Reflexões sobre cultura #02: A natureza é invencível a não ser que a obedeçamos

May 29, 2017 | Autor: Marcílio Duarte | Categoria: Hegel, Marx, Cultura, Capitalismo, Artigos, Natureza, Filosofia, Natureza, Filosofia
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Série Reflexões #2 A natureza é invencível a não ser que a obedeçamos Natureza e cultura se diferem (isso em uma das possíveis conceituações sobre o assunto – há inúmeras). Se por um lado a natureza é tida como o reino da necessidade causal e do determinismo – e em razão disso opera de acordo com as leis da causa e efeito – a cultura é, por sua vez, o oposto: o reino da vontade, da finalidade e da liberdade humana. Cultura pode significar ‘obras humanas’ ou ‘relação entre humanos socialmente organizados’. Também pode significar ‘história’: enquanto a natureza se repete mecanicamente (a onda do mar é sempre a onda do mar), a cultura transforma-se pela capacidade racional do homem (a pintura moderna não é como a da arte rupestre, transformou-se). Ao entrarmos nessa seara, nos deparamos com o pensamento de Francis Bacon, Friedrich Hegel e Karl Marx. Claro, não vou aqui dissecar suas teses, apenas mencioná-las. Para Bacon, o homem é ministro e intérprete da natureza, que produz de acordo com o que constata a partir da observação dos fatos ou pelo trabalho da mente. O homem, segundo Bacon, não sabe e nem o pode mais do que a natureza. Para Hegel, a razão humana (ou o Espírito) gera uma cultura determinada em um momento histórico que evolui com o passar do tempo. Historicamente, essa cultura evoluiu ao longo das civilizações orientais e ocidentais, num progresso contínuo. Com essa noção hegeliana, entendemos que cada civilização seria um estágio do nosso desenvolvimento racional e cultural a ser ultrapassado por nova civilizações mais avançadas. Para Marx, a cultura (ou história) se dá a partir da forma como o homem produz materialmente a sua própria existência e lhe atribui sentido. Portanto, para Marx, a cultura não é o movimento temporal da razão enquanto Espírito (noção abstrata, subjetiva), mas as lutas dos seres humanos que produzem e reproduzem suas próprias relações sociais no mundo real, material. Tais relações tornam o homem diferente não só da natureza, mas entre si. Essa diferença é determinada por classes sociais antagônicas: somos divididos e vivemos em conflito. Assim, segundo Marx, a evolução da cultura (história) é realizada não por uma entidade invisível como o Espírito hegeliano, mas pela luta das classes sociais contra a

exploração econômica, opressão social e dominação política. Em outras palavras, sempre haverá um opressor e um oprimido contra o qual o ser humano (organizado em classes) estará disposto a vencer. Na natureza, o reino da necessidade causal, não há classes sociais, tudo é mecânico e previsível. O leão sempre irá devorar o cervo por uma necessidade fisiológica – que é a fome – e o cervo sempre será a sua presa. Entre os leões, nunca haverá divisão social, pois é próprio do homem – com sua capacidade racional – oprimir ou ser oprimido dentro de um contexto histórico determinado sempre pelas relações sociais. No entanto, apesar de se oporem, as teses de Marx e Hegel encontram um ponto em comum: a cultura surge a partir do trabalho, ou seja, da interferência do homem sobre a natureza. Constantemente, o homem tenta vencer a natureza. Bacon diz: a natureza oferece seus segredos não quando está livre, mas quando é atormentada pelo homem, que a arranca de seu estado natural para modelá-la. No mesmo aforismo, Bacon assevera: ‘a natureza não se vence, senão quando se lhe obedece’. Ou seja, quando o ser humano obedece a natureza, a relação é pacífica, sustentável. Tiramos um fruto dela, com a consciência de que esta deve ser preservada. Quando o homem tenta vencê-la sem obedecê-la, é porque está tentando alterar-lhe as formas e seus movimentos. Marx entendia que a oposição entre natureza e cultura é ainda mais incoerente, uma vez que no modo de produção capitalista tudo – natureza e humanos – são reduzidos à condição de mercadoria. No capitalismo, a natureza é entendida como o conjunto de matérias-primas que servirão para a ação econômica, inventada pelo homem. Assim, não há porque dizer que natureza e cultura se diferem, pois a natureza tornou-se mercadoria, que é efeito da apropriação e da exploração humana da natureza. Assim, no marxismo, natureza é uma mercadoria como outra qualquer. Pagamos pela água, pelo gás, pela luz; pagamos também para morar em lugar onde não há poluição. Também pagamos para estar próximo da natureza por meio da indústria do turismo, que vende emoções para quem deseja fruir belas paisagens. Assim, na origem do capitalismo e no hipercapitalismo global em que vivemos, a natureza não passa de mera abstração, ficção ou até mesmo

miragem, pois o ser humano perdeu o contato com aquela que o criou. Não a conhece mais, não a obedece mais, não a reverencia mais, apenas quer dominá-la pelo prisma da ação econômica.

Marcílio Duarte é gestor cultural especializado em Gestão de Projetos Culturais (ECA/USP).

REFERÊNCIAS BACON, Francis. Novum Organum: ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 256 p. CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. 147 p. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. 301 p.

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