era diferenciado, que havia no contraturno um trabalho mais aprofundado pensando em educação musical. Isto para mim foi muito importante, uma vez que revelou a valorização de meu trabalho; o reconhecimento e algumas certezas de que vale a pena alcançar um esforço quando se quer chegar a um objetivo diferente, ousado, e que pense em modelos educacionais mais condizentes com a realidade educacional, contemplando as reais necessidades existentes. Sem negar o que já existe, mas pensando em buscar sempre o contato com as teorias emergentes, que valorem a subjetividade. Penso que as questões sociais são importantes, mas nem sempre são consideradas. Como se pode excluir a visão crítica de um ser humano, se isto é intrínseco a ele. Pensar a vida sem estar atento ao que acontece ao redor é estar alienado. As decisões políticas acontecem todos os dias, permeiam todas as relações sociais. Neste sentido, incentivar o pensamento artístico crítico, como visto em Duchamp, que criticou o conceito de arte retiniana, é dar um passo em direção de algo diferente, é ter coragem de dizer não ao que, historicamente nos é alcançado como verdade, como arte sem questionar. Foi impossível não colocar a visão de uma postura crítica e construtiva para a atitude artística, impressa dentro desta pesquisa. Falar de música é também falar de movimentos filosóficos e artísticos, pois eles embasaram diversos períodos da história da música. Dentro de muitos desses movimentos, como foi exemplo aqui, no Dadaísmo, surgiram pessoas pioneiras no sentido de começarem correntes inovadoras de pensamento. Este estudo não alcançou apenas objetivos musicais, mas pensou-se na reflexão sobre a arte como sendo algo que não agrade apenas os olhos e os ouvidos, mas que seja considerado também o meio social de onde emergem as manifestações artísticas. Geralmente, existem preconceitos que não permitem que um grupo social em desvantagem se manifeste, pois isto é perigoso para a classe que domina. Daí então a importância de existir um debate das questões musicais e também das questões sociais. Neste social estão imersas diversas questões, a cultura, a educação, a

74 política, a economia, os direitos e deveres de todos. Não se teve a pretensão de transformar este trabalho acadêmico num discurso político, mas de colaborar com uma visão, com um olhar que talvez transite por um caminho de expectativa de mudança da realidade, sem pensar logicamente que a música tem que salvar o mundo dos problemas. A iniciativa foi bastante pequena, mas tentou levar uma mensagem de que cada um desses educandos pode contribuir se quiser tais mudanças. A relação do repertório do cotidiano com a aprendizagem musical das bandas pensada nesta pesquisa é uma relação dialógica. Pensou-se em colocar lado a lado, cotidiano e aprendizagem musical porque este cotidiano faz parte de um universo que move a realidade dos educandos. Eles estão dentro do que acontece no cotidiano, e muitas vezes isto se torna impossível perceber por diversos olhares científicos e acadêmicos conservadores. Pode-se pensar que, se o educador abandonar este conhecimento proveniente do cotidiano social e dos educandos, reproduzirá didaticamente o conceito da educação bancária e a memorização mecânica de conteúdos. Quando isto acontece este educador está transformando os educandos em ‘vasilhas’, recipientes que deveriam ser ‘enchidos’ pelo educador. É necessário entender que o que aproxima o educando da música, muitas vezes, é o apreço que tem pelos estilos musicais que mais aprecia, e que fazem parte do cotidiano. Não cabe ao educador que vá ‘enchendo’ os ‘recipientes’ (mente do educando) com seus ‘depósitos’(conhecimentos pré-estabelecidos). Isto seria educação bancária e não faz do educador o melhor educador. Os educandos também não são obrigados a aceitar que se deixem docilmente ‘encher’. Deve existir aí um jogo de respeito mútuo entre o saber do educador e do educando. Por isso a forte relação entre cotidiano e aprendizado musical das bandas. Levar as cenas musicais do cotidiano como forma de apreciação é estar contribuindo com o respeito à cultura do educando, é dizer que isto também é importante. As pesquisas que surgirão a partir desta irão dar continuidade a discussões artísticas, filosóficas, pensando cada vez mais num plano subjetivista e qualitativo. Este estudo não pretende esgotar os argumentos sobre o que se propôs, mas é colocado num ponto de vista de humildade acadêmica, passível de não contemplar diversas visões. Serve de início e continuidade, pois também contribuiu com diversas pesquisas já realizadas por outros autores. Foi importante perceber como a música está ligada fortemente com maneiras de se pensar a arte. Movimentos artísticos que fundamentaram os períodos musicais. Assim, a pesquisa remete um estudo mais aprofundado nas questões da estética da arte cotidiana. A

75 “arte retiniana do ouvido” sugerido por mim neste trabalho também é um conceito que tentei criar baseado na teoria de Duchamp. Isto talvez seja uma próxima pesquisa. Além disto, há que se considerar que, na minha prática educacional, estive em contato com múltiplas situações de ensino e aprendizagem, tendo que dar conta de diversos instrumentos ao mesmo tempo. Uma das pesquisas futuras será como o educador lida com toda essa diversidade de instrumentos, os desafios e dilemas encontrados, se foram superados ou não. Ainda existem questões a serem respondidas que não puderam ser expostas nesta pesquisa como a influência de uma didática militarizada, no processo de ensino de bandas de música. Esta influência na performance das bandas, foi notada posteriormente por mim, depois que assumi a regência das bandas. Antes de minha chegada no cargo de Instrutor de Bandas de Música, todas as bandas que tive que assumir, haviam sido regidas por militares de um quartel da região de Ijuí. Esta inserção dos militares nas escolas onde haviam bandas resultou numa influência desta didática militarizada, a qual pensei em discutir.Esta situação irá desencadear uma série de pesquisas que problematizarão a os efeitos desta influência didática militarizada deixada nas bandas que tive que assumir posteriormente. Quanto aos anseios pessoais de educador penso que se tentou alcançar algumas metas importantes, pois a visão se estendeu para além do apenas fazer musical. Foi relevante realizar outros “links” com ideias e pesquisas em andamento, nas quais a música é a matéria em discussão. Além disso, considero que ter ousadia, coragem, iniciativa e, principalmente, convicção da concretização de uma meta, possa ajudar aquele educador comprometido com sua função social: educar. Desejo que esta utopia não seja só minha, mas que através dessa e de outras pesquisas possa contribuir para o debate sobre o ensino de música em bandas na educação básica, bem como à importância da atividade de apreciação em grupos instrumentais. Em suma, almejo somar esforços com outras pesquisas que problematizam a formação continuada do professor, através dos diários de aula, como metodologia de reflexão e pesquisa. Mais ainda, desejo instigar aos meus leitores este olhar para a vida cotidiana das nossas cidades, como problematização na formação de cidadãos, ampliando escutas e visualidades das belezas e feiúras que podem nos mover a ações transformadoras da sociedade.

76

REFERÊNCIAS

ABREU, Delmary Vasconcelos. Tornar-se professor de música na educação básica: um estudo a partir de narrativas de professores. 2011. Tese (Doutorado em Música). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

ALMEIDA, José Robson Maia de. A Estrutura Curricular das Bandas de Música: o papel do Sistema Estadual de Bandas. 2006. Disponível em: . Acesso em: 28 mar. 2012.

ANDRADE, Hermes. O B da BANDA. Rio de Janeiro, RJ; Editora Jodima, 1989.

AVILA, Roberta. A influência de Marcel Duchamp na Arte Contemporânea. 2007. Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2012.

BARBOSA, Joel Luis da Silva. Na adaptation of American Band instruction methods to Brazilian music education, using Brasilian melodies.1994. Tese (Doutorado em Regência). University of Washington, Seattle, 1994. __________. Considerando a viabilidade de inserir música instrumental no ensino de primeiro grau. In: Revista da Abem. Salvador BA, n. 3, p. 39-48, jun. 1996.

BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Gráfica 70, 1982.

BEYER, Ester. (Org.) Ideias em Educação Musical. Porto Alegre: Ed. Mediação, 1999. ______. O som e a criatividade: reflexões sobre experiências musicais. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2005.

BORBA, Tomás e GRAÇA, Fernando Lopes. Dicionário de Música. Cosmos, 1956.

Lisboa: Edições

BORTONI-RICARDO, Stela Maris. O professor pesquisador: Introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado: 1988.

77 BRASIL. Lei, 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. Ministério de Educação: Brasília, 2008. Disponível em: . Acesso em: 09 abr. 2012.

BRASIL. Lei n°. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. In: Ministério da Educação. Disponível em: . Acesso em: 30 de nov. de 2007.

CAJAZEIRA, Regina; OLIVEIRA, Alda. Educação Musical no Brasil: A importância das Bandas na formação do Músico Brasileiro. Salvador: P & A Gráfica e Editora, 2007. 422p.

CARAMELLA, Elaine. História da Arte. Fundamentos semióticos: teoria e método em debate. Bauru: EDUSC, 1998.

COLI, Jorge. O que é Arte. 15 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.

CORRÊA, Thedy. Jornais. Intérprete: Nenhum de Nós. In: Nenhum de Nós. [S.l.]: BMG/Ariola,1992. 1 CD. Faixa 9.

CORNELISSEN, Willy. Apreciação Musical. Disponível . Acesso em: 26 jun. 2011.

em:

DANTO, Artur C. Marcel. Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea. Revista ARS, São Paulo, vol.6, n.12, p.15-28, jul-dez. 2008.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2012.

DINIZ, Leandro. O que é Beleza. Disponível . Acesso em: 2 de abr. 2012.

em:

ELGER, Dietmar. Dadaísmo. [s/c]: Editora Taschen, 2004.

FILHO, Cyro de B. Rezende; NETO, Isnard de A. Câmara. A evolução do conceito de cidadania. Disponível em: . Acesso em: 10 mai. 2012.

78 FURLANETTO, Ecleide Cunico. Como Nasce um professor: questões fundamentais da Educação. 4 ed. São Paulo: Editora Paulus, 2007.

FROMM, F. Psicanálise da sociedade contemporânea, Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

GASPAR, A. A educação formal e a educação informal em ciências. In: MASSARANI, Luisa; MOREIRA, Ildeu de C.; BRITO Fátima (Org.). Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência, 2002.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5 ed. São Paulo: Editora Atlas S.A.: 2010.

GOMES, Celson. A Formação e Atuação de Músicos das Ruas de Porto Alegre: um estudo a partir dos relatos de vida. 1998. Dissertação. (Mestrado em Música). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.

GONÇALVES, Jair dos Santos. Relatos sobre Docência em Educação Musical na sala de aula abordando assunto da Apreciação Musical. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2012. _____________. A Música Ressignificando os Fatos do Cotidiano. Disponível em: . Acesso em: 28 mar. 2012. _____________. Cenas Musicais do Cotidiano: A Construção de Representações e Significados através da Música Marginal. In: XIV Encontro Regional da Abem Sul, 2011, Maringá. Anais. Maringá: UEL- MARINGÁ, 2011. 1 CD-ROM.

GOHN, Daniel. Educação à Distância: Como Desenvolver a Apreciação Musical? In: Décimo Quinto Congresso ANPPON, 2005, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos... Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2012.

HÜHNE, Leda Miranda. Curso de Estética. Rio de Janeiro: Editora UAPÉ, 2006.

LIMA, Marcos Aurélio de. A Banda Estudantil em Um Toque Além da Música. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2005.

79 MACIEL, Valney Rocha. Os Herdeiros da Miséria: o cotidiano de mendicância no centro de Fortaleza. Dissertação de Mestrado em políticas Públicas e Sociedade - Universidade Estadual do Ceará: Fortaleza, 2004.

MOREIRA, Lucia Regina. Representações Sociais: Caminhos para a compreensão da Apreciação Musical? Disponível em: . Acesso em: 1 mai. 2012.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.

NÜSKE, Glaubert Gleizes Faber. Uma Retrospectiva Histórica da Banda Marcial Manoel Ribas. 2008. Monografia. ( Graduação em Licenciatura em Música). Universidade Federal de Santa Maria: Santa Maria, 2008.

Parâmetros Curriculares Nacionais. ARTE. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. 130 P.

PASSETI, Edson. Conversação Libertária com Paulo Freire. São Paulo: Imaginário, 1998.

PATTO, Maria Helena Souza. O conceito de cotidianidade em Agnes Heller e a pesquisa em educação. São Paulo: Perspectivas, 1993.

PENSADOR, Gabriel. Gabriel O Pensador. Intérprete: Gabriel O pensador. In: Gabriel O pensador. [S.l.]: Sony Music Enterteinment, 1993. 1 CD. Faixa 10.

RIZZON, Flávia Garcia. A Música e Suas Significações. In: BEYER, Ester e KEBACH, Patrícia (Orgs.). Pedagogia da Música: Experiências de Apreciação. Cidade: Porto Alegre, Mediação, 2009. p.51-67.

RODRIGUES, William Costa. Metodologia Científica. FAETEC/IST, Paracambi, 2007. Disponível em: . Acesso em: 9 ago. 2011.

ROHDEN, Huberto. Einstein: o enigma da Matemática. São Paulo: Editora Alvorada, 1976.

RUSSO, Renato. Música Urbana 2. Interprete: Legião Urbana. In Legião Urbana Dois. [S.1] EMI Music (1986).

80 SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23 ed. São Paulo: Cortez, 2007.

SOUZA, Erihuus de Luna. Transmissão musical nas bandas escolares da rede municipal de ensino de João Pessoa. In: VIII Conhecimento em Debate. Nov. 2008. João Pessoa: UFPB, 2008.

SOUZA, Herbert. Fome de Educação. In: Revista Em Aberto, Brasília, ano 13, n.59, jul.-set. 1993. Disponível em: . Acesso em: 10 mai. 2012.

SUGAHARA, Leila. O Que é Musicalização? . Acesso em: 16 jun. 2012.

Disponível

em:

SWANWICK, Keith. Teaching Music Musically: Ensinando Música Musicalmente. Tradução Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.

THEZOLIM, Ronei A. Apreciação Musical: melhorando a vida com música. Disponível em: . Acesso em: 16 fev. 2012.

WIKIPEDIA. Cidadania. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2012.

WIKIPEDIA. Sonoplastia. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2012.

ZAMACOIS, Joaquim. Temas de Estética y de História de la Música. Buenos Aires: Editorial Labor S.A., 1975.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.