Reflexões sobre o Ativismo Judicial praticado pelo Supremo Tribunal Federal de acordo com as Teorias de Jurgen Habermas; Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica por danos causados ao meio ambiente: Fundamentos e Diretrizes Jurídicos - in Direito, Pesquisa e Inovação

June 3, 2017 | Autor: Thiago Jordace | Categoria: Direito Ambiental, Direito Penal, Filosofia do Direito, Direito Penal Econômico
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Descrição do Produto

Coordenação Geral Carlos Eduardo A. Japiassú Cleyson de Moraes Mello Leonardo Rabelo Coordenação Acadêmica João Eduardo de Alves Pereira Vanderlei Martins Vânia Siciliano Aieta

Direito, Pesquisa e Inovação Estudos em Homenagem ao Professor Maurício Jorge Pereira da Mota

Prefácio Ricardo Lodi Ribeiro

Autores

Apresentação Gustavo Siqueira

Alexandre de Albuquerque Sá Isabella Pena Lucas Alexandre de Castro Catharina João Carlos Bertola Franco de Gouveia Allana Olmo Pinheiro Pinto João Marcelo Sant’anna André R. C. Fontes João Matheus Vianna Amiel Anísio Monteschio Junior José Carlos Vaz e Dias Antônio Pereira Gaio Júnior José Vicente Santos de Mendonça Armenia Cristina Dias Leonardi Katia Eliane Santos Avelar Bárbara Gomes Lupetti Baptista Laryssa Luma Lima Lapa Bruna Laiber Monteiro Leonardo da Silva Sant’Anna Bruno dos Santos Vieira Lívia Pelli Palumbo Bruno Leiroz Lopes Chaves Marcella Alves Mascarenhas Nardelli Bruno Lúcio Manzolillo Marcelle Mourelle Camilo Ferreira de Oliveira Marcilene Margarete Cavalcante Marques Carla Sendon Ameijeiras Veloso Maria Geralda de Miranda Carlos Eduardo A. Japiassú Maria Luiza Firmiano Teixeira Carlos José de Souza Guimarães Mery Chalfun Claudia Franco Correa Neimar Roberto de Souza e Silva Cláudia Queda Toledo Priscilla Menezes da Silva Cláudia Ribeiro Pereira Nunes Rafael Mario Iorio Filho Cleyson de Moraes Mello Reis Friede Danielle Riegermann Ramos Damião Renan de Carvalho Pinheiro Edna Raquel Hogemann Rossana Marina De Seta Fisciletti Eurico da Cunha Neto Taísa Regina Rodrigues Fernanda Duarte Thamyrys Baur Tuffi Alli Fernando Amiel Junior Thiago Helver Domingues S. Jordace Fernando Chaim Guedes Farage Vanderlei Martins Fernando Rangel Alvarez dos Santos Vanessa Oliveira de Queiroz Flávia Sanna Leal de Meirelles Vânia Aieta Hamilton Gonçalves Ferraz Wellington Trotta Horácio Monteschio Editar Juiz de Fora-MG 2016

Conselho Editorial Antônio Celso Alves Pereira - Rio de Janeiro - RJ Antônio Pereira Gaio Júnior - Juiz de Fora - MG Cleyson de Moraes Mello - Rio de Janeiro - RJ Germana Parente Neiva Belchior - Fortaleza - CE Guilherme Sandoval Góes - Rio de Janeiro - RJ Gustavo Silveira Siqueira - Rio de Janeiro - RJ João Eduardo de Alves Pereira - Rio de Janeiro - RJ José Maria Pinheiro Madeira - Rio de Janeiro - RJ Martha Asunción Enriquez Prado - Curitiba - PR Maurício Jorge Pereira da Mota - Rio de Janeiro - RJ Nuria Belloso Martín - Burgos - Espanha Rafael Mário Iorio Filho - Rio de Janeiro - RJ Ricardo Lodi Ribeiro - Rio de Janeiro - RJ Sidney Guerra - Rio de Janeiro - RJ Valfredo de Andrade Aguiar Filho - João Pessoa - PB Vanderlei Martins - Rio de Janeiro - RJ Vânia Siciliano Aieta - Rio de Janeiro - RJ Conselho Científico Adriano Moura da Fonseca Pinto - Rio de Janeiro - RJ Alexandre de Castro Catharina - Rio de Janeiro - RJ Bruno Amaro Lacerda - Juiz de Fora - MG Carlos Eduardo Japiassú - Rio de Janeiro - RJ Célia Barbosa Abreu - Rio de Janeiro - RJ Claudia Ribeiro Pereira Nunes - Rio de Janeiro - RJ Elena de Carvalho Gomes - Belo Horizonte - MG Jorge Bercholc - Buenos Aires - Argentina Leonardo Rabelo - Rio de Janeiro - RJ Marcelo Pereira Almeida - Niterói - RJ Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho - Ribeirão Preto - SP Sebastião Trogo - Juiz de Fora - MG Theresa Calvet de Magalhães - Belo Horizonte - MG

Dados internacionais de catalogação na publicação

C257e C623e L576e

Eduardo A. Japiassú, Carlos, 1970 de Moraes e Mello, Cleyson, 1965 Rabelo, Leonardo, 1971 Direito, Pesquisa e Inovação - Estudos em homenagem ao Professor Maurício Jorge Pereira da Mota / Carlos Eduardo A. Japiassú, Cleyson de Moraes Mello e Leonardo Rabelo (Coordenadores), Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2016. ISBN: 978-85-7851-121-0 1. Fundamentos – Direito – Brasil. CDD 340 CDU 34

A editora e os coordenadores desta obra não se responsabilizam por informações e opiniões contidas nos artigos científicos, que são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas. Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás beber da corrente das tuas delícias; Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz. (Salmos 36: 7-9)

Maurício Jorge Pereira da Mota Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1994), mestrado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1997) e doutorado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002). Atualmente é Professor dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor do Doutorado em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Procurador do Estado - Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado e Direito Ambiental, atuando principalmente nos seguintes temas: boa-fé, contratos, proteção ao devedor, políticas públicas, direito ambiental e controle da administração pública.

Coordenação Geral Carlos Eduardo A. Japiassú Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Secretário Geral da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). E-mail: [email protected]

Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; É professor da linha de pesquisa Direito da Cidade do PPGD da UERJ. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Advogado. E-mail: profcleysonmello@ hotmail.com

Leonardo Rabelo Doutor em Direito pela UGF; Mestre em Direito e Economia; Bacharel em Direito pela UERJ e Advogado. É Professor Titular IV da Universidade Veiga de Almeida e Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (PPGD/UVA). E-mail: [email protected]

Coordenadores Acadêmicos João Eduardo de Alves Pereira Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor-Adjunto nas disciplinas Economia Política, Geografia Política e Economia do Petróleo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]

Vânia Siciliano Aieta Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UERJ, da Escola da Magistratura, da Escola Judiciária Eleitoral, da Universidade Veiga de Almeida, da UNILASALLE e do Instituto de Direito da PUC-Rio. Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela PUC-Rio. E-mail: [email protected]

Vanderlei Martins Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. E-mail: [email protected]

Autores Alexandre de Albuquerque Sá Doutorando em Direito de Empresa e Atividades Econômicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. E-mail: [email protected]

Alexandre de Castro Catharina Doutor em Sociologia Jurídica pelo IUPERJ/UCAM. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Professor de Direito Processual Civil da Universidade Estácio de Sá. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual.E-mail:[email protected]

Allana Olmo Pinheiro Pinto Mestranda em Direito pela UERJ na linha de Direito de Empresa e Atividades Econômicas. Advogada. E-mails: [email protected]/[email protected]

André R. C. Fontes Desembargador no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do PPGD – UNIRIO. E-mail: [email protected]

Anísio Monteschio Junior Mestrando em Ciência Jurídicas pelo UNICESUMAR de Maringá. E-mail: [email protected]

Antônio Pereira Gaio Júnior Pós-Doutor em Direito (Universidade de Coimbra/PT). Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos (Ius Gentium Conimbrigae/ Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-PT). Doutor em Direito (UGF). Professor Adjunto de Processo Civil (UFRRJ). E-mail: [email protected]

Armenia Cristina Dias Leonardi Docente da Universidade Estácio de Sá e Mestranda em Direito da Universidade Católica de Petrópolis. E-mail: [email protected]

Bárbara Gomes Lupetti Baptista Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (PPDG-UVA). Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense/Faculdade de Direito. Pesquisadora do INCT-InEAC/NUPEACUFF. Doutora em Direito (UGF). E-mail: [email protected]

Bruna Laiber Monteiro

Claudia Franco Correa

Bacharel em Direito pela UERJ. Mestre em Direito Penal pela UERJ. Consultora Jurídica. E-mail: [email protected]

Professora da Universidade Veiga de Almeida (PPGD-UVA). Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do INCTInEAC. Doutora em Direito (UGF). E-mail: [email protected]

Bruno dos Santos Vieira Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF. Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos – MG. E-mail: [email protected]

Bruno Leiroz Lopes Chaves Advogado; Consultor Jurídico; Palestrante; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor de Direito; Parecerista; Assessor Jurídico no Centro de Estudos Avançados em Direito – CEADI – CESVA – FAA. E-mail: brunoleiroz@ hotmail.com

Bruno Lúcio Manzolillo Mestrando em Direito da Cidade pela UERJ. Especialista em Direito Ambiental Brasileiro pela PUC-Rio. Professor de Direito da Unisuam. Advogado. E-mail: [email protected]

Camilo Ferreira de Oliveira Graduação em Direito pela Faculdade de Educação São Luís (2015). Mestrado em Medicina Veterinária pela Universidade Estadual Paulista (2009). Especialização pelo Instituto Qualittas de Pós-Graduação, em Medicina Veterinária (2007). Advogado. E-mail: [email protected]

Carla Sendon Ameijeiras Veloso Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP. Professora da Universidade Estácio de Sá; Pós-Graduada em Processo Civil / Direito do Trabalho / Direito Previdenciário. E-mail: [email protected]

Carlos Eduardo A. Japiassú

Mestre em Direito das Relações Sociais - PUC-SP (2008). Doutora em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos - ITE, Bauru/SP (2012). Docente (Graduação e Pós-Graduação) da FDSM. Advogada. E-mail: [email protected].

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF). Coordenadora do Programa de Acordos de Cooperação Nacional e Internacional do IESUR/FAAR. Professora e Pesquisadora da Graduação do UBM e do PPGDUVA. Coordenadora do NUPE do IESUR/FAAr. Articulista. Consultora Sênior. E-mail: [email protected]

Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; É professor da linha de pesquisa Direito da Cidade do PPGD da UERJ. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá; Advogado. E-mail: [email protected]

Danielle Riegermann Ramos Damião Doutoranda em Função Social do Direito – FADISP (2015). Professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN), Faculdade São Luís e do IMESB – Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro “Victorio Cardassi”. E-mail: [email protected]

Edna Raquel Hogemann

Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Secretário Geral da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). E-mail: [email protected]

Pós-Doutora em Direito, UNESA/RJ, professora permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da UNESA/RJ, professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, membro da Law & Society Association. E-mail: [email protected]

Carlos José de Souza Guimarães

Eurico da Cunha Neto

Advogado da União, Professor da Faculdade de Direito da UERJ e Chefe do Departamento de Teorias e Fundamentos do Direito (DTFD-FD/UERJ). E-mail: [email protected]

12

Cláudia Queda Toledo

Delegado Regional de Polícia Civil em Minas Gerais. Especialista em Ciências Penais pela UFJF. E-mail: [email protected]

13

Fernanda Duarte

Isabella Pena Lucas

Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense/ Faculdade de Direito. Pesquisadora do INCT-InEAC/NUPEAC – UFF Doutora em Direito (PUC/RJ). E-mail: [email protected]

Doutoranda em Direito pela Universidad de Burgos – Espanha; Promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e professora de direito civil da EMERJ e da UNESA. Especialista em Direito responsabilidade civil/consumidor pela UNESA/EMERJ. E-mail: [email protected]

Fernando Amiel Junior

João Carlos Bertola Franco de Gouveia

Mestre em Administração Pública – Fundação Getúlio Vargas; Bacharel em Ciências Econômicas – Universidade Gama Filho; Bacharelando em Direito – Centro Universitário Augusto Motta – UNISUAM; E-mail: amielpericias@ gmail.com

Fernando Chaim Guedes Farage Mestre pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC de Juiz de Fora – MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora-MG. Advogado. Email: [email protected]

Fernando Rangel Alvarez dos Santos Doutorando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Veiga de Almeida (bolsista) – PPDG-UVA. Mestre em Direito pela UNESA. Especialista em Direito Civil e Processual Civil (2001) pela UNESA e em Direito Corporativo pelo IBMEC. e-mail: frangel2005@ gmail.com

Flávia Sanna Leal de Meirelles Doutoranda em Direito na UERJ. Professora da Faculdade de Direito de Valença, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ. E-mail: [email protected]

Hamilton Gonçalves Ferraz Mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. E-mail: [email protected]

Horácio Monteschio Doutorando pela Faculdade Autônoma de São Paulo – FADISP. Mestre em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR Maringá. Professor das Faculdades OPET, ex-Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Assuntos do Mercosul do Paraná; Advogado. E-mail: [email protected]

14

Doutorando em Direito Financeiro pela UERJ. E-mail: joaocarlosbfg@yahoo. com.br

João Marcelo Sant’anna Advogado especializado em Direito da empresa e atuante no escritório especializado em Direito da empresa J.G. Assis de Almeida & Associados e mestrando da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]

João Matheus Vianna Amiel Bacharel em Direito – Universidade Candido Mendes; E-mail: jmamiel@gmail. com

José Carlos Vaz e Dias Doutor em Direito da Propriedade Intelectual e Investimento Estrangeiro pela Universidade de Kent – Inglaterra. Professor Adjunto em Direito da Propriedade Intelectual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e sócio do escritório Vaz e Dias Advogados & Associados. E-mail: [email protected]

José Vicente Santos de Mendonça Professor adjunto de Direito Administrativo da UERJ e do PPGD-UERJ. Professor do Programa em Direito da Universidade Veiga de Almeida (PPGDUVA). Doutor e mestre em Direito pela UERJ. Master of Laws por Harvard. Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado. E-mail: jose.vicente@terra. com.br

Katia Eliane Santos Avelar Doutora em Ciências (Microbiologia), UFRJ. Pesquisadora da FIOCRUZ. Professora Titular e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). E-mail: katia.avelar@gmailcom

Laryssa Luma Lima Lapa Advogada formada pela UERJ. E-mail: [email protected]

15

Leonardo da Silva Sant’Anna

Mery Chalfun

Professor Adjunto de Direito Comercial da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). E-mail: lsantanna44@gmail. com

Doutoranda em Direito pelo PPGD-UVA. Mestre em Direito pela Unesa. Professora da UVA. Membro do IAA. Participação como professora convidada no grupo de pesquisa Centro de Ética Ambiental (UFRJ). Publicações no Brasil com ênfase em Direito Animal. E-mail: [email protected]

Lívia Pelli Palumbo

Neimar Roberto de Souza e Silva

Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos - ITE, Bauru/ SP (2013). Especialista em Jurisdição Constitucional e Direitos Humanos - Universidade de Pisà (2013). Docente do IMESB. Advogada. E-mail: livia. [email protected]

Marcella Alves Mascarenhas Nardelli Doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Políticas Públicas e Processo pela Faculdade de Direito de Campos. Professora Assistente de Direito Processual Penal na UFJF. E-mail: [email protected]

Marcelle Mourelle Doutoranda do PPGD em Direito da UERJ. Mestre em Direito (UERJ). Especialista em Direito Empresarial (FGV/RJ). Docente de cursos de PósGraduação (AVM/UCAM) e dos cursos de graduação em Direito, Turismo e Marketing (FGS/RJ). Advogada. E-mail: [email protected]

Marcilene Margarete Cavalcante Marques Mestranda da UCP – Universidade Católica de Petrópolis; Professora da Universidade Estácio de Sá; Advogada Especialidade na área Trabalhista e Previdenciária. E-mail: [email protected]

Maria Geralda de Miranda Doutora em Letras (Estudos Culturais), UFF. Pós-Doutora em Políticas Públicas, UERJ. Coordenadora do projeto OBEDUC/CAPES. Professora Titular e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM. E-mail: [email protected]

Maria Luiza Firmiano Teixeira Mestranda em Direito pela UERJ na linha de Direito de Empresa e Atividades Econômicas. Especialista em Direito e Processo Civil pela IBDP e Anhanguera. Ex-professora auxiliar da UFJF. Auditora do IF Sudeste MG. Advogada. E-mail: [email protected]

16

Advogado especialista em Direito Civil e Gestor Imobiliário. Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito de Valença-RJ. Mestrando em Hermeneutica Jurídica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos – PPGD-UNIPAC. E-mail: [email protected].

Priscilla Menezes da Silva Doutoranda e Mestre em Direito de Empresa e Atividades Econômicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-Graduada em Direito Empresarial pela UCAM. Professora da Graduação na UFRJ e da Graduação e do MBA em Gestão do Entretenimento na ESPM. Articulista. Advogada. E-mail: [email protected]

Rafael Mario Iorio Filho Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Pesquisador do INCT-InEAC/NUPEAC – UFF. Doutor em Direito pela UGF. Doutor em Letras Neolatinas pela UFRJ. E-mail: rafa. [email protected]

Reis Friede Doutor em Direito Público, UFRJ. Desembargador Federal, Vice-Presidente e Membro Titular do Órgão Especial do TRF2; Professor Emérito da ECEME. Professor Titular e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM. E-mail: [email protected]

Renan de Carvalho Pinheiro Bacharel em Direito – Universidade Candido Mendes. E-mail: renanc_ [email protected]

Rossana Marina De Seta Fisciletti Doutoranda em Direito da Universidade Veiga de Almeida (PPGD-UVA), Mestre em Direito (UGF), Professora da Universidade Estácio de Sá (UNESA) e Pesquisadora do Instituto de Ensino Superior de Rondônia (IESUR/FAAr). Advogada. E-mail: [email protected]

17

Taísa Regina Rodrigues Mestranda em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST) (2014). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2012). e-mail: tai.regina1989@ gmail.com

Thamyrys Baur Tuffi Alli Bacharel em Direito pela UERJ. Mestre em Direito Penal pela UERJ. Advogada. E-mail: [email protected]

Thiago Jordace Doutorando e Mestre em Direito pela UERJ, professor da UFRRJ, IBMEC e advogado. E-mail: [email protected]

Vanderlei Martins Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. E-mail: [email protected]

Vanessa Oliveira de Queiroz

Sumário Prefácio 23 Ricardo Lodi Ribeiro Apresentação 25 Gustavo Siqueira Palavras da Coordenação 27 Carlos Eduardo A. Japiassú, Cleyson de Moraes Mello e Leonardo Rabelo Introdução 29 Cleyson de Moraes Mello e Vanderlei Martins Artigos

Advogada e Consultora Jurídica (RJ). Mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-RJ. E-mail: [email protected]

Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar? 35 Fernanda Duarte, Bárbara Gomes Lupetti Baptista e Rafael Mario Iorio Filho

Vânia Siciliano Aieta

Migração e a Situação dos Presos Estrangeiros no Brasil 55 Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Flávia Sanna Leal de Meirelles

Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UERJ, da Escola da Magistratura, da Escola Judiciária Eleitoral, da Universidade Veiga de Almeida, da UNILASALLE e do Instituto de Direito da PUC-Rio. Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela PUC-Rio. E-mail: [email protected]

Wellington Trotta Graduação em Direito (UGF) e Filosofia (UERJ); Mestrado em Ciência Política (IFCS-UFRJ); Doutorado (IFCS-UFRJ) e Pós-Doc. (IFCS-UFRJ). Professor de Filosofia UNESA; Doutorando em Direito pela UNESA – Cabo Frio. E-mail: [email protected]

Etnodiversidade, Direitos Humanos e Democracia: Política de Reconhecimento à Luz do Ubuntu Edna Raquel Hogemann Desafios do Direito de Resposta após a Lei 13.188/2015 Vânia Aieta e Marcelle Mourelle

85

Uma incursão histórica na biografia de Carl Schmitt, o Jurista Terrível 95 André R. C. Fontes Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Novo CPC. Breves apontamentos Antônio Pereira Gaio Júnior

18

73

105

Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva? 117 Cláudia Ribeiro Pereira Nunes e Priscilla Menezes da Silva

Fontes Normativas da Educação a Distância no Brasil Rossana Marina De Seta Fisciletti

O Aliciamento de Empregados: Conceito e Características. Seria essa prática uma nova forma de apropriação de Informações Confidenciais da Concorrência? 131 José Carlos Vaz e Dias e João Marcelo Sant’anna

Marcas de alto renome e a especial proteção conferida pelo Direito Brasileiro Allana Olmo Pinheiro Pinto e Maria Luiza Firmiano Teixeira

Os Sete Pecados do Discurso e da Prática Jurídica sobre Políticas Públicas no Brasil José Vicente Santos de Mendonça

Precarização da mão de obra e a ordem econômica na Constituição Federal de 1988 331 Camilo Ferreira de Oliveira e Danielle Riegermann Ramos Damião

147

Construindo pontes entre o Direito e a Antropologia: relatos pessoais de experiências de Pesquisa que ajudam a refletir sobre o Campo Jurídico 159 Claudia Franco Correa e Bárbara Gomes Lupetti Baptista O Liberalismo, a Inovação e o UBER Reis Friede, Katia Avelar e Maria Geralda de Miranda

175

Instrumentalidade Recursal no Código de Processo Civil de 2015 Alexandre de Castro Catharina

185

Positivismo como respostas à Sociedade Industrial e a Crítica Marxista 195 Wellington Trotta Breves considerações sobre a Natureza Jurídica da Empresa Individual da Responsabilidade Limitada Alexandre de Albuquerque Sá e Leonardo da Silva Sant’Anna

211

301

317

Aspectos polêmicos envolvendo a Lei 13.097/15, pelo ato de Concentração da Matrícula Imobiliária Anísio Monteschio Junior e Horácio Monteschio

345

As inovações do Novo Código de Processo Civil e a duração razoável do processo Fernando Rangel Alvarez dos Santos

359

Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica por danos causados ao meio ambiente: Fundamentos e Diretrizes Jurídicos Thiago Jordace e Bruno Lúcio Manzolillo

371

A execução da pena e os Direitos Humanos no Estado Democrático de Direito: instrumentos Legislativos de proteção à Dignidade Humana 387 Cláudia Queda Toledo e Lívia Pelli Palumbo

O Consequencialismo Financeiro em Matéria Tributária no STF João Carlos Bertola Franco de Gouveia

229

Da mera irregularidade procedimental ao prejuízo efetivo: o Direito de punir estatal e o respeito às garantias de defesa dos administrados 405 Vanessa Oliveira de Queiroz

Pensamentos Ambientais e os Animais Mery Chalfun

243

Mutação Constitucional em julgados da Suprema Corte Americana Laryssa Luma Lima Lapa

Direito Adquirido Carlos José de Souza Guimarães

261

Contribuições do Direito Penal Econômico para a proteção do Meio Ambiente Bruna Laiber Monteiro e Thamyrys Baur Tuffi Alli

433

Reflexões sobre o Ativismo Judicial praticado pelo Supremo Tribunal Federal de acordo com as Teorias de Jurgen Habermas Isabella Pena Lucas e Thiago Jordace

269

Por um ordenamento jurídico que proteja efetivamente os Direitos Fundamentais Fernando Chaim Guedes Farage

449

Algumas notas sobre a tensão entre a Função Epistêmica do Processo e o Dever de Tutela dos Direitos Fundamentais Marcella Alves Mascarenhas Nardelli e Eurico da Cunha Neto

287

Pensar o Pensamento: uma análise Epistemológica da necessidade de produção de Conhecimento Consciente e Emancipatório Taísa Regina Rodrigues

465

423

O Iluminismo Jurídico-penal: um retrato pelas lentes da Criminologia 479 Hamilton Gonçalves Ferraz

Prefácio

Evolução Histórico-normativa do Direito de Propriedade Privada no Brasil 493 Neimar Roberto de Souza e Silva Ação Civil Pública como forma de combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil 505 Carla Sendon Amejeiras Veloso e Inês Lopes de Abreu Mendes de Toledo O Poder Letal da Pistola Finca pinos 517 Armenia Cristina Dias Leonardi e Carla Sendon Ameijeiras Veloso Princípio da Razoável Duração do Processo à Luz do Novo Código de Processo Civil nas perícias das ações de Concessão de Auxílio-doença Acidentário 529 Marcilene Margarete Cavalcante Marques Apontamentos sobre o devido Processo Legal: Direito ao Contraditório e Análise Probatória 543 Bruno dos Santos Vieira Principais Inovações no Processo Civil Brasileiro trazidas pelo NCPC/2015 – Uma Análise Epistemológica e Constitucional 553 Bruno Leiroz Lopes Chaves Ações afirmativas com o fito de reduzir a Discriminação, com enfoque na Lei de Cotas Étnico-raciais para ingresso em Universidades Públicas 567 Fernando Amiel Junior, João Matheus Vianna Amiel e Renan de Carvalho Pinheiro

Caro Leitor, Tenho a honra e a satisfação de prefaciar a presente obra intitulada “Direito, Pesquisa e Inovação: Estudos em Homenagem ao Professor Maurício Jorge Pereira da Mota”, livro coletivo resultado dos esforços de pesquisa de professores e alunos do PPGD da UERJ, UNESA e UVA, bem como integrantes do corpo docente de outras Instituições de Ensino Superior. A edição do presente livro expressa a preocupação da Faculdade de Direito e do PPGD da UERJ no sentido de oferecerem um espaço para a discussão e o diálogo interdisciplinares, fato que permite ao leitor o contato com diferentes saberes e diferentes posições doutrinárias. A obra foi coordenada pelos Professores Carlos Eduardo A. Japiassú, Cleyson de Moraes Mello e Leonardo Rabelo e espelha o resultado de pesquisas jurídicas cuidadosas e situadas nas preocupações contemporâneas e constitucionalizadas da Ciência do Direito. Convidamos todos à leitura. Maio de 2016 Ricardo Lodi Ribeiro Diretor da Faculdade de Direito da UERJ

Apresentação

A Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro fez 80 anos em 11 de maio de 2015. Ao longo dessa profícua trajetória, formou operadores do Direito que, como Ministros, juristas, advogados, membros do Ministério Público, procuradores, magistrados e defensores públicos, atuaram e continuam a atuar, com sucesso, em todas as esferas que conformam a estrutura jurídica do nosso país. A Faculdade de Direito da UERJ oferece ensino de graduação, pós graduação, pesquisa e extensão de alta qualidade, na medida em que dispõe de infraestrutura acadêmica sempre atualizada e, especialmente, de quadro docente composto, em sua maioria, por doutores em direito. Estimulamos a pesquisa e o espírito crítico investigativo dos professores e alunos conduzidos pelo raciocínio reflexivo, fundamental para a ciência e para a formação plena do futuro bacharel. Esta obra integra as comemorações dos 80 anos da Faculdade de Direito e foi organizada pelos Professores Carlos Eduardo A. Japiassú, Cleyson de Moraes Mello e Leonardo Rabelo. É, portanto, com imenso prazer que entregamos à comunidade jurídica brasileira a presente obra “Direito, Pesquisa e Inovação: Estudos em Homenagem ao Professor Maurício Jorge Pereira da Mota” Maio de 2016. Gustavo Siqueira Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ

Palavras da Coordenação É com grande satisfação que apresentamos à comunidade jurídica brasileira a obra Direito, Pesquisa e Inovação: Estudos em Homenagem ao Professor Maurício Jorge Pereira da Mota. A produção jusfilosófica que conforma esta obra coletiva tem como autores renomados juristas nacionais, bem como integrantes dos corpos docente e discente de diversas Instituições de Ensino Superior. A edição desta obra expressa a preocupação dos Coordenadores no sentido de oferecer um espaço para a discussão e o diálogo interdisciplinares, fato que permite ao leitor o contato com diferentes saberes e diferentes posições doutrinárias. Nessa linha, é importante salientar que os artigos agora publicados têm como finalidade homenagear o ilustre Professor Maurício Jorge Pereira da Mota. Convidamos todos à leitura. Rio de Janeiro, Maio de 2016. Coordenação Geral Carlos Eduardo A. Japiassú Cleyson de Moraes Mello Leonardo Rabelo

Introdução Direito, Pesquisa e Inovação Cleyson de Moraes Mello1 Vanderlei Martins2 Não é incomum encontrarmos projetos sem rigor metodológico. A pesquisa jurídica deve ser levada a sério. Infelizmente tanto na Graduação como na PósGraduação são escassos os projetos bem formulados, com clareza de objetivos. No dia a dia acadêmico veem-se projetos com fraca fundamentação teórica e debilitados em termos analíticos. Ora, esta é, pois, uma das consequências de uma má qualidade do ensino jurídico, desatrelado do segmento ensino-pesquisaextensão. O ensino jurídico apresenta-se formalista e desalinhado com as mudanças sociais evidenciadas neste início de século. A carência de uma visão crítica e reflexiva do direito é fruto de um ensino jurídico desgastado e envelhecido em seus paradigmas. As novas demandas sociais e suas consequências jurídicas devem ser enfrentadas desde logo, isto é, a partir das disciplinas propedêuticas do curso de Direito, especialmente, nas disciplinas de introdução ao estudo do direito, história do direito, sociologia jurídica, entre outras. O Direito não pode ser estudado e analisado de forma insular. Não deve existir, pois, um hiato entre a teoria apresentada em sala de aula e a realidade fática, sob pena de uma percepção equivocada do próprio ensino jurídico. Neste sentido, a pesquisa realizada nas universidades, especialmente, nos cursos de direito é uma fonte rica e sedutora para diminuir este distanciamento entre a teoria e a prática. Melhor dizendo: a pesquisa auxilia a compreensão do fenômeno jurídico inserido numa sociedade contemporânea complexa, heterogênea e plural. Dessa forma, é possível afirmar que para o aumento na qualidade do ensino é necessário o enfrentamento dos paradigmas técnicos vigentes. Uma pesquisa jurídica levada a serio deve investigar o direito em suas mais variadas formas e cores. As instituições de ensino precisam revitalizar o ensino jurídico capacitando seus professores e estimulando o corpo discente a participar de projetos de iniciação científica e pesquisas institucionais. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; É professor da linha de pesquisa Direito da Cidade do PPGD da UERJ. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Advogado. E-mail: [email protected] 2 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. E-mail: [email protected] 1

Um outro tipo de isolamento do direito é aquele relacionado com as demais ciências sociais. Marcos Nobre alerta que “o direito não acompanhou integralmente os mais notáveis avanços da pesquisa acadêmica no Brasil nos últimos cinquenta anos. É certo que essa situação de bloqueio começa a se modificar na década de 1990, quando historiadores, cientistas sociais, filósofos e economistas passam a se interessar mais diretamente por questões jurídicas. Para além de um crescente interesse mundial pelo Direito, creio que dois dos importantes elementos dessa mudança de postura no Brasil estão na consolidação mesma do sistema universitário de pesquisa (que, portanto, não tem mais motivo para temer a “contaminação” pelo bacharelismo) e nos profundos efeitos sociais da Constituição Federal de 1988 (cuja efetivação resultou em acentuada “juridificação” das relações sociais – sem discutir aqui mais amplamente esse conceito –, além de a Carta ter se tornado ela mesma referência central no debate político). Entretanto, esse interesse por temas jurídicos não significa que as posições tenham se alterado substancialmente: os cientistas sociais ainda costumam olhar com desconfiança a produção teórica em direito, já que aí não encontram os padrões científicos requeridos, e os teóricos do direito parecem continuar a ver a produção em ciências humanas como externa ao seu trabalho, dizendo-lhe respeito apenas indiretamente.”3 Como se deve compreender o direito frente às situações sociais novas? Questões como poliamor, mudança de sexo, a transfusão de sangue nos “testemunhos de Jeová”, testamento vital, dentre outras, devem ser compreendidas em todas as suas especificidades. Neste contexto é importante estudar o fenômeno jurídico de forma inter e transdisciplinar. Vale lembrar que tais questões devem ser tratadas com rigor metodológico. Daí que a disciplina de Metodologia e Técnica da Pesquisa Jurídica (MTPJ) não pode ser vista como disciplina periférica e sem importância. Daí que sala de aula não pode refletir tão somente a prática do dia a dia forense, ou seja, não pode espelhar apenas a prática jurídica de advogados, juízes, promotores, defensores, procuradores e delegados de polícia, mas sobretudo deve refletir uma visão crítica e reflexiva dos diversos institutos jurídicos à luz do vigor metodológico, traduzido na produção acadêmica desenvolvida consoante os critérios de pesquisa científica. A universidade moderna deixa de ser a morada onde o conhecimento se processa e se renova, para se atrelar à economia, à política e ao mercado de trabalho, passando a ser, assim, um instituto formador de mão de obra especializada para as demandas profissionais. De forma lenta e gradual, transfigura-se a formação acadêmica, que passa a ter um perfil muito mais de instrução técnica do que de formação plena. Especializa-se o conhecimento, compartimentam-se e se isolam as diferentes áreas do saber, apesar de ocuparem, geograficamente, o mesmo espaço territorial. Se a perspectiva passa a ser mercadológica, essa formação de 3

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Nobre, Marcos. Apontamentos Sobre a Pesquisa em Direito no Brasil. Disponível em: Acesso em: 12 nov 2015.

natureza técnico-instrutiva é centrada apenas na atividade de ensino, ganhando contorno formalista, burocrático e imobilista, ou seja, ganha prestígio dentro do ambiente acadêmico, a chamada formação ‘manualesca’, onde o que passa a ser valorizado é o domínio técnico do conhecimento de utilidade objetiva para aplicação prática imediata e profissionalmente. A afirmação de tal paradigma, que privilegia a instrução em detrimento da formação plena, na verdade, prepara tão somente quadros especializados para cumprimento de tarefas e funções dentro dos sistemas institucionais formalmente estabelecidos. Aquilo que deveria ser uma formação mais abrangente e de caráter bacharelesco, se transforma em uma preparação especializada de viés marcadamente tecnicista. Os diferentes currículos dos diferentes cursos superiores de Direito no Brasil, apresentam, como idealização pedagógica, um fluxograma que associa matérias humanistas e matérias técnicas, todavia, a prática educativa da sala de aula privilegia, dando maior status acadêmico aquelas disciplinas de matiz profissionalizante, transformando, assim, as matérias ditas humanistas ou sociais em adornos ou de valor secundário ao longo do processo de desenvolvimento da formação. O fato é que a Universidade, hoje, transformou-se em local de ‘passagem’ para o mercado de trabalho, transformou-se em uma instituição onde o conhecimento é buscado a partir de uma visão meramente utilitária e funcional, voltada exclusivamente para atender à um interesse maior, qual seja, ingressar no mundo da competitividade profissional, técnica por excelência. O que fica, então, formalmente estabelecido é que o estímulo ao desenvolvimento do espírito crítico é categoricamente suplantado por uma prática educativa reprodutora de conceitos e princípios ideológicos atrelados ao poder constituído, sejam esses princípios ideológicos justos ou não, pois não é isso que se discute criticamente no espaço acadêmico brasileiro contemporâneo. Perdemos de vista a relação entre Universidade e Sociedade no que tange à primeira colocar-se de frente e aberta às necessidades básicas dos segmentos menos favorecidos da segunda. O papel da Universidade vai além disto. É preciso ter horizontes, ir além. Melhor dizendo: os cursos de direito devem preparar seus discentes para enfrentar o mercado de trabalho em seus mais diversos matizes e, principalmente, capacitá-los a pensar o direito frente as novas demandas sociais surgidas na sociedade. Cada vez mais, o profissional de direito precisa saber dialogar com as outras ciências humanas. “Trata-se antes de ampliar o conceito de dogmática e, portanto, seu campo de aplicação, de modo que os pontos de vista da sociologia, da história, da antropologia, da filosofia ou da ciência política não sejam exteriores, tampouco “auxiliares”, mas se incorporem à investigação dogmática como momentos constitutivos.”4 A dificuldade da compreensão do Direito a partir da sua forma mais originária reside, de certa forma, no despreparo e na incapacidade da maioria de nossa comunidade acadêmica de enfrentar os fundamentos do direito. É, pois, necessário colocar o Direito no caminho de sua origem ou nos desviarmos dele a partir de interpretações equivocadas. 4

Ibid.

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O que significa pesquisar? Para Pedro Demo a pesquisa é um “questionamento sistemático crítico e criativo, mais a intervenção competente na realidade, ou o diálogo crítico permanente com a realidade em sentido teórico e prático”.5 Numa esfera mais filosófica, Maria Cecilia de Souza Minayo diz que é uma “atividade básica das ciências na sua indagação e descoberta da realidade. É uma atitude e uma prática teórica de constante busca que define um processo intrinsecamente inacabado e permanente. É uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma combinação particular entre teoria e dados”.6 Já Antonio Carlos Gil entende que a pesquisa tem um caráter pragmático, ou seja, é um “processo formal e sistemático de desenvolvimento do método científico. O objetivo fundamental da pesquisa é descobrir respostas para problemas mediante o emprego de procedimentos científicos”.7 Por fim, Mariana de Andrade Marconi e Eva Maria Lakatos ensinam que pesquisa é “um procedimento formal, com método de pensamento reflexivo, que requer um tratamento científico e se constitui no caminho para conhecer a realidade ou para descobrir verdades parciais.”8 A pesquisa é, pois, o caminho, através do planejamento e ações com o propósito de encontrar uma resposta ou solução para um determinado problema a ser investigado pelo pesquisador, conformado por procedimentos científicos e rigor metodológico. O investimento cada vez maior em pesquisa permitira, sem dúvidas, uma melhor formação universitária. Ademais, consideramos possível inserir nessa realidade educacional técnico-normativista, pressupostos idealistas de caráter filosófico e humanista que neutralizem e transformem tal instrução pontual em uma formação plena e mais abrangente. Acreditamos ser possível, a partir dessa adequação pedagógica entre profissionalização e academicismo, a superação do formalismo educativo manualesco profissionalizante por uma concepção educativa mais elevadora e comprometida socialmente.

DEMO, Pedro. Pesquisa e Construção do Conhecimento. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p.34. 6 MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do Conhecimento. São Paulo: Hucitec, 19993, p.23. 7 GIL, Antonio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. São Paulo: Atlas, 1999, p. 42. 8 MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de Metodologia Científica. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 139. 5

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Artigos

Uma Gramática das Decisões Judiciais:

“O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar? Fernanda Duarte1 Bárbara Gomes Lupetti Baptista2 Rafael Mario Iorio Filho3

Resumo Num contexto de estudo de práticas discursivas, que considera haver uma gramática decisória, o texto pretende pôr em descrição a chamada lógica da interdição que, ao se articular com ideia de imparcialidade, discute o ato de sentenciar e o dever constitucional dos magistrados de motivar as suas razões de decidir. Aponta que neste percurso de fundamentação existem coisas “ditas” e coisas “não-ditas”, e que as coisas “não-ditas” dizem muito, não apenas sobre as sentenças e o ato decisório, mas também sobre o nosso sistema jurisdicional. Palavras-chave: Práticas discursivas; gramática decisória; imparcialidade judicial; lógica da interdição. 1

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Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/NEDCPD do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá.  Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense/ Faculdade de Direito. Coordenadora Científica do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais – LAFEP / FD-UFF. Pesquisadora (Doutora Sênior) do INCT-InEAC/ NUPEAC – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos. Coordenadora do Collaborative Research Network da Law and Society Association – CRN1: Comparative Constitutional Law and Legal Culture: Asia and the Americas.     Membro do Carnegie Council for Ethics in International Affairs, na qualidade de Global Ethics Fellow. Visiting Professor na Mercer Law School, Georgia/ EUA. Doutora em Direito (PUC/RJ).  Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida.Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense/Faculdade de Direito. Pesquisadora do  Laboratório Fluminense de Estudos Processuais – LAFEP / FDUFF.  Pesquisadora do INCT-InEAC/NUPEAC – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos. Doutora em Direito (UGF). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/NEDCPD do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá.  Pesquisador do INCT-InEAC/NUPEAC – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos. Coordenador do Collaborative Research Network da Law and Society Association – CRN1: Comparative Constitutional Law and Legal Culture: Asia and the Americas. Visiting Professor na Mercer Law School, Georgia/EUA. Bolsista Pós-Doutorado Júnior do CNPq. Doutor em Direito pela UGF. Doutor em Letras Neolatinas pela UFRJ.

Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar?

Fernanda Duarte, Bárbara Gomes Lupetti Baptista e Rafael Mario Iorio Filho

Abstract As part of a discursive practice study, we consider that there is a decision-making grammar which defines the rules that will guide legal reasoning. On this text we want to put into description one of the rules of this grammar that we call it as the logic of interdiction. This logic is articulated to the idea of judicial impartiality and discusses the act of sentencing and the constitutional duty of judges to motivate their decisions. We point out that on this way of reasoning, there are things “to be spoken of ” and there are things “not to be spoken of ”. The “unspoken discourse” says a lot, not only about the decision itself and the decision-making act, but also about Brazilian judicial system .

campo jurídico, habilita o juiz a compreender o sentido dado ao direito para, então, decidir. É compartilhada entre seus “falantes” (os juízes) que a praticam de forma espontânea e a naturalizam pela força da repetição. São essas regras que permitem o reconhecimento espontâneo e o uso das estruturas que regularizam e viabilizam a produção do discurso decisório dos juízes, a partir da adoção de estratégias argumentativas/discursivas que resultará na fundamentação de suas decisões (DUARTE, 2010). Num outro giro, o que sustenta a importância da ideia da jurisdição, em substituição à autotutela, é, justamente, a crença de que o estado-juiz é o terceiro imparcial a quem fora atribuída a função de solucionar os conflitos sociais, uma vez vedada a autotutela. “O monopólio estatal da jurisdição e a proibição da justiça privada impõem a existência de um sujeito com esta característica, investido da função de julgamento e que seja estranho ao conflito.”. (CABRAL, 2007, p. 345-346). Sendo assim, a ideia de jurisdição está totalmente vinculada à crença na imparcialidade judicial, de modo que ao magistrado é muito caro manter firme a sua imagem pública de “juiz imparcial”. É essa imparcialidade que assegura em tese que a lei seja aplicada de forma “vendada”, com impessoalidade, isenção5 como representado na estátua da deusa Themis. Nessa linha de encontros de nossas pesquisas, pensamos neste artigo como um primeiro espaço intelectual para refletir, de um lado, sobre o mundo interno do Juiz que não pode (e não deve) ser exposto ao público e, de outro, sobre o mundo externo, aquele que aparece nos autos e que fica registrado no processo. E nos perguntamos se essa separação poderia ser considerada mais uma regra da gramática decisória, operando em uma lógica de interdições. Precisamente, a discussão está centrada em tentar explicitar como os magistrados traduzem aquilo que pensam e sentem para aquilo que pode ser dito (ou escrito) no processo; e, remontando ao título do artigo, entre aquilo que se diz e aquilo que não se diz (porque não se pode dizer) em uma decisão judicial [no caso, para sermos ainda mais precisos, entre aquilo que se escreve e aquilo que não se escreve nas decisões judiciais]. Para tanto, fazemos uso dos dados empíricos coletados durante a pesquisa de tese de doutorado (LUPETTI BAPTISTA, 2013) e de nossas reflexões posteriores a partir da descrição de dois casos, amplamente divulgados na mídia nacional, em que juízes distintos resolveram escrever em suas decisões judiciais exatamente aquilo que pensavam sobre os assuntos julgados, indicando, nos autos, as suas motivações reais e íntimas, circunstância excepcional que nos permitiu perceber que aquelas razões de decidir explicitavam não apenas uma certa forma de interpretar o direito, mas também uma visão específica (ou talvez

Keywords: discursive practices; decision-making grammar; judicial impartiality; logic of interdiction

Introdução O subtítulo deste artigo referencia o texto de Pierre Bourdieu, intitulado “O que falar quer dizer” (1983, p. 75-88), porque a expressão usada pelo sociólogo é elucidativa da problemática sobre a qual nos propomos a refletir. De um lado, pretendemos discutir o ato de sentenciar e o dever constitucional dos magistrados de motivar as suas razões de decidir. De outro lado, apontamos que, neste percurso de fundamentação, existem coisas “ditas”4 e coisas “não-ditas”, e que as coisas “não-ditas” dizem muito, não apenas sobre as sentenças e o ato decisório, mas também sobre o nosso sistema jurisdicional, e que essa percepção integra uma gramática decisória que estabelece as regras que permitem a construção do discurso jurídico. O interesse de discutir a fundamentação das decisões judiciais e suas razões de decidir parte da conjunção de nossas pesquisas, que vinham ocorrendo em paralelo, mas que neste texto tem a possibilidade de dialogar. De um lado, temos o esforço de compreender as práticas discursivas que levam à construção do raciocínio que culmina com a decisão judicial e que temos chamado de “gramática decisória” (DUARTE e IORIO FILHO, 2012). De outro, temos as reflexões realizadas por força da elaboração da tese de doutorado (LUPETTI BAPTISTA, 2013), onde é discutida a imparcialidade judicial, através de pesquisa empírica realizada no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mediante entrevistas formais e informais com diversos operadores do direito e jurisdicionados, assim como observação de audiências e julgamentos. A proposta de uma gramática decisória explora a ideia de um sistema de regras lógicas que informam os processos mentais de decisão; fórmulas que regulam o pensamento e estruturam as decisões; isto é: estruturas que orientam a construção do discurso que se materializa nas decisões judiciais. Essa gramática estaria internalizada, pois é ela que, pela repetição e interação entre os atores do 4

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“Coisas ditas” também referencia um livro de Pierre Bourdieu (2004), que reúne algumas de suas conversas com etnólogos, economistas e sociólogos, através de entrevistas realizadas em ocasiões distintas, sendo, todas elas, relacionadas a aspectos do seu trabalho intelectual e de suas obras. Trata-se praticamente de um auto-retrato intelectual de Bourdieu, a partir de uma perspectiva da filosofia da ciência.

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A doutrina também trata a imparcialidade como pressuposto processual de validade, mencionando que além de competente, o juiz também deve ser imparcial, isto é, ao exercer a jurisdição o juiz deve ser capaz de “receber e apreciar com isenção espírito os argumentos e provas trazidos por cada uma das partes, para, com a mesma isenção, vir a decidir” (BRAUN, 2013)

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Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar?

Fernanda Duarte, Bárbara Gomes Lupetti Baptista e Rafael Mario Iorio Filho

uma certa moralidade) sobre a norma, e, por causa dessa suposta honestidade em escrever exatamente aquilo que pensavam sobre os casos, foram punidos. O primeiro caso refere-se a um juiz de São Paulo que foi punido com a pena de censura pelo Órgão Especial de seu Tribunal de Justiça. O segundo caso trata de um juiz de Minas Gerais, afastado pelo CNJ com pena de disponibilidade compulsória. Em um dos casos, o Juiz expressava opiniões pessoais sobre homossexuais e no outro, um pensamento considerado machista. Independentemente de discutir os conteúdos preconceituosos de ambas as decisões, aqui nos interessa pensar sobre o que o nosso sistema “quer dizer” quando, de um lado, impõe aos magistrados o dever de explicitar as razões de decidir nas sentenças, sendo este o controle democrático das decisões judiciais, e, de outro lado, pune aqueles que expressam sinceramente as suas motivações, como se se rebelassem? Daí, o que aqui chamamos de lógica de interdições. Foram essas as reflexões que ensejaram a inquietação expressa no texto.

democrática fundada na justificação. Tanto que a efetiva participação e controle das decisões judiciais através da motivação é requisito revelador do princípio do Estado Democrático de Direito. Segundo o processualista JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (1998, p. 90):

O dever de motivação e as “premissas ocultas imperceptíveis”6 O Novo CPC determina uma nova sistemática para a fundamentação das decisões judiciais, bastante mais rígida do aquela proposta pelo CPC de 1973. Ao explicitar, no parágrafo 1º. do artigo 4897, o que não considera como decisão fundamentada, o Novo Código fixou parâmetros rígidos para nortear a atividade judicial, combatendo as fundamentações genéricas; decisões que não enfrentam todos os argumentos deduzidos no processo; a aplicação inadequada de precedentes; emprego de conceitos jurídicos indeterminados, sem, contudo, concretizá-los no caso, entre outras hipóteses não exaustivas. Ao prescrever o que não é uma decisão fundamentada, o artigo 489 estabeleceu um núcleo mínimo de conteúdo ao qual se deve sempre observância quando da elaboração do ato judicial decisório. Igualmente, o direito fundamental da motivação dos atos judiciais também já estava consagrado no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988. A exigência da motivação traduz-se no dever constitucional, imposto aos órgãos judiciais, de fundamentar, racionalmente, o sentido tomado pelo pronunciamento jurisdicional. É essa garantia que legitima a atuação do Poder Judiciário, que, por não ter passado por um processo eleitoral, tem sua legitimidade 6 7

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Frase enunciada por PORTANOVA (2003, p. 15). Os magistrados reagiram ao dispositivo, pedindo o veto ao artigo 489, que traz regras para fundamentação de decisões, como bem revela reportagem do CONJUR de março de 2015 (http://www.conjur.com.br/2015-mar-04/juizes-pedem-veto-artigo-cpc-exigefundamentacao). O pedido de veto foi feito pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Porém, o dispositivo foi aprovado e, embora em vigor, já há sérias controvérsias sobre seu sentido e alcance, conforme noticia JOTA, em outubro do ano passado (http://www.conjur.com.br/2015-mar-04/juizespedem-veto-artigo-cpc-exige-fundamentacao).

[...] o controle ‘extraprocessual’ deve ser exercitável, antes de mais nada, pelos jurisdicionados ‘in genere’, como tais. A sua viabilidade é condição essencial para que, no seio da comunidade, se fortaleça a confiança na tutela jurisdicional – fator inestimável, no Estado de Direito, da coesão social e da solidez das instituições. 

Ou seja, a dogmática processual relaciona o dever de fundamentação com o controle democrático da atividade jurisdicional e, consequentemente, assegura a imparcialidade, ao trazer luz aos motivos da decisão. De nossa parte, quer em razão de nossas atuações no campo como “operadores”8 do direito, quer como pesquisadores, percebemos que o nosso sistema judicial permite aos magistrados o exercício de amplos poderes e possibilidades de escolhas. Assim, nos fazemos algumas perguntas: de fato, os magistrados explicitam na fundamentação as suas efetivas razões de decidir? Ou se devido às formalidades inerentes à jurisdição, ocultam certos motivos, traduzindo-os em argumentos jurídico-racionais que são aqueles com circulação liberada, de “livre-trânsito, e portanto legítimos no campo? “Os juízes fazem o que eles querem”. Esta frase é recorrente campo jurídico, reproduzida com naturalidade pelos seus agentes, como por exemplo os advogados. Em audiências, julgamentos e entrevistas realizadas por LUPETTI BAPTISTA (2013), em suas pesquisas etnográficas, ouviu-se, com frequência, magistrados afirmando: “Eu estou querendo deixar essas famílias lá. Já estão lá há mais de dez anos...”; “Eu não queria que ele fosse preso”; “Eu quero dar um jeito de conceder a ordem”; “Não tem um jeito de a gente interpretar isso aqui de outra forma?”; “Não podemos fechar os olhos. O caso é dramático. Por que não pede vista para ver se a gente dá um jeito de solucionar isso aqui?”; “Eu não quero julgar contra”. KHALIL (2011, p. 160) também entrevistou magistrados que manifestaram essa possibilidade. Um deles, admitindo que o ordenamento jurídico é extremamente aberto, lhe disse: “O juiz pode decidir do jeito que quiser, que encontrará de algum modo amparo no ordenamento.”. E exemplifica: “O STJ inventou que cabia prisão na hipótese de inadimplemento das três últimas pensões [alimentícias]. Nunca segui, porque é uma tremenda besteira.”. Outro magistrado lhe disse que, em determinados casos, quando lê a inicial, ele acha que o autor tem razão, mas, depois, ao ler contestação, fica em dúvida e acaba fazendo o que “quer” (KHALIL, 2011, p. 303): “Aí você vai adotar as suas premissas [...] e você faz o que você quer.”. E outro confirmou o mesmo (KHALIL, 2011, p. 314): “Eu sempre falei: ‘o juiz faz o que ele quer, faz o que ele quer’ [...]”. 8

No particular, as autores do texto tem carreiras paralelas a de pesquisadores, uma delas é advogada militante e outra, juíza federal.

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Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar?

Fernanda Duarte, Bárbara Gomes Lupetti Baptista e Rafael Mario Iorio Filho

NALINI (2012), em seu ensaio sobre a “Humildade do Juiz”, também expressa:

já que a controvérsia tende ao infinito e não há espaço para a construção do consenso. Logo, o juiz na condução do processo e no momento de decidir, se vê diante da necessidade de preencher e de ocupar esses espaços vazios criados por um sistema fundamentado em abstrações, contradições e ambiguidades, não dispondo, o julgador, de consensos compartilhados que pudessem orientar a decisão com a prevalência dos entendimentos de forma mais objetivável. KANT DE LIMA (2010, p. 42) explica esse sistema a partir da propositura de dois modelos de sociedades: a do paralelepípedo e a da pirâmide, nos tocando a representação piramidal.

O juiz sabe que ele julga como quer. É fácil encontrar argumentos contra ou a favor de qualquer das teses. Fundamental se torna a sua profunda honestidade intelectual, fomentada pela humildade intelectual, para que, no ato de julgar, não prevaleçam as idiossincrasias, os preconceitos, o comodismo ou qualquer outro subjetivismo, sobre a missão de fazer justiça. (destaques nossos) A ausência de consenso oficial sobre o conteúdo da lei concede aos magistrados – ou melhor, deles exige – o preenchimento dos vazios. E o nosso sistema jurídico está definido por uma lógica que opera na divergência, nas “correntes interpretativas”, o que marca ausência de consenso e, por conseguinte, implica significados normativos desiguais para situações fáticas semelhantes9. Para IORIO FILHO e DUARTE (2015), essa lógica é a lógica do contraditório10, na qual as práticas jurídicas discursivas apresentam-se como verdadeiras disputas de “teses ou entendimentos ou posicionamentos ou correntes” que só se encerrarão por um ato de vontade da autoridade competente (expresso na decisão judicial)11, Problematizando a questão da ausência de igualdade jurídica nas decisões judiciais, ver DUARTE e IORIO FILHO (2014). 10 Alertamos para o fato que a lógica do contraditório não se confunde com o princípio do contraditório que tem previsão constitucional e é compreendido como uma importante garantia processual. A lógica do contraditório é uma estrutura mental, uma mentalidade (mindset) que molda uma certa forma de operação discursiva. “Se o princípio do contraditório, tal como tratado pela doutrina e previsto em textos normativos, diz respeito a um “dever ser” no âmbito do processo, a lógica do contraditório é categoria do “ser”, pois viabiliza uma compreensão da realidade do mundo jurídico, descrevendo o seu funcionamento no plano discursivo. Desta forma, esta lógica é verificada na empiria e permite explicitar sentidos e práticas que também caracterizam a cultura jurídica brasileira”. (IORIO FILHO e DUARTE, 2015) Para um aprofundamento destas categorias e distinções nos remetemos ao texto referenciado. 11 A força dessa ideia de autoridade pode ser vista na conhecida manifestação do Ministro Humberto Gomes de Matos, em decisão proferida no recurso AgReg em ERESP 279.889AL, no ano de 2001, é ilustrativa no que toca ao papel desempenhado pela “autoridade” (decorrente da investidura por lei no cargo de juiz) e pela vontade individualizada do julgador: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de 9

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No paralelepípedo, onde o topo é igual à base, a sociedade era composta de indivíduos portadores de interesses diferentes, mas iguais em direitos, fato que os coloca em oposição e conflito permanentes. A desigualdade de status, assim, se dava em termos das escolhas melhores ou piores que os indivíduos faziam entre as opções disponíveis no elenco daquelas publicamente dadas. As regras eram sempre vistas como de origem e legitimidade localizada, limitadas a um universo definido. Tinham interpretação literal e aplicavamse universalmente, de maneira uniforme, a todos. No caso da pirâmide, a base é maior que o topo. A sociedade é composta de segmentos desiguais e complementares que devem se ajustar harmonicamente. As regras são sempre gerais para toda a pirâmide, mas como se destinam a segmentos desiguais em direitos e interesses, devem ser aplicadas particularizadamente através de sua interpretação por uma autoridade.

Retomando à expressão “fazer o que quer”, essa é uma categoria que, no trabalho de campo, apareceu representada pelo conceito de “decidir segundo uma convicção pessoal sobre o que parece ser o mais justo diante de determinada situação” e não necessariamente julgar de forma interessada ou comprometida com alguma das partes do processo. Parece-nos que este alargamento interpretativo (que sugere uma percepção de equidade, de busca pela “justiça” ainda que seja uma compreensão da justiça particularizada daquele ou deste juiz) seja necessário porque nosso sistema, espelhado no modelo piramidal, não está desenhado por vetores de universalização da compreensão normativa que produzam padrões inclusivos, protocolos e consensos objetivos aos quais todos devem se adequar por raciocínios de semelhanças e diferenças e assim, por princípio, deferir ao consenso estabelecido em face do dissentimento individual. Entre os agentes do campo (intérpretes da norma, com o sem a definitividade judicial), a cada um, individualmente, e contraditoriamente, cabe preencher de significados e representações o conteúdo da lei, da prova, dos fatos, da doutrina, do processo, da verdade, compreendendoas de forma particularizada já que as partes da sociedade piramidal são desiguais. que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja”.

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Talvez como uma espécie de compensação dessa particularização inevitável produzida pelos arranjos do modelo piramidal é que a “garantia” da imparcialidade da ordem jurídica decodificada pelo juiz seja o eixo simbólico da fundamentação das decisões judiciais, como se vê a doutrina que citamos abaixo (daí falarmos em crença da imparcialidade). CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO (2008, p. 74) sustentam expressamente que o dever de motivação está a serviço de “aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das decisões”. BEDAQUE (2009, p. 111) também: “sem dúvida alguma, a melhor maneira de preservar a imparcialidade do magistrado é impor-lhe o dever de motivar suas decisões”. GRECO (2005) trata a fundamentação das decisões como uma dupla exigência: de um lado, permitir que os cidadãos verifiquem se a decisão é logicamente consistente e se o juiz se empenhou para que fosse a mais acertada possível, com base nos fatos e provas constantes dos autos; e de outro lado, impor ao juiz que demonstre que considerou todos os argumentos e avaliou todas as provas, explicitando por que considerou umas mais do que outras. Trata-se de mecanismo de controle da atividade jurisdicional (GRECO, 2005, p. 254-255). LOPES (2006, p. 50-51) também trata a fundamentação das decisões como “uma garantia fundamental que visa proteger o direito do cidadão”, tendo como principal característica que o juiz dê conhecimento às partes “dos motivos que inspiraram o magistrado a proferir sua decisão.”. Segundo a autora, a fundamentação dá “segurança às partes e à sociedade, pois permite que haja um controle maior da prestação jurisdicional.” BEDAQUE (2009, p. 153) crê que o dever de motivar a decisão limita a discricionariedade do juiz. Para ele, o que diferencia a interpretação da lei da discricionariedade é o dever que o juiz tem de fundamentar. Para ele, o juiz tem, de fato, várias decisões tecnicamente possíveis, mas apenas uma que é a decisão correta. A correta é a que o juiz escolhe12.

Entretanto numa outra linha, mas colocando as decisões judiciais no mesmo lugar de importância que propomos neste texto, GARAPON e PAPADOPOULOS (2008, p. 137) descrevem o julgamento como sendo um “ato retórico que tende a convencer as partes do bom fundamento da decisão que ela contém”. No entanto, no caso dos juízes da nossa tradição (ele está falando da França – civil law), “ele não precisa se justificar”. Eles “enunciam escolhas interpretativas”14. Ora a dogmática sustenta que a motivação da decisão judicial é o mecanismo de controle da imparcialidade do juiz e de garantia dos próprios jurisdicionados, porque ela permite, através da leitura da sentença, perceber as causas que motivaram o magistrado a julgar o pedido procedente ou improcedente. Entretanto, este ônus processual assume contornos de racionalidade quando mascara as motivações reais da decisão, nos termos de PORTANOVA (2003), transformando o que é subjetivo em uma linguagem supostamente fria, racional e objetiva. Ou seja, se o dever de motivação é o que limita a discricionariedade e a motivação é disfarçada por mecanismos de racionalização, o resultado disso é, novamente, simbólico. Se na motivação a motivação está obscurecida, a motivação não controla nem restringe nada. Um juiz nos disse o seguinte:

Entre todas [as soluções possíveis] cabe ao juiz escolher aquela que, em seu entender, representa a vontade da lei13 no caso concreto. Por mais amplo que seja o campo de atuação do juiz, no exercício da função de buscar o sentido da lei, sua decisão [...] representará a única solução possível para a situação examinada, segundo seu entendimento [...] ela representa a única opção correta para o intérprete que a adotou.

A grande vantagem da nossa absoluta, praticamente absoluta autonomia pra decidir, é que se você fizer uma decisão fundamentada, qualquer que seja a fundamentação, mesmo que incoerente, ela pode até ser reformada, mas ela não é nula, não tá errada, tecnicamente ela não tá errada. Se eu quiser, se eu quiser, coloco uma fundamentação à luz de princípios e pronto, faço de tudo com isso. É muito raro uma sentença tecnicamente errada. Ela pode até ser reformada, dependendo do que eu decidir, dependendo do desembargador e tal, mas ela não tá tecnicamente errada.

Quando questionados os interlocutores sobre o que seria considerada uma decisão tecnicamente errada ou susceptível de anulação, eles disseram: “aquelas que mostram, descaradamente, que o juiz julgou por um preconceito, que é machista, racista, tá julgando daquele jeito por puro preconceito.”. Tais considerações nos levam a pensar que o sistema abriga um mecanismo de mascarar as subjetividades e opiniões pessoais: os princípios – que são instrumentalizados para dar os contornos de racionalidade que o campo exige para evitar a nulidade da decisão15. Essa questão da escolha interpretativa, inclusive, se revela no debate sobre existir uma única resposta certa ou a melhor resposta certa, como se vê no trecho em seguida de STRECK (2010, p. 98) um dos ardorosos defensores entre nós da resposta constitucionalmente correta, a ser alcançada por uma hermenêutica adequada, crítico assim do fato dos juízes escolherem: “Em outras palavras, a escolha é sempre parcial. Há no direito uma palavra técnica para se referir à escolha: discricionariedade e, quiçá (ou na maioria das vezes), arbitrariedade. Portanto, quando um jurista diz que o ‘juiz possui poder discricionário’ para resolver os ‘casos difíceis’, o que quer afirmar é que, diante de várias possibilidades de solução do caso, o juiz pode escolher aquela que melhor lhe convier...!” 15 Sobre os usos dos princípios, ver um outro trabalho nosso SILVA, LUPETTI BAPTISTA e IORIO FILHO (2015). 14

CAMPANELLI (2006, p.102) igualmente sustenta que a atividade judicial encontra limites na obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais. Segundo a autora, a motivação da decisão é o que permite constatar os motivos pelos quais a decisão foi proferida, bem como a linha de raciocínio utilizada e os motivos que formaram o convencimento do juiz. Sobre o livre convencimento do juiz, o trabalho de TEIXEIRA MENDES (2009) é decisivo. 13 Aqui, se traduz a expressão de poder a que a imparcialidade serve. A lei não tem vontade. O juiz sim. Mas como ele se autoconfigura como sendo o Estado-juiz, a vontade dele ganha força de lei; a lei do caso concreto. 12

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A lógica de interdições na gramática das decisões judiciais: entre o mundo interno e o mundo externo do Juiz “Você é treinado a não perder a sua placidez. Você é um profissional propenso a ouvir os maiores absurdos, sem demonstrar emoção.”. (KHALIL, 2011, p. 308) É curioso que um sistema que precisa sustentar a aparência de imparcialidade, acabe por exigir de seus membros uma necessária contenção de sentimentos. Para parecerem imparciais, por mais paradoxal que seja, os juízes, seres humanos, constituídos dos mais distintos sentimentos, precisam se controlar e exercitar aquilo que chamamos de uma “contenção obrigatória dos sentimentos”, em uma alusão maussiana (MAUSS, 2009, p. 325-335)16, sugerindo uma lógica de interdições. KHALIL (2011:155) narra em seu livro o depoimento de um magistrado que não esconde os seus sentimentos e muito menos se preocupa com a sua imagem jurisdicional. O juiz do livro se autointitula demasiado aberto, diferente do perfil exigido para um juiz, um tanto exótico, e, segundo ele próprio, “deixa todo mundo à vontade em audiência”. Ele contou que uma vez estava presidindo uma audiência e fez o seguinte: 16

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Marcel Mauss (2009, p. 325-335) tem um texto muito interessante – intitulado “a expressão obrigatória dos sentimentos (rituais orais funerários australianos)” – que nos serviu de inspiração. Neste artigo, ele trata os sentimentos como fenômenos sociais, não exclusivamente individuais e subjetivos; não espontâneos, mas obrigatórios, ritualizados, previsíveis. Segundo ele, nos rituais funerários australianos, é preciso expressar determinados sentimentos. Existem manifestações sensíveis obrigatórias, expressas por pessoas encarregadas de explicitar pesar. O texto é especialmente curioso, porque mostra que os sentimentos manifestados nesses rituais, por serem obrigatórios, não são necessariamente genuínos, mas ao olhar externo, precisam ser expressos. Segundo Mauss, esses rituais não excluem necessariamente a sinceridade, mas preveem, por exemplo, uma “quantidade convencional de choros e de gritos” (2009, p. 330). A leitura ajuda a entender as formas de interação social naquele grupo e, tangencialmente, permite fazer um paralelo com os sentimentos do Judiciário. Ao contrário dos rituais, em que os australianos expressam aquilo que não necessariamente sentem, no mundo dos nossos tribunais, os magistrados escondem aquilo que sentem. Por isso, menciono a contenção obrigatória em contraponto à expressão obrigatória. Para Mauss (2009, p. 332), de qualquer forma, aquela linguagem do grupo social comunica sentimentos e emoções, porque elas “são mais do que simples manifestações, são sinais, expressões compreendidas, em suma, em uma linguagem.”. “São signos e símbolos coletivos” (MAUSS, 2009, p. 334). Ao não expressar sentimentos ou fraquezas, os magistrados também expressam (em sua omissão de expressar). A eficácia da contenção dos sentimentos está a serviço de manter viva a crença na imparcialidade judicial e sugere uma lógica de interdições.

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Outro diz fiz a audiência de uma moça que bateu o carro. Chamei-a de ‘barbeira’ até dizer chega. Eu queria que ela reconhecesse ‘ter feito uma senhora barbeiragem e parasse com bobagem’. Ainda brinquei com ela: ‘Mas você não é loira! Se fosse loira ainda lhe daria ganho de causa. Mas não sendo, é imperdoável. (KHALIL, 2011, p. 155)

Na maioria dos casos, no entanto, os magistrados interlocutores da pesquisa – aqui usada como referencial empírico do texto – manifestaram que não podem “escrever tudo na sentença” e nem tampouco “se expor completamente” nas audiências e julgamentos e o motivo que pareceu foi este aqui, evocado por um Juiz: “eu acho que isso tem tudo a ver com a imparcialidade. Você pode até não concordar, você tem o teu direito de ter aversão pessoal pela parte etc., mas não pode transparecer isso no seu contacto pessoal com ela.”. KHALIL (2011, p. 293) entrevista um juiz que fala literalmente sobre a blindagem que a magistratura impõe. Segundo ele, o juiz tem de ficar muito “recolhido” e isso, inclusive, o “inibiu”. Para ele, “o juiz é um ser naturalmente comedido, discreto, reservado, como se isso o liberasse de ter os conflitos pessoais, que ele tem, em cada processo. Ele não é um autômato, um robô.”. Na pesquisa de campo, ficou claro que a impossibilidade de expressar sentimentos também comunica e também tem algo a dizer. A visibilidade da imparcialidade exige a contenção dos sentimentos e emoções, sendo certo que esta invisibilidade dos aspectos pessoais e humanos dos juízes fica a serviço de manter viva a crença na imparcialidade judicial, que conforma ou acomoda a explicitação de uma certa forma de prestar jurisdição e naturaliza ainda mais as aplicações particularizadas de nosso direito que se justificam no dizer recorrente do campo “cada caso é um caso”. Uma juíza contou um caso dramático que viveu. Disse que sentiu “muita raiva”, mas teve de ficar ali, segundo ela, “parecendo neutra”. Tive um caso, que vou julgar em breve, muito dramático, muito triste. A AIJ deste caso foi muito dura, muito dura...este vai ser um caso muito difícil de julgar. Vou ter de julgar, me afastar, depois voltar no caso...acho que vou demorar um tempão...era um caso em que um bebê morreu e os pais pedem indenização por erro médico. O bebê tinha muitas complicações e ia falecer mesmo, ao que tudo indica, mas o que se quer apurar é se a demora do médico colaborou com o evento morte. Na AIJ o médico se mostrou tão frio. Ele falava do bebê como se não fosse nada. Como se fosse normal que ele tivesse morrido...quem viu o médico na AIJ ficou com raiva dele. Foi um sentimento geral de muita raiva dele...o desprezo por aqueles pais, que estavam atônitos....na AIJ ainda parecia que não acreditavam no que tinha acontecido...e ele tão indiferente...dava vontade de voar nele...o depoimento dele deu muita raiva...mas você tem que ficar ali, neutro. Distante...não pode demonstrar, senão fica suspeito por julgar com sentimento...e o sistema exige de você uma racionalidade.

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Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar?

Outra juíza disse que quando tem vontade de chorar, sai da sala de audiências, para que ninguém perceba. HALIS (2010, p. 152-155) expõe em seu trabalho o que denomina de “teoria da racionalização posterior”, que aqui está sendo mobilizada para ajudar a compreender os contrastes entre aquilo que motiva os magistrados em suas razões de decidir e aquilo que, de fato, aparece escrito na decisão judicial. HALIS assim se expressa, definindo o que quer dizer: A sentença ou o acórdão não expressa as razões ‘reais’ da decisão, mas apenas aquelas socialmente aceitáveis. Por ‘reais’ deve-se entender uma preocupação em pôr a prova os dogmas legais que ‘camuflavam’ uma defasagem entre as formas prescritas de atuação, as justificativas declaradas, e os comportamentos que eram, de fato, adotados pelos juízes. Isto é, envolve as razões ‘efetivas’ da decisão. A ‘teoria da racionalização posterior’ pode ser entendida como o processo de se racionalizar, utilizando fundamentos legais e socialmente aceitáveis, por meio de uma suposta operação lógico-racional consciente, as decisões que, de fato, foram determinadas primordialmente por elementos subjetivos (preferências pessoais, referências cognitivas particulares, intuição etc. do julgador) não declarados. Pode-se dizer que se fala da motivação em dissintonia com a fundamentação. Pode-se dizer que a primeira (motivação) determina a segunda (fundamentação), porém esta não explicita aquela, seja porque isso violaria a crença na objetividade, seja porque ela afetou o próprio ‘olhar’ do julgador, dirigindo-o de forma inconsciente [...] resta, então, a pergunta: existe imparcialidade ou se está diante de uma racionalização da parcialidade do juiz?

HALIS (2010, p. 154) destaca que, “para o bem ou para o mal”, existe o papel ativo preponderante exercido pela subjetividade do julgador, mesmo que isso não seja expressamente declarado na decisão judicial. Um advogado disse: Vejo a questão da decisão de duas formas. Primeiro, o juiz quando quer decidir, ele decide. Se decide ajudar a pessoa, vai buscar no processo formas de garantir e validar isso juridicamente. E outra coisa, o juiz procura direcionar as perguntas na audiência, quando formou sua convicção. E quando as perguntas não são suficientes, ele passa a mudar as respostas pra julgar da maneira que ele quer. Acontece.

Um juiz explicou didaticamente como o ônus de motivação é importante e como está associado às subjetividades e moralidades do julgador, que vai sempre tomar decisões orientado por esses juízos individuais, mas, por dever de ofício, deve racionalizar isso. Eis o que disse o magistrado: Tem um neuro cientista que escreveu um livro com uma história interessante [o livro ao qual o juiz se refere intitula-se “O erro de Descartes” e o cientista, Antonio Damásio]. O sujeito trabalhava numa mina, explodiu um negócio na mina, e o cara foi atingido por um ferro que perfurou sua cabeça. E isso

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afetou a parte da cabeça dele vinculada aos juízos morais. Ele continuou racionalmente perfeito. Mas o cara perdeu totalmente seus freios morais, o que é inconveniente, enfim, ele perdeu a noção de convivência e conveniência social, perdeu totalmente esse senso. E por causa disso, o cara não conseguia tomar decisões banais na vida dele. Era totalmente incapaz de decidir coisas banais. Então, isso me lembra o positivismo. Aquilo que o positivismo meio que engendra como o juiz ideal, que o positivismo idealiza, que é aquele juiz frio, que analisa fatos e tal, e assim decide racionalmente, na verdade esse cara é incapaz de proferir uma decisão racional. O frio, o neutro, não consegue tomar decisões racionais. Porque, ao final, toda decisão judicial é, em ultima instância, uma decisão sobre uma norma de moralidade. Sempre. Então, para o cara ser um bom juiz, conservador, ou progressista, ou qualquer outra coisa, o cara tem de ser capaz de atingir juízos morais. A questão é que como o processo é de racionalização, ele tem de ser capaz de fundamentar racionalmente a conclusão, o juízo moral que ele proferiu. Eu me preocupo muito com esses mecanismos de controle público, pôr no papel os elementos que ao menos conscientemente eu interpreto que interferiram na minha conclusão. Senão, o sistema não funciona democraticamente.

Desde 1935, quando Calamandrei editou a primeira versão do seu clássico “Eles, os juízes, vistos por um advogado”, ele já sustentava aquilo que hoje a dogmática ainda insiste em tentar obscurecer: “em matéria judiciária, o teto pode ser construído antes das paredes” (CALAMANDREI, 1995, p. 177). Quer dizer, “às vezes acontece que o juiz, ao formar a sentença, inverta a ordem normal do silogismo” e “encontre antes a conclusão”. (CALAMANDREI, 1995, p. 176). Traçar o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à conclusão da sentença é visto como ideal, mas, desde 1935, CALAMANDREI (1995, p. 175) já desconfiava (e se perguntava): “mas quantas vezes a fundamentação é uma reprodução fiel do caminho que levou o juiz até aquele ponto de chegada?”. Ele mesmo não tem condições de, com exatidão, explicitar esses motivos. O dispositivo da sentença (conclusão) não surge “às cegas”, mas nem sempre ele é fruto de rigoroso raciocínio jurídico, sendo, recorrentemente, fruto de “arbítrio”, “escolhas” ou, em outras palavras, como diria CALAMANDREI (1995, p. 177), “a intuição e o sentimento muitas vezes têm um papel bem maior do que parece a quem vê as coisas de fora. Não é por nada, diria alguém, que sentença deriva de sentir.”. (TEIXEIRA MENDES, 2012 e KANT DE LIMA, 2010) Por mais que o ônus da imparcialidade exija um juiz objetivo, neutro, frio, que julgue sem se condoer, os dados etnográficos e os juristas críticos sugerem que este distanciamento não é possível de se concretizar na vida real. Sentimentos e intuição orientam a tomada de decisão do juiz e tem mais peso do que os tecnicismos e rigores processuais. A motivação acaba se transformando em uma ferramenta de “conceber a posteriori os argumentos lógicos mais aptos a sustentar uma conclusão já sugerida antecipadamente pelo sentimento”. (CALAMANDREI, 1995, p. 178). Nesse sentido, o juiz decide primeiro, isto

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é, forma seu “convencimento” – decide se autor da ação tem ou não razão; se o “direito lhe socorre” – e depois fundamenta o que decidiu. Para sustentar esta crença, o que o dever de ser imparcial faz é esconder valores e sentimentos pessoais através da racionalização da decisão judicial – o que obscurece os juízos morais que interferem no processo de julgamento. Mas, na realidade, o mecanismo de julgar não ignora as moralidades do ser humano que toma a decisão, por mais que lhe exijam abstração. Como disse uma juíza, “a nossa sensibilidade moral” condiciona a nossa razão de decidir. Ou seja, a sentença é fruto do sentimento ou da sensibilidade do magistrado, mas a sua manifestação escrita não pode expressar esses sentimentos. Ele pode sentir, mas não pode expressar que sentiu! Apesar de ter de motivar e explicitar o caminho da decisão, por dever de ofício, já que a fundamentação é a garantia da imparcialidade! Este aparente paradoxo sugere o quanto o nosso sistema é curioso e ambíguo pois para sustentar a aparência de imparcialidade, impõe aos seus operadores uma necessária contenção da expressão dos sentimentos que orientam os seus atos, ao mesmo tempo em que os obriga a observar o dever constitucional de motivar esses mesmos atos. Ou seja, para parecerem imparciais, os juízes, seres humanos, constituídos de sentimentos e moralidades, precisam contê-los na hora de sentenciar, embora sentença venha do verbo sentir! Esta parece ser mais uma lógica – que neste trabalho já nomeamos de lógica da interdição - que também conforma o campo jurídico e integra sua gramática decisória.

sede de liminar, o juiz obteve a suspensão da pena e o seu retorno à titularidade da vara. Até hoje ainda não foi proferida decisão definitiva, confirmando ou afastando a liminar no âmbito do colegiado do STF. Transcrevemos apenas pequenos trechos das decisões.

Os juízes que expressaram as suas razões “reais” de decidir: “o que não dizer, quer dizer” – quando a lógica da interdição é violada?

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Os casos abaixo narrados demonstram, por contraste, que, embora o sistema pretenda a contenção dos sentimentos através da racionalização das motivações “reais” da decisão, nem sempre os operadores adotam posturas empíricas correspondentes à visão idealizada e prescrita no campo. E é justamente quando esta visão é superada, que conseguimos observar as incoerências e paradoxos do sistema e, com isso, compreendê-lo melhor. O primeiro caso refere-se a um juiz de São Paulo que foi punido com a pena de censura pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que é composto por todos os desembargadores que compõem aquele Tribunal. O segundo caso é mais complexo. O juiz é de Minas Gerais. No âmbito do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais o processo disciplinar proposto contra o juiz foi arquivado. A associação de magistrados foi ao Conselho Nacional de Justiça. No âmbito do CNJ o juiz foi punido. O CNJ afastou o Juiz com pena de disponibilidade compulsória. O juiz foi ao Supremo Tribunal Federal e, em

CASO 01 – TJSP – Processo nº 936-07: [...] O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal...15. Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio, por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade, ou existencial; desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube. 16. Precisa, a propósito, estrofe popular, que consagra: ‘CADA UM NA SUA ÁREA, CADA MACACO EM SEU GALHO, CADA GALO EM SEU TERREIRO, CADA REI EM SEU BARALHO’. 17. É assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo! [...]. (grifos do juiz)

CASO 02 (oriundo do TJMG) – Trechos extraídos da decisão proferida no STF - Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 30.320 Se, segundo a própria Constituição Federal, é Deus que nos rege – e graças a Deus por isto - Jesus está então no centro destes pilares, posto que, pelo mínimo, nove entre dez brasileiros o têm como Filho daquele que nos rege. Se isto é verdade, o Evangelho dele também o é. E se Seu Evangelho – que por via de consequência também nos rege – está inserido num Livro que lhe ratifica a autoridade, todo esse Livro é, no mínimo, digno de credibilidade – filosófica, religiosa, ética e hoje inclusive histórica. Esta ‘Lei Maria da Penha’ – como posta ou editada – é, portanto, de uma heresia manifesta. Herética porque é antiética; herética porque fere a lógica de Deus; herética porque é inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta. Ora! A desgraça humana começou no éden: por causa da mulher – todos nós sabemos – mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem. Por isso – e na esteira destes raciocínios – dou-me o direito de ir mais longe, e em definitivo! O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi Homem! À própria Maria – inobstante a sua santidade, o respeito ao seu sofrimento (que inclusive a credenciou como ‘Advogada’ nossa diante do Tribunal Divino) – Jesus ainda assim a advertiu, para que também as coisas fossem postas, cada uma em seu devido lugar: ‘que tenho contigo, mulher!? [...].

Durante o trabalho de campo aqui utilizado, muitos interlocutores disseram que ser imparcial significava se limitar ao que consta no processo, sem considerar fatores “extra autos” na sua condução e na construção da decisão judicial.

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Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar?

“O que não está nos autos não está no mundo” é um dogma do nosso campo. Todos nós ouvimos isto desde os bancos da faculdade. E ele é o dogma que materializa o ideário da imparcialidade judicial. Ele proclama a imparcialidade. Nos casos estudados [selecionados como representativos da lógica da interdição que ajuda a explicar o funcionamento do nosso sistema de decisões judiciais na perspectiva de uma gramática decisória e que visa obscurecer as razões de decidir, traduzindo-as em decisão racional], os juízes explicitaram as suas razões de decidir e expressaram que nem sempre as decisões judiciais são fruto apenas de interpretações jurídicas ou, talvez, que a forma de interpretar o jurídico esteja perpassada por moralidades pessoais, que o sistema prefere obscurecer. Nos casos concretos apontados, os juízes que expressaram suas motivações e moralidades – isto é que romperam com a lógica da interdição – foram punidos. Será que se eles tivessem “traduzido” as suas razões de decidir em princípios jurídicos ou precedentes jurisprudenciais teriam sido punidos? Foram eles ingênuos ao desconhecerem que o sistema não pretende a revelação das “motivações ideológicas das sentenças”? (PORTANOVA, 2003). Utilizamo-nos dos casos para problematizar o que me parece ser um paradoxo do nosso sistema. De um lado, os magistrados têm o dever de motivar suas decisões e explicitar suas razões de decidir. De outro lado, não podem fazer isso “de qualquer jeito”. É preciso obscurecer razões pessoais, a fim de “fazer parecer” uma suposta imparcialidade que precisa ser preservada, ainda que apenas “no papel”. O dever dos magistrados consiste, então, em escrever na sentença os fundamentos verdadeiros que os levaram a decidir de tal forma ou a fundamentação oficial tem de ser “um biombo dialético para ocultar os móveis verdadeiros, de caráter sentimental ou político, que levaram o juiz a julgar” de determinado modo? (CALAMANDREI, 1995, p. 191). CRUZ E TUCCI (1998, p. 72) fala expressamente que os “verdadeiros fundamentos não vêm expressos na sentença judicial, mas se encontram velados no espírito do julgador [...] vem do sentimento do juiz”. Um juiz entrevistado por KHALIL (2011, p. 262) lhe disse: “Eu não externo. O juiz não escreve tudo o que pensa. Duvido que algum juiz ponha em seus autos todo o seu pensamento. O que o juiz externa, digamos assim, é uma apresentação mínima dos fundamentos do seu julgamento. Não é o todo.”. (grifos do autor). ARAÚJO (2002, p. 62), em seu livro sobre “a parcialidade dos juízes” é preciso: Não raro, a verdadeira motivação de decidir não está no papel, mas apenas no coração do julgador, com inspiração na simpatia ou antipatia com que ele tenha colhido determinada prova, postura de quem a forneceu, grau de interesse que possa ter por certo tipo de causa, ou mesmo desinteresse que tenha pela causa etc.. Existem meandros na alma do julgador que não

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permitem que seus sentimentos fiquem à mostra, mas que são capazes de desencadear julgamentos injustos, em razão da parcialidade, que se sabe existir, embora não se possa provar.

Por isso, nosso título referencia Bourdieu (1983): neste caso, “o que não dizer, quer dizer”? Ao que parece, os dados demonstram que o sistema tem um discurso explícito e outro implícito, ambos contraditórios entre si; ou talvez, ambos conformadores de um sistema distinto daquele idealmente posto. De um lado, o sistema enuncia que os juízes têm o dever de motivar as decisões judiciais, explicitando as razões de decidir, porque é assim que se controla democraticamente a Jurisdição. De outro lado, no entanto, o mesmo sistema sugere aos mesmos juízes que se controlem, “policiem” na expressão dessa motivação, porque, em nome da aparência de imparcialidade, é preciso ter cautela na motivação das decisões judiciais e, para tanto, a punição dos magistrados referenciados foi exemplar na tradução da lógica que pretendemos pôr sob descrição.

Conclusões possíveis: caixa-preta ou caixa de Pandora? “Cada juiz é um poder judiciário.”. E os juízes são “profundamente afetados por sua concepção de mundo [...] valores ocultos inspiram a decisão judicial.”. (PORTANOVA, 2003, p. 15-16). Embora esta máxima seja “óbvia”, como se dizia entre os interlocutores ouvidos por LUPETTI BAPTISTA (2013) em sua tese de doutoramento, no sentido de que “todo mundo sabe que existem razões ocultas nas razões de decidir”, é certo que o sistema trabalha com mecanismos de defesa da explicitação dessa realidade, a fim de manter vivas outras crenças que o sustentam, como a crença no controle democrático da jurisdição e de sua imparcialidade. Explicitamente, mesmo que a crença na imparcialidade tente invisibilizar sentimentos, emoções e subjetividades, é certo que as moralidades dos magistrados integram a decisão judicial. E, para além disso, mesmo que haja mecanismos de racionalização que impeçam que essa motivação “real” seja expressa no papel em que a sentença é impressa, aparecendo traduzida a partir de outros arranjos retóricos, é certo que as moralidades das razões de decidir estarão na decisão, quer as vejamos, ou não. As práticas dos sujeitos não se encontram controladas pelo discurso prescritivo da dogmática ou mesmo da lei. Obscurecer os sentimentos que motivam a decisão judicial é uma defesa do campo ao controle da imparcialidade do juiz. A opressão dos sentimentos trabalha a serviço da manutenção da crença da imparcialidade. Nessa linha, os casos concretos eleitos como representativos da problemática explorada no texto são exemplares, no sentido de que expressam o paradoxo do nosso sistema de decisões judiciais, que, de um lado, exige a explicitação das razões de decidir, mas, de outro, tolhe a efetiva demonstração das motivações pessoais que eventualmente orientam magistrados na tomada das decisões.

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Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar?

Fernanda Duarte, Bárbara Gomes Lupetti Baptista e Rafael Mario Iorio Filho

Esse arranjo do sistema demonstra que os limites impostos aos magistrados na expressão das razões de decidir põem em xeque a crença de que o controle democrático da jurisdição se faz através da fundamentação das decisões proferidas pelo Judiciário. Jogando com as palavras, é como se acreditássemos em um controle que não controla. No final, é como se os dados empíricos nos chamassem à seguinte reflexão [escancarando também uma nítida contradição]: existe um mundo incontrolável que está dentro do juiz e que está fora dos autos. A única forma possível de acionar esse mundo interno é permitir e legitimar que os próprios magistrados externem esse mundo em suas decisões judiciais. Ocorre que, esse exercício pode explicitar eventuais parcialidades na jurisdição e essa crença é um dogma que o sistema não pretende confrontar. Assim, fica mais fácil, ao menos abstratamente, manter a lógica aparentemente funcionando. Todos acreditam e reproduzem que a fundamentação das decisões judiciais é o controle democrático do Judiciário e que a imparcialidade sustenta a ideia da Jurisdição. Eventuais magistrados que fujam a essa lógica são exemplarmente punidos, mantendo-se, assim, a conformação do campo e o conforto que só mesmo o mundo das crenças pode oferecer aos crédulos. Pois bem, identificada essa marca do campo jurídico, percebemos o quanto a necessidade de parecer imparcial exige do magistrado uma certa forma de se posicionar (ou de se esconder) no espaço público e, consequentemente, sobre o possível mundo interno que fica escondido dentro do juiz e que não pode ser explicitado nos autos do processo, justamente por causa da manutenção da aparência de imparcialidade que sustenta o sistema jurídico e que mantém firme a própria ideia de jurisdição. Aqui está a caixa-preta ou talvez a caixa de Pandora?

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Uma Gramática das Decisões Judiciais: “O que falar quer dizer” e o que não dizer quer falar?

WAMBIER Luiz Rodrigues; ALMEIDA Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 1: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 5 ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

Migração e a Situação dos Presos Estrangeiros no Brasil Carlos Eduardo Adriano Japiassú1 Flávia Sanna Leal de Meirelles2 Resumo Este trabalho tem como temas duas importantes questões que envolvem o Brasil e a globalização. Migração é uma realidade com a qual todos os países precisam lidar, devido ao fato de que as fronteiras geográficas não mais limitam os cidadãos em qualquer parte do mundo. Indivíduos buscam melhores oportunidades de vida desde sempre, mas, hoje em dia, eles experimentam a concreta possibilidade de tentarem viver em outro país de sua escolha. Junto com isso – e, de certa forma, como consequência direta da realidade migratória – surge a problemática ilustrada pelo segundo tópico tratado no presente artigo. A situação dos presos estrangeiros no Brasil é especialmente delicada, uma vez que une os desafios inerentes à migração com a complicada realidade carcerária experimentada pelo Brasil. Palavras-chave: Migração; presos estrangeiros; situação brasileira. Abstract This paper deals with two important issues regarding Brazil and the globalization. Migration is a reality with which all the countries have to deal, due to the fact that geographic borders are no longer limits to the citizen from anywhere in the world. Individuals have sought better opportunities in life since forever, but nowadays, they experiment the concrete possibility of trying to live in another country of their choice. Along with it – and, in a way, as a direct consequence of human migration –, comes the problem pictured by the second topic of this paper. The situation of the foreign prisoner in Brazil is especially delicate, since it combines the inherent challenges of migration with the complicated prison reality experienced by Brazil. Keywords: Migration; foreign prisoners; brazilian situation.

Migração: noções iniciais Define-se migração como o ato de deslocamento espacial de determinada população ou de parte dela, o que pode ocorrer entre diferentes países ou dentro do território de um mesmo país. No primeiro caso, a que se convencionou chamar de migração externa, a mudança da localidade habitada por aquele indivíduo causa alteração no número de habitantes de cada um dos países envolvidos. Na hipótese de migração interna, isto não ocorre: o deslocamento de pessoas Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Secretário Geral da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). 2 Professora da Faculdade de Direito de Valença. 1

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Migração e a Situação dos Presos Estrangeiros no Brasil

Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Flávia Sanna Leal de Meirelles

para outro estado, região, município ou domicílio não modifica o quantitativo habitacional daquele país, podendo, contudo, alterar as configurações das localidades envolvidas. Em ambos os casos, configura-se a migração quando se verifica a mudança na residência habitual das pessoas, que ocorre a partir de sua movimentação do local de origem para o lugar de destino. Trata-se, portanto, de um conceito relacionado à noção de mobilidade humana, sendo a migração um processo circulatório de deslocamento demográfico entre territórios.3 As migrações constituem um fenômeno complexo no cenário internacional, e possuem características próprias nos processos de integração ao redor do mundo.4 Por esta razão, os movimentos migratórios constituem área de investigação central em numerosas disciplinas, a exemplo da sociologia, antropologia e economia.5 O fenômeno é responsável pela configuração do passado, presente e futuro de determinada localidade,6 não sendo possível compreender sua história sem esta necessária análise interdisciplinar. Cada uma das referidas áreas de estudo investiga o tema por meio de perspectivas diferentes, a partir da utilização de seus próprios métodos e técnicas.7 O estudo sobre a migração abrange todo movimento de pessoas entre territórios, qualquer que seja a composição de tal população ou as causas de tal deslocamento.8 Como todo fenômeno social, a migração não atinge exclusivamente determinada idade, gênero, status social, afiliação política ou nacionalidade: qualquer pessoa, a qualquer tempo, pode vir a se tornar um migrante.9 Embora os motivos mais frequentes sejam econômicos – os migrantes, em sua maioria, são trabalhadores que intentam a inserção no mercado laboral por meio de um trabalho decente10 –, o que leva o indivíduo a mudar-se de uma zona geográfica para outra pode responder a uma infinidade de razões. Fatores culturais podem desencadear o desejo de mobilidade espacial de determinado indivíduo11, além de situações como agitações políticas e mesmo os desastres naturais.12

No entanto, é seguramente a busca por melhores oportunidades de emprego e renda a principal razão verificada nos movimentos migratórios, que costumam envolver pessoas procurando melhores condições de vida e de sustento para si e para suas famílias.13 O migrante econômico é aquele que busca melhorar sua situação financeira em uma localidade diferente daquela de origem, podendo também ser o caso dos que se estabelecem para trabalhos sazonais ou temporários no lugar de destino.14 Assim sendo, a busca por espaço para nova inserção social pode ocorrer de forma estável ou temporariamente, bem como envolve diversas categorias de pessoas ou grupos e diferentes motivos.15 Existem algumas teorias que se propõem a explicar a causa da migração. Há quem faça referência a elas pela denominação de teorias dos movimentos sociais – estes compreendendo as ações coordenadas de mesmo sentido e acontecendo fora das instituições políticas.16 A primeira corrente que procura explicar a causa do processo migratório é a teoria funcionalista-organicista, datada de meados do século XVIII. A interdisciplinaridade dos pesquisadores adeptos desta teoria levou a um dinamismo nas respostas apresentadas por ela para a questão acerca do que acarreta o movimento migratório. Os economistas desta linha de pensamento viam a migração como mero fator dinamizador do processo de urbanização, que tinha o único propósito de servir à indústria; os sociólogos, por sua vez, entendiam que a migração é um fenômeno natural e providencial que não pode ser reduzido a fatores econômicos, sob o risco de ser utilizada unicamente para atender à fúria dos lucros; e os antropólogos passaram a explicar a mobilidade humana pela premissa de que o ser humano precisa de domínio dos instrumentos de produção para gerar bens e satisfazer suas necessidades, o que demanda a constante busca pelo espaço necessário à sua sobrevivência.17 No final do século XIX e início do século XX, as inúmeras transformações decorrentes das duas guerras levaram os historiadores a realizar uma série de reflexões sobre os fatos que ocorriam na sociedade, o que veio a ampliar as possibilidades de pesquisa e, posteriormente, a instituir as bases para novas teorias históricas.18 Neste momento, foi criada a teoria histórico-estrutural, segunda corrente de entendimentos sobre as prováveis causas do processo migratório. Por meio desta teoria, cientistas de diversas áreas procuraram responder a este questionamento. Os teóricos Karl Marx e Friedrich Engels, junto com aqueles que os seguiam,

ZAMBERLAM, Jurandir. O processo migratório no Brasil e os desafios da mobilidade humana na globalização. Porto Alegre: Pallotti, 2004, p. 13. 4 LUPI, Carlos. O MERCOSUL e as migrações. In: MERCOSUL e as migrações. Os movimentos nas fronteiras e a construção de políticas públicas regionais de integração. Brasília, 2008, p. 11. 5 PISELLI, Fortunata. Mulheres migrantes: uma abordagem a partir da teoria das redes. Revista Crítica de Ciências Sociais nº 50 – Fevereiro/1998, p. 104. 6 Media coverage of migration in the Americas. A report from the Austin Forum on Journalism in the Americas 2011. University of Texas at Austin: Knight Center for Journalism in the Americas, 2011, p. 4. 7 PISELLI, Fortunata. op. cit., p. 104. 8 Glosario sobre migración. Derecho Internacional sobre Migración, n. 7. Ginebra: OIM, 2006, p. 38. 9 Media coverage of migration in the Americas… op. cit., p. 6. 10 LUPI, Carlos. op. cit., p. 11. 11 FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Migração. Artigo disponível em: http://www. mundoeducacao.com/geografia/migracao.htm. Acesso em: 01 set. 2014. 12 Media coverage of migration in the Americas… op. cit., p. 7. 3

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ALMEIDA, Paulo Sérgio de. MERCOSUL e o Conselho Nacional de Imigração. In: MERCOSUL e as migrações. Os movimentos nas fronteiras e a construção de políticas públicas regionais de integração. Brasília, 2008, p. 14. 14 Glosario sobre migración... op. cit., p. 42. 15 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 13. 16 ALONSO, Angela. A teoria dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua Nova (on-line) 2009, p. 51. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo. oa?id=67313619003. Acesso em 02 set. 2014. 17 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 14. 18 MATOS, Júlia Silveira. A História estrutural: trajetória, conceitos e aplicabilidade. Revista do Instituto de Ciências Humanas e da Informação, v. 24, n.1 (2010), p. 55. 13

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reforçaram uma abordagem socioeconômica do fenômeno migratório, segundo a qual a mobilidade da força de trabalho é um componente específico da lógica do sistema capitalista.19 Como socialistas que buscavam superar os obstáculos que a sociedade capitalista colocava ao livre desenvolvimento das potencialidades humanas, Marx e Engels contribuíram para a teoria histórico-estrutural uma vez que se empenhavam no estudo das forças que impulsionavam a sociedade capitalista e de tudo aquilo que nela ocorresse.20 A partir destes, os sociólogos contemporâneos passaram a reconhecer que, além dos fatores econômicos, tiveram influência no desenvolvimento do fenômeno migratório as redes sociais, que contribuíam para fornecer aos migrantes os referenciais do local de destino, suas acomodações iniciais e mesmo a inserção destes no mercado de trabalho.21 Em que pese o consenso segundo o qual é a economia o principal impulsor do movimento migratório, é importante ressaltar que este fenômeno não se limita a suscitar questões desta ordem. Em outras palavras, não somente as categorias econômicas daquela localidade se veem diante da necessidade de reformulação a partir do processo de migração: também os migrantes precisam situar suas peculiaridades culturais e simbólicas naquele novo contexto em que se encontram.22 Os movimentos migratórios provocam necessariamente uma série de alterações de natureza demográfica, social, cultural e, naturalmente, econômica. Contribuem, assim, com questões como a organização do trabalho e a identidade religiosa da localidade escolhida como destino dos migrantes23, tendo, ainda, influência no processo de miscigenação étnica e difusão cultural entre os povos. São identificadas algumas espécies de migração, separadas por critérios distintos. Pela forma como se deu o processo, a migração pode ser forçada ou espontânea: no primeiro caso, o indivíduo se vê obrigado a sair do seu local de origem, diante de uma situação de coação, ameaça de vida ou de subsistência, ou mesmo em razão de desastres naturais24 – em todas as hipóteses, são situações alheias à sua vontade, que o levam a deixar o lugar de sua nacionalidade ou residência legal25; por espontânea entende-se a migração que foi planejada pelo sujeito, pelos motivos de sua livre escolha.26 Faz-se referência, ainda, à migração clandestina, que ocorre quando um estrangeiro viola as normas de ingresso a determinado país, ou quando, tendo ingressado legalmente no país, viola as normas de imigração por meio do prolongamento de sua estadia.27

Pelo critério relativo ao espaço de deslocamento percorrido28, a migração pode ser internacional (de um país para o outro) ou interna (dentro de um mesmo país). Esta última subdivide-se em inter-regional e intra-regional, respectivamente, aquela que ocorre de um Estado para o outro, e aquela que ocorre dentro do espaço de um mesmo Estado. A situação de desigualdade de classes em algumas sociedades acarreta a chamada migração social29: exclusão do indivíduo dentro de sua classe ou categoria, impossibilitando ou dificultando sua ascensão social espacial e sua inserção ao processo produtivo e aos valores culturais daquela localidade. Neste caso, o sujeito migra em razão da perda de sua qualidade de vida, da sua consciência crítica e da sua identidade política, já que ele não se percebe dotado de seus direitos básicos como cidadão. Já foi dito que a principal causa do movimento migratório é relacionada à situação financeira do indivíduo. A esta modalidade, convencionou-se chamar migração econômica – sendo esta, portanto, a praticada por quem deixa seu lugar de residência ou domicílio habitual em busca de melhores condições econômicas de vida para si e para sua família.30 Por fim, com base no tempo de permanência do migrante no local de destino, tem-se a migração definitiva – em que o sujeito passa a residir permanentemente no local para onde migrou – e a migração temporária – em que a pessoa reside por apenas um período de tempo pré-determinado na localidade para a qual se deslocou.31 O processo de migração ocorre desde os primórdios da humanidade32, tendo sido parte de processos históricos demasiadamente importantes – a exemplo da formação de colônias e da atual tendência migratória para países do primeiro mundo. A migração representa um fator constante de formação de vários dos grupos humanos conhecidos atualmente33, e, neste sentido, pode-se afirmar que o estudo acerca desta temática não diz respeito apenas aos migrantes, e sim à humanidade inteira.34 Isto se corrobora pelo fato de que a busca por melhores condições de vida é característica inerente a todo ser vivente, e, no caso do ser humano, com frequência este objetivo procura ser alcançado por meio da mobilidade espacial. O movimento de populações de uma localidade para a outra foi verificado em todas as épocas históricas, podendo-se afirmar que a história do homem é uma história de humanidade em movimento.35

ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 16. 20 PEDRO, Antônio; LIMA, Lizanias de Souza. História da civilização ocidental. Ensino Médio. Volume único. São Paulo: FTD, 2005, p. 35. 21 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 17. 22 PISELLI, Fortunata. op. cit., p. 113. 23 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 56. 24 Glosario sobre migración... op. cit., p. 39. 25 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 20. 26 RODRIGUES, Régis. Tipos de migração. Artigo disponível em: http://www.brasilescola. com/geografia/tipos-migracao.htm. Acesso em 02 set. 2014. 27 Glosario sobre migración... op. cit., p. 39.

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RODRIGUES, Régis. op. cit.. Acesso em 02 set. 2014. ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 13 e 20. 30 Glosario sobre migración... op. cit., p. 42. 31 RODRIGUES, Régis. op. cit.. Acesso em 02 set. 2014. 32 FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Migração. op cit.. Acesso em: 01 set. 2014. 33 MARCHI, Benito de. Migrações: humanidade em movimento. Artigo disponível em: http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EkFEkFyV ZymPYOExOE. Acesso em: 01 set. 2014. 34 MILESI, Ir. Rosita; MARINUCCI, Roberto. Migrações contemporâneas: panorama, desafios e prioridades. In: MERCOSUL e as migrações. Os movimentos nas fronteiras e a construção de políticas públicas regionais de integração. Brasília, 2008, p. 24. 35 MARCHI, Benito de. op cit.. Acesso em: 01 set. 2014. 28

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A migração no Brasil No Brasil, os aspectos econômicos sempre foram impulsores das migrações internas, desde a intensa busca por metais preciosos em Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, passando pela expansão do café nas cidades do interior de São Paulo.36 Outras motivações também puderam ser vistas, a exemplo da marcha para o oeste do país, em meados de 1970, formada majoritariamente por sulistas a fim de colonizar estados como Rondônia.37 No entanto, não restam dúvidas de que o fator que maior influência exerce nos fluxos migratórios do país é o de ordem econômica, uma vez que o modelo econômico vigente força os indivíduos ao deslocamento em busca de melhores condições de vida, à procura de trabalho para conseguir suprir suas necessidades básicas de sobrevivência.38 Neste momento, cumpre realizar breve retrospectiva histórica do fenômeno migratório interno no Brasil, que teve início por meio do êxodo rural. Este corresponde ao deslocamento de pessoas da zona rural (campo) para a zona urbana (cidades), quando os habitantes do campo buscam obter melhores condições de vida. Em 1940, o Brasil era um país predominantemente agrícola, contando com um quantitativo de pessoas vivendo no campo que correspondia a dois terços de sua população.39 Desde então, o país tem passado por uma elevação na taxa de urbanização, para o que o êxodo rural teve importante contribuição: na década de 1950, foi o responsável por 17,4% do crescimento populacional das cidades brasileiras.40 No período entre 1960 e 1980, o êxodo rural brasileiro alcançou um total de 27 milhões de brasileiro, causando um movimento migratório de intensidade conhecida por poucos países.41 Precisamente a década de 1970 representou um marco histórico divisório em termos populacionais no Brasil.42 Isto porque foi neste período que a população brasileira urbana passou a ser maior do que a população rural, o que esteve intrinsecamente ligado à Revolução Verde – modelo baseado na intensiva FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Migrações no Brasil. Artigo disponível em: http://www.mundoeducacao.com/geografia/migracoes-no-brasil.htm. Acesso em: 02 set. 2014. 37 POLATO, Amanda. Os fluxos migratórios no Brasil. Artigo disponível em: http:// revistaescola.abril.com.br/geografia/pratica-pedagogica/gente-chega-gente-sai-488822. shtml. Acesso em 03 set. 2014. 38 FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Migração. op cit.. Acesso em: 01 set. 2014. 39 TELO, Fabricio; DE DAVID, Cesar. O rural depois do êxodo: as implicações do despovoamento dos campos no distrito de Arroio do Só, município de Santa Maria/RS, Brasil. La Plata: Mundo agr., v. 13, n. 25, 2012. Artigo disponível em: http://www.scielo. org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1515-59942012000200005&lng=es&nrm=i so. Acesso em: 03 set. 2014. 40 ALVES, Eliseu; SOUZA, Geraldo da Silva e; MARRA, Renner. Êxodo e sua contribuição à urbanização de 1950 a 2010. Revista de Política Agrícola, ano XX, n. 2 (2011), p. 81. 41 CAMARANO, Ana Amélia; ABRAMOVAY, Ricardo. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos 50 anos. Brasília: Revista Brasileira de Estudos de População, 15(2), 1998, p. 45. 42 TELO, Fabricio; DE DAVID, Cesar. op. cit.. Acesso em: 03 set. 2014. 36

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utilização de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos na agricultura43, que acabou por reduzir drasticamente as taxas de empregabilidade agrícola. A quantidade de pessoas residindo em área rural no Brasil atingiu seu máximo em 1970 e, desde então, vem sofrendo um declínio populacional relativo e absoluto.44 O êxodo rural perdeu parte de seu ímpeto inicial, que se justificava pelo fato de que as populações rurais se deixavam atrair pelo poderoso mercado das cidades industrializadas.45 No Brasil, assim como no resto do mundo, o fenômeno da mobilidade populacional vem apresentando transformações significativas desde as últimas décadas do século XX.46 Assim, nas últimas décadas, a questão migratória no Brasil deixou de ser concentrada somente no clássico movimento rural-urbano.47 Até os anos 1980, foi observado um crescimento absoluto do saldo populacional que deixou as áreas rurais brasileiras em direção às cidades: somente naquela década, um terço das pessoas que viviam no meio rural de lá saíram.48 O êxodo rural se justificava fundamentalmente pelo processo de industrialização no campo, o que proporcionava a intensa mecanização das atividades agrícolas e, por conseguinte, expulsava os pequenos produtores.49 Contudo, a partir de 1990, a industrialização seguiu seu curso e descentralizou-se para as pequenas e médias cidades, tornando-as grandes polos de atração de trabalhadores, especialmente daqueles do meio rural.50 Outras características passaram a ser verificadas na migração brasileira deste período. Se ao longo de décadas a direção dos fluxos migratórios do país era a região Sudeste – devido ao intenso processo de industrialização desenvolvido naqueles Estados51 –, também isto mudou. Nos anos 90, assistiu-se a uma drástica perda populacional rural absoluta da região, restando um reduzido contingente de residentes no campo do Sudeste brasileiro, em comparação com as décadas imediatamente anteriores.52 Tais mudanças observadas na migração do Brasil no fim do século XX tem demandado um esforço por parte dos estudiosos do tema, que tentam encontrar explicações teóricas para os novos processos que se materializam na dimensão interna do país a partir do redirecionamento dos ANDRADES, Thiago Oliveira de; GANIMI, Rosângela Nasser. Revolução Verde e a apropriação capitalista. Juiz de Fora: CES Revista, v. 21, 2007, p. 44. 44 CAMARANO, Ana Amélia; ABRAMOVAY, Ricardo. op. cit., p. 46. 45 ALVES, Eliseu; SOUZA, Geraldo da Silva e; MARRA, Renner. op. cit., p. 82. 46 Informação obtida no site oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/reflexoes_ deslocamentos/default_reflexoes.shtm. Acesso em: 03 set. 2014. 47 CUNHA, José Marcos Pinto da. Migração e urbanização no Brasil: alguns desafios metodológicos para análise. São Paulo: São Paulo Perspec., v. 19, n. 4, 2005. Artigo disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010288392005000400001&lng=en&nrm=iso. Acesso em 03 set. 2014. 48 CAMARANO, Ana Amélia; ABRAMOVAY, Ricardo. op. cit., p. 48. 49 FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Migração. op cit.. Acesso em: 01 set. 2014. 50 ALVES, Eliseu; SOUZA, Geraldo da Silva e; MARRA, Renner. op. cit., p. 82 e 83. 51 FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Migração. op cit.. Acesso em: 01 set. 2014. 52 CAMARANO, Ana Amélia; ABRAMOVAY, Ricardo. op. cit., p. 56. 43

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Migração e a Situação dos Presos Estrangeiros no Brasil

Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Flávia Sanna Leal de Meirelles

fluxos migratórios para as cidades médias em detrimento dos grandes centros urbanos.53 A última década do século XX caracterizou-se pela intensificação da chamada migração de retorno no Brasil, particularmente para os Estados que, nas décadas anteriores, eram considerados tradicionalmente como Estados de emigração (aqueles dos quais os brasileiros intentavam sair).54 Por migrante de retorno55, vale ressaltar, entende-se o indivíduo que deixou a sua residência natal para morar por um tempo em outro Estado, e depois regressa ao seu local de nascimento. O motivo da migração nestes casos costuma ser de ordem econômica, e o retorno do sujeito geralmente se dá em razão da frustração de suas expectativas com relação ao emprego ou renda, causado por um erro na avaliação do local de destino. Também se poderia pensar na hipótese do retorno do migrante após o sucesso daquele indivíduo na sua empreitada em busca de melhores condições financeiras.56 Neste caso, a sua volta à residência natal faria parte do seu plano inicial de acumular riqueza ao longo de sua estadia fora para, anos depois, vivenciar a velhice junto aos seus familiares.57 Contudo, em razão da crise econômica experimentada pelo Brasil na década de 1980, sabe-se que a migração de retorno não teve tal motivação.58 As transformações produtivas incorporadas no país ao longo do processo de industrialização foram, aos poucos, tornando mais difícil a inserção do migrante no mercado de trabalho. Com isso, restou o retorno à localidade de origem como saída para a tentativa frustrada de sucesso por meio da migração. A situação atual do Brasil conta com apenas 15,6% da população habitando áreas rurais.59 A referida retrospectiva histórica acerca da migração interna no Brasil fazse necessária quando se pretende analisar a situação do país no contexto de suas migrações internacionais. Sendo componente em desenvolvimento na sociedade global, o Brasil experimentou momentos diversos em seus fluxos migratórios internacionais – tanto de saída de brasileiros do país, quanto com relação à entrada de estrangeiros no território brasileiro. Assim, a compreensão acerca da situação econômica e migratória interna do país desde a segunda metade do século XX é fundamental para a contextualização das características que permeiam a migração internacional no país.

Já fora dito que, assim como o restante do mundo, também o Brasil experimentou transformações no perfil de mobilidade populacional desde o final do século XX. Tais mudanças tiveram reflexo sobre a migração interna do país e também no que tange à migração internacional experimentada no Brasil. Durante o referido período de tempo, foram observados novos espaços de atração populacional de estrangeiros no Brasil, enquanto barreiras foram erguidas em localidades que tradicionalmente recebiam estas correntes migratórias.60 Estas características encontram relação com as mudanças na economia do país – conforme explicado anteriormente –, bem como com os próprios traços específicos da sociedade contemporânea em constante mutação. O Brasil tem sido historicamente um país de imigração, recebendo pessoas de fora do país desde a época do Império.61 No decorrer do último século, esta tendência foi mantida, com algumas variações na quantidade e na procedência dos imigrantes. Em todos os casos, os movimentos migratórios internacionais de saída e de chegada ao Brasil constituem, hoje, uma importante questão social para o país62, tendo reflexos em diversos aspectos da sociedade. Conforme estimativa da Organização das Nações Unidas, existem, atualmente cerca de 200 milhões de pessoas em situação de migração no mundo.63 Em razão da supramencionada crise econômica que acometeu o Brasil na década de 1980, os brasileiros passaram a fazer parte deste movimento migratório a partir da referida época, quando deixou de ser predominantemente receptor de imigrantes para se tornar majoritariamente um país de emigrantes.64 Assim, o tema das migrações internacionais surge como questão demográfica de suma importância no Brasil a partir do final do século XX, passando o país a experimentar as transformações sociais, políticas, econômicas, ideológicas e culturais decorrentes do fluxo migratório de entrada e saída de nacionais e estrangeiros.65

Informação obtida no site oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/reflexoes_ deslocamentos/default_reflexoes.shtm. Acesso em: 03 set. 2014. 54 CUNHA, José Marcos Pinto da. op. cit.. Acesso em 03 set. 2014. 55 SIQUEIRA, Liédje Bettizaide Oliveira de; MAGALHÃES, André Matos; SILVEIRA NETO, Raul da Mota. Uma Análise da Migração de Retorno no Brasil: perfil do migrante de retorno, a partir do Censo de 2000. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2008, Caxambu, MG. Anais do XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2008, p. 3. 56 CUNHA, José Marcos Pinto da. op. cit.. Acesso em 03 set. 2014. 57 SIQUEIRA, Liédje Bettizaide Oliveira de; MAGALHÃES, André Matos; SILVEIRA NETO, Raul da Mota. op. cit., p. 3. 58 CUNHA, José Marcos Pinto da. op. cit.. Acesso em 03 set. 2014. 59 ALVES, Eliseu; SOUZA, Geraldo da Silva e; MARRA, Renner. op. cit., p. 82 e 83. 53

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OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de; OLIVEIRA, Antônio Tadeu Ribeiro de. Reflexões sobre os deslocamentos populacionais no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2011, p. 9. 61 MILESI, Ir. Rosita; ANDRADE, William Cesar de. Migrações internacionais no Brasil. Realidade e desafios contemporâneos. Artigo disponível em: http://www.gritodelosexcluidos. org/media/uploads/migracionesintbr.pdf. Acesso em 04 set. 2014. p. 4. 62 PATARRA, Neide Lopes. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes, fluxos, significados e políticas. São Paulo: São Paulo Perspec., v. 19 (2005), n. 3. Artigo disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010288392005000300002&lng=en&nrm=iso. Acesso em 04 set. 2014. 63 Informação obtida no site oficial do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Disponível em: http://www.mte.gov.br/trab_estrang/Brasileiros_no_Exterior.pdf. Acesso em 04 set. 2014. 64 ALVES, José Eustáquio Diniz. Brasil e a migração internacional. Artigo disponível em: http://opensadorselvagem.org/ciencia-e-humanidades/demografia/brasil-e-a-migracaointernacional. Acesso em 05 set. 2014. 65 BAENINGER, Rosana. O Brasil na rota das migrações internacionais recentes. Jornal da Unicamp, edição 226. Artigo disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/ unicamp_hoje/ju/agosto2003/ju226pg2b.html. Acesso em 05 set. 2014. 60

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Migração e a Situação dos Presos Estrangeiros no Brasil

Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Flávia Sanna Leal de Meirelles

Com relação aos imigrantes internacionais vivendo no Brasil, a principal fonte de informação são os Censos Demográficos do IBGE, cujos dados, provavelmente, não relatam o real número de imigrantes, em razão da considerável parte deles que vive de forma ilegal no país e que, por conseguinte, resiste a prestar informação ou mesmo omite sua situação migratória.66 O encurtamento das distâncias decorrente do fenômeno da globalização mundial produz esta face do processo migratório internacional do Brasil, qual seja, a entrada de novos contingentes de estrangeiros, que reforçam a mão de obra do país e contribuem para sua inserção cada vez maior no cenário mundial.67 Embora fosse considerado há mais de cem anos como um país de imigrantes, o Brasil custou a contar com uma definição concreta acerca desta terminologia.68 Uma vez que um dos mais complexos desafios da migração internacional é o aumento da migração clandestina, e que esta pode ser influenciada pela excessiva rigidez das leis sobre migração69, resta clara a necessidade de criação de diplomas legais que tratem de forma adequada sobre a questão da entrada e saída de pessoas no território brasileiro. Assim, diante da inexistência de consenso sobre um conceito de migração, em 1935 foi criado um projeto de lei por um deputado de São Paulo, cujo primeiro artigo assim dizia: “O Poder Executivo entrará em combinações com o Governo Federal no sentido de ser dada uma definição do que seja imigrante”70. Anterior a isso, o Tratado assinado por Dom João VI em 1808 fazia referência à imigração como fator civilizatório, sendo preferencialmente realizada por agricultores europeus e brancos.71 Com este Tratado, teve início a coleção de leis propriamente brasileiras sobre o tema72, tendo o Brasil preferência por trabalhadores que possuíssem as boas qualidades dos agricultores exemplares e sadios do meio rural europeu. Nos anos seguintes, a legislação brasileira continuou se voltando ao tratamento do assunto: um decreto de 1812 autorizou a entrada no país de 400 famílias chinesas e, em 1818, outro decreto permitiu a vinda de 100 famílias suíço-alemãs.73 Os movimentos migratórios estão associados à marcha da humanidade, cuja história decorre de uma série de migrações.74 Desta forma, sempre foi tópico de importância a ser considerada nas temáticas a serem tratadas em decretos e legislações de todo o mundo, e com o Brasil não poderia ser diferente. A história

da legislação brasileira sobre a imigração dos estrangeiros desde o Império – época em que foi promulgada a primeira Constituição do país – até o ano de 1980, em que foi sancionado o Estatuto do Estrangeiro.75 De fato, desde a Constituição Política do Império do Brasil de 1824, o tema relativo à nacionalidade brasileira de estrangeiros é tratado na norma da carta Magna.76 Isto ocorreu porque D. Pedro I tinha uma postura liberal cuja pretensão era implantar um novo modelo de produção (baseado na pequena propriedade, na policultura e na agricultura familiar) a partir da vinda de colonos de outros países para o Brasil.77 O referido modelo foi interrompido a partir da renúncia do regente. Neste momento, como forma de criar obstáculos à livre imigração no país, foi criado o Ato Adicional da Regência, de 1834, documento que representou o início do avanço progressista no Brasil diante da maioria de progressistas que passou a comandar uma reforma constitucional que viabilizasse seus projetos políticos.78 O diploma determinava que os encargos decorrentes da vinda de estrangeiros fossem assumidos pelas províncias, que, por sua vez, não possuíam recursos para tanto, já que as terras continuavam pertencendo ao Poder Imperial.79 Anos depois, houve a implementação dos contratos de parceria no país: as chamadas colônias de parceria representavam um novo tipo de colonização promovida por particulares, por meio do qual o trabalho livre do estrangeiro era aproveitado como substituto do trabalho escravo nas lavouras de café.80 Tais contratos foram introduzidos em 1847 pelo governo, que custeava as passagens e hospedagens dos estrangeiros e fazia sua naturalização compulsória logo na chegada, restando a eles a obrigação de pagar a dívida.81 Em setembro de 1850, a promulgação da Lei de Terras garantiu ao governo brasileiro o controle geral sobre o processo colonizador e sobre a aplicação de recursos na introdução de imigrantes.82 O documento regulava uma série de procedimentos sobre a imigração no Brasil, por exemplo, possibilitando o acesso de estrangeiros radicados no Brasil a terras devolutas.83 No entanto, tal intenção legislativa não logrou sucesso em estimular o processo migratório e, diante disto, o Brasil precisou pensar em novas alternativas para atingir este fim.

OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de; OLIVEIRA, Antônio Tadeu Ribeiro de. op. cit., p. 72. BAENINGER, Rosana. op. cit.. Acesso em 05 set. 2014. 68 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 31. 69 SCHERWINSKI, Karoline; NIGUMA, Mariani Simongini; MARTINS, Toniele. Migrações internacionais. Artigo disponível em: http://www.dge.uem.br/semana/eixo8/ trabalho_52.pdf. Acesso em: 05 set. 2014. p. 3. 70 BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras: imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 49. 71 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 31. 72 BONASSI, Margherita. op. cit., p. 50. 73 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 32. 74 SCHERWINSKI, Karoline; NIGUMA, Mariani Simongini; MARTINS, Toniele. op. cit.. Acesso em: 05 set. 2014. p. 2. 66

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BONASSI, Margherita. op. cit., p. 49 e 50. Artigo 6º, IV e V, Constituição Política do Império do Brazil de 1824. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 06 set. 2014. “Art. 6. São Cidadãos Brazileiros: (...) IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia. V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.”. 77 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 32. 78 STORTO, Lúcia Helena; AGUILAR FILHO, Sídney. História do Brasil. Artigo disponível em: http://www.libertaria.pro.br/brasil/capitulo9_index.htm. Acesso em 06 set. 2014. 79 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 32. 80 IOTTI, Luiza Horn. Imigração e colonização. Goiás: Livraria Dez, 2003, p. 8. 81 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 32. 82 IOTTI, Luiza Horn. op. cit., p. 8. 83 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 34. 75 76

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Migração e a Situação dos Presos Estrangeiros no Brasil

Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Flávia Sanna Leal de Meirelles

A proclamação da República do Brasil ocorreu em 1889. Dois anos depois, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil introduziu a naturalização tácita do imigrante que, depois de seis meses, não manifestasse o desejo de manter a nacionalidade de origem.84 No ano de 1895, a República brasileira autorizou que os governos provinciais a estabelecerem suas próprias leis e sistemas migratórios.85 A Constituição brasileira de 1934 proibiu que os imigrantes ficassem concentrados em qualquer ponto da União, estabelecendo, ainda, um limite de 2% sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil, que não pode ser excedido pela corrente migratória.86 O Decreto-Lei nº 416, de 04.05.1938, foi a primeira lei contemplando a situação jurídica do estrangeiro no Brasil.87 Serviu como base para a atual legislação brasileira sobre o tema. O Estatuto do Estrangeiro, criado pelo Decreto-Lei nº 941 de 1969, define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil. A partir deste documento, a permanência do imigrante no Brasil passou a depender da observância das normas legais de Direito interno. O diploma foi reformulado pela Lei nº 6.815 de 1980, a partir da qual ao estrangeiro passou a ser dado tratamento de regime policial e penal, por meio da instituição de mecanismos de controle e fiscalização da estadia dos imigrantes em território nacional.88 A legislação de 1980 modificou aquela criada em 1969 em alguns dos mais importantes aspectos do tratamento dado ao estrangeiro no Brasil, a exemplo das questões de visto, registro, fiscalização de atividades, direitos e deveres e penalidades impostas, além de dispositivos referentes aos mecanismos de cooperação penal internacional, em especial, a extradição.89 O século XXI iniciou reforçando as tendências migratórias e consolidando o Brasil na rota dos deslocamentos populacionais internacionais, tanto no que se

refere à saída de brasileiros quanto à entrada de estrangeiros no país.90 O cenário mundial da atualidade conta com cerca de três milhões de brasileiros habitando em países diversos de sua nacionalidade, dois terços dos quais se encontram com documentação irregular para tanto.91 Não se pode afirmar que as causas do fluxo migratório internacional no Brasil se restringem a questões econômicas, pois isso deixaria de considerar uma gama importante de características decorrentes das movimentações internas do país, as quais, conforme visto anteriormente, podem se subordinar a uma infinidade de causas.92 Embora praticamente metade dos brasileiros que residem fora do país habitem o território dos Estados Unidos da América, não é uma característica do povo brasileiro a vontade de se afastar de seu povo. Prova disso é o fato de haver cerca de 200 mil brasileiros vivendo atualmente no Paraguai – país que contribui com o fluxo imigratório no Brasil, onde residem, atualmente, cerca de 80 mil paraguaios. O estudo da migração internacional brasileira corrobora com os dados apresentados acerca da migração interna no país, para que seja visualizada a totalidade da situação social que se apresenta no Brasil. Esta pesquisa sobre a presente temática é importante uma vez que fornece o arsenal teórico que deverá servir de fundamento para a elaboração de propostas de políticas públicas e de ação que permitam maior qualidade no tratamento das questões relacionadas à migração.93 É preciso, no entanto, tem em mente que quaisquer estimativas que sejam feitas com relação à migração internacional brasileira estarão sempre submetidas a certas limitações relacionadas à dificuldade de obtenção de fontes precisamente confiáveis94, pois as técnicas existentes de controle não conseguem alcançar com exatidão as taxas de migrantes em situação irregular que tenham entrado ou saído do Brasil.

Artigo 69, 5º, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 06 set. 2014. “Art 69 - São cidadãos brasileiros: (...) 5º) os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Brasil e forem casados com brasileiros ou tiverem filhos brasileiros contanto que residam no Brasil, salvo se manifestarem a intenção de não mudar de nacionalidade.” 85 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 35. 86 Artigo 121, §§ 6º e 7º, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34. htm. Acesso em 06 set. 2014. “Art 121 (...) § 6º - A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos. § 7º - É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena.” 87 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 36. 88 Estatuto do Estrangeiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l6815.htm. Acesso em 06 set. 2014. 89 ZAMBERLAM, Jurandir. op. cit. p. 38 e 39.

A situação dos presos estrangeiros no Brasil

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As mudanças experimentadas pelos movimentos migratórios no Brasil não deixaram de produzir reflexos no que diz respeito à situação carcerária do país. Com efeito, uma vez que a população prisional é parte do todo que compõe o contingente populacional da nação, é certo que também nesta parcela da sociedade seriam verificadas as consequências da entrada de estrangeiros no Brasil no decorrer dos anos. Os traços característicos da migração em cada período de tempo foram responsáveis por modificar de forma mais ou menos intensa o perfil dos apenados à pena de prisão no país – parcela que contou com maior ou menos número de estrangeiros, a depender do momento migratório vivido pelo Brasil àquela época. BAENINGER, Rosana. op. cit.. Acesso em 05 set. 2014. Media coverage of migration in the Americas… op. cit., p. 12. 92 OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de; OLIVEIRA, Antônio Tadeu Ribeiro de. op. cit., p. 14. 93 MILESI, Ir. Rosita; ANDRADE, William Cesar de. Migrações internacionais... op. cit.. Acesso em 04 set. 2014. p. 4. 94 OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de; OLIVEIRA, Antônio Tadeu Ribeiro de. op. cit., p. 78. 90 91

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Desde o início do século XIX, as ruas do Rio de Janeiro presenciavam a desordem como problema crônico causado por marinheiros estrangeiros que aqui desembarcavam.95 Apesar disto, pode-se afirmar que, ao longo daqueles anos, a presença de estrangeiros nas prisões brasileiras carecia de relevância acadêmica e governamental.96 O contexto brasileiro da época justificava a parcela de forasteiros que compunha a população prisional: representantes de colônias europeias no Brasil faziam apelos às autoridades do país para que fossem disponibilizadas condições mínimas de sobrevivência. A vinda de estrangeiros para o Brasil, naquele século, fora estimulada pela política de imigração subsidiada que foi colocada em prática pelas autoridades governamentais97, sem que houvesse prévia verificação das condições para tanto. O resultado foi, naturalmente, desastroso. Faltava tudo o que era minimamente necessário para a manutenção destas pessoas no país, desde a instrução escolar até mesmo o fornecimento de atendimentos médicos. Como consequência disto, na segunda metade do referido século, cerca de 60% dos prisioneiros condenados a trabalhos na Corte eram estrangeiros sentenciados a atividades criminosas para que lhes fosse provido o sustento.98 Até o final do século XIX, os estrangeiros eram considerados indesejáveis pelas autoridades brasileiras, que os consideravam hóspedes perigosos por não se encaixarem nos ideais de ordem e progresso que marcou a primeira fase do período republicano do país (1889 a 1930).99 Foi consideravelmente grande o número de estrangeiros que ingressaram no Brasil ao longo dos anos que compuseram o período republicano.100 Em razão disto, a percepção segundo a qual o estudo das prisões de estrangeiros no Brasil era irrelevante durante o século XIX foi invertida no século XX, quando o incremento do número de forasteiros entre a população prisional brasileira funcionou para contribuir com problemas já existentes no país – a exemplo da superpopulação carcerária e das dificuldades enfrentadas pelos encarregados da administração penitenciária.101 A situação piorou a partir da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, por meio do acordo entre os presidentes brasileiro e americano da época – respectivamente, Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt. Ao decidir deixar

de lado a posição de neutralidade anteriormente adotada, o Brasil se fez inserir em um contexto internacional que o levou a instaurar uma efetiva repressão contra os imigrantes alemães, italianos e japoneses.102 Esta vigilância excessiva não tardou a se estender de forma intensa a todos os representantes do Eixo (à época, composto somente por Alemanha, Itália e Japão), levando à difusão da prática de reclusão por confinamento dos estrangeiros no Brasil ao longo dos anos subsequentes. Em 1955, consciente da intensificação gradativa da presente temática, a Organização das Nações Unidas determinou que constassem nas Regras Mínimas para Tratamento dos Presos – documento aprovado durante o 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente – cláusulas referentes aos presos estrangeiros.103 Como exemplo de dispositivo desta natureza, destaca-se a concessão de facilitadores da comunicação entre o recluso estrangeiro e os representantes diplomáticos e consulares do Estado a que pertença, o que se aplica, também, ao preso que não possua qualquer nacionalidade.104 Esta foi apenas uma das iniciativas da ONU relativas à matéria de prisioneiros estrangeiros nos diferentes Estados da comunidade internacional. Por meio deste documento, os países passaram a ter um fundamento legal a ser observado no que diz respeito ao tratamento dos presos estrangeiros em seus territórios, o que, naturalmente, também serviu ao Brasil. O preso estrangeiro no Brasil também possui dispositivos que lhe assistem no já mencionado Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80). Neste sentido, ressalte-se a norma que determina que a extradição somente será concedida ao estrangeiro que esteja cumprindo pena privativa de liberdade no Brasil depois de transcorrido o período de cumprimento da sua pena.105 Com relação ao cumprimento da pena de prisão por quem não seja nacional do Brasil, a jurisprudência predominante determina que o estrangeiro não deve ter acesso aos institutos de Direito penal e Execução Penal.106 Tal entendimento tem

SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio dos Santos. Revoltas, marinheiros e sistema prisional no arsenal de Marinha: notas sobre o trabalho compulsório e cultura política num Rio de Janeiro Atlântico (1820-1840). Artigo disponível em: http://www.ifch. unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/viewFile/183/179. Acesso em 11 set. 2014. p. 27. 96 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros no Brasil. Aspectos Jurídicos e Criminológicos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 30 e 31. 97 LOPREATO, Christina Roquette. O espírito das leis: anarquismo e repressão política no Brasil. Verve, n° 3, 2003, p. 75. 98 BELMONTE, Alexandre. Invasão dos “rudes”. Artigo disponível em: http://www. revistadehistoria.com.br/secao/capa/invasao-dos-rudes. Acesso em 11 set. 2014. 99 LOPREATO, Christina Roquette. op. cit., p. 76. 100 BELMONTE, Alexandre. op. cit.. Acesso em 11 set. 2014. 101 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. op. cit., p. 31. 95

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PERAZZO, Priscila Ferreira. Prisioneiros de guerra: a reclusão dos imigrantes indesejáveis (1942-1945). Seminários – nº 3: Crime, criminalidade e repressão no Brasil República. Arquivo público do Estado e Universidade de São Paulo, 1999, p. 1 e 2. 103 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. op. cit., p. 32. 104 Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos – 1955. Disponível em: http://www. direitoshumanos.usp.br/index.php/Direitos-Humanos-na-Administra%C3%A7%C3%A3oda-Justi%C3%A7a.-Prote%C3%A7%C3%A3o-dos-Prisioneiros-e-Detidos.Prote%C3%A7%C3%A3o-contra-a-Tortura-Maus-tratos-e-Desaparecimento/regrasminimas-para-o-tratamento-dos-reclusos.html. Acesso em 11 set. 2014. 105 Artigo 89, Estatuto do Estrangeiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l6815.htm. Acesso em 11 set. 2014. “Art. 89. Quando o extraditando estiver sendo processado, ou tiver sido condenado, no Brasil, por crime punível com pena privativa de liberdade, a extradição será executada somente depois da conclusão do processo ou do cumprimento da pena, (...)”. 106 DUARTE, Silvia Valeria Borges. O estrangeiro no sistema prisional brasileiro. Rio de Janeiro: Monografia apresentada no curso de Graduação em Direito pela Universidade Cândido Mendes, 2007, p. 29.

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Migração e a Situação dos Presos Estrangeiros no Brasil

Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Flávia Sanna Leal de Meirelles

como um de seus principais fundamentos a desconfiança em relação àquele que não possui vínculos com a sociedade brasileira e que, portanto, estaria mais propenso à fuga, o que frustraria o cumprimento das condições judiciais. Em que pese a necessária observância do princípio constitucional da isonomia107 em favor do preso estrangeiro no Brasil – que não ocorre com relação a esta determinação jurisprudencial, claramente diferenciadora no tratamento disposto aos estrangeiros em comparação aos presos brasileiros –, a referida linha argumentativa prevalece, uma vez que protege a sociedade brasileira ao assegurar o cumprimento da sanção penal aplicada ao forasteiro infrator. Já fora ressaltado que ainda são precários, contraditórios ou pouco confiáveis os dados disponíveis no Brasil sobre população carcerária dos estrangeiros.108 Apesar disso, não restam dúvidas de que o país assiste a uma gradual redução no seu quantitativo de estrangeiros na população prisional com o passar dos anos. Isto se deve, em parte, ao que já fora traçado com relação ao perfil migratório do país no decorrer do tempo. Características de ordem econômica e financeira de cada época fizeram o Brasil ser mais receptor de estrangeiros em determinadas ocasiões, ou mais expulsor dos seus nacionais em outras. Ao mesmo tempo, o preconceito e a intolerância institucional para com os forasteiros foi algo que o país aprendeu a superar conforme foi desenvolvendo políticas inclusivas dos migrantes internacionais. Junte-se a isto a intensificação da política penal e penitenciária que era voltada para a categoria dos infratores nacionais e que, em muito, superava o antigo sentimento de repulsão para com os estrangeiros, ou seja: a velocidade de encarceramento dos brasileiros aumentava exponencialmente, enquanto a dos estrangeiros mantinha-se estável.109 A situação atual demonstra que, embora pequeno em comparação à massa carcerária total do Brasil, o coletivo de estrangeiros em situação prisional no país está longe de ser desprezível.110 É certo que a Constituição Federal brasileira de 1988 não faz distinção entre brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil no que tange à concessão de direitos e garantias fundamentais para todos.111 Tais direitos e garantias cumprem um papel limitador do poder dos representantes da nação – os quais, apesar de serem eleitos pelo povo, não podem atentar arbitrariamente contra quaisquer pessoas que sejam merecedoras da tutela constitucional.112 Assim, com

relação aos estrangeiros, a sociedade brasileira alcançou um momento no qual o respeito mútuo prevalece sobre o preconceito e a segregação. De mesmo modo, também o estrangeiro que vive no Brasil se faz mais presente na vida cotidiana do país, sendo útil para a economia e a força de trabalho da nação, além de tantos outros aspectos da vida em comunidade. A ele, conforme fora visto, também são cabíveis as regras de natureza penal, bem como as previsões legais referentes à execução da pena por excelência do ordenamento jurídico-penal brasileiro: a prisão.

SOUZA, Livio Augusto Souza e. O princípio constitucional da isonomia – conteúdo e aplicação. Artigo disponível em: http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7BFC143915ACA6-4147-9CE4-FD6393548565%7D_010.pdf. Acesso em 11 set. 2014. 108 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. op. cit., p. 51. 109 DUARTE, Silvia Valeria Borges. op. cit., p. 26. 110 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. op. cit., p. 44. 111 Artigo 5º, caput, Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 11 set. 2014. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, (...)”. 112 FIGUEIRA, Gabriela Ferrazzi. A progressão de regime nos crimes hediondos e a Lei 11.464/2011. Artigo disponível em: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/ graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2008_1/gabriela_ferrazzi.pdf. Acesso em 11 set. 2014. p. 19. 107

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Etnodiversidade, Direitos Humanos e Democracia: Política de Reconhecimento à Luz do Ubuntu Edna Raquel Hogemann1 Resumo Propõe uma análise reflexiva das conexões principais entre o conceito africano de ubuntu – palavra que vem das línguas dos povos Bantus; na África do Sul nas línguas Zulu e Xhosa – e um modelo mais includente de democracia. Procura aprofundar a compreensão do respeito à etnodiversidade como base de uma democracia ampliada. Identifica procedimentos da hermenêutica diatópica, entendida por Boaventura de Sousa Santos como forma fundamental de realizar a tradução entre saberes – notadamente aqueles produzidos em “regiões” do Norte e do Sul – e proposta por Raimon Panikkar como metodologia de diálogo intercultural. Desenvolve um exercício de hermenêutica diatópica promovendo a aproximação entre a filosofia político-jurídica ocidental e a concepção de ubuntu, apontado na máxima Zulu umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas). Sublinha a relevância da acolhida dessa noção axial por parte de Nelson Mandela, associando-a a seus esforços no sentido de se concretizarem experiências democráticas na África do Sul. Com base no trabalho de tradução aqui proposto, busca definir algumas políticas de reconhecimento na perspectiva de responder ao desafio contemporâneo de democratizar a democracia. Palavras-chave: Democracia; alteridade; Ubuntu; tradução; etnodiversidade. Abstract Proposes a reflective analysis of the main connections between the African concept of ubuntu - a word that comes from the Bantu languages of ​​ the peoples; in South Africa in Zulu and Xhosa languages –​​ and a more inclusive model of democracy. Seeks to deepen the understanding of respect for etnodiversity as the basis of an enlarged democracy. Identifies procedures diatopical hermeneutics understood by Boaventura de Sousa Santos as a fundamental way to perform the translation between knowledge – especially those produced in “regions” North and South – and proposed by Raimon Panikkar as a methodology for intercultural dialogue. An exercise in hermeneutics diatopical promoting rapprochement between the Western political and legal philosophy and the concept of ubuntu, pointed at full Zulu Umuntu ngumuntu ngabantu (a person is a person through other people). Stresses the importance of acceptance of this notion axial by Nelson Mandela, associating it with its efforts to realize democratic experiments in South Africa Based on the translation work proposed here seeks to define some political recognition in perspective respond to the contemporary challenge of democratizing democracy. Keywords: Democracy; otherness; Ubuntu; translation; etnodiversity. 1

Pós-Doutora em Direito, UNESA/RJ, professora permanente do Programa de PósGraduação Stricto Sensu da UNESA/RJ, professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, membro da Law & Society Association.

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Introdução Neste ensaio são expostas as distinções conceptuais de fundo pelas quais se articula o pensamento de Panikkar, entendido por Boaventura de Sousa Santos como forma fundamental de realizar a tradução entre saberes – em particular, aqueles produzidos em “regiões” do Norte e do Sul –, cuja compreensão facilita a aproximação entre a filosofia político-jurídica ocidental e a concepção africana de ubuntu. A relevância desta consiste no fato de chamar a atenção para o desarmamento cultural e o diálogo intercultural e inter-religioso, como condições necessárias para a solução dos grandes problemas da humanidade e para a urgente construção de um mundo de paz, democratizando a democracia ocidental a partir das experiências africanas. Pretende-se aqui tratar não de algum tema específico pensado por Panikkar (2002), mas sim dos conceitos-ferramenta por tradução dos quais esse autor tem elaborado os seus textos, conceitos esses que definem menos o conteúdo de pensamento que a forma de pensar, menos as ideias sobre a realidade que os pressupostos filosóficos, notadamente, os antropológicos e epistemológicos. Parte-se do pressuposto segundo o qual, nesse mundo globalizado e multicultural, as questões do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica sejam relevantes para os pesquisadores e operadores do Direito, particularmente os que se ocupam dos Direitos Humanos e das questões que envolvem o afazer democrático entre os povos. Tem-se em vista que o direito à identidade cultural, cuja efetividde depende da execução rigorosa de políticas de reconhecimento, em vez de concentrar na igualdade, parece fundar-se no desejo das comunidades e dos indivíduos de ser diferentes e ser tratados de forma diferente. Não falta quem argumente que o direito a uma identidade cultural parece particularizar e distinguir, e não buscar a igualdade (a que corresponderia, no modo de ver de um sem-número de jusfilósofos, a exemplo de Pérez Luño e Manuel Atienza, o objetivo legítimo dos direitos humanos). A ressaltar-se a ideia desenvolvida por Charles Taylor vá no sentido de um consenso genuíno e não forçado sobre normas de direitos humanos em que as diferentes culturas possam encontrar apoio. Contudo, faz-se oportuno lembrar que a igualdade e a não-discriminação entendidas como princípios básicos dos direitos humanos também pressupõem o reconhecimento da etnodiversidade e do direito à diferença (DONDERS, 2005).

Tenho minha humanidade em você... Ubuntu

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Ubuntu é uma antiga expressão religiosa africana que significa ou que dá a entender que a lealdade expande e faz coerente a relação entre as pessoas. Sua origem vem de uma regra ética das línguas zulu e xhosa e, apesar de não datada, corresponde a um estado mental e de ser que prevalece entre os nativos do sul do continente africano até os dias de hoje, segundo o qual umuntu ngumuntu

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ngabantu, que em Zulu significa “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Desse modo, cada ser humano só é humano por pertencer a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é determinada pela alteridade com os outros, por meio de sua humanidade para com os outros seres humanos; a existência de uma pessoa se dá por meio da existência dos outros em relação intrínseca consigo mesma, mas o valor de sua humanidade está inteiramente relacionado à forma como ela esteia proativamente a humanidade e a dignidade dos demais seres humanos; a humanidade de uma pessoa é, assim, definida por seu compromisso ético com seu próximo, seja ele quem for: homem, mulher, criança, jovem, velho. Há várias possíveis traduções para Ubuntu; no entanto e de alguma forma, nenhuma delas se adequa à vida nas grandes metrópoles, onde a maioria das pessoas vive em seu próprio mundinho, olhando apenas a si mesmo e visando somente a seus próprios interesses. Mas vale a pena pensar que há um potencial em todos para além de seus mesquinhos egoísmos que somente revelam inconsciência. Para Dalene Swanson (2013), a máxima de que “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança” reflete nitidamente o espírito e a intenção do Ubuntu. Isso porque a força da comunidade deriva do apoio comunitário, e a dignidade e a identidade são alcançadas por meio da ajuda mútua, da empatia, da generosidade e do pacto comunitário. Importa esclarecer que, se como o apartheid ameaçava carcomer esse way of life africano tradicional, em alguns casos, ele por ironia o fortaleceu ao galvanizar o apoio coletivo e ao criar solidariedade entre os que integram a comunidade dos oprimidos. Que não se perca de vista o fato de que a industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam corromper essa prática secular. O religioso sul-africano Desmond Tutu, ativista dos Direitos Humanos que lutou contra o apartheid nos anos 80, assim se expressa: Uma pessoa com ubuntu está aberta e disponível aos outros, após os outros, não se sente ameaçada quando os outros são capazes e são bons em alguma coisa, porque está confiante, porque sabe que pertence a um todo maior, que diminui quando os outros são humilhados ou menosprezados, quando os outros são torturados ou oprimidos.

O ubuntu, a fórmula expressa de uma filosofia coletiva ética entre os povos sul-africanos há séculos na África, ao longo desse tempo veio recebendo novas conotações e pode-se dizer que se configurou como um dos princípios fundamentais da nova república, vinculada à ideia de um verdadeiro “renascimento africano”. Esse conceito filosófico fundamental serviu de base para a Comissão da Verdade e Reconciliação, na África do Sul, presidida por Desmond Tutu, quando da transição democrática, após o fim do apartheid.

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Cultivar o Ubuntu significa para Mandela e esse líder religioso recuperar com todo o vigor a interação com pares e não pares, a qual admite bidirecionalidade e reciprocidade entre os participantes de uma extensa comunidade etnicamente diversificada (nessas diferenças étnicas também residindo a sua força). O desenvolvimento de habilidades de interação social assegura uma verdadeira educação das capacidades para a relação interpessoal, orientada no sentido de favorecer e afiançar o respeito pelo outro em seus êxitos e fracassos, as redes de amizades, a responsabilidade e o autocontrole social, a aptidão para a negociação, os valores solidários de ajuda e cooperação, assim como o repúdio ao racismo e à discriminação. Contempla ainda a conquista de um estilo cognitivo – próprio a uma ética da alteridade – para dirimir os problemas interpessoais, solucionando os conflitos de interação e o desenvolvimento da autoestima. No entanto, é importante sublinhar que o conceito de Ubuntu não tem a ver diretamente seja com política, seja com religião, na medida em que é uma noção, uma ideia, um modo de viver, que não encontra correspondência estrita no Ocidente. Tal conceito perpassa e toma forma em todas as áreas da vida, desde as relações mais íntimas e pessoais (família, amizades, etc) até a liderança, pois para conseguir liderar qualquer grupo social a partir de valores ubuntu, é essencial que seu líder seja um líder ubuntu.

Panikkar (2002). A proposta de Sousa Santos vai no sentido de que o diálogo intercultural dos direitos humanos seja confiado à hermenêutica diatópica, ou seja, na compreensão mútua dos distintos universos de sentido – i.e., topoi – das culturas envolvidas no diálogo. O pressuposto inicial e fundamental reside em que a utilização desses conceitos não se reduz a uma simples técnica de interpretação, mas sim que esse marco teórico é produto de uma determinada filosofia hermenêutica, cujo foco principal é o diálogo intercultural. Panikkar é um dos expoentes dessa corrente filosófica, que se autodenomina “filosofia intercultural”. Esse entendimento de diversidade e diferenças em meio às culturas somente é admissível a partir de uma interpretação dos fenômenos envolvidos que adote um método hermenêutico diatópico. A hermenêutica diatópica regula a interpretação na totalidade do diálogo intercultural, considerando e a partir das diferenças e semelhanças entre as culturas. Por outro lado, deve-se ponderar o papel desse método, na medida em que o mesmo não se revela como busca pela igualdade, mas como meio de se sinalizar reativamente as desigualdades entre as culturas:

O ubuntu também é a expressão viva de uma alternativa ecopolítica e antítese do materialismo capitalista, pois se posiciona contra essa interpretação ideológica da realidade através de uma filosofia nativa espiritual que está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte. (SWANSON, 2013)

Um diálogo intercultural com base na hermenêutica diatópica e o Ubuntu

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A hermenêutica diatópica foi defendida por Raimon Panikkar (2002) como metodologia de diálogo intercultural. O objetivo da hermenêutica diatópica é expandir ao máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de uma confabulação que se desenvolve, pode-se dizer, com um pé em uma cultura e outro em outra. Nisto reside o seu caráter diatópico. Pautar-se por essa metodologia é muito mais que a mera aplicação de uma técnica de interpretação. Importa o conhecimento com a operacionalização entre distinções conceptuais, que o sustentam e legitimam, tais como conceito/símbolo, logos/mythos, alius/ alter, multiculturalismo/interculturalidade. A explicitação e articulação adequada desses pares conceptuais, entre outros, formam o marco categorial pressuposto pela hermenêutica diatópica. Diversos são os grupos de pesquisa que aproximam a questão dos Direitos Humanos do chamado multiculturalismo crítico. Dentre esses grupos, o de Boaventura de Souza Santos é um dos que se reportam à hermenêutica diatópica e ao conceito de equivalentes homeomórficos, propostos por Raimon

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez a que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objectivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o seu caráter diatópico.

A partir desse pressuposto instrumental fundamental, Santos (2001, 2008) consegue identificar três fontes de tensões dialéticas que afetam sobremaneira não somente as relações intersubjetivas na modernidade ocidental em todo o seu espectro social, como também a política de direitos humanos, desde o final do século passado. A primeira dentre elas corresponderia à tensão dialética entre o que o autor denomina “regulação social e emancipação social”, ou seja, o estabelecimento de limites e o transcender dos limites no sentido dos avanços no campo social. Desde o final do século XX, essa tensão teria perdido o seu potencial criativo, na medida em que “a emancipação deixou de ser o outro da regulação para se tornar no duplo da regulação” (Santos, 2001, p.1). Se desde o início do século XX até seus meados as mobilizações emancipatórias foram consequências diretas das crises de regulação e tiveram como resultado o fortalecimento das políticas emancipatórias, nos dias atuais tanto a crise do Estado – seja enquanto regulador ou como Welfare State –, como as crises de emancipação social – simbolizadas, para Santos (2001), pela crise da revolução social e do socialismo tomados como padrão da transformação social radical – são simultâneas e alimentam-se uma da

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outra. De igual sorte, a política dos direitos humanos, que foi ao mesmo tempo uma política reguladora e uma política emancipadora, está enredada nessa crise dúplice, ao mesmo tempo em que é sinal do desejo de ultrapassá-la. A segunda tensão dialética está situada na relação entre o Estado e a sociedade civil. Segundo Santos, o Estado da modernidade, ainda que se apresente de modo minimalista, é, virtualmente, um Estado maximalista, na medida em que a sociedade civil, configurada como o outro do Estado, se auto-reproduz por meio de leis e regulações originadas do próprio aparelho estatal, e para essas não parecem existir limites, desde que o processo de produção legislativa respeite as regras democráticas colocadas pelo Estado. Aqui também Santos aponta a questão dos direitos humanos como o cerne da tensão:

Convém, a propósito, salientar a riqueza de sentidos contida naquele dizer zulu onde é possível desvelar a noção de ubuntu: a possibilidade de se constituírem espaços de fortalecimento de pessoas pensadas como seres-em-comum e a de se efetuarem, por força da individuação coletiva, pactos de coexistência entre diferenças (presume-se que estas podem ser individuais, religiosas, étnicas). Tais pactos não seriam necessariamente universais, nem tampouco ideologicamente “multiculturalistas”. Nesses elementos residem a base da construção de uma democracia mais includente, sempre zelosa pelo respeito à alteridade. Esses espaços onde as pessoas se individuariam num perene devir, consideradas em sua pertença a um coletivo (que entendemos corresponder a uma ampla comunidade de valores), comportam um sentido próximo ao da palavra grega ethos, que é possível identificar no pensamento pré-socrático, notadamente em Heráclito: ethos anthropou daimon (a morada do homem, o extraordinário). Caberia aqui, nestes tempos de individualismo exacerbado e não raro predatório, recuperar o vigor da ética como o estudo da condição de possibilidade de o ser humano se abrir ao outro, num aí onde se pode cumprir. É possível vislumbrar no referido dizer zulu um incitamento à recusa da apartação social, que provavelmente agradaria a um pensador da altura de Lévinas (1997, p.156), preocupado com tudo que possa significar um bloqueio do despertar para o humano:

[...]enquanto a primeira geração de direitos humanos (os direitos cívicos e políticos) foi concebida como uma luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal violador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira gerações (direitos econômicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc) pressupõem que o Estado é o principal garante dos direitos humanos. (SANTOS, 2001, p. 2)

Finalmente, Santos considera que a terceira tensão dialética sobrevém do atrito entre o Estado-nação e o fenômeno designado por globalização. O modelo político praticado na modernidade ocidental é aquele caracterizado por uma unidade básica referencial, os Estados-nação soberanos, que convivem num sistema internacional interestatal, formado por Estados igualmente soberanos. Santos observa, no entanto, que esse sistema interestatal sempre foi idealizado de certo modo anárquico, regulado por uma legalidade muito indelével, e “mesmo o internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração do que uma realidade” (2001, p.3). Hoje, com a intensificação da globalização que leva a um esgotamento do modelo do Estado-nação, a questão que se coloca é a de perquirir se ambas, regulação social e emancipação social, caminham no sentido dessa mesma escala global. Em que medida esse processo há que se dar e quais os lastros fundamentais a dar sustentação a esse mesmo movimento? Se, por um lado, já se começa, com toda a evidência, a se falar de sociedade civil global, governo global e equidade global e que o baluarte de tal processo é necessariamente o reconhecimento mundial da política dos direitos humanos, por outro vértice tem-se o conflito de um fato que surge como uma provocação ao pensamento. Em suma: tanto as violações dos direitos humanos como as lutas em defesa deles continuam a compreender uma decisiva dimensão que não se apresenta ainda supranacional, e, em contrapartida, como bem o aponta Santos (2001), as posições adotadas em relação aos direitos humanos seguem sendo produto de ethos específicos. Esses, paulatinamente, demonstram sua incapacidade em construir respostas aos novos desafios postos na busca por definir políticas de reconhecimento na perspectiva de responder ao anseio contemporâneo de democratizar a democracia.

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É evidente que há no homem a possibilidade de não despertar para o outro; há a possibilidade do mal. O mal é a ordem do ser simplesmente – e, ao contrário, ir na direção do outro é a abertura do humano no ser, um ‘outramente que ser’.

Inexiste, na opinião das autoras, possibilidade de se construir (ou reconstruir) uma democracia sem um pensar ético mais consistente. O que é possível constatar-se na liderança política de Nelson Mandela, que com o termo ubuntu, no modo de ver do Presidente Barack Obama, legou a todos o seu maior presente: [...] seu reconhecimento de que todos nós estamos unidos em maneiras que podem ser invisíveis a olho nu, que há uma unidade para a humanidade para que sejamos nós mesmos compartilhando-nos com outros, e cuidando dos que nos rodeiam.

Atravessando um rio caudaloso de história envenenada Faz-se indispensável repensar o legado da recomposição racial proposta por Mandela, a sua extraordinária lição no sentido de que a reconciliação dos sulafricanos não poderia corresponder meramente a uma questão de ignorar um passado cruel, mas sim a um modo de promover uma amplíssima inclusão. E coube a este implementar políticas de reconhecimento da etnodiversidade, baseadas nos princípios do amor, núcleo fundamental de toda a moralidade

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– tipo de reconhecimento responsável não só pelo desenvolvimento do autorespeito (Selbstachtung), mas também pela base de autonomia necessária para a participação na vida pública (HONNETH., p. 174), da estima (e autoestima) – aqui o autor tem em mente a tradição dos direitos fundamentais liberais e do direito subjetivo em condições pós-tradicionais, que indicam a direção do desenvolvimento histórico do direito (ibid., p. 190ss) – e do acesso igualitário a determinados direitos humanos, já defendidos por Honneth (1995)2, a serem agasalhados em uma nova Constituição. Era imperativo tentar conter certas tensões em uma estrutura constitucional viável e particularmente flexível. Segundo o referido autor a solidariedade na sociedade moderna está vinculada à condição de relações sociais simétricas de estima entre indivíduos autônomos e à possibilidade de os indivíduos desenvolverem a sua autorealização (Selbstverwirklichung) (ibid., p. 209ss). Simetria expressa aqui o significado segundo o qual que os atores sociais conquistam a possibilidade de vivenciarem o reconhecimento de suas capacidades numa sociedade não-coletivista. Para que os atores sociais possam desenvolver um autorelacionamento (Selbstbeziehung) positivo e saudável, carecem de uma chance simétrica de desenvolvimento de sua concepção de vida boa sem que venham a sofrer os sintomas das patologias sociais derivadas das experiências de desrespeito (Mißachtung). Razão pela qual se pode concluir que o vocábulo “estima” aqui é usado significando “respeito”. Porque à experiência do reconhecimento corresponde necessariamente uma forma positiva de autorelacionamento (Selbsterfahrung). Honneth parte do princípio de que o conteúdo do que seja desrespeito deve estar de maneira implícita vinculado nas reivindicações individuais por reconhecimento: se e quando o sujeito social faz

uma experiência de reconhecimento, ele adquire um entendimento positivo sobre si mesmo; se e quando, ao contrário, um ator social experimenta uma situação de desrespeito, por conseguinte, a sua auto-relação positiva, adquirida intersubjetivamente, adoece, seja social e/ou psicologicamente. Diante de um mundo culturalmente fragmentado e afetado por tantas restrições para o pleno exercício da cidadania, Mandela procurou responder à necessidade de se adotar uma nova forma de política, muito bem sublinhada pelo antropólogo Clifford Geertz (2011):

Aqui cumpre apontar o debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sobre redistribuição e reconhecimento o qual abarca uma multiplicidade de questões. Tomando como fio condutor a pergunta acerca da possibilidade de compreender o conjunto de injustiças existentes a partir do conceito de reconhecimento ou da necessidade de recorrer, para isso, ao par conceitual redistribuição e reconhecimento, há uma disputa entre o monismo de Honneth e o dualismo de Fraser que remete a discordâncias em suas teorias sociais. Ambos os autores promovem críticas dirigidas ao dualismo social de Jürgen Habermas, bem como das diferentes teorias sociais que desenvolvem com o intuito de resolvê-las, sendo certo que Fraser, ao desenvolver um dualismo social perspectivo, adota uma posição intermediária àquelas sustentadas por Honneth e Habermas. Para saber mais: FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça da era pós-socialista. In: SOUZA, J. (Org.)Democracia hoje. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.; FRASER, Nancy. 1995. “From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’ age”. New Left Review, n. 212, p. 68-93, July/August. (Reprinted in Nancy Fraser, Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. London: Routledge, 1997.);HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003; HONNETH, Axel. 1992. “Integrity and disrespect: principles of a conception of morality based on the theory of recognition”. Political Theory, n. 20(2), p. 188-189. HONNETH, Axel.. 1995. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Trans. Joel Anderson. Cambridge: Polity Press.

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[...] uma política que não encare a afirmação étnica, religiosa, racial, linguística ou regional como uma irracionalidade arcaica e ingênita, a ser suprimida ou ultrapassada, como uma loucura censurada ou uma escuridão desconhecida, mas que a veja, como a qualquer outro problema social – a desigualdade, digamos, ou o abuso de poder –, como uma realidade a ser enfrentada e modulada, com a qual de algum modo é preciso lidar e chegar a um acordo.

Não há fórmulas ideais ou receitas para se lograr êxito na promoção dessa política, nem tampouco políticas de reconhecimento dotadas de pretensão universal ou da virtude da infalibilidade. Tratava-se, no caso da África do Sul, de fazer frente aos estragos incomensuráveis produzidos pelo regime doapartheid, num lugar brutalmente dilacerado onde cada identidade cultural (e étnica) – anteriormente desprezada – se apresenta como um domínio de diferenças que se confrontam nos níveis mais diversos, desde a família, ou uma simples aldeia, até uma área rural marcada por fricções Inter étnicas ou uma metrópole moderna (HALL, 2011). Ao indiferentismo ético que regia o apartheid era necessário contrapor a força condensada no ubuntu, a filosofia ética e humanista africana que inclui valores como reconciliação e compaixão. Nelson Mandela também explica esse ideal: Respeito. Cortesia. Compartilhamento. Comunidade. Generosidade. Confiança. Desprendimento. Uma palavra pode ter muitos significados. Tudo isso é o espírito de Ubuntu. Ubuntu não significa que as pessoas não devam cuidar de si próprias. A questão é: você vai fazer isso de maneira a desenvolver a sua comunidade, permitindo que ela melhore?

Na tradição sul-africana, a reconciliação se exprime através do ubuntu ou humanismo, que inclui valores como a compaixão e a comunhão – valores que orientaram a Comissão Verdade e Reconciliação e serviram como base para a formulação dos objetivos nacionais de reconstrução e reconciliação. J.Y. Mokgoro, juiz da Corte Constitucional da África do Sul mostrou que esse princípio filosófico fundamental distinguiu de maneira determinante o direito constitucional do país, desde a constituição provisória de 1993 e está presente na lei fundamental n° 34, de 1995, sobre a Promoção da Unidade Nacional e da

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Reconciliação : “[…] A Constituição estipula que a busca da unidade nacional, o bem-estar de todos os cidadãos sul-africanos e a paz exigem a reconciliação entre os habitantes da África do Sul e a reconstrução da sociedade.”(REDONNET, 2001). E essa compreensão que decerto norteou Mandela em sua gestão como presidente da África do Sul, foi por este retomada em um pronunciamento com que encerrou a XIV Conferência Internacional de AIDS, realizada em Barcelona, a 12 de julho de 2002: “Na África, temos um conceito conhecido como ubuntu, baseado no reconhecimento de que somos pessoas somente por causa das outras pessoas” (MANDELA, 2013, p. 92). Este é o passo rumo à superação do etnocentrismo e ao etnocídio3 que grassam as comunidades submetidas. É legitimo sempre insistir no fato de que o intenso desenvolvimento da etnologia, tornado mais visível desde meados do século passado, desfez, de uma vez por todas, a convicção que prevalecia na comunidade científica de que a civilização europeia era superior a qualquer outro sistema de sociedade. E essa tomada de consciência deve estar de novo presente em todo esforço de se formularem políticas de reconhecimento da etnodiversidade (SANTOS, 2008), que podem muito bem acolher o pressuposto de Fraser (2007): a necessidade de conjugá-las, de uma forma harmoniosa, com as chamadas políticas de redistribuição, para se alcançar patamar mais elevado de justiça social. Ou seja, em vez de simplesmente defender ou recusar o que é pacóvio na política da identidade, dever-se-ia perceber que estão colocadas para homens e mulheres de todas as comunidades globais novas tarefas tanto no nível intelectual e/ou prática, qual seja, a do desenvolvimento de uma teoria crítica do reconhecimento, na qual a identidade venha a assumir a defesa “daquelas versões da política cultural da diferença que possam ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade”(p.232). Se o termo genocídio remete à ideia de raça e ao desejo de extermínio de um grupo étnico-racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens, como o genocídio, mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio, assim, é a destruição sistemática de modos de vida e de pensamento de pessoas diferentes daquelas que conduzem a empreitada da destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seus corpos e o etnocídio os mata em seu espírito. Tanto o genocídio quanto o etnocídio compartilham de uma visão idêntica do Outro, daquele que é radicalmente diferente. Só que o espírito genocida quer pura e simplesmente negar a diferença; exterminam-se os outros porque eles são absolutamente maus. O etnocídio, por outro lado, admite a relatividade do mal; os outros são maus, mas podem ser melhorados, obrigados na medida do possível a se tornarem idênticos ao modelo que lhes é proposto, que nós lhes impomos. O etnocídio se exerce, na sua visão, para “o bem do selvagem”. De tal modo que finda por suprimida a indianidade do índio a fim de fazer dele um cidadão brasileiro ou colombiano.( CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo, Brasiliense, 1982. p. 52-60.)

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Conclusões Etnocentrismo e etnocídio são obstáculos que devem ser vencidos no rumo da coexistência, com as nossas diferenças culturais, num mundo de paz e efetiva equidade. E sempre a nos individuarmos através dos demais seres humanos. Afirmar que etnocentrismo e etnocídio estão obrigatoriamente ligados só é válido – com as imprescindíveis ressalvas – para a cultura ocidental, não por esta revelar uma “essência” etnocida, mas sim pela forma com que uma sociedade com Estado se estabelece. E pode-se mesmo concluir: essa forma certamente alcançou um nível elevado de expressão com a sociedade sulafricana assentada no apartheid desde 1948. Já na sua formação propriamente moderna o Estado impõe regras – as regras são aquilo que formam esse organismo jurídico-político. E ele procura basear-se nos valores da “maioria”, buscando uma unidade social, um padrão cultural mais homogêneo para a sociedade. O Estado é o centro e tudo deve convergir para este. Formar cidadãos constitui-se em processo conectado às exigências do Estado; conforme argumenta Clastres (2011), o que se encontra à margem dessa unidade “artificial” é alcançado pelos braços do Estado e deixa de existir como diferença. Partindo dessa premissa, é possível concluir que a sociedade ocidental não é a chave para se entender o etnocídio, mas sim as sociedades com Estado (o exemplo do que se passou em Ruanda está bem ao alcance de nossa memória recente). Contudo, vale frisar, na esteira da reflexão de Clastres (2011), que as sociedades como Estados não praticam o etnocídio de forma idêntica (algumas, como a brasileira, se revelam até mais moderadas). É o sistema econômico que interfere na intensidade do etnocídio, e o sistema capitalista com sua busca incansável por produção e crescimento faz, de maneira constante, com que a sociedade ocidental seja especialmente cruel no sentido de aniquilar identidades culturais. E esse caminho sombrio pode ser superado ou revertido com todo o empenho. Um empenho em que não irão faltar as luzes daquele pensar ético sintetizado na palavra ubuntu: a capacidade humana de compreender, aceitar e tratar bem o outro, uma ideia semelhante à de amor ao próximo. O desejo sincero de felicidade e harmonia entre os homens.

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Desafios do Direito de Resposta após a Lei 13.188/2015 Vânia Aieta1 Marcelle Mourelle2 Resumo O Direito de Resposta deve ser apreciado como Direito Fundamental que protege ao cidadão e que, na seara eleitoral, zela não só pelo candidato, mas sobretudo pela legenda e pela lisura da concorrência entre os participantes do certame e da credibilidade do processo eleitoral junto à população. Fatos sabidamente inverídicos violam expressamente o dever de veracidade e lisura dos meios de imprensa e podem suscitar a atuação da Justiça Eleitoral para coibir abusos que geram desequilíbrio na campanha. Palavras-chave: Direito de resposta; meios de imprensa; eleições. Abstract The “Right of Reply”must be considered as a Fundamental Law that protects the citizen and that the electoral harvest, cares not only for the candidate, but above all by the legend and the fairness of competition between the participants of the event and the credibility of the electoral process with the population. Untruthful facts expressly violate the truth of duty and honesty of the press and media can raise the performance of the Electoral Court to curb abuses that generate imbalance in the campaign. Keywords: Right of reply; press media; elections.

Considerações iniciais O Direito de Resposta tem previsão constitucional no art. 5º, inciso V da Carta Magna, que estabelece in verbis: “É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem”. Sendo relevante destacar o seu status de Direito Fundamental, eis que instrumento essencial para a proteção aos direitos da personalidade do cidadão. Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) no programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito. Coordenadora da linha de pesquisa em Direito da Cidade (PPGD – Mestrado e Doutorado). Professora da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), da Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro (EJE-RJ). Sócia Fundadora do IDCG. Presidente da ESDEL – Escola Superior de Direito Eleitoral. Advogada especializada em Direito Eleitoral no Rio de Janeiro. Editora Chefe da Revista Ballot. Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ. 2 Doutoranda do programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da UERJ. Mestre em Direito (UERJ). Especialista em Direito Empresarial (FGV/RJ). Docente de cursos de PósGraduação (AVM/UCAM) e dos cursos de graduação em Direito, Turismo e Marketing (FGS/RJ). Advogada e Consultora Jurídica no Rio de Janeiro. Editora Adjunta da Revista Ballot. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ. Coordenadora da Comissão de Integridade Científica do Instituto Oswaldo Cruz-IOC/FIOCRUZ 1

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Tal direito foi recentemente regulamentado pela Lei nº 13.188/2015, que disciplinou pela via normativa o direito de resposta no ordenamento jurídico brasileiro. Posto que a Lei nº 5.250/1967, a lei de imprensa oriunda do ordenamento ditatorial militar, não foi recepcionada pela Constituição de 1988, nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130. Afinal, antes deste novo diploma legal, o direito de resposta acabava por ser exercido por meio do exercício hermenêutico desenvolvido a partir da efetividade dos direitos fundamentais e dos pressupostos da responsabilidade cível e criminal, em que há o dever do ofensor de restituir a coisa ao status quo ante sempre que possível. Notadamente na seara eleitoral, por norma específica, o direito de resposta está previsto no nível legislativo pela norma contida no art. 58 da Lei nº. 9.504/97. Sendo pertinente o padrão da forma e duração da resposta e da retificação estabelecido pelo artigo 4º da lei 13188/2015, que não fazia parte do diploma regulador das eleições, mas irrazoável o padrão para o estabelecimento do interesse jurídico quando se tratar de casos envolvendo campanhas eleitorais, posto que durante o curto prazo de uma campanha eleitoral, esperar sete dias para poder propor uma ação para que se possa obter uma liminar com o direito de resposta pode arruinar a candidatura do ofendido sem qualquer possibilidade de reversão. Logo, considerando que a lei específica, Lei nº. 9.504/97, não traz tal exigência para o reconhecimento do interesse jurídico, deve-se considerar-se que tal requisito não se aplica no Direito de Resposta na seara eleitoral, posto que a lei geral posterior não revoga a lei específica anterior em clássico postulado da hermenêutica jurídica. Realizando uma avaliação sob a perspectiva do Direito Internacional, há que se louvar a previsão contida no artigo 14 do Pacto de São José da Costa Rica que se perfaz como um instrumento normativo que reconhece, a qualquer pessoa que se considere afetada por meio de informação inexata ou ofensiva veiculada pela imprensa, o direito de resposta e de retificação. Diante deste cenário normativo surge, portanto, a necessidade de se observar o Direito de Resposta na solução de conflitos com outros direitos, como os ligados à liberdade de expressão. Estes casos difíceis, tal como acontece com os demais Direitos Fundamentais, não devem ser, em regra, suprimidos. Fala-se em regra, pois os Direitos Fundamentais não podem ser absolutizados no caso concreto. Desta forma, de acordo com o princípio da factibilidade ou da operabilidade formulado por Enrique Dussel, deve-se usar uma “lupa” para que as especificidades possam revelar qual a solução que apresenta a máxima eficácia dos Direitos Fundamentais para o quadro apresentado de tal modo que sejam factíveis, afinal “só é factível aquele subconjunto de fins que se integra em algum projeto de vida. Ou seja, fins não compatíveis com a manutenção da vida do próprio sujeito estão fora da factibilidade”. Desse modo, a factibilidade do direito de resposta estará, portanto, na possibilidade não só técnica e material de sua concretização, mas, também, nas condições em que esta mesma concretização viabilizará a própria existência humana de modo a permitir que os sujeitos

beneficiados tenham asseguradas condições de estabelecerem seus próprios projetos de vida e de agirem autonomamente nas esferas privada e pública, sendo insubstituível por uma indenização pecuniária, sobretudo na seara eleitoral, em que os resultados do candidato no escrutínio dependem diretamente da opinião pública, tanto que o artigo 12 da Lei 13188/2015 prevê a indenização em ação própria e consequentemente um debate descolado do Direito de Resposta, em consonância com o Enunciado 589 da VII Jornada de Direito Civil.

Relação dos meios jornalísticos com o Direito de Resposta Diante de tal cenário normativo resta ululante que um veículo de imprensa – incluindo-se até mesmo programas humorísticos, eis que o Supremo Tribunal Federal (ADI 4.451) inclui tal categoria como forma de imprensa – não pode publicizar uma matéria sem fazer uma checagem zelosa acerca da veracidade na notícia, sendo insuscetível de constrições em período eleitoral, mas não imunes ao direito de resposta aplicável a qualquer forma da liberdade de expressão. Pode-se colocar inicialmente que a mentira factual na propaganda eleitoral e no discurso público em geral traz consequências negativas para a democracia. Reduz a confiança nas instituições, nos partidos e agentes políticos e, no longo prazo, inculca uma modalidade especial de cinismo nos cidadãos que inviabiliza a reconstrução destes laços esgarçados. Em que pese a necessidade da Justiça Eleitoral de fazer sentir a sua força para demonstrar que está devidamente atenta às lesões ao processo eleitoral, a Justiça Eleitoral não pode por meio do controle judicial responder de modo satisfatório à missão de purgar a inverdade factual da propaganda eleitoral. Isto porque existem limites inerentes à própria atividade jurisdicional e à gramática do Direito que, na prática, podem acabar trazendo consequências negativas ao próprio desenvolvimento democrático quando aliados à visão paternalista que permeia esta tentativa de controle. Assim sendo, quando um jornal falta com a verdade, vitimiza um candidato ou mais com uma notícia falaciosa, cuja veiculação torna-se agravada, levando-se em consideração que o momento da ofensa se deu no período eleitoral, trazendo prejuízos acentuados para a parte lesada, no caso o candidato, ao macular sua imagem com uma mentira, notícia mentirosa, perante seus eleitores. Não se trata aqui de limitação à liberdade de informação, nem tampouco ao direito de crítica. Não estamos a tratar do exercício democrático de liberdade de expressão e direito constitucional de crítica. Ao revés, tratamos na hipótese de incidentes que podem ser, sem qualquer dúvida, configurados como casos em que pode se limitar a liberdade de informação, pois revelam a veiculação de notícias inverídicas publicadas em jornal de grande circulação. Em toda eleição, constatamos a existência de diversas modalidades de conflitos e o Poder Judiciário assume o papel de moderador na resolução dos mesmos. Por outro lado, a imprensa tem alcançado uma autonomia muito

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grande na sociedade contemporânea, passando a exercer um verdadeiro poder social. Portanto, muitas vezes o cidadão é não um destinatário, mas um refém da informação, tornando-se necessário defender não só a liberdade da imprensa, mas também a liberdade face à imprensa. O chamado “quarto poder”, para parafrasear Norberto Bobbio, é constituído pelos meios de informação que desempenham uma função determinante para a politização da opinião pública e, nas democracias constitucionais, têm capacidade de exercer um controle crítico sobre os órgãos dos Poderes da República. Assim sendo, sobre a liberdade de imprensa sem limitação, vale ressaltar que seria preciso, para aceitar a evidência de uma notícia falsa, superar o preconceito antigo de que toda limitação à liberdade é um mal. Ora, não se pode falar em proteção aos direitos sem admitir uma limitação considerável à liberdade de informação, notadamente quando estamos diante de um jornal ou de outro agente da mídia que veicula uma notícia falsa que prejudicará não só a vítima, no caso um candidato, mas a todo processo eleitoral, pois forma a convicção errônea nos eleitores sobre o candidato, sem lhe oportunizar defesa, ferindo o devido processo legal e o contraditório. Ao ser exibida pela mídia uma notícia falsa sobre um candidato, portanto, se atinge o candidato pessoalmente, mas isto se reflete em todo o partido e na coligação por ele representada. Tal situação também favorece injustamente os demais candidatos e suas respectivas legendas que se beneficiam com os votos daqueles cidadãos que foram influenciados pela notícia falsa. Contudo, há um impacto institucional sobre todo o processo eleitoral, tão basilar para a manutenção da democracia e dos princípios republicanos. Assim, como Paulo Bonavides, pode-se afirmar que a liberdade de imprensa não pode se sobrepor ao direito à informação verídica, pois há limitação clara e expressa no próprio texto constitucional e insistir na afirmação de que a imprensa é plenamente livre, sem exceções, seria uma violência ao próprio Estado de Direito, que concebe de forma clara as liberdades. Portanto, o “quarto poder” não pode impor a sua vontade, contrariando a vontade expressa em Lei Maior, com a proteção ainda da imutabilidade de tal questão, por ser tratar de uma cláusula pétrea. Verificamos que o cidadão inerme, de uma parte, e os grandes meios de comunicação com a massa, de outra, ressalta de imediato a enorme desproporção de forças entre eles. Do que se depreende a urgente tutela dos indivíduos, para não sermos sufocados pelas forças gigantescas da divulgação, aniquilados e impedidos do exercício de nossos direitos, no caso o de recebimento de uma informação honesta e verídica. Reiterando o posicionamento aqui esposado, Vital Moreira, em obra monográfica, expõe as diversas concepções que buscam justificar, doutrinária e dogmaticamente, o direito de resposta, advertindo, no entanto, sobre a insuficiência de uma “explicação unifuncional”, por vislumbrar, no direito de resposta, uma pluralidade de funções, por ele assim identificadas: (a) o direito de resposta como “defesa dos direitos de personalidade”; (b) o direito de resposta como “direito individual de expressão e de opinião”; (c) o direito de resposta

como “instrumento de pluralismo informativo”; (d) o direito de resposta como “dever de verdade da imprensa”; (e) o direito de resposta como “uma forma de sanção ‘sui generis’, ou de indenização sem espécie”. Assim, nas duas últimas funções há o reconhecimento do direito de resposta como instrumento de efetividade dos direitos fundamentais ao exigir que a imprensa cumpra com o seu dever com a verdade, consequentemente sendo essencial a checagem das fontes, bem como a apresentação do direito de resposta como uma punição ao veículo de mídia, que será condenado a veicular a publicação da resposta do ofendido com o mesmo grau de exibição da notícia falsa apresentada ao público. Ademais, o direito de resposta também serve para evitar o juízo prévio sob a forma de censura, eis que estabelece um mecanismo em que é possível coibir excessos sem que se avalie cada manifestação antes da sua publicação em uma atitude autoritária e antidemocrática, como já dito como inaceitável pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4.451). Por outro lado, há que se concordar com a tese da inconstitucionalidade do artigo 10 da lei 13.188/2015, eis que não existe fundamento para que o juiz singular possa deferir o direito de resposta e que a parte contrária tenha que obter a suspensão da liminar por manifestação de “juízo colegiado prévio” em uma exigência processual única no ordenamento brasileiro que rompe com a paridade de armas entre as partes e traz para o direito de resposta um mecanismo mais gravoso que aquele ao qual está submetida a acusação no processo penal (em mesmo sentido: Adin questionando a lei 13188/15, proposta pela OAB)

Fato inverídico versus ofensa O Direito de Resposta permite que se corrija a informação errônea divulgada, ou seja, trata-se de uma questão objetiva: a notícia, no todo ou em parte, passa um relato que não corresponde aos fatos. Assim, o fato inverídico não se confunde com a ofensa, posto que esta envolve uma questão subjetiva, eis que depende que o ofendido se sinta agredido pela mensagem emanada, no caso, pela imprensa. Diante disto, é possível concluir que nem todo fato inverídico é uma ofensa, porque algo que não ocorreu não necessariamente atinge subjetivamente a moral do sujeito, e, do mesmo modo, nem toda a ofensa é um fato inverídico, posto que uma verdade pode ser dita de modo a expor e a magoar alguém. Neste sentido, um exemplo da primeira situação na seara eleitoral é o seguinte: um político poderia não se sentir ofendido ao ser noticiado que ele renunciou para concorrer nas próximas eleições por ser um dos favoritos, mas, se ele não renunciou, o fato é inverídico e, por mais que a notícia o coloque positivamente como um dos favoritos, ele tem o direito de resposta para apresentar a verdadeira situação, ou seja, que ele não renunciou. Já na segunda situação está o caso de um candidato que há mais de 20 anos foi declarado falido. Ser noticiado que ele teve esta condenação pelo fato de ter

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sido incapaz de gerir a sua atividade empresarial pode magoá-lo, mas não pode ser tida como fato inverídico, e consequentemente, não pode motivar o direito de resposta, eis que ele realmente sofreu tal condenação. Vale destacar ainda que o que se chama de ofensa pode ser assemelhado ao que atinge a honra, tida como explica a clássica lição de Magalhães Noronha, como “o complexo ou o conjunto de predicados ou condições da pessoa que lhe conferem consideração social e estima própria”. Assim, independentemente da divisão entre honra subjetiva e honra objetiva e da honra comum contraposta pela doutrina penal da honra profissional, a ofensa que ocorre na calúnia, na difamação e na injúria atinge, como esclarece Heleno Cláudio Fragoso, “a pretensão ao respeito, interpenetrando-se os aspectos sentimentais e éticosociais da honra”. Tanto há esta distinção que nos crimes contra a honra na seara penal há ação penal condicionada e o consentimento do ofendido como excludente da tipicidade e no âmbito eleitoral tem-se que a ação é pública e incondicionada, eis que “O bem jurídico protegido não diz respeito apenas ao candidato, mas ao interesse público que envolve a matéria eleitoral”. (Sentença 690-24.2012.6.13.0071)

ao interesse público, pois nem toda informação verdadeira é relevante para o convívio em sociedade”. (REsp 1.297.567-RJ e REsp Nº 1.414.887-DF). Outro caso com parâmetros importantes, é o conhecido como “Caso da Escola Base” de São Paulo em que foram feitas pela mídia graves acusações de abuso sexual de crianças em escola. O inquérito policial foi arquivado pela falta de elementos mínimos contrários aos investigados, mas os acusados nunca conseguiram recompor a sua reputação social , ou seja, a falta de checagem das fontes arruinou as reputações das vítimas e levou ao fechamento da Escola. (REsp 1215294-SP) O impacto majorado do impacto do que é divulgado pela imprensa foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1215294–SP). A relativização da liberdade de informação e de manifestação para não impedir a dignidade da pessoa humana, pois esta colisão aparente somente existirá, repitase, quando há a divulgação de fato sabidamente inverídico, de tal modo que se os fatos foram divulgados pela própria pessoa envolvida, ainda que falsos, deixa de star presente a figura típica. (REsp 1235637). Já no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, os principais julgados envolvendo a última eleição (2014) nos apresentam o seguinte entendimento da corte. Os fatos sabidamente inverídicos são causa para a configuração de propaganda eleitoral negativa e podem limitar a livre manifestação de pensamento. (AgR-REspe 204014). Tal como já se entendia na eleição de 2010 (Rp 3681-23) com o precedente de “A mensagem, para ser qualificada como sabidamente inverídica, deve conter inverdade flagrante que não apresente controvérsias” (Rp 2962-41), se o fato demanda investigação, não há como ser considerado como sabidamente inverídico. (Rp 139448). O direito de resposta tem caráter excepcional, sob pena de restrição à liberdade de expressão indevida, mas deve ser deferido quando há ofensa expressa por fato sabidamente inverídico atingindo o candidato, o partido ou a coligação (Rp nº 143952). Os fatos que implicam nos tipos penais calúnia, difamação e injúria, com reflexos na seara eleitoral, e aqueles sabidamente inverídicos por inverdade ou erro ensejam o direito de resposta (Rp nº 143952).

Análise jurisprudencial da divulgação do fato sabidamente inverídico

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A questão da divulgação de fato sabidamente inverídico e o correspondente direito de resposta ainda não foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal após a lei 13.188/2015. Contudo, há que se registrar os principais pontos assentados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. A divulgação dos fatos sabidamente inverídicos se amoldam à figura típica do artigo 323, do Código Eleitoral, quando os fatos possuem alguma capacidade de influenciar o eleitorado, ou seja, algo que seja tão fantasioso e descabido que seja notoriamente uma mentira estaria fora da conduta típica como se depreende do acórdão de lavra do STF da Petição 3197e da Petição 4420. O tipo penal militar análogo é o do artigo 219, do Código Penal Militar, que “pressupõe que o agente saiba serem inverídicos os fatos propalados” (HC 83125), tal como os fatos sabidamente inverídicos mencionados no tipo do artigo 323, do Código Penal, seguindo a mesma linha do julgado no REsp 1413. Ainda no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal destacase o reconhecimento de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e que os particulares também necessitam observar o arcabouço dos direitos fundamentais dos demais (ADI 4815/DF). Desta forma, observa-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, com a finalidade de averiguar se a liberdade de imprensa foi exercida no presente caso de forma abusiva ou não, convém analisar alguns critérios paradigmáticos, estabelecidos em diversos votos da lavra da Ministra Nancy Andrighi: “A liberdade de informação deve estar atenta ao dever de veracidade, pois a falsidade dos dados divulgados manipula em vez de formar a opinião pública, bem como

Considerações à guisa de conclusão Há que se reconhecer, portanto, que o direito de resposta é um instrumento reconhecido pelos diplomas normativos e pela jurisprudência como via adequada para repelir a atividade jornalística que falta ao seu dever com a verdade, sendo certo que tal postura revela-se mais gravosa quando a vítima se trata de candidato em período eleitoral, posto que as implicações negativas se elevam de modo exponencial, eis que possível que a injusta influência seja fator determinante no resultado do pleito. A liberdade de expressão não constitui um direito fundamental absoluto e pode ser limitada diante da ofensa que atinge a dignidade da pessoa humana, inclusive na seara eleitoral. Os fatos sabidamente inverídicos atingem diretamente

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a reputação dos políticos e não há valor pecuniário a ser estipulado em forma de indenização que possa recompor o status quo ante. Logo, do mesmo modo como é possível na esfera cível a recolha dos materiais com dados inverídicos e/ou a suspensão da veiculação na mídia televisiva, radiofônica ou online, também se deve determinar semelhante recolha dos materiais, inclusive os de cunho publicitários de outro candidato, quando o conteúdo propaga fatos sabidamente inverídicos expressos para manipular a consciência da opinião pública sobre o candidato, partido ou coligação vítima. Dessa maneira, o Estado, em regra, deve não deve interferir nas manifestações dos cidadãos e dos meios de imprensa. Podendo, contudo, interferir na aplicação da lógica tradicional de ponderação dos direitos fundamentais de modo a se buscar uma solução intermediária em que se evite a posição extremada em que a prevalência de um não implique na impossibilidade do outro, cabendo medidas extremas de concessão do direito de resposta e até de recolha dos materiais quando os fatos forem sabidamente inverídicos, ou seja, quando denotem ofensa e não demandem investigação, posto que são perceptíveis as incongruências a qualquer receptor da mensagem. Tal postura atua em prol dos interesses das próprias vítimas, mas sobretudo pela necessidade da coletividade em que o debate político eleitoral baseie-se em dados concretos e lógicos hábeis a fomentar a opinião pública, posto que é o fato verídico que alimenta a direito fundamental à informação.

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Desafios do Direito de Resposta após a Lei 13.188/2015

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resolução nº 23.398. INSTRUÇÃO Nº 960-93.2013.6.00.0000 – CLASSE 19 – BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL. Relator: Ministro Dias Toffoli. Disponível em http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/ eleicoes-2014/normas-e-documentacoes/resolucao-no-23-398-consolidada-com-alteracoes Acesso em 20jan2016 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. 2040-14.2014.616.0000 AgR-REspe Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 204014 - Curitiba/PR Acórdão de 10/11/2015 Relator(a) Min. LUCIANA CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 232, Data 09/12/2015, Página 53/54 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL Rp 3681-23/DF, rel. Min. Joelson Dias, publicada no mural em 28.10.2010. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL.R-Rp 2962-41, de 28.9.2010, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, PSESS de 28.9.2010. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL 1394-48.2014.600.0000 Rp - Representação nº 139448 -Brasília/DF Acórdão de 02/10/2014 Relator(a) Min. ADMAR GONZAGA NETO Publicado em Sessão, Data 2/10/2014 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. 1439-52.2014.600.0000 Rp - Representação nº 143952 -Brasília/DF Acórdão de 02/10/2014 Relator(a) Min. ADMAR GONZAGA NETO - Publicado em Sessão, Data 2/10/2014 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. 1241-15.2014.600.0000 R-Rp - Recurso em Representação nº 124115 - Brasília/DF Acórdão de 25/09/2014 Relator(a) Min. ADMAR GONZAGA NETO Publicado em Sessão, Data 25/9/2014 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL 1279-27.2014.600.0000 Rp - Representação nº 127927 - Brasília/DF Acórdão de 23/09/2014 Relator(a) Min. TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO Publicado em Sessão, Data 23/9/2014

Uma incursão histórica na biografia de Carl Schmitt, o Jurista Terrível André R. C. Fontes1 Resumo A trajetória de vida de Carl Schmitt e as etapas de seu pensamento em conexão descritiva com os fatos de sua época – eis o conteúdo do texto. Um excerto da vida de Carl Schmitt e suas pavorosas relações com o Nazismo, e as desastrosas consequências para o Brasil e o mundo. A retomada dos estudos das obras de Carl Schmitt, geralmente assentadas na sua concepção antiliberal, tão em voga nos tempos atuais, não deve ignorar a biografia censurável de um jurista que serviu ao Nazismo e que foi reputado de o jurista do Führer. Palavras-chave: Jurista; nazista; nacional-socialismo; Hitler; Führer; antissemitismo. Abstract The life story of Carl Schmitt and the stages of his thinking in descriptive connection with the facts of his time – this is the text content. An excerpt from Carl Schmitt’life and its appalling relations with Nazism, and the disastrous consequences for Brazil and the world. The resumption of studies of the works of Carl Schmitt, usually seated in its illiberal conception, so fashionable in recent times, must not ignore the objectionable biography of a jurist who served the Nazis and was reputed the lawyer of the Führer. Keywords: Jurist; nazi; national socialism; Hitler; Führer; antisemitism.

Por um capricho da natureza, Carl Schmitt viveu notáveis e extraordinários 95 anos. Sua vida, entretanto, não foi marcada, apenas, por realizações e êxitos acadêmicos. Chegou a ser preso, mas a bondade divina, na qual ele tanto acreditava, nunca permitiu que a espada inimiga o ferisse e nenhum soldado fez derramar seu sangue. Parecia haver trabalho demais a fazer antes que chegasse a hora da morte para aquele homem de capacidade incomum. Schmitt era dotado de pensamentos e linguagem que o alçava aos limites da genialidade. É de se espantar que uma pessoa com um nome tão simples entre seus conterrâneos possa haver produzido uma inteligência tão divina quanto humana. Um semideus na potência intelectual, nascido da raça dos homens, que, de todos os mistérios biográficos do mundo, talvez seja o mais difícil de explicar. É surpreendente que alguém que chegou a ter quase um século de existência fosse, ainda assim, tão infinitamente além da habilidade de um só homem. Qualquer que tenha sido a sua instrução, fulgurou na história do 1

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Desembargador no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.

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pensamento como um dos maiores intelectuais de todos os tempos. Nos seus escritos viu a dissipação de dias e noites de estudos e de dedicação, mas, como homem de ação, forjou um tipo de caráter peculiar, que não teve dúvidas em dar incansáveis passos de apoio e a submergir na concordância e na satisfação das necessidades mais cáusticas. De resto, dirigiu seus propósitos a uma criatura que nem na imaginação haveria de tolerar. Numa animação colorida e excitante em seus pensamentos, dispôs-se a trocar o sofrimento humano pela afirmação de suas ideias. A glória consumiu-lhe energia para nunca ter que agitar a alma. Para brilhar como um deus, entre os homens do mundo, foi o mais mundano dos pensadores.2 O espírito de Schmitt achava-se num torvelinho, no qual o radicalismo e a violência andavam abraçados. Naqueles tempos que marcaram as duas grandes guerras já havia estudado bastante, o suficiente para formar um juízo mais maduro nas suas atitudes e ambições pessoais acadêmicas, mas preferiu se tornar um assíduo visitante na casa barulhenta da Alemanha, e deixar crescer o sentimento de sua própria superioridade. E nenhum espírito iluminado soube tão bem que a pena era mais poderosa do que a espada, pois, melhor que ninguém, fazia curvar com palavras vibrantes o entusiasmo do uso inglório da força.3 Durante vários anos, a Alemanha vinha sendo agitada pelo terremoto político nazista. O recurso à agressão e à violência pelos acólitos de Hitler e seus asseclas era ostensivo e implacável. E para um homem de grande entendimento, abençoado por uma inteligência poderosa, nada havia de interessante no Nazismo que pudesse provocar a ambição ou uma oportunidade de criar um laboratório de experiências. O crepúsculo da história, que correu ao longo da vida de Schmitt, é a maior demonstração do que não poderia ser ignorado. Por dias, por semanas, por meses, presenciou Schmitt o entardecer. Seu nascimento, em 11 de julho de 1888, ocorreu 45 dias depois da Abolição da Escravatura no Brasil, por ato da Princesa Isabel, a Redentora, ocorrida em 13 de maio de 1888. Veio à luz menos de um mês após o nascimento do poeta e escritor

português Fernando Pessoa (13 de junho de 1888), e menos de dois anos da inauguração da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque. Em seu tempo estavam vivos Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Clovis Bevilacqua. Nasceu antes mesmo da inauguração da Torre Eiffel, que se deu quase um ano depois, no dia 13 de março de 1889. Quando tinha 10 de anos de idade, Cuba, Porto Rico e Filipinas ainda eram colônia da Espanha. O Brasil ainda era um império, pois a república surgiria somente em 15 de novembro de 1889. Testemunhou a guerra Hispano-Americana, o nascimento da República do Panamá e a inauguração do famoso canal, em 1914. Pôde ler sobre o fim da Monarquia Portuguesa e a proclamação da república, assim como a ascensão e morte de Salazar, e, posteriormente, a Revolução dos Cravos. Testemunhou toda a guerra civil espanhola e o início e o fim da ditadura franquista, assim como a coroação do Rei Juan Carlos, em 1975. Foi contemporâneo da Guerra Russo-Japonesa, do fim do Império russo, da Revolução de 1917, da segunda guerra dos Boers e do nascimento da República da África do Sul. Faleceu em 7 de abril de 1985 e, por pouco, não assistiu à queda do muro de Berlim, quatro anos depois – em 9 de novembro de 1989.4 Schmitt viveu intensamente, mas não sem antes testemunhar as agressões da Alemanha contra o Brasil na Primeira Guerra Mundial, no período de 1917 a 1918, e também de 1941 a 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, em ambos por ação da Marinha de Guerra Alemã, por meio do torpedeamento de navios mercantes brasileiros, desarmados e indefesos, pela sua frota de submarinos, provocando a morte de milhares de embarcados. Não devemos olvidar que, seja na Grande Guerra, a Guerra do Kaizer, seja na Guerra de Hitler, a força de submarinos alemães pôs a pique muitos navios de bandeira auriverde em mares tão encapelados, que poucos sobreviventes puderam ser resgatados. Soldados pracinhas deram suas vidas para libertar o mundo do jugo hitlerista, que conduziu a experiência histórica da humanidade ao seu maior conflito. Jovens e intrépidos pilotos travaram batalhas aéreas espetaculares no teatro de operações peninsular, no que se chamou batismo de fogo da então incipiente e recém criada Força Aérea Brasileira.5

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Carl Schmitt foi preso e assim mantido após o término da Segunda Guerra por dois anos e nesse período foi mantido sem seus apontamentos. Esse período crítico na sua vida foi descrito no livro Ex Captivitate Salus (o cativeiro liberta), Buenos Aires: Struhart & Cia., s/d. Cf. ainda Carlo Angelino, Carl Schmitt sommo giurista del Führer, Gênova: Il Melangolo, 2006. passim. Carl Schmitt Um giurista davanti a se stesso. Vicenza: Néri Pozza, 2005. passim. Ingo Muller. Los juristas del horror. Trad. Carlos Armando Figueredo. Bogotá: Álvaro Nora, 2009. passim. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Ingo Muller. Los juristas del horror. Trad. Carlos Armando Figueredo. Bogotá: Álvaro Nora, 2009. passim. Enzo Collotti. A Alemanha Nazi. Trad. J. Santos Chambinho. Lisboa: Arcádia, 1965. Carlo Angelino, Carl Schmitt sommo giurista del Führer, Gênova: Il Melangolo, 2006. passim. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

E. H. Gombrich. Uma pequena História do Mundo. Trad. Raquel Moura. Lisboa: Tinta-da-China, 2006. passim. Oliveira Lima. História da Civilização. 16ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. passim. Geoffrey Barraclough. Introdução à História contemporânea. 4ª ed. Trad. Álvao Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. passim. David Thomson. Pequena história do mundo contemporâneo. 5ª ed. Trad. J. C. Teixeira Rocha. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. passim. Helio Vianna. História do Brasil. 12ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975. passim. 5 Carl Schmitt. Um giurista davanti a se stesso. Saggi e interviste. Vicenza: Néri Pozza, 2005. passim. Armando Souto Maior. História do Brasil. 4ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. p. 412. Rui Moreira Lima. Senta a pua! 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. passim. 4

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A morte de milhares de conterrâneos e a provocação de duas guerras mundiais foram decisivas para as últimas declarações de guerra feitas pelo Brasil. A primeira com um total aproximado de 20 milhões de mortos em todo o mundo, e a segunda com quase 70 milhões. São parte do tempo desses terríveis episódios, o genocídio dos hererós e namaquas entre 1904 e 1907, nos campos da morte na África Oriental Alemã, atual Namíbia; o genocídio armênio de 1915 a 1917 pelos aliados turcos; os Massacres de Nanquim contra os chineses pelos japoneses, também aliados dos alemães; os ataques aos eslavos; os massacres nos campos de concentração nazistas, que provocaram a morte de milhões de pessoas, dentre alemães e não alemães, dos quais cerca de seis milhões eram de judeus (metade dos quais poloneses). Tudo isso está a mostrar o cenário vivido por Carl Schmitt, e no qual sua obra parece concentrar as atenções por conta de suas relações com o Nazismo, que lhe renderam a alcunha de “O jurista de Hitler”.6 Na esteira dos acontecimentos, lembramos que testemunhou Schmitt o uso do gás tóxico na Primeira Grande Guerra, criado por Fritz Haber, um cientista judeu, ganhador do Prêmio Nobel, a quem Einstein, com sua serenidade humanista, recusou-se a travar qualquer relação de amizade. A despeito de ter ganhado o honroso prêmio Nobel de química, em 1918, criou o gás Ziklon (ciclone), como arma para o Exército do Kaiser, na Primeira Guerra Mundial, e que mais tarde foi apurado e aperfeiçoado para uso nos campos de concentração, nas mortífiferas e genocidas câmaras de gás da Alemanha de Adolf Hitler.7 A cidade onde Schmitt nasceu, Plettenberg, integra hoje o estado da Renânia do Norte-Vestfália e compunha, a despeito da sua localização no oeste alemão, o antigo Reino da Prússia, para o qual foi anexada em 1815. Não é demasiado lembrar que a Prússia, de fato, foi abolida pelos nazistas em

1934, mas de direito somente terminou em 1947, por ação dos Aliados. A posição da Prússia era hegemônica dentro no Estado dos Kaizers e ocupava, em sua expansão máxima, aproximadamente, 60% do território do Império Alemão.8 Uma quase contradição terminológica acompanhava a Prússia na sua relação com os alemães e suas aspirações nativistas, pois o que se entende por Prússia era, originalmente, uma área então habitada por povos não alemães do antigo e medieval Reino da Polônia e do Grão-Ducado da Lituânia, que foram conquistados e subjugados pelos poderosos e influentes Cavaleiros Teutônicos – ordem militar cruzada, vinculada à Igreja Católica. No local, onde construíram muitos fortes e fundaram cidades, sob o pálio de um Estado da ordem, o Estado da Ordem Teutônica, possivelmente inspirados pelos limites não muito claros da Magna Germania, o território dos bárbaros além da limes, em algumas fases do Império Romano. 9 O termo Prússia, em verdade, é resultado da germanização de um antigo povo báltico, aparentado com os lituanos, que falavam uma língua já extinta, pertencente ao ramo balto-eslavo, e que somente depois da colonização por germânicos e assimilação do povo original, associado ao recrudescimento do nacionalismo cultural alemão, é que os prussianos de fala ou expressão alemã consideraram-se parte da nação germânica. Ao longo do tempo esse

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Ingo Muller. Los juristas del horror. Bogotá: Alvaro Nora, 2009. p. 12. Carlo Angelino, Carl Schmitt sommo giurista del Führer, Gênova: Il Melangolo, 2006. passim. Dois seis milhões de judeus assassinados pelos nazistas, a quase totalidade era de asquenazes, ou seja judeus de expressão alemão e que normalmente usavam a língua ídiche. Ao contrário do que diz ordinariamente e se divulga, também judeus sefarditas foram mortos pelos nazistas, na região dos Bálcãs. O terror nazista não poupou nem mesmo soldados judeus norte-americanos feitos prisioneiros, que eram separados dos demais e privados de condições mínimas de sobrevivência. O tratamento nazista aos prisioneiros de guerra não era uniforme para, por exemplo, eslavos e não eslavos, com tratamento animalesco para aqueles (eslavos). Mas, mesmo entre os não eslavos aliados, como prisioneiros norte-americanos, os soldados judeus não eram poupados. Cf. Revista Kulturala Djudeoespayola. Anyo 34 – Avril 2013. La istoria de los djudios de Trikala em Gresia. Capturado em www.aki-yerushalayim.co.il. Confira a biografia de Friz Haber, elaborada por Arkan Simaan, no portal da Sociedade Portuguesa de Química, com o título Grandeza e decadência de Fritz Haber, encontrado na rede mundial de computadores no endereço www.spq.pt/boletim/docs/ boletimSPQ_097_019_08.pdf.

O termo Prússia é associado a questões históricas, geográficas ou culturais à própria Alemanha, como ocorreu, por exemplo, de forma paralela e tradicional, durante a existência da República Federal da Iugoslávia, na qual se dizia que a Sérvia era Prússia da Iugoslávia. Outros exemplos podem ser encontrados como Rússia para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Holanda para os Países Baixos, ou mesmo ianque para todos os nascidos nos Estados Unidos da América. A despeito de cada um ter aspectos distintos, toma-se a parte pelo todo nos exemplos mencionados. Cf.William Dawaon. Pequena história da Alemanha. Trad. Agostinho da Silva e Alexandre Martins Correia. Lisboa: Inquérito, 1941. p. 8. Juan Carlos Corbetta. Ricardo Sebastián Piana. Política y orden mundial. Ensayos sobre Carl Schmitt. Buenos Aires: Prometeo, 2007. p. 10. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 9 A Ordem dos cavaleiros teutônicos de Santa Maria de Jerusalém (Ordo Domus Sanctae Mariae Theutonicorum remonta ao ano de 1099, existiu continuamente até 1809, ocasião em que foi extinta por Napoleão. Por decreto papal de 21 de novembro de 1929, Pio XI a reconstituiu como ordem clerical composta por sacerdotes, padres e freiras. Sua sede atual é em Viena, Áustria, e trabalhada fundamentalmente com objetivos assistenciais. Era comum as ordens cruzadas fazerem uso de certo tipo de cruz e isso ocorreu com os cavaleiros teutônicos, cuja cruz, após um período de proscrição, é hoje tomada como condecoração na célebre cruz de ferro e no símbolo das forças armadas da República Federal da Alemana. Cf. William Urban, I Cavalieri Teutonici. Trad. Rossana Macuz Varrocchi. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2007. p. 31. Cornelio Tacito. A Germânia. São Paulo: J. B. Endrizzi & Comp., 1895. p.3. 8

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povo conduziu-se por certas ideias que, mais tarde, seriam conhecidas como sendo “virtudes prussianas”: a organização perfeita, sacrifício, o Estado de Direito, obediência e autoridade e militarismo.10 Contraditoriamente ao termo Prússia, que resultou de um processo de germanização e serviu para designar o reino que unificaria todo o povo (Preußen, ou seja: terra dos prussianos), parece ter orientado todo o imaginário, o folclore e a mitologia do povo alemão. O vocábulo Deutsch, que vem do antigo idioma alemão e quer dizer, grosso modo, gente, ou seja, o próprio povo, haveria de se tornar, ao longo do tempo, com a unificação da Alemanha por Frederico II, o Rei da Prússia, o mais significativo para povo e a designar o nome do país que se formou, como terra da gente, ou seja, Deutschland.11 Schmitt era católico em um ambiente protestante. E era prussiano quando já não mais existia a Prússia. Doutorou-se na prestigiosa Universidade de Estrasburgo, que deixou de ser alemã. Apresentou-se como docente na academia quando a Alemanha já não era a potência de outrora, pois havia sido destroçada pelo Tratado de Vesalhes. Carl Schmitt, entretanto, jamais havia se esquecido de seu catolicismo, de sua raiz prussiana e de suas virtudes históricas e culturais. E a República que surgiu após o fim da Grande Guerra, com seus problemas, tinha-lhe, mais do que tudo, aclarado as ideias e provocado reflexões que pareceram causar um vigor prussiano. É com o fervor de um católico e a disciplina de um prussiano que se abrirá para advogar ideias que orientariam aquela que parece ser a mais irritante das experiências alemãs: a República de Weimar.12 A sagacidade intelectual imprimiria à nave errante, que a República de Weimar representava, uma oportunidade única. E o seu espírito rigoroso e impressionante considerou aquela época da Alemanha como um vasto armazém para planos, oriundos de sua postura visionária. E assim fez Schmitt, que foi um raro pensador original, cuja ciência se baseava em convicções apropriadas para sua época e para a Alemanha. E foi precisamente a essa tarefa

que se dedicou Schmitt: a de abrir, como uma casca de ovo, o mundo que dele irrompe.13 Da Teologia dos céus e com a ciência mundana, enveredará esforços para formular ideias e utilizar as inclemências de seu tempo para restaurar a autoridade e a ordem na Alemanha. E o resultado efetivo de sua doutrinação era que, à medida que seu trabalho se desenvolvia, seu espírito parecia tornar-se mais intenso e vigoroso. E mais ainda, não exitar na escolha dos meios aos quais se deve servir. O mundo, tal como estava criado pela Primeira Guerra, prestavalhe reverência exterior. Mas, que mundo estava a se socorrer de suas ideias? Uma tempestade havia devastado seu mundo, não somente o mundo que viu quando cresceu e tornou-se um homem, mas, também, o mundo no qual se formou, na Universidade de Estrasburgo.14 Schmitt presenciou a reconquista de Estrasburgo pela França através do Tratado de Versalhes e após a Primeira Guerra Mundial, que era a cidade da universidade na qual se formou e que o levou a retornar para sua cidade natal, Plettenberg, que ficava a 70km a leste de Bona (do latim Bonna, embora seja usada, ordinariamente, no Brasil a forma original Bonn, do idioma alemão), a capital da Alemanha desde a derrota alemã na Segunda Guerra até a reunificação, ocorrida em 3 de outubro de 1990, quando o território da antiga República Democrática Alemã foi incorporado à República Federal da Alemanha. A Alsácia-Lorena, depois de mil anos alemã, foi conquistada na retaguarda da Alemanha, enquanto o país defendia a Europa das agressões dos turcos, provocando fortes sentimentos de repugnância e inconformismo entre os germânicos. Após a guerra francoprussiana de 1870-1871, a região retornou e permaneceu por um curto período reintegrada ao Estado alemão, até o fim da Primeira Grande Guerra. O período em que esteve na Alemanha retomou a língua de Goethe e provocou um forte ressentimento entre os franceses, além de gerar o que ficou conhecido como

Juan Carlos Corbetta. Ricardo Sebastián Piana. Política y orden mundial. Ensayos sobre Carl Schmitt. Buenos Aires: Prometeo, 2007. p. 10. 11 Os alemães tomam a si mesmos como Deutsch, que tem suas origens na palavra diutisc (de “diot”, que signfica “gente”). Não está claro ainda hoje se foi usado alguma como um etnônimo no alemão antigo. No alto alemão médio, ein diutscher surge no uso como um sujeito. A expressão alemão vem de alamanos forma romanizada como os suábios eram conhecidos pelos romanos, após vertido para alemans no francês antigo, do qual originou-se a versão em português. William Dawson. Pequena história da Alemanha. Trad. Agostinho da Silva e Alexandre Martins Correia. Lisboa: Inquérito, 1941. p. 21. E. H. Gombrich. Uma pequena História do Mundo. Trad. Raquel Moura. Lisboa: Tintada-China, 2006. passim. Pietro de Francisci. Sistesis histórica del derecho romano. Trad. Ursicino Alvarez. Madri: Revista de derecho privado, 1954. 12 Enzo Collotti. A Alemanha Nazi. Trad. J. Santos Chambinho. Lisboa: Arcádia, 1965. p. 7. Carl Schmitt. Catolicismo romano e forma política. Trad. Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Hugin, 1998. passim. 10

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Ronaldo Porto Macedo Jr. Condensa os argumentos em torno do oportunismo de Schmitt. Cf. Carl Schmitt e a fundamentação do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. Carl Schmitt. Teoria de la constitución. Trad. Francisco Ayala. Buenos Aires: Struhart & Cia., s/d. p. 66. Ao final da Primeira Grande Guerra, a Alemanha não havia sido vencida em seu território. Rendeu-se porque estava exaurida no seu esforço de guerra. O Tratado de Versalhes é que lhe impôs duras condições pela guerra perdida. O tratado mencionado mais pareceria um efeito do Revanchismo francês, resultante da Guerra Franco-Prussiana. O tratado não encontrou ressonância nos Pontos estabelecidos pelo então Presidente dos Estados Unidos da América Woodrow Wilson e não foi ratificado pelo Congresso norteamericano. Personalidades como John Maynard Keynes vaticinaram que o tratado não deveria ter ocorrido. Foi o tratado assinado, entretanto, sem qualquer participação ou conhecimento da Alemanha e justamente a alavanca com que os nazistas promoveram sua propaganda maligna. Cf. 14 Jan Carlos Corbetta. Ricardo Sebastián Piana. Política y orden mundial. Buenos Aires, Prometeo, 2007. p. 10. José Luis Villacañas. Poder y conflicto. Madri: Biblioteca Nova, 2008. p. 18. Carl Schmitt. Um giurista davanti a se stesso. Vicenza: Néri Pozza, 2005. passim. 13

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Revanchismo – ou seja, um sentimento e também um movimento nascido após a Guerra Franco-Prussiano destinado a reverter as perdas francesas, especialmente as territoriais, designadamente a Alsácia-Lorena, que se integrou ao nascente Império Alemão. A língua alemã se perdeu logo após a retomada da região pela França, pela sua simples proibição e difusão da língua francesa.15 Esses tempos inquietos da infância, adolescência e da formação de Carl Schmitt não estavam a milhares de quilômetros distantes. Ao contrário, tratavase do próprio mundo de Schmitt o mesmo mundo alterado que desabou. Mesmo o mais altivo dos espíritos talvez seja algo desgarrado, sem lar e aparentemente indefeso e vulnerável num mundo novo e estranho. O primeiro e tosco plano arquitetural sobre o qual se baseia todo o poderoso edifício do pensamento das intermináveis abstrações de Schmitt se deparará com unidades concretas da experiência, e serão elas, as experiências, que moldarão suas teorias além, muito além dos limites imediatos, que estavam diante dos seus olhos.16 Viveu Schmitt numa época trágica, mas sua vida também foi uma tragédia, em três atos. O primeiro ato foi o período de sua formação, de experimentação, de instintivas apalpadelas em direção à luz, a luz que poderia conduzir (ou reconduzir) o mundo que desejava proteger. Consciente de sua capacidade de compreensão dos acontecimentos de sua época, transformou-se num teórico hostil à democracia liberal e à indescritível crise política e econômica que marcou a República de Weimar. No segundo ato da sua vida, associou-se ao Nazismo, do qual não teve dúvidas em aderir, ainda que por oportunismo, especialmente quando formalmente se inscreveu nas fileiras do partido de Hitler. E não somente cultuou o programa nazista como levantou objeções teóricas sobre seus adversários no pensamento jurídico e político, mas, também, os atacou, até ser freado pelas desconfianças das terríveis SS, que ao final da ditadura hitlerista pôs

em dúvida a fidelidade de Schmitt ao regime.17 O terceiro ato da tragédia da sua vida, longeva e extraordinária, começa com a prisão no início do pós-guerra até a sua morte. A oportunidade que o Nazismo lhe proporcionou não lhe retirou o epíteto de clássico do pensamento político, mas forjou o reconhecimento de uma alcunha do qual não se livrará jamais: a de jurista terrível.18

Schmitt estudou nesse curto período de retorno da Alsácia-Lorena à Alemanha. Para se ter uma exata noção das consequências desse período, Duguit criou o termo “situação jurídica” para não usar o “direito subjetivo” por sua natureza germânica, o que contrariava seu antigermanismo revanchista. Moacyr Lobo da Costa. Três estudos sobre a doutrina de Duguit. São Paulo: Ícone, 1997. Andréas von Tuhr foi o último reitor alemão da universidade onde Schmitt estudou. Julien Freund, um estudioso maduro de Schmitt, é mais um filho da disputa desse território. Curiosamente a Alsácia-Lorena chegou a proclamar sua independência em 1918, embora por curto período, até a França retomar a região. Hoje sedia o Conselho da Europa e a Corte Europeia dos Direitos Humanos. Seu regime especial atribui-lhe, desde 1972, parlamentos regionais e um direito e até tribunais próprios. Hildebrando Accioly. A questão da Alsácia-Lorena. Rio de Janeiro: Imprensa, 1917. E. H. Gombrich. Uma pequena História do Mundo. Trad. Raquel Moura. Lisboa: Tinta-da-China, 2006. passim. O Revanchismo provocava escritores que expressamente negavam a origem germânica da região e proclamavam a desconsideração do fator étnicocultural da Alsácia-Lorena. Até esculturas nas ruas nas ruas da França, com a alegoria de duas mulheres a chorar pela perda da condição francesa é conhecida. V. 16 Carl Scmitt. Risposte a Noremberga. Bari: Laterza, 2006. passim. Carl Schmitt. Um giurista davanti a se stesso. Saggi e interviste. Vicenza: Néri Pozza, 2005. passim. Bernd Rüthers. Carl Schmitt en el Tercer Reich. Trad. Luis Villar Borda. Buenos Aires: Struhart & Cia., s/d. p. 26. 15

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“SS” é o acrônico ou a abreviação de Schutzstaffel, que em tradução livre significa “Tropa de proteção”. Enzo Collotti. A Alemanha Nazi. Trad. J. Santos Chambinho. Lisboa: Arcádia, 1965. 18 Yves Charles Zarka. Un dettaglio nazi nel pensiero di Carl Schmitt. Gênova: Il melangolo, 2005. passim. Ingo Muller. Los juristas del horror. Trad. Carlos Armando Figueredo Planchart. Bogotá: Álvaro Nora, 2009. passim. Jacob Taubes. In divergente accordo. Scritti su Carl Schmitt. Trad. Gianni Scotto e Elettra Sttimilli. Macerata: Quodlibet, 1996. passim. Carl Schmitt. Ex captivitate salus. Trad. Anima Schmitt de Otero. Buenos Aires: Struhart & cia., s/d. passim. A. Rosenberg. Storia della repubblica di Weimer. Trad. Leonardo Paggi. Florenza: Sansoni,1972. Jean-Jacques Becker. O tratado de versalhes. Trad. Constança Egrejas. São Paulo: Unesp, 2010. Enzo Collotti. A Alemanha Nazi. Trad. J. Santos Chambinho. Lisboa: Arcádia, 1965. p. 7 17

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Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Novo CPC. Breves apontamentos Antônio Pereira Gaio Júnior1 Resumo Trata o presente artigo da análise do novato instituto processual denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, este instituído pelo Novo Código Brasileiro de Processo Civil e suas perspectivas para uma melhora na prestação jurisdicional. Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil; incidente de resolução de demandas repetitivas; prestação jurisidicional. Resumen En este artículo se analiza el nuevo instituto procesal llamado Incidente de Resolución de demandas repetitivas – IRDR, esto creado pelo Nuevo Código de Procedimiento Civil de Brasil y sus perspectivas de una mejora en la Prestación Jurisidicional. Palabras-clave: Nuevo Código de Procedimiento Civil; incidente de resolución de demandas repetitivas; prestación jurisidicional.

Breves reflexões ao tema É cediço o volume de demandas que transbordam nas secretarias das numerosas comarcas que compõem a estrutura do Poder Judiciário pátrio. Notadamente, boa parte de ditas demandas relacionam-se com conflitos que possuem, em seu particular âmago, similitude na causa de pedir, gerando, inegavelmente, lides envoltas em questões ora denominadas repetitivas.2 Pós-Doutor em Direito (Universidade de Coimbra/PT). Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos (Ius Gentium Conimbrigae/ Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-PT). Doutor em Direito (UGF). Mestre em Direito (UGF). Pós-Graduado em Direito Processual (UGF). Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Membro do Instituto Iberoamericano de Direito Processual – IIDP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Membro da International Bar Association – IBA. Membro Efetivo da Comissão Permanente de Direito Processual Civil do IAB-Nacional. Advogado, Consultor Jurídico e Parecerista.www.gaiojr.adv.br 2 Como bem pontua Ada Pellegrini, “a grande massa de processo que aflige aos tribunais, elevando sobremaneira o número de demandas e atravancando a administração da justiça, é constituída em grande parte por causas em que se discutem e se reavivam questões de direito repetitivas”. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Tratamento dos processo repetitivos. In: JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra. (Coords.) Processo civil: novas tendências. Estudos em homenagem ao Prof. Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p.1. 1

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Em meio a tal contexto problemático, não foge à análise que a alusiva multiplicidade de demandas de semelhante teor (litigiosidade de massas)3, desaguada em uma estrutura técnica procedimental edificada sob outro paradigma4 e que, por isso, vem, ainda de pouco, buscando alternativas para o enfrentamento de numerário avassalador das supracitadas lides, em que pese a problemática envolta na questão possuir tentáculos para uma variedade de causas, sendo, a nosso ver, das mais graves, o incontestável déficit em políticas públicas voltadas ao arranjo estrutural – e aí incluso o pessoal – qualitativo, apto a otimizar necessário impacto na qualidade do serviço público da justiça no país. Por outro lado, somando-se à problemática quantitativa, tem-se a necessidade de melhor equalização das decisões judiciais aos casos concretos com nítida similitude,5 ou seja, nota-se, de muito, uma variedade de julgados com comandos discrepantes sobre uma mesma situação de direito, fortalecendo o sentimento de insegurança jurídica, realçado em sua face subjetiva, ou seja, na confiança legítima dos cidadãos quanto à calculabilidade e previsibilidade dos atos dos poderes públicos6, contrariando assim o próprio e verdadeiro escopo da visão democrática a que o processo, como instrumento de liberdade, deva encarnar e incansavelmente perquirir: o empenho à igualdade de todos perante o direito Tal escopo se mostra indissociável do próprio Estado de Direito, com o equilíbrio das relações sociais, ainda que, a partir da concepção abstrata da lei, mas que razoavelmente pondera o seu exercício prático à razoabilidade através de soluções comuns à mesma medida do conflito a ser dissolvido pelo Poder Judicante estatal ilógico e, por isso, inaceitável que, diante da analogia em casos

concretos, repousem decisões gravemente discrepantes. Neste mesmo diapasão, bem norteiam Marinoni e Mitidiero7:

No mesmo sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Um novo código de processo civil para o Brasil. In: Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre: Magister, Vol. 37, jul./ago. 2010, p.89-90. 4 “Desde o último quartel do século passado, foi tomado vulto o fenômeno da ‘coletivização’ dos conflitos, à medida que, paralelamente, se foi reconhecendo a inaptidão do processo civil clássico para instrumentalizar essas megacontrovérsias, próprias de uma conflitiva sociedade de massas”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução de conflitos e a função judicial no contemporâneo estado de direito. São Paulo: RT, 2009, p.379-380). 5 Interessante notar aqui que Tubelis, apoiado em pesquisa do Jornal Folha de São Paulo realizada em 29.3.1987, esta que objetivava apurar o “prestígio” e o “poder” dentre 22 instituições nacionais e dando conta da posição final do Poder Judicário (16º lugar na ordem decrescente), expressou exatamente no somatório dos problemas “morosidade” mais “aleatoriedade” (discrepância) das decisões judiciais, como causas preponderantemente apontadas pelos cidadãos entrevictados, no que tange ao afastamento da população em relação à jurisdição estatal. In verbis: “O afastamento da população com relação ao Poder Judicário e o princípio da participação são ncompatíveis entre si. Convém portanto, apreciar as duas causas apontadas em virtude das quais a população tende a se afastar do Poder Judiciário: a morosidade e a aleatoriedade das decisões judiciais.”TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência Jurisprudencial e participação. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coords.). Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 395-403. 6 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010, p. 16. 3

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Não há Estado Constitucional e não há mesmo Direito no momento em que casos idênticos recebem diferentes decisões do Poder Judiciário. Insulta o bom senso que decisões judiciais possam tratar de forma desigual pessoas que se encontram na mesma situação.

Ainda nesta toada e a título de exteriorizar a já antiga preocupação da doutrina pátria em tema de divergência jurisprudencial, João Mendes Júnior, ao tocar na temática, afirmava como causa final da atividade forense “a reparação do direito desconhecido, violado ou ameaçado” e sua “realização e segurança”.8 Indo ainda além no tema, Pontes de Miranda9, na sua genialidade, lecionava que: Se alguma sentença ou outra decisão, que se não haja considerar sentença, diverge de outra, em qualquer elemento contenutístico relativo à incidência ou à aplicação de regra jurídica, uma delas é injusta.(...). Tem-se de evitar isso e aí está a razão de algumas medidas constitucionais ou de Direito Processual que têm por fito corrigir ou evitar a contradição na jurisprudência.

Assim, e em consonância com o que já fora dito linhas atrás, ainda que pesem esforços no sentido de abrandar as volumosas ações de caráter repetitivo, evitando-se, inclusive, discrepâncias nos julgados, ex vi de medidas previstas no CPC/1973 como a das “Súmulas Impeditivas de Recursos” – art. 518, §3º – (aplicando-se aí, no ato sentencial, jurisprudências consolidadas nos Tribunais Superiores, por isso, conteúdos já outrora e em similitude, julgados)10 – e mais intensamente em sede de Tribunais Superiores, dos institutos da Súmula Vinculante (art. 103, A da Constituição Federal de 1988) e da Repercussão Geral (arts. 543-A e 543-B do CPC/1973)11, ambos afetos a contendas recursais endereçadas ao Supremo Tribunal Federal e igualmente de filtro recursal, visando obstar uma multiplicidade de Recursos Repetitivos decorrentes de mesma questão de direito, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (art. 543-C)12, Idem, p.17-18. MENDES JÚNIOR, João. Programa de ensino de prática forense. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958, p.231. 9 PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários ao Código de processo civil. Tomo VI. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.3. 10 Confira no nosso. Direito processual civil. Vol. I 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.344-345. 11 Idem, p.370-384. 12 Vale ressaltar neste ínterim que, no ano de 2010, dados do próprio STJ davam conta de julgamento recorde em número de processo nesta corte. Segundo o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Ari Pargendler, o número de julgados em 2010 foi da ordem de 323.350 processos decididos, uma média de 10.509 julgados por ministro. O anúncio foi feito na última sessão da Corte Especial em tal 7 8

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continuam-se os esforços no sentido de minorar cada vez mais a incidência das ações decorrentes de mesmas questões de direito, aprimorando-se métodos já no canal inicial, por onde as aludidas demandas, possivelmente de índole repetitiva, procedimentalmente, iniciam sua trajetória, ou seja, nas instâncias judiciais originárias, mais frequentemente, diante do juízo monocrático. Nestes termos é que encontra lugar a ideia de atuação do intitulado “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.”

Pelo dito nas linhas supracitadas, temos como fundamentais pressupostos para a incidência do novel IRDR, os incisos I e II do art. 976. Dito isso, vale anotar o que prescreve o §3º do art.976: “A inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, seja o incidente novamente suscitado.” Uma vez, portanto, inadmitido a instauração do incidente pela inexistência de qualquer dos pressupostos acima aludidos – ainda que crermos serem ambos umbilicalmente ligados! – será possível nova propositura do mesmo, possibilitando o seu aceite caso o órgão competente para sua admissibilidade entenda pela presença dos pressupostos nesta novata provocação. Por outro lado, não será cabível o IRDR quando um dos tribunais superiores, certamente, em sua esfera de competência, já tiver afetado recurso para definição de tese acerca de questão de direito material ou processual repetitiva, ou seja, antecipa eventual tribunal superior em recurso tido como paradigma para a definição da questão repetitiva, não justificando assim, a instauração do respectivo incidente, já que espera-se ser a tese definida por aquele competente órgão julgador (§4º do art. 976).

Noções gerais e procedimento do incidente de resolução de demandas repetitivas Cabimento Com previsão expressa no CPC/2015, mais precisamente nos arts. 976 a 987 encontra lugar o denominado “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” (IRDR).13 Trata-se de instituto cabível em situações onde, decorrente de demandas em andamento, for detectada respectiva controvérsia que, na exata dicção do texto (ex vi do 976), possuam, simultaneamente, “I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre mesma questão unicamente de direito” e daí, “IIrisco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.” Notadamente, e já em início de análise, é de se observar o não cabimento do incidente quando envolto apenas em questões tidas como de fato, portanto, necessário se faz repousar sobre questões de direito, como se depreende do supracitado art. 976, em seu inciso I. Outrossim, não basta apenas a existência repetida de processos que contenham conflitos sobre uma mesma questão de direito. É preciso notar que, diante de tal problemática, sempre se faz surgir o risco de possível ofensa ao tratamento equânime dado às decisões judiciais quanto ao seu comando ou tutela jurisdicional referente ao casu in concreto, gerando, variavelmente, multiplicidades de julgados que em e controvertem mais do convergem, configurando em situações verdadeiramente teratológicas.

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ano, nos seguintes termos: “Recebemos 214.437 processos novos e julgamos 323.350. Fechamos o ano com uma vantagem de 108.913 processos”. O ministro Pargendler ainda destacou que tal feito no número de julgamentos se deu em virtude do rito dos recursos repetitivos, previsto desde 2008 no artigo 543-C do Código de Processo Civil. Neste compasso, o STJ julgou 334 processos repetitivos. Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp. texto=100283. Acesso em 18 de dezembro de 2010. 13 No direito germânico tal incidente se assemelha ao denominado Musterverfahren, instituto que gera decisão-modelo para a resolução de um volume expressivo de processos, esses aos quais as partes estão em uma mesma situação de direito, não necessariamente sendo o mesmo autor ou mesmo réu. Ver, neste sentido, WITTMAN, Ralf-Thomas. Il ‘contenzioso di massa’ in Germânia. In: ALESSANDRO, Giorgetti; VALLEFUOCO, Valério. Il contenzioso di massa in Itália, in Europa e nel mondo. Milão: Giuffrè, 2008, p.178.

Legitimidade Quanto à legitimidade para suscitar o presente Incidente, podem fazê-lo o juiz ou o relator, de ofício; ou, por petição, as partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública, em sintonia com os incisos I, II e III do art.977, cabendo pontuar a não incidência de custas processuais para a instauração do IRDR (§5º do art. 976). Vale ressaltar, em situação similar ao que já bem acontece em sede de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85, art.5º, §3º), caso o Ministério Público não tenha sido o proponente do presente Incidente, intervirá obrigatoriamente e, em caso de abandono ou desistência pela parte, poderá assumir a titularidade do IRDR (§2º do art. 976). Ainda no que toca às partes legitimas para provocação do Incidente, caso venha ocorrer eventual desistência ou abandono da causa, isso não será suficiente para que o órgão julgador deixe de examinar o mérito do IRDR, justificando assim a importância de instituto para a própria qualidade da prestação jurisdicional, afinal, riscos de ofensa à isonomia bem como à segurança jurídica decorrentes de decisões díspares em demandas múltiplas sobre mesma questão de direito, atenta-se, sobretudo, ao Estado Constitucional de Direito.

Documentos e síntese de requisitos essenciais Apontamento importante e de ordem formal é aquele constante do parágrafo único do art. 977, onde se atenta para a questão documental, daí instrutória, no que tange ao pedido de instauração do incidente, in verbis:

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“Parágrafo único. O ofício ou a petição será instruído com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos pressupostos para a instauração do incidente.” Em verdade, a documentação deverá demonstrar a incidência dos pressupostos para a viabilização da instauração e conhecimento do IRDR, sendo a comprovação, v.g., decorrente de certidões de demandas simultâneas que contenham nítidas controvérsias sobre a mesma questão de direito, ensejando verdadeiro risco de agressão à isonomia e ao bem da segurança jurídica. Nota-se, portanto, mesmo que em síntese apertada, a presença dos requisitos essenciais para a admissibilidade e julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas:

O inciso I trata da suspensão de processos que venham a possuir idêntica questão de direito, capaz de causar grave insegurança jurídica decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes, isto no estado ou na região, dependendo da própria alegação e comprovação territorial da questão, o que será realizado, obviamente por qualquer das partes legitimas. Dita suspensão será diretamente comunicada aos órgãos jurisdicionais competentes (§1º do art. 982), o que se dará, certamente, mediante ofício. Ainda neste compasso, mirando a deseja segurança jurídica, poderão as partes, Ministério Público ou Defensoria Pública requerer ao tribunal competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, que seja determinada a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no país, que versem sobre a mesma questão objeto do Incidente já instaurado, ex vi do §3º do art. 982. A despeito dos legitimados supracitados, a parte constante de processo em curso, no qual se discuta a mesma questão objeto do incidente, independentemente dos limites da competência territorial onde está a correr sua demanda, é igualmente legitimada a solicitar ao tribunal competente para conhecer do RE ou REsp, a suspensão dos demais processos em curso no território nacional. Cabe assinalar que, a despeito da aludida suspensão de ações pendentes, havendo necessidade de adoção de tutela de urgência no âmbito de tais demandas, autoriza o §2º do art. 982 o pedido de dita tutela ao juízo do processo suspenso. Poderá o relator ainda, requisitar informações a órgãos em cujo juízo corre demanda em se discute o objeto do Incidente, cabendo ao respectivo órgão prestá-las no lapso temporal de 15 dias (inciso II); e ainda, intimar o Ministério Público para, querendo, se manifestar também no prazo de 15 dias acerca do Incidente (inciso III). Em suma, sendo rejeitado o Incidente, retoma-se ação originária, caso contrário, em regra, o relator suspenderá todas as ações pendentes conforme a dicção do inciso I do art. 982, fazendo valer também a incidência das hipóteses dos incisos II e III do referido dispositivo legal. Ocorre que, para o devido processo legal referente ao próprio procedimento de julgamento do Incidente, notadamente, depois de o admitido, conforme apontado linhas atrás, serão ouvidas pelo relator as partes e todos os demais interessados, inclusive órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo de 15 dias, poderão requerer juntada de documentos, além de necessárias diligências com o fito de elucidar a questão de direito controvertida, esta objeto do incidente; depois se ouve o Ministério Público pelo mesmo prazo de quinze dias, tudo em respeito ao caput do art.983. Em havendo necessidade de maiores instruções para a condução do incidente, é facultado ao relator designar data para realização de audiência pública, objetivando com essa colher depoimentos de experts acerca da matéria suscitada no IRDR (§1º do art. 983).

A efetiva repetição de processos fundados em idêntica questão de direito, capaz de causar grave insegurança jurídica decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes, ferindo aí o direito fundamental da isonomia. l A legitimidade para o pedido de instauração do Incidente. l A instrução com os documentos necessários à demonstração da necessidade de instauração do incidente, logicamente, fundamentado na circunstância comprobatória da existência de controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. l

Vale consignar, por conseguinte, da necessidade de se dirigir o pedido de instauração do Incidente junto ao Presidente do Tribunal hierarquicamente superior (caput do art. 977).

Procedimento Uma vez dirigido o pedido (ofício ou petição) de instauração do IRDR ao Presidente do Tribunal, será ele então distribuído ao órgão colegiado competente para o julgamento, porém, antes, dito órgão realizará o juízo de admissibilidade sobre o Incidente, cabendo ao relator, uma vez admitido o IRDR, tomar as seguintes atitudes regidas dispostas pelo art.982: I – suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso; II – poderá requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita processo no qual se discute o objeto do incidente, que as prestarão no prazo de 15 (quinze) dias; III – intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias.

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Uma vez concluídas as diligências tidas como necessárias, caberá ao próprio relator solicitar dia para o efetivo julgamento (§2º do art. 983), este que será realizado pelo órgão colegiado (plenário ou órgão especial, dependendo do Regimento Interno do respectivo Tribunal) e seguirá a seguinte ordem, ex vi do art. 984 e seus incisos:

Em sede forense, rotineiras são as ações repetitivas que versam sobre questões idênticas de direito, de cujo conteúdo envolve as mais primárias relações de consumo (telefonia, bancos etc.), passando pelos serviços públicos básicos de uso frequente de qualquer cidadão comum (energia, água, esgoto, dentre muitos). Neste sentido, bem sustenta o §2º do art. 985 que, caso o IRDR tenha como objeto

1º) – o relator fará a exposição do objeto do incidente; 2º) – poderão sustentar suas razões, sucessivamente: – o autor e o réu do processo originário, e o Ministério Público, pelo prazo de 30 (trinta) minutos; – os demais interessados, no prazo de 30 (trinta) minutos, divididos entre todos, sendo exigida inscrição com 2 (dois) dias de antecedência. Vale ressaltar que em virtude do número de inscritos, poderá o referido prazo ser ampliado (§ 1º do art. 984). Sendo julgado o Incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos, quer individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito, mas que “tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região” (art.982, I), o que, diga-se de passagem e conforme já frisado, poderá se exteriorizar a demais estados e regiões, desde que partes, Ministério Público ou Defensoria Pública (legitimados do inciso II e III do art. 977) ou mesmo qualquer interessado que seja parte de processo em curso em que se discuta a mesma questão objeto do Incidente, provoquem o STF ou STJ, solicitando as suspensão de todos os processo individuais e coletivos em curso no território nacional, em cuja a questão do incidente seja o objeto controvertido, como se nota da inteligência dos §§3º e 4º do art. 982, tudo em nome da deseje da garantia da segurança jurídica e, notoriamente, isonomia das decisões judiciais. Vale destacar neste ínterim que, a suspensão de processos pendentes, quer individuais ou coletivos que tramitem no Estado ou região será cessada, caso não seja interposto recurso especial ou recurso extraordinário desafiando a decisão proferida no próprio IRDR, conforme dicção do §5º do art. 982. A tese jurídica reconhecida e julgada em sede de IRDR, igualmente, será aplicada aos processos futuros, desde que versem estes sobre idêntica questão de direito e que, no caso em tela, esteja a tramitar na delimitação territorial de competência do órgão julgador (art. 985, II), o que se aplica, mutatis mutandis, na mesma racionalidade em nível nacional, em se tratando de órgão julgador qualquer dos Tribunais Superiores retro referidos. 14 Vale destacar que, favorável ou não, o conteúdo do acórdão do julgamento do IRDR deverá, notoriamente, abranger a análise de todos os fundamentos suscitados relativos à tese jurídica objeto da discussão que se coloca no plano da controvérsia (§2º do art. 984), não somente por razões legais e éticas, mas para fins de facilitação da divulgação futura de conteúdos voltados ao próprio contexto de tese repetitiva ou não. 14 112 Em sede recursal para o STF e STJ, ter-se-á o mesmo desiderato, ex vi do §2º do art. 987.

questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada.

Deverá o Incidente ser julgado no prazo de 1 (um) ano, tendo ele preferência sobre os demais processos, exceto aqueles relativos ao réu preso bem como os pedido de habeas Corpus. Daí que, uma vez superado o lapso temporal supracitado, cessará a suspensão dos processos a que fora determinado por ato do relator, salvo se este, em decisão fundamentada, decidir pelo contrário, tudo conforme regra o art. 980. Caberá ainda ao órgão julgador do IRDR, devidamente indicado pelo regimento interno dentre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal, julgar também o recurso, a remessa necessária ou ainda, a causa de competência originária de onde se originou o digitado Incidente (art.978 e seu parágrafo único), logicamente, em se tratando de recursos cabíveis à respectiva instância daquele órgão. Por outro lado, em sede recursal a tribunal superior, qualquer das partes, o Ministério Público bem como eventual terceiro interessado poderão interpor recursos especial ou extraordinário (art. 987, caput), estes que, diferentemente da regra geral, serão dotados de efeito suspensivo, “presumindo-se a repercussão geral da questão constitucional eventualmente discutida.” (§1º do art.987). Conforme já exteriorizado alhures, em sendo interpostos os respectivos recursos para o STF ou STJ e uma vez apreciado o mérito, a tese jurídica ali reconhecida será aplicada em todo território nacional e a todos os processos individuais e coletivos que, verdadeiramente, versarem sobre a idêntica questão de direito enfrentada no IRDR, em compasso com o §2º do art.987. Conforme já assinalado alhures, não sendo interposto qualquer recurso especial ou extraordinário contra a decisão proferida no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, determina o §5º do art. 982 que a suspensão dos processos individuais ou coletivos determinada pelo relator quando da admissão de tal Incidente (vide inciso I do art.982) cessará. Lado outro, uma vez julgado o Incidente, há de se ressaltar que não sendo observada a tese adotada na decisão paradigmática (proferida no IRDR), estabelece o art. §1º do art.985 o cabimento a “Ação de Reclamação”15 para 15

Trata-se a Reclamação de instituto com previsão constitucional, tendo sua regulamentação disciplinada hoje pela Lei n.8.038, de 28.05.1990, e agora também com previsão nos arts. 988 e 993 do CPC/2015.

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Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Novo CPC. Breves apontamentos

Antônio Pereira Gaio Júnior

o tribunal competente, esse que irá analisar e decidir se ocorreu desrespeito à autoridade de sua decisão, já que o próprio é responsável pelo firmamento da tese jurídica em sede de IRDR bem como por sua revisão, podendo neste último caso, se dar por ofício ou mesmo mediante requerimento dos legitimados dispostos no inciso III do art. 988 para a instauração do Incidente (art. 986), i. e., Ministério Público ou Defensoria Pública. Por derradeiro, no tocante à publicidade da existência de Incidentes por parte de qualquer interessado – aí incluindo os próprios tribunais – a fim de evitar, inclusive, que haja demandas atinentes a uma mesma questão de direito já tipificada como Incidente e que ainda estejam correndo isoladamente em seu itinerário procedimental16, reza o art. 979 que o Incidente deverá ser submetido à ampla e específica divulgação, especialmente por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que incluirá em cadastro devidamente alimentado por dados fornecidos pelos tribunais, já que manterão estes, banco eletrônico de dados atualizados com específicas informações acerca das questões de direito submetidas ao Incidente (§1º do art. 979). Com o intuito de facilitar a identificação das causas abrangidas pela decisão do IRDR, o registro eletrônico no CNJ referente à teses jurídicas que ficarão cadastradas, deverá conter, no mínimo, “fundamentos da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados” (§2º do art. 979), o que, inegavelmente, será de

utilidade não somente para as demandas em andamento como, em muito, para possíveis avenças que poderiam congestionar o serviço público da justiça, tão assolapado nos últimos quartéis.

Aliás, insta ressaltar que o art.1069, IV do novel Código pode prever a revogação dos arts. 13 a 18, 26 a 29 e 38 da supracitada Lei nº 8.038/90. Tem a Reclamação por objetivo preservar, de forma efetiva, (i) as competências tanto do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, bem como (ii) garantir o exercício da autoridade das decisões emanadas de ditas Cortes. Especificamente sobre o novel instituto, ver, dentre muitos, o nossos Direito processual civil. Vol. I. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.387-412 e Instituições de Direito Processual Civil. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, Cap. XII. 16 Foi com este espírito, certamente, que as palavras de Luiz Fux, Ministro do Superior Tribunal de Justiça e Presidente da Comissão de Juristas encarregada de levar a cabo a edificação de um novo estatuto processual civil para o Brasil, foram carregadas, em importante passagem no texto preambular de um primeiro relatório apresentado ao Presidente do Senado Federal José Sarney. In verbis: “A Comissão, atenta à sólida lição da doutrina de que sempre há bons materiais a serem aproveitados da legislação anterior, bem como firme na crença de que a tarefa não se realiza através do mimetismo que se compraz em apenas repetir erros de outrora, empenhou-se na criação de um novo código erigindo instrumentos capazes de reduzir o número de demandas e recursos que tramitam pelo Poder Judiciário. Esse desígnio restou perseguido, resultando do mesmo a instituição de um incidente de coletivização dos denominados litígios de massa, o qual evitará a multiplicação das demandas, na medida em que suscitado o mesmo pelo juiz diante, numa causa representativa de milhares de outras idênticas quanto à pretensão nelas encartada, imporá a suspensão de todas, habilitando o magistrado na ação coletiva, dotada de amplíssima defesa, com todos os recursos previstos nas leis processuais, proferir uma decisão com amplo espectro, definindo o direito controvertido de tantos quantos se encontram na mesma situação jurídica, plasmando uma decisão consagradora do principio da isonomia constitucional”, (destaque nosso).

GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito processual civil. Vol. I. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coords.). Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988. JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra. (Coords.) Processo civil: novas tendências. Estudos em homenagem ao Prof. Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução de conflitos e a função judicial no contemporâneo estado de direito. São Paulo: RT, 2009. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010. MARQUES, Cláudia; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 3 ed. São Paulo: RT, 2010. MENDES JÚNIOR, João. Programa de ensino de prática forense. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários ao Código de processo civil. Tomo VI. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. STJ.http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp. texto=100283. Acesso em 18 de dezembro de 2010.

Considerações finais Tem-se aí o procedimento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas que, como visto, objetiva a serventia de desmobilizar o imenso numerário de demandas repetitivas que assolam todos os graus da Justiça Brasileira bem como minimizar o discrepante número de julgados divergentes sobre uma mesma questão de direito, tudo através de tese que, outrora, seria adotada pelo tribunal após a pacificação da jurisprudência ou em um eventual incidente de uniformização de jurisprudência. No entanto, vislumbra-se agora, Incidente especificamente voltado ao enfrentamento das problemáticas multicitadas, cuja aptidão será verificada com acerto, caso, efetivamente, haja o contributo e boa vontade daqueles operadores sensíveis aos problemas agudos por que passa, já de longa data, o serviço público de justiça do Brasil.17

Referências bibliográficas

É lição sempre viva, nas palavras de GRINOVER, DINAMARCO e WATANABE (Participação e Processo...., p.412): “Há de ser acentuada a função do juiz, como dos demais operadores do direito, como agentes de transformação, pois a mudança da lei é um idealismo ingênuo.”(Grifo nosso). 17

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Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Novo CPC. Breves apontamentos

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Um novo código de processo civil para o Brasil.In: Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre: Magister, Vol. 37, jul./ ago. 2010, p.89-90 WITTMAN, Ralf-Thomas. Il ‘contenzioso di massa’ in Germânia. In: ALESSANDRO, Giorgetti; VALLEFUOCO, Valério. Il contenzioso di massa in Itália, in Europa e nel mondo. Milão: Giuffrè, 2008. TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência Jurisprudencial e participação. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coords.). Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 395-403.

Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva? Cláudia Ribeiro Pereira Nunes1 Priscilla Menezes da Silva2 Resumo

No ambiente empresarial não somente as negociações são muito dinâmicas, mas também os vínculos jurídicos por trás dos agentes econômicos. Sendo assim, é muito comum a contratação de sociedade entre pessoas (físicas ou jurídicas) para desenvolver um determinado objeto social que no futuro se torna inviável ou meramente desinteressante nos moldes como fora inicialmente concebido, o que gera o exercício do direito de retirada por parte do sócio insatisfeito. Diante deste cenário, a legislação pátria prevê que se promova, após a alteração contratual do quadro de sócios e sua averbação no orgão competente, a apuração dos haveres e seu pagamento em caso de crédito em favor do sócio retirante. Sendo assim, cumpre investigar se este pagamento deve ser feito necessariamente em dinheiro ou se caberia ressarcimento in natura. A fim de responder tal questionamento impõe-se como objetivos a análise da natureza jurídica do parágrafo 2° do art. 1.031 do CC e a construção das modalidades alternativas de pagamento dos haveres. Para tanto aplicar-se-á o método dedutivo bem como pesquisa bibliográfica a fim de demonstrar a viabilidade das alternativas aqui propostas tanto na esfera extrajudicial quanto judicial. Mestrado e Doutorado, ambos em Programa de Pós-Graduação Strito Senso em Direito pela Universidade Gama Filho. Atualmente é Consultora Sênior do Escritório Nordi & Pereira Advogados Associados e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação Strito Sensu da Universidade Veiga de Almeida, Assessora da Vice Presidente da Representação Brasil do International Political and Economic System (BRASIL – USA – BRICS). Co-líder do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/CNPq e certificado pela UFF: GEDAPI - Grupo de Estudo em Direito Ambiental e Propriedade Intelectual financiado pela Fundação Assistencial e Educativa Cristã de Ariquemes – FAECA. Membro do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/CNPq da UFRN: Direito e Regulação dos Recursos Naturais e da Energia financiado pelo Konrad Adenauer Stiftung – KAS – Matriz Rio de Janeiro, Conferencista do COPPETEC/UFRJ – CGTEC – CT2.  E-mail: crpn1968@ gmail.com 2 Doutoranda e Mestre ambos em Programa de Pós-Graduação Strito Senso em Direito da Empresa e Atividades Econômicas pela UERJ. Membro do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/CNPq Empresa e Atividades Econômicas da UERJ. Pós-Graduada em Direito Empresarial pela UCAM. Advogada e Professora de Direito Comercial da UFRJ (Graduação) e ESPM (Graduação e Pós-Graduação), Membro do Núcleo de Economia Criativa da ESPM, Conferencista da EMERJ. E-mail: [email protected]

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Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva?

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes e Priscilla Menezes da Silva

Palavras chave: Direito de retirada; apuração de haveres; possibilidade de pagamento in natura.

Sendo assim o objetivo deste artigo é investigar a possibilidade jurídica do pagamento in natura na apuração de haveres de sócio retirante, sendo necessário, antes de mais nada, investigar acerca da natureza jurídica da norma ora em apreço, com base no método dedutivo bem como pesquisa bibliográfica.

Abstract In the bussiness sector not only negotiations are very dynamic but also the legal bond behind the economic agents. Therefore it is very common to see people signing contracts to make partnerships to develop economic activities. But sometimes these companies or corporations become unfeasible or simply not interesting anymore and the consequence is the withdrawal right for the unsatisfied partner. Facing this scenario, the national legislation establishes that after changing the contract to update the participants and its immediate registration, the verification of assets must be done and if there is credit in favor of the withdrawing partner he should receive its payment. At this point its important to investigate if this payment should be done necessairily in cash or if it is possible to be done in natura. In order to answer this question the object of this paper is to analyse the nature of paragraph 2o, art. 1.031 of the Civil Code and the construction of the types of alternative payments of assets. The deductive method will be applied and bibliographic research aswell to demonstrate the feseability of the alternatives proposed here at courts of law and out of it. Keywords: Withdrawal right; verification of assets; in natura payment possibility.

Introdução Diante das possibilidades oferecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, é muito comum que a modalidade escolhida por aqueles que desejam empreender seja o contrato de sociedade. Isto decorre da tentativa de evitar a responsabilidade ilimitada atribuída ao empresário individual ou da impossibilidade de integralizar pelo menos 100 salários mínimos no momento da constituição de uma empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI).3 Ocorre que muitas vezes o desejo de se manter unido a outras pessoas para desenvolver uma determinada atividade se esvai, seja por problemas pessoais entre os sócios, denominado juridicamente como quebra da affectio societatis ou por alterações no rumo dos negócios, como mudanças de objeto social, ou operações de fusão, cisão ou incorporação que deixa uma das partes envolvidas insatisfeita. Se uma das obrigações dos sócios é contribuir para a formação do capital social4, certo é que no momento em que decide exercer seu direito de retirada ou recesso é necessário verificar se este deve ser reembolsado dos investimentos que fez, procedimento chamado de apuração de haveres e regulado pelo art. 1.031 do Código Civil (CC). Ocorre que o parágrafo 2° do mencionado artigo prevê que caso haja crédito em favor do sócio retirante este deve ser pago em dinheiro em até 90 dias. É farta a doutrina que defende a possibilidade dos sócios pactuarem este prazo de forma diversa, porém nada se diz a respeito da possibilidade de pactuação diversa no que tange à modalidade de pagamento, em dinheiro ou in natura. Art. 980-A, caput, CC. 4 Art. 981, caput, CC. 3

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Apresentação do dispositivo legal em análise – Art. 1.031, do CC Toda sociedade é constituída por meio de consenso. Quando há a quebra da affectio societatis, ou mudança radical na condução ou formatação dos negócios (como por exemplo, alterações de objeto social ou realização de operações societárias de fusão, cisão ou incorporação) e os sócios não possuem mais o animus de prosseguir com as atividades negociais há duas possibilidades: liquidar a sociedade5 ou resolvê-la em relação a um sócio. Seja qual for o motivo do exercício do direito de retirada, para todas as sociedades regidas pelo Código Civil aplica-se o art. 1.031, por ser regra geral sobre o tema. Diante da manifestação de um dos sócios em retirar-se, na conjuntura socioeconômica brasileira atual é comum que duas situações ocorram: i) a sociedade não procede à retirada extrajudicial do sócio do contrato social e/ou ii) a sociedade não paga os valores devidos por força da retirada.

Respectivamente, caberá para a solução de cada um dos conflitos, um pedido de provimento judicial: i) decretação da resolução da sociedade em relação a um sócio, cumulado, no mesmo processo, com a determinação da apuração de haveres sociais ou ii) apenas apuração de haveres sociais.

Em ambas as ações, o pedido de apuração de haveres trata-se de uma obrigação de fazer. Portanto, dessa apuração não se sabe, a priori, se o seu resultado pode representar um crédito contra a sociedade. (GONÇALVES NETO, 2008, p. 395). Se a apuração de haveres representar um crédito por forca dos cálculos realizados no balanço especial de determinação ou balanço patrimonial/empresarial, a solução dada pelo legislador, conforme mandamento do art. 1.031, CC é o pagamento em dinheiro, porém será esta a única alternativa de quitação possível para a sociedade devedora? 5

A hipótese de liquidação da sociedade só se aplica ao caso da quebra de affectio, uma vez que quando ocorrerem operações societárias ou mudança de objeto há claro intuito dos sócios que aprovaram as mudanças de continuar com as atividades sociais.

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Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva?

Aspectos gerais e diferenças entre as normas imperativa e dispositiva Norma jurídica é um comando dirigido as ações dos indivíduos, das pessoas jurídicas e demais entes. É uma regra de conduta social; sua finalidade é regular as atividades dos sujeitos em suas relações sociais. A norma jurídica imputa certa ação ou comportamento a alguém que é seu destinatário (REALE, 2001, p. 53). As normas jurídicas podem ser classificadas com relação à sua imperatividade, ou seja, com base na força obrigatória ou não, a saber:

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes e Priscilla Menezes da Silva

Natureza Jurídica do Art. 1.031 do CC Ao longo do texto legal, muitas vezes, acredita-se que com o intuito de facilitar a aplicação da lei pelo intérprete, o legislador utiliza a expressão “salvo acordo ou estipulação contratual em contrario” para indicar que determinada norma trata-se de regra dispositiva, ou seja, que pode ser modificada de acordo com o que for mais conveniente para as partes. Entretanto, essas não são as únicas hipóteses de normas dispositivas, especialmente no campo do Direito Empresarial. Conforme lição da professora Rachel Sztajn:

Normas imperativas, proibitivas, de ordem pública, coativas ou absolutamente cogentes – São aquelas que proíbem alguma obrigação de fazer ou não fazer de forma incondicional, não podem deixar de ser aplicadas, nem podem ser modificadas pela vontade dos subordinados às normas. (i.a) Normas Imperativas: Imperativamente positivas que representam as obrigações de fazer. Por exemplo: Art. 977 do CC, caso alguns dos requisitos ali enumerados não conste do contrato social o órgão competente para o registro colocará o pedido em exigência e não arquivará os atos constitutivos até que seja sanada a omissão; (i.b) Normas Proibitivas: Imperativamente negativas que representam as obrigações de não fazer. Por exemplo: Art. 1.008 do CC, que fulmina de nulidade cláusulas leoninas incluídas nos contratos sociais.6 Estas cláusulas são aquelas que buscam excluir algum ou alguns sócios da participação tanto nos lucros quanto nas perdas. (ii) Normas permissivas, supletivas, dispositivas, simplesmente dispositivas, de imperatividade relativa, relativamente cogentes ou indicativas – São aquelas que se limitam a permitir determinado ato ou suprir a vontade das partes, se justificam principalmente pelo interesse prático de resolver dúvidas ou determinar com maior precisão as condições de realização do ato. (ii.a) Norma Permissiva: Quando consentem uma ação ou abstenção. Por exemplo: Art. 1.094, inciso I do CC, que autoriza aos sócios decidir se a cooperativa terá capital social ou não; (ii.b) Norma Supletiva: Quando suprem a falta de manifestação da vontade das partes. Por exemplo: Art. 1.053 do CC, prevê que nos casos de omissão do capítulo que cuida das sociedades limitadas e na falta de disposição contratual indicando aplicação supletiva da Lei n. 6.404/76, aplicar-se-ão as regras atinentes às sociedades simples.

Com base nessas diferenças estabelecidas na Teoria Geral do Direito, particularmente pautadas na literatura de Miguel Reale, e nas características do Direito Empresarial, procurar-se-á entender ontologicamente como é tratado o objeto do artigo – o dispositivo legal 1.031, do CC – com a finalidade de concluir, após a investigação, se esta norma jurídica é imperativa ou permissiva. 6

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Esta previsão harmoniza-se como disposto no caput do art. 981, o qual determina que todos os sócios devem partilhar entre si os resultados da empresa, sejam eles positivos (lucros) ou negativos (perdas).

A intensidade do tráfico negocial imposto pela industrialização incipiente requer regras que contemplem não apenas a velocidade com que as operações são realizadas, mas, sobretudo, a repetição de padrões e a necessidade de novos instrumentos que reflitam as mudanças no processo negocial. (grifos das autoras) (SZTAJN, 2010, p. 14).

Diante desta peculiaridade deste ramo do Direito defende-se que o aplicador da lei, sempre que possível, realize uma interpretação mais flexível das normas ora em vigor no que se refere ao Direito Empresarial a fim de que se amoldem à realidade social sem necessidade de alteração legislativa, que demanda muito tempo (o próprio Código Civil promulgado em 2002 tramitou por 70 anos, o que leva alguns a alegarem que já nasceu velho). É claro que determinadas normas são e sempre serão tratadas como imperativas, principalmente quando produzirem efeitos na esfera jurídica de terceiros, como por exemplo o art. 980-A, caput, CC (que estabelece a integralização de pelo menos 100 salários mínimos a título de capital social no momento da constituição da EIRELI), o art. 1.032, CC (que prevê responsabilidade do sócio que se retira, falece7 ou é excluído por mais 2 anos após a averbação da resolução em relação a ele), o art. 1.052, CC (que prevê responsabilidade solidária dos cotistas enquanto o capital social não estiver totalmente integralizado), dentre outros tantos. Porém, quando a norma tratar de direito que produz efeitos exclusivamente na esfera patrimonial dos envolvidos, por se tratar de direito disponível deve ser tratada como regra dispositiva para viabilizar outras soluções não contempladas expressamente na lei. Em que pesem os argumentos acerca da constitucionalização do Direito Privado, isto não significa uma publicização no sentido de que todas as normas passaram a ter natureza jurídica de regras cogentes. Isso é inviável do ponto de vista negocial. Inegável é que todos os ramos do Direito devem ter como expoente a Magna Carta, cujo princípio da livre iniciativa insculpido no art. 170, caput deve nortear as relações empresariais, que apresentam todos os dias soluções criativas para a solução das questões e dos desafios que surgem sem parar. 7

Neste caso a responsabilidade patrimonial recai sobre o espólio do sócio falecido.

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Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva?

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes e Priscilla Menezes da Silva

Diante do exposto, como esta discussão cinge-se à modalidade de pagamento dos haveres de sócio que se retira, portanto direito inegavelmente patrimonial, conclui-se que o parágrafo 2° do art. 1.031 deve ser interpretado como norma dispositiva para viabilizar outras modalidades de pagamento, a saber, in natura, desde que isto não prive a sociedade devedora de meios indispensáveis para a continuação das atividades.

Breve análise da responsabilidade do sócio retirante na hipótese de pagamento in natura

A possibilidade do pagamento in natura do sócio que se retira:oferecimento de bens isoladamente considerados ou titularização de unidade produtiva isolada Partindo da premissa que o parágrafo 2° do art. 1.031 é norma dispositiva e, portanto autoriza outras modalidades de pagamento dos haveres além de dinheiro, os seguintes itens devem ser analisados em cada caso, quanto à forma de quitação dos haveres oriundos da retirada seja ela imotivada ou motivada: (i) se o prazo da sociedade é determinado ou indeterminado8; (ii) se a retirada é de sócio majoritário ou minoritário e (iii) se o capital remanescente é suficiente para dar prosseguimento às atividades econômicas da sociedade devedora ou se o valor necessário para a quitação do sócio que se retira impedirá o prosseguimento das atividades negociais.

Ressalve-se que os itens 2 e 3 estão intimamente relacionados, na medida em que sendo o pagamento em dinheiro a única modalidade de ressarcimento prevista na lei, não é difícil vislumbrar que muitas vezes, dependendo da participação deste sócio nas atividades negociais, o valor a ser pago pode acarretar sensível diminuição patrimonial da sociedade, o que em última instância poderá gerar a inviabilização da continuidade da atividade econômica empreendida pelo devedor. Sendo assim, é possível que o pagamento se faça in natura, com bens isoladamente considerados (um imóvel, maquinário ou algum bem da propriedade intelectual) ou até mesmo com uma unidade produtiva isolada (muitas vezes representada por um estabelecimento), desde que a avaliação destes bens ou unidade sejam compatíveis com o valor a ser pago a título de haveres. Porém é mister destacar que o que se defende aqui não é uma transferência das propriedades do devedor para o sócio que se retira fazendo com que a sociedade devedora feche as portas, mas sim a possibilidade de exercício da mesma atividade por pessoas diferentes, quando se verificar que no caso concreto o sócio que se retira tem o intuito de dar continuidade à empresa, porém não mais com os sócios antigos ou na forma como o negócio vinha sendo conduzido. 8

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Na hipótese de sociedades contratadas por prazo determinado, a retirada antes do termo final pode ensejar para o sócio remanescente pedido de indenização caso se apurem prejuízos. Na seara negocial extrajudicial não se verificam empecilhos para que a verba dos haveres sejam compensadas com esses prejuízos se houver acordo entre as partes.

Independentemente da modalidade de ressarcimento escolhida (dinheiro, bens ou unidade produtiva isolada), faz-se necessário, em todos os casos, cumprir a formalidade prevista em lei, qual seja, a exclusão do nome do sócio que se retira da sociedade (TOMAZATTE, 2012, p. 182) e sua respectiva averbação no órgão de registro competente. É somente a partir daí que começa a fluir o prazo de 2 anos durante o qual o sócio que se retirou ainda conserva responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores a sua saída, conforme impõe o art. 1.032, CC. Quando o pagamento for feito com bens isoladamente considerados, estar-se-á diante da hipótese de dação em pagamento, devendo-se aplicar os arts. 356 a 359 do CC sem maiores dificuldades. Entretanto, quando o pagamento for feito com a transferência de unidade produtiva isolada, abrem-se duas possibilidades: o trespasse ou a cisão parcial. No primeiro caso, aplicam-se as regras gerais do contrato de venda do estabelecimento (arts. 1.144 a 1.149, CC), com a ressalva de que o adquirente poderá fazer concorrência ao alienante desde já (art. 1.147, CC) e deve-se regular também a possibilidade de uso do nome empresarial do alienante (art. 1.164, CC).9 Além da responsabilidade de 2 anos pelas obrigações sociais oriundas do exercício do direito de retirada, com a realização do trespasse o adquirente (sócio retirante) permanece solidariamente responsável pelas obrigações anteriores a realização do negócio, desde que regularmente contabilizadas (art. 1.146, CC). Já na hipótese de cisão, tendo em vista que o legislador do Código Civil foi negligente no seu trato, é necessário buscar amparo na Lei n. 6.404/76 (LSA), mais precisamente nos arts. 229 a 234. Aqui o adquirente responderá apenas pelas obrigações relacionadas no ato de cisão, que poderá prever solidariedade com a sociedade cindida (devedora) ou não (art. 234, parte final do parágrafo único, LSA). Repise-se: aqui também se aplica a responsabilidade de que trata o art. 1.032, CC.

Haveres apurados extrajudicialmente com ou sem estipulação contratual prévia De acordo com o art. 1.031, CC, a apuração do valor das cotas do sócio que se desvinculou faz-se, prioritariamente, na forma prevista no contrato social, por ser livre a manifestação da vontade das partes. No caso de o contrato social dispor sobre as hipóteses que ensejam o direito de retirada e as formas de pagamento dos haveres, o sócio que deseja se retirar, ao se subsumir em uma das possibilidades ali enumeradas, não tem interesse de agir. O provimento judicial será desnecessário. Admitir o contrário seria viabilizar o venire contra factum proprium, na medida em que o sócio que se retirou, em momento anterior, aderiu às cláusulas ali estipuladas. 9

Aqui o mais comum seria a utilização conjunta de título do estabelecimento ou marca, cabendo em ambos os casos aplicação da Lei n. 9.279/96, no primeiro caso pelas regras gerais que proíbem concorrência desleal e no segundo caso pelos arts. 122 a 175.

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Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva?

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Essa estipulação contratual pode ser objeto de impugnação quando demonstrada a sua ilicitude ou abusividade, se ofender a garantia constitucional do direito à propriedade ou sua função social. Ainda que sua forma de apuração esteja fixada no contrato, pode haver interesse de agir do sócio que se retirou, caso se verifique, in concreto, que o cálculo realizado extrajudicialmente desrespeitou o previsto no instrumento social ou ainda quando, observados os parâmetros estabelecidos, estes se mostrem ilegítimos, gerando enriquecimento infundado para a sociedade e prejuízos ao sócio que se retirou. Por outro lado, ainda que não haja fixação prévia prevista no contrato social, consensualmente, o sócio que se retirou e os remanescentes podem realizar conjuntamente um acordo extrajudicial de pagamento dos haveres em dinheiro, em bens ou na titularização de uma das unidades produtivas isoladas da sociedade, tendo em vista tratar-se o parágrafo 2° do art. 1.031 do CC de norma dispositiva. Nesta hipótese, as partes decidem quais cláusulas serão estabelecidas no documento do acordo. A confiança é a base da negociação e o documento assinado e com firma reconhecida pode ser levado a registro no Cartório de Títulos e Documentos, se assim desejarem as partes.

Esse balanço verificará e apurará, tanto física quanto contabilmente, os valores da sociedade e deverá conter todos os direitos e deveres que “comportem expressão pecuniária” (MAMEDE, 2012, p. 171), traduzindo o valor real do quantum da participação societária do sócio que se retira. Outra consideração importante, é que, os valores devidos ao sócio que se desvinculou devem levar em consideração os valores relativos à liquidação dos bens componentes do patrimônio da sociedade à data da resolução (COELHO, 2011, p. 205).12 Uma vez definido o valor a ser recebido a título de apuração dos haveres e podendo este ser levantado sem prejuízo da continuação da empresa pela sociedade devedora, obedecerá ao parágrafo 2º do art. 1.031 do CC - prazo de pagamento de 90 dias contados da liquidação da quota, salvo disposição em contrário estatuída no contrato social.

Haveres apurados judicialmente e quitados em dinheiro Na apuração dos haveres, o sócio fará jus à liquidação da sua quota ou de suas quotas. E serão necessários dois procedimentos, a saber:

Haveres apurados judicialmente e quitados in natura: em bens da sociedade ou na forma de titularização de uma das suas unidades produtivas isoladas Este tema é bastante discutido em sede trabalhista – visando sistematizar a sucessão da empresa – e tributária – com a finalidade de estabelecer a responsabilidade pelo pagamento dos tributos.13 Domingos Botallo oferece o seguinte conceito de unidade produtiva isolada:

(i) a determinação do patrimônio da sociedade – Balanço Especial de Determinação e (ii) a definição do quinhão correspondente a cada um dos sócios, para se chegar ao quinhão do sócio que se retirou.

Se a apuração de haveres chegar ao Poder Judiciário, deverá o julgador determinar a aplicação da regra geral com a apuração dos haveres verificada através de um balanço especialmente levantado, nos termos da Súmula 265 do STF10, o que a partir do Informativo nº 176 do STJ, datado de 9 a 13 de junho de 2003, mais explicitamente denomina-se “balanço especial de determinação”, no Direito ou “balanço empresarial”, para a Contabilidade e que pretende aproximar, o máximo possível, os valores de pagamento, à realidade empresarial da sociedade do sócio que se retirou.11 Súmula 265, do STF - Na apuração de haveres, não prevalece o balanço não aprovado pelo sócio falecido, excluído ou que se retirou. 11 Com a finalidade de determinar que o tempo de análise das condições da sociedade no “balanço especial de determinação” é a mesma época da retirada do sócio da sociedade, vide o seguinte julgado: STJ – AgRg no REsp 995475 SP 2007/0237570-6 Rel. Ministra Nancy Andrighi, TERCEIRA TURMA Data do Julgamento: 19/12/2009. Data de publicação: 25/03/2010 p. 176. No mesmo sentido, pode-se citar os seguintes julgados: REsp 453.476/GO e REsp 515.681/PR , entre outros. 10

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Quer-nos parecer que a expressão “unidade produtiva isolada” (Art. 133, § 1°, II do CTN) associa-se, em seu significado, ao conceito de estabelecimento de que tratam os artigos 1.142 e 1.143 do Código Civil, ou seja, complexo de bens organizados para o exercício da empresa, capaz de ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza. (BOTTALO, 2005, p. 78/79).

Conceitualmente, a unidade isolada é aquela que guarda independência da unidade principal.14 Percebe-se que, na prática, para se titularizar uma unidade Acerca da abrangência do reembolso e das circunstâncias para a preservação do negócio para sócio remanescente da continuidade da atividade negocial da sociedade vide o seguinte julgado: TJRJ Apelação Cível nº 2006.001.18077 – Relator: Des. Antonio Saldanha Palheiro – Data de publicação: 06/06/2007 p. 92. 13 Pode-se indicar os seguintes julgados sobre o tema que elucidam a responsabilidade na titularização da unidade produtiva isolada como um centro de interesses jurídicos da empresa: TRT-24 - AP 575200505624009, MS 00575-2005-056-24-00-9,TRT-9 – RO 36047200814900 PR 36047-2008-14-9-0-0, entre inúmeros outros. 14 Sobre as responsabilidades trabalhistas e tributárias das unidades produtivas isoladas vide os seguintes julgados: TJSC - Apelação Cível AC 592308 SC 2007.059230-8 Relator: Des. Ricardo Roesler - Data de publicação: 07/04/20071 p. 49 e TRT-4 – Recurso Ordinário Trabalhista RO nº1941005620095040404 RS 0194100-56.2009.5.04.0404 Relator: Ana Rosa Pereira Zago Sagrilo Data de publicação: 01/12/2011 p. 23. 12

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Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva?

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produtiva isolada, o sócio que se desvinculou da sociedade precisa preencher, concomitantemente, os seguintes requisitos:

retira geralmente deseja receber um valor mais alto do que e a sociedade pretende pagar. Na prática, a discrepância chega a 80% ou 90% – índices divulgados pelo Instituto Nacional de Altos Estudos – INAE.

(i) ser titular de cotas da sociedade de que se retirou15; (ii) existência de avaliação das unidades produtivas isoladas, no balanço especial de determinação; e (iii) viabilidade da continuidade da atividade negocial da sociedade devedora mesmo havendo a titularização de uma de suas unidades produtivas isoladas pelo sócio que se retirou.

Então, preenchidos tais requisitos, pode o sócio retirante pleitear a titularidade da unidade produtiva isolada em Juízo. Isso porque, no âmbito da Teoria Geral da Empresa, a retirada ou recesso é  o direito atribuído ao sócio, que consiste “no seu desligamento aos vínculos que o unem aos demais sócios e à sociedade, por ato unilateral de vontade” (NEGRÃO, 2012, p. 262). A retirada do sócio pode ocorrer em diversas situações, variando de acordo com a duração da sociedade e a respectiva permissão legal atinente ao tipo societário em questão. Dependendo das condições econômicas e financeiras apresentadas pela sociedade devedora, esta talvez não consiga pagar ao sócio que se retirou o valor que lhe é devido em dinheiro. Nestes casos, o sócio que se retirou, se quiser, poderá receber o seu quinhão de ressarcimento do valor das cotas in natura, da seguinte forma: (i) em bens isoladamente considerados da sociedade (FONSECA, 2012, p. 35) ou (ii) na forma de titularização de uma das unidades produtivas isoladas da sociedade.

Ressalva-se que, sendo o sócio retirante, o credor da sociedade, nenhum juiz pode obrigá-lo a receber prestação diversa da que lhe e devida, pois ele é credor de pagamento em dinheiro nos termos do art. 1.031, do CC. Então, o pagamento in natura não pode ser imposto pelo juiz contra a vontade do sócio que se retirou. Mas pode ser recebido se o sócio ingressar em juizo pedindo a apuração de haveres e formular pedido de pagamento in natura. Contudo, se o pagamento in natura for oferecido pela sociedade devedora (e não constar dos pedidos do autor) não é possível se tornar uma obrigação, por força de decisão judicial. Verifica-se que outra questão, particularmente controvertida, que se apresenta nesse momento será o quantum debeatur necessário à quitação dos valores devidos ao sócio que se retirou. Quando um sócio sai da sociedade judicialmente, há discussão em sede de apuração dos haveres. O sócio que se 15

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Seja majoritário ou minoritário, a quantidade representativa de valores do sócio precisa ser no montante suficiente e correspondente ao valor da avaliação de uma das unidades produtivas isoladas no balanço patrimonial ou empresarial, que em juízo denomina-se balanço especial de determinação.

Considerações finais Diante dos argumentos levantados é possível concluir que o art. 1.031, do CC é uma norma permissiv, pois, de toda a exposição, o presente artigo demonstra a possibilidade de o sócio que se desvincula da sociedade, na ausência de norma contratual em contrário, indicar ao Juízo que deseja receber seus haveres in natura, na forma de bens individualmene considerados ou titularização de uma unidade produtiva isolada. Portanto, é possível que o sócio que se desvinculou da sociedade tenha o direito ao paamento in naura, se preencher e comprovar, com base no art. 333, inciso I, do CPC, concomitantemente, na esfera judicial, os seguintes requisitos abaixo expostos: (i) ser titular de cotas da sociedade de que se desvinculou em montante suficiente e correspondente ao valor da avaliação dos bens isoladamene considerados ou de uma das unidades produtivas isoladas no balanço patrimonial ou empresarial, que em juízo denomina-se balanço especial de determinação e (ii) não se tornar impossível a continuidade da atividade negocial pelos sócios remanescentes da sociedade devedora com a transferência de bens ao sócio que se desvinculou.

A sentença que vier a ser proferida, seja na ação de resolução da sociedade em relação a um sócio cumulada com apuração de haveres seja na de apuração de haveres, decretará o seu direito. Em ambos os casos, a solução da hipótese apresentada e discutida deve ser entendida no contexto do exercício do princípio da preservação da empresa, que rege o Direito Empresarial. Logo, na modalidade de ressarcimento estudada, a sociedade ré reduzirá o capital social e quitará a dívida da sociedade com o sócio que se desvinculou. Já o sócio retirante poderá realizar a titularização da unidade produtiva como: (i) empresário individual – art. 966 c/c 967, ambos do CC; (ii) empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI – art. 980-A, do CC; (iii) microempreendedor individual – MEI -, se a unidade produtiva isolada obtiver ganhos limitados a R$ 60.000,00, ao ano – Leis Complementares nº 128, de 19 de dezembro de 2008 e nº 139, de 10 de novembro de 2011; (iv) constituir uma Sociedade de Propósito Específico da Unidade Produtiva Isolada - SPE-UPI; ou (v) como sócio que disponibilizará desse ativo de sua titularidade para integralizar o capital social de outra sociedade existente com a finalidade de absorver a unidade produtiva isolada.

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Cláudia Ribeiro Pereira Nunes e Priscilla Menezes da Silva

Após, por meio da sentença, procederá à titularização da unidade produtiva isolada no sistema RPEM ou Junta Comercial do Estado onde se situa. Depois de regularizado o primeiro cadastro, inscrever-se-á no Ministério da Fazenda e obterá o número de CNPJ para que possa dar prosseguimento às suas atividades regularmente. Havendo o acolhimento das considerações ora expostas pelos operadores do direito, ensejar-se-á nas relações socioeconômicas uma nova cultura empresarial, o que garantirá a continuação do desenvolvimento nacional advindos desta concepção de ressarcimento na qual se permite a titularização de unidade produtiva isolada por via judicial, no momento da dissolução parcial da sociedade e/ou da apuração de haveres.

NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e Empresarial: Teoria Geral da Empresa e Direito Societário. Vol. 1. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. REALE, MIGUEL. Lições Preliminares do Direito. 25ª ed. 22ª tiragem, São Paulo: Saraiva, 2001. RECEITA FEDERAL. Instrução Normativa RFB nº 1.398, de 16 de setembro de 2013. Disponível em: . Acesso em 25 set. 2013. STF–SupremoTribunalFederal.EnunciadodaSúmulanº265.Disponívelem:. Acesso em 15 de jun. 2013. STJ– Superior Tribunal de Justiça. Informativo nº 176, de 9 a 16 de junho de 2003. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. _____________. REsp 453423/AL Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros Data do Julgamento: 11/12/2005 Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA Data da publicação: DJ 15/05/2006 p. 181. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. _____________. REsp 183951/SP Rel. Ministro Milton Luiz Pereira Data do Julgamento: 11/06/2001 Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA Data de Publicação: DJ 25/03/2002 p.179. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. _____________. AgRg no REsp 995475 SP 2007/0237570-6 Rel. Ministra Nancy Andrighi, TERCEIRA TURMA Data do Julgamento: 19/12/2009 Data de publicação: 25/03/2009 p. 176. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. _____________. REsp 515.681/PR, Rel. Ministro Rui Rosado Aguiar, QUARTA TURMA Data do Julgamento em 10/06/2003 Data de publicação: DJ 22/09/2003 p. 342. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. _____________. REsp 745.932-SP, Rel. Min. Ruy Rosado, QUARTA TURMA Data do Julgamento em 10/010/2003 Data de publicação: DJ 22/03/2004 p. 98. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. _____________. REsp  788886/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti TERCEIRA TURMA Data do Julgamento em 15/12/2009 Data de publicação: DJ 22/03/2010 p. 87 Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. _____________. REsp  788886/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti TERCEIRA TURMA Data do Julgamento em 15/12/2009 Data de publicação: DJ 22/03/2010 p. 87 Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário, Vol. 1 – 4ª ed. - São Paulo: Atlas, 2012. TJSP – Apelação Cível nº 9217958862005826 SP 9217958-86.2005.8.26.0000. Relator: Des. Carlos Alberto Garbi - Data de publicação: 29/09/2011 p. 314. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. TJRJ - Apelação Cível nº 2006.001.18077. Relator: Des. Antonio Saldanha Palheiro – Data de publicação: 06/06/2007 p. 92. Disponível em: . Acesso em 15 de jun. 2013. TJSC - Apelação Cível AC 592308 SC 2007.059230-8. Relator: Des. Ricardo Roesler - Data de publicação: 07/04/20071 p. 49. Disponível em: . Acesso em 20 de ago. 2013.

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Análise do Artigo 1031, do Código Civil: Norma Imperativa ou Permissiva?

TRT-4 – Recurso Ordinário Trabalhista RO nº1941005620095040404 RS 019410056.2009.5.04.0404. Relator: Ana Rosa Pereira Zago Sagrilo Data de publicação: 01/12/2011 p. 23. Disponível em: . Acesso em 20 de ago. 2013. SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresaria e mercados, 2a ed. -São Paulo: Atlas, 2010.

O Aliciamento de Empregados: Conceito e Características. Seria essa prática uma nova forma de apropriação de informações Confidenciais da Concorrência? José Carlos Vaz e Dias (LLM/PhD Kent – Inglaterra)1 João Marcelo Sant’anna2 Resumo O presente artigo aborda a prática empresarial denominada “aliciamento de empregado” e procura defini-la e especificar as suas características face à nova realidade econômica de intensa competição e de valorização do trabalhador intelectual. Em uma leitura extensiva dos arts. 206 e 207 e 127 da seção “Crimes Contra a Organização do Trabalho” do Código Penal de 1940, bem como do art. 608 do Código Civil, procura-se identificar se esses dispositivos legais seriam adequados para preservar a confidencialidade de informações competitivas via garantia de permanência de empregados intelectuais. Palavras-chave: Aliciamento de empregado; concorrência desleal; confidencialidade. Abstract This article addresses the commercial practice named “employee enticing” and seek to establish its definition and characteristics before the new economic reality based on intense competition and promotion of the intellectual worker. At reading extensively arts. 206 and 207 of the section “Crimes Against the Employment Organization” of the Criminal Code of 1940 as also art. 608 of the Civil Code, this article aims to address this practice and answer if the existing legislations are adequate to preserve the confidentiality of competitive information by means of maintaining the intellectual employee in the company. Keywords: Employee enticing; unfair competition and confidentiality.

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José Carlos Vaz e Dias é Doutor em Direito da Propriedade Intelectual e Investimento Estrangeiro pela Universidade de Kent – Inglaterra. Professor Adjunto em Direito da Propriedade Intelectual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e sócio do escritório Vaz e Dias Advogados & Associados. João Marcelo Sant’anna é um advogado especializado em direito da empresa e atuante no escritório especializado em direito da empresa J.G. Assis de Almeida & Associados e mestrando da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

O Aliciamento de Empregados: Conceito e Características. Seria essa prática uma nova forma de apropriação de informações Confidenciais da Concorrência?

Introdução O “aliciamento de empregados” é uma das práticas comerciais menos compreendidas por advogados e empresários. Isso decorre da contaminação provocada pela mídia impressa, que concebe o aliciamento quando do oferecimento de proposta indecentemente satisfatória a um empregado de outrem, por um concorrente, capaz de convencê-lo a rescindir o atual contrato de trabalho e unir-se ao concorrente. Esse conceito genérico assume um tom emocional quando atrelado ao mundo futebolístico, quando dos contatos intensos de empresários ligados a clubes de futebol com jogadores de outros times com o fim de contratá-los. 3 Ainda, a prática é revelada na mídia quando da indignação ou confrontação do empregador à abordagem de seu empregado aliciado, sendo utilizado como um instrumento de intimidação e discordância do recrutamento. Os noticiários são publicados neste sentido mesmo que essa abordagem não tenha sido realizada de maneira ostensiva, mas tenha ocorrido somente o contato para recrutamento em melhores condições financeiras. Por outro lado, quando não contestada, a abordagem é vista como excelente oferta de trabalho, o que não deixa de ser uma contradição com o entendimento coloquial do assunto. A mídia escrita explora também o aliciamento sob a perspectiva destrutiva do emprego e da empresa, quando promove a emigração de empregados para outras localidades no território brasileiro ou para o exterior.4 Ao examinar as principais legislações aplicáveis ao tema, parece que o aliciamento é totalmente diferente daquele concebido coloquialmente pela população e divulgada pela mídia impressa. Inexistem, em um primeiro momento, parâmetros que norteiam a compreensão dessa prática. Mais ainda, o aspecto concorrencial não é relevado, o que acaba colocando o trabalhador como importante ativo para a empresa e instrumento capaz de trazer um diferencial competitivo para um empresário em relação a outro concorrente. Veja “Clubes se Unem Contra o São Paulo por Suposto Aliciamento da Base”, disponível em (http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2013/03/21/clubes-se-unemcontra-sao-paulo-por-suposto-aliciamento-na-base.htm). Acesso em 10 de março de 2016. “São Paulo Quebra Pacto Firmado na CBF, Alicia Promessas e Revolta Clubes” disponível em (http://esportes.terra.com.br/futebol/prata-da-casa/blog/2013/02/21/ acusado-de-aliciar-sao-paulo-apresenta-ex-vasco-e-compra-guerra-com-clubes/). Acesso em 10 de março de 2016. 4 “Clipping: MPT Aciona Prestadora da Petrobrás por Aliciamento de Trabalhadores em SJC” (http://reporterbrasil.org.br/2009/05/mpt-aciona-prestadora-da-petrobras-poraliciamento-de-trabalhadores-em-sjc/), acesso em 10/03/2016. “MPF Denuncia Sócio do Verdemar e Funcionário de Construtora por Trabalho Escravo” (http://noticias.r7.com/ minas-gerais/mpf-denuncia-socio-do-verdemar-e-funcionario-de-construtora-portrabalho-escravo-01042014), acesso em 10/03/2016. “Embraer Evita que Concorrente dos EUA Contrate Seus Funcionários” (http://forum.contatoradar.com.br/index.php/ topic/5573-embraer-evita-que-concorrente-dos-eua-contrate-seus-funcionarios/). Acesso em 22/03/2016. 3

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O presente trabalho procurará identificar os elementos e características da prática de aliciamento, bem como ponderar os limites da abordagem condenada, em face das seguintes realidades: a concorrência e o trabalhador intelectual. Neste sentido, algumas perguntas básicas deverão ser respondidas para alcançar o propósito desse artigo: A abordagem ao trabalhador deve ser intensa, consistente e indecente para caracterizar-se como aliciamento? O aliciamento relaciona-se ao recrutamento de qualquer empregado? Quando o caráter da concorrência pode ser inserido? A análise do aliciamento será realizada relevando-se a intensa competição do mercado brasileiro e os ativos intelectuais, em que os agentes econômicos utilizam quaisquer instrumentos comerciais para a conquista da clientela, muitas vezes de forma desleal. Nesse raciocínio, a concorrência desleal terá como base o recrutamento de empregado intelectual, contratado para o desenvolvimento de tecnologias ou o detentor de conhecimento tecnológico relevante e privilegiável de um empresário.

Conceito, características e limites do aliciamento de empregados O conceito de aliciamento de empregado vem sendo construído no direito brasileiro sob 2 (duas) perspectivas independentes, mas que se relacionam juridicamente de maneira íntima. A primeira encontra-se embasada no combate à deslealdade na concorrência e a segunda na proteção das relações trabalhistas. Essas perspectivas podem ser observadas desde os primórdios das legislações comerciais, pois o Código Comercial Brasileiro de 18505 já abordava o aliciamento sob concepções distintas e determinava os elementos para a sua caracterização, logicamente atreladas às atividades comerciais prevalecentes à época. Por meio do exame do artigo 500 do Código Comercial de 1850, ainda em vigor face ao disposto no art. 2045 do Código Civil6, observa-se a preocupação com os efeitos da perda de profissionais nas atividades marítimas, pois se impõe uma vedação ao capitão de embarcação em seduzir e descaminhar marinheiro matriculado em outra embarcação. Essa disposição evidencia o combate aos atos desleais na concorrência, pois explicita a sedução como ação nuclear do ato ilícito. A sedução e o descaminho de marinheiro matriculado, por meio de promessas e meios persuasivos financeiros, podem ser enquadrados como desleal e desvirtuar o comércio marítimo. Esse artigo revela ainda a necessidade de proteção de mão de obra específica e necessária para a operação das embarcações. Assim, a referida disposição encontra-se explicitada da seguinte forma: 5 6

Lei n. 556, de 25 de junho de 1850 (Código Comercial Brasil). “Art. 2.045. Revogam-se a Lei n. 3.071, de 1º. de janeiro de 1916 – Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei 556, de 25 de junho de 1850.” Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

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“Art. 500. O capitão que seduzir ou desencaminhar marinheiro matriculado em outra embarcação será punido com multa de cem mil-réis por cada indivíduo que desencaminhar, e obrigado a entregar o marinheiro seduzido, a bordo do seu navio, e se a embarcação por esta falta deixar de fazer-se à vela, será responsável pelas estadias de demora.”

Já o art. 244 do referido Código Comercial, revogado pelo Código Civil de 2002, estabelecia uma vinculação trabalhista prévia e regular para a prática do aliciamento, na medida em que vedava o aliciamento de empregados ou operários de outras fábricas, quando se encontrarem contratados por escrito, como segue:7 “Art. 244. O comerciante empresário de fábrica, seus administradores, diretores e mestres, que por si ou por interposta pessoa aliciarem empregados, artífices ou operários de outras fábricas que se acharem contratados por escrito, serão multados no valor do jornal dos aliciados, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, a benefício da outra fábrica.”

Não obstante as diferentes concepções, existem pontos de intersecção que revelam o direcionamento legislativo para uma vinculação contatual e os efeitos na concorrência. Dentre eles está a qualificação do ato praticado, qual seja o de seduzir, convencer e induzir pessoa física de outras fábricas ou embarcações mediante oferecimento de promessas e benefícios patrimoniais.8 Além disso, requer-se que a pessoa seduzida esteja vinculada contratualmente com terceiro para a execução de serviços específicos. Mais ainda, presume-se que a sedução e o aliciamento corra dentro de atividades idênticas ou similares a aquelas pretendidas pelo aliciador. Cumpre salientar também que o Código Penal de 18909 continha regramento específico sobre o aliciamento de empregados, pois criou o tipo penal baseado na sedução, convencimento e recrutamento de trabalhadores para deixarem os seus postos de trabalho, mediante promessas ou coação, como segue:

“Art. 205. Seduzir, ou alliciar, operarios e trabalhadores para deixarem os estabelecimentos em que forem empregados, sob promessa de recompensa, ou ameaça de algum mal: Penas - de prisão cellular por um a três mezes e multa de 200$ a 500$000.”

O aliciamento de empregados dentro de uma concepção de combate à concorrência desleal atrelado à vinculação trabalhista ou de prestação de serviços, nos termos do Código Penal de 1890, pode ser reforçado pelo fato desse tipo penal ter sido tratado como crime “Contra o Livre Gôzo e Exercício dos Direitos Individuais”, na epígrafe “Dos Crimes Contra a Liberdade de Trabalho”. Nessa concepção, procura-se privilegiar os bens jurídicos de interesse individual, os quais estão inseridos na defesa contra os atos desleais.10 Por outro lado, a conexão da prática do aliciamento com as relações trabalhistas ganhou contornos mais incidentes a partir da Constituição Federal de 1937. Classificada como constituição econômica, a Constituição de 1937 abriu portas para o dirigismo estatal e o uso de institutos jurídicos para a implementação de políticas baseadas no equilíbrio social e econômico. Esse dirigismo pode ser visto com o aliciamento de empregados, seguindo a nova estruturação do Código Penal de 1940,11 pois passou a ser concebido como um crime contra a organização do trabalho,12 sendo prevista segundo as rubricas laterais no “aliciamento para o fim de emigração” (arts. 206) e no “aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional” (art. 207). Pela leitura dos referidos artigos, observa-se que foi adicionado para a configuração do crime a finalidade específica do agente: a emigração ao exterior ou para outra localidade no Brasil. O art. 206 do Código Penal chama atenção pela relevância do tipo subjetivo, que é o recrutamento com a intenção de levar o trabalhador para outro território estrangeiro, quando exercido mediante fraude. Assim, exige-se na ação nuclear desse tipo penal a sedução, o convencimento e a atração de trabalhadores vinculados a outro empregador, para território estrangeiro, baseados em falsas promessas, por exemplo.13 BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. “Comentários à Constituição do Brasil”. 7º. Vol. Ed. Saraiva. Pág. 3-10. 11 Decreto-Lei no. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 12 Conforme expresso pelo Ministro do Trabalho Francisco Campos, em 1940, na Exposição de Motivos de 04/11/1940: “A proteção jurídica já não é concedida à liberdade o trabalho propriamente, mas à organização do trabalho, inspirado não somente na defesa e no ajustamento dos direitos e interesses em jogo, mas, também, e principalmente no sentido superior do bem comum de todos. Atentatória, ou não, da liberdade individual, toda ação perturbadora da ordem jurídica, no que concerne ao trabalho, é ilícita e está sujeita a sanções repressivas, seja de direito administrativo, seja de direito penal. Daí, o novo critério adotado pelo projeto, isto é, trasladação dos crimes contra o trabalho, do setor dos crimes contra a liberdade individual para uma classe autônoma, sob a já referida rubrica.” 13 Pode-se afirmar que seria fraude o aliciamento para fins de emigração em desrespeito às leis que regulam a transferência de mão de obra brasileira ao exterior (Lei 7.064/82), a promessa que não pode ser cumprida pelas condições ofertadas, o envio de trabalhadores 10

O art. 244 insere-se ao Titulo X “Da Locação Mercantil”, que abordava a locação de serviços ou contratação temporária para execução de serviços específicos. A presença do art. 244 CCom com expressa referência aos empregados de fábrica, deve ser apreendida sob a perspectiva da ausência, àquela época, de leis trabalhistas uniformes e compiladas. A unificação da legislação trabalhista ocorreu com a Consolidação das Leis do Trabalho - Decreto-lei n. 5.452, de 1º. de maio de 1943. Vide BARROS, Alberto da Rocha. “Origens e Evolução da Legislação Trabalhista”. 1ª. edição. Rio de Janeiro. Ed. Laemmert. 1969. Págs. 46-50. 8 O termo concorrência desleal passou a ser utilizado no Brasil a partir da Convenção da União de Paris, de 20 de março de 1883, ratificado pelo brasil por Decreto n. 9.233, de 28 de junho de 1884, quando previsão específica (art. 10bis) foi apresentada ao combate da concorrência desleal. 9 Decreto no. 847, de 11 de outubro de 1890 (revogado pelo Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, também denominado Código Penal de 1940) 7

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O Aliciamento de Empregados: Conceito e Características. Seria essa prática uma nova forma de apropriação de informações Confidenciais da Concorrência?

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Já o art. 207 aborda o “aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional”, que objetiva preservar o equilíbrio populacional nas regiões brasileiras, evitar o desajuste econômico e impedir a exploração do trabalhador hipossuficiente14. Esse tipo penal não trata de violação à concorrência, não sendo esse o bem tutelado. Deve-se ter em mente que o Brasil era extremamente agrícola nas décadas que antecederam a promulgação do Código Penal. Interessava ao Legislador impedir que trabalhadores rurais de uma fazenda fossem aliciados para trabalhar em fazenda de outra região do país, o que prejudicaria a economia dependente, por exemplo, do ciclo do café,15 A manutenção desse dispositivo penal se justificou ao longo dos anos 40, pois o Brasil passou por uma transformação industrial que gerou forte êxodo rural, com deslocamento do centro econômico do campo para os centros urbanos.16 Em termos regionais, o Brasil experimentou um aumento da desigualdade entre regiões, com a concentração de riqueza na região Sudeste, o que gerou o deslocamento de mão de obra, por exemplo, da região Nordeste para a região Sudeste. Além disso, o próprio Governo Federal incentivou durante anos a ocupação da região Norte, seja por conta da exploração de minério, seja por conta da exploração agrícola ou seringueira da floresta amazônica. Esse foi outro fator de fomento ao êxodo interno, sempre descontrolado. Atualmente, o art. 207 do Código Penal se concretiza eficazmente quando interpretado em conjunto com seu parágrafo primeiro, incluído pela Lei nº 9.777/98, que expõe: “incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem”. Ou seja, o bem tutelado pelo caput do art. 207 ainda é a organização do trabalho e os efeitos dela para economia e organização territorial, entretanto, o aliciamento de trabalhadores passa a ser vedado também sempre que houver emprego de

fraude ou aproveitamento da condição de hipossuficiência do trabalhador e violação a direitos humanos17. Vê-se com clareza, portanto, que a vedação à conduta de aliciamento de trabalhador prevista no Código Penal teve seu escopo ampliado de forma a impedir fraudes, o que acabou atrelando de alguma forma elementos da concorrência desleal e a prevenção da mão de obra escrava. Tais objetivos foram reafirmados por julgados do Supremo Tribunal Federal (STF), que procuram explicar as circunstâncias fáticas em que o art. 207 é plenamente aplicável.18 Cumpre relevar também, neste ponto, que o aliciamento de empregados não proíbe o êxodo e a emigração para novos territórios, de forma espontânea ou provocado.19 Ela tenta impedir a prática incessante dos atravessadores ou “gatos” (intermediários com influência junto aos trabalhadores em uma atividade específica), o que consequentemente atinge os empresários ou concorrentes interessados no recrutamento ilícito. Dessa forma, existe subsidiariamente uma intenção em vedar a prática da concorrência desleal ou o recrutamento em empregados de uma mesma atividade econômica ou complementar. Entendese ser necessário que esse aliciamento ocorra em pelo menos três trabalhadores. Para a análise do conceito de aliciamento de empregado, é necessário também compreender, que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) esforçou-se para proteger os direitos sociais de segunda geração, tal como o direito ao trabalho. Veja-se que a CRFB/88 deixou claro, em seu art. 1º, inciso IV, que o Estado brasileiro tem como fundamento “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” e, no art. 5º, incluiu entre os direitos individuais e coletivos dos cidadãos o direito ao “livre exercício de qualquer

para outros países com visto de turista para afastá-los de leis trabalhistas. Vide “JT condena todos os envolvidos no aliciamento de mão de obra para trabalho no exterior sem autorização legal”. Disponível no site http://www.pelegrino.com.br/noticias/ ver/2012/12/06/jt-condena-todos-os-envolvidos-no-aliciamento-de-mao-de-obra-paratrabalho-no-exterior-sem-autorizacao-legal acesso em 10 de março de 2016. 14 Veja reportagem publicada em http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=156250 acessado em 21 de março de 2016. Veja COLNAGO, Rodrigo. “Direito Penal. Parte Especial”. N. 9. Ed. Saraiva. 3ª. ed. 2009. São Paulo. Ed. Saraiva. Pág. 156. 15 GRAU-KUNTZ, Karin. Da defesa da concorrência. Revista do IBRAC – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional. Vol. 9/2002, p. 49-72, Jan/2002DTR\2011\5027. 16 A Política de Substituição de Importação, adotada na década de 40, promovia a produção industrial e a redução das importações de manufaturados. A organização do trabalho em bases racionais foi um dos fundamentos para essa Política, pois permitia o estabelecimento da normalidade da ordem social e política e buscava reduzir os conflitos laborais. MARTINS, Heloisa Helena Teixeira de Souza. “O Estado e a Burocratização do Sindicato no Brasil”. 1ª. ed. São Paulo. Editora Hucitec. 1979. Págs. 24 a 26.

Para informações mais concretas ver http://oglobo.globo.com/economia/terceirizada-dapetrobras-condenada-por-aliciar-estocar-trabalhadores-para-obra-da-estatal-em-sp-2897001 acessado em 21 de março de 2016. Ainda, constitui forte indicio de aliciamento, nos parâmetros do art. 207 do Código Penal, o recrutamento para trabalho em outra localidade por meio de transporte irregular e pela não formalização de registro de empregados. Veja “Aliciamento associado à obra no Rio Madeira ilude imigrantes” disponível em http://www. brasildefato.com.br/node/5299 e acessado no dia 20 de março de 2016. 18 PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO, FRUSTRAÇÃO DE DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA, ALICIAMENTO DE TRABALHADORES DE UM LOCAL PARA OUTRO DO TERRITÓRIO NACIONAL E DEIXAR DE PROMOVER AS MEDIDAS NECESSÁRIAS DE PROTEÇÃO À SAÚDE DO EMPREGADO. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. REITERAÇÃO CRIMINOSA. AUSÊNCIA DE APRECIAÇÃO DA MATÉRIA PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL E PELO STJ. DUPLA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. HABEAS CORPUS EXTINTO PELA INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. (...) HC 119645, Relator: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/02/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 27-03-2014 PUBLIC 28-03-2014. 19 HUNGRIA, Nelson. “Comentários ao Código Penal”. Vol. VIII. 4ª. edição. Forense. Rio de Janeiro. Pág. 52.

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trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. No Título sobre Direitos e Garantias Fundamentais, a CRFB/88 destacou o art. 7º para conferir status constitucional a direitos dos trabalhadores e no Título da Ordem Econômica e Financeira, informou que a ordem econômica teria como alicerces a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, e como finalidade assegurar a todos existência digna, nunca perdendo de vista o princípio da livre concorrência.20 Acredita-se que seja dentro dessa perspectiva constitucional e construção legislativa que o aliciamento deve ser conceituado, sendo compreendido como a prática empresarial composta pelo conjunto de atos previamente ordenados por um concorrente com o propósito de persuadir um empregado ou prestador de serviço a deixar o seu emprego/contrato de serviço para passar a laborar para o concorrente, de forma direta ou indireta. Dentre esses atos ordenados estão a sedução, a provocação, a incitação e o convencimento, que ocorrem necessariamente da promessa de recompensa, melhores condições de vida e benefícios pecuniários.21 A abordagem pontual de um trabalhador para recrutamento, realizada por um empresário ou seu preposto, não é necessariamente considerada aliciamento. A assertiva decorre da livre iniciativa e do livre trabalho, previstos pela CRFB/88, que assegura a qualquer cidadão a busca por melhorias no trabalho. Portanto, o recebimento, a análise, a negociação, a recusa ou a aceitação de proposta da concorrência são direitos do trabalhador. O vedado é a adoção de atos contínuos e incisivos que seduzem o trabalhador da concorrência. Dentro dessa mesma concepção constitucional, é indispensável que o aliciamento seja examinado casuisticamente e com prudência, relevando-se os fatos que envolvem a abordagem com promessa, ponderando-se as peculiaridades dos atos dos aliciadores, os seus efeitos no mercado e as práticas costumeiras.

Recomenda-se que seja examinado inclusive o grau de concorrência do mercado em exame e as suas necessidades, tal como a escassez ou abundância temporária de mão de obra. Mesmo com a recomendação de análise casuística dos fatos envolvendo o alegado aliciamento, não seria incorreto afirmar que ele passa necessariamente por atos de sedução22, “truques com arte” ou em atos contínuos ou esporádicos, mas sempre deliberados para convencer um trabalhador/prestador de serviço a adotar um comportamento específico que normalmente não seria adotado. O comportamento comissivo do aliciamento envolve um conjunto de abordagens e propostas indecentemente satisfatórias, que interferem no poder decisório do empregado-aliciado,23 independentemente de propostas de melhoria de vida serem verdadeiras ou prática de fraude. Nesse mesmo sentido, aliciamento pode assumir uma roupagem mais específica quando enquadrada como um tipo penal, nos termos do art. 206 e 207 do CP ou mais ampla conforme previsto no art. 608 do Código Civil, em que o aliciamento passa a ser uma a conduta de um indivíduo que tenta persuadir outro a praticar um ato, que já havia sido acordado com um terceiro, não mais para aquele terceiro, mas para si (o indivíduo persuasivo).24 O Código Civil traz em seu art. 608 uma disposição similar à da proibição de aliciamento de empregados25, pois veda o aliciamento de prestadores de serviços que já tenham se obrigado, por contrato escrito, a prestar os mesmos serviços a outrem. Trata-se de dispositivo que extrai fundamento do princípio da boa-fé e na função social do contrato, que o Código Civil pretendeu preservar de forma abrangente. Veja-se que o Código Civil resguarda a liberdade do prestador de serviço, uma vez que ele não estará impedido de desfazer o ajuste, e ainda o exime de responsabilidade extracontratual por eventual reparação de danos. O terceiro prejudicado terá direito à reparação, mas caberá ao aliciador, como consequência de seu ato, pagar a indenização pré-fixada equivalente à remuneração que o prestador de serviço receberia durante dois anos pelo pacto desfeito com o terceiro. Note-se ainda que, como a indenização é pré-fixada, não há necessidade, preliminarmente, de o terceiro lesado demonstrar a extensão do dano. Porém, não é qualquer pessoa que pode ser aliciadora para fins do Código Civil. A ratio desse dispositivo é proibir a figura do “terceiro cúmplice”26. Para ser

Coube ao legislador infraconstitucional encontrar uma forma de harmonizar esses dois valores máximos do Estado brasileiro. Se por um lado, não seria possível restringir o direito do cidadão ao trabalho, de outro lado, tampouco seria possível impor óbices desnecessários à livre concorrência ou à livre iniciativa. Assim, o equilíbrio entre esses dois princípios foi encontrado sob a forma de exigência de condutas que respeitassem a lealdade e a boa-fé nas relações sociais e jurídicas. Foi exatamente com esse intuito que se criou a proibição ao aliciamento de empregados. Veja-se BARROS, Cássio de Mesquita. Cláusula de não-concorrência no contrato de trabalho. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, Vol. 8/2001, p. 22-36, Jul-Dez/2001. DTR\2001\326 21 Entende-se o aliciamento como a prática de “seduzir, incitar com promessas, enganar quase sempre para o fim ilícito”. Vide “Enciclopédia Saraiva do Direito”. 1978. São Paulo. Vol. 6. Pág. 39. Podem ser inseridos no conceito desse ilício a contratação com o propósito de apropriação indevida de informação tecnológica do concorrente, o recrutamento por meio do adiantamento de pequena parte em dinheiro ao trabalhador emigrante, para atender de imediato às suas necessidades, mas com obrigação de reembolso etc. O simples ato preparatório da emigração, da transferência para outro território e para outro concorrente é incriminado como aliciamento na lei civil e penal. HUNGRIA, Nelson. In Op. Cit. Págs. 51-52. 20

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Etimologicamente “seduzir” vem do latim “seduction” ou ação exercida por meio de pressões sociais ou biológicas para convencimento. https://pt.wikipedia.org/wiki/ Sedu%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 25/03/2016. 23 GRECO, Rogério. “Curso de Direito Penal. Parte Especial”. Vol. III. 9ª. edição. Editora Impetus. Niterói/RJ. Págs. 424 a 426. 24 Na legislação infraconstitucional, a vedação à persuasão de alguém para praticar um ato em detrimento de outrem se encontra prevista ainda na Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé). 25 Dispositivo similar existia no art. 1.235, do Código Civil de 1916, que se ocupava com atividades rurais, essenciais para o desenvolvimento econômico brasileiro à época. 26 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Doutrina do terceiro cúmplice: autonomia da vontade, o princípio res inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia 22

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considerado aliciador, o indivíduo persuasivo deverá ter (i) conhecimento prévio do contrato anterior e (ii) vontade manifesta de aliciar27. Pode-se agregar a esses critérios o caráter concorrencial, pois a sedução e o recrutamento de mão de obra alheia pressupõem o conhecimento dos serviços executados na concorrência e o valor dos serviços para as suas necessidades. Silvio Venosa relata que vários aspectos devem ser analisados para a caracterização do aliciamento de mão de obra alheia (chamamos de espécie de aliciamento de empregado) e cômputo da indenização, dentre elas a verificação da prestação exclusiva ou não dos serviços, como segue:28

de serviço ou empreitada); (ii) o terceiro aliciador, normalmente concorrente do empregador ou do contratante dos serviços, sujeito ativo do aliciamento, (iii) o empregado ou prestador aliciado relevante, sujeito passivo da conduta praticada; (iv) o empregador do aliciado, prejudicado pelo aliciamento; (v) a conduta sedutora específica e baseada em “truques com arte” com promessas de benefícios e (vi) aliciador deve oferecer recompensas em valor superior ao do empregador.

“Há, no entanto, aspectos que devem ser considerados no caso concreto: a especialidade ou não da prestação; o grau de especialização do sujeito; a exclusividade nessa prestação de serviços etc. Se não há cláusula de exclusividade e o prestador continua a atender eficazmente a ambos contratantes, por exemplo, não haverá, em tese, possibilidade de indenização. Há prestação de serviço cuja atividade é precipuamente atender a vários clientes. No entanto, imagine-se a situação de técnico, de alta especialização, que se vincula com exclusividade para a manutenção de um equipamento perante um dono do serviço. O aliciamento por terceiro, concorrente no mesmo mercado, nesse caso, gerará dever de indenizar”.

A conclusão a que se chega é a de que a prática de aliciamento de empregado é vedada no ordenamento jurídico quando estiver individualizada e quando houver risco de concorrência desleal. Inexiste aliciamento se houver a abordagem e sedução de pessoas indeterminadas, bem como de maneira abrangente e genérica e sem conexão com as atividades similares. Mais ainda, deve ocorrer necessariamente uma abordagem específica a um empregado importante (não exerce atividades corriqueiras), bem como o oferecimento de vantagem superior ao do empregador concorrente29. Face à discussão até aqui realizada, pode-se identificar alguns elementos determinantes para a caracterização do aliciamento de empregados, quais sejam: (i) a pré-existência de uma relação trabalhista ou de prestação de serviço (locação

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na execução dos negócios jurídicos, Revista dos Tribunais, Vol. 821/2004, p. 80/98, Mar/2004, DTR\2004\919 27 TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado conforme a constituição da república. Vol. II, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. P. 339/341 28 In “Direito Civil. Contratos em Espécie”. Vol. 3. 3ª. ed. Editora Atlas. São Paulo. Págs.191-192.Op. Cit. 27. Pág. 192. O aliciamento de técnicos e a indenização prevista no art. 608 pode não se concretizar quando não são especializados e a atividade do prestado consiste essencialmente em atender vários contratados ou clientes. TEPEDINO, Gustavo et al. “Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República”. Vol. II. Ed. Renovar. 2006. Rio de Janeiro. Pags sobre comentários ao art. 608 C.C. 29 Ver caso Embraer x Gulfstream: http://economia.estadao.com.br/noticias/ mercados,embraer-processa-a-gulfstream-por-funcionarios,20060912p16999 , acesso em 21 de março de 2016.

O Aliciamento no Ambiente Concorrencial e Apropriação Tecnológica A identificação dos elementos formadores da prática de aliciamento de empregados e o tratamento jurídico ganham contornos adicionais em vista do aumento da concorrência e da dependência da competitividade empresarial no desenvolvimento de novas tecnologias. Em um ambiente competitivo, empresários buscam utilizar todos os instrumentos para a atração de clientela. Assim, empresários não medem esforços para eliminar concorrentes e tornarem-se a única opção dos consumidores em um mercado relevante.30 Neste contexto, os empresários encontram-se resguardados pela CFRB/88 e pelas legislações ordinárias ao exercerem os seus recursos competitivos para expandir-se no mercado. No entanto, quando adotam atos que desvirtuam a lealdade concorrencial ou expressam a apropriação fraudulenta de intangíveis e clientela (também chamada de ‘dirty tricks’)31, as legislações de combate à concorrência desleal são chamadas para a correção e a retomada da ética concorrencial. Podem ser coletados da doutrina e jurisprudência, os pressupostos para a constatação da concorrência desleal, valendo-se ressaltar os ensinamentos de Carlos Alberto Bittar, que identificou os seguintes elementos caracterizadores de atos desleais: (i) ato contrário à concorrência, relevando-se a agressividade competitiva e a peculiaridade de cada mercado; (ii) existência de colisão de interesses em função de concorrência mercadológica; (iii) comprovação de clientela, mesmo aquela em potencial e (iv) a constatação da negligência, imprudência e imperícia do concorrente desleal.32 Quando o êxito de um empreendedor decorre da eficiência, mesmo que esse sucesso restrinja a concorrência, exsurge um resultado positivo para a coletividade. Com o êxito, todos os empresários passam a receber estímulos constantes para aperfeiçoar a sua capacidade competitiva. O consumidor converte-se em destinatário final dos benefícios da regularidade desse processo. DIAS, José Carlos Vaz e. “Enquadramento e Tratamento da Prática de Preço Predatório no Brasil”. Revista de Propriedade Intelectual – Direito Contemporâneo e Constituição. Vol. 1. 2014. Pags. 249-278. 31 DELMANTO, Celso. “Crimes de Concorrência desleal”. Editora da Universidade de São Paulo. 1975. São Paulo. Págs. 3 a 30. 32 In Teoria prática da concorrência desleal. Atualizador Carlos Alberto Bittar Filho. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 49 30

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Face aos pressupostos de constatação especificados no parágrafo anterior, o aliciamento de empregados pode ser enquadrado como ato de concorrência desleal. Relembre-se que o aliciamento é um conjunto de atos contínuos e deliberados para convencer o empregado a romper a sua relação com terceiro e unir-se ao concorrente-aliciador. A concatenação direcionada de atos de sedução é ensejadora da caracterização da conduta de antijuridicidade, principalmente por envolver astúcia e atos ardilosos, sendo importante relevar, no entanto, que a oferta comum de trabalho para empregado da concorrência não é classificada em um primeiro momento um ato lícito.33 Recomenda-se o exame casuístico da situação ensejadora do aliciamento.34 Ainda, é dispensável a comprovação do dolo ou fraude por parte do concorrente, sendo apenas necessária a atitude ativa ou passiva de causação de dano a terceiro. Essa assertiva mostra-se coerente com a Teoria dos Atos Ilícitos, que rege o combate dos atos de concorrência desleal em face da ausência de lei específica sobre a matéria. As ações de sedução, convencimento e recrutamento de empregado/ prestadores de terceiros são direcionadas para a subtração de ativo competitivo do concorrente (o empregado individualizado), e normalmente acompanhadas de artimanhas. Assim, não pode caracterizar concorrência desleal o aliciamento de empregado irrelevante ou que exerce atividades corriqueiras. A relevância do empregado aliciado para as atividades empresariais deve ser comprovada pelo conhecimento sobre determinada tecnologia competitiva ou procedimento operacional, ou ainda pelas peculiaridades de sua função dentro da empresa ou do mercado relevante. Isso significa que a gradação do trabalhador aliciado é importante elemento para a caracterização do ilícito concorrencial sob a rubrica do aliciamento de empregado.35

Insere-se nesta gradação o empregado intelectual, que é aquele contratado por um empresário para o desenvolvimento de conhecimentos tecnológicos, nos termos do art. 88 a 93 da Lei no. 9279/96, ou o detentor de informações técnicas privilegiáveis e confidenciais. A abordagem e a tentativa de recrutamento de empregado detentor de conhecimentos técnicos ou operacionais de um empresário devem ser realizadas com muita cautela, pois podem ser enquadradas como artifício, atitude ardilosa e astuta da concorrência para usurpar e ter acesso às informações privilegiáveis competitivas ou destruir atividades tecnológicas existentes.36 Cumpre relevar que o combate de aliciamento de empregado intelectual conta com suporte de dispositivos legislativos complementares, como os incisos XI e XII da Lei 9.279/96, que vedam a violação às informações confidenciais da seguinte forma:

Conforme decisão judicial emitida pela 4ª. Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a oferta de melhores salários a funcionários altamente qualificados da concorrência não é classificada crime de concorrência desleal, como segue: “CRIME CONTRA A PROPRIEDADE INDUSTRIAL – Concorrência Desleal – Descaracterização – Agente que passa a integrar quadro de funcionários de empresa concorrente e oferece melhores salários e condições de trabalho a empregados do seu ex-empregador – Conduta característica do próprio mercado de trabalho e da livre concorrência – Interpretação do art. 195, IX, da Lei 9.279/96”. SER 1.113.859/2 – 4ª.Câm. – j. 20.10.1998 – rel. Juiz Devienne Ferraz. Publicado na Revista dos Tribunais. Ano 88. Vol. 761. São Paulo. Págs. 631-633. 34 Em acordão emitido pela 5ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, os desembargadores se debruçaram sobre vários aspectos relacionados ao aliciamento de empregados, dentre elas está o afastamento do aliciamento em vista da política de redução do quadro de funcionários adotado pelo empresário/empregador do trabalhador aliciado. Essa política de redução permitiu que empresários pudessem ofertar melhores condições de trabalho para os empregados do empregador aliciado. Acórdão em Apelação Cível no. 197.899.4/0 – Araraquara. Julgamento em 27/05/2009. 35 O recrutamento de uma atendente de telefone ou de funcionária que serve café aos empregados não seria classificado como prática ilícita, pela ausência de importância competitiva. Não obstante, o conhecimento notório da atendente de telefone da listagem

de clientes de um empresário pode ser alegado, por exemplo, para justificar a ilicitude do aliciamento dessa funcionária. 36 Essas atividades destrutivas podem ocorrer quando a contratação de empregados intelectuais objetiva dificultar ou comprometer a continuidade de pesquisas tecnológicas que garantirão um diferencial na concorrência. Conforme determinado por José Henrique Pierangeli: “O artificio distingue-se do ardil. O artificio caracteriza-se pelo emprego de um aparato que, pelo menos aparentemente, modifica o aspecto material da coisa valendo como exemplo o documento falso, o disfarce, a modificação por aparelhos mecânicos ou elétricos, enquanto o ardil caracteriza-se pela astúcia, manha, sutileza, artimanha, ardileza, e que apresenta, prioritariamente, um aspecto mais intelectual e que dirige diretamente à psique da vítima, servindo de exemplo a conversa enganosa que, às vezes, pode se caracterizar pela mentira, desde que hábil a enganar”. In “Crimes de Concorrência Desleal (Lei 9.279, de 14.05.1996 – Art. 195) ”. Revista dos Tribunais. São Paulo. Ano 86.Vol. 738. 1997. Pág. 477, 37 As informações confidenciais são dados e conhecimentos utilizáveis na empresa, que atendem a 3 (três) requisitos básicos, quais sejam: (a) novidade, não podendo o portanto, integrar o conjunto de conhecimentos já encontrado no mercado (“estado da técnica”); (ii) as informações relacionadas às atividades empresárias, não envolvem assim informações profissionais ou de natureza pessoal; (iii) ser confidenciais e não divulgadas e (iv) tratamento como informações confidenciais, sendo importante evidenciar as barreiras

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“Art. 195. Comete Crime de Concorrência quem: (...) XI - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato; XII - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se refere o inciso anterior, obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante fraude; ou”

Ressalte-se a ilicitude dos atos especificados no item XII do art. 195 da Lei n. 9.279/96, praticados mediante fraude, o que pode incluir o aliciamento de empregados com o propósito de acesso às informações confidenciais37 de concorrente.

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Chega-se, enfim, à expressa proibição de aliciamento de empregados contida na Lei nº 9.279/96. O art. 195 dessa Lei, incisos IX e X, dá exemplos de condutas relativas ao aliciamento de empregados que passam a ser expressamente vedadas pelo ordenamento jurídico. O inciso IX trata da conduta ativa do indivíduo que “dá ou promete dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando ao dever do emprego, lhe proporcione vantagem”. Já o inciso X trata da conduta passiva do empregado que “recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa, para, faltando ao dever de empregado, proporcionar vantagem a concorrente do empregador”. Revela-se, portanto, que o empregado aliciado, quando aceita a vantagem advinda do aliciamento, age como sujeito passivo da conduta de aliciamento, em prejuízo ao seu empregador, terceiro prejudicado. O estudo da prática de aliciamento de empregado para fins da Lei de Propriedade Industrial encontrase intrinsecamente ligado ao estudo dos atos de concorrência desleal, podendo, inclusive, ser compreendido que a prática de aliciamento só repercutirá no âmbito da Propriedade Industrial se, através da mesma conduta, também se verificar a prática de concorrência desleal. Isto porque, no âmbito da do Direito da Propriedade Industrial, principalmente em questões de inovação e alta tecnologia, se estará a tratar, via de regra, de profissionais bastante capacitados e com alto grau de especialização. Por isso, é necessário se atentar para o fato de o mercado de trabalho para tais profissionais ser restrito – mantendo-se, obviamente, dentro da área de sua regular atuação – sendo razoável e até mesmo esperado que, desgostoso com seu atual trabalho, o empregado procure melhor colocação no concorrente. Assim, é imprescindível que, nessa seara, seja constatado mais do que a simples abordagem de empregado. Deve-se verificar se esse aliciamento resultou em um ato de concorrência desleal, gerando, por exemplo, perda de clientela ou utilização de informações confidenciais. A título de ilustração, veja-se o seguinte julgado:

No caso acima mencionado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu lícita a saída de empregados, altamente especializados, para operar para um concorrente do antigo empregador, por meio de pessoa jurídica criada por eles. No entender dos desembargadores, não restou caracterizada a prática de ato de concorrência desleal, pois não teria sido provada a utilização de meio fraudulento para desvio de clientela, tampouco apropriação de know-how. Diante disso, pode-se apontar mais uma característica do conceito de aliciamento de empregados. Na medida em que não é qualquer empregado que tem capacidade de desviar clientela, apropriar-se de know-how ou, por exemplo, ter acesso a informações confidenciais ou segredo de negócio, o aliciamento de empregado só será vedado se o empregado aliciado for justamente um indivíduo capaz de causar esse tipo de lesão ao seu antigo empregador e, consequentemente, ato de concorrência desleal. Inclua-se aí o trabalhador intelectual. A vedação ao aliciamento de empregados, por cláusula contratual ou por aplicação de um dos dispositivos legais acima elencados, não pode ser interpretada de forma genérica ou muito abrangente, sob pena de violar a liberdade do exercício da profissão e, por conseguinte, os direitos fundamentais do trabalhador. Por isso, referida vedação só faz sentido se se limitar ao aliciamento ou à contratação de profissionais especializados ou que, por cargo ocupado, tenham grau maior de informação e, por essa razão, sejam capazes de concorrer deslealmente com a sociedade que deixariam para trás.

EMPRESARIAL. CONCORRÊNCIA DESLEAL. Ex-empregados de empresa fabricante de equipamentos de construção civil altamente especializados e destinados a grandes obras que constituem sociedade empresária de representação comercial de concorrente da ex-empregadora. Não provados emprego de meio fraudulento para desvio de clientela nem apropriação de know how – sendo, aliás, um dos ex-empregados inventor do aludido equipamento – não se caracteriza concorrência desleal. Apelo conhecido e desprovido. Unânime38.

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existentes para o acesso a terceiros não autorizados. FISCHER, Georges Charles. “Trade Secrets Protection in Brazil”. LES NOUVELLES. Dezembro de 1987. Págs. 169 a 171. 38 Apelação Civil nº 2006.001.10375. Rel. Des. Fernando Foch Lemos. 3ª Câmara Cível do TJ/RJ. j. 03/10/2006

Conclusão A fixação dos elementos formadores do aliciamento de empregados e, consequentemente, a sua definição tornaram-se relevantes em vista das imprecisões decorrentes do uso corriqueiro desta prática e exploração na mídia impressa. Existem muitas divulgações na mídia que consideram aliciamento a simples abordagem para recrutamento de trabalhador por um empresário. Isso exigiu estudo aprofundado da doutrina, jurisprudência e legislações infraconstitucionais sobre a matéria, por ser imprecisa essa definição. Para tanto, foram examinados os arts. 206, 207 do Código Penal e os incisos IX, X, XI e XII do art. 195, da Lei 9.279/96, além do art. 608 do Código Civil. O estudo particular das leis penais acima mencionadas foi fundamental para a compreensão do aliciamento de empregados, visto que os tipos penais fornecem necessariamente os elementos normativos da conduta prevista e as finalidades específicas exigidas pela lei. Vê-se com clareza, também, que a vedação à conduta de aliciamento de empregado prevista no Código Penal teve seu escopo ampliado e objetivou também impedir fraudes (atrelando de alguma forma os elementos da concorrência desleal), assegurar a manutenção de atividade produtiva, resguardar o trabalhador e proteger o bem maior da valorização do trabalho humano para uma existência digna. Essa constatação foi relevante face à realidade de intensa concorrência no mercado brasileiro e a liberdade para os agentes econômicos

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O Aliciamento de Empregados: Conceito e Características. Seria essa prática uma nova forma de apropriação de informações Confidenciais da Concorrência?

utilizarem quaisquer instrumentos comerciais para buscar um diferencial competitivo. Aspecto importante, também, que o aliciamento envolve necessariamente a sedução de empregado qualificado e relevante para as atividades empresárias, incluindo aí o trabalhador intelectual. Portanto, a sedução e o recrutamento de trabalhador com atividades corriqueiras não poderia ser enquadrada, em um primeiro momento, prática de aliciamento, a não ser nas hipóteses específicas nas leis penais. Assim, conclusão a que se chega é a de que a prática de aliciamento de empregado é vedada no ordenamento jurídico quando ela for individualizada e quando houver risco de concorrência desleal. A abordagem de pessoas indeterminadas, de forma abrangente e genérica, não deve ser considerada aliciamento de empregado. Há que necessariamente ocorrer uma abordagem específica a um empregado importante, a sedução e o oferecimento de vantagem superior ao do empregador concorrente39.

Os Sete Pecados do Discurso e da Prática Jurídica sobre Políticas Públicas no Brasil1 José Vicente Santos de Mendonça2 Resumo O artigo, ao reconhecer o amadurecimento do debate acadêmico e da prática jurídica a respeito das políticas públicas, identifica, propositivamente, sete problemas a eles associados: o irrealismo na representação dos poderes; a preferência pela argumentação teórica abstrata; a rejeição por elementos numéricos/objetivos; o uso de razões não públicas; a confusão entre políticas públicas e políticas executadas diretamente pelo Estado; a pouca ousadia na estrutura técnica das decisões judiciais; a pouca ousadia no acompanhamento da execução de decisões judiciais sobre políticas públicas. Palavras-chave: Políticas públicas; judicialização; direito constitucional. Abstract At the present stage, Brazil has established a tradition on Law and public policies at practical and theoretical levels. However that might be, the paper identifies seven problems on that state of things: Executive, Legislative, and Judiciary are unrealistically represented by legal scholars and legal opinions; there might be some preference, on legal opinions deciding public policies, for highly abstract narratives; judges and legal scholars might not be too familiar with numbers and fact-driven reasoning; some legal opinions on public policies might use non-public reasons; there might be some confusion between public policies and policies directly implemented by the government; finally, legal opinions solving public policies issues might be too structurally timid and inconsistently supervised. Keywords: Public policies; judicialization; constitutional law.

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Ver caso Embraer x Gulfstream: http://economia.estadao.com.br/noticias/mercados,embraer-

146 processa-a-gulfstream-por-funcionarios,20060912p16999, acessado em 21 de março de 2016.

A base deste artigo é palestra que ministrei na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ – no dia 28 de agosto de 2015, a convite de seu Fórum Permanente de Direito Constitucional, presidido pelo desembargador Nagib Slaibi Filho, e cuja mesa, na ocasião, restou presidida pelo advogado Leandro Mello Frota. Agradeço a ambos pelo convite. A íntegra da palestra pode ser assistida no seguinte link: . O processo de edição consistiu na transcrição integral da palestra, feita pelo acadêmico de Direito Raphael Corrêa Werneck, a quem igualmente agradeço. Em seguida, reestruturei a redação dos parágrafos, de modo a adaptar o tom do texto ao registro escrito, e inseri algumas poucas notas de rodapé. Professor adjunto de Direito Administrativo da UERJ. Professor da Universidade Veiga de Almeida (RJ). Mestre e doutor em Direito (UERJ). Master of Laws pela Universidade de Harvard (EUA).

José Vicente Santos de Mendonça

Os Sete Pecados do Discurso e da Prática Jurídica sobre Políticas Públicas no Brasil

Oportunidade do tema: a ADPF 347 e o estado de coisas inconstitucional

Introdução: direito e políticas públicas, tema clássico e sempre atual

Partindo-se do tema do painel – Regulação e Políticas Públicas –, poderse-ia escolher várias abordagens. A opção, aqui, é por não ingressar em detalhes técnicos, em prol de exposição acessível. A ideia é realizar apanhado, tanto na teoria quanto na prática, sobre o assunto do controle judicial das políticas públicas. A apresentação se chama Os Sete Pecados do Discurso e da Prática Jurídica sobre Políticas Públicas no Brasil. O debate mostra-se oportuno porque, ontem, divulgou-se o voto do ministro Marco Aurélio em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, instada pela Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, que busca influenciar as condições dos presídios brasileiros.3-4 A ADPF identifica situação de bloqueio institucional, em que as forças políticas não contam com incentivos para melhorar as condições dos presídios. É assunto em relação ao qual a representatividade popular do nosso sistema político encontra limite: o tema é impopular, não traz voto, não elege quem se envolve na defesa dos encarcerados. São diversos os pedidos da ADPF, mas o principal é o não contingenciamento de verbas destinadas à política prisional. O ministro Marco Aurélio deferiu quase todos os pedidos, e o julgamento da ADPF foi suspenso. Provavelmente, a decisão da ADPF servirá de leading case para o assunto do controle judicial de políticas públicas no Brasil. O voto do ministro Marco Aurélio já trata de temas sofisticados no debate sobre políticas públicas, incorporando a experiência do direito comparado, nomeadamente a da jurisdição constitucional da Colômbia com a noção de “estado de coisas inconstitucional”.5

O debate na academia jurídica sobre políticas públicas é tradicional. Ocorre há mais de vinte anos. Há autores clássicos, dentre os quais Maria Paula Dallari Bucci, autora de tese de livre docência sobre o assunto.6 Existem, ainda, programas de Pós-Graduação que se dedicam a debater a interface entre Direito e políticas públicas. No programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ, nos anos noventa até o início dos anos dois mil, sob influência do professor Ricardo Lobo Torres, muito se discutia a respeito da judicialização dos direitos sociais.7 A UNB tem atuação na área. A USP, capitaneada pela professora Maria Paula Bucci. No Sul, há a Escola Sulista de Direitos Fundamentais, tendo à frente o professor Ingo Sarlet.8 Há programa na UNIRIO cuja linha é especificamente essa: “Direito e Políticas Públicas”.9 O debate na academia de direito concentra-se, basicamente, em três temas: (i) a conceituação do que é política pública para o Direito; (ii) o papel do Judiciário vis-à-vis a implementação de políticas públicas; e, nos últimos anos com maior força, (iii) estudos de caso. Nos últimos anos, houve, também, aumento da influência do direito comparado. Na última década, o debate sobre direito e políticas públicas vem se abrindo à academia internacional – não apenas americana ou europeia, tradicionalmente influentes em nosso direito.10 Há hoje alguma influência, por exemplo, da Universidade Católica do Chile, e, também, de autores da Colômbia, para não falar da jurisprudência de sua suprema corte, fonte, por exemplo, da noção de estado de coisas inconstitucional. O debate sobre políticas públicas e direito encontra assim novas fronteiras geográficas, seja na América Latina ou mesmo na África do Sul, com seu processo de constitucionalização e judicialização recentes. O fenômeno ocorre muito em função do acesso à informação permitido pela internet e da internacionalização da academia jurídica brasileira. Quanto à prática jurídica das políticas públicas, é de se notar que, desde a constituição de 1988, houve notável incremento da judicialização

Trata-se da ADPF 347, cuja medida cautelar, deliberada pelo pleno do STF, foi julgada em 9 de setembro de 2015. O voto do ministro Marco Aurélio pode ser obtido no seguinte link: . Acesso em: 16 de março de 2016. 4 O trabalho da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ pode ser conhecido a partir do seguinte link: . Acesso em: 16 de março de 2016. 5 Em que pesem as palavras fortes na fundamentação dos votos, a decisão do STF na ADPF 347 talvez não haja cumprido todas as potencialidades contidas na petição inicial da demanda. Em outras palavras, a ADPF 347 é, por assim dizer, o leading case para a fundamentação e para a proposta de litigância estratégica, mas não o é para a decisão tomada pelo Supremo. As cautelares que restaram deferidas dizem respeito, apenas, à realização de audiências de custódia e ao descontingenciamento das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. Temas importantes, sem dúvida, mas que já estavam em curso de solução. Para visão crítica da decisão do Supremo, cf. GLEZER, Rubens; MACHADO, Eloísa. Decide, mas não muda: o STF e o Estado de Coisas Inconstitucional. In: JOTA. Acessível em: . Acesso em: 16 de março de 2016. O “estado de coisas inconstitucional” é tema da tese de doutorado do professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos na Faculdade de Direito da UERJ. V. Da Inconstitucionalidade por omissão ao Estado de Coisas Inconstitucional. Rio de Janeiro: UERJ, 2015. Mimeo. 3

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  Cf. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002; BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013. 7 Na produção do período, v., por todos, TORRES, Ricardo Lobo (Org.). A Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 8 Cf. SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. 9 Cf.: . Acesso em: 18 de março de 2016. 10 Por exemplo, com a expressiva influência do filósofo norte-americano Ronald Dworkin e do teórico alemão de Direito Público Robert Alexy.

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de políticas públicas. O grau hoje é tão intenso que se nota quase que uma “hiper-judicialização” da sociedade e da política. Alguns afirmam que o Brasil é dos países mais judicializados do mundo. Em artigo, Oscar Vilhena Vieira identifica parte do processo.11 Aliás, o Supremo Tribunal Federal possui poderes não encontrados em outras jurisdições. Contamos com uma sociedade e uma política judicializadas como poucas, e temos, também, órgão de cúpula do Judiciário com poderes como nenhum outro. Isso, é claro, traz consequências positivas e negativas. Nesse cenário, de prática intensa e academia consolidada, é possível fazer diagnóstico de alguns de seus problemas. Eis a proposta: identificar sete aspectos problemáticos concernentes à teoria e à prática da judicialização de políticas sociais no Brasil. Não apenas identificar problemas, mas, também, sugerir algumas soluções.

O problema de o discurso sobre políticas públicas ocorrer apenas entre operadores do direito é limitar o debate a categorias já conhecidas. Contudo, ele pode e deve ser mais amplo. É necessário que o jurista se abra para as contribuições da ciência política e da sociologia. É necessária visão mais ampla e complexa sobre os poderes, preferencialmente fundada em dados empíricos. Os poderes não podem ser tratados sob a ótica dos estereótipos, nem o debate se limitar a um idioleto profissional.

Os sete pecados do discurso e da prática jurídica sobre políticas públicas no Brasil Irrealismo na representação dos poderes A narrativa jurídica tradicional no debate sobre políticas públicas representa os poderes de forma irrealista. O Judiciário costuma ser hiper-representado. O juiz, e o juiz constitucional em especial, é visto como herói civilizador. O poder judiciário é representado, por vezes, como um campeão moral. Enquanto isso, há uma sub-representação do Executivo e do Legislativo, apresentados como sub-poderes. O Executivo e o Legislativo não são, por assim dizer, levados inteiramente a sério, usando expressão que se tornou famosa a partir de Ronald Dworkin.12 A consequência disso é que o debate acaba concentrado na mão dos atores do direito (juízes, advogados, defensores, promotores e estudantes de direito), com redução do pool de informações disponíveis e, por consequência, da complexidade do debate. O debate acaba restando excessivamente juridicizado. Ora, nem Executivo e Legislativo são poderes toscos, nem o Judiciário é composto de heróis civilizadores. Todos são instituições humanas e, daí, complexas, atuando segundo padrões de incentivo diferentes. O Legislativo, por exemplo, conta com um padrão de incentivos que o leva a decidir com certa generalidade. Ele não tem como tomar decisões morais complexas de modo muito específico, pois isso pode levar à perda de votos. Isso pode ser interpretado como “falta de coragem” dos congressistas. O Judiciário goza de garantias de imparcialidade, o que o leva a decidir de forma mais específica, mas isso não o torna um campeão moral, nem o Legislativo um pária: trata-se de resultados havidos a partir de mecanismos institucionais diferentes. VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. São Paulo: Revista Direito GV, 4 (2) (2008), pp. 441-464. 12 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 11

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Preferência pela argumentação abstrata Algumas manifestações judiciais sobre políticas públicas decidem apenas com base em argumentos teóricos de filosofia política e moral. Decide-se, por exemplo, de acordo com um ideal de igualdade redistributiva ou de dignidade humana. A impregnação da prática jurídica brasileira pela filosofia política e pela filosofia moral é salutar. De fato, o conhecimento sobre direito no Brasil sempre buscou saberes de apoio. Nos anos cinquenta e sessenta, o direito público se apresentava como história das instituições feita por diletantes. Depois, as simpatias interdisciplinares foram se alterando. Hoje, há aproximação com a filosofia moral e política, havendo indícios de que se esteja caminhando em direção à psicologia social e à ciência política. O problema de se decidir apenas com base num princípio moral é o seguinte: nem todo mundo precisa concordar com ele. Aliás, nem todo mundo sequer precisa conhecer o padrão de argumentação. Há, então, um problema no controle da decisão. Não necessariamente se consegue recorrer de decisão que opera conforme a um ideal de igualdade complexa: trata-se de noção filosófica, e não de um conhecimento jurídico compartido. Ocorreu sofisticação da academia jurídica, aproximando-se da filosofia política e da filosofia moral, mas isso, em certos momentos, gera complexidade insuperável no controle dos argumentos jurídicos tomados como base para as decisões judiciais. Reagindo a isso, há projeto de lei, de iniciativa do senador Anastasia (PSDB-MG), que pretende incluir dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O projeto é oriundo de trabalho dos professores Carlos Ari Sundfeld (FGV-SP) e Floriano Figueiredo Marques Neto (USP).13 No projeto, esboça-se reação a esta preferência pela argumentação abstrata. Logo seu primeiro artigo já afirma que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão”. Se o projeto de lei for aprovado e sancionado, o juiz não poderá decidir com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências da decisão. É reação à tendência de se ingressar numa discussão sofisticada, mas, por vezes, desenraizada de consequências. 13

Trata-se do projeto de lei do Senado n. 349/2015.

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Por outro lado, pode-se legitimamente questionar se o juiz consegue o analisar as consequências concretas. Qual será o padrão metodológico para tanto? Será que essa prognose judicial conta com ferramentas adequadas? Esse já é outro assunto. O que o projeto de lei quer dizer é: o curso do debate jurídico nos últimos anos, e que, por vezes, baseia-se em padrões filosóficos abstratos, descola-se da realidade. Há que se limitar isso. Observe-se que isso é só uma tendência. Não se quer afirmar que toda decisão judicial sobre política pública incorpora o padrão, ou que se deve ignorar toda e qualquer reflexão sobre filosofia política. O que se critica é o excesso, e não a proximidade.

Trata-se de proposta para o futuro. Algumas graduações mais modernas já incorporam a ideia de interdisciplinaridade, mas esse não é o padrão básico do graduando em direito. O padrão-ouro da formação profissional em direito ainda é o “jurista”; o douto que escreve tratados; o erudito que conhece ilustres autores estrangeiros.14 Mas, quando se tratar de experimentar a interdisciplinaridade, é importante que ela seja de verdade. Ela não pode se reduzir ao lip service, mera referência ligeira a outros saberes, para, então, ingressar-se no conhecimento dogmático, o único “verdadeiramente jurídico”. Por exemplo: quando se trata, no Direito Administrativo convencional, a respeito da garantia do equilíbrio econômicofinanceiro dos contratos administrativos, nada se fala sobre o significado econômico da noção. O equilíbrio econômico-financeiro, se for explicado apenas como a garantia das condições da proposta, reduz-se a uma platitude. A mudança de formação é a proposta para o futuro. E para o momento presente? Se de fato houver tal assimetria de informação, o caminho é o prestígio ao apoio de economistas, estatísticos, contadores etc., e a abertura ao contraditório técnico. Se o juiz de direito, na seara das políticas públicas, tornase um juiz de consequências, ele precisa estar aberto para o contraditório técnico sobre quais serão essas consequências. Um debate sobre consequências é complexo, mas permite racionalidade maior do que o debate ocorrido puramente no terreno da abstração.

Preconceito/ignorância quanto a elementos objetivos

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Advogados e juízes, assim que encontram algum elemento numérico nos autos, em regra invocam o trabalho do contador. Juristas têm certa resistência a tabelas e padrões numéricos, o que se torna um problema no debate sobre políticas públicas. Isso encontra explicação, ainda que parcial, na formação jurídica brasileira. Sem pretender idealizar modelos – sempre postura ingênua e reducionista –, pode-se buscar identificar, por contraste, a situação dos Estados Unidos. Lá, a formação jurídica é uma Pós-Graduação profissional, um juris doctorate (J.D.), com duração de três anos. Antes, o aluno passou por um college e já é graduado em algo. Em regra, para as principais escolas de direito, a formação básica do futuro advogado envolve estudos de ciência política, matemática ou economia. No Brasil, por sua vez, a graduação leva cinco anos, e estudos próximos à quantificação ocupam pouco espaço (provavelmente vêm sob a forma de algum curso de introdução à economia oferecido nos períodos iniciais). O próprio perfil do graduando em direito é o do estudante que, no ensino médio, não gostava de matemática. É possível cogitar, assim, de uma rejeição de base, por parte do graduando brasileiro, a dados, matemática, estatística. É plausível cogitar, portanto, que operadores institucionais do direito sejam, em sua maioria, pessoas que gostam de argumentos abstratos, preferindo narrativas “literárias” em detrimento a dados. Há, nisso, possíveis repercussões problemáticas. Julgadores acabam tendo alguma deficiência ao apreciar números. Por sua vez, tratar de políticas públicas é, em muitos casos, lidar com padrões concretos de justiça redistributiva; o debate frequentemente envolve argumentos práticos quanto ao resultado – argumentos eventualmente estatísticos/matemáticos. Qual a solução? Uma possibilidade é a mudança na formação do operador do direito: o advogado do futuro seria, então, menos um filósofo e um dogmático, e mais um filósofo amador, um dogmático profissional e alguém minimamente versado em economia. Ele deveria ter alguma exposição a estatística e contabilidade, sem falar, idealmente, em algum conhecimento de ciência política.

Uso de razões não públicas (ideológicas ou morais) É frequente que decisões sobre políticas públicas não se fundem em razões públicas, mas sim em razões não públicas, sejam ideológicas ou morais.15 A adoção de uma política pública incorpora uma visão de mundo num sentido ou em outro. Isso gera tensão com a ideia de imparcialidade do julgador. De pronto, não cabe ao Judiciário declarar inconstitucionalidade de leis que adotam visão diversa daquela que tem o julgador. Existe algum grau de influência ideológica, – o juiz tem alma –, mas deve se ressaltar-se ideia de pretensão de neutralidade do juiz. Há, é claro, posições morais controversas, incorporadas em políticas públicas, que são, também, excludentes. Elas implicam grave redução da situação de fato de certos grupos. Tais políticas públicas devem ser declaradas inconstitucionais Sobre o ponto, permita-se a referência a MENDONÇA, José Vicente Santos de. O fetiche do jurista e por que ele deve acabar. Portal Direito do Estado. Acessível em: . Acesso em: 19 de março de 2016. A respeito da mudança de perspectiva das graduações, desenvolver em MENDONÇA, José Vicente Santos de. A verdadeira mudança de paradigmas do Direito Administrativo brasileiro: do estilo tradicional ao novo estilo. In: Revista de Direito Administrativo. V. 265. Belo Horizonte: editora Fórum, 2014. pp. 179-198. 15 Sobre a noção de razão pública, v. RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000.

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à luz da isonomia e da ideia de democracia inclusiva. Mas decisões morais controversas, mas não excludentes, e que, talvez não correspondam às opiniões da maioria, quiçá às do julgador, devem ser respeitadas porque, em sua controvérsia, plasmam a cara e a cor da democracia brasileira. Por exemplo: embora exista proposta de regulamentar a prostituição como profissão formal no Brasil, não parece adequado propor ADPF para, com base em algum suposto direito fundamental, determiná-lo. Afinal, há uma decisão moral no não deliberar sobre uma lei geral de prostituição. Essa decisão, embora não reflita a opinião de todos, é minimamente aceitável: existem razões – que não implicam grave exclusão prática de grupo – para não regulamentar a prostituição. Uma coisa, no entanto, é não institucionalizar a atividade como profissão; outra é não oferecer saúde e previdência (o que implicaria exclusão do grupo). Tal decisão moral controversa não é sindicável: não se pode fazer de pauta moral individual, pela via da judicialização de políticas públicas, pauta moral obrigatória para sociedades complexas. Opiniões morais trazem, por definição, alta convicção sobre sua certeza. Elas são, em si, cativantes, mas isso não significa que devam equivaler ao padrão de comportamento da sociedade. No caso Lochner v. Nova Iorque (1905), clássico do direito constitucional norte-americano, julgou-se, na Suprema Corte, a constitucionalidade de lei do estado de Nova Iorque que estabeleceu carga horária de trabalho aos padeiros. A lei foi declarada inconstitucional por violação à livre iniciativa, interpretada esta conforme uma doutrina econômica liberal, de laissez faire.16 Ocorre que a doutrina econômica liberal não está plasmada no corpo da constituição americana, nem, tampouco, na da brasileira. Nelas igualmente não está inscrita a doutrina econômica intervencionista. A constituição econômica brasileira é a constituição de todos, não dos liberais ou dos socialdemocratas. A constituição é uma estratégia de agregação de diferentes. Justamente por isso, ela se abre a diversas mundivisões. É uma constituição de inclusão, não de exclusão. A decisão em Lochner v. Nova Iorque foi tomada pela Suprema Corte dos EUA com base numa interpretação partidária da livre iniciativa. Há voto vencido nesse julgamento, do justice Oliver Wendell Holmes, que demonstra qual deve ser a postura do juiz em face de questão moral controversa: Uma constituição não é construída com o propósito de incorporar uma específica teoria econômica, seja o paternalismo e a relação orgânica do cidadão para com o Estado, seja o laissez-faire. Ela é feita para pessoas que possuem visões fundamentalmente diferentes, e o acidente de consideramos algumas opiniões naturais e familiares, e outras novas e chocantes, não deve ser suficiente para concluirmos que as leis que as incorporem são contrárias à Constituição dos Estados Unidos. A legislação infraconstitucional, por vezes, toma decisões moralmente controversas e, salvo quando excludentes, produtoras de segregação direta, devem ser preservadas, em respeito à ideia de pluralismo que pauta a constituição de 1988.

Logo, ao apreciar lei que incorpore determinada visão moral controversa, existe um dever para o juiz de não se deixar influenciar por sua própria mundivisão, o que é difícil, mas, por isso mesmo, deve ser buscado. Uma sugestão é que a minuta de decisão, em casos quetais, seja apresentada a outro juiz, com o qual o redator não compartilhe da mesma cosmovisão. A ideia é moderar opiniões. A diversidade deve ser estimulada, evitando-se que perspectivas parciais sejam naturalizadas e, a partir daí, universalizadas. No choque de ideias surge a moderação. Existem estudos que demonstram que painéis de juízes que pensam diferente operam com seus integrantes moderandose entre si.17 Lembremo-nos de que a moderação, desde Montesquieu, é virtude republicana por excelência.18

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Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905). O caso pode ser lido em: .

Confusão entre políticas públicas e políticas executadas diretamente pelo Estado O debate sobre políticas públicas limita-as, tradicionalmente, às políticas executadas diretamente pelo Estado. A verdade, entretanto, é que nem toda política pública é assim. Existem políticas públicas que têm o toque do Estado, mas que ele não presta diretamente. Assim, por exemplo, uma política de reforço à autorregulação de certo setor, de credenciamento de atividades. Deixar o Uber funcionar - um não fazer público - pode ser visto como uma política pública de apoio à inovação. Se o foco do debate sobre políticas públicas é sempre o Estado e a ação estatal, o risco é tornar-se estatocêntrico, no que atua um viés posicional: o Estado falando sobre o Estado. É necessário pensar na sociedade, imaginar soluções autorregulatórias, de credenciamento, de mercado de reputação, soluções em que pode estar envolvido o Estado (por ex., para credenciar ou validar), mas não como prestador. Por vezes, cai-se em falso dilema: discute-se se é mais ou menos Estado, mas a solução pode ser a sociedade pelo Estado. Esse é um caminho possível: pensar políticas públicas também pelo olhar e pela prática da sociedade. Por mais que seja essencial a atuação do Estado na democracia brasileira – que é radicalmente desigual –, é importante pensar políticas públicas também a partir da sociedade, empoderando soluções imediatamente sociais, que não partam imediatamente do Estado, mas que o permeiem e o atravessem.

Pouca ousadia na estrutura das decisões Há relativamente pouca ousadia na estrutura das decisões sobre políticas públicas no Brasil. Parecem de fato equivocados os pedidos, por vezes formulados pelo Ministério Público e direcionados a, por exemplo, pequenos municípios, para 17 18

SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2003. MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Saraiva, 2008.

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que, em pouco tempo, sejam construídas dez escolas públicas. Decisão judicial não é varinha de condão. Mas a questão não precisa e não deve ser colocada dessa forma. A decisão não precisa ser radicalmente “sim” ou “não”, e pensar assim é adotar raciocínio limitante. A decisão judicial pode impor deveres alternativos, obrigações temporalmente limitadas etc. Ou seja: num campo escorregadio e experimental como o da judicialização de políticas públicas, a decisão judicial não precisa ser simples “sim ou não”, mas pode envolver um “quando”, um “durante”, a apresentação de um plano de ação etc.

É mais fácil prolatar sentença em caso complexo do que executá-la; diziam os latinos que “os vasos vazios ressoam muito”, e isso se traduz na necessidade de o Judiciário assumir responsabilidade sobre a efetividade das decisões que toma em casos de judicialização de políticas públicas.

Pouca ousadia no acompanhamento da execução das decisões

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Há, também, pouca ousadia no acompanhamento da execução das decisões judiciais sobre políticas públicas no Brasil. A execução de decisão sobre política pública é complexa, envolvendo enorme gama de recursos materiais, expertise de órgãos técnicos etc. Daí que não deve a decisão judicial limitar-se a dizer “sim” ou “não”, desobrigando-se de sua efetivação com o trânsito em julgado. A experiência constitucional da Colômbia é interessante. Tal como lá, a ideia seria estabelecer um processo de execução contínuo. Há a decisão, e existe um acompanhamento contínuo de sua execução. A decisão não transita em julgado, ou transita em julgado a execução depois de muito tempo, havendo, nesse ínterim, fiscalização pelo tribunal, acompanhado por órgãos da Administração, com os quais compartilha a tarefa de garantir as determinações resultantes da judicialização da política pública. O mais difícil pode ser não tomar a decisão, mas vê-la cumprida, o que incumbe também ao Judiciário, do que surgem complexidades também porque o juiz pode assumir o papel de ordenador de despesa, e talvez precise fazê-lo para garantir a efetividade do que decidiu. Não há “rebaixamento” do Judiciário por ordenar despesa, pois tal papel integrar-se-ia ao de emitir a decisão sobre políticas públicas com pretensão de efetividade: são casos de litigância estratégica, envolvendo assuntos complexos, e casos complexos demandam processos complexos de execução. Então, por maior desafio que ofereça a uma visão mais canônica de separação de poderes, é passada a hora de rever o modelo de Montesquieu para adequá-lo às diversas experiências institucionais por que passam os países. Nada impediria uma fiscalização conjunta de Executivo e Judiciário quanto à execução de decisão sobre política pública. Isso, decerto, carreia riscos ao Judiciário. Ao se propor a emitir decisões complexas, assumindo papel de ordenador de despesas, o Judiciário eventualmente também se submeteria à fiscalização dos tribunais de contas, o que não necessariamente afetaria sua autonomia (até porque ele já é controlado pelos tribunais de contas em suas atividades-meio).

Conclusão É necessário mudar a formação dos graduandos em direito. Enquanto isso, é importante reforçar o contraditório técnico. Sem esquecer a imbricação, hoje tradicional, da filosofia moral e política junto ao direito, o Judiciário, em decisões sobre políticas públicas, deve se voltar a analise mais pragmática das possíveis consequências de seus decisões. Em questões morais e políticas controversas que hajam sido incorporadas em políticas públicas, a atuação do Judiciário, salvo situações excepcionais, deve ser discreta. Mas, para questões plenamente judicializáveis, suas decisões devem ser deve ser flexíveis, e as execuções, constantemente monitoradas pelo Judiciário com apoio dos demais poderes (o que pode implicar algum nível de ordenação de despesa pública).

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Construindo pontes entre o Direito e a Antropologia: relatos pessoais de experiências de Pesquisa que ajudam a refletir sobre o Campo Jurídico Claudia Franco Correa1 Bárbara Gomes Lupetti Baptista2 Resumo Este artigo pretende explicitar as experiências empíricas que empreendemos quando, na Pós-Graduação, nos permitimos articular o saber jurídico com o saber antropológico e tivemos a curiosidade de realizar pesquisas de campo, em diferentes áreas e a partir de distintas perspectivas, com o intuito de compreender melhor o campo jurídico e os seus fenômenos. Esta experiência empírica revelou desafios e vivências que não calculamos quando decidimos articular o Direito e a Antropologia e foi especialmente profícua não apenas para os nossos objetos de pesquisa, mas também para as nossas vidas profissionais e para a forma como passamos a enxergar o Direito e os fenômenos jurídicos. A proposta deste artigo é, então, explicitar os nossos caminhos e, a partir daí, tentar extrair - dos relatos dessas experiências – reflexões metodológicas que nos permitam pensar sobre o campo jurídico e sobre o quanto ainda precisamos caminhar para construir pontes entre o Direito e a Antropologia. Palavras-chave: Interdisciplinaridade; dogmática jurídica; antropologia. Abstract This article aims to clarify empirical experiments that we take when, in graduate school, we allow ourselves to articulate the legal knowledge with knowledge anthropological and had the curiosity to conduct fields researches, in different areas and from different perspectives, in order to better understand the legal field. This empirical experience revealed experiences that we do not calculate when we decided to articulate the Law and Anthropology and it was especially important not only for our research subjects, but of our lives. In this sense, the purpose of this paper is to explain our trajectory and – from this report- find methodological reflections that make we think about law and about how much we still need to walk to create bridges between law and anthropology. Keywords: Interdisciplinarity; legal doctrine; anthropology. 1

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Professora do PPGD da Universidade Veiga de Almeida. Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do INCT-InEAC. Professora do PPGD da Universidade Veiga de Almeida. Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do INCT-InEAC.

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Introdução3 Em concepção geral, o termo alteridade, amplamente utilizado na antropologia (PEIRANO, 1999), e constitutivo dessa disciplina (ou desse campo do saber), pode expressar a intensa relação de interação com o outro. Isto significa dizer que o ser humano, em seu viés social, está ligado ao “outro”. Tal concepção é, em si, consistentemente abrangente, tendo em vista que o “outro” pode ser concebido de maneira ampla, não apenas como sendo o outro humano, mas podemos compreender este termo pela consistência das diversas experiências que vivenciamos cotidianamente, com as quais somos confrontados e que configuram a nossa identidade, pondo-nos defronte, frente a frente, com um “outro”, diferente de nós, com o qual temos de conviver e que precisamos respeitar, em suas diferenças. Isto significa uma inter-relação, uma atividade dialógica, levando a valorização das diferenças existentes, haja vista que a alteridade implica que um indivíduo seja capaz de se colocar no lugar do outro. Neste aspecto, a alteridade supõe aproximação e não distanciamento, pois produz não meras reflexões, mas o estabelecimento de um canal de comunicação que instrua possíveis mudanças e afetações recíprocas. Portanto, no presente artigo, pretendemos pontuar e explicitar concretamente o quanto a antropologia pode servir de canal de aproximação entre “mundos” diferentes, porém conexos. E o quanto o direito pode se valer dessa forma de constituir a antropologia, para ampliar as suas possibilidades como campo do saber e, mais do que isso, como ciência social aplicada. Tais contextos diferenciados dos regramentos jurídicos positivados e as realidades da vida devem ser defrontados, colocados frente a frente, sendo importante que a realidade das “leis” e a realidade das “vidas” sejam compartilhadas, sem que haja desconsideração de nenhuma das fontes, nem mesmo hierarquização valorativa ou moral, mas pontes e diálogos que os aproximem. A perspectiva por ora empregada nada possui de belicosa, ao contrário, queremos exercer a alteridade de percepções culturais diferentes, de modo a contribuir no processo de aproximação e de interdisciplinaridade entre dois campos do saber e da experiência, o direito e a antropologia, que poderiam dialogar mais, até porque, como afirmam Garapon e Papadopoulos (2008, p. 3), a abordagem da cultura jurídica pode ser ameaçada por dois defeitos simétricos: o primeiro, consiste em se interessar apenas pelo Direito, concedendo-lhe uma importância tão significativa ao considerá-lo a chave para quase todos os “males”, principalmente no mundo ocidental. O segundo defeito, em direção 3

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Salientamos, preliminarmente, que o presente artigo foi, em parte, apresentado no IX Encuentro de la Red Latinoamericana de Antropología Jurídica (RELAJU), em outubro de 2015, em Pirenópolis/GO, em um GT denominado: MUCHO DERECHO, POCA ANTROPOLOGÍA, coordenado pelas Professoras Esther Sánchez Botero (Assesora da Direção de Etnias do Ministerio do Interior e de Justiça da Colômbia) e Rita Laura Segato (Universidade de Brasília – Brasil).

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diametralmente oposta, seria desprezá-lo, não compreendendo de fato sua função de influência nas relações e suas implicações na área da moral e da ética. A tendência por um lado ou por outro é muito comum quando nos aproximamos do campo jurídico, principalmente quando nos dedicamos a tentar compreender os fatos cotidianos que nele encontramos. Nossas experiências com a utilização de métodos antropológicos de pesquisa na área do Direito nos indicaram um processo laborioso de questionamentos quanto às possíveis respostas que encontraríamos até chegarmos ao ponto de percebemos que o estranhamento e o distanciamento com objeto pesquisado traria para nós um conhecimento científico na medida exata em que nos afastássemos de nossas inclinações, seriam elas: dar importância demasiada ao Direito ou desconsiderálo em seu valor como instrumento de regulação, reconhecimento e administração de conflitos. Portanto, aqui neste artigo, daremos primazia a duas realidades que se interrelacionam, pois falaremos de coisas que existem na lei e não existem na vida e de coisas que existem na vida, mas não são contempladas na lei, colocando-as frente a frente, de modo a instruir a construção de pontes que possibilitem o diálogo de novas concepções em faire droit. Nesta linha, pretendemos explicitar algumas experiências empíricas que realizamos quando, na Pós-Graduação stricto sensu, nos permitimos articular o saber jurídico com o saber antropológico ao empreendermos pesquisas de campo, em diferentes áreas e a partir de distintas perspectivas, com o intuito de compreender melhor o campo jurídico e os seus fenômenos. A despeito de nossa formação em Direito, nosso magistério voltado para disciplinas jurídicas e nossa militância no contencioso cível na qualidade de Advogadas, manifestávamos inquietude em relação aos estudos essencialmente dogmáticos dos fenômenos jurídicos e, não apenas por acaso, mas também por determinação, decidimos imergir na interdisciplinaridade, tentando perceber formas novas de compreender velhos institutos jurídicos, articulando não apenas novos saberes, mas, com atravessamento ético necessário, sugerindo novos arranjos reflexivos. Neste aspecto, nota-se claramente que as experiências aqui reproduzidas se legitimam na medida em que se constata a efetividade consensual das exposições narradas, ainda que as autoras tenham realizado pesquisas em diferentes locais e situações, nos mesmos termos tratados por Junker (1971), quando trata do acordo substancial, no que diz respeito à ratificação de informações entre os pesquisadores sobre assuntos semelhantes. Assim, as interlocuções das autoras tem um ponto comum: que apesar de suas formações como graduadas e Pós-Graduadas em Direito e com vasta experiência no contencioso cível na qualidade de operadoras de Direito assumiram suas inquietudes em relação a denominada dogmática jurídica e os fenômenos jurídicos e decidiram explorar na interdisciplinaridade novas formas de compreender institutos jurídicos tradicionais. Ressalta-se, contudo, que não há como dois pesquisadores passarem pela mesma experiência de aprendizado, com os mesmos resultados,

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independentemente das tarefas padronizadas e os métodos empregados. O aprendizado de trabalho de campo é, sobremaneira, um empreendimento individual, idiossincrático. Entretanto, a comunicação e compartilhamento das informações e impressões contribuem consistentemente para uma melhor compreensão dos assuntos investigados (Junker, 1971. p.09). Nessa perspectiva, nosso objetivo se manifesta em trazer reflexões de natureza intelectual decorrentes de registros de interação entre lócus diferenciados que se consolidam como intercambio de aprendizagem com preocupação imediata de estudar situações, fatos e rituais que, a despeito de fazerem parte em alguns momentos do cotidiano das autoras, foram escolhidos como objeto de pesquisa justamente pela necessidade de empreender uma melhor compreensão do que efetivamente representam. Assim, o presente trabalho pretende abordar não apenas as experiências que as autoras tiveram em suas jornadas empíricas, sob pena do respectivo trabalho se tornar exclusivamente um relato, ainda que compreendamos a necessidade da socialização dos dados, sentidos, impressões e sentimentos, temos a pretensão de trazer reflexões de caráter intelectual e metodológico que ressaltem a importância da aproximação entre o direito e as ciências sociais, de modo especial a antropologia, explicitando os nossos caminhos como ponto de partida para pensar em questões metodológicas que nos permitam estreitar os laços entre tais saberes diferenciados, mas complementares.

O direito é demasiado ortodoxo e sua ritualística, de certo modo, o desumaniza. Nesse particular, a forma como o saber antropológico se constrói permite estabelecer possibilidades de diálogos importantes para repensarmos o direito. O método da antropologia não esconde o quanto a alteridade e a afetação pelo outro importa na construção do saber e nos relatos que vãos destacar fomos honestas4 sobre o quanto essa articulação nos foi valiosa. Mais do que desencontros, a ideia é que o direito e a antropologia sejam afetados reciprocamente. De nossa parte, como pretendemos explicitar a partir de nossos relatos de experiências de pesquisa, nos permitimos “ser afetadas”, nos termos em que a afetação supõe “que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada”. (FAVRET-SAADA, 1990).

As pontes, os encontros e os desencontros Em se tratando do campo jurídico brasileiro, os fenômenos observados nem sempre são tão elucidados a ponto de, prima facie, evidenciá-los rapidamente. É justamente nesse sentir que repousa boa parte de nossa atenção na realização de nossas pesquisas, trazendo como factível resultados ambivalentes, hesitantes e desacomodados, ou no dizer de Geertz:

Pesquisando o que está na vida, mas não está no Direito: afetos e favelas Neste tópico, a partir da experiência de uma das autoras, Claudia Franco Correa, vamos destacar, os relatos de suas pesquisas empíricas, que permitiram identificar realidades da vida ignoradas pelo Direito por não estarem contempladas na Lei. A despeito de ser advogada cível militante no Rio de Janeiro, com atuação na área do direito de família e no direito imobiliário, quando me encontrava em sala de aula lecionando disciplinas afetas a minha formação como operadora de direito sempre fui tomada de uma inquietação angustiante, por me deparar com institutos jurídicos5 que não se ajustavam plenamente com as situações da vida, ainda que minha formação profissional me inclinava a justificar que sempre haveria uma reposta na lei ou quando não houvesse, tal situação não estaria na condição de um efetivo reconhecimento. 4

A interação de duas profissões tão voltadas para a prática, tão profundamente limitadas a universos específicos e tão fortemente dependentes de técnicas especiais, teve como resultado mais ambivalência e hesitação que acomodação e síntese (Geertz: 1998, p. 249).

Este texto parte da nossa percepção de que mais do que distanciamentos, a interação entre direito e antropologia exige diálogos, porque ambas as disciplinas têm muito a contribuir uma para a outra. A nossa intimidade com o campo do direito, oriunda de nossa experiência profissional, permitiu que tivéssemos acesso e observações privilegiadas sobre os espaços e contextos que decidimos estudar; assim como o olhar crítico, reflexivo e treinado dos antropólogos, permite perceber aspectos dos fenômenos sociais que estão esconderijos de naturalização que somente esses cientistas sociais conseguem atingir, com a sua lupa do estranhamento.

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“Em qualquer ramo do conhecimento, os resultados de uma pesquisa científica devem ser apresentados de maneira totalmente neutra e honesta. Não ocorreria a ninguém fazer uma contribuição experimental no âmbito da ciência física ou química sem dar conta detalhada de todos os passos das experiências que efectuou, uma descrição exacta dos instrumentos utilizados, da maneira como as observações foram conduzidas, do seu número, da quantidade de tempo que lhe foi dedicado e do grau de aproximação com o qual cada medida foi realizada.”. (MALINOWSKI, 1978, p.18). Instituto Jurídico aqui compreendido na visão de Paulo Nader, reconhecido jurista brasileiro, ao afirmar que “Instituto Jurídico  é a reunião de normas jurídicas afins, que rege um tipo de relação social ou interesse e que se identifica pelo fim que procura realizar. É uma parte da ordem jurídica e, como esta, deve apresentar algumas qualidades: harmonia, coerência lógica, unidade de fim. Enquanto a ordem jurídica dispõe sobre a generalidade das relações sociais, o instituto se fixa apenas em um tipo de relação ou de interesse: adoção, pátrio poder, naturalização, hipoteca etc. Considerando-os análogos aos seres vivos, pois nascem, duram e morrem, Ihering chamou-os de corpos jurídicos, para distingui-los de simples matéria jurídica. Diversos institutos afins formam um ramo, e o conjunto destes, a ordem jurídica.” Paulo Nader (“Introdução ao Estudo do Direito”, Rio de Janeiro: Forense, 1998, 16ª ed., p. 100).

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Na realidade, minha formação jurídica, iniciada nos anos 80, não contemplava um possível estranhamento que me conduzisse a relativizar as questões humanas que se apresentavam à margem da lei, aliás, dentro dessa formação só haveria dois lados: um dentro da lei e outro fora. Portanto, estar à margem da lei consagraria um “fora da lei”, um esquecido do lado de fora da casa, do abrigo e da tutela do Estado, que segundo as expectativas do direito posto deveria aguardar a adequação exata da situação ou do fato para que houvesse a correção da violação. Nesta perspectiva, a violação de um direito só existira a partir do momento em que o pretenso direito fosse efetivamente enquadrado na lei, sem o seu enquadramento não existiria violação, por falta de existência. Em tal perspectiva, temos a teoria do ato inexistente, defendido por juristas como Orlando Gomes, que aceitava a ineficácia absoluta de ato pela falta de requisitos juridicamente necessários à sua existência, como o casamento de pessoas do mesmo sexo, considerado como casamento aparente, não produzindo qualquer efeito jurídico e, desta forma, não poderia sequer ser declarado nulo, pois seria um absurdo admiti-lo como ato jurídico (GOMES: 2000, p. 468). Na contramão dessas conclusões, no final dos anos 90, como advogada, deparei-me com um caso de partilha pós-morte de dois homens que viveram juntos como casal por quase duas décadas, mas com a morte de um deles, a família do morto, evangélica tradicional, se recusava a partilhar os bens comuns do casal. Em sua defesa, a família alegava que não haveria união estável entre pessoas do mesmo sexo, tendo em vista que a Constituição Federal determinava que a entidade familiar em questão tinha como requisito essencial de validade a diversidade de sexos, portanto, o que se encontrava em nome do falecido deveria seguir a linha sucessória determinada no Código Civil de então, e que, no caso concreto, seria a mãe sua herdeira universal. Anos depois, iniciei minha trajetória na pesquisa empírica ao cursar meu Mestrado em Direito, sendo orientada por um antropólogo com formação jurídica que me levou a estranhar tal situação e assim, resolvi investigar se o afeto era um valor jurídico e se haveria uma demanda efetiva por reconhecimento jurídico por casais do mesmo sexo afim de que suas relações afetivas fossem elevadas a um grau de tutela do Estado semelhantemente ao que ocorria com casais heterossexuais, possibilitando a união estável ou mesmo o casamento. Para tanto entrevistei diversos casais homossexuais, o que me permitiu dissertar sobre tais questões. Já naquele momento foi despertado certa inquietação de como a etnografia poderia contribuir eficazmente, não só, para a realização de um trabalho de pesquisa mais consistente, em se tratando de um programa de Pós-Graduação stricto sensu, bem como aproximar o olhar de um operador do direito (como eu) para as distorções produzidas pela norma, quando esta não atenta para a vida. Assim, as “verdades jurídicas” começaram a ser questionadas dentro da redoma em que antes me encontrava (CORRÊA, 2012)

Neste aspecto, a opção pelo trabalho em campo me possibilitou constatar a necessidade de ter uma visão mais mediada e distanciada, indicando uma reavaliação de certas conclusões aduzidas anteriormente. Obviamente que se consolidou um grande desafio o fato de me aproximar das realidades da vida e compreende-las a partir delas mesmas e explicitá-las. Ao escolher o uso do método de observação participante e do trabalho de campo, originários da Antropologia, por me parecerem procedimentos que mais me aproximavam das realidades que pretendia conhecer, em especial a possibilidade de deter intelectualmente uma perspectiva que permitisse lidar com as especificidades do Direito, em grande parte baseadas em “verdades reveladas”, assumidas a priori e em abstrações normativas, como ocorreu em minha formação jurídica, e para me pautar em uma ciência que me permitisse ver a realidade que se passava nas relações estabelecidas entre as pessoas (LUPETTI, 2007). Mais do que isso, interessou-me conhecer a maneira como as pessoas representavam as relações que experimentavam nos cenários cotidianos de que participavam6, sempre envolvendo conflitos. Encarar o campo para um operador do direito nunca é tarefa fácil. Poderia afirmar que é tarefa ardulíssima. A nossa formação jurídica e judiciária, não raro, engessa nossa compreensão dos fatos. O excesso de hermetismo praticado no campo jurídico naturaliza os fatos para além do contexto que produz seus significados. No Direito nem sempre as realidades se revelam suficientes para gerar uma lei, uma norma, uma política pública. Como diz Lupetti (2008, p. 29) “o Direito, frequentemente, encoberta os óbvios”. Na formação jurídica aprende-se que quem fala são os intérpretes autorizados: “doutrinadores”, que expõem suas ideias em manuais, cujas interpretações são deduzidas de proposições abstratas, e magistrados, que para sentenciar sobre casos relatados nos autos, têm o poder de interpretar e decidir livremente, conforme o seu próprio convencimento (CORRÊA, 2012). Como professora, várias vezes ouvi dos meus alunos o seguinte: “O Direito, na teoria, é uma coisa e, na prática é outra”. Na realidade, o que ocorre é que a teoria aplicada na Lei nem sempre é a mesma aplicada na prática judiciária, ou seja, podem-se adotar critérios totalmente diferentes ou mesmo não adotar critério nenhum (CORRÊA, 2012) Tais questionamentos me levaram a trabalhar em pesquisa usando o método da observação por me permitir cotejar o Direito com as realidades sociais investigadas. Tenho percebido que o diálogo da Antropologia com o Direito possibilita valiosa contribuição, não só para esmiuçar as práticas jurídicas, mas também como instrumento na construção de respostas mais próximas das aspirações e das demandas sociais. Lançar mão de métodos oriundos das ciências sociais tem apresentado, a meu ver, a vantagem de olhar com estranhamento práticas e teorias reproduzidas e pouco questionadas no “mundo do Direito”7, Alba Zaluar (1980) organizou coletânea que reúne excelentes textos sobre as vantagens da observação e da comparação em Antropologia. 7 A utilização do termo “mundo do Direito” está associado ao “domínio afirmado como esfera à parte das relações sociais, onde só penetram aqueles fatos que, de acordo com 6

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para que se possa, ao compreendê-las, contextualizando-as, buscar realizar um sentido mais real das aplicações do Direito às realidades sociais. Foi dentro desse contexto que iniciei minha pesquisa no Doutorado em Direito, onde mais uma vez privilegiei a etnografia como método prioritário de todo processo investigativo em uma favela carioca, onde me debrucei sobre o denominado “direito de laje”. Tal “direito” atua como uma das formas comumente encontradas em algumas favelas do Rio de Janeiro como maneira de articulação de um mercado próprio das favelas. Para tanto empreendi pesquisa de campo na favela carioca de Rio das Pedras, a terceira maior favela do Brasil, com aproximadamente 80 mil moradores, distribuídos em torno de 25 mil moradias, quase todas na formatação de laje. Dessa forma, centrei minha pesquisa com foco no direito de moradia a partir da investigação das inúmeras possibilidades de apreensão e exercício das titularidades na favela de Rio das Pedras, identificando e qualificando as figuras do direito de laje e suas consequentes. Enfim, a pesquisa objetivou catalogar e explicar os arranjos “jurídicos” praticados nas favelas cariocas que estão marginais ao direito formal e são decorrentes do acesso à moradia, do qual resulta o modo de existência específico na vida cotidiana de favelados. Neste aspecto, consubstanciei descrição detalhada da realidade investigada, o que me permitiu compreender e explicitar os fatos, classificá-los e interpretá-los à luz das categorias representadas pelas pessoas que vivem no campo investigado (Shutz apud Cicourel, 1980). No caso do Direito, pode se configurar uma estratégia relevante na apreensão de certos déficits do direito oficial na administração de conflitos, que cria espaços para a legitimação e a institucionalização de normas e de práticas que atendem à ausência de regulação oficial de relações, permitindo equilibrar o atendimento às necessidades da vida cotidiana, sobretudo em conglomerados habitacionais marcados pela pobreza, objeto de meu estudo. Com essa perspectiva em mente me aproximei e procurei vivenciar as experiências dos moradores de Rio das Pedras na busca pelo direito de morar, almejando destacar a categoria “direito de laje” como resposta social ao silêncio da política social no Brasil no acesso à moradia e sua desconexão dos sentidos de cidadania acessível e igualitária, o que possibilitou-me conhecer um mercado próprio onde são gerenciados tantos outros “direitos”. Minha pretensão inicial foi ir a favela realizar a pesquisa e sair de lá com uma tese de doutorado. Contudo, as coisas não ocorreram de forma tão simples. Minha viagem a Rio das Pedras teve passagem de ida, mas não de volta. Após minha entrada em Rio das Pedras, no ano de 2007, foi possibilitado estabelecer um núcleo de pesquisa e cidadania que durante bons anos realizou diversas pesquisas em parcerias com entidades públicas e privadas, como a Prefeitura do Rio de Janeiro, a Universidade americana de Columbia e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

Diante do exposto, ressalto que tais experiências trouxeram a minha pessoa uma maior sensibilidade dos fatos, demonstrando que as realidades da vida são absolutamente sui generis, como afirma Durkheim e que os arcabouços jurídicos nem sempre dão conta dos fatos da vida, o que, não raro, impulsionam a institucionalização de arranjos locais que de alguma forma organizam minimamente a vida das pessoas. Aprendi, portanto, que a vida é muito mais plúrima que os engendramentos jurídicos que tendem a funcionar mais como um instrumento de regulação social apartado da realidade, podendo, inclusive, ser instrumento de novos conflitos na medida em que se distanciam do cotidiano, tendo em vista que os pressupostos jurídicos podem não estar associados na esfera de compreensão por parte daqueles que a norma deveria alcançar. Por fim, observo que a experiência de trabalho de campo, contribuiu consistentemente para uma consciência mais depurada da necessidade de um atravessamento ético no desenvolvimento de uma pesquisa e, na medida do possível, possa o pesquisador devolver, de alguma forma, resultados concretos que auxiliem na viabilização de uma realidade mais equânime.

critérios formulados internamente, são considerados como jurídicos”, nas palavras de

166 Kant de Lima em “Ensaios de Antropologia e de Direito” (2008: 13).

Pesquisando o que está no Direito, mas não está na vida: os princípios da oralidade e da imparcialidade judicial Aqui, a partir dos relatos da experiência de Bárbara Lupetti, vamos pensar sobre questões que estão no Direito, mas não estão na vida, no sentido de que configuram princípios idealizados, porém sem correspondência empírica, e que marcam a tal dicotomia que pretendemos apontar na introdução: ou seja, o afastamento entre o direito e a realidade e que, a metodologia antropológica pode ajudar a aproximar. O Direito, desde os bancos da faculdade, sempre me pareceu ambíguo, contraditório e insuficiente para os ideais de justiça e democracia que eu carregava em minhas expectativas existencialistas. De um lado, os manuais jurídicos traduziam para mim uma realidade idealizada (e inexistente), embora muito atraente para os meus jovens ideais socialistas. De outro lado, o cotidiano forense, que eu vivenciei desde os estágios da graduação, trabalhando, ao mesmo tempo, no contencioso cível de um escritório de advocacia privado e na defensoria pública do estado do Rio de Janeiro, escancaravam para mim a existência de distintos Poderes Judiciários dentro do mesmo Poder Judiciário e explicitava que existiam formas diferenciadas (e desiguais) de administração de conflitos que se relacionavam muito mais com práticas judiciárias do que com conceitos jurídicos. Devido à essa trajetória “profissional”, tive contacto, desde a época da faculdade, com o dia-a-dia dos tribunais e “exerci” a advocacia antes de me tornar, oficialmente, advogada, porque ir ao fórum todos os dias e ter contacto direto com as práticas judiciárias fazia parte do meu cotidiano no estágio.

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Eu era uma clássica “rata de fórum” e desenvolvi uma expertise empírica que, hoje compreendo, me ajudou a me tornar uma pessoa bastante crítica e descrente dos ideais da dogmática e, por isso mesmo, me aproximou da Antropologia e das pesquisas de campo que, mais tarde, desenvolvi na academia. Além de ter despertado em mim o desejo de me tornar professora de processo civil, para ensinar aos meus alunos o “processo da prática” e não o da “teoria”, aquele processo que nos permite transitar em códigos empíricos que não estão expressos nos artigos do Código de Processo Civil, mas que fazem toda a diferença para o processo “andar” ou “não andar”, conforme os interesses e as necessidades dos clientes. Tudo isso me permitiu aguçar, desde cedo, ainda durante a graduação, uma sensibilidade para os problemas empíricos, próprios do cotidiano forense, e que nunca mais deixaram de integrar o meu repertório de pesquisa e de reflexões. Nesta perspectiva, na Pós-Graduação stricto senso, decidi cruzar esses dois campos do conhecimento – a antropologia e o direito – o que me permitiu entender as instituições sobre um “fresh eyes”. De todos os passos, assim como acontece na vida, o mais difícil foi dar o primeiro deles. E o primeiro passo exigiu de mim desconstruir as tais “verdades”, que já estavam internalizadas pela minha formação em Direito, pelo tempo em que estive exclusivamente envolvida com o Direito e, afinal, pelos ensinamentos adquiridos durante a faculdade de Direito, em que somos educados e treinados a pensar de uma determinada forma (normativa) e a transitar apenas entre a lógica dicotômica do “certo” e do “errado”, do “justo” e do “injusto”, do “bom” e do “mal”, do “desvio” e da “norma”, do “legal” e do “ilegal”. A visão normativa com a qual somos socializados durante a faculdade de Direito, em vez de “relativizadora” de verdades, como acontece na Antropologia, é reprodutora de “certezas” etnocêntricas que embotam a capacidade crítica e reflexiva do aluno, e isso nos torna, com o tempo, pessoas limitadas a esquemas classificatórios que pretendem dar conta da complexidade da realidade e que limitam a criatividade e a abstração, próprias da construção do saber. Mais do que isso, a nossa visão normativa do mundo, ensinada durante a nossa formação jurídica, nos faz acreditar que a vida social deve se adequar às leis e não o contrário, de modo que nos tornamos, com a socialização jurídica, tecnicistas, formalistas e apegados a regras que, mesmo quando inexequíveis, nos guiam e nos orientam. Malinowiski (2003, p. 95), antropólogo polaco e fundador do método etnográfico, no século XIX, escreveu algo que para nós, do Direito, ainda é um tanto inusitado: “o verdadeiro problema não é estudar como a vida humana se submete às regras – ela simplesmente não se submete –, o verdadeiro problema é saber como as regras se adaptam à vida”. O Direito se apropria dos fatos de forma a moldá-los em uma estrutura previamente delimitada e vista como “adequada”, “correta”, “justa” (GEERTZ, 1998).

A leitura de Berman (1996) também nos ajuda a compreender que é na universidade que se firmam os cânones metodológicos do saber científico. Os advogados não aprendem e, por conseguinte, não estão acostumados a “estranhar” ou a “relativizar” categorias, pois o mundo do Direito é um mundo de certezas incontestáveis8, embora GEERTZ tenha chamado a atenção para o fato de que o Direito – assim como todas as instituições que se julgam permanentes –, na modernidade, esteja “envolvido em um processo de aprender a sobreviver sem as certezas que o geraram”. (GEERTZ, 1998). Bourdieu (1989), ao estudar o campo jurídico, chega a afirmar que a ciência jurídica tal como concebida pelos juristas e historiadores do direito, apresentase enquanto um sistema fechado e autônomo, no qual seu desenvolvimento só pode ser apreendido conforme sua lógica interna. Nesse sentido, como destacado em outra oportunidade por Kant e Lupetti. “O estudo das práticas judiciárias, realizado a partir de pesquisas etnográficas de caráter antropológico, permite uma interlocução com o campo empírico que incorpora à produção do saber jurídico os significados que os operadores do campo atribuem à Lei e às normas, possibilitando uma percepção, não apenas mais completa, como também mais democrática, dos fenômenos e institutos jurídicos.”. (KANT DE LIMA, LUPETTI BAPTISTA, 2014, p.19),

O trabalho de campo nos permite identificar as representações que os atores conferem aos institutos e as moralidades que orientam as suas práticas, assim como as motivações que permitem deslocamentos ou interpretações legais que destoam da expectativa normativa. No mesmo texto referenciado acima (KANT DE LIMA, LUPETTI BAPTISTA, 2014, p.20), destacamos que “No caso do Direito, é certo que o discurso teórico produzido no campo nem sempre encontra correspondência nas práticas judiciárias, e vice-versa. Isto se deve, segundo nos parece, não apenas ao fato de que existe uma notória incompatibilidade entre os rituais judiciários e os valores e ideologia explicitados nos manuais e livros de doutrina, mas, especialmente, ao fato de que existe, para além disso, uma completa invisibilidade dos valores e ideologia que norteiam os mesmos rituais.”.

Nesse contexto, a pesquisa etnográfica surge, exatamente, para, através da descrição minuciosa e da recorrência dos dados de campo, amparada nas referências comparativas, tornar mais visível esta dita “teoria” (valores e ideologia) que orienta as práticas e rituais que se mostram incompatíveis com o discurso dogmático oficial (Kant de Lima, 2008:236). 8

O Professor da UFF e da UFRJ, Marco Antonio da Silva Mello, antropólogo, utilizou, certa vez, em uma reunião de alunos e professores, uma expressão que define com objetividade a postura desse campo, dizendo: “No Direito as pessoas não têm opiniões, têm estoque de respostas”.

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Construindo pontes entre o Direito e a Antropologia: relatos pessoais de experiências de Pesquisa que ajudam a refletir sobre o Campo Jurídico

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De minha parte, vivenciei duas experiências muito interessantes com pesquisas etnográficas. Em 2008, por ocasião do mestrado, e em 2012, do doutorado. E o fato de as pesquisas terem sido realizadas de forma empírica permitiu resultados que não teriam sido possíveis se eu não tivesse me valido dessa ferramenta metodológica. No mestrado, meu interesse esteve voltado a compreender as manifestações orais do processo. Para tanto, pesquisei o princípio da oralidade processual e qual não foi a minha surpresa ao perceber, após trabalho de campo realizado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que tal princípio só existe nos papeis impressos dos manuais dogmáticos, porque, na prática forense, sofre, cada vez mais, mitigação e enfraquecimento. Estudei algo que está nos livros, mas cada vez mais está fora das práticas. A oralidade é representada, na dogmática, como um método que proporciona “à luta judiciária [o processo] o seu genuíno caráter humano, que comunica vida e eficácia ao processo [...]” (Morato, 1938); é um sistema em que o juiz participa ativamente do processo, entretanto, à sua autoridade pública sobrepõe-se a soberania individual das partes (Leal, 1938); trata-se de um mecanismo que possibilita “uma justiça rápida, perfeita e barata”, é, na verdade, “um remédio heroico” (Cunha Barreto, 1938); é o que possibilita a palavra viva em sobreposição à escrita morta, eis que “na palavra viva fala também o vulto, os olhos, a cor, o movimento, o tom da voz, o modo de dizer, e tantas outras pequenas circunstâncias, que modificam e desenvolvem o sentido das palavras e subministram tantos indícios a favor ou contra a própria afirmação delas. A mímica, a eloquência do corpo, são mais verídicas do que as palavras [...].” (Chiovenda, 1938); a oralidade, afinal, “garante uma justiça intrinsecamente melhor; faz do juiz partícipe na causa e permite-lhe dominá-la melhor [...] assegura melhor a veridicidade e a sinceridade dos resultados da instrução [...]”. Percebe-se, portanto, uma alta carga de sensibilidade, nos juristas, ao estudarem e lecionarem sobre a aplicação desse princípio. Na prática, entretanto, nem sempre é assim que o processo se materializa, inclusive porque a escrita prevalece, em função, justamente, da necessidade, cada vez mais premente, de celeridade na prestação jurisdicional. A minha pesquisa de campo sobre a oralidade, realizada através de entrevistas com magistrados, advogados e demais operadores do Direito e conjugada à observação sistemática de audiências e julgamentos, permitiu perceber que, ao contrário do que sugerem ou idealizam os manuais, na prática, a oralidade é muito mais um obstáculo do que uma garantia. A oralidade, de fato, segundo a visão do campo empírico, é uma pedra no caminho da celeridade processual, princípio muito mais festejado. E, não apenas por isso, mas especialmente, a oralidade é vista como um entrave que inviabiliza a concretização do princípio constitucional que preconiza a “duração razoável do processo”. O contraste entre o discurso dogmático e os dados empíricos sugerem que, não apenas ambos representam a oralidade de forma absolutamente

distinta, como também – o que nos pareceu mais interessante – o fazem de forma contraditória, já que a dogmática vê a oralidade como um instrumento a serviço da celeridade e a prática judiciária, opostamente, a vê como um estorvo à celeridade. No doutorado, estudei outro princípio processual, que, do ponto de vista empírico, tampouco existe nos termos idealizados. Trata-se da imparcialidade judicial. Na tese, eu discuti, sob o enfoque da imparcialidade judicial, as diferenciadas formas de administração de conflitos cíveis no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Para entender os distintos significados que o campo do direito atribui ao processo, à verdade e à lei, direcionei, mais uma vez, o meu olhar para as práticas judiciárias e para os discursos dos operadores do campo. A pesquisa de campo, legislativa, jurisprudencial e doutrinária realizada me permitiu perceber que as práticas judiciárias e as decisões judiciais são, muitas vezes, orientadas por percepções subjetivas dos operadores e por suas interpretações pessoais sobre a lei, os fatos e as provas produzidas no curso do processo judicial. Durante o trabalho, fui surpreendida quando os meus interlocutores expressavam, logo no começo das entrevistas: “eu não acredito em imparcialidade” ou “você sabe que a imparcialidade é uma coisa que não existe, né?” E também frequentemente, categorizavam-na como sendo “mito”, “quimera”, “fábula”, “utopia”, “fantasia” e, os mais radicais, como “mentira” mesmo. Já ao final das entrevistas, costumavam dizer que apesar de a imparcialidade “não existir”, é preciso sustentar a sua crença, porque “se o judiciário assume que o juiz é parcial, o sistema vai falir. Acaba o sistema.”. “As pessoas têm que acreditar que ali tem um juiz imparcial, senão ninguém mais vai ao Judiciário para resolver seus problemas; vão resolver tudo sozinhos”. Além disso, a pesquisa elucidou que os paradoxos e as ambiguidades que o nosso sistema jurídico produz, tais como, por um lado, as exigências legais da imparcialidade e, por outro lado, a atribuição de poderes instrutórios ao juiz e o seu dever de compensar desigualdades e prestar assistência à parte mais fraca no curso do processo, acabam por provocar a distribuição desigual da justiça, a partir de critérios casuísticos. Como explicitado, a empiria permite ver práticas que não seriam possíveis de serem compreendidas sem o direcionamento do olhar para a realidade. Por um lado, ela exige um esforço reflexivo para perceber o que está por trás das práticas judiciárias e dos discursos retóricos do campo do direito e tentar enxergar para além da realidade dada, tal como aparenta, e atingir um saber que fica implícito e invisibilizado. Por outro lado, o resultado deste esforço pode ensejar explicitações eventualmente desagradáveis para quem acredita nas idealizações, desafiando aquele que se defronta com esses dados a descrevê-los sem medo, com honestidade, arriscando-se à resistência e à reação de quem pretende continuar obscurecendo aquilo que a etnografia se recusa a esconder.

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Considerações finais: pensando que as pontes entre “o Direito e a Antropologia” podem ajudar a construir aproximações entre “o Direito e a Vida”

por exemplo, a existência de relações afetivas entre casais homossexuais é parte constitutiva das relações cotidianas e o vácuo que a Lei reserva a essas relações é inaceitável, de modo que não estar na “Lei”, mas estar na “vida” não significa não existir. O que está na “vida” existe, mesmo que a “Lei” não contemple. Talvez as afetações que o método provoca, conjugadas ao trabalho que dá para fazer pesquisa empírica e às inquietações que as explicitações das práticas provocam, além da circunstância de que ver a realidade, às vezes, dói, porque o espelho da verdade nem sempre é tão bonito quanto o das idealizações, ainda sejam causas que dificultam a adoção da metodologia de trabalho de campo no mundo do direito. Mais do que isso, sensitivamente, muitas vezes é melhor estar acolhido e confortável nas “caixinhas” da silogística do Direito. O fato é que o “direito continua a ser parte da vida”, como diz a Professora Maria Stella de Amorim (2013, p.24). E a vida é mais dinâmica do que os manuais podem dar conta. E já passou da hora de o estudo do Direito se reduzir a cópias de recortes e colagens de manuais escritos no passado. Acreditamos que a resistência do campo jurídico à pesquisa empírica seja um obstáculo epistemológico, nos termos propostos por Bachelard (2006),  no sentido de que são uma espécie de  “contrapensamento”, como sugerido por Rodrigues e Grubba (2012), que pode “surgir no momento da constituição do conhecimento ou numa fase posterior. São uma forma de resistência do próprio pensamento ao pensamento”. Como dizem os autores, “trata-se de considerar que o pensamento não progride senão por suas próprias reorganizações.”.

As experiências empíricas que vivenciamos em campo e que relatamos neste artigo foram o ponto de partida (e, ao mesmo tempo, de chegada em um outro lugar, ainda em construção) para pensarmos e compreendermos o Direito de uma forma distinta e impensável até então. De um lado, discutimos questões que estão na vida, mas não estavam no Direito: relações homoafetivas e direito de laje existem na vida, mas não estavam contempladas pelo Direito, que tratava de torná-la invisíveis, no lugar de administrá-las. Por outro lado, narramos princípios que estão idealizados nos manuais de direito, mas não estão na vida dos tribunais: a oralidade não existe e a imparcialidade é uma mera construção discursiva. A ponte que permitiu identificar esses desencontros e a necessidade de aproximações foi a metodologia do trabalho de campo, que, por natureza, exigiu não apenas o nosso deslocamento físico, da biblioteca para a vida dos lugares que estudamos, como também o nosso trânsito intelectual em outra área, a antropologia, que, através da compreensão da alteridade e do exercício da diferença, permitiu que entendêssemos que a imensidão da vida não cabe na pequenez das gavetas restritivas dos livros de Direito. As pessoas que nos permitiram enxergar essa metodologia, tão rica e valiosa, e que nos possibilitaram olhar o Direito sob outra perspectiva, mais crítica e essencialmente reflexiva, tirando-nos das caixinhas de certezas que constituem o mundo do Direito, foram os Professores Roberto Kant de Lima e Maria Stella de Amorim. Passados mais de 30 (trinta) anos, como disse em certa ocasião, o Professor Kant de Lima (2008: 14), “muita coisa aconteceu”, mas muitas dificuldades “continuam a retardar a constituição de uma reflexão propriamente científica sobre o campo do Direito no Brasil”. E a maior dificuldade do campo jurídico está em “assimilar parâmetros acadêmicos fundamentados em pesquisa empírica” (Kant de Lima: 2008, 14). De sua parte, a Professora Maria Stella de Amorim também destaca que o antropólogo Bronislaw Malinowski cunhou o método etnográfico para que “o pesquisador se despisse de conhecimentos prévios, de teorias antecipatórias, de seus aparatos valorativos de senso comum [...] ele não partiu de ‘teorias’, nem de ideias alheias, ou de abstrações” (Amorim, 2013:17). O movimento que nós, profissionais do Direito, temos de fazer para compreender o Direito “da vida”, para além do Direito “dos livros”, é exatamente este, construído por Malinowski e apropriado por tantos cientistas sociais, há um século, e que causa tantas perplexidades e afetações. Especialmente, temos de colocar a “Lei” em seu devido lugar, em vez de sublimá-la. Temos de encarar que situações concretas da vida real, como,

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O Liberalismo, a Inovação e o UBER Reis Friede1 Katia Avelar2 Maria Geralda de Miranda3 Resumo Neste breve estudo será desenvolvida a ideia de que o UBER, aplicativo de celular que conecta uma pessoa a um motorista particular, está em plena sintonia com o princípio da livre concorrência da economia de mercado. O trabalho argumentará que tal modelo de negócio está totalmente inserido na fase tecnológica do capitalismo, em sua etapa de devoção à inovação, e que para o chamado desenvolvimento econômico nas economias de mercado, a competição, bem como a liberdade das pessoas para exercerem o direito de operar suas atividades, é fundamental. Logo, o Poder Público, ao invés de reprimir a Desembargador Federal, Vice-Presidente e Membro Titular do Órgão Especial e do Conselho de Administração do TRF2; Professor Emérito da ECEME; Professor de Direito Constitucional da EMERJ; ex-Professor Adjunto da UFRJ e ex-Professor Adjunto da UNIRIO, possuindo, entre outros títulos, o de Mestre em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho – UGF e Mestre e Doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Publicou mais de 40 obras jurídicas e de política e segurança internacional, além de mais de três centenas de artigos jurídicos e de outras várias disciplinas, em diversas publicações nacionais e estrangeiras, particularmente revistas e periódicos especializados. 2 Possui graduação em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1993), Mestrado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (1996) e Doutorado em Ciências (Microbiologia) também pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Atualmente é coordenadora do Laboratório de Referência Nacional para Leptospirose do Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e Professora Titular do Programa de Pós-Graduação Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). Tem experiência na área de Ciências da Saúde, atuando em projetos interdisciplinares ligados ao estudo da patogênese, diagnóstico, prevenção e controle da Leptospirose. Atua, também, na área de Ciências Ambientais, com interesse em estudos relacionados à educação em saúde, educação ambiental e desenvolvimento local sustentável. 3 Possui graduação em Comunicação Social (Jornalismo) e em Letras Vernáculas. É especialista em Literaturas Vernáculas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutorado em estudos pós-coloniais, também pela UFF. Fez Pós-Doutorado em Estudos de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na UFRJ. É professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local, do Centro Universitário Augusto Motta, UNISUAM, onde também e professora titular. Desenvolve estudos no âmbito da Educação ambiental e na relação entre educação, cultura, trabalho e desenvolvimento. Estuda cultura popular e elabora metodologias visando à aplicação em Educação Ambiental. Faz Pós-Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ. 1

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UBER, deve abrir o setor de táxis à concorrência, o que permitirá um “arejamento” deste setor da economia e a melhoria do serviço ofertado aos usuários. Palavras-chave: Economia de mercado; tecnologia; serviço de táxi. Abstract In this brief study, it will be developed the idea that UBER, a mobile app that connects a person to a personal driver, is tuned in to the Principle of the Free Competition in the market economy. The work will demonstrate that such business model is totally inserted in the technological phase of capitalism, in its devotional step to innovation, and that, for the so-called economic development in the market economies, the competition, as well as people’s freedom to exercise the right to operate their activities, is fundamental. Thus, the Public Power, instead of repressing UBER, must open the taxi sector to competition, which will allow a “ventilation” of this sector of the economy and the improvement of the services offered to the users. Keywords: Market economy; technology; taxi service.

Introdução A inovação vem sendo cotidianamente invocada como estratégia para tirar nações, regiões e empresas de suas incuráveis angústias econômicas e para alavancar o seu desenvolvimento. Por este motivo, a implementação de políticas eficazes de estímulo à inovação tecnológica tornou-se prática dos governos de diversos países. No Brasil, há várias linhas de financiamento para pesquisas voltadas para a inovação, há o incentivo à criação de incubadoras e núcleos de inovação tecnológica (NITs) nas universidades e em centros de educação tecnológica, e linhas de financiamento de apoio a startups. Na verdade, o conceito de inovação é, a cada dia, mais ampliado. Fala-se de inovação em todos os setores e em diferentes contextos: empresarial, ambiental, educacional, político, econômico... Mas tal conceito está sempre ligado a algo que facilite e, principalmente, diminua custos, seja no âmbito operacional, seja no de gerenciamento. O ato de inovar, neste sentido, significa a necessidade de criar caminhos ou estratégias, diferentes dos habituais,com vistas a facilitar a vida de pessoas. É o caso de aplicativos como o Uber, que conecta motoristas particulares com os usuários que necessitam de serviço de transporte e que, também, permite criar milhares de novas oportunidades econômicas para motoristas em toda parte. Hoje, segundo Blanco (2015), a Uber está operando em mais de 300 cidades, localizadas em 56 países. E tem uma série de diferentes produtos, como UberRush, que ajuda as pessoas a entregar mercadorias por meio de mensageiros de bicicleta em cidades como Nova York, ou UberEats, um serviço de entrega de comida e que já está operando em várias cidades da Europa e dos EUA.

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A economia de mercado, a legislação e os táxis A economia de mercado (triunfante na quase totalidade dos espaços nacionais do planeta Terra), em sua modalidade globalizada, transnacional, padece de uma ameaça constante, chamada concorrência. Neste sentido, a inovação tecnológica é praticamente obrigatória para o desenvolvimento econômico. A concorrência só existe por causa da inovação, que acaba sendo essencial para que as empresas possam se moldar às mudanças que acontecem nas estruturas sociais e econômicas. A economia de mercado, modelo caro ao liberalismo – que defende a total ausência de barreiras - isto é, a ausência de proteção estatal – à entrada de novos concorrentes no mercado, em vários momentos, pode levar empresas e empresários já estabelecidos em um determinado ramo a perderem suas vantagens competitivas, sempre que surgem novas empresas concorrentes. A única maneira de conservar uma fatia do mercado livre da concorrência é por meio de proteção estatal que, por via de regulamentação específica, ampara um determinado setor da economia. O setor de táxis, como afirmam Rallo e Roque (2014), sempre foi um ótimo exemplo de mercado totalmente protegido pelo estado e blindado da concorrência. No Brasil, este serviço é regulamentado pelas prefeituras. Estas emitem licenças que permitem que apenas determinadas pessoas realizem o serviço de táxi. Em quase todo o resto do mundo o funcionamento é o mesmo: só pode prestar serviços de táxi quem o Estado permite. Em linhas gerais, ainda segundo Rallo e Roque (2014),a regulação funciona da seguinte maneira: uma prefeitura anuncia que irá emitir licenças (também chamadas de alvará) para serviços de táxi; os interessados apresentam os documentos necessários e aguardam a seleção, que é feita pelo Poder Público, a partir de critérios estabelecidos em edital. Os candidatos inscritos que perfizerem a maior pontuação são contemplados com a licença gratuitamente e, na prática, por tempo indeterminado. Ainda de acordo com Rallo e Roque (2015), as licenças conseguidas pelos interessados em explorar esse tipo de negócio adquirem um valor de mercado, que varia de cidade para cidade. No Rio de Janeiro, uma licença custa cerca de R$60 mil. Em São Paulo, o valor varia de R$70 a R$120 mil. Se o permissionário for operar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, por exemplo, o valor pode chegar a R$250 mil. Paulo Springer Freitas (2015), por sua vez, recorre ao exemplo da cidade de Brasília, em que o número de licenças está estagnado há mais de 30 anos4 e que, conforme relatos de motoristas, uma placa de táxi custa R$ 100 mil, e rende ao seu dono um aluguel mensal em torno de R$ 3 mil. Em São Paulo, onde a permissão para táxi está associada a um ponto, a placa para poder atuar em um ponto de um bairro nobre como Moema custa R$ 250 mil. Para ter o 4

Em razão do não oferecimento de editais para licenças para o serviço de táxis, as licenças existentes na praça são muito caras.

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direito de pegar passageiros no Aeroporto de Congonhas, são necessários R$ 800 mil. E, se alguém quiser ter uma permissão para pegar passageiros no Aeroporto Internacional de Guarulhos, terá de desembolsar nada menos que R$ 1,2 milhão. O serviço de táxi é regulado pela Lei de Mobilidade Urbana, Lei nº 12.587, de 2012, modificada em alguns artigos pela Lei 12.865, de 2013, que em seu art. 11 diz: “os serviços de transporte privado coletivo, prestados entre pessoas físicas ou jurídicas, deverão ser autorizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público competente, com base nos princípios e diretrizes desta Lei”. O art. 12 reafirma o que está no art. 11: os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, “com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas”. (Redação dada pela Lei nº 12.865, de 2013) Já o art. 12-A disciplina um pouco mais a matéria: “o direito à exploração de serviços de táxi poderá ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local”. (Incluído pela Lei nº 12.865, de 2013); O § 1º deste último artigo preceitua: “é permitida a transferência da outorga a terceiros que atendam aos requisitos exigidos em legislação municipal”. (Incluído pela Lei nº 12.865, de 2013). Já o § 2º desse último artigo afirma que em “caso de falecimento do outorgado, o direito à exploração do serviço será transferido a seus sucessores legítimos, nos termos dos art. 1.829 e seguintes do Título II do Livro V da Parte Especial da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002” (Código Civil). (Incluído pela Lei nº 12.865, de 2013). E o art. 13 preceitua que na “prestação de serviços de transporte público coletivo, o poder público delegante deverá realizar atividades de fiscalização e controle dos serviços delegados, preferencialmente em parceria com os demais entes federativos”. Como mostra Freitas, curiosamente, os artigos 12 e 12A da Lei nº 12.865, de 2013, estabelecem que qualquer interessado poderá explorar os serviços de táxi, desde que atenda aos requisitos mínimos de segurança, conforto, higiene e qualidade de serviços determinados pelo poder público municipal. Ainda assim, a maioria das grandes cidades brasileiras (ou talvez, todas) adota o sistema de permissão, com número limitado de licenças. É em razão dessa opção das prefeituras, ou da interpretação da Lei Federal nº 12. 865, de 2013, que os serviços oferecidos pela UBER causam polêmicas de ordem legal. Segundo Armando de Souza, presidente da comissão da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio de Janeiro, OAB-RJ, o Uber não é ilegal. O parecer emitido por esta entidade sobre a regulamentação do serviço tem como objetivo resolver as disputas no transporte da cidade. “Do ponto de vista jurídico, a atividade é legal, mas depende de uma regulamentação, uma normatização para funcionar”. Ainda de acordo com Armando de Souza, a atividade é totalmente protegida pela Constituição Federal, que em seu art. 1º, inciso IV, afirma que os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são de direito dos trabalhadores; e o artigo 5º, inciso XIII, estabelece que é livre o exercício de qualquer trabalho, desde que o trabalhador tenha as qualidades que a lei determina.

A economia de mercado, a inovação e a UBER Na verdade, toda a discussão sobre a ilegalidade da UBER esconde uma questão maior, anterior e polêmica, que é a discussão em torno do modelo de mercado do serviço de táxi. Isto é, do modelo de proteção do poder público a este setor de serviço de transporte controlado pelo Poder Público, no caso o ente prefeituras. A inovação ao setor de serviço transporte, proporcionada pela UBER, faz emergir várias questões que deveriam ser debatidas pela população, ou minimamente com os usuários dos serviços de táxi, que não pretendem prejudicar os taxistas, mas almejam grandemente por um serviço melhor e mais barato. Neste sentido, várias questões podem ser levantadas. A primeira e fundamental é a seguinte: O Estado deveria continuar organizando, disciplinando e fiscalizando o serviço de transporte privado coletivo, prestados entre pessoas físicas ou jurídicas, ou seria melhor para os consumidores do serviço se o Poder Público apenas fiscalizasse? Outra questão fundamental para o debate é se é “eticamente correto”, em relação aos outros cidadãos, o Estado privilegiar pessoas e grupos com as licenças, sem data de vencimento, com direito à transferência da outorga a terceiros e com direito à transferência a sucessores legítimos (em caso de falecimento do outorgado)? Não seria muito mais equânime abrir este mercado e permitir o livre exercício da concorrência? Ao debate ético também se junta o fato de permitir que se venda algo, as licenças, (que a principio são públicas, de todos), que não foram compradas, mas, paradoxalmente, oferecidas de forma gratuita para a pessoa trabalhar. Vê-se que o debate não é apenas de cunho legal, mas, sobretudo, ético. A chegada do UBER faz questionar exatamente os privilégios e as consequências do monopólio do Poder Público ao setor de táxis e as consequências deste modelo, a pior delas é permitir que se formem verdadeiros “cartéis” do serviço. Essa é mais uma questão igualmente importante que se coloca neste já intrigante debate. Este modelo de gerir as licenças do serviço de táxis pelo Estado, a partir da interpretação da Lei, “organizando, disciplinando e fiscalizando...”, ao permitir que as licenças possam ser vendidas (transferência de outorga), acaba criando uma situação eticamente complicada, pois permite que uma única pessoa, com capital para investir, compre várias licenças e organize uma mega empresa, com centenas de empregados, que sequer têm carteiras de trabalho assinadas. Essas empresas de táxis5 criaram uma subcategoria de taxistas que são os auxiliares, que trabalham no regime de diárias. Estes saem para trabalhar já devendo um valor alto ao dono da licença, que são também donos dos carros. Estes trabalhadores, denominados taxistas auxiliares, são explorados e precisam trabalhar muito, porque além de ganhar para a manutenção de suas vidas e dos 5

Há pequenas, com dois ou três táxis, mediana, com 10 a 20 táxis, e há grandes, com centenas de táxis.

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O Liberalismo, a Inovação e o UBER

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carros, precisam pagar aos patrões, que não se consideram patrões, e se sentem, portanto, isentos das responsabilidades trabalhistas em relação aos empregados, que trabalham, às vezes, 18 horas sem intervalo. O modelo adotado pelo Estado, ao admitir a categoria de auxiliares, acaba contribuindo com o descumprimento das leis trabalhistas por parte dos empresários dos táxis e permitindo o enriquecimento de alguns com um serviço que, paradoxalmente, é público e oferecido gratuitamente pelo Estado, por meio de edital, igualmente público. A polêmica em torno do UBER por parte dos taxistas, na verdade, não são empreendidos pelos taxistas auxiliares, os mais radicalmente preocupados com o rumo dos negócios são os donos de empresas de táxis, estas, sim, ameaçadas pela inovação e concorrência do UBER. Em conversa com taxistas auxiliares, todos confidenciaram que não se sentem ameaçados pela concorrência, pelo contrário, estão lutando para comprar um carro confortável para se associarem ao UBER, porque se sentem explorados pelos empresários dos táxis. As decisões do Poder Público sobre o assunto da regulamentação da UBER deveriam pautar, obviamente, pela modalidade que apresentasse as maiores e melhores vantagens aos consumidores desse tipo de transporte e não a proteção a grupos detentores de centenas de licenças. Como salienta Freitas, é de se estranhar que a sociedade “ache natural o Estado transferir gratuitamente para alguns premiados um patrimônio que lhes rende um aluguel equivalente ao de um apartamento de dois ou três quartos em área nobre da cidade, sem trazer nenhum benefício palpável para o consumidor” (SPRINGER, 2015, p. 5). Como o setor de táxis esteve blindado da livre concorrência, a qualidade do serviço não evoluiu. Não houve uma preocupação em educar, profissionalmente, os motoristas. Há taxistas que desrespeitam totalmente os consumidores com o som do carro ligado muito alto, em programas cujos gêneros agradam apenas o motorista, que nem se questiona sobre a qualidade do serviço que oferece. Há uma falta de clareza e de educação mesmo para a especificidade da função. Há também os que não perguntam sobre a melhor rota; os que aumentam o preço da corrida e, ainda, os que, quando não querem levar o passageiro em algum lugar, em cujo trajeto o trânsito está ruim, fingem que o carro quebrou. Sem falar nos que brigam no trânsito e colocam a vida dos passageiros em perigo. Ora, deficiências como essas são produto exatamente da falta de concorrência no setor, tradicionalmente protegido pelo Estado. E, em razão disso, os táxis não foram capazes de se adaptar às necessidades de preço e qualidade exigidas pelos consumidores. Os preços sempre sobem, mas a qualidade ficou estacionada. Livres da concorrência, não procuraram melhorar, se adaptar, ou se reinventar; ou seja, ficaram longe da inovação, que é que impulsiona qualquer ramo da economia. A ideia de inovação, conforme já se afirmou, não deve ficar fadada apenas à invenção de novos produtos. Na área de serviços, a inovação tecnológica é fundamental para melhorar o atendimento às pessoas, cada vez mais sem tempo. O transporte de passageiros na modalidade de táxis carecia de mais qualidade e eficiência, e a UBER tem contribuído com isto.

Como assinala Guilherme Ary Plonski (2005), a inovação tecnológica está absolutamente vinculada à economia de mercado, e a partir dos anos 90, um dos eixos estruturantes da atuação da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico,OCDE, que abrange 30 países, comprometidos com a democracia pluralista e a economia de mercado. Segundo Luiz Paulo Bignetti (2002), o progresso tecnológico é tido como fruto da competição que se estabelece entre regimes tecnológicos, entre diferentes configurações de design ou entre diferentes opções de um design comum a um grande número de empresa. O domínio de uma tecnologia pode gerar irreversibilidades e restrições. À medida que a tecnologia evolui, desenvolvimentos futuros podem vincular-se a determinado paradigma. No Brasil, principalmente a partir de 2001, como decorrência da mobilização associada à Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, o governo federal ratificou e ampliou a presença pública da tecnologia, pela sua inclusão em um dos carros-chefes da agenda econômica, que é a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior - PITCE. Uma de suas medidas mais evidentes é a Lei nº 10.973/04, que tem por apelido “Lei da Inovação”. As declarações do secretário municipal de Transportes do Rio de Janeiro, Rafael Picciani, a Francisco Edson Alves, de O Dia, em 26 de julho de 2015 (no dia da passeata dos taxistas, no Aterro de Flamengo contra o UBER) são preocupantes. Há nas palavras do secretário um comportamento fora de sintonia em relação à inovação e ao desejo dos consumidores. Em suas palavras: “a prefeitura segue ‘ao lado dos taxistas na causa’”. “Estamos abastecendo a Procuradoria do Município com dados sobre como o aplicativo vem sendo utilizado, para que providências judiciais sejam tomadas”. E prosseguiu: “Entendemos ser um risco para a sociedade a atuação de uma categoria que, sequer, tem cadastro junto à prefeitura”. Percebe-se que há uma incapacidade de gerir a coisa pública, quando a questão colocada questiona o modelo vigente de administração. Enquanto o secretário falava ao jornalista Francisco Alves, a Uber afirmou que o número de novos cadastros de clientes aumentou (no dia da carreata dos taxistas) 20 vezes em relação a um dia normal. Neste dia, a empresa também fez promoção em que ofereceu duas corridas grátis (no valor máximo de R$ 50) para cada cliente. Também, dois dias antes da passeata, o aplicativo da Uber foi o programa mais baixado na AppStore do Brasil. Na Google Play, loja de aplicativos para Android, o aplicativo estava no topo da lista dos mais recomendados. Como bem afirmou Castelo (2015), o Poder Público, não satisfeito em não fornecer serviços de transporte de qualidade, impede e atrapalha o empreendedorismo no setor. O caso Uber é apenas mais uma ação punitiva entre tantas demonstrações dos resultados do intervencionismo. Visando proteger sindicatos e grupos de transportadoras, que adquiriram o privilégio legal, ainda acompanhando o raciocínio de Castelo (2015), as ações públicas não medem esforços para limitar as oportunidades de trabalho de centenas e centenas de pessoas e limitar, ao mesmo tempo, a oferta de um serviço de qualidade aos usuários de táxis.

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Considerações finais Os taxistas lutam, com armas de grupo de pressão que é, para a manutenção dos privilégios para explorar um setor importante da economia, sob a alegação de perdas e custos despendidos para exercer a profissão, pois para operar um táxi, além de conseguir o alvará – que é de graça – o motorista precisa conseguir uma permissão que envolve burocracia e algum investimento. Os trabalhadores vinculados ao Uber, por sua vez, querem atuar no ramo de transporte, antes filão protegido exclusivamente para os taxistas, exercendo, assim, os seus direitos protegidos pela Constituição, vinculados aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pois em consonância com a CF é livre o exercício de qualquer trabalho, desde que o trabalhador tenha as qualidades que a lei determina. Já os consumidores do serviço de transporte almejam por melhorias e querem exercer sua liberdade de escolher os bens e serviços que consomem. Diante disso, a regulamentação da UBER é algo irreversível do ponto de vista político, sobretudo, porque é desejo dos consumidores, que almejam melhoria de qualidade nos serviços de transporte, de um modo geral, e, de modo particular, nos serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros. A inovação trazida pela UBER fez despertar as necessidades de tais melhorias, antes quase impensadas em razão do modelo desse tipo de serviço de transporte ser imune à concorrência. A possibilidade de abertura do setor à concorrência, mesmo com todas as “escaramuças” ao UBER, ocasionadas pela pressão do monopólio ao Poder Público, já acenou com a melhoria do serviço prestado pelos próprios taxistas, que agora já sabem que precisam perguntar ao passageiro qual a rota que ele deseja fazer entre o ponto de embarque e o de desembarque. A concretização da regulamentação acontecerá, mesmo com a má vontade de muitos parlamentares e gestores da coisa pública, que recebem apoio do setor (e alguns são donos de frotas de táxis) e que apostam no caos do transporte para reinarem. Tal regulamentação, consequentemente, trará consequências econômicas para o grupo que detinha o monopólio e dormia em “berço esplêndido”, antes da chegada do UBER, exatamente pela ausência de concorrência. Mas, apesar disto, e sem desprezar medidas que possam minimizar perdas, as decisões políticas acerca da questão não pode responder apenas aos anseios de um determinado grupo de pressão, que insiste um modelo que já mostrou seus limites.

Reis Friede, Katia Avelar e Maria Geralda de Miranda

BIGNETTI, Luiz Paulo. O processo de inovação em empresas intensivas em conhecimento. Revista de Administração Contemporânea. Vol. 6 nº 3 Curitiba Sept./Dec. 2002. Disponível em . Acesso: 11 nov. 2015. BOECKEL, Cristina. OAB-RJ afirma que Uber não é ilegal, mas precisa de regulamentação. O Globo. Disponível em . Acesso: 20 nov. 2015. FREITAS, Paulo Springer de. “Quem ganha e quem perde com a liberação dos táxis?” Brasil: Economia e Governo. Disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org. br/2015/07/08/quem-ganha-e-quem-perde-com-a-liberacao-dos-taxis/. Acesso 10 nov. 2015. PADOVANI, Frederico. “Qual o preço da inovação? – UBER X Taxis”. Instituto Liberal. Disponível em http://www.institutoliberal.org.br/blog/qual-o-preco-da-inovacao-uber-xtaxis/. Acesso em: 20 nov. 2015 PEREIRA, Fernanda. Uber não é concorrência desleal, é inovação de um serviço já prestado. Consultor Jurídico. Disponível em . Acesso em: 20 nov. 2015. PLONSKI,Guilherme Ary. Bases para um movimento pela inovação tecnológica no Brasil. São Paulo: Perspectiva. Vol. 19 nº 1. Jan./Mar. 2005. Disponível: . Acesso: 11 nov. 2015. RALLO, Juan Ramón; ROQUE, Leandro. “O cartel dos taxistas contra os aplicativos para carona”. Instituto Ludwig von Mises Brasil. Publicado em 25 de abril de 2014. Disponível em: . Acesso: 18 nov. 2015. PROXXIMA 2015. “Como o Uber está modificando a questão da mobilidade urbana”. Entrevista com Ana Paula Blanco, diretora global da UBER. Disponível em: . Acesso: 20 nov. 2015.

Referências bibliográficas

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Instrumentalidade Recursal no Código de Processo Civil de 2015 Alexandre de Castro Catharina1 Resumo O Código de Processo Civil de 2015 dispôs, em suas normas fundamentais, sobre a primazia da decisão de mérito (art.4º), estabelecendo a instrumentalidade do processo como um postulado a ser observado pelo julgador na condução do procedimento judicial. Com efeito, a instrumentalidade mereceu importante destaque no âmbito do controle das decisões judiciais determinando, como regra geral, o aproveitamento do recurso interposto relativizando, neste contexto, o rigor formalista na apreciação dos requisitos de admissibilidade recursal. Diante desse novo modelo procedimental o presente artigo tem como objetivo refletir sobre alguns aspectos da denominada instrumentalidade recursal e seus efeitos práticos em nossa cultura jurídica processual. Palavras-chave: Reformas processuais; teoria geral dos recursos; instrumentalidade recursal. Abstract The Civil Procedure Code 2015 decided, in its fundamental rules on the primacy of substantive decision ( art.4º ), establishing the instrumentality of the process as a postulate to be observed by the judge in the conduct of legal proceedings. Indeed, the instrumentality deserved important highlight under the control of judicial decisions determining, as a rule, the use of the appeal relativising in this context , the formalist rigor in assessing the appeal admissibility requirements. In this new procedural model this article aims to reflect on some aspects of the so called instrumentality appeal and its practical effects on our procedural legal culture. Keywords: Procedural reforms; general theory of resources; instrumentality appeal.

O Código de Processo Civil de 2015 pretendeu estabelecer uma nova metodologia de solução de conflitos privilegiando a autocomposição, a flexibilização dos procedimentos, a objetivação no julgamento dos recursos e a ampliação dos negócios processuais em nossa cultura jurídica processual. Entretanto, a temática do controle das decisões judiciais mediante recursos e ações autônomas de impugnação, mereceu tratamento cuidadoso pela Lei nº 13.105/2015, o que é digno de análise mais acurada em sede doutrinária. O código sistematizou os meios de impugnação das decisões judiciais no Livro III, possibilitando o aprimoramento normativo de algumas ações autônomas de impugnação e o regramento adequado dos recursos, incorporando boa parte da contribuição doutrinária e jurisprudencial acerca do tema. 1

Doutor em Sociologia Jurídica pelo IUPERJ/UCAM. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito Processual Civil (graduação e PósGraduação) da Universidade Estácio de Sá. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP.

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Neste contexto, a ação rescisória teve seu objeto ampliado para contemplar hipóteses de rescisão de sentença sem resolução de mérito (art.966, §2º), além de possibilitar encaminhamento da ação rescisória ajuizada em órgão jurisdicional incompetente para o juízo competente, após a respectiva emenda da petição pelo autor nos termos do art. 968, §5º do CPC/2015. O código regulamentou, também, a Reclamação em seu art. 988, adequando o procedimento desta ação autônoma de impugnação ao necessário controle da aplicação do sistema de precedentes inserido em nossa processualística. Em sede de recursos as principais mudanças foram pontuais. A eliminação dos embargos infringentes2 e a exclusão do agravo retido3 do sistema recursal constituem, em alguma medida, providência necessária para reduzir o número de recursos no processo civil, apontado, por alguns estudiosos, como a causa principal da morosidade sistêmica dos tribunais (Boaventura Santos, 2006). No entanto, a principal mudança metodológica4 concerne à extensão do princípio do aproveitamento dos atos processuais no âmbito recursal, privilegiando a apreciação do mérito em detrimento do apego ao formalismo excessivo que excluía da apreciação judicial recursos que não se adequavam à forma prescrita em lei. Trata-se, nesse sentido, da ampliação da aplicação do princípio da instrumentalidade5 nos procedimentos recursais, propiciando a construção, em sede doutrinária, do princípio da instrumentalidade recursal no CPC/20156. José Miguel Medina (2015) trata da instrumentalidade recursal como uma superação do próprio princípio da fungibilidade recursal, admitindo a correção e o aproveitamento do recurso interposto, conforme disposto no art. 932,§único, do CPC/2015. Com efeito, sustentamos, nessa mesma linha de raciocínio, que a instrumentalidade constitui, em verdade, mais que um princípio alçando a

condição de um postulado através do qual a atividade recursal será conduzida. Tal interpretação decorre da ampliação das regras acerca dos aproveitamentos dos atos inerentes à atividade recursal levado a efeito pelo novo Diploma processual. Pretendemos, portanto, nesse artigo, destacar os principais aspectos desse postulado no texto normativo do Código de Processo Civil de 2015 e sua importância para a efetividade do processo7.

O recurso de embargos infringentes foi excluído do sistema recursal, mas o art. 942 estabelece um incidente com a finalidade de se superar a divergência estabelecida no julgamento da apelação. 3 As decisões interlocutórias não impugnáveis mediante agravo de instrumento serão impugnadas em sede de apelação conforme dispõe o art. 1.009,§1º do CPC/2015. 4 Dinamarco (2002) ao tratar, em estudo clássico, do aspecto positivo da instrumentalidade processual sustenta que A força das tendências metodológicas do direito processual civil na atualidade dirige-se com grande intensidade para a efetividade do processo, a qual constitui expressão resumida da ideia de que o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus escopos institucionais (p.330). 5 A obra Instrumentalidade do Processo de Cândido Rangel Dinamarco é uma importante referência sobre o tema no Brasil. 6 Importante destacar que a instrumentalidade recursal, até a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, era estudada como um desdobramento ou extensão do princípio da fungibilidade recursal. Em nosso entendimento, o CPC/2015 possibilita a interpretação no sentido de se entender a instrumentalidade recursal como um metaprincípio e a fungibilidade dos recursos aplicáveis em algumas poucas hipóteses admitidas em lei, como poderá ocorrer nos casos de dúvida objetiva em relação a interposição de agravo de instrumento ou apelação. 2

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Do aproveitamento do recurso interposto inadequadamente O art. 932, parágrafo único, determina que o relator somente inadmitirá o recurso interposto após a concessão de prazo de 05 (cinco) dias para correção do vício ou complementação da documentação exigível. Tal regra permite ao recorrente corrigir eventuais vícios, viabilizando o julgamento do recurso interposto em desalinho com a forma prescrita no código. A instrumentalidade recursal, na vigência do CCPC/1973, tem a sua extensão limitada considerando que ainda é considerada como sinônimo de fungibilidade recursal. É sólida a interpretação judicial sobre a aplicação do princípio fungibilidade recursal nos casos em que não se evidencia o erro grosseiro, conforme se constata da dos fundamentos determinantes do precedente judicial que se transcreve: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE A RECURSO EM AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. Pode ser conhecida a apelação que, sem má-fé e em prazo compatível com o previsto para o agravo de instrumento, foi interposta contra decisão que, em juízo prévio de admissibilidade em ação de improbidade administrativa, reconheceu a ilegitimidade passiva ad causam de alguns dos réus. Na situação em análise, não há erro grosseiro, apto a afastar a aplicação do princípio da fungibilidade. Com efeito, não há, de modo específico e expresso, qualquer menção ao recurso cabível para a hipótese de rejeição da petição inicial da ação de improbidade administrativa em decorrência do exame das questões trazidas no contraditório preliminar (art. 17, §§ 8º e 9º, da Lei n. 8.429/1992); no entanto, quanto ao recebimento da inicial, a Lei é expressa ao afirmar que “caberá agravo de instrumento” (art. 17, § 10), o que reforça a inexistência de previsão expressa de recurso para o caso de rejeição inicial. Além disso, há na jurisprudência do STJ precedente no sentido de que, do ato que exclui determinado sujeito passivo da lide, prosseguindo o feito em relação aos demais, cabe apelação (REsp 678.645-PE, Segunda Turma, DJ 23/5/2005). Registre-se também que há na doutrina entendimento no sentido de que o recurso cabível para a hipótese seria a apelação. Considerando, ainda, a reforma processual implantada pela Lei n. 11.232/2005 - que introduziu alteração no conceito de decisão interlocutória- e que não se cuida de erro grosseiro e inescusável, é razoável a conclusão quanto à aplicação do princípio da fungibilidade. O STJ somente não admite “o princípio da fungibilidade recursal quando não houver dúvida objetiva sobre qual o recurso a ser interposto, quando o dispositivo legal não for ambíguo, quando não houver divergência doutrinária ou jurisprudencial quanto à classificação do ato processual recorrido e à forma de atacá-lo” (EDcl no AgRg na Rcl 1.450-PR, Corte Especial, DJ 29/8/2005). De mais a mais, os institutos processuais devem ser interpretados do modo mais favorável ao acesso à justiça. AgRg no REsp 1.305.905-DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 13/10/2015, DJe 18/12/2015. 7

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Essa regra permite, inclusive, que o agravante, no prazo de 05 dias, complemente as cópias obrigatórias, elencadas no art. 1.017, I, conforme dispõe expressamente o parágrafo 3º do mesmo dispositivo legal. Percebese, portanto, que se trata de uma metodologia de solução de conflitos que privilegia o julgamento de mérito do recurso, eliminando do sistema recursal a inadmissibilidade inócua de recursos interpostos inadequadamente, do ponto de vista formal, mas que podem viabilizar a análise da questão de fundo. Em verdade, não se trata de fungibilidade recursal, mas sim da ampliação do princípio da instrumentalidade das formas para o âmbito recursal. Importante destacar que o código não privilegiou o descuido ou despreparo dos operadores do direito na interposição de recursos, ao contrário, deu força normativa ao princípio do acesso à ordem jurídica justa, que tem como corolário garantir não somente o acesso ao sistema de justiça, mas, principalmente, alcançar a decisão de mérito da questão submetida ao Poder Judiciário. Parece-nos ser essa a melhor interpretação do art. 4º do CPC/2015. Neste sentido, trata-se de um postulado voltado para a instrumentalidade recursal que norteia admissibilidade de todos os recursos regidos pelo art. 994 do CPC/2015. Neste contexto, o Código de Processo Civil de 2015 se contrapõe a certa cultura jurídica processual que se acumulou através da edição de diversos precedentes voltados para inadmissão de recursos, denominada pela doutrina como jurisprudência defensiva8.

O código permite, ainda, ao recorrente sanar vícios decorrentes de preenchimento indevido da guia de custas, conforme dispõe o art. 1.007,§7º, no prazo de 05 dias. Essas regras, interpretadas sistematicamente, nos conduzem à compreensão de que o Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu como eixo transversal a instrumentalidade das formas estabelecendo como regra instransponível o julgamento do mérito dos recursos. O regime do preparo no código revogado permitia que questões jurídicas graves e prementes não fossem apreciadas devido a questões secundárias como recolhimento das custas ou preenchimento indevido das guias. Essa prática judiciária não se coaduna com as garantias constitucionais processuais que foram incorporadas pelo novo código em suas normas fundamentais9.

Da possibilidade de adequação do preparo O instrumentalismo recursal também se evidencia de forma muito ampla no requisito extrínseco do preparo. O Código de 1973 admitia a complementação do preparo insuficiente no prazo de 05 dias, conforme dispunha o art. 511,§2º. No entanto, a regra somente era aplicada nos casos de insuficiência, sendo declarado deserto os recursos que, por alguma razão, não fora recolhido. A Lei nº 13.105/2015 estabeleceu um regime amplo no sentido de viabilizar a correção de vícios ou insuficiência do preparo optando por evitar a inadmissibilidade de recursos pela ausência desse requisito recursal. O art. 1.007,§ 2º confere prazo de 05 dias para complementação do preparo insuficiente. Neste particular não há inovação em nossa processualística. Entretanto, a inovação decorre da regra do parágrafo 4º do mesmo dispositivo legal, que permite o recolhimento integral do preparo no prazo de 05 dias, nos casos em que não comprovação de seu recolhimento no ato da interposição. Trata-se de regra nova em nossa sistemática que tem como escopo maior alcançar o enfrentamento do mérito recursal como premissa maior da atividade judiciária. 8

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Como exemplo pode-se citar o verbete da súmula 418 do STJ, que inadmitia como intempestivo o recurso interposto antes do prazo. Tal entendimento foi superado pela regra do art. 218,§4º do CPC/2015.

Da sistemática dos embargos de declaração Dentre os recursos enumerados em nossa processualística civil os embargos de declaração foram os que mais sofreram alterações. Em verdade, as alterações no regime dos embargos de declaração decorreram da incorporação de conceitos doutrinários e precedentes judiciais sobre a temática, contribuindo para ampliar e aprimorar o escopo desse importante recurso cuja finalidade é corrigir e integrar decisões judiciais. Abordaremos, portanto, alguns aspectos que, em nosso sentir, estão alinhados com o aqui denominado instrumentalismo recursal. O primeiro aspecto diz respeito à conversão dos embargos de declaração em agravo interno nos termos no art. 1.024,§3º do CPC. Em verdade, o recebimento dos embargos de declaração como agravo interno já constitui prática de alguns Tribunais brasileiros em homenagem ao princípio da instrumentalidade, compreendido em seu sentido lato. O código, portanto, tornou essa prática regra geral, mas avançou no sentido de determinar que, nesses casos, o órgão deverá intimar o recorrente para, no prazo de 05 dias, complementar suas razões recursais. A finalidade da regra é impedir que os embargos de declaração sejam admitidos como agravo interno mas no mérito seja negado provimento por insuficiência de fundamentação. A imposição legal é acertada considerando que os embargos de declaração possui fundamentação vinculada, o que impede maiores alegações e fundamentos que não se enquadrem nas hipóteses de cabimento dispostas no art. 1.022. A regra, entretanto, decorre do instrumentalismo recursal que visa possibilitar a apreciação adequada do mérito. 9

Marinoni (2015) sustenta com clareza sobre a irradiação dos princípios constitucionais no processo civil ao dizer que: tendo em conta o caráter instrumental do processo, que serve precipuamente para a tutela dos direitos, eventuais equívocos na sai condução devem ser sobrelevados, sempre que possível, para que o processo possa alcançar a sua finalidade. Repugna ao Estado Constitucional que o direito material venha a soçobrar em face do uso inadequada do processo. Assim como o “erro de forma do processo” acarreta unicamente a “anulação dos atos que não possam ser aproveitados” (art.283), também o erro na interposição de terminado recurso só deve conduzir ao seu não conhecimento acaso não possa de modo algum ser conhecido (p. 514).

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O segundo aspecto concerne à dispensa da ratificação do recurso interposto pelo embargado, conforme dispõe o art. 1.024,§§4º e 5º. Destarte, caso haja oposição de embargos de declaração por uma parte e interposição de apelação pela outra o processamento da apelação será interrompido (art. 1.026). No entanto, após o julgamento dos embargos de declaração o apelante está dispensado de ratificar o recurso previamente interposto, o que constitui avanço no que diz respeito à instrumentalidade recursal. A Lei nº13.105/2015, portanto, estabelece, neste particular, procedimentos distintos que são definidos a partir do resultado do julgamento dos embargos de declaração. Se os embargos forem rejeitados, o recurso interposto pela outra parte antes da publicação do julgamento dos embargos será processado independente de ratificação (art. 1.024,§5º). Caso os embargos forem acolhidos e alterarem o conteúdo da decisão, a parte que interpôs apelação será intimada para alterar suas razões recursais no limite da modificação realizada pelo julgador, no prazo de 15 dias (art. 1.024,§4º). Sem dúvida, trata-se de importante avanço no que tange ao aproveitamento dos atos recursais praticados (instrumentalismo recursal). Importante registrar que o Superior Tribunal de Justiça, no período da vacatio legis do CPC/2015, sinalizou (overruling) no sentido da aplicabilidade parcial da Súmula 418, limitando-se a necessidade de ratificação somente nas hipóteses de modificação do julgado. Vale transcrever, a despeito de sua extensão, os fundamentos determinantes do precedente:

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Direito processual civil. Desnecessidade de ratificação do recurso interposto na pendência de julgamento de embargos declaratórios Não é necessária a ratificação do recurso interposto na pendência de julgamento de embargos de declaração quando, pelo julgamento dos aclaratórios, não houver modificação do jugado embargado.  A Súmula 418 do STJ prevê ser “inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”. A despeito da referida orientação sumular, o reconhecimento da (in)tempestividade do recurso prematuro por ter sido interposto antes da publicação do acórdão recorrido ou antes da decisão definitiva dos embargos de declaração – e que não venha a ser ratificado – foi objeto de entendimentos diversos tanto no âmbito do STJ como do STF, ora se admitindo, ora não se conhecendo do recurso. Ao que parece, diante da notória divergência, considerando-se a interpretação teleológica e a hermenêutica processual, sempre em busca de conferir concretude aos princípios da justiça e do bem comum, mostra-se mais razoável e consentâneo com os ditames atuais o entendimento que busca privilegiar o mérito do recurso, o acesso à justiça (art. 5°, XXXV, da CF), dando prevalência à solução do direito material em litígio, atendendo a melhor dogmática na apreciação dos requisitos de admissibilidade recursais, afastando o formalismo interpretativo para conferir efetividade aos princípios constitucionais responsáveis pelos valores mais caros à sociedade. Nesse contexto, a celeuma surge exatamente quando se impõe ao litigante que interpôs recurso principal, na pendência de julgamento

Alexandre de Castro Catharina

de embargos declaratórios, o ônus da ratificação daquele recurso, mesmo que seja mantida integralmente a decisão que o originou. É que a parte recorrente (recurso principal) não poderá interpor novo recurso, não obstante a reabertura de prazo pelo julgamento dos embargos, uma vez constatada a preclusão consumativa. Em verdade, só parece possível pensar na obrigatoriedade de ratificação – rectius complementação – do recurso prematuramente interposto para que possa também alcançar, por meio de razões adicionais, a parte do acórdão atingida pelos efeitos modificativos e/ou infringentes dos embargos declaratórios. Aliás, tratase de garantia processual da parte que já recorreu. Deveras, é autorizado ao recorrente que já tenha interposto o recurso principal complementar as razões de seu recurso, caso haja integração ou alteração do julgado objeto de aclaratórios acolhidos, aduzindo novos fundamentos no tocante à parcela da decisão que foi modificada. Porém, ele não poderá apresentar novo recurso nem se valer da faculdade do aditamento se não houver alteração da sentença ou acórdão, porquanto já operada, de outra parte, a preclusão consumativa – o direito de recorrer já foi exercido. Esse entendimento é consentâneo com a jurisprudência do STJ (REsp 950.522-PR, Quarta Turma, DJe 8/2/2010). Assim sendo, não havendo alteração da decisão pelos embargos de declaração, deve haver o processamento normal do recurso (principal), que não poderá mais ser alterado. Esse entendimento é coerente com o fluxo lógicoprocessual, com a celeridade e com a razoabilidade, além de estar a favor do acesso à justiça e em consonância com o previsto no art. 1.024, § 5º, do novo CPC. Dessarte, seguindo toda essa linha de raciocínio, o STF proclamou, recentemente, posicionamento no sentido de superar a obrigatoriedade de ratificação (RE 680.371 AgR-SP, Primeira Turma, DJe 16/9/2013). Ademais, no tocante aos recursos extraordinários, que exigem o esgotamento de instância (Súmula 281 do STF), não há falar que a interposição de recurso antes do advento do julgamento dos embargos de declaração não seria apta a tal contendo. Isso porque os aclaratórios não constituem requisito para a interposição dos recursos excepcionais, não havendo falar em esgotamento das vias recursais, uma vez que se trata de remédio processual facultativo para corrigir ou esclarecer o provimento jurisdicional. Com efeito, a referida exigência advém do fato de que os recursos extraordinários não podem ser exercidos  per saltum, só sendo desafiados por decisão de última ou única instância. Entender de forma diversa seria o mesmo que afirmar que sempre e em qualquer circunstância os litigantes teriam que opor embargos declaratórios contra acórdão suscetível de recurso de natureza extraordinária. Aliás, o efeito interruptivo dos embargos, previsto no art. 538 do CPC, só suporta interpretação benéfica, não podendo importar em prejuízo para os contendores. Portanto, a única interpretação cabível para o enunciado da Súmula 418 do STJ é no sentido de que o ônus da ratificação do recurso interposto na pendência de julgamento de embargos declaratórios apenas existe quando houver modificação do julgado embargado.  REsp 1.129.215-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/9/2015, DJe 3/11/2015.

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No entanto, o avanço interpretativo deste tribunal superior ainda admite a eficácia da referida súmula determinando a ratificação nos casos em que haja modificação do julgado. Parece-nos, numa primeira análise, que a decisão ainda não está em perfeito alinhamento com CPC/2015, considerando que o código determina tão somente o direito da parte de complementar, no prazo de 15 dias, suas razões recursais. Neste sentido, ao se interpretar, contrario sensu, a regra do art. 1.024,§4º, concluímos pela admissão do recurso, mesmo nos casos em que a decisão tenha sofrido modificação e o recorrente não tenho complementado suas razões recursais. Tal interpretação literal, por si só, conduz a conclusão da total ineficácia da Súmula 418, mesmo com a nova interpretação atribuída pelo STJ no julgado acima. O terceiro e último aspecto está relacionado com os embargos de declaração para fins de pré-questionamento. A ausência de pré-questionamento10 constitui, sem dúvida, uma das maiores causas de inadmissibilidade dos recursos excepcionais. O art. 1.025 do CPC superou esse obstáculo formal ao considerar incluídos no acórdão recorrido os elementos que o embargante suscitou, mesmo nos casos em que os embargos são rejeitados pelo órgão julgador. No entanto, a regra somente será aplicada nos casos em que o tribunal superior considerar como existentes os fundamentos veiculados nos embargos declaratórios. A regra é fundamental para se evitar arbitrariedades no julgamento dos embargos com fins de pré-questionamento que, em alguns casos, são rejeitados sob o fundamento de que não há omissão ou obscuridade inviabilizando o acesso do embargante aos tribunais superiores por ausência de tal requisito. Não há dúvida de que o mencionado dispositivo reduzirá arbitrariedades e terá, como consequência, a redução da incidência de aplicação de multa por embargos protelatórios11. Em nosso entendimento, o novo regramento dos embargos de declaração evidencia o postulado do instrumentalismo recursal muito bem dimensionado pelo CPC/2015. Outro dado digno de nota, nesta temática, é a superação da Súmula 32012 do Superior Tribunal de Justiça pelo art. 941,§3º. O mencionado dispositivo dispõe que o voto vencido integrará o acórdão, inclusive para fins de préquestionamento. Assim, mesmo que a questão (constitucional ou federal) tenha sido ventilada somente no voto vencido e os embargos de declaração forem rejeitados o requisito do pré-questionamento estará presente. Trata-se de inovação que pretende superar uma cultura jurídica e judiciária fundada em ampla jurisprudência defensiva. Essas inovações evidenciam a postura metodológica do código assentada no instrumentalismo recursal. Pré-questionar significa discutir nas instâncias inferiores a questão federal ou constitucional que se pretende levar, pela via dos recursos excepcionais, aos Tribunais superiores. 11 A rejeição dos embargos declaratórios com fins de pré-questionamento enseja a oposição de novos embargos com a finalidade de cumprir o requisito. No entanto, a reiteração de embargos acarreta a aplicação multa, que foi majorada no CPC/2015, dificultando o acesso do embargante aos tribunais superiores. Essa regra garante o acesso aos tribunais superiores mesmo nos casos de arbitrariedades dos tribunais locais. 12 “A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento”. 10

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Da conversão do recurso extraordinário em recurso especial e vice-versa Os recursos excepcionais foram objeto de diversas inovações no Código de Processo Civil de 2016. A inovação que será abordada nessa reflexão diz respeito à conversão do recurso extraordinário em recurso especial e vice-versa. A instrumentalidade recursal mencionada está disposta nos arts. 1.032 e 1.033. Segundo a norma do art. 1.032, se o relator do recurso especial no Superior Tribunal de Justiça entender que a matéria impugnada versa sobre tema constitucional deverá conceder prazo para que o recorrente demonstre a respectiva repercussão geral (requisito específico do recurso extraordinário) e, após o cumprimento do requisito, o recurso será remetido ao Supremo Tribunal Federal. A regra do art. 1.033 é similar. Caso o relator do recurso extraordinário entender que a violação ao texto constitucional é reflexa, remeterá o recurso para o Superior Tribunal de Justiça que deverá proceder ao julgamento do respectivo recurso. A regra é, em nosso sentir, inovadora e voltada para aproveitamento do recurso excepcional interposto viabilizando o acesso às Cortes superiores, principalmente se considerarmos a objetivação dos recursos especial e extraordinário aprofundada pela Lei nº 13.105/2015.

Conclusão O nosso principal objetivo nessas breves linhas foi contribuir para ampliar a reflexão sobre a irradiação do princípio da solução integral do mérito (art.4º) como vetor interpretativo da nova legislação processual, que no âmbito recursal se manifesta através do instrumentalismo recursal. Se o instrumentalismo recursal constituísse a base da nossa cultura jurídicaprocessual não haveria necessidade de se pautar o debate sobre esse tema. No entanto, o código será aplicado num ambiente jurisdicional onde a primazia do mérito em sede de recurso não informa a prática judiciária atual, o que exigirá um maior controle por parte dos profissionais do direito. Por outro lado, a maior virtude do Código de Processo Civil de 2015 pode, também, ser a sua maior dificuldade no que diz respeito à aplicabilidade. Humberto Theodoro Junior et ali (2015) elogia o ambiente democrático em que o Projeto do novo código foi maturado. Esse fato é digno de nota e de aplausos, considerando que o CPC/1973 foi elaborado em plena ditatura militar. No entanto, a diversidade de visões e posturas doutrinárias, natural em qualquer projeto que se pretende democrático, oriunda da advocacia, da magistratura e da própria academia, estabeleceu uma verdadeira correlação de força que pode ser identificada em diversos dispositivos do código. A própria Lei nº 13.256/2016, que revoga alguns dispositivos do código, constitui evidencia da correlação de força estabelecida. Com efeito, essa tensão se manifestará, também, na aplicabilidade das regras que tratam do instrumentalismo recursal podendo, inclusive, ampliar ou reduzir sua extensão.

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Registro, por fim, minha convicção de que o Código de Processo Civil de 2015 contribuirá para a consolidação de um novo modo de ser do processo, tornando-o mais democrático, cooperativo, célere, privilegiando, sobre tudo o instrumentalidade recursal.

Referências bibliográficas BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e aplicação das regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil – Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2015. MEDINA, José Miguel Garcia. Direito Processual Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. v. 14. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2012. SANTOS, Boaventura de Sousa. A sociologia dos tribunais e a democratização da justiça. In: Pela Mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2006. p. 141-162. THEODORO JUNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flavio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

Positivismo como respostas à Sociedade Industrial e a Crítica Marxista1 Wellington Trotta2 Resumo O objetivo deste trabalho, ora como esboço, é repensar o positivismo à luz de novas investigações como efeito direto de um processo cujas raízes estão na Revolução Científica e no Iluminismo, sem contar que nasce sob o punho de Auguste Comte como resposta às revoluções francesa e industrial, enfatizando sua filiação às correntes prático-teóricas e sua orientação para os problemas advindos da nova ordem industrial no século XIX. Ressalta-se, ainda, que as linhas últimas deste texto são emprestadas ao marxismo como considerações finais, isso como crítica, não localizada no corpo do texto para não contaminá-lo. Palavras-chave: Positivismo; Comte; sociologia; iluminismo; ciência. Summary The objective of this work, either as draft, is to rethink the positivism in the light of new research as a direct effect of a process whose roots are in the Scientific Revolution and the Enlightenment, not to mention that is born under the Auguste Comte fist in response to the revolutions French and industrial, emphasizing their affiliation to the practical and theoretical perspectives and guidance to the problems arising from the new industrial order in the nineteenth century. It is noteworthy also that the last lines of this text are borrowed from Marxism as concluding remarks, that as a criticism, not found in the text not to contaminate it. Keywords: Positivism; Comte; sociology; enlightenment; science.

Introdução O objetivo deste trabalho, ora como esboço, é repensar o positivismo à luz de novas investigações como efeito direto de um processo cujas raízes estão na Revolução Científica e no Iluminismo, sem contar que nasce sob o punho de Auguste Comte como resposta às revoluções francesa e industrial, enfatizando sua filiação às correntes prático-teóricas e sua orientação para os problemas advindos da nova ordem industrial no século XIX. Este Capítulo tem sua origem em apontamentos de minhas aulas das disciplinas Filosofia e Filosofia da Ciência do Curso de Serviço Social - UNESA. 2 Wellington Trotta tem Graduação em Direito (UGF) e Filosofia (UERJ), Mestrado em Ciência Política (UFRJ), Doutorado em Filosofia (UFRJ) e Pós-Doutorado (UFRJ), leciona Filosofia na UNESA, além de coordenar o Núcleo de Pesquisa de Ciências Jurídicas e Sociais NPCJS e o periódico www.revistalogoseveritas.inf.br no campus Cabo Frio - UNESA. 1

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A eleição do marxismo ao positivismo como contraponto deve-se ao aspecto de que essa escola, ao contrário das escolas individualistas, constitui um corpo teórico consistente, ao mesmo tempo em que apresenta um conjunto de princípios que norteia a perspectiva de mudanças sociopolíticas. Ressalta-se que as linhas emprestadas ao marxismo estão nas considerações finais, isso para não contaminar as análises que se fez no corpo do texto. Nesse sentido, este trabalho está dividido em dois tópicos e uma conclusão. No tópico primeiro, analisa-se o significado e a importância do Iluminismo. No segundo, mais extenso, estudam-se os elementos mais importantes do pensamento positivista, enquanto o terceiro é uma comparação crítica, supostamente marxiana.

O Iluminismo e sua influência sobre Comte

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O Iluminismo foi um movimento do pensamento europeu a partir da segunda metade do séc. XVIII que abrange não só o pensamento filosófico, porém as artes, as ciências, a teoria política, a doutrina jurídica etc. Trata-se, portanto, de um movimento cultural amplo que reflete todo um determinado contexto político e social da época, embora adquira características próprias em países e momentos diferentes, não consistindo, assim, em uma doutrina filosófica ou teórica específicas, mas sim em um conjunto de ideias e valores compartilhados por distintas correntes, tendo diferentes formas de expressão nas ciências, nas letras e nas artes. O termo iluminismo (ilustração ou esclarecimento) indica uma oposição às trevas, ao obscurantismo, à ignorância, à superstição, enfatizando a necessidade de o real tornar-se transparente à razão. O pressuposto básico do Iluminismo afirma que todos os homens são dotados de uma espécie de luz natural, de racionalidade capaz de aprender, capaz de permitir que se conheça o real e viver livre e adequadamente para a realização de seus fins. A filosofia do Iluminismo pode ser compreendida como a filosofia dos burgueses. O burguês é o homem novo que luta pelas reformas progressistas contra o obscurantismo e os privilégios da aristocracia e do alto clero. Seu lema é o da liberdade como um ideal realizado intelectualmente. A liberdade de comércio, a abolição dos privilégios e das imunidades, a divulgação da cultura, a revisão do sistema fiscal, a livre expressão do pensamento etc. A noção de progresso racional da humanidade é característica desse tipo de concepção. Em contrapartida, devem ser igualmente identificados os elementos que impedem tal progresso, que se opõem à razão. Dentre esses elementos, encontra-se a religião, que subordina o homem a crenças tradicionais e a uma autoridade; a Igreja, baseada na submissão e nas superstições; e o absolutismo monárquico com o seu cortejo de infelicitações causadas pelos muitos privilégios que poucos desfrutavam em detrimento de muitos. Por isso o período do Iluminismo foi o momento do despertar para a autonomia, para a maioridade, ou seja, a possibilidade de pensar os objetos por si mesmo. Assim, pode-se conceituar que o:

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Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere Aude! Tem a coragem de te servires do seu próprio entendimento. Eis a palavra de ordem do Iluminismo (KANT, 2008, p. 9).

A filosofia crítica, expressão do pensamento de Kant, que se afigura como o pano de fundo do Iluminismo enquanto valor nos campos das ciências artes e política, caracteriza-se por três pressupostos fundamentais, a saber: primeiro, é a liberdade; segundo, marca o individualismo; terceiro, assinala a luta pela igualdade jurídica. Nesse sentido, a revolução francesa de 1789 apresenta-se como a tentativa de concretização desses ideais, o que pode ser ilustrado por seu famoso lema: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. O objetivo dessa revolução, dentre muitos outros, não era apenas mudar a estrutura do Estado, mas abolir radicalmente a antiga forma de sociedade e suas instituições tradicionais, seus costumes e hábitos arraigados, e, ao mesmo tempo, promover profundas inovações na economia, na política, no direito, nas artes, nas ciências etc. A revolução francesa de 1789 desferiu seus golpes contra a Igreja, confiscando suas propriedades, suprimindo os votos monásticos e transferindo para o Estado as suas funções de educação, tradicionalmente controladas pela Igreja como forma de hegemonia por conta do processo histórico europeu.. A revolução francesa de 1789 reestruturou, obviamente ao logo do século XIX, a vida europeia porque as instituições jurídico-políticas não mais atendiam às exigências de uma sociedade que se movimentava em uma direção oposta aos interesses daqueles que comandavam as unidades sociopolíticas da Europa. Por isso que a revolução francesa de 1789 deu-se de maneira diferente nos países impactados pelo seu espírito de mudança. É por isso que Aléxis de Tocqueville chama essa revolução de um acontecimento sem território exclusivo, pois seus efeitos foram multiplicadores em outras nações. Vale ressaltar que, segundo Tocqueville, a revolução como se deu na França jamais poderia ocorrer num outro país, pois a centralização burocrático-administrativa estava dada pelas condições das relações entre os estados que compunham a sociedade e o seu elenco de privilégios, diferente de outros países de forte fragmentação administrativa herdeira do feudalismo (TOCQUEVILLE, 1997). É preciso destacar que o jusnaturalismo, levando em consideração os seus diversos matizes, foi o esboço teórico das principais revoluções dos séculos XVIII e XIX, destacando as teorias políticas de John Locke e Rousseau. Entretanto, a coincidência entre revolução francesa e Iluminismo deve-se ao fato de que, nesse momento, os elementos sociopolíticos refletem a melhoria das condições materiais que possibilitaram irromper um movimento que buscasse o novo, apesar da crescente miséria que desfigurava a Europa naquele período. Se o jusnaturalismo ensejou as teorias do contratualismo, constitucionalismo e

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liberalismo, o Iluminismo possibilitou o surgimento de teorias sociais que criticam o ideário liberal e o seu conjunto de respostas às implicações resultantes das revoluções francesa e industrial. Nesse caso, destaca-se o positivismo como escola teórica que procura analisar o século XIX a partir de outros enfoques, destacando, cada um a seu modo, a história como um processo transformador da ordem sociopolítica.

social: apreciação sumária do conjunto do passado e moderno (1820), Prospecção dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade (1822), Considerações filosóficas sobre as ideias e os cientistas (1825), e Considerações sobre o poder espiritual (1825-1826). Nessa fase, Comte reflete a realidade de seu tempo, descreve e explica o momento histórico vivido pela sociedade europeia no princípio do século XIX. A segunda fase está constituída pelas lições do Curso de filosofia positiva (1830-1842). Nesse texto Comte observa a história da Europa como configuração de toda a história da humanidade, assumindo um caráter exemplar. A terceira etapa afigura-se com o surgimento da obra intitulada Sistema de política positiva ou Tratado de sociologia, instituindo a Religião da humanidade (1851-1854). Nessa fase final, Comte defende sua ideia de unidade da história humana por meio de uma teoria da natureza humana advinda da relação social (ARON, 2002, p. 84). Nesse ambiente de industrialização e reorganização da vida sociopolítica, causada pelas revoluções industrial e francesas, os pensadores impuseram a si mesmos a tarefa de interpretar o momento como também transformá-lo. Mediante a isso, o positivismo é concebido como guia reformador teóricoprático da sociedade. Destarte, o positivismo de Auguste Comte busca, na análise dos fatos, uma explicação científica para o fenômeno social e as suas formas de previsibilidade. Comte visa permanentemente à objetividade pela positividade, ou seja, a ciência tem o encargo de explicar todos os fenômenos existentes, sejam eles naturais ou sociais. Nesse sentido, a ciência é instrumento de verificação da realidade, e sua resposta torna-se lei. Por isso, a sociologia, ao seu turno, tem por objetivo apropriar-se do método experimental das ciências naturais e aplicá-lo no universo social para obtenção de resultados, visando reconhecer e implementar soluções aos problemas do mundo concreto. Para Comte:

Comte: a história como desenvolvimento da condição ordem-progresso

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Desde o advento do Renascimento, o homem modificara sua maneira de pensar o mundo e a própria vida. A partir do pensamento científico-racionalista, a história dos homens sofreu a transformação de uma visão idealista para outra de natureza imanente, enfraquecendo, com isso, não só o domínio político da Igreja como também as formas religiosas de interpretação da realidade, tendo a revelação cedido terreno definitivo à razão. A busca pela autonomia racional (livre exame e uso público da razão) em todas as questões experimentou uma consciência realista da existência. É nesse contexto racionalista-cientificista que surge uma escola denominada positivismo que influenciará o pensamento ocidental ao longo dos séculos XIX e XX. O surgimento do positivismo como resposta ao conjunto de indagações às perplexidades vividas pelos homens pósrevoluções francesa e industrial está atrelada à crise socioeconômica propiciada pelo aprofundamento do capitalismo e as contradições advindas desse modelo de produção material. Auguste Comte (1798-1857), grande formulador do pensamento positivista, é oriundo da Escola Politécnica de Paris e, por volta de 1817, conheceu o pensador Saint-Simon, um dos grandes intérpretes da sociedade industrial do seu tempo. Das lições tomadas do propalado socialista utópico, Comte desenvolveu seu pensamento levando em consideração a ideia de uma ciência social capaz de formular cientificamente princípios para a ação politicamente eficaz por parte das autoridades públicas. Todavia, por volta de 1824, Comte rompe com seu antigo mestre por considerar suas teorias insatisfatórias ante o sistema científico positivista. Assim como Saint-Simon, o fundador do positivismo também recebeu influência das ideias do Marques de Condorcet quanto à concepção de progresso como lei da história da humanidade, uma vez que, para Comte, a natureza da filosofia positiva passa por uma abordagem essencialmente histórica, cujo dado significativo aponta para o desenrolar do progresso do espírito humano. E para completar a constituição do pensamento comteano, não se pode olvidar a forte influência da física de Isaac Newton no tocante ao seu sistema porque a ordem matemático-astronômica serve de suporte teórico ao sentido de ordem social como pressuposto do progresso humano. Segundo Raymond Aron, em seu livro Etapas do pensamento sociológico, destacam-se três fases ou etapas da evolução do pensamento comteano. A primeira entre 1820 e 1826 são publicados os trabalhos Opúsculos de filosofia

Vemos, pelo que precede, que o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais e invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam primeiras, sejam finais (COMTE, 1973a, p. 13).

A exemplo dos primeiros pensadores sociais, Comte adotou o método de investigação das ciências naturais, tanto assim que chamou sua sociologia de física social, procurando identificar na vida social as mesmas relações e princípios com os quais os físicos explicavam a vida natural. Dessa forma, o positivismo foi a primeira corrente teórica que procurou não só compreender os fenômenos sociais como também prevê-los pela sistemática das ciências naturais, definindo-se como uma superação das visões teológica e metafísica da realidade. Assim, Comte concebeu a sociedade como um organismo constituído de partes integradas e coesas, pois, por esse motivo, o positivismo foi chamado de teoria organicista, já que procura obter, por meio do exemplo da física, objetividade e êxito nas

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formas de controle sobre os fenômenos estático-dinâmicos da sociedade. O conhecimento positivo, organizador da vida social através da ciência, pretende, a partir de sua concepção de história, liquidar com a metafísica, inaugurando nova ordem política, econômica e científica, construindo, por sua vez, a expectativa do progresso moral humano a partir da ciência (COMTE, 1991, p. 47).

fenômenos e não a coisa em si. Desse modo, sua investigação focaliza as relações constantes e necessárias entre os fenômenos, ou seja, as leis invariáveis que os regem. Derivando dessa ideia o determinismo pelo qual o reino da ciência é o reino da necessidade, o que é necessário opõe-se ao contingente, logo não há lugar para a liberdade. Por outro lado, a filosofia que ocupava status privilegiado em Saint-Simon perde seu lugar e torna-se apenas uma sistematização das ciências, ou seja, análise dos resultados da física, química, história natural etc., apenas uma epistemologia que coordenaria, doutrinariamente, todas as ciências, isto é, a filosofia passa a ser o espírito sistematizador das ciências. Por isso, Comte prega a expulsão dos mitos, da religião e de toda e qualquer crença e conhecimento metafísico, embora, na sua última fase filosófica, tenha refundado o positivismo como uma religião racionalista. O sistema de Comte estrutura-se em três aspectos fundamentais, a saber: 1 – Filosofia da história: concepção dos três estados da condição intelectual e moral da humanidade – teológico, metafísico e positivo, que encerra em si o evolucionismo como fio condutor da história; 2 – Classificação das ciências: as ciências são ordenadas partindo do maior ao menor grau de complexidade em relação ao homem; 3 – Sociologia: ciência que investiga e determina a estrutura e os processos de modificação da sociedade, desenvolvendo uma reforma nas instituições a partir do processo educacional científico-moral da sociedade. Segundo Comte, as ciências são classificadas por um duplo critério, um histórico e o outro sistemático, sendo que as ciências sistemáticas são: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. Esse critério estabelecido para a classificação das ciências obedece à relação do abstrato ao complexo, ou seja, da matemática até a mais complexa das ciências que é a sociologia. Parte-se da complexidade decrescente e da generalidade crescente de cada ciência. A matemática é a ciência menos complexa porque se ocupa apenas com as relações de quantidade e ainda é mais geral porque pode ser aplicada a todas as espécies de fenômenos, ao passo que a sociologia é ciência mais complexa em razão do “elemento social” incluir, de certa forma, fenômenos biológicos, químicos, físicos, mecânicos e relações matemáticas, sendo, ao seu turno, menos geral por se aplicar somente à vida social. Nesse sentido, a visão epistemológica de Comte reduz todas as ciências à representação do plano físico-matemático, o que enseja uma concepção naturalística dos fenômenos sociais. Para Conte, todas as ciências são do tipo natural e, por isso, devem ser estudadas com rigor-precisão conforme esse método, inclusive a sociologia que, segundo Nicola Abbagnano, nasceu como sistema, isto é, “como determinação da natureza da sociedade em seu conjunto, através da determinação das leis da mesma. Nessa fase, a Sociologia tenta organizar-se analogamente à física newtoniana: como lei que traça, através de leis rigorosas, uma ordem necessária, além do desenvolvimento, também necessário, desta ordem” (1982, p. 881). Por isso, Comte, ao definir a sociologia como física social, toma por modelo de ciência a biologia, visto que procura com isso pensar a sociedade como um organismo coletivo, ao mesmo tempo em que busca soluções naturalísticas para

Elementos do positivismo O termo positivismo significa real, útil, certeza, precisão, absoluto, que encerra um valor geral à guisa de um conhecimento universal, determinado por lei científica; doutrina que tem como objeto o conhecimento positivo através dos dados organizados pela ciência. O positivismo compreende que o homem encontra-se em um estágio que não mais permite soluções a partir de dogmas ou abstrações metafísicas, mas sim pela determinação científica por meio da verificação, isto é, pelo caminho da demonstração do pensamento científico. O pensamento positivista de Comte desenvolveu-se no interior da concepção cientificista do séc. XIX, segundo a qual a ciência é considerada o único conhecimento possível e o método das ciências da natureza o único válido, devendo, portanto, ser estendido a todos os campos da indagação e atividade humanas. O ponto de partida de seu pensamento foi uma reflexão sobre a contradição interna da sociedade do seu tempo. Como esse momento histórico é caracterizado pela generalização do pensamento científico e da atividade industrial, Comte pensa que o único meio de pôr fim à crise é acelerar o devir, criando o sistema de ideias científicas que presidiria a ordem social vigente. Comte pretende, portanto, uma unidade humana, tanto assim que o núcleo do seu pensamento social repousa sobre a ideia de que a sociedade só pode ser realmente organizada através de uma completa reforma intelectual e moral do homem, que começaria pelo novo modo de pensar, agora fundado nos avanços da ciência, marcando o progresso como lei natural a que o organismo social está submetido por sua condição de invariabilidade. Seu método positivo, baseado na observação, experimentação, verificação e formulação de leis, deveria ser estendido aos domínios da política, focalizando os fenômenos observáveis, as relações constantes e necessárias. Logo: No estado positivo o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a reconhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais (COMTE, 1973a, p. 10).

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Comte retoma do empirismo do séc. XVII, as suas ideias fundamentais, em particular, a de que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observáveis, aliadas às concepções kantianas de que só se pode conhecer

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o conjunto social. Dessa forma, a sociologia nasceu com objetivos práticos de reorganizar a sociedade, e isso exigiria primeiramente conhecer para agir, ou compreender para organizar. Porque, para Comte, o princípio científico de que se conhece o fenômeno por suas relações constantes de concomitância e de sucessão enseja a possibilidade de previsão e transformação da realidade social mediante o conhecimento das “leis históricas” de seu desenvolvimento com a mesma exatidão com que é possível a física prever as leis da gravitação universal. Assim, conhecer as leis sociais implica prever os rumos da sociedade e intervir para garantir o bem-estar social através da organização político-social. O lema do positivismo, saber para prever, prever para prover, baseia-se em um princípio único, numa única lei explicativa de todos os fenômenos; trata-se de uma unidade de método, o qual se enriquece à medida que se aplica às diversas ciências. Nesse caso, o positivismo entende o indivíduo como submetido à consciência coletiva com pouca possibilidade de intervenção nos fatos sociais, sendo a ordem social permanente e imagem invariável dada pela ordem natural da física newtoniana. Sendo assim, a sua ideia de ordem está ligada à ideia de hierarquia, ou seja, configura uma visão em que nenhum grande progresso pode efetivamente se realizar se não tende finalmente para a evidente consolidação da ordem. Comte considera como um dos pontos altos da sociologia a reconciliação entre ordem e progresso, relacionando a necessidade mútua destes dois elementos para a nova sociedade. Na sua visão, o equívoco dos conservadores, ao desejarem a restauração do velho regime feudal, era postular a ordem em detrimento do progresso, e inversamente o autor condena também a postura dos revolucionários ao se preocuparem apenas com o progresso, esquecendo a natureza da ordem como sustentação daquele. O pensamento sociológico de Comte considera que a ordem é o ponto de partida para a construção da nova sociedade para o seu pleno desenvolvimento. Tal concepção admite reformas, desde que comandadas pelo poder público auxiliado pelos cientistas e industriais esclarecidos e cientes de uma moral que aplaque os rigores do processo de industrialização. Partindo dessa premissa, o progresso constituiria uma consequência gradual da ordem como estrutura em que a sociologia guiaria os homens na superação dos seus problemas de análise e verificação dos acontecimentos em sociedade. Já que esses acontecimentos são acontecimentos sociais, deve-se entender, logicamente, “que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada, como convém” (COMTE, 1973a, p. 11).

a história como uma consequência de etapas cuja evolução nada mais é do que a realização daquilo que já existia em forma embrionária e que se desenvolveu até alcançar o seu ponto final. Comte, inspirado em Condorcet, estabeleceu a lei dos três estados como a primeira lei verdadeiramente sociológica. Segundo o positivismo, os estados sociológicos da humanidade são: teológico, metafísico e positivo (COMTE, 1973a, p. 10). O primeiro estado é denominado de teológico ou fictício porque é o ponto de partida da interpretação dos fenômenos naturais e sociais apoiada no pensamento religioso de que uma inteligência supra-humana intervém diretamente não só na natureza como também na história. Nesse estado, a estabilidade dos fenômenos é dada por uma força imutável e superior, representada na ordem social mentalmente como um período predominantemente marcado por representações míticas, compreendendo ainda três aspectos: o fetichismo, concepção que leva o homem a conferir vida e poderes aos seres inanimados; o politeísmo, entendimento de que o homem concede aos deuses características de sua personalidade; o monoteísmo como concepção de que o homem crê em um só Deus. (COMTE, 1973a, p. 11). No estado metafísico ou abstrato, chamado de estado de transição, os fenômenos são lidos pela argumentação da abstração metafísica, segundo a qual agentes naturais são substituídos pelas forças abstratas da natureza. Nesse estado o conceito de natureza assume a relação de causa que em si determina as formas de organização do mundo. No estado positivo, também chamado de estado fixo e definitivo, imaginação e argumentação estão subordinadas à observação e verificação do fenômeno por critérios científicos. No estado positivo, Comte não se preocupa com a essência dos fenômenos, origem das coisas e sentido do universo, sua atenção volta-se para a compreensão dos fenômenos enquanto funcionalidade. Cada ciência ocupa-se apenas com certo grupo de fenômenos. No estado científico, o conhecimento caracteriza-se pela previsibilidade, isso porque a ciência permite o desenvolvimento da técnica que corresponde à indústria no sentido de controle, inclusive da natureza e a explicação dos muitos fenômenos. A lei dos três estados ou do progresso do espírito humano também pode ser observada no desenvolvimento do indivíduo. Os estados corresponderiam, respectivamente, à infância, juventude e maturidade (virilidade) da humanidade (COMTE, 1973a, p. 13).

A lei dos três estados da humanidade: filosofia da história em Comte

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Em sua filosofia da história, Comte compreende a evolução humana a partir da complexidade da condição mental-moral do homem determinado historicamente. Segundo o sistema comteano, há três grandes etapas do pensamento humano que são retratadas na lei dos três estados, compreendendo

Ordem e progresso Comte divide também a sociologia em duas ordens categoriais de problemas, a saber: a estática e a dinâmica. De um lado, tem-se o estudo de uma sociedade em repouso; de outro, a sociedade em movimento. Essa divisão é abstrata, visando apenas fins didáticos, pois os dois aspectos se interpenetram. A categoria sociológica estática teria como objeto as condições existenciais da sociedade, a sua estrutura; estuda as leis da harmonia social, sua hierarquia manifestada na

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coexistência e ordenação das classes e indivíduos. Comte relaciona ordem com a ideia de estática social. A noção central da estática comteana é a do consenso existente entre todos os fenômenos sociais, ou seja, a sociedade é tomada como um todo global em que os fatos sociais funcionam de maneira interdependente. Nenhum fato social poderá ser observado isoladamente. Um aspecto importante a ser destacado é que essa preocupação que Comte tem com a ordem origina-se de seus estudos sobre as revoluções francesas de 1789 e 1830, em que o progresso se efetiva por meios de violência social. Segundo Comte, a ciência, auxiliar nas decisões políticas, ajudaria a humanidade a progredir sem a necessidade de se apelar para rupturas contrárias ao espírito de previsibilidade. A outra categoria, a dinâmica, representa a passagem para formas mais complexas de existência, como por exemplo, a industrialização. Repetindo, a estática é responsável pela preservação dos elementos permanentes de toda organização social: as instituições que mantêm a coesão e garantem o funcionamento da sociedade, por exemplo: família, religião, propriedade, linguagem, direito etc. Comte privilegia a dimensão estática sobre a dinâmica pelo simples fato de garantir um progresso, conservando os elementos civilizatórios já constituídos. Segundo o seu modo de entender, o progresso deveria aperfeiçoar os elementos da ordem e não destruí-los. Para Comte, o processo histórico seria cumulativo como ordem necessariamente estabilizadora, pois cada fase sendo superada pela seguinte fornece elementos construtivos. Nesse caso:

Para Comte, a Sociologia, através da observação e das relações necessárias dadas pelo conjunto das ciências naturais, pode estabelecer as leis dos fenômenos sociais, assim como a física pôde estabelecer as leis que guiam os fenômenos físicos. Nesse caso, a característica marcante do positivismo está justamente na absolutização da ciência como único conhecimento possível na verificação dos fenômenos; guia seguro para afastar o pensamento de fantasias e erros. Assim, partindo dessa premissa, o positivismo inaugura a tese segundo a qual a ciência deveria orientar a dimensão político-industrial no sentido de beneficiar a humanidade, justificando a moral como guia auxiliar da política nas reelações sociais.

Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e, reciprocamente, o progresso vem a ser a meta necessária da ordem; como no mecanismo animal, o equilíbrio e a progressão são mutuamente indispensáveis, a título de fundamento ou destinação. Especialmente considerando, em seguida, no que respeita à ordem, o espírito positivo apresenta-lhe hoje, em sua extensão social (COMTE, 1973b, p. 75).

Os conceitos de estática e dinâmica com que Comte trabalha dentro do seu sistema são também retirados dos estudos de biologia do cientista francês Ducrotay de Blainville, especificamente de sua obra Princípios gerais de anatomia comparada, em que, segundo Comte, o mundo social, em certa medida, expressaria as condições do mundo físico-biológico. Sendo assim, a biologia como ciência natural representaria uma ordem que poderia ser reproduzida socialmente, e cujo fim seria a concretização de funções por determinados organismos aptos. Nessa formulação, a teoria sociológica comteana divide a sociedade nas seguintes esferas: estática social como ordem, e dinâmica social como progresso. Assim todo: Pensamento comteano se orienta pela ideia de conciliação, que se estende a todos os campos: em sociologia, entre o indivíduo e a sociedade, entre a ordem e o progresso; em política, entre o poder e a liberdade, entre o modelo teórico de Diderot e o prático de Frederico da Prússia; finalmente, entre a ciência e a religião, o sentimento e a razão (COELHO, 2005, p. 103).

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Sociedade e moral Segundo Comte, a ordem social deveria fundar-se em princípios positivos, enquanto a sociologia, como ciência da totalidade, ensejaria uma reforma gradual nas formas de relações sociais, visto que a reforma social somente será possível em razão direta de uma profunda reforma individual por parte dos homens. Por isso, Comte concebe uma ordem moral humanista, capaz de abrandar os conflitos sociais onde os industriais deveriam ser sensibilizados moralmente para melhorar as difíceis condições materiais dos trabalhadores e das mulheres (COMTE, 1991, p. 44). Fundado em tal premissa, Comte, à maneira dos iluministas, apesar do norte político diferente, defende a educação como movimento renovador no seio das relações sociais, ensejando uma relação orgânica de cooperação entre trabalhadores e industriais. Segundo o positivismo, não é pela mudança de sistemas políticoeconômicos que se resolveriam os problemas socais, quaisquer que sejam suas respectivas dimensões, pois o pensamento político comteano não assinala para rupturas sociais, alenta para a contenção dos efeitos da revolução industrial e reorientação dos efeitos da revolução francesa de 1789. A teoria de Comte é a da reforma íntima do homem redundando em uma forma de pensar que efetivaria mudanças paulatinas e seguras na escala sociopolítica (1973c, p. 105). Comte é um teórico da sociedade industrial, posicionando-se à margem das querelas entre liberais e socialistas, acreditando que a organização da sociedade industrial levaria o indivíduo a conseguir seu espaço social segundo sua capacidade, realizando assim, a justiça social. A moral comteana impregna o seu pensamento político quanto ao sentido de ordem, cujo modelo ideal astronômico assinala um sentido de sociedade baseado numa estabilidade de forças cujo fim é a ordem como único fator do progresso. Portanto: As principais dificuldades sociais não são hoje essencialmente políticas, mas, sobretudo morais, de sorte que sua solução possível depende realmente das opiniões e dos costumes, muito mais do que das instituições, o que tende a extinguir uma atividade perturbadora, transformando a agitação política em movimento filosófico. Sob outro aspecto, considera sempre o estado presente como resultado necessário do conjunto da evolução anterior, de modo a fazer constantemente prevalecer a apreciação racional do passado no exame atual (COMTE, 1973b, p. 75).

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O pensamento político comteano está devidamente associado a sua concepção de ciência em que o objeto é pensado a partir de uma ordem idealmoral. Sua visão de mundo relaciona-se ao universo dado pela física clássica em que a ordem reina como fator determinante do movimento, pois sem ordem não há como ter progresso. O fim do progresso é a ordem, assim como a natureza da ordem é o progresso. Essa relação resulta na ideia de que os elementos sociais devem manter-se nessa correlação lógica porque a política deve ser tomada como conhecimento positivo de uma nova filosofia positiva. Nesse caso, o devir histórico materializa-se como elemento vital do sistema que é a ordem determinada pela natureza das coisas: o progresso ordenado. (COMTE, 1973b, p. 77). Assim, Comte elabora seu sistema filosófico com o escopo de apresentarse como fim desse processo histórico que enuncia no Curso de filosofia positiva. Para o filósofo francês, o quotidiano deve abandonar de uma vez por todas a metafísica da opinião em favor da positividade da ciência que, com base na veracidade da análise científica, proporcionará uma visão exata do problema com o propósito de exatamente vislumbrar-lhe resposta satisfatoriamente precisa. O positivismo pretende ser a doutrina da reconciliação histórica de todas as escolas filosóficas e, com isso, a reconciliação do homem consigo mesmo, pois uma “apreciação mais íntima e mais extensa, ao mesmo tempo prática e teórica, representa o espírito positivo como sendo, ‘por natureza’, o único suscetível de desenvolver diretamente o sentimento social, primeira base necessária de toda moral” (COMTE, 1973b, p. 82).

Para Gerd Bornheim, “a Lei dos Três Estados pretende mostrar a progressão sempre mais perfeita da ciência, progressão que é demonstrada simplesmente em termos de conhecimento [...] Como se a esfera da ciência devesse bastar-se numa suposta autoeficiência” (1977, p. 73), desconsiderando o papel que os indivíduos possam exercer a partir de suas circunstâncias históricas. Nesse caso, Comte, ao combater o pensamento metafísico, mais adentra suas entranhas, pois pensa como um verdadeiro metafísico ao desconsiderar a história como o palco da vida dos indivíduos em conflito na busca do melhor para si no plano da materialidade concreta. Comte não vislumbra a história como plano material, mas tão somente ideal. O marxismo, por sua vez, dentro de sua logicidade dialéticomaterialista, apresenta-se como um sistema teórico revelando a história como uma estrutura em que os indivíduos caminham, partindo da superação por meio do conflito determinado pela dialética da luta de classes, para a condição de produtores livres ao romperem com o modo de produção capitalista, na medida em que o trabalho superaria o reino da necessidade. O marxismo se distingue dos postulados comteanos por entender que o conflito no plano histórico não é um problema em si, mas condição de progressividade que libera e transforma as forças dos indivíduos. Logo, o indivíduo subsiste, embora viva em uma determinada cultura que o absorve sem excluir sua qualidade de agente, desde que rompa com a visão de mundo que o sistema de trocas impôs por conta de sua coisificação (MARX, 1991, p. 942). No plano gnosiológico o pensamento de Marx reconhece o objeto como ele é, cabendo ao sujeito cognoscente conhecê-lo a partir de suas condições reais. O objeto é tão marcante para os postulados marxianos que o sujeito pode ser convencido de sua insuficiência teórica no processo da práxis. Nessa relação, é capaz de o objeto reorientar as antigas e infundadas opiniões que o sujeito tinha sobre sua natureza. É nessa interação entre sujeito-objeto que o próprio sujeito o apreende com o intuito de conhecê-lo para entender suas relações necessárias. Por isso, que para Marx, a práxis é essencial porque constitui o cerne dialético do processo de conhecimento, visto que não há arbitrariedades do sujeito sobre o objeto e nem o objeto sobre o ser pensante a determinar sua condição de transformação. Já nas fileiras do positivismo, o processo se dá de forma invertida. Parece que o positivismo trata os problemas objetivamente quando assevera o primado do concreto sobre o subjetivo. Entretanto, cuidadosamente, observa-se o contrário ao perceber que há uma imposição do sujeito sobre as determinações do objeto, isso porque a idealidade de como os problemas são analisados resultam na percepção de que os objetos são conduzidos por uma forçosa conclusão arbitrária por parte do sujeito pensante. Isso significa que o objeto, embora seja real, é tratado idealmente, isto é, está submetido ao plano teleológico da ciência como técnica de verificação pensando adentrar ao reino da explicação.

Crítica marxista à guisa de considerações finais

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Tanto para o positivismo como para o marxismo, mutatis mutandis, a estrutura social precede o indivíduo como ordem lógica e não propriamente cronológica, pois caso se leve em conta o aspecto histórico, é óbvio que o homem antecede à estrutura que ele mesmo criou. No entanto, para essas escolas, a ordem lógica fundamenta a elaboração do objeto determinado historicamente, pois o que justifica o indivíduo é a estrutura social a qual ele pertence. Nesse caso, essas escolas filiam-se à tradição aristotélica, quer queiram ou não. Segundo o processo histórico pensado pelo positivismo, a humanidade encontra-se hoje em um momento melhor que o do passado porque a ciência é capaz de apontar como separar o que é demonstrável daquilo que é impossível de ser verificado, logo essa condição assegura um sentimento de exatidão que reconforta grandes camadas de grupos eruditos que confiam na cientificidade desta ou daquela opinião. Essa maneira de pensar leva acreditar que a saída dos impasses atuais repousa numa ordem estatal cujos membros, educadoseducadores das massas, sejam capazes de guiar a sociedade pela previsibilidade cientificista, pois basta uma boa dose de moralidade do sistema para que a sociedade tome o rumo que lhe compete: a cooperação entre os homens sem distinção de espécie alguma.

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Em hipótese alguma se ignoram as contribuições do positivismo, sobretudo ao que concerne o pensamento comteano, mas infelizmente devese reconhecer que Comte, embora estivesse fazendo ciência ao mesmo tempo em que examinava o estatuto epistemológico da ciência que ajudava a dar os primeiro passos, a sociologia, não partia das exigências do objeto para depois concluir exatamente como necessidade epistêmica. Tanto isso é factível que coube a Émile Durkheim construir a sociologia de corte positivista, visto que Comte metaficisou aquilo que julgava ser amplamente científico. Assim, julga-se que o pensamento comteano tem seus rompantes ideológicos. Da passagem do plano gnosiológico para o prático, estabelecendo uma relação entre as elaborações comteanas com as marxianas, depreende-se que nesta o prático não é uma determinação a priori porque tudo está por ser construído no processo histórico-dialético, ao passo que naquela tudo é dado sistematicamente como uma produção do espírito na história. Tanto a ética como a política, para Marx, constitui um vir a ser, não possibilitando espaço para as utopias. Ao contrário, no pensamento de Comte, a ética e a política não só são definidas a prioristicamente como há um plano definido de ações necessárias. O positivismo de Comte impõe à realidade suas próprias determinantes. Nisso consiste que o mundo prático, embora sendo objetivo por existir independente do indivíduo, não pode subsistir sem representação do indivíduo que o confere enquanto tal. Cada visão de mundo representa uma parte do real apreendido. Um marxista toma a realidade distintamente do positivista. As teorias práticas são, substantivamente, resultado da maturação de suas correspondentes teoria do conhecimento, ao passo que as elaborações práticas ensejam profundas reflexões de ordem epistemológica, modificando inclusive elementos estruturantes de sua matriz teórica. Dialeticamente não há como separar uma dimensão da outra, até porque são indissociáveis como vasos comunicantes, verdadeira simbiose que alimenta considerações de natureza teórica acerca do bem, da justiça, da liberdade, da igualdade, do direito etc. Insiste-se, desavisadamente, por parte de alguns estudiosos, que a concepção marxista do homem privilegia a totalidade social em detrimento da individualidade. Talvez essa opinião seja apenas uma opinião mesmo, sem levar em consideração uma leitura mais aguda das obras de Marx, que nunca olvidou a dimensão subjetiva da incondicionalidade coletiva. O indivíduo no marxismo é pensado dialeticamente, o que quer dizer que sua existência só alcança realidade a partir da formação social em que vive, pois isoladamente não pode ser ao menos sujeito. Segundo Marx, “o operário que compra batatas e a amante que compra rendas, seguem, um e outro, a sua respectiva opinião. Mas a diversidade das suas opiniões explica-se pela diferença de posição que ocupam no mundo, a qual é produto da organização social” (MARX, 1978, p. 43). A leitura desses dois sistemas teóricos tem um aspecto em comum (além de considerarem a história como um elemento que explica o progresso dos indivíduos, guardando suas respectivas diferenças), à primeira vista irrelevante, porém muito importante: a objetividade contra o subjetivismo que, por vezes,

não explica nada e até confunde tudo. Aqui se posiciona a objetividade contra a subjetividade das opiniões que não se submetem às evidências e admitem tudo como possível, pois, não havendo o verdadeiro, tudo pode ser possibilidades, isto é, ser e não-ser (ARISTÒTELES, Met. 1009a). Contudo, esta reflexão acerca do objectus para as teorias de Marx e Comte, especificamente, leva pensar que, para este, embora o objeto norteie o seu pensamento, o que se depreende de suas considerações é que o objeto é uma arbitrariedade face ao próprio pensamento científico, constituindo uma imposição ante a realidade; ao contrário daquele, cujo objeto, mesmo sendo pensado por uma representação teórica, esta pode ser reconstruída na medida em que o objeto se desvele como uma realidade plena, mesmo contrariando as primeiras impressões do sujeito. Enquanto em Comte o objeto se impõe até em relação ao que se chama de ciência, tornando-o um objeto-subjetivista por contrariar as evidências, para Marx, o objeto existe independente do indivíduo ao mesmo tempo em que só ele pode conhecê-lo pela práxis na relação sujeitoobjeto como condição do conhecimento.

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Breves considerações sobre a Natureza Jurídica da Empresa Individual da Responsabilidade Limitada Alexandre de Albuquerque Sá1 Leonardo da Silva Sant’Anna2 Resumo O artigo tece comentários acerca da figura da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) no ordenamento jurídico brasileiro, através da Lei n. 12.441, de 11 de julho de 2011, a qual alterou o Código Civil Brasileiro, não tratando com maiores detalhes sobre a natureza jurídica da EIRELI. Considerando a redação atécnica e pouco precisa adotada pelo Legislador, diversas discussões surgiram a respeito do novel instituto, de modo que se tem por objetivo, neste estudo, investigar as correntes doutrinárias acerca da natureza jurídica da EIRELI. Neste sentido, será dado destaque às duas principais teses relativas ao tema: primeiramente, a que classifica a EIRELI como um novo tipo societário, ainda que presente a unipessoalidade permanente; a seguir, a orientação que reconhece o surgimento de um novo tipo de pessoa jurídica, diferente das sociedades. Por fim, serão apresentadas as conclusões, que adota a primeira corrente a qual confere natureza essencialmente societária à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. Para tanto, foi realizada uma pesquisa teórica sobre o assunto, metodologicamente baseada nas fontes jurídicas tradicionais, isto é, na análise de textos normativos, de posicionamentos da doutrina especializada, bem como dos apontamentos presentes nas decisões proferidas pelos tribunais brasileiros. Palavras-chave: Direito societário; empresa individual; responsabilidade limitada; natureza jurídica. Abstract This paper intends to make a few remarks about the introduction of the figure of Individual Limited Liability Enterprise (EIRELI) in the Brazilian legal system by Law # 12,441, of July 11, 2011, which amended the Brazilian National Civil Code, not dealing with details on the legal nature of EIRELI. Considering the imprecise and atechnique composing adopted by the 2011 Federal Legislator, several discussions have arisen about it, so that it is aimed in this research to investigate the doctrinal currents on the legal nature of EIRELI. In this regard, emphasis will be given to the two main theses on the theme: first, the sorting EIRELI as a new type of society, regardless of the permanent existence of single-member; then, the guidance that recognizes the emergence of a new type of entity, Doutorando em Direito de Empresa e Atividades Econômicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. E-mail: [email protected] 2 Professor Adjunto de Direito Comercial da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). 1

Breves considerações sobre a Natureza Jurídica da Empresa Individual da Responsabilidade Limitada

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different from societies. Finally, the author’s personal conclusions will be presented, which adopts the first thesis which gives essentially society’s nature to the Individual Limited Liability Enterprise. For this, a theoretical research on the subject, methodologically based on traditional legal sources was carried out, that is, in the analysis of normative texts, placements of specialized doctrine and the actual notes of the decisions handed down by the Brazilian Courts of Law.

Brasil, como afirma José Tadeu Neves Xavier3, onde os dois tipos societários mais relevantes, a sociedade limitada e a sociedade anônima, ostentam tal característica. Observa-se, todavia, que a mesma proteção não foi estendida aos empresários que exercem a atividade empresarial de forma individual, hipótese na qual eles assumiriam responsabilidade total e irrestrita sobre os riscos da atividade exercida4. Portanto, muito mais expressivo se mostra o risco assumido pelo empresário que atua individualmente, já que seus bens pessoais5, ainda que desvinculados da atividade, são atingidos pela atividade empresarial e não apenas o segmento do patrimônio destinado à sociedade6. Essa diferença considerável no risco assumido pelo empresário individual acaba por desestimular o exercício solitário das atividades econômicas. Comumente, algumas pessoas naturais tentam burlar essa ausência de limitação de responsabilidade com a criação de sociedades fictícias, onde atuam como sócios majoritários (nas quais o outro sócio detém participação irrisória no capital social). Na evolução do pensamento jurídico acerca da limitação de responsabilidade, não obstante o entendimento pacífico no que se refere às sociedades mais tradicionais (como as companhias, por exemplo), a polêmica passou a se concentrar nas discussões sobre a extensão de tal limitação aos empresários que atuavam de forma individual. Salienta-se que muitos doutrinadores, há tempos já apresentavam preocupação acerca da utilização indevida de tipos societários como fuga do risco ilimitado da atividade e já se orientavam pela limitação da responsabilidade do empresário individual, diante da ausência de qualquer previsão conveniente no ordenamento positivo. À guisa de exemplo, José Tadeu Mendes Xavier7 aduz que os argumentos favoráveis à limitação da responsabilidade empresarial na atuação individual teriam um grande enfoque econômico, haja vista que tal limitação traria um estímulo à economia do país, possibilitando o surgimento e proliferação de agentes econômicos com capital modesto, visto que eles poderiam atuar no mercado desvinculados do risco empresarial ilimitado. Outro argumento que pode servir de base para a limitação de responsabilidade na atuação unipessoal do indivíduo é o postulado da isonomia,

Keywords: Corporate law; brazilian individual limited liability enterprise; legal nature.

Introdução O artigo pretende tratar das principais discussões relativas à identificação da natureza jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), figura introduzida no Código Civil brasileiro por meio da Lei n. 12.441, de 11 de julho de 2011. Nesse intuito, serão apresentadas as duas correntes mais consistentes acerca da matéria: a tese da sociedade unipessoal permanente e a da criação de um novo tipo de pessoa jurídica. Estrutura-se o presente em cinco seguimentos, além da (i) introdução: (ii) apresentação do panorama jurídico brasileiro anterior à edição da norma de 2011, notadamente acerca dos apontamentos doutrinários sobre a necessidade de se encontrar uma técnica jurídica de se limitar a responsabilidade civil do empresário individual; (iii) exposição das etapas mais relevantes da tramitação do projeto de lei n. 4.605/2009 no Congresso Nacional, do qual originou-se a Lei n. 12.411/2011; (iv) relato dos argumentos mais consistentes da tese que vincula a EIRELI às sociedades; (v) exposição da doutrina defensora do entendimento de que EIRELI é um novo tipo de pessoa jurídica de direito privado, instituição sui generis, ou seja, que não poderia ser enquadrada como tipo societário; e, por fim, (vi) exteriorização da síntese conclusiva autoral, buscando-se evidenciar as razões, tidas como capazes de rechaçar ou mitigar as proposições da corrente adversa, reconhecendo a natureza societária da empresa individual de responsabilidade limitada. Finalmente, impede mencionar que o artigo se funda em pesquisa eminentemente teórica, utilizando-se das fontes jurídicas ortodoxas, como o ordenamento jurídico positivo, a doutrina especializada e a jurisprudência dos Tribunais brasileiros.

Panorama jurídico anterior ao surgimento da EIRELI É sabido que a atividade empresarial representa um efetivo instrumento de produção e circulação de riquezas, além de ser dotada da função de impulsionar a economia, sendo forçoso considerar os riscos trazidos àqueles que a desenvolvem. Posto isso, verifica-se que diversas nações adotaram formas de organizações empresariais na modalidade de sociedades, atribuindo, em alguns casos, responsabilidade patrimonial limitada a seus sócios. O mesmo ocorreu no

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XAVIER, José Tadeu Neves. A complexa identificação da natureza jurídica da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI. In: Revista da EMERJ. v. 16. n. 62. abr-set/2013. Rio de Janeiro: EMERJ, 2013. p. 124. 4 NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. A nova empresa individual de responsabilidade limitada: memórias póstumas do empresário individual. In: Revista da EMERJ. v. 14, n. 56, out./dez. 2011. Rio de Janeiro: EMERJ p. 220. 5 Essa regra não se mostra absoluta. Como exceção pode-se citar o bem de família e a lista de bens impenhoráveis disposta no art. 649 do Código de Processo Civil brasileiro. 6 XAVIER, José Tadeu Neves. op. cit., p. 124. 7 XAVIER, José Tadeu Neves. op. cit., p. 133. 3

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Breves considerações sobre a Natureza Jurídica da Empresa Individual da Responsabilidade Limitada

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uma vez que não há razões suficientes para justificar o tratamento diferenciado entre os empresários que atuem coletiva ou individualmente no mercado. Antonio Martins Filho8, ao defender a inserção da limitação da responsabilidade do empresário individual no direito brasileiro na década de 1950, já se referia à inserção como a última fase do processo evolutivo da limitação de riscos, questionando a possibilidade de limitação de responsabilidade quando duas pessoas são associadas e a impossibilidade de fazê-lo de forma isolada. É possível inferir, dos argumentos expostos, que expansão das hipóteses de limitação de responsabilidade se funda não apenas na ideia de tratamento isonômico aos agentes que atuam em mercado, sendo também reforçada pela conscientização de que a responsabilidade patrimonial não deve se manter necessariamente vinculada à exigência de certa forma específica de atuação do indivíduo, ou tipo societário, ou número de sócios, mas, sim, orientar-se pela ocorrência da adequada estruturação para o desempenho da atividade9. Cumpre finalmente registrar que foi neste contexto doutrinário que se concebeu a roupagem jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada, a qual já nasceu com a função específica de possibilitar ao indivíduo, que pretende atuar solitariamente, desenvolver seu objeto por meio de pessoa jurídica, sem ficar exposto ao risco patrimonial ilimitado ou precisar se valer de meios alternativos ou subterfúgios de legalidade questionável para redução do risco. Vista a problemática relativa à possibilidade de limitação da responsabilidade do empresário individual, pode-se focar a atenção em algumas propostas legislativas de solução da celeuma. Portanto, a seguir, serão tecidos comentários ao projeto de lei que originou a empresa individual de responsabilidade limitada no direito brasileiro.

empresa individual de responsabilidade limitada, cuja sigla corresponderia a expressão “EIRL” e a titularidade pertenceria a uma pessoa natural. Nas exposições de motivos, o autor aduzia claramente a imperiosa necessidade de adequação da legislação societária pátria aos correlatos alienígenas, haja vista que, há tempos, no direito estrangeiro existiam sistemas de limitação da responsabilidade civil por meio da constituição de sociedades unipessoais.11 Contudo, esta não foi a única proposta relativa à matéria naquele ano. Pouco tempo depois, em 31 de março, o deputado Eduardo Sciarra sugeriu outra opção normativa por meio do projeto de lei n. 4.953/2009. Tal projeto se consubstanciaria na introdução da figura do empreendimento individual de responsabilidade limitada (EIRL) na Codificação Civil12, com autonomia patrimonial em relação ao seu instituidor, pessoa natural, e aplicação subsidiária das normas do empresário individual e, no que coubesse, pelas normas da sociedade limitada. Apesar das distinções apresentadas, por tratem do mesmo assunto, a Mesa Diretora da Câmara decidiu, em 08 de abril de 2009, apensar o projeto de Eduardo Sciarra ao projeto n. 4.605, remetendo o feito ao crivo da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. Tal órgão aprovou a proposta por meio de emenda substitutiva, sem grandes alterações ao projeto originário13.

A tramitação do projeto de lei n. 4.605/2009 no Congresso Nacional Em 04 de fevereiro de 2009, o deputado federal Marcos Montes apresentou à Câmara dos Deputados o projeto de lei com fito de acrescer ao Código Civil o art. 985-A10, estabelecendo no ordenamento jurídico brasileiro a figura da MARTINS FILHO, Antonio. op. cit., p. 25. XAVIER, José Tadeu Neves. op. cit., pp. 134-135. 10 Art. 985-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade. § 1º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. § 2º A firma da empresa individual de responsabilidade limitada deverá ser formada pela inclusão da expressão “EIRL” após a razão social da empresa. § 3º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com 8 9

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o patrimônio pessoal do empresário, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda. § 4º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada os dispositivos relativos à sociedade limitada, previstos nos arts. 1.052 a 1.087 desta lei, naquilo que couber e não conflitar com a natureza jurídica desta modalidade empresarial.” 11 BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.605/2009. Autoria do Deputado Federal Marcos Marcondes. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ prop_mostrarintegra;jsessionid=7AF4 9FD41C6A24F08F4785149ECEE1EA.proposic oesWeb1?codteor=631421&filename=PL+4605/2009>. Acesso em: 10 jul. 2015. 12 Art. 980-A. Qualquer pessoa física que atenda ao disposto no art. 972, que exerça ou deseje exercer, profissionalmente, a atividade de empresário, poderá pode constituir Empreendimento Individual de Responsabilidade Limitada (ERLI). § 1º O patrimônio do EMPREENDIMENTO INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA é próprio e distinto do de seu titular. § 1º [sic] Uma pessoa física só pode ser titular de um único Empreendimento Individual de Responsabilidade Limitada. § 2º O Empreendimento Individual de Responsabilidade Limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, subsidiariamente, pelas normas previstas para os empresários individuais e, no que couber, para as sociedades limitadas. 13 Tais mudanças substituíam a sigla “EIRL” por “ERLI” e atualizaram o nome atribuído ao órgão principal de arrecadação da União de “Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda” para “Secretaria da Receita Federal do Brasil”. De fato, a única mudança relevante aprovada na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio se consubstancia na inclusão de um quinto parágrafo ao texto no seguinte teor: “§ 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de natureza científica, literária, jornalística, artística, cultural ou desportiva a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor

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Entretanto, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara (CCJC), após acaloradas discussões, fora aprovada nova emenda substitutiva do Deputado relator Marcelo Itagiba, ocasionando substanciais modificações no texto então aventado. Tais mudanças são essencialmente o núcleo duro das celeumas relativas à empresa individual de responsabilidade limitada. Neste ponto, impende salientar que o deputado fluminense defendeu a impossibilidade de criação da empresa individual de responsabilidade limitada sob a forma de sociedade unipessoal. Para o parlamentar, a expressão “sociedade unipessoal” se consubstanciaria em uma verdadeira logomaquia, uma vez que tal tipo de pessoa jurídica pressupunha necessariamente a pluralidade de sócios.14 Com as contribuições formuladas no âmbito da CCJC, o texto aprovado pelo Congresso Nacional trazia a seguinte redação ao art. 980-A do Código Civil:

Atende-se que, mesmo após considerações formuladas pelo Deputado federal Marcelo Itagiba, a redação aceita pelo Parlamento continha diversas menções à estrutura típica de sociedades, como por exemplo: (i) capital social (caput); (ii) firma ou denominação social (parágrafo primeiro); (iii) outra modalidade societária num único sócio (parágrafo terceiro); (iv) patrimônio social (parágrafo quarto). Além disso, frisa-se que no caput da versão final do art. 980-A fora retirado o adjetivo “natural” do substantivo “pessoa”, não se restringindo, ao menos literalmente, o titular da empresa individual de responsabilidade limitada às pessoas físicas, como na proposto original do Deputado Marcos Montes. Uma vez encaminhado o projeto de lei ao Poder Executivo, a Presidente da República optou por sancioná-lo parcialmente em 11 de julho de 2011, vetando o disposto no parágrafo quarto do art. 980-A, a fim de evitar uma suposta insegurança jurídica em relação à possibilidade de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica às EIRELIs. 15 Por fim, destaca-se que a redação ao art. 980-A do Código Civil pela Lei n. 12.441/2011 é uma tentativa de contemporizar visões distintas sobre o fenômeno da limitação da responsabilidade civil do empresário, talvez por isso a norma produzida expressa uma composição ambígua, apta a gerar polêmicas doutrinárias e insegurança jurídica. Uma vez apresentados os debates sobre a matéria no momento da elaboração do diploma legal, pode-se concentrar esforços para apresentação das teses jurídicas sobre a natureza da empresa individual de responsabilidade limitada. Opta-se por iniciar com o estudo da tese que reconhece o instituto como uma nova espécie de sociedade unipessoal permanente.

Art. 980-A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País. §1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão “EIRELI” após a firma ou denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada. § 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade. § 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. § 4º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente. § 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional. § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.

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ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional”. BRASIL, Câmara dos Deputados. Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. Emenda substitutiva ao projeto de lei n. 4.605/2009. Autoria do Deputado Federal Guilherme Campos. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrar integra;jsessionid=7AF49FD 41C6A24F08F4785149ECEE1EA.proposicoesWeb1?codteor=666861&filename=Tram itacao-PL+4605/2009>. Acesso em: 10 jul. 2015. 14 BRASIL, Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Relatório ao projeto de lei n. 4.605/2009. Relator Deputado Federal Marcelo Itagiba. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jses sionid=7AF49FD41C6A24F08F4785149ECEE1EA.proposicoesWeb1?codteor=79340 1&filename=Tramitacao-PL+4605/2009>. Acesso em: 10 jul. 2015.

A EIRELI como sociedade unipessoal permanente Conforme visto anteriormente, constatou-se que o projeto de lei n. 4.605/2009 originalmente estabelecia, de forma inequívoca, um novo tipo societário16, o qual possibilitava um único sócio, pessoa natural, constituir permanentemente uma pessoa jurídica, revestida de autonomia patrimonial. Todavia, o relator do projeto na CCJC não aquiesceu com tal orientação, insistindo na tese de que o conceito de sociedade demandava obrigatoriamente BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 259, de 11 de julho de 2011. Disponível em < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Msg/VEP-259.htm>. Acesso em: 10 jul. 2015. 16 Alexandre Ferreira de Assumpção Alves apresenta uma interessante síntese dos motivos que levam a afirmar a instituição de novo tipo de sociedade: “Afirma-se que se trata de um novo tipo societário em razão das seguintes características: um valor patrimonial para o capital social, tanto na constituição quanto durante o funcionamento da sociedade, necessidade da integralização permanente do capital, restrição quanto à participação de pessoa natural em mais de uma EIRELI, aditivo particular ao nome empresarial e possibilidade de constituição por pessoa natural, o que até então não era permitido no direito brasileiro. (ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. op. cit., p. 233). 217 15

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a pluralidade de sócios. Contudo, esse entendimento nem sequer encontra ressonância no ordenamento jurídico em vigor antes da promulgação da Lei n. 12.441/2011, haja vista que o fenômeno da unipessoal societária permanente já se mostrava em, ao menos, duas hipóteses previstas na legislação nacional. A mais antiga dela está plasmada no art. 5º, II, do Decreto-Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967, no qual o Legislador possibilitou à União constituir pessoa jurídica de direito privado, sob qualquer das formas admitidas em direito, com patrimônio próprio e capital exclusivo federal, para a exploração de atividade econômica. Outra hipótese descrita no direito positivo nacional está presente no art. 251 da Lei n. 6.40417, de 15 de dezembro de 1976, o qual dispõe sobre a possibilidade de constituição de subsidiárias integrais, sociedades anônimas unipessoais cuja única sócia é outra sociedade brasileira. Neste ponto, transcreve-se parcela das exposições de motivos do diploma de 1976 da lavra do Ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen18:

Acerca da necessidade de ampliação das hipóteses legais de constituição de sociedades unipessoais, impende mencionar as lições de Calixto Salomão Filho21:

A companhia que tem por único acionista outra sociedade brasileira é expressamente admitida e regulada no artigo 252 [renumerado na versão final como art. 251], que dá juridicidade ao fato diário, a que se vêem constrangidas as companhias, de usar “homens de palha” para subscreverem algumas ações, em cumprimento ao requisito formal de número mínimo de acionistas. Mas o Projeto não admite a companhia brasileira subsidiária integral de companhia estrangeira, para deixar claro que a lei veda a subordinação do interesse da sociedade nacional ao da estrangeira: os administradores da companhia brasileira controlada por acionistas estrangeiros, assim como o seu acionista controlador, têm sempre os deveres e responsabilidades definidos nos artigos 116, 117 e 154 e seguintes.

Ora, a problemática da existência de sócios-de-palha não é exclusiva das companhias. Nos demais casos de sociedades de responsabilidade limitada, não é raro que sócio principal inclua pessoa de sua confiança no quadro social, simplesmente para preenchimento da exigência formal de pluralidade de sócios, sem que esta última tenha qualquer ingerência efetiva nos negócios sociais. A crítica quanto à ausência de previsão no ordenamento de uma sociedade limitada unipessoal permanente não é nova. José Waldecy Lucena19 se manifesta no sentido da desatualização do Código Civil em relação à lei brasileira do anonimato e à legislação estrangeira, haja vista que reconhece apenas a unipessoalidade de maneira acidental e provisória20. Art. 251. A companhia pode ser constituída, mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade brasileira. 18 BRASIL. Ministério da Fazenda. Exposição de motivos nº 196, de 24 de junho de 1976. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2015. 19 LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 31. 20 Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (...) IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias... 17

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Parece faltar uma clara tomada de posição de ponto de vista da política legislativa. Sobretudo o fato de a sociedade unipessoal só ser admissível nos grupos não corresponde de forma alguma às necessidades econômicas brasileiras. A limitação de responsabilidade através da sociedade unipessoal permanece um privilégio das grandes estruturas empresariais. Um país com um dos maiores índices de concentração de riquezas do mundo não pode permitir reconhecer apenas formas societárias que facilitem essa mesma concentração.

Como argumentos favoráveis à tese da EIRELI como sociedade unipessoal ainda se pode sublinhar a própria redação final do art. 840-A da codificação civil. Nesse sentido, salienta-se a própria redação do caput do artigo, o qual define que o capital social não poderá ser inferior a 100 (cem) vezes o salário-mínimo nacional. Ora, a expressão capital social, em sua literalidade, induz o intérprete a perceber uma natureza societária ao novo instituto. Igualmente, o texto plasmado em seu parágrafo primeiro, discorrer sobre a necessidade da inserção da sigla EIRELI no nome da pessoa jurídica, utiliza o termo “firma ou denominação social”, insinuando o entendimento da empresa individual de responsabilidade limitada como sociedade unipessoal. A dicção legal do terceiro parágrafo, por sua vez, também faz menção expressa a esta natureza jurídica específica, quando possibilita a instituição de EIRELI em razão da concentração das quotas de outra modalidade societária em um sócio único, independentemente das razões que justificarem o ato. Além disso, poderia se afirmar que, corrobora com tal posicionamento, a aplicabilidade subsidiária das normas da sociedade limitada, consoante a previsão do sexto parágrafo do dispositivo22, haja vista que tal opção do Legislador de 2011 deixaria clara a proximidade da empresa individual de responsabilidade limitada com o tratamento jurídico das sociedades limitadas. Em resumo, de acordo com esta corrente doutrinária, uma interpretação sistêmica do Código Civil, notadamente de seu art. 980-A, levaria a conclusão de que a Lei n. 12.441/2011 trouxe ao ordenamento jurídico a possibilidade de uma pessoa natural constituir, em caráter individual e permanente, uma sociedade, podendo gozar da limitação da responsabilidade de seu instituidor. Esmiuçado tal posicionamento, pode-se analisar, com a devida profundidade, a tese oposta, elencando os principais argumentos favoráveis à tese da introdução na codificação civil, pela Lei n. 12.441/2011, de um novo tipo de pessoa jurídica, distinto das sociedades. 21 22

SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 233. § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.

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EIRELI como novo tipo de pessoa jurídica Inicialmente, cumpre salientar que a Lei n. 12.441, de 11 de julho de 2011, a qual criou a empresa individual de responsabilidade limitada, também inseriu um novo inciso no art. 44 do Código Civil, artigo conhecido tradicionalmente por elencar as espécies de pessoas jurídicas de direito privado admitidas pelo ordenamento brasileiro23. Em sua versão originária, consoante formulação elaborada pela comissão liderada por Miguel Reale, o artigo 44 da lei civil contemplava a existência de apenas três tipos de pessoas jurídicas de direito privado no direito brasileiro, quais sejam: as associações, as fundações e as sociedades. Ademais, desde sua concepção original, o artigo 981 do Código Civil já definia sociedades como contrato no qual “as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”. Com a alteração de 2011, ao lado das sociedades, no art. 44 da codificação civil, foi colocada a indicação das empresas individuais de responsabilidade limitada. Registre-se que, ao fazer esta escolha, o Legislador também inovou no sistema jurídico brasileiro, onde existia a forte presença da noção de pessoa jurídica como ente coletivo, formado pela combinação de vontade de dois ou mais sujeitos de direito. Todavia, como leciona José Tadeu Neves Xavier24, a própria dicção legal da norma que disciplina a empresa individual de responsabilidade limitada, em razão de sua ambiguidade, muitas vezes gera dúvidas acerca da possibilidade de ser visualizada juridicamente como sociedade. Sem embargo, parcela considerável da doutrina25 se mostra contrária a este entendimento, alegando que o próprio posicionamento topográfico dessa figura no Código Civil levaria a um posicionamento contrário à alocação do novo instituto como uma nova entidade societária. Nesse contexto, pode-se argumentar que se o Legislador vislumbrasse na empresa individual de responsabilidade limitada uma espécie societária, não haveria a necessidade de inclusão de inciso independente no art. 44 da Codificação Civil, o qual já contemplava as sociedades como pessoas jurídicas. Ademais, sob a mesma ótica, pode-se ressaltar que, ao regular a matéria, criou-se um tópico específico dentro do texto codificado, o “Título I - A”, diverso, portanto, do “Título II”, que cuida do regramento das sociedades, justamente para sinalizar que a EIRELI não pode ser classificada como espécie do gênero societário. O acréscimo do inciso VI ao art. 44 do Código Civil não constava originalmente do projeto de lei n. 4.605/2009, tendo sido inserido posteriormente, por força de sua consolidação com o Projeto de Lei n. 4.953/2009, de autoria do Deputado Federal Eduardo Sciarra. 24 XAVIER, José Tadeu Neves. op. cit., pp. 155. 25 Ibidem, pp. 156-157. 23

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Para além do critério topográfico, impende frisar que o conceito legal de sociedade, consubstanciado no art. 981 do Código Civil, de viés contratualista, pressupõe a existência de pluralidade de sócios, responsáveis por contribuir para o exercício da atividade negocial e pela partilha dos resultados, portanto, incompatível com a unipessoalidade peculiar das empresas individuais de responsabilidade limitada. Outrossim, é relevante o fato de que a Lei n. 12.441/2011 atribuiu nova redação ao parágrafo único do art. 1.033 da Codificação Civil, que trata das hipóteses de dissolução das sociedades, fixando a possibilidade de o sócio remanescente, diante da ausência de pluralidade de sócios (desde que não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias), transformar a sociedade em empresa individual de responsabilidade limitada. Acerca do tema, aduz Thiago Ferreira Cardoso Neves26: (...) o legislador, então, contrariou toda a teoria acerca das pessoas jurídicas, dando origem a uma pessoa jurídica composta por uma única pessoa. Entendemos que é equivocada esta construção. Todavia, tendo assim disposto expressamente o legislador, sustentamos não ser possível contrariar aquilo que a lei expressamente previu. Portanto, de acordo com o Código Civil, a natureza jurídica da Eireli é um fato inexorável: a empresa individual de responsabilidade limitada é uma pessoa jurídica, nova, peculiar, mas uma pessoa jurídica.

Destaca-se, ainda, a explicação de José Tadeu Neves Xavier sobre a diferença conceitual entre pessoa jurídica e sociedade para, ao final, afirmar que a unipessoalidade é uma situação transitória27: Ainda, é de se apontar que não podemos confundir os conceitos de pessoa jurídica com o de sociedade, que foram claramente delimitados pelo legislador civilista ao traçar as linhas de orientação do direito societário brasileiro, contemplando formas societárias que não são personificadas, como a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação. Também não podemos nos esquecer da inserção da fundação no rol de pessoas jurídicas, ente sem base pessoal, fundado simplesmente da existência de um patrimônio de afetação, destinado a determinados fins. Nestes termos, a pluralidade de sócios continua a ser característica indispensável para a identificação de sociedades em nosso direito, sendo a unipessoalidade uma situação precária, restrita ao limite temporal expressamente fixada na legislação, e a casos isolados, como na subsidiária integral e nas empresas públicas.

Diante disso, o autor conclui que a EIRELI é constituída por “uma declaração unilateral de vontade; não adotando contrato social, mas sim ato constitutivo, afastando-se, portanto, de forma inequívoca, da estrutura societária”28. NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. op. cit. pp. 226-227. XAVIER, José Tadeu Neves. op. cit., pp. 157-158. 28 Ibid., p. 158. 26 27

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Ressalta-se que a corrente doutrinária que compartilha tal entendimento manifesta, na maioria das vezes, duras críticas à redação do artigo 980-A do Código Civil, notadamente às menções feitas pelo Legislador ao adjetivo “social”. Neste sentido, cita-se, por exemplo, as lições de Wilges Bruscato29:

Desse modo, pode-se afirmar que, para parte da doutrina, a vontade do Legislador de 2011 era no sentido do reconhecimento da EIRELI como um novo tipo de pessoa jurídica de direito privado, apartado das sociedades, como insinua o art. 44 do Código Civil. Em apertada síntese, essas são as principais razões elencadas por aqueles que visualizam na empresa individual de responsabilidade limitada uma nova modalidade de pessoa jurídica, sui generis. Considerando que foram estudadas as duas principais correntes sobre a natureza jurídica da EIRELI, resta expor o posicionamento pessoal dos autores.

Todas as referências feitas ao adjetivo “social”, contidas no art. 980-A, são equivocadas, inadequadas e impróprias: o titular da Eireli não é sócio; o seu ato constitutivo não é um contrato social, o capital destinado à formação do patrimônio inicial da Eireli não é capital social, o nome empresarial pode ser firma ou denominação, mas não denominação social; não há que se falar em outra modalidade societária para o surgimento da Eireli. Não haverá órgãos societários, nem fracionamento do capital em quotas, nem deliberações sociais (...). Além do uso desastrado do adjetivo social no artigo, ainda contribui com a confusão básica sobre a natureza do novel instituto o fato da lei ter feito remessa à aplicação subsidiária das regras previstas às sociedades limitadas à Eireli, feita no § 6º do art. 980-A.

A matéria da natureza jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada também foi discutida no âmbito da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (2012), prevalecendo a tese de que a EIRELI seria um novo tipo de pessoa jurídica, como se nota dos enunciados aprovados abaixo transcritos30 31: Enunciado nº 469. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado. Enunciado nº 472. É inadequada a utilização da expressão “social” para as empresas individuais de responsabilidade limitada.

Além disso, conforme assinalado no terceiro seguimento do presente, a justificativa da versão final do texto do projeto de lei n. 4.605/2009, redigida pelo Deputado Federal Marcelo Itagiba, expressamente afastava o enquadramento da empresa individual de responsabilidade como categoria societária. BRUSCATO, Wilges. op. cit, p. 75. BRASIL, Conselho da Justiça Federal. V Jornada de Direito Civil. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. 31 No mesmo sentido é o 3º enunciado da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal: ‘A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária.’ BRASIL, Conselho da Justiça Federal. I Jornada de Direito Comercial. Disponível em: < http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/LIVRETO%20 -%20I%20JORNADA%20DE%20DIREITO%20COMERCIAL.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2015. 29 30

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Síntese conclusiva autoral Primeiramente, reitera-se que a problemática envolvendo a natureza jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada tem origem, em grande parte, em razão da dicção estabelecida pelo Legislador no momento da feitura da norma. A tentativa de composição de diversas visões diferentes acerca da possibilidade de limitação da responsabilidade do empresário individual por meio da constituição de pessoa jurídica se mostrou nebulosa, capaz de gerar insegurança jurídica. A bem da verdade, diante da confusão normativa, cada uma das duas teses principais ventiladas apresenta bons fundamentos em favor de sua predileção. Entretanto, convém demonstrar claramente as razões que levaram a evidenciar nosso posicionamento, seja através de novos motivos, ainda não enunciados, seja por meio da refutação ou, ao menos, pela mitigação da força dos argumentos do prisma oposto. Nesse sentido, pode-se começar pelo afastamento do critério topográfico como elemento essencial à identificação da natureza jurídica do instituto. A nosso sentir, a hermenêutica é um exercício complexo, o qual normalmente envolve esforço intelectual com base na utilização de variados ângulos de observação do texto positivo: como a análise histórica, lógica, sistemática e gramatical32. Portanto, simplesmente assentar que a Lei n. 12.441/2011, ao localizar a EIRELI em artigo (980-A) precedente ao Livro das sociedades no Código Civil ou, ao dizer que a introdução de um novo inciso no art. 44 daquela codificação levaria inequivocamente à conclusão de que o instituto se traduziria em novo tipo de pessoa jurídica é, sob nossa ótica, uma falácia. Neste diapasão, ressaltamos que a melhor forma de investigar a classificação da EIRELI deve perpassar pela análise das características essenciais do ente. Curiosamente, a doutrina, mesmo antes da vigência da Lei n. 12.441/2011, já tecia comentários acerca do sentido mais adequado do rol estabelecido no art. 44 do codex civilis. Neste contexto, Gustavo Tepedino33 lecionava que o elenco A exemplo da complexidade da hermenêutica jurídica se sugere a leitura da clássica obra de Carlos Maximiliano: Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 33 BARBOSA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de; TEPEDINO, Gustavo. Código Civil interpretado conforme à Constituição da República: parte geral e obrigações (art. 1º a 420º), v. I, 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.185. 32

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de cinco incisos (i. associações; ii. sociedades; iii. fundações, iv. organizações religiosas e v. partidos políticos), dado ao Código Civil pela Lei n. 10.825/2003, não lhe formava convicção no sentido da existência de cinco tipos distintos de pessoas jurídicas. Para o autor34, existiam apenas três tipos de pessoas jurídicas: associações, sociedades e fundações. As organizações religiosas e os partidos políticos seriam espécies qualificadas de associações, haja vista serem pessoas jurídicas, compostas por quadro associativo próprio, destinadas à realização de um fim não lucrativo. A localização em incisos autônomos se justificaria por duas razões: a primeira se refere à existência de um fim singularmente definido, no caso das organizações religiosas, o culto ao Divino, e, no caso dos partidos, a definição de uma ideologia política e a busca da ascensão ao poder por meio das vias democráticas. A segunda razão apontada pelo civilista se relaciona com a existência de um tratamento legislativo próprio35, diferenciador das demais hipóteses de associações. Em resumo, a Lei n. 10.825/2003, que introdução os incisos IV e V ao artigo 44 da codificação, o fez apenas com o objetivo de dar maior realce às situações particulares das associações sob forma de partidos políticos e organizações religiosas. Mutatis mutandis, parece-nos que lógica similar é aplicável à hipótese das empresas individuais de responsabilidade limitada. Essencialmente, as EIRELIs são sociedades com apenas alguns peculiaridades especiais, que não elidem sua natureza societária. Ora, se a EIRELI é uma pessoa jurídica que desenvolve permanentemente atividade econômica com animus lucrandi, cujo titular contribui com recursos próprios e recebe parcela dos resultados econômicos, podemos afirmar que estão presentes os elementos distintivos da sociedade em relação aos outros tipos de pessoas jurídicas. Por sua vez, o argumento de que o art. 981 do Código Civil, fixando o conceito legal de sociedade, preceitua uma visão contratualista e reclama a pluralidade de partes não nos impressiona. Se revestir a empresa individual de responsabilidade limitada como sociedade unipessoal perene se consubstancia em dano ao conceito positivado de sociedade, essa mácula não tem sua gênese na Lei n. 12.441/2011, pois, desde o momento da entrada em vigor do codex, tal disposição já encontrava exceções explícitas no ordenamento pátrio.

Consoante o exposto no terceiro item, as subsidiárias integrais previstas no art. 251 da Lei n. 6.404/1976 e as empresas públicas definidas no art. 5º, II, do Decreto-Lei n. 200/1967 são exemplos categóricos de unipessoalidade permanente no âmbito do direito societário brasileiro. Ademais, no campo doutrinário, nunca foi pacífico que o ordenamento jurídico brasileiro contemplasse uma concepção estritamente contratualista, conforme a exposição de Eduardo de Souza Carmo36, datada de 1989:

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Ibid. No caso dos partidos políticos, existe inclusive diploma específico, a Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995. Já no caso das organizações religiosas, o parágrafo primeiro do art. 44 prevê a ampla liberdade de sua constituição nos seguintes termos: “§ 1º São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registros dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.”

O contratualismo societário, típico, é tese amplamente superada. O contrato não explica a sociedade na medida em que o seu vínculo se rompe com a infringência. No direito vivo brasileiro o repúdio ao contratualismo societário está presente em muitos casos em que os tribunais – negando a dissolução total da sociedade por cotas de responsabilidade limitada – preferem a dissolução parcial delas e determinam o pagamento dos haveres ao sócio divergente. Preservase, assim, a sociedade que, antes de atender a compromissos com seus sócios, deve satisfazer as exigências do bem público e da função social da empresa. Como desconsiderar o fundamento institucional da sociedade, sabendo-se que o ato institucional ao contrário do contrato, não se dispersa com a violação de suas cláusulas, condições e estipulações? Se o ato institucional regula organizações estáveis, em relação à ordem geral das coisas, e que constituem, por si mesmas, um estado de Direito? Ora, se o contrato autoriza a resolução pela inexecução das obrigações, as instituições, mais estáveis, não são bruscamente resolvidas ou dissolvidas, desde que, além de possuírem poder de duração, constam com poder de evolução e de adaptação às condições novas da vida.

De outro giro, a nova redação dada ao parágrafo único do art. 1.033 do Código Civil pela Lei n. 12.441/2011 não se traduz em fundamento bastante para se rechaçar a tese da sociedade unipessoal. A nosso ver, trata-se da possibilidade de afastamento da dissolução em prol da adoção de outro tipo societário. Ademais, se o posicionamento se baseia na simples análise gramatical da Lei de 2011, muito mais razão estaria com esta última corrente, uma vez que inúmeras são as menções às sociedades, com a escolha sistemática do Legislador pelo adjetivo “social” no art. 980-A do codex. No que tange à alegação que a vontade do Legislador, por meio da formulação final do projeto de lei 4.605/2009 da lavra do Deputado Marcelo Itagiba, se manifestou no sentido do reconhecimento da natureza sui generis à EIRELI, cumpre-nos lembrar que, nem sempre, a intenção do Legislador é o método mais seguro para a obtenção da mens legis. 36

CARMO, Eduardo de Souza. Sociedade unipessoal por cotas de responsabilidade limitada. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 75, jul-set/1989, p. 42.

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Por mais que se reconheça a importância histórica do método originalista37, notadamente na construção da doutrina constitucional americana, entendemos que a vontade da Lei configura produto autônomo, independente, segregado definitivamente do desígnio do Órgão Legiferante a partir de sua publicação. Na espécie, a prevalência do espírito da Lei em relação à mens legislatoris se firma pelo exercício de uma hermenêutica com viés holístico, percebendo-se que, por mais que a emenda substitutiva da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados tenha tentado retirar elementos característicos das sociedades, essas qualidades ainda permanecem no texto. No presente artigo, discorremos sobre o cenário jurídico ensejador da inovação normativa da Lei n. 12.441/20011, expusemos acerca da tramitação do projeto de lei n. 4.605/2009, apresentamos os principais pontos a serem considerados para a classificação da natureza jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada, destacando as reflexões conclusivas autorais.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. MELO, Cinira Gomes Lima de. A limitação da responsabilidade do empresário individual. In: Revista do Curso de Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, UniFMU. a. 20, n. 28, 2006. São Paulo: Curso de Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, p. 122-123. MORALES, Cesar Mecchi. Originalismo e interpretação constitucional. São Paulo: USP, 2011. 283 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. A nova empresa individual de responsabilidade limitada: memórias póstumas do empresário individual. In: Revista da EMERJ. v. 14, n. 56, out./ dez. 2011. Rio de Janeiro: EMERJ p. 220. PINHEIRO, Frederico Garcia. Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. Jus Navegandi, Teresina, ano 16, n. 2954, 3 ago. 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2015. SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995. SANTOS, Theophilo de Azevedo (coord.). Novos estudos de direito comercial em homenagem a Celso Barbi Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2003. VALVERDE, Trajano de Miranda. Estabelecimento autônomo. In: Revista Forense. v. 96, out. 1943. Rio de Janeiro: Forense, 1943. p. 573-578. VANOSSI, Ana Isabel Piaggi de. Estudios sobre la sociedad unipersonal. Buenos Aires: Depalma, 1997. XAVIER, José Tadeu Neves. A complexa identificação da natureza jurídica da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI. In: Revista da EMERJ. v. 16. n. 62. abr-set/2013. Rio de Janeiro: EMERJ, 2013. p. 121-164.

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O Consequencialismo Financeiro em Matéria Tributária no STF João Carlos Bertola Franco de Gouveia1 Resumo Este trabalho analisa o consequencialismo financeiro e a modulação dos efeitos temporais nas decisões do STF em matéria tributária. Para isso, é feita uma análise crítica do pragmatismo de Posner, da teoria da argumentação jurídica na concepção de Humberto Ávila e da teoria geral do tributo segundo Alfredo Becker. Ao final, concluise que o uso dos argumentos consequencialistas pode ou não ser fundamentado no ordenamento jurídico conforme a interpretação que se dê ao consequencialismo financeiro.

Introdução O presente trabalho trata do consequencialismo financeiro e a modulação dos efeitos temporais nas decisões do STF em matéria tributária. Assim, nos dois primeiros capítulos comentam-se o pragmatismo de Posner e a crítica de Dworkin a Posner. Já nos capítulo 3 e 4 é feita uma análise sobre a posição de Humberto Ávila sobre o consequencialismo financeiro e a crítica de Arguelhes ao entendimento de Ávila. Depois, nos capítulos 5 e 6 são feitas considerações ao conceito de tributo segundo Alfredo Becker e sua crítica por Thatiane Piscitelli. Adiante, no capítulo 7 estuda-se a modulação dos efeitos temporais das decisões do STF. Por fim, no capítulo 8 faz-se a análise crítica do julgamento do IPI e da Cofins no STF.

O pragmatismo de Richard Posner Richard Posner tem sido um dos maiores defensores do pragmatismo jurídico. Assim, para Posner, pragmatismo refere-se ao fundamento dos julgamentos nas consequências, ao invés da dedução de premissas à maneira de silogismo. O pragmatismo refere-se ao fundamento da decisão judicial nos efeitos que a própria decisão parece ter, em vez da linguagem de uma lei ou de um caso ou numa regra preexistente. Para ele, o pragmatismo envolve considerações sobre as consequências sistêmicas e não se limita às consequências do caso concreto. Ainda, para ele, o critério fundamental do pragmatismo é adotar a decisão mais razoável possível, tudo considerado. 1

Doutorando em Direito Financeiro pela UERJ.

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Ademais, para Posner2 ao juiz não é exigido levar em consideração todas as consequências possíveis de sua decisão até mesmo por razões práticas.3 Já em sentido oposto, a teoria legalista, prega que a decisão ideal seria o resultado de um silogismo em que uma regra de direito fornece a premissa maior, os fatos do caso a premissa menor e a decisão seria a conclusão. A regra pode ser tirada de uma lei ou de um dispositivo constitucional, mas o modelo legalista vem completo com um conjunto de regras de interpretação de modo que a interpretação também se torna uma atividade vinculada às regras, evitando a discricionariedade judicial.

procurou superar a mera descrição de como os argumentos estão sendo usados pela doutrina e jurisprudência para explicar como os argumentos podem e devem ser utilizados na interpretação jurídica, havendo sua necessária justificação. Para Ávila, portanto, tanto a ausência de definição dos argumentos aplicados quanto a falta de diferenciação entre eles inserem na interpretação a ambiguidade e a arbitrariedade, pois a mera menção a argumentos, sem a sua necessária justificação, não só exclui a elucidação das premissas, como permite conclusões díspares e até mesmo inconciliáveis entre si.6 Ávila traz diversos argumentos sustentados pela doutrina e jurisprudência, dentre eles o de que não tributar o livro eletrônico traria perda de receita para o Estado no futuro. Esse tipo de argumento classifica-se como não institucional. Assim, os argumentos não-institucionais são argumentos meramente práticos que dependem de um julgamento feito pelo próprio intérprete sob pontos de vista econômicos, políticos e/ou éticos. E por falta de referência a pontos de vista objetivos ou objetiváveis, os argumentos não-institucionais nunca serão conclusivos, uma vez que podem ser manipuláveis conforme os interesses em jogo.7 Por outro lado, há os argumentos institucionais, os quais são aqueles que, sobre serem determinados por atos institucionais – parlamentares, administrativos, judiciais – têm como ponto de referência o ordenamento jurídico, possuindo maior capacidade de objetivação. Os argumentos interagem de várias formas, buscando Ávila um modelo de interação e de valoração dos argumentos. Uma vez que os argumentos são predominantemente multidirecionais, faz-se necessário atribuir a cada um deles uma dimensão de peso a partir da sua recondução aos princípios constitucionais. Assim, há uma prevalência dos argumentos institucionais sobre os não-institucionais em função do princípio da separação dos poderes e do princípio democrático. Já os argumentos não-institucionais ou meramente práticos nem mesmo de forma indireta fazem referência à força vinculativa do Poder Legislativo, pois eles não se deixam reconduzir aos princípios imanentes ao Estado Democrático de Direito.8 Ávila chega, portanto, a duas conclusões. Em primeiro lugar, ao entendimento de que todos os argumentos jurídicos são multidirecionais, sendo que nenhum é resolutivo, no sentido de haver uma única alternativa de interpretação. Isso permite dizer que a interpretação jurídica não é fundamentada nem com uma justificação interna (indicação da estrutura dedutiva de raciocínio) nem com uma justificação externa (indicação dos argumentos usados). A justificação interna apenas permite demonstrar de que maneira as conclusões decorrem logicamente das premissas, não explicando como as premissas são construídas.

A crítica de Ronald Dworkin a Richard Posner Ronald Dworkin foi um dos maiores críticos de Posner, tendo identificado algumas contradições nas ideias deste, como expressões vagas tais como boa comunidade futura, melhores consequências e melhores resultados. Para Dworkin, do ponto de vista de sua sugestão conceitual, o pragmatismo jurídico seria uma concepção cética do direito. Assim, o pragmatismo negaria que uma comunidade assegure alguma vantagem real quando as decisões do juiz sejam verificadas em conformidade e em coerência com outras decisões políticas tomadas no passado.4 Para o pragmatismo, então, os juízes tomam quaisquer decisões que lhe pareçam melhores para o futuro da comunidade, ignorando qualquer coerência com o passado. Dessa forma, o pragmatismo rejeitaria a ideia de direito e de pretensões juridicamente protegidas na concepção de Dworkin.5

A posição de Humberto Ávila Humberto Ávila, em artigo sobre a argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico, analisa diversos argumentos utilizados tanto pela doutrina como pela jurisprudência para sustentar tanto o enquadramento como o não enquadramento do livro eletrônico na classe de livros. Nesse estudo, Ávila Nas próprias palavras do autor: em POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.609-610: “de fato, os instrumentos de investigação dos tribunais têm um poder tão limitado que a mais alta aspiração realista de um juiz diante de um caso complicado é tomar uma decisão razoável (prática, sensata), em vez de uma decisão demonstravelmente correta – esta última estará, em geral, fora de cogitação. Os ingredientes da razoabilidade incluem, mas não exclusivamente, materiais jurídicos convencionais como os precedentes e os princípios para o uso destes. Frequentemente, o juiz terá opção a não ser a de ponderar sobre o resultado através de métodos não-jurídicos extraídos de materiais nãojurídicos, e às vezes terá de confrontar a intuição inarticulada com argumentos jurídicos.” 3 POSNER, Richard A. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.47. 4 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2007, p.119. 5 Para uma melhor análise da polêmica entre Posner e Dworkin conferir ANDRADE, Fábio Martins de. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: QuartierLatin, 2011, p41-103. 2

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ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. Revista diálogo jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.I, nº5, agosto, 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 14 de fevereiro de 2014, p.5. 7 Ibidem, p.18. 8 Ibidem, p.25-26. 6

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Já a justificação externa apenas esclarece quais são os argumentos utilizados na construção das premissas do raciocínio jurídico. Como os argumentos fluem em várias direções, a justificação externa não tem como explicar nem como os argumentos devem ser construídos nem quais deles devem prevalecer. Por fim, conclui que os argumentos são multidimensionais, sendo insuficiente pretender justificar uma interpretação usando apenas a linguagem, o sistema, a história ou a vontade do legislador. Assim, é a valoração dos próprios argumentos jurídicos que permite saber qual a interpretação mais adequada em face de determinado ordenamento jurídico. Nesse sentido, é preciso dar prevalência aos argumentos que se deixam reconduzir aos princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito, como os argumentos linguísticos e sistemáticos e põe-se em dúvida a validade dos estudos doutrinários que menosprezam os argumentos linguísticos e sistemáticos em favor de argumentos genéticos, históricos ou meramente políticos, sociais, econômicos e filosóficos, os quais são analisados sem que o intérprete demonstre que todos os argumentos utilizados podem ser reconduzidos ao ordenamento jurídico que ele pretende interpretar.9

A crítica de Diego Arguelhes a Humberto Ávila Diego Arguelhes faz uma crítica interessante a Humberto Ávila, demonstrando que os argumentos práticos ou consequencialistas podem em muitos casos ser reconduzidos ao ordenamento jurídico vigente, isto é, não são necessariamente não-institucionais e, por conseguinte, seu peso não deve ser a priori definido como subsidiário. Isso porque em certos casos argumentar com base nas consequencias pode ser uma maneira específica de obedecer a normas jurídicas, voltada para a promoção de estados de coisas cuja consecução o ordenamento institui como obrigatória. Ademais, em casos de interdependência entre os estados de coisas deonticamente caracterizados por normas distintas, os argumentos consequencialistas podem funcionar como argumentos sistemáticos. É o caso da análise das possíveis consequências da não-recepção do artigo 68 do CPP, pois a obediência estrita aos arts.127, 129 e 134 impediria a promoção de fins deonticamente caracterizados pela Magna Carta. Assim, o argumento consequencialista esclareceu a conexão sistemática ente as normas instituidoras do Ministério Público e o princípio constitucional da prestação de assistência jurídica gratuita aos que delas necessitarem. Conclui o autor, portanto, que se pode afirmar que o raciocínio consequecialista parece ser inerente ao trabalho de interpretação e aplicação do Direito quando houver princípios envolvidos, na medida em que, nesses casos, sempre é possível argumentar pela promoção do estado de coisas visado pela norma jurídica.10 9

Ibidem, p.29-32. ARGUELHES, Diego Werneck. Disponível em http://www.conpedi. org.br/Manaus/ arquivos/anais. Acesso em 10 de janeiro de 2014, p.16-18.

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A teoria geral do tributo de Alfredo Becker Alfredo Augusto Becker propôs uma teoria pura do direito tributário, denunciando a confusão em que se encontra o direito tributário, chamada por ele de manicômio tributário em função da influência da ciência das finanças no direito tributário. Para ele, o manicômio tributário ocorre porque se põe o fundamento do tributo na soberania do Estado e cujo raciocínio está baseado na seguinte premissa: o Estado tem necessidade de meios financeiros para custear suas atividades e com tal finalidade tributa porque seria soberano.11 Becker baseia-se na obra de Giannini para quem se justifica a possibilidade de separação do direito tributário do financeiro, uma vez que as normas relativas à tributação se prestam a ser coordenadas em um sistema científico como a relação jurídica tributária da sua origem à sua incidência.12 No mesmo sentido de Giannini, Berliri ressalta a diferença entre a ciência das finanças e o direito tributário, considerando este uma ciência jurídica, a qual estuda as normas jurídicas, as quais governam uma atividade específica da Administração, referente à arrecadação, criação e cobrança de tributos. Já a ciência das finanças estuda as leis econômicas que regulam o fenômeno financeiro. Assim, Berliri sustenta a autonomia científica do direito tributário.13 A terapêutica advogada por Becker para curar a demência em que o direito tributário se encontra é a aplicação da teoria da embriogenia do Estado aos estudos tributários. Assim, os dados naturais da realidade somente importam para o desvelamento da existência do Estado-Realidade Natural, cuja relação constitucional é jurisdicizada a partir da criação do Estado-Ficção-Jurídica e que, a partir daí, as relações tributárias formadas para garantir a subsistência e continuação dessa ficção são estritamente jurídicas e não se deve tomar em conta os fatos pré-jurídicos que motivaram sua elaboração, como a necessidade de continuação do Estado.

A crítica de Tathiane Piscitelli a Alfredo Becker Tathiane dos Santos Piscitelli faz uma severa crítica à teoria adotada por Becker, defendendo que a concepção de Becker teria dois problemas.14 O primeiro seria que o direito não precisa do Estado-Realidade-Natural como um antecedente lógico para sua exigência, mas somente de linguagem. Por isso, o Estado-Realidade Natural e o Estado-Ficção são uma única coisa. Se existe Estado, há linguagem e, logo, há direito institucionalmente construído. Ademais, a premissa básica para que o Estado exista como instituição, além da linguagem, é a existência de recursos que o sustentem, providos pela tributação. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p.75. GIANNINI, Achile Donato. I concetti fondamentali del diritto tributário. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, p. 4-5. 13 BERLIRI, Antonio. Principi di diritto tributário, vol.I. Milano: Giuffrè Editore, 1952, pp.15-16. 14 PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentos pela consequencia no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011, p.86-91. 11

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Dessa forma, os tributos e a atividade financeira do Estado são os fatos institucionais que possibilitam a existência material do Estado, sendo o direito tributário parte constitutiva do Estado, e nesse sentido, integra o sistema de regras que, aplicadas ao fato bruto, constroem a realidade institucional que é o Estado. Não haveria, portanto, precedência, mas concomitância do direito ao Estado e deste em relação às regras tributárias. Já o segundo problema é relacionado à teoria do Direito. Becker entende que a decisão judicial seria o resultado de uma interpretação meramente mecânica e científica, sendo que o Poder Judiciário realiza somente uma operação lógico-dedutiva, sendo qualquer atividade diferente da subsunção vista como exercício de função legislativa pelos juízes sem haver autorização legal para isso.15 Uma teoria como essa é insuficiente por duas razões. Em primeiro lugar, ignora a atividade criativa do aplicador do direito, este no sentido mais amplo possível, para abranger desde os magistrados até os cidadãos, submetidos ao direito. Em segundo lugar, ao reconhecer que o jurista nada cria e nem aplica a lei, despreza a teoria da argumentação jurídica. Isso se dá pelo fato de eleger como única forma possível de solução de conflitos tributários a aplicação mecânica da lei. Em suma, uma teoria da argumentação auxilia no estabelecimento de critérios que indiquem quais são as razões consideradas boas para justificar a decisão e, consequentemente, justificar os passos do raciocínio dedutivo. Especificamente em relação ao direito tributário, é muito comum decisões judiciais que não trazem todas as questões envolvidas no processo de tomada de decisões, em virtude de uma dada concepção de direito tributário, cujo representante é Alfredo Becker, que não somente desconsidera a teoria da argumentação como um instrumento importante para externalizar as razões do julgado, como, ainda, em consequência disso, exclui a possibilidade de argumentos relacionados à atividade financeira do Estado e com a função da tributação.16

A modulação dos efeitos temporais das decisões do STF O controle de constitucionalidade conhece dois sistemas, os quais se distinguem em função do consequencialismo: o americano com eficácia ex tunc, e o austríaco, com eficácia ex nunc, sensível ao argumento consequencialista. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p.67. 16 PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentos pela consequência no direito tributário, op.cit. p.110-111. 15

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O sistema americano O sistema americano não prevê em sua Constituição norma expressa sobre o controle de constitucionalidade, sendo o mesmo de construção doutrinária e jurisprudencial. A decisão de inconstitucionalidade produz efeitos apenas entre as partes, mas pelo princípio do stare decisis de generalização dos precedentes judiciais, a decisão possui efeitos erga omnes. Além disso, a lei inconstitucional é inválida desde o seu início, com efeitos ex tunc, não tendo jamais produzido efeitos, os quais seriam contrários à Magna Carta. A jurisprudência americana analisou o problema no caso Davis v. Michigan Department of the Treasure,17 declarando inconstitucional a tributação estadual sobre os benefícios previdenciários pagos pelo governo federal porque haveria ofensa à imunidade tributária intergovernamental, uma vez que idênticos benefícios pagos pelos Estados eram isentos. Os contribuintes em outros Estados com legislação semelhante tentaram obter a restituição das importâncias pagas, sob o argumento da retroatividade do julgado proferido. A Suprema Corte da Virgínia denegou a pretensão dos contribuintes, com base em precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos (Chevron OilCo. v. Huson18), o qual reconheceu a possibilidade de se rejeitar o efeito retroativo de um novo princípio de direito. Já a Suprema Corte dos Estados Unidos reformou a decisão do Tribunal da Virgínia para declarar o cabimento da eficácia retroativa do julgado proferido em Davis v. Michigan Department of the Treasury e, consequentemente, o não cabimento da utilização da doutrina usada em Chevron OilCo. v.Huson.

O sistema austríaco Na Áustria, por influência de Kelsen, adota-se o sistema de eficácia ex nunc, ficando a lei sem efeito a partir do dia da publicação da decisão da Corte Constitucional ou a partir do prazo fixado na própria decisão, não excedente de seis meses, conforme o art.140, parágrafo 3º da Constituição austríaca.

Sistemas mistos A Alemanha adota o sistema americano de eficácia ex tunc, sendo que a Constituição alemã prevê os efeitos erga omnes nos arts. 93 e 100. A Lei do Tribunal Constitucional estabelece a competência judicial para declarar a nulidade da lei inconstitucional, excepcionando, todavia, a integridade de uma sentença irrecorrível, excluindo a seu respeito as pretensões à repetição de indébito conforme art.79, 2. Há a possibilidade, ainda, de o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade sem decretar a invalidade da norma (art.31, 2 da Lei do Tribunal Constitucional). 17 18

489 US 803 (1989). 404 US 97 (1989).

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O Código Tributário alemão prevê, outrossim, no art.176 que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei não pode ser utilizada pelo fisco para alterar, contra os interesses do contribuinte, um lançamento devidamente notificado. A Constituição de Portugal seguiu o modelo alemão, prevendo a eficácia ex tunc da declaração em abstrato, excepcionando, no entanto, que quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional interesse o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos de inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito, conforme o art.282, 4. A Constituição brasileira dispõe no art. 102, I, “a” caber ao STF a competência para processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. A doutrina brasileira majoritária entendeu sempre que a declaração de inconstitucionalidade opera ex tunc, havendo nulidade da norma inconstitucional, conforme Ruy Barbosa19, Castro Nunes20, Buzaid21 e Lúcio Bittencourt.22 Houve, todavia, alguns autores que defendiam alguns temperamentos à tese da eficácia ex tunc, como Themístocles Brandão Cavalcanti23, para quem nem os funcionários nomeados com aplicação de leis inconstitucionais, nem as consequências sobre os contratos já concluídos, partem do pressuposto da inexistência da lei. Também, no mesmo diapasão, Lúcio Bittencourt24, para o qual a doutrina da eficácia ab initio da lei inconstitucional não pode ser entendida em termos absolutos, uma vez que os efeitos de fato que a norma produziu não podem ser suprimidos por simples obra de um decreto judicial. Mais recentemente, Luís Roberto Barroso25 também defende que em algumas hipóteses excepcionais seja admitido o temperamento da regra geral, atenuando o caráter retroativo do pronunciamento de inconstitucionalidade, em nome de valores como boa-fé, justiça e segurança jurídica. Assim, haveria temperamentos à retroatividade nos seguintes casos: a) em nome da boa-fé de terceiros e da teoria da aparência, o STF não invalidou atos praticados por funcionário investido em cargo público com base em lei que veio a ser declarada inconstitucional; BARBOSA, Ruy. Os actos inconstitucionais do congresso e do executivo ante a justiça federal. Rio de Janeiro: Companhia impressora, 1893, p.47. 20 NUNES, José de Castro. Teoria e prática do poder judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p. 588-589. 21 BUZAID, Alfredo. Da ação de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p.132. 22 BITTENCOURT, Lucio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p.148. 23 CAVALCANTI. Themístocles Brandão. Do controle da constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p.169. 24 BITTENCOURT, Lucio, op.cit. p.148. 25 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Saraiva, 2009, p.42-44. 19

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b) em função da irredutibilidade de vencimentos, o STF entendeu que a retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional, nem tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade; c) em respeito à proteção da coisa julgada, a declaração de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes não desconstitui automaticamente a decisão baseada na lei que veio a ser invalidada e que transitou em julgado, sendo cabível ação rescisória, se ainda não decorrido o prazo legal; d) em nome da vedação do enriquecimento sem causa, se a Administração tiver se beneficiado de uma relação jurídica com o particular, mesmo que ela venha a ser tida por inválida, se não houver tido má-fé do administrado, faz ele jus à indenização correspondente.

Impende mencionar que o problema da modulação foi em parte resolvido com o artigo 27 da Lei 9.868/99, a qual prevê a possibilidade da modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade em função de razões de segurança jurídica e excepcional interesse social. A segurança jurídica aqui é a subjetiva, consubstanciada na proteção da confiança. Isso porque, muitas vezes, a norma, mesmo inconstitucional, gera a presunção de que seu comando será cumprido e seus efeitos produzidos em função do princípio da presunção de constitucionalidade das leis. É importante mencionar, ainda, que há autores os quais entendem que o Estado não pode invocar a segurança jurídica para manter situações que a lei inconstitucional tenha gerado em seu benefício. Isso porque a segurança jurídica é um direito fundamental do cidadão oponível ao Estado e também em função da cláusula tu quoque. Assim, é contrária à boa-fé a solução que permita ao Estado abusar do poder de legislar em desrespeito à Constituição e ainda dispor da possibilidade de ver mantido o proveito que tenha alcançado em virtude da lei inconstitucional.26 O STF aderiu inicialmente ao consequencialismo em questões não financeiras a partir de 2003. Assim, o Tribunal aplicou a modulação dos efeitos temporais no caso de fidelidade partidária27, somente perdendo o mandato os políticos que mudaram de partido depois que TSE manifestou a sua posição em favor da fidelidade e aplicou também a modulação na decisão sobre a criação do Município Luís Eduardo Magalhães28, na qual se declarou a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade da lei impugnada, mantendo sua vigência pelo prazo de 24 meses. Posteriormente, o STF também aderiu ao consequencialismo em matéria financeira, como no julgamento sobre prescrição e decadência das contribuições ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme a constituição do artigo 27 da Lei 9868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.154-155. 27 MS nº 26.604. 28 ADI nº 2.240/BA 26

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sobre a seguridade social,29 em que o STF julgou inconstitucionais os arts.45 e 46 da Lei nº 8.212/91, aplicando efeitos ex nunc à decisão em relação a ações de repetição de indébito ajuizadas após a decisão.

Cabe lembrar aqui a o princípio da proteção à confiança legítima, o qual advém do princípio da segurança jurídica subjetiva, ou seja, a segurança jurídica dos direitos e demais posições e relações jurídicas dos indivíduos, segundo a qual estes devem poder confiar em que tanto à sua atuação como à atuação das entidades públicas incidente sobre os seus direitos, posições e relações jurídicas, se liguem efeitos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas.32 Ora, no caso concreto aqui em exame, não há a aplicabilidade plena do princípio da irretroatividade,33 pois não teria havido ainda a coisa julgada no RE nº 212.484,não sendo o princípio aplicável para as leis que não chegam a nascer, não são definitivas ou não entram em vigor. Sucede que existe uma responsabilidade por despachos e decisões monocráticas de Ministros da Suprema Corte que aplicam a jurisprudência anterior como se fosse precedente consolidado, havendo proteção à confiança casada com a boa-fé objetiva, na medida em que fizeram acreditar na definitividade do entendimento anterior.34Pode-se concluir, então, que, em relação à formação de jurisprudência, a primitiva, chamada de first impression, a regra deve ser a retroação, efeitos ex tunc, nas sentenças declaratórias e a exceção a modulação dos efeitos. Já nos casos de modificações jurisprudenciais prejudiciais ao contribuinte, a regra deverá ser a modulação dos efeitos com aplicação dos princípios da proteção da confiança e da boa-fé objetiva.35 Em relação à COFINS e ao PIS/PASEP, o STF no RE 559.937/RS julgou improcedente o recurso extraordinário interposto pela Fazenda Nacional, entendendo ser inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS-importação e PIS/PASEP- importação. A questão dizia respeito à constitucionalidade ou não do art. 7º, inciso I, da Lei nº 10.865/04, que dispõe integrar a base de cálculo das contribuições PIS/PASEP-Importação e COFINS-Importação o valor aduaneiro “acrescido do valor do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS incidente no desembaraço aduaneiro e do valor das próprias contribuições”. É de se considerar, então, se a norma em comento encontra fundamento de

Casos concretos: IPI e Cofins O caso do IPI refere-se à extensão do princípio da não-cumulatividade previsto no art.153, §3º, inciso II da Magna Carta e consequentemente ao direito a creditamento do imposto nas hipóteses em que as operações anteriores fossem isentas,tributadas à alíquota zero ou não sofressem o ônus do IPI (não tributadas). Em 1998 no RE nº 212.484 o STF decidiu pela existência de direito a crédito de IPI nos casos de entrada de produtos isentos. Em seguida, em 2002, no julgamento dos RREE nº350.446, 353.668 e 357.277 esse entendimento foi estendido às operações tributadas à alíquota zero. Em 2007, todavia, no julgamento dos RREE nº 370.682 e 353.657 houve reversão do entendimento anterior e a negativa de crédito nas entradas de insumos tributados com alíquota zero. O Ministro Ricardo Lewandovski propôs, de ofício, a modulação dos efeitos da decisão, com base nos princípios da segurança jurídica, boa-fé e confiança legítima, alegando ter havido alteração na jurisprudência da Corte. A modulação foi rejeitada, pois se entendeu que não era possível a modulação, uma vez que não houvera declaração de inconstitucionalidade de qualquer lei ou ato normativo, além do que não teria havido virada jurisprudencial. Ora, esse argumento deve ser criticado, pois, se no caso de reconhecimento de inconstitucionalidade de uma lei, tanto em controle concentrado como difuso, o STF admite a possibilidade de não se dar à decisão efeitos retroativos, com mais razão ainda deverá admiti-la no desempenho da jurisdição ordinária, a qual não envolve a declaração de nulidade de qualquer norma em face da Constituição, devendo haver os mesmos elementos de ponderação nos casos de inconstitucionalidade.30 Ademais, também o argumento de que não houve virada jurisprudencial deve ser criticado, pois a partir da decisão nos RREE nº350.446, 353.668 e 357.277 diversos recursos extraordinários com o mesmo objeto foram apreciados monocraticamente pelos Ministros do STF com base no art.557 do CPC, o qual autoriza o relator a não conhecer de recurso que veicule tese contrária à súmula ou à jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF ou de Tribunal superior. O mesmo entendimento foi adotado pelo STJ e pelos cinco Tribunais Regionais Federais, não havendo dúvida de que o STF e o Judiciário em geral consideravam pacífica a tese do direito do contribuinte do IPI ao creditamento nos casos em que a operação anterior foi tributada à alíquota zero.31 RE nº 560.626 e súmula vinculante nº 08 do STF. BARROSO, Luís Roberto.Mudança da jurisprudência do supremo tribunal federal em matéria tributária. Segurança jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais, p.9-10. 31 Ibidem, p.3-4. 29 30

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NABAIS, José Casalta. O dever de fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009, p.395-396. 33 Cabe ressalvar o entendimento contrário de Luís Roberto Barroso, em BARROSO, Luís Roberto. Mudança da jurisprudência do supremo tribunal federal em matéria tributária. Segurança jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais, op.cit. para quem a regra da irretroatividade tributária prevista no art.150, III, “a” Constituição em conjunto com o art.146 do CTN impedem a aplicação retroativa da decisão do STF no caso de mudança de interpretação, por produzir os mesmos efeitos da edição de um novo ato legislativo. 34 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p.558-559. 35 Ibidem, p.574. 32

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validade o § 2º, III, a, do art. 149 da Constituição Federal, o qual preceitua que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico “poderão ter alíquotas: a) ad valorem, tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro” Sobre o conceito de valor aduaneiro, quando da edição da EC nº 33/01 – a qual, combinada com a EC nº 42/03, passou a permitir a incidência do PIS/ COFINS sobre a importação –, o referido conceito já estava definido no art. 2º do Decreto-Lei nº 37/66, o qual dispõe sobre a base de cálculo do imposto de importação e remete, nos casos de alíquota ad valorem (inciso II), ao conceito de valor aduaneiro “apurado segundo as normas do art. 7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio – GATT”. Tal norma vem, igualmente, prevista no art. 75, inciso I, do Decreto nº 6.759, de 5/2/09, o qual, atualmente, regulamenta a administração das atividades aduaneiras e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior. Essa norma dispõe ser a base de cálculo do imposto, “quando a alíquota for ad valorem, o valor aduaneiro apurado segundo as normas do Artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT 1994”. Portanto, entendeu o STF que, na ausência de estipulação expressa do conteúdo semântico da expressão ‘valor aduaneiro’ pela EC nº 42/03, há de se concluir que o sentido pressuposto, e incorporado pela Constituição Federal, quando da utilização do termo para conferir competência legislativa tributária à União, remete àquele já praticado no discurso jurídico-positivo preexistente à sua edição. Posteriormente ao julgamento do recurso extraordinário, a Fazenda Nacional opôs embargos de declaração pedindo a modulação dos efeitos temporais da decisão, alegando prejuízo de R$34 bilhões à União. Ora, nesse caso, não se pode admitir que a União alegue razões de segurança jurídica em seu favor e se beneficie de uma lei que extrapolou a delimitação de competência conferida constitucionalmente para tributar o valor aduaneiro, em atitude que viola a boa-fé objetiva, mais precisamente a cláusula tu quoque, além de tirar proveito de uma inconstitucionalidade útil para arrecadar mais.

ordenamento jurídico, podendo ser um argumento prático na concepção de Humberto Ávila ou mesmo um argumento institucional, reconduzível a algum princípio, no entendimento de Diego Arguelhes.

Conclusões

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Face ao exposto, conclui-se que o STF vem adotando o consequencialismo financeiro na modulação dos efeitos temporais nas decisões em matéria tributária. Ocorre que, na modulação dos efeitos da decisão, o STF exerce um juízo de ponderação em função de razões de segurança jurídica. A questão é que essa segurança jurídica não pode ser usada em favor do Estado quando este mesmo editou a lei declarada inconstitucional, pois configuraria o tu quoque e violaria a confiança legítima do contribuinte. Por outro lado, há controvérsia sobre se a análise das consequencias financeiras é possível ou não, dependendo da concepção de tributo que se venha a adotar, ou seja, se a arrecadação faz parte ou não do conceito de tributo segundo as teses de Alfredo Becker ou Thatiane Piscitelli e se a análise das consequências financeiras está ou não vinculada ao

Referências bibliográficas ANDRADE, Fábio Martins de. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: QuartierLatin, 2011. ARGUELHES, Diego Werneck. Disponível em http://www.conpedi.org.br/Manaus/ arquivos/anais. Acesso em 10 de janeiro de 2014. ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme a constituição do artigo 27 da Lei 9868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. Revista diálogo jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.I, nº5, agosto, 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 14 de fevereiro de 2014. BARBOSA, Ruy. Os actos inconstitucionais do congresso e do executivo ante a justiça federal. Rio de Janeiro: Companhia impressora, 1893. BARROSO, Luís Roberto. Mudança da jurisprudência do supremo tribunal federal em matéria tributária. Segurança jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2007. BERLIRI, Antonio. Principi di diritto tributário, vol.I. Milano: Giuffrè Editore, 1952. BITTENCOURT, Lucio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1949. BUZAID, Alfredo. Da ação de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958. CAVALCANTI. Themístocles Brandão. Do controle da constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1966. DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009. DWORKIN, Ronald. O império do direito. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2007. GIANNINI, Achile Donato. I concetti fondamentali Del diritto tributário. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese. GIANNINI, Achille Donato. Instituzioni di diritto tributário. Milano: Giuffrè, 1968. NABAIS, José Casalta. O dever de fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009. NUNES, José de Castro. Teoria e prática do poder judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1943. PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentos pela consequencia no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011. POSNER, Richard A. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010. POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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Pensamentos Ambientais e os Animais Mery Chalfun1 Resumo O presente artigo tem por fim retratar alguns pensamentos filosóficos ambientais, os quais contribuíram e representam influência direta no tratamento e natureza conferida aos animais. Antropocentrismo utilitarista e o alargado colocam o homem como centro do universo. Meio ambiente e animais, dentro desta concepção, teriam sido criados para o interesse humano e quando protegidos o sujeito permanece sendo o homem. Apesar deste pensamento predominante há uma evolução para novas formas de ver o meio ambiente, por exemplo; na ecologia profunda não há hierarquia entre os seres vivos e o meio ambiente. Em paralelo surge uma nova forma de pensar, que considera os animais importantes por eles próprios, como um ser vivo que pode e deve ser também titular de direitos fundamentais. Palavras chave: Antropocentrismo; meio ambiente; animais. Abstract This article aims to portray some environmental philosophical thoughts, which contributed and represent direct influence on the nature and treatment given to animals. utilitarian anthropocentrism and extended put man at the center of the universe. Environment and animals, in this conception, would have been created for human interest and protected when the subject remains man. Despite this prevailing thought there is an evolution to new ways of seeing the environment, for example; the deep ecology there is no hierarchy between living beings and the environment. In parallel there is a new way of thinking, which considers the important animals by themselves, as a living being that can and should also be fundamental rights holder. Keywords: Anthropocentrism; environment; animals.

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Atua como Bolsista no Doutorado do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Veiga de Almeida – UVA. Possui mestrado em Direito (2009) pela Universidade Estácio de Sá e graduação em Direito (1995) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente é professora da Faculdade Cenecista da Ilha do Governador e da Universidade Veiga de Almeida. Diretora de pesquisa acadêmica do Instituto Abolicionista pelos Animais e pesquisadora convidada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/CNPq e certificado pela UVA: Desenvolvimento econômico, globalização e sustentabilidade nas relações nacionais e internacionais e do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/ CNPq e certificado pela UFRJ: Centro de Ética Ambiental. Membro do International Political and Economic System - BRASIL-USA-BRICS – e do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Conferencista em eventos nacionais e internacionais, com publicações no Brasil. Articulista. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Animal, atuando principalmente no seguinte tema: animais, direitos fundamentais.

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Considerações iniciais “A Natureza precede ao próprio ser humano. Por isso as demais formas de vida apresentam um significado próprio em si mesmas, enquanto expressão criadora de Deus ou da natureza, conforme o posicionamento religioso de cada um. Com efeito, nem tudo o que existe foi criado para a utilidade imediata do homem; há outros fins, outras razões criadoras que escapam à nossa sensibilidade e aos nossos cálculos. Muitas outras realidades e aspectos superam as nossas “vãs filosofias”. (Édis Milaré)

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A proteção ambiental ou a forma de posicionamento em relação ao meio ambiente, influenciada por pensamentos filosóficos, culturais, religiosos e sensibilidade humana geram tratamentos e visões diferentes que incluem os animais, e consequências para estes. Antropocentrismo, antropocentrismo alargado, ecocentrismo e suas ramificações, paradigmas que influenciam o pensamento e tratamento dispensado à natureza e mais especificamente aos animais. Nesta seara, o direito dos animais se desenvolve, sendo por vezes visto como uma ramificação do direito ambiental, na qual se pretende defender o valor intrínseco dos animais, mas, mais que uma simples ramificação ou particularidade do direito ambiental, trata-se verdadeiramente de um novo ramo do direito, no qual se defende a ética da vida, não apenas uma ética global, planetária ou ambiental, mas sim animal, ética da vida animal, estes como titulares de direitos fundamentais. Defende-se seu valor individual, independente dos interesses humanos ou meio ambiente, e os protege das mais diversas formas de exploração, tais como; ciência, entretenimento, alimentação, companhia... No entanto, é certo que antigos pensamentos filosóficos influenciaram e continuam influenciando no tratamento dispensado aos animais não-humanos, como seres subjugados, como importantes para o homem ou para natureza. Em decorrência de princípios como racionalidade, o homem se atribui superioridade ao longo dos séculos, domínio sobre a natureza e todos os animais. Considerados uma criação para servir aos interesses humanos, os animais foram e permanecem sendo utilizados sem que haja um efetivo conhecimento das atrocidades cometidas ou um olhar mais cuidadoso com sua triste realidade, como se estes fossem privados de dor, sofrimento, ou do sagrado valor da vida.. Consequências são observadas na esfera privada, pública, normativa, mas, entender e ultrapassar antigos paradigmas são também uma questão de moralidade, evolução, é abandonar a ideia imoral de domínio do mais fraco pelo mais forte, é alcançar ideias de solidariedade, fraternidade, irmandade, amor ao próximo, seja ele humano ou não-humano. Necessário ultrapassar paradigmas antropocêntricos seja utilitário ou alargado, despertar para uma nova filosofia de vida, na qual o animal humano não é o único ser merecedor de consideração, mas também os animais não-

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humanos, uma ética além de ambiental, uma ética animal, na qual os animais possuem valor inerente e intrínseco, como irmãos na longa jornada da vida. No presente artigo destacam-se assim alguns posicionamentos principais quanto ao meio ambiente, com seus reflexos para os animais, ou seja, antropocentrismo e ecocentrismo, bem como o direito dos animais propriamente dito, como um novo ramo do direito, fundamental e essencial.

Visão antiga: antropocentrismo A primeira e mais tradicional posição, com consequências, em regra negativas para a natureza e principalmente para os animais é o antropocentrismo. Este sistema põe o homem como centro de todo o universo, e, assim, toda proteção, preocupação com a natureza, com os animais, possui como objetivo apenas o homem, ele é o centro e a medida de todas as coisas, todo restante não possui qualquer valor em si. O vocábulo antropocentrismo, etmologicamente, possui composição greco-latina, sendo anthropos (proveniente do grego) o homem, ser humano como espécie, e centrum ou centricum (latim), o centro, o centrado. Nesta visão adotada por filósofos influentes no Ocidente, como Aristóteles e São Tomás de Aquino (1225 – 1274), o homem ocupa o lugar mais alto da pirâmide, os vegetais ocupam a base e servem aos animais, e estes servem ao homem, ser dotado de razão e superioridade. A natureza estava à disposição do homem, somente este possuía alma, e os animais eram considerados seres inferiores, desprovidos de razão. Aristóteles entendia que o cosmo estava a serviço e disposição do homem, bem como todos os seres, o que será repetido posteriormente por São Tomás de Aquino entre outros. Esta doutrina influenciou as épocas seguintes, principalmente a partir do século XIII, sedimentando a visão antropocêntrica. Posteriormente, atinge o homem seu ponto máximo com Descartes (1596 – 1650) e Claude Bernard (1813 – 1978) pelo mecanicismo, período cartesiano no qual o animal torna-se uma máquina, privado de qualquer valor intrínseco, mas apenas como instrumento do homem; a vivissecção torna-se um método oficial de pesquisa médica, e o animal uma coisa. A visão bíblica e judaica-cristã muito contribuiu, pois segundo seu entendimento o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, possuindo assim uma posição de destaque e domínio em relação às demais criaturas. Diversas passagens bíblicas parecem demonstrar esta superioridade e domínio, como no início do Gênesis2. Assim, nesta posição, há uma visão utilitária do meio ambiente e dos animais; e todas as suas necessidades, interesses e valores são subjugados em favor dos interesses humanos. Na proteção contra a degradação ambiental e das espécies, as vítimas serão sempre o homem. 2

2: 26 E disse Deus: façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.

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Há uma ideia de que os bens naturais, incluindo os animais, foram criados para livre disposição do homem, que são renováveis. Após a revolução industrial, e ação direta do homem sobre o ambiente de forma despreocupada, a degradação ambiental alcança níveis alarmantes, poluição, efeito estufa, extinção de diversas espécies, desequilíbrio ambiental, alterações climáticas, acabando por despertar uma preocupação ambiental, incluindo a vida de todos os seres, inclusive a do homem. Há o despertar para uma preocupação ambiental, de que os recursos ambientais são limitados. Além disso, a exploração animal seja aquele animal fundamental para o equilíbrio do meio ambiente ou não, atinge níveis alarmantes, muito além de qualquer critério de moralidade.3 O consumo e utilização do animal nas mais variadas formas e independente de qualquer postura ética4, ou de sua efetiva necessidade, faz surgir grupos cada vez mais preocupados e militantes pelo respeito da vida, independente da espécie.

Quando a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, veda a crueldade com os animais, a preocupação principal e sujeito passivo, permanecem sendo o homem. No entanto, isto não significa que a natureza e os animais possam ser utilizados sem qualquer preocupação moral, de forma desnecessária e por motivos fúteis, é preciso preservar a sadia qualidade de vida, e evitar a crueldade. Álvaro Luiz V. Mirra (1994, p. 11) expõe que a proteção da fauna e da flora, do meio ambiente “não é buscada propriamente em razão deles mesmos, individualmente considerados, mas, sobretudo como elementos indispensáveis à preservação do meio ambiente como um todo, em função da qualidade de vida humana.” Érika Bechara, defende que o ordenamento jurídico brasileiro não confere direitos à natureza, mas apenas ao homem, pois somente os seres humanos são sujeitos de direito.

Visões ambientais da atualidade

“os recursos naturais merecem a mais ampla proteção, mas não exatamente por titularizarem esse direito, mas em virtude de exercerem um papel fundamental no funcionamento de todo o ecossistema e, principalmente, na obtenção da saúde, bem-estar (físico e psíquico) e dignidade da pessoa humana. (BECHARA, 2003, p. 72).

Antropocentrismo alargado Começam a surgir assim outras visões, que ultrapassam o então dominante antropocentrismo utilitarista, isto é, um novo antropocentrismo dito alargado ou não utilitarista e uma visão fundamentalmente ambientalista e antagônica, o ecocentrismo, através da ecologia profunda (deep ecology), ou biocentrismo, em sua versão mais radical e outra mais branda. Além de movimentos e associações de proteção aos animais, as plantas, as florestas, movimentos ecológicos reconhecendo valor intrínseco à natureza e ramificações animalistas defendendo a libertação animal. Quanto ao antropocentrismo alargado seria uma posição menos radical e equilibrada em relação à visão do antropocentrismo utilitarista e, apesar do homem ainda ser o principal elemento, já não é possível ignorar o meio ambiente, e demais seres vivos. Este parece ser o posicionamento dominante atualmente no meio jurídico e entre os próprios ambientalistas, inclusive no aspecto normativo, no qual a natureza possui algum valor, mas o ser humano permanece como a figura principal a ser protegida, não sendo o meio ambiente e os animais o centro das preocupações morais, mas a periferia, necessária para as atuais e futuras gerações. 3

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O consumo de carne animal e a criação intensiva para este fim além de sua conotação ética, quanto ao direito à vida, liberdade, da qual estes animais são privados, gerando sofrimento e morte, possui ainda uma conotação ambiental, já que segundo dados estatísticos a pecuária é responsável por aproximadamente 18% dos efeitos climáticos. Na verdade há um consumo desenfreado de carne animal, gerando efeitos nefastos para os animais e para o meio ambiente. A título de exemplo: A prática do finning (extração de barbatanas dos animais ainda vivos, para atender ao mercado asiático de sopas e cápsulas de barbatanas). Além de extremamente cruel, antiética e desnecessária, põe em risco o equilíbrio do meio ambiente, já que grande percentual de tubarões já foram extintos.

Defende-se que o meio ambiente é indispensável para sobrevivência digna, saúde e bem estar humano, e, desta forma, luta-se para que seja preservado e recuperado. Entretanto, pode se acrescentar que uma posição equilibrada não significa colocar a natureza, ou, principalmente os animais acima dos homens, mas sim em situação de equilíbrio, no mesmo patamar de igualdade, em harmonia e respeito ao direito à vida digna e sadia. Logicamente, há consciência de que as leis e toda seara jurídica foram criadas pelo homem, e, portanto, todas as preocupações, infelizmente, acabam por girar principalmente a sua volta. Entretanto, é preciso ultrapassar antigos conceitos e paradigmas, buscar novos valores, e harmonia entre todos os seres vivos; é preciso retirar do limbo (OLIVEIRA, 2008)5 as demais espécies, sua utilização desenfreada, como se tivessem sido criadas com a finalidade de servir ao homem, e protegê-las não porque possuam alguma utilidade para o ser humano ou para o meio ambiente, mas sim porque são dignos de respeito e consideração moral.

Ecocentrismo Com as novas preocupações ambientais, há o surgimento do ecocentrismo, uma concepção mais preocupada com a vida de forma ampla, evidencia-se, assim, a ideia do todo. 5

Conforme entendimento de Fábio Corrêa Souza de Oliveira, os animais encontram-se atualmente em uma espécie de limbo, pois são tratados como objetos, porém possuem direitos. Sendo necessário ultrapassar o antropocentrismo alargado, ultrapassar antigos conceitos positivistas, para se buscar um novo tratamento para o animal não-humano.

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Destaca-se no ecocentrismo, uma ética ecológica, a ética da vida, que o meio ambiente é fundamental, independente do homem, sendo inquestionável, como observa Édis Milaré (1996, p. 46) que “o mundo natural antecede o homem (...) o ser humano se fez presente quando infinitas outras espécies vivas tinham aparecido (e algumas desaparecido).” A consideração por todos os aspectos inerentes à vida passam a ter importância como referência para intervenção do homem na natureza, a ética da vida global ou chamada por alguns como planetária6 ganha espaço e preocupação. Assim proclama o médico Albert Schweitzer, ganhador do Prêmio Nobel da Paz: “sou vida que quer viver e existo em meio à vida que quer viver.” A natureza não foi criada para o ser humano; na verdade, já existia antes do homem. Há uma consciência ecológica, que visa proteger o ecossistema, defendendo a menor intervenção do homem na natureza. Dentro desta concepção, há uma divisão de ideias, isto é, a ecologia profunda ligada à vida de forma ampla, um biocentrismo7 global, e a ecologia superficial, rasa ou biocentrismo superficial, uma vertente mais branda. A ecologia profunda (deep ecology), criada pelo filósofo norueguês Arne Naess, possui vários princípios fundamentais nos quais prega; a mudança da perspectiva antropocêntrica, a redução do consumo, da produção de bens e serviços, que devem estar em conformidade com a necessidade da sociedade e não com a rentabilidade. Socialmente não deve haver uma hierarquia na qual o homem se coloque em escala destacada, mas sim uma nova concepção de solidariedade, na qual “o respeito mútuo entre os seres humanos deve se estender para abranger o respeito aos seres vivos em geral, todos os habitantes do mesmo espaço. Não há que se falar em hierarquia.” (MILARÉ, 2000, p. 153) A ecologia profunda sofre críticas na medida em que se entende que confere valor intrínseco à natureza, à terra, a todos os seres vivos no mesmo patamar humano8, e que o meio ambiente deve ser priorizado, mesmo quando em confronto com o homem, além de propor mudanças econômicas e sociais que acabariam por acarretar um retrocesso, e apesar de ideologicamente correta, na prática, talvez, seja inviável. Não obstante, é importante destacar que sem qualquer radicalismo seus princípios são verdadeiros e essenciais, já que o homem deve viver em harmonia com a natureza. Leonardo Boff (2002, p. 97) proclama: “Age de tal maneira que tuas ações não sejam destrutivas da Casa Comum, a terra, e de tudo que nela vive e coexiste conosco”(...) 7 As defesas referentes ao biocentrismo sofrem variações como explica o mestre Daniel Braga Lourenço, e é defendida igualmente com variações, no Brasil por Aveline, Pelizzoli, Nancy Mangabeira Unger e Leonardo Boff. (BRAGA, 2008). Podem ser citados ainda Édis Milaré e Diogo Freitas do Amaral . 8 Singer adverte em sua obra que a ética da ecologia profunda é importante, e fundamental para preservação da natureza, no entanto, conferir valor intrínseco as plantas é complicado, portanto os argumentos quanto ao valor intrínseco deve se ater as criaturas sencientes do presente e futuro, ou seja, o homem e os animais. (SINGER, 1998). 6

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O homem não é mais a medida de todas as coisas. Ele deve confrontarse com tríplice destruição (do seu status) conforme foi figurado por Galileu, Freud e Darwin. A terra não é o centro do Universo, ela não é senão um planeta entre outros na imensidão interestelar. O homem não é soberano de si mesmo, porém ele sofre o conflito entre consciência e o seu inconsciente. E, mais particularmente, este primo longínquo dos macacos primatas submetidos ao acaso original, ele não se situa no exterior da natureza, mas é dela um componente essencial. (MILARÉ, 2000)

Por outro lado, há uma vertente moderada deste posicionamento, a ecologia rasa, que demonstra um biocentrismo superficial, adotando as premissas da ecologia profunda, porém, de forma mais ponderada, nesta, a natureza possui um valor intrínseco, sendo protegida por ela própria. No entanto, o homem, animal e plantas não estão no mesmo patamar, pois cada um possui o seu valor a ser considerado, e, apesar de titularizar direitos, não se sobrepõe ao homem. Talvez este seja o posicionamento mais equilibrado, já que cada ser possui seu próprio valor, independente dos demais, porém a ser considerado em harmonia e integração com todos. Como pondera Milaré (2004), o Ecocentrismo é uma realidade, e, se ainda não foi adaptada ou inserida definitivamente no conjunto das ciências, isso não significa que ponderações não possam ser feitas, que a semente não gerará frutos. Ao contrário, é capaz de dar origem para formulações mais ousadas nas relações jurídicas. Enquadrando o Direito dos Animais nesta divisão, poder-se-ia incluir, talvez, dentro da ideia de ecologia superficial, pois há o valor da vida, mas há também a ideia de ética animal separadamente, e não apenas o todo. Daniel Lourenço esclarece que: (...) a linha de pensamento ligada aos direitos dos animais não decorre necessariamente de concepções ecocêntricas. Pelo contrário, o foco ético exclusivamente sobre o indivíduo (humano, animal ou vegetal) seria inconsistente, pois o que importa é o todo e não as suas partes isoladamente consideradas. A concepção de “direitos dos animais” está ligada à “ética animal” (zoocentrismo ou biocentrismo mitigado), enquanto que o biocentrismo do tipo global está ligado a “ética da vida” (todo ser vivo está abarcado, inclusive plantas e microorganismos) (LOURENÇO, 2008, p. 400).

Paulo de B. Antunes (2008) esclarece que o direito ambiental é um direito humano fundamental, e está conjugado ao princípio da dignidade humana; não obstante, reconhece que existe uma significativa oposição que pretende conferir igualdade para todos os seres vivos, havendo a repercussão desta polêmica no direito ambiental. Na verdade, o processo de reconhecimento às demais formas de vida trata-se de um processo de

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humanização dos animais, que acarreta o aumento de sua proteção, e não o direito ambiental propriamente.9 O fundamental é tomar como base uma nova ética, que ultrapassa a simples ética humana, de preocupação com o ser humano como dono do planeta, de preservação das espécies apenas em função do homem, e visualizar a vida de outros seres vivos como valores correspondentes à ética da vida. Não significa com isso afirmar que todos os seres são iguais, mas que devem ser respeitados em sua individualidade e necessidade, sob pena de se causar uma catástrofe ambiental, mas também causar e prolongar o sofrimento de diversas espécies subjugadas nas mais diversas formas. Enquanto o animal não for visto como um ser que, apesar de não ser igual ao homem, merece respeito e consideração, será visto o sofrimento desnecessário e cruel.

acompanhar os avanços das demais ciências, interagir com as demais, “deve metabolizar conquistas e aceitar transformações que se impõem na cadeia de evolução do mundo. Se é “direito”, não pode avançar tortuosamente”. (MILARÉ, 1996, p.31-32)

Hoje a situação tende a ser outra e não temos medo ou receio de afirmar que estamos em pleno momento de transição. Trata-se de uma mudança de paradigma, feita lentamente, em que o ser humano aos poucos abandona a ideia egoística e selvagem do antropocentrismo, para refletir que a proteção do meio ambiente deve ser feita de modo autônomo, independentemente de qualquer benefício imediato que possa advir dessa concepção. (RODRIGUES, 2005, p. 89)

Além disso, independente do posicionamento adotado, é certo que, se o homem possui racionalidade superior, tem o dever maior de respeitar a natureza e todos os seres vivos, além de uma moralidade que se sobreponha a seus interesses particulares e egoístas, sendo, assim, benevolente, ético e não utilizando as demais espécies, (e aqui se destaca os animais), como bem entender, sem considerar todo o sofrimento que vem causando de forma egoísta e preconceituosa. Não sustento serem os animais superiores ou equivalentes aos humanos. Toda a questão de nos comportarmos decentemente com relação a eles resulta precisamente do fato de que somos superiores. Somos a espécie capaz da imaginação, da racionalidade e das escolhas morais – e é isso que justifica o porquê de estarmos obrigados a reconhecer e respeitar os direitos dos animais.(LOURENÇO, 2008, p. 405)

. Fundamental o papel do Direito e o aprimoramento das capacidades éticas do homem, com base em valores atuais como responsabilidade e solidariedade, pois somente assim teremos uma mudança no tratamento dos animais e natureza. Como bem assevera Édis Milaré, o direito deve ser complementado por outros saberes, não podendo ser analisado isoladamente, sem observar o direito natural no sentido da importância da vida, de todas as espécies. Precisa 9

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Como exemplo deste processo de humanização a afirmação realizada pela ONU, pela Resolução nº 37/7, de 28 de outubro de 1982, proclamada pela Assembleia : “Toda forma de vida é única e merece ser respeitada, qualquer que seja a sua utilidade para o homem, e, com a finalidade de reconhecer aos outros organismos vivos este direito, o homem deve se guiar por um código moral de ação.”

Direito dos animais Muito se argumenta que o direito dos animais é uma ramificação do direito ambiental. Não se questiona que em muitos aspectos tal premissa é verdadeira, já que a fauna está incluída como um microbem, inserida no macrobem que é o meio ambiente, os aspectos normativos ambientais, em diversos tópicos englobam os animais, a Constituição dispõe quanto à proteção da fauna e veda a crueldade contra os animais, no capítulo específico sobre o meio ambiente. No entanto, este ramo do direito, apesar da ligação com os preceitos ambientais, e mais especificamente ecológicos, com seus paradigmas filosóficos, não pretende proteger os animais apenas dentro da seara ecológica ou ambiental, e, consequentemente, proteger o próprio homem, pois a sadia qualidade de vida, harmonia do planeta, do homem com a natureza, em decorrência do benefício humano, mas sim o animal por ele próprio, por sua condição de ser vivo, proteção da vida sensível e grau de inteligência, que os faz merecer tratamento digno, e não mero instrumento em benefício do homem. Defende-se uma ética animal, vedando as crueldades e conferindo proteção a cada animal individualmente considerado e também em outras esferas diversas da ambiental e da ecológica, tais como entretenimento, experiências científicas, alimentação, guarda, abandono... Adotando-se apenas as premissas ambientalistas, ou mesmo ecocêntricas, em princípio, poder-se-ia afirmar que os animais são protegidos como forma de preservação do meio ambiente e do Ecossistema, para as presentes e futuras gerações humanas, entretanto, muitos destes animais, mesmo que sejam extintos ou sofram os mais diversos tipos de maus tratos não influenciaram no equilíbrio do meio, ou na vida sadia do homem. Além disso, apesar de muitas vezes a conotação ser ambiental, como supra mencionado, é certo também que, por outro lado a Constituição e algumas leis infraconstitucionais, como a Lei nº 9605/98 (Crimes Ambientais), em seu artigo 32, vedam a crueldade contra os animais também domésticos e domesticados, animais exóticos, e não apenas a fauna ou animais silvestres, englobando assim todos os animais, e não somente aqueles essenciais para o meio ambiente. Ao vedar a crueldade, não se defende apenas a proibição de um comportamento que possa refletir no comportamento em sociedade e no homem, mas sim que o sujeito passivo é o animal. A preocupação contra a crueldade animal afirma e demonstra que são capazes de sentir, de sofrer, e, por tal motivo, torna-se errado mal tratá-los, e, se há este tipo de preocupação, logicamente é fácil concluir que o animal deve ser respeitado, se possui semelhanças, vida a ser considerada, obviamente existe dignidade e motivos para proteção, não apenas para o meio ambiente e para o homem, mas pelo próprio animal.

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É difícil conceber que o constituinte, ao proteger a vida de espécies naturais em face da sua ameaça de extinção, estivesse a promover unicamente a proteção de algum valor instrumental de espécies naturais, mas, ao contrário, deixa transparecer uma tutela da vida em geral nitidamente desvinculada do ser humano. (FENSTERSEIFER, 2008, p. 49)

Hoje não existem dúvidas quanto à senciência nos animais. Há o reconhecimento de sua existência, constatação de que possuem vontade, medo, estresse, dor, felicidade, conforme Declaração de Cambridge (The Cambridge Declaration of Consciousness), datada de julho de 2012, firmada por cientistas de instituições como a Universidade de Stanford, o Massachusetts Institute of Technology (MIT) e o Instituto Max Planck, redigido por Philip Low, em evento que contou com a presença de Stephen Hawking. Recentemente países como a França e Nova Zelandia incluíram em suas legislações os animais na esfera de seres sencientes. E no Brasil projetos de alteração do Código Civil incluem este reconhecimento. Apesar de críticas ao parâmetro de consideração através da senciência, esta é uma das principais considerações para o reconhecimento da dignidade não humana. Assim, afirmar que a dignidade é inerente apenas ao ser humano, em decorrência de sua racionalidade, autodeterminação, liberdade, autonomia, é demonstrar uma concepção extremamente antropocêntrica. Além disso, a dignidade de cada indivíduo deve se refletir não apenas em si próprio, mas também a todo grupo social, e, por que não dizer, a todos os seres vivos, implicando em um permanente olhar para o outro (SARLET, 2008), e poder-seia incluir aqui não apenas o homem, mas também os animais. Conforme Fábio de Oliveira, os animais devem ser incluídos na consciência do mínimo existencial, englobando as condições físicas, valores psíquicos, e, apesar de normalmente apenas o homem estar sendo atingido por estes preceitos, a dignidade, que está sempre acompanhada do mínimo existencial, deve englobar os animais. (...) a categoria do mínimo existencial abrange também os animais nãohumanos, visto que também eles perseguem uma vida boa, têm necessidades básicas, dignidade. Ter uma existência condigna não é direito apenas dos humanos, mas sim de toda criatura. Ao homem compete não somente se abster de prejudicar, comprometer o mínimo existencial dos animais, mas assegurar, enquanto responsável, na guarda (...) os bens imprescindíveis à vida digna.(OLIVEIRA, 2008, p. 6)

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Os pensamentos de Aristóteles, Descartes e diversos filósofos, a visão cristã, o pensamento Kantiano, fundamental para a questão da dignidade, demonstrou uma concepção antropocêntrica exagerada, pois o homem como fim, e nunca como meio ou objeto, excluiu desta concepção os animais, já que, segundo seu entendimento, o animal poderia ser utilizado como meio. Entretanto, esta concepção vem se modificando, e, na atualidade, é possível vislumbrar que os

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animais são seres dignos, verdadeiros titulares de direitos fundamentais (vida, liberdade, integridade). Os direitos fundamentais são também um direito social, conectado as relações entre o homem e a sociedade, a sua evolução e novas concepções, analisadas sob os aspectos filosóficos, sociológicos, jurídicos, e, desta forma, é possível vislumbrar uma extensão da titularidade destes direitos para outros entes ou seres diversos do homem. Conforme exposto por Bobbio, há uma passagem de consideração para sujeitos diferentes do indivíduo – homem, há um debate moral quanto ao direito de sobrevivência, incluindo como titulares os animais, bem como a natureza, direito ao respeito, de não ser explorado.(BOBBIO, 1992) Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou no máximo, como sujeito passivos, sem direitos. (BOBBIO, 2004, p.79)

Bobbio (1992) explica ainda que entre os próprios seres humanos existem diferenças decorrentes de sexo, idade, condições físicas, o que torna necessário muitas vezes, um tratamento diferenciado, de forma a se buscar uma igual proteção para todos. Com certeza, os animais ou as espécies podem ser incluídas nesta discussão, pois, apesar de diferentes entre si e em relação ao homem, merecem igualmente toda consideração moral, respeito, liberdade, vida digna; e, se não é possível conferir-lhes os mesmos direitos humanos, até porque, não haveria interesse em tal, deve-se respeitar suas diferenças e conferir-lhes um tratamento digno, ultrapassar assim preceitos antropocêntricos, ainda que alargado, ou ainda uma visão da vida animal apenas em uma esfera global. Conforme a opinião da médica veterinária Dra Irvênia Prada: Fico ainda com tantas outras pessoas, sejam cientistas ou homens do povo, agnósticos ou religiosos, acadêmicos ou donas de casa, idosos ou crianças, enfim, com todos aqueles que, por sua sensibilidade, estão nos ajudando a perceber a beleza dos mais variados elementos, que compõem a natureza, e o direito, que eles tem, de existir e de ficar em harmonia. Quanto a nós, enquanto humanidade, que jamais atinamos para o real significado da existência dos animais, é tempo de começar a respeitá-los como seres viventes de um mundo que já lhes pertencia muito antes de aqui chegarmos, como pretensiosos senhores de tudo e de todos.(PRADA, 1997, p. 62-63)

A Dra Irvênia Prada (1997) afirma ainda que se, de um lado, os animais são diferentes do homem, igualmente há que se reconhecer semelhanças, pois ambos possuem corpo, órgãos, tais como coração, rins, músculos (principalmente os mamíferos), vida, mente, bastando observar minimamente

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seu comportamento para verificar que manifestam emoções, vontade própria, julgamento de situações, elaboração de estratégias, capacidade de aprendizado, e outras demonstrações de que são suscetíveis de sofrimento físico e emocional. Além disso, o sistema nervoso do homem e o dos animais possuem o mesmo modelo e organização. Como assevera o filósofo francês Michel Serres (1991), é hora de se romper com o contrato social e pactuar um novo contrato, no qual a natureza e todas as suas espécies devem ser respeitadas, um contrato natural, de harmonia e respeito entre todas as espécies, com fim da exploração, do desrespeito, do entendimento de que a espécie humana é superior, até porque a natureza, apesar de paciente, tem demonstrado que o homem nada mais é que uma pequena parte de todo Universo. Serres expõe que até o presente momento a relação com o mundo tem sido baseada na guerra e na propriedade. As devastações que o homem deixou na natureza correspondem a devastações que uma guerra mundial teria deixado atrás de si. O homem precisa aceitar que é também um animal, e, com este, possui características comuns, havendo diferença apenas de grau e espécie, e, apesar do homem possuir algumas características a mais como cultura, habilidades manuais e maior poder de raciocínio, existem outras características que são comuns tais como “a sobrevivência, a procriação, noção de autoridade, bem como interação e comunicação”.(RODRIGUES, 2006, p. 33) Na verdade, as diferenças existentes conferem ao homem não direitos superiores, mas sim deveres em relação às demais espécies, o que pode significar simplesmente deixá-los viver em paz, não obstante, e infelizmente, o homem se outorgou uma suposta superioridade, renunciou ao contrato natural de Serres (1991), deixou de se sentir parte da natureza e renunciou a convivência harmônica com os seres vivos não-humanos.

O filósofo americano Tom Regan afirma que todos os seres humanos, independente de sua espécie ou designação de pessoa, são sujeitos de uma vida, e, portanto, possuem direitos à vida, integridade física e liberdade. Os seres humanos são auto-conscientes, moralmente responsáveis por seus atos, falam, vivem em comunidade moral, e, por tais motivos, possuem direitos. Entretanto, nem todo ser humano possui tais características, e, se adotados estes critérios, nem todos são pessoas, já que crianças nos primeiros anos de vida, humanos prestes a nascer e outros, com sérias deficiências mentais, não possuem autoconsciência, concepção de mortalidade, consciência de mundo, medo de deixar de viver, nem por isso são privados de seus direitos essenciais. (REGAN, 2006). Assim não há como ser diferente com os animais, já que estes são igualmente sujeitos de uma vida, e muitos possuem consciência do mundo, do que lhes acontece, apresentam linguagem, comportamento, órgãos, sistemas comuns com o homem. “Se olharmos a questão com “olhos imparciais”, veremos um mundo transbordante de animais que são não apenas nossos parentes biológicos, como também nossos semelhantes psicológicos. Como nós, esses animais estão no mundo, conscientes do mundo e conscientes do que acontece com eles. (REGAN, 2006, p. 72). As ideias do filósofo australiano Peter Singer foram igualmente importantes para uma nova visão do animal, e a possibilidade de conferir-lhes direitos, para além do homem e apenas da natureza. Destaca-se, assim, o princípio da igual consideração: “O princípio básico da igualdade não requer tratamento igual ou idêntico, mas sim, igual consideração. A igual consideração por seres diferentes pode levar a tratamentos e direitos distintos.” (SINGER, 2004, p. 04) Singer (2004) considera que, diferente de um robô, os animais possuem sistema nervoso, demonstram reação a dor, sofrimento, comportamentos que demonstram medo e tentam evitar a fonte de dor; portanto, considerando estas capacidades, não há como ignorá-las, deixar de conferir-lhes certos direitos. Igualmente, considera-se que bebês humanos, crianças pequenas e até mesmo alguns doentes mentais não possuem linguagem: entretanto, alguns animais demonstram de forma muito compreensiva suas vontades e manifestações, exemplo do que ocorre com animais de estimação. Portanto, não há como conferir direitos a estes seres humanos e não aos animais. “Desde que lembremos que devemos proporcionar o mesmo respeito à vida dos animais que conferimos à vida dos seres humanos com nível mental semelhante, não cometeremos erros graves.”(SINGER, 2004, p. 24). Afinal dor é dor10, independente de quem a sinta, assim como vida é vida, independente de quem a viva. Se os animais assim como o homem podem sentir dor, se todas as características tais como sistema nervoso, comportamento, linguagem demonstram esta capacidade, bem como rejeição a este sofrimento, não há como desconsiderar os animais e utilizá-los de forma a gerar exploração e sofrimento.

O homem, como ser racional, tem a obrigação de proteger os animais não somente para o bem estar social e continuidade da vida sobre o planeta, mas também em razão do direito inerente a cada ser vivo. Inaceitável o argumento de que a vida humana possua valor liderante sobre a de outros seres vivos. (SERRES, 1991, p. 61)

Entretanto, a ideia de que apenas o homem é titular de direitos vem se modificando, e se ainda é tímido o reconhecimento dos animais como titulares de direitos; igualmente não se pode negar a existência de tal possibilidade, pois, se não são reconhecidos como sujeitos, pela maioria, igualmente não se pode afirmar que sejam objetos, bens como ainda preceitua o código civil brasileiro, que não sentem dor, não sofrem, não vivem, que podem ser usados de qualquer forma, mesmo que gerando sofrimento ou maus tratos. Na atualidade três posicionamentos principais podem ser citados como fundamentais para o tratamento ético animal. São as concepções de Tom Regan, Peter Singer e Gary L. Francione.

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Humphry Primatt:“Dor é experiência intrinsecamente má, para qualquer ser que a sofre”,“A sensação de dor não depende do pensamento nem da razão.A linguagem não é necessária à experiência sensível da dor” (FELIPE, 2006 p. 217)

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O homem não é dono do planeta, não é Deus, não tem direito de subjugar outras espécies conforme suas conveniências e vontades. Por questões de justiça, moral, deve-se considerar os animais assim como se considera todo ser humano com deficiências mentais ou em desenvolvimento. É uma questão de dignidade, de respeito pela vida, vida esta semelhante em muitos aspectos ao do homem. Assim se todos os seres da espécie humana são respeitados, igualmente há que se respeitar as demais espécies e, independente das diferenças existentes ou do grau de evolução conferir-lhes alguns direitos básicos, tais como vida, liberdade e integridade física, respeito a sua dignidade e necessidades básicas. Gary Lawrence Francione possui uma postura totalmente abolicionista, defendendo que animais não devem ser utilizados de nenhuma forma, independente de qualquer parâmetro humano ou quaisquer outros. O animal possui direito a vida, não é uma propriedade do homem, devendo se conferir a estes seres o direito de não ser propriedade, ou seja, a abolição completa de seu uso pelo homem e propriedade, e que qualquer produto que seja proveniente de alguma forma da utilização de animais, não deve ser usado. Esta titularidade de direitos, no entanto, aspiração de todos aqueles que, de alguma forma, integram o movimento de direitos animais, é objeto de debates e controvérsias, e depende do esforço de cada ser humano para sua concretização, já que os animais não possuem meios de se defender sozinhos. Muito se argumenta que somente pessoas podem ser titulares de direitos; entretanto, dependendo da interpretação, alguns animais podem ser considerados pessoas, já que possuem consciência de si, além da capacidade de comunicação e linguagem. Exemplos diversos podem ser citados, como os grandes primatas, cachorros, golfinhos, baleias. Assim, se considerar que pessoa é todo aquele ser racional e autoconsciente e somente estes possuem direitos, há obrigatoriedade de excluir alguns seres humanos desta classificação e incluir os animais. É preciso refletir ainda que muitos animais vivem em grupos sociais, a morte de um ou o afastamento, quando retirado de seu habitat, gera sentimento de perda para o grupo, para o filhote, para o companheiro. O comportamento de lobos e elefantes sugere este sentimento. (SINGER, 2004). Por outro lado, não se trata de apenas evitar a morte, pois o problema está principalmente no tratamento e na criação que lhes são dispensados. Como afirma Regan, “os animais têm direitos morais básicos, incluindo o direito a liberdade, integridade física e a vida. E os compromissos? Que nós devemos lutar, não por um mês ou por um ano, mas por toda a vida para que esses direitos um dia sejam reconhecidos”(REGAN, 2006, p. 9). Ocorre que, em decorrência de sua pretensa superioridade, o homem adota o chamado especismo, e favorece sua espécie por motivos desnecessários e fúteis. (SANTANA, 2006, p. 90)

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O que faz com que sejamos indiferentes aos sofrimentos dos animais? O homem em seu sistema de ética e justiça considera errado causar sofrimento a qualquer um da espécie humana, e mesmo que se trate da pior das criaturas, terá sua dignidade e respeito preservados, entretanto, aproximadamente 100 milhões de animais são mortos todos os anos em experiências científicas, 30 milhões só pela indústria de cosméticos, sem que isto nos provoque qualquer sentimento de compaixão ou piedade? Muitos de nós talvez nunca se tenha perguntado sobre isso.(SANTANA, 2006, p. 38)

Conclusão “Crer que os animais existam somente para nos servir é o mesmo que crer que Deus criaria seres para serem eternamente sofredores, que nunca evoluiriam e nunca receberiam uma compensação a estes sofrimentos. Crer que os animais não evoluam e somente existam para nos alimentar é admitir que Deus seria injusto e admitir o primitivismo de nossa espécie animal. No entanto, os animais não existem para nos servir e não foram criados como nossos objetos de uso e abuso, mas são seres que vivem e aprendem com as adversidades do mundo e se tornarão seres angelicais algum dia.” (BENEDETI, Marcel) Os pensamentos filosóficos ambientalistas evoluíram e se aprimoraram, pensamentos antropocêntricos tendo o homem como o centro do universo, consumismo exacerbado, desenfreado, ilimitado, causando destruição, sofrimento, exploração da natureza e de todos os seres vivos são hoje questionados e evoluíram para novas formas de pensamento. Situações de opressão, desrespeito, crueldades, maus tratos e desconsiderações por outras formas de vida e pela do próprio homem levaram a necessidade de transformações, situações limites que clamam por mudanças e acabaram por culminar em posicionamentos ecocentricos, em novos direitos, destacando-se no presente o direito dos animais, que ganha espaço a cada dia, seja em salas de aula, palestras, congressos, dissertações, teses.. É certo, que os diversos pensamentos ambientalistas influenciaram e continuam a influenciar no tratamento dispensado aos animais e da própria natureza, interesses econômicos, pensamentos religiosos, filosóficos, exploração do mais fraco, além de qualquer critério ético. No entanto, sempre que exploração e crueldade extrapolam qualquer mínima consideração moral ou ética, vozes clamam por mudanças, seja no aspecto filosófico, religioso, educacional ou jurídico. Na verdade, o homem, supostamente superior, deve em decorrência de sua capacidade de maior consciência e compreensão, possuir igualmente maior e especial responsabilidade no cuidado do planeta, dos demais seres vivos, dos animais, havendo o dever de preservação da natureza e de sua própria espécie, ainda que seja simplesmente respeitando e deixando os animais viverem em conformidade com suas necessidades, sem interferências humanas.

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Alguns podem entender que, ao se defender a ultrapassagem da visão antropocêntrica, e vislumbrar os animais como titulares de direitos, esteja se defendendo uma verdadeira revolução dos bichos, como no livro de George Orwell, no qual animais humanos e não-humanos acabam se vendo como inimigos, mas, na verdade o que se defende é que a situação atual em que se encontram os animais não pode perdurar, pois não há como se permitir que suas tristes realidades sejam aceitas em silêncio, que debates não devam ser provocados, que o conhecimento, educação e tratamentos cruéis não sejam divulgados. Defende-se a harmonia entre as espécies. Os animais merecem e devem ser respeitados, e assim como a escravidão humana foi aceita durante longo tempo pelo próprio homem, também ainda é aceita com os animais, porém uma nova visão apresenta mudanças, e, se no início são tímidas, alvo de oposições e críticas, igualmente são fundamentais para que se ultrapassem as barreiras do conservadorismo, da arbitrariedade, da oposição. Já não é possível considerar que o homem seja o centro do universo, é preciso enxergar e respeitar o outro, o animal não-humano como um companheiro nesta longa e misteriosa jornada que é a vida. Deve-se assim repensar o tratamento jurídico e moral que se confere aos animais, havendo a mudança para um novo status que seja capaz de lhes conferir titularidade de direito, e ainda que o direito dos animais possa parecer ainda uma novidade tanto quanto difícil de ser aceita por alguns; a verdade é que já se trata de uma realidade, que ultrapassa em muitos pontos a questão ambiental para alcançar a proteção em todos os seguimentos, utilizações, defendendo sua mais ampla proteção e abolindo todas as formas de exploração. Portanto, as esperanças de efetivas mudanças e melhoras são renovadas e ansiadas, para que o tratamento dos animais caminhe lado a lado com o tratamento digno do homem, entrelaçando-se, complementando-se harmonicamente.

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Direito Adquirido Carlos José de Souza Guimarães1 Resumo O presente artigo visa a abordar de forma sistemática o instituto do direito adquirido e sua expressão no ordenamento brasileiro. Primeiramente, trata a temática de forma geral, buscando sua fonte legal e refinando seu conceito. Em seguida, o artigo aborda a aplicação do instituto na jurisprudência pátria e disserta sobre seu status como princípio constitucional e suas implicações. Por fim, realiza breve análise da diferença entre o tratamento atribuído ao instituto pela doutrina brasileira e estrangeira, ressaltando sua importância no cenário jurídico brasileiro como garantia do Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Direito civil; constituição; princípio do direito adquirido. Abstract This article aims to address systematically to the institute of the acquired-right and its expression in Brazilian legal system. First deals with the theme in general, seeking its legal source and refining the concept. Then, the article discusses the application of the institute in Brazilian Jurisprudence and forth its status as a constitutional principle and its implications. Finally, it conducts brief analysis of the difference between the treatment given to the institute by Brazilian law and by foreign doctrine, emphasizing its importance in the Brazilian legal scenario as one of the general principles in the democratic rule of law. Keywords: Civil law; constitution; acquired-rights doctrine.

Introdução Poucos temas jurídicos são, ao mesmo tempo, tão fascinantes e polêmicos quanto o instituto do direito adquirido, cuja finalidade precípua é a proteção de direitos em face da retroatividade das leis, resguardando a ordem jurídica de casuísmos e arbitrariedades. Trata-se, pois, de limitação imposta ao legislador, em nome da segurança jurídica, a impedir que o titular de direitos fique à mercê de uma lei retroativa, fruto dos humores da classe política. Em princípio, a lei produz efeitos no presente e no futuro, mas não produz efeitos sobre o passado, conforme reconhecido por uma longa tradição jurídica, que remonta à Primeira Regra Teodosiana, em 393, dentre outras referências no Direito Romano. Consideram-se adquiridos, portanto, os direitos conquistados sob a égide de uma determinada lei, eficaz à época, que poderiam ser exercidos pelo seu titular naquela ocasião e que já foram incorporados ao seu patrimônio naquela oportunidade – ou que possam ser efetivamente exercidos na vigência de lei posterior, tendo já sido constituídos sob a lei antiga. 1

Advogado da União, Professor da Faculdade de Direito da UERJ, Chefe do Departamento de Teorias e Fundamentos do Direito

Direito Adquirido

Carlos José de Souza Guimarães

Embora seja inegável a influência de dois juristas, em especial, sobre a jurisprudência brasileira (CARLO FRANCESCO GABBA, que relativizava a irretroatividade da lei, no final do século XIX, inspirando a teoria subjetiva, e PAUL ROUBIER, que criticava a noção de direitos adquiridos, na primeira metade do século XX, mas preconizava a proteção às situações jurídicas constituídas sob a lei anterior, em face da lei nova, inspirando a teoria objetiva), a legislação adotou uma simbiose original (e pouco clara) entre ambas as teorias. Preceitua o art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Prescreve no mesmo sentido o art. 6º da antiga Lei de Introdução ao Código Civil, atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, definindo os seguintes conceitos:

Inspirando-se na conceituação legal, CLOVIS BEVILÁQUA define direito adquirido como sendo “um bem jurídico, criado por um fato capaz de produzi-lo, segundo as prescrições da lei então vigente e que, de acordo com os preceitos da mesma lei, entrou para o patrimônio do titular”5. Ressalte-se que tal conceito de direito adquirido, dada a sua amplitude, abrange também o direito condicional, desde que não seja potestativa a condição. No mencionado pronunciamento do Excelso Pretório, reconhece o ilustre Min. PHILADELPHO AZEVEDO que, em virtude disso, “muitos casos comumente considerados de mera expectativa teriam de ser reconhecidos, no Brasil, como de indiscutível direito adquirido”6. Acrescenta ARNOLDO WALD que não pode a lei nova afetar o direito condicional, pois a realização da condição faz com que o direito seja considerado efetivo desde o momento em que surgiu, mesmo com caráter condicional:

“§1º - Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. §2º - Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. §3º - Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”

Esclarece CLOVIS BEVILAQUA que, “em rigor, tudo se reduz ao respeito assegurado aos direitos adquiridos, mas, como no ato jurídico perfeito e na coisa julgada apresentam-se momentos distintos, aspectos particulares do direito adquirido, foi de vantagem, para esclarecimento da doutrina, que se destacassem esses casos particulares e deles se desse a justa noção”.2 A jurisprudência tem sido vacilante ao aplicar os mencionados dispositivos. Não obstante tais oscilações, pronunciou-se historicamente o Egrégio Supremo Tribunal Federal, em acórdão relatado pelo eminente Min. PHILADELPHO DE AZEVEDO, reconhecendo que a fórmula da irretroatividade prevista na lei brasileira é a mais ampla que se conhece, abrangendo o caso de condição inalterável a arbítrio de outrem, “entendido este como sendo o próprio legislador, a quem seria vedado alterar a condição pendente”3.

A tutela constitucional dos direitos adquiridos Ao comentar magistralmente a proteção ao direito adquirido prevista na Constituição brasileira de 1967, prevista em dispositivo com redação idêntica à da atual Carta Magna, concluiu PONTES DE MIRANDA, após minucioso estudo, que “sempre que a lei vincula alguém e a favor de outrem surge direito, pretensão ou ação, mesmo se é direito, pretensão ou ação de que há de resultar direito, pretensão ou ação, o titular está protegido”4. BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2ª ed. revista e atualizada por Caio Mário da Silva Pereira, 1976, p. 26 e 27. 3 AZEVEDO, Philadelpho de. Revista Forense, vol. 96, p. 315 e 316. 4 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 3ª ed., 1987, p.104. 2

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“A interpretação sistemática do Direito Civil brasileiro e, particularmente, a exegese do art.122 do Código Civil [de 1916], levaram os nossos autores a reconhecer o caráter retroativo da ocorrência da condição. O importante, todavia, é o reconhecimento unânime da doutrina e dos tribunais de que o direito condicional constitui direito adquirido para o fim de sobre ele não poder incidir a lei nova”7.

Consagra o art.130 do atual Código Civil que “ao titular do direito eventual, no caso de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido exercer os atos destinados a conservá-lo”, completando o art. 131 que “o termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito”. Aliás, à parte as discussões acadêmicas8 sobre a distinção (ou semelhança) entre direito condicional e direito eventual, ensina PONTES DE MIRANDA que quis a lei proteger “o que ela chamou direito eventual”9, o que torna tal proteção inegavelmente bastante ampla. Cabe invocar, neste momento, a preciosa lição de SERPA LOPES, que com singular maestria, trouxe valiosos elementos para a necessária distinção entre direitos adquiridos e meras expectativas de direito. Nestas, segundo o jurista: “Não há fato algum que possa, desde logo, habilitar a se considerar como já tendo começo de existência. O direito carece ainda de embrião. A situação é comparável a de um casal, cuja esposa ainda não apresenta o menor sinal de gravidez. Há os elementos biológicos capazes de produzir a geração, mas, para esta, falta o pressuposto indispensável, à semelhança da vontade em face da capacidade e do objeto lícito”10. BEVILAQUA, Clovis. In: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 7ª ed. rev. e atualizada por José Serpa de Santa Maria, Livraria Freitas Bastos, 1989, vol. I, p. 171. 6 AZEVEDO, Philadelpho de. Idem, ibidem.. 7 WALD, Arnoldo. Revista de Informação Legislativa, nº 70, p. 149 e 150. 8 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 7ª ed. rev. e atualizada por José Serpa de Santa Maria, Livraria Freitas Bastos, 1989, vol. I, p. 360. 9 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2ªed., 1981, p. 151 e 152. 10 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 362. 5

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Caminhamos, assim, facilmente para a conclusão genérica e falsamente simplista de que “todo direito é um direito adquirido”. Tal axioma, no entanto, é insuficiente para evidenciar a verdadeira finalidade do direito adquirido, distorcendo sua essência. Na realidade, trata-se de garantir os direitos incorporados ao patrimônio do titular11 12, face aos abusos do legislador, quando este confere à lei uma invasiva e prejudicial retroatividade, que alcança fatos passados ou pendentes, violando os aludidos direitos e causando prejuízo ao respectivo patrimônio. Existe, entretanto, a possibilidade jurídica de uma retroatividade benéfica da lei, mas este conceito somente prevalece em matérias muito restritas, como o Direito Penal e o Direito Tributário, não sendo suficiente para descaracterizar a regra geral da irretroatividade legal, nem justificando qualquer desrespeito a direitos adquiridos, mesmo naquelas áreas jurídicas. Trata-se, sobretudo, de princípio constitucional, assim como o direito de propriedade (art.5º, XXII) e o devido processo legal (art.5º, LIV). É, pois, norma de caráter fundamental, com superioridade hierárquica sobre todas as leis. Segundo SERPA LOPES, “a vantagem principal é a ideia de segurança que o princípio da irretroatividade, revestido do caráter constitucional, traz inquestionavelmente, coibindo abusos por parte do Poder Público”13.

O jurista italiano, ao associar a noção de direito adquirido à ideia de individualidade, “não unicamente no sentido que pertence a um indivíduo, mas também no sentido de que se liga diretamente à própria individualidade, com os caracteres próprios e distintivos desta”, limita os direitos adquiridos ao universo da “privada individualidade” (sic), excluindo, assim, “as matérias de Direito Público de caráter político”, concluindo como “sendo de aplicação imediata todas as leis relacionadas com os interesses públicos de qualquer gênero”16. Recorda CLOVIS BEVILAQUA, acolhendo a doutrina limitadora do direito adquirido e atenuadora da irretroatividade, que nas leis relativas à ordem pública “o direito anterior lhes cede o passo, desde que elas começam a imperar; diante delas curva-se o princípio da persistência do direito existente”. Às vezes, a questão apresenta-se “sob uma forma mais geral, porém menos verdadeira: não há direitos irrevogavelmente adquiridos contra as leis de ordem pública”. O autor, no entanto, ressalva que “os direitos adquiridos que as leis devem respeitar, são vantagens individuais, ainda que ligadas ao exercício de funções públicas”17. CARLOS DE CARVALHO, no mesmo sentido, diz que “leis não têm o efeito retroativo, salvo as que regulam assunto de ordem ou de direito público, (...) respeitados os fatos consumados, isto é, que produziram todos os efeitos de que eram suscetíveis”18. A jurisprudência colhida por MENDONÇA DE AZEVEDO, antes da vigência do Código Civil de 1916, consagrava a retroatividade das leis de ordem pública e a impossibilidade de contra elas serem invocados direitos adquiridos, nos termos do art. 179 da Carta Imperial de 182419. Mas a influência de GABBA e a posição dos autores que o seguiram, com a devida vênia, não é compatível com o atual status constitucional do princípio do direito adquirido, posto que o preceito do art.5º, XXXVI, da Carta Magna, não distingue entre lei de ordem pública ou lei relativa a assuntos de interesse privado, não cabendo ao intérprete distinguir onde a lei não distingue, muito menos em sede constitucional. É o que ensina uma ancestral regra de hermenêutica, prestigiada no julgamento da ADI n° 493 pelo Excelso Pretório, que, fazendo a necessária distinção entre retroatividade mínima, média e máxima, concluiu explicitamente pela possibilidade de existir direito adquirido em face de lei de ordem pública, mesma conclusão presente no acórdão proferido no julgamento do RE 188.366-9, relatado com maestria pelo ilustre Min. MOREIRA ALVES, também relator da citada ADI n° 493. Não obstante tais julgados, registre-se, por oportuno, que o assunto ainda é controverso e não é raro haver entendimento diverso no próprio STF, que parece longe de pacificar a questão.

A contribuição do Direito brasileiro Ao conceito brasileiro de direito adquirido não é possível aplicar, sem reservas, a contribuição tradicional da doutrina estrangeira, sobretudo a europeia. Isto porque lá se trata o assunto através de mera lei ordinária ou simples regra de hermenêutica, ambas dirigidas especialmente ao Judiciário. Aqui, porém, cuida-se de expresso princípio constitucional, limitativo da própria atividade do legislador, cabendo ao Judiciário, na matéria, exercer seu papel no controle da constitucionalidade14. Ainda sobre a notória influência de CARLO FRANCESCO GABBA sobre o direito intertemporal brasileiro, SERPA LOPES assim sintetiza a posição do mestre italiano: “Toda doutrina dos direitos adquiridos sustentada por GABBA assenta nos dois seguintes fundamentos: um direito objetivamente considerado e o fato aquisitivo que o transforma de objetivo em subjetivo ou individual”15. BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2ª ed. revista e atualizada por Caio Mário da Silva Pereira, 1976, p. 26 e 27. 12 Ressalte-se, aliás, que a singela expressão “todo direito é um direito adquirido”, enunciada por REGELSBERGER na obra “Pandekten”, provém de GUSTAV STRUVE, conforme lembrado e analisado criticamente em: MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 3ª ed., 1987, p. 50 e p. 68. 13 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 7ª ed. rev. e atualizada por José Serpa de Santa Maria, Livraria Freitas Bastos, 1989, vol. I, p. 160. 14 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Idem, ibidem, p. 161. 15 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 162. 11

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LOPES, Miguel Maria de Serpa. Idem, ibidem, p. 167. BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2ª ed. revista e atualizada por Caio Mário da Silva Pereira, 1976, p. 26 e 27. 18 CARVALHO, Carlos de, apud HORTA, Raul Machado. Constituição e Direito Adquirido. In: Revista de Informação Legislativa, nº 112, p. 73 e 74. 19 AZEVEDO, José Afonso Mendonça de, apud HORTA, Raul Machado. Constituição e Direito Adquirido. In: Revista de Informação Legislativa, nº 112, p. 69. Ver também: MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 3ª ed., 1987. 16 17

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Os desafios na preservação dos direitos adquiridos A noção de direito adquirido libertou-se do individualismo típico do século XIX e associou-se, ao longo do século XX, à ideia de bem comum, de segurança das pessoas, de proteção da sociedade diante do Estado, impedindo que este cometa abusos e perpetre violências através da sua função legislativa, a qual só é legítima dentro dos limites e finalidades definidos constitucionalmente. Por isso, interpretar o direito adquirido como restrito à esfera privada, com a devida vênia, seria frustrar os balizamentos traçados no Texto Maior e atentar contra um princípio que não pode ser relativizado, porque responsável por evitar excessos na atividade legislativa, arbitrariedades que, via de regra, são exatamente travestidas como normas de ordem pública. Neste aspecto, a história do Brasil e da sua classe política traz exemplos notórios, que falam por si. Assim, deixar as leis de ordem pública fora do alcance dos direitos adquiridos, dando liberdade para desrespeitá-los, implica em derrogar o dispositivo constitucional, reduzindo-lhe a abrangência e, na prática, tornando-o ineficiente. Portanto, sinteticamente, é legítimo reconhecer o direito adquirido como um antídoto contra o abuso do Poder Legislativo (quando implicar em retroatividade da norma editada), inclusive nas hipóteses de desvio de finalidade por parte do próprio legislador, embora o direito adquirido não seja a única forma de coibir tal abuso, nem tenha apenas esta utilidade. Aprofundando a análise do direito adquirido sob o olhar constitucional (e enfrentando questões ainda hoje polêmicas, apesar do decurso temporal e do jubileu da atual Constituição Federal), o ilustre Prof. RAUL MACHADO HORTA elaborou oportuno trabalho20, cujas proposições dispensam comentários. Diante da riqueza do texto e das reflexões que ele propicia, vale a transcrição do seu trecho final: “No Direito Constitucional Brasileiro, a relação entre Constituição e direito adquirido conduz às seguintes conclusões: 1. A Constituição é fonte e protetora do direito adquirido. 2. Só é recusável o direito adquirido incompatível com preceito da Constituição. 3. O constituinte originário não tem exercitado, com frequência, a competência para negar e desfazer o direito adquirido. 4. A competência desconstitutiva do direito adquirido pelo constituinte de revisão, se aquele resultou de decisão do constituinte originário ou da sua compatibilidade com a Constituição, é passível de arguição de inconstitucionalidade, por violação de decisão fundamental do constituinte originário. 5. O princípio constitucional que protege o direito adquirido contra lei prejudicial é irreformável, por se tratar de direito e garantia individual, não podendo a sua abolição constituir objeto de proposta de emenda à Constituição. HORTA, Raul Machado. Constituição e Direito Adquirido. In: Revista de Informação Legislativa, nº 112. Ver também: POPP, Carlyle. In: Paraná Judiciário, vol. 36, p. 13.

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6. A proteção constitucional do direito adquirido, que despontou, de forma expressa, na Constituição de 1934, corresponde a valor incorporado à estrutura do regime político e do Estado Democrático Brasileiro. 7. As mudanças constitucionais operadas pelas sucessivas Constituições Brasileiras, mesmo no período de ruptura com o antigo regime, como na queda do Império, em 1889, e na interrupção da legalidade da Primeira República, em 1930, se distanciaram das mudanças radicais comandadas por revoluções portadoras de nova ideologia e de novo ordenamento social, político e econômico. 8. A evolução constitucional brasileira, ao invés de opor Constituição e direito adquirido como valores antitéticos, vem promovendo a acomodação e o convívio entre Constituição e direito adquirido, que perdura até os nossos dias.” (original sem grifos)

Em verdade, a aplicação do princípio constitucional do direito adquirido não é tarefa simples e exige uma elevada complexidade, quer pelas especificidades de cada caso, quer pelas consequências que um reconhecimento judicial pode acarretar, especialmente se firmar jurisprudência com reflexos econômicos ou administrativos em grande escala. Todavia, a preservação da irretroatividade como princípio se faz mister, ou seja, prevalece a exegese da irretroatividade como regra que se integra com as demais, não se sobrepondo, obviamente, aos outros princípios constitucionais, mas com eles convivendo, permeando o ordenamento jurídico e compondo harmonicamente com todos os elementos que constituem o Estado Democrático de Direito.

Conclusão A abordagem do tema, nestas breves considerações, preferiu colocá-lo em tese, a fim de facilitar a compreensão do papel que lhe foi constitucionalmente confiado. Não se sustenta, em pleno século XXI, reduzir o direito adquirido, o seu alcance e a sua natureza, à perspectiva meramente privada. Urge aperfeiçoar a participação dele no Estado Democrático, que só irá enxergá-lo como entrave ao progresso social se o colocar acima do bem comum. Pois o direito adquirido é exatamente o mecanismo que permite inovações e avanços sociais por via legislativa, impedindo que produzam efeitos retroativos nocivos, efeitos estes capazes de inviabilizar tais medidas modernizadoras. Um dos raros consensos nesta matéria, é o reconhecimento de que inexiste direito adquirido proveniente de ato ilícito, assim como também não existe direito adquirido à ilegalidade - o que parece óbvio ao primeiro olhar, mas tem sido objeto de ampla jurisprudência no Direito Ambiental, resultante de árduo contencioso, provocado pelas pretensões de agentes poluidores e seus litígios em torno de licenças ambientais. Longe de consenso, todavia, está a existência (ou não) de direitos adquiridos oriundos de medida provisória (MP) posteriormente rejeitada pelo Congresso Nacional, cabendo a este regular as relações jurídicas que surgiram no período em que a MP ainda estava em vigor.

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Certo é que todas as relações jurídicas anseiam por estabilidade e segurança - e o direito adquirido visa atender precisamente a tais aspirações, configurando um autêntico princípio geral de Direito, com a autoridade de preceito constitucional irrevogável, princípio que se funda diretamente na busca pela justiça, compromisso que deve orientar a sua aplicação.

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Reflexões sobre o Ativismo Judicial praticado pelo Supremo Tribunal Federal de acordo com as Teorias de Jurgen Habermas Isabella Pena Lucas1 Thiago Jordace2 Resumo Inúmeras decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal praticam o chamado ativismo judicial. Torna-se necessário, pois, questionar a legitimidade e validade destas decisões, na medida em que por vezes o Poder Judiciário vem se substituindo na função que essencialmente é do Poder Legislativo. Nesse contexto, as teorias habermasianas do agir comunicativo e de facticidade e validade podem ser utilizadas para questionar tais decisões. Palavras-chave: Ativismo judicial; Supremo Tribunal Federal; habermas; teoria do agir comunicativo; facticidade; legitimidade e validade.

Introdução No Brasil tornou-se frequente a decisão de temas ainda não tratados pelo Poder Legislativo em decisões judiciais, sobretudo do Supremo tribunal Federal, a quem cabe a última palavra como Tribunal guardião da Constituição Federal. Tais decisões trazem ao Supremo, questões que deveriam ser decidas pela política, especialmente questões que deveriam ser debatidas por aqueles que foram eleitos pelo povo para representar e traduzir os interesses de uma nação. Até mesmo matérias relacionadas a políticas públicas vêm sendo tratadas, quando, por exemplo, o Supremo decide se determinada pessoa deve ou não ser considerada usuária de drogas por portar ou trazer consigo quantidade, ´x´, de substância entorpecente. Se por um lado o Supremo Tribunal Federal vem demonstrando estar à esquerda do Legislativo, que se queda diuturnamente inerte sobre questões que há muito já deveriam ser tratadas por tal poder, por outro é de se questionar se tais decisões possuem legitimidade, na medida em que outro poder está se substituindo àquele que originalmente deveria tratar da matéria. O risco desta substituição está na possibilidade de arbitrariedade por parte do julgador, o qual sob o pretexto da omissão legislativa pode acabar governando sozinho, substituindo-se não só ao legislativo, na elaboração de preceitos que 1

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Promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e professora de direito civil da EMERJ. Doutorando e Mestre em Direito pela UERJ, professor da UFRRJ, IBMEC e advogado.

Reflexões sobre o Ativismo Judicial praticado pelo Supremo Tribunal Federal de acordo com as Teorias de Jurgen Habermas

Isabella Pena Lucas e Thiago Jordace

assumem força normativa, como estabelecendo políticas públicas em substituição ao executivo. É fato que a humanidade demorou muito tempo até encontrar o sistema de freios e contrapesos e admitir a todo custo o ativismo judicial poderá ocasionar o desmoronamento deste sistema. Fato é que a descrença popular na política, ou no poder legislativo, e no executivo acaba deixando ao poder judiciário, a tábua de salvação para certos assuntos. No entanto, analisando de maneira técnica e imparcial é preciso questionar se com o crescente ativismo judicial a democracia, enquanto regime político não se vê abalada por tais decisões. Neste sentido é que serão analisadas as teorias elaboradas por Jurgen Habermas sobre o agir comunicativo e a facticidade e validade, sendo neste contexto avaliado o movimento do ativismo judicial. A ideia do presente trabalho não está em discutir e valorar um a ou outra decisão especifica, mas precisamente, avaliar na perspectiva habermasiana, o que vem ocorrendo na sociedade brasileira quando se deixa a cargo de um poder distinto o exercício de função que cabia a outro poder. Se a democracia deliberativa se exerce com a participação de seus membros em um discurso contínuo e latente é preciso pensar se os ministros que proferem hoje decisões de suma importância como as que estão sendo proferidas a todo momento estão realmente aptos e são parte legitima para proferirem tais decisões. Neste contexto é que não havendo legitimidade nas decisões proferidas, as mesmas não são válidas dentro deste sistema que se pretende democrático. Desta forma, no primeiro capítulo será tratada uma das principais teorias habermasianas, qual seja, a teoria do agir comunicativo. A referida teoria traz um marco na medida em que busca o exercício contínuo e extremo da participação popular para o alcance da verdadeira democracia deliberativa. Após esta análise passaremos no segundo capítulo a estudar ainda de que maneira breve as ideias de facticidade e validade, importantes para que em momento posterior seja avaliado o ativismo judicial praticado pela Suprema corte brasileira. No terceiro momento do trabalho serão estudados os conceitos de ativismo judicial, além da ideia de positivismo e realismo jurídico. Por fim, o quarto capítulo buscará analisar alguns casos concretos decididos emblematicamente pelo Supremo Tribunal Federal em que são supridas omissões que o legislador embora instado pela sociedade ainda não realizaou.

A ação comunicativa deriva na visão de Habermas4 da democracia deliberativa, a qual é a alternativa mais adequada como regime político. Na mencionada teoria o filósofo alemão expõe que a comunicação é a ação mais importante e mais praticada pelas pessoas na sociedade.5 Partindo-se desta premissa, pode-se concluir que pela obra de Habermas apenas com os discursos e a deliberação seria possível solucionar imparcialmente os conflitos e também nas mesmas bases, seria possível implementar e vivenciar a verdadeira democracia deliberativa.6 Necessário observar para tanto que é imprescindível que o indivíduo seja suficientemente consciente e esclarecido e esteja apto a uma auto reflexão, a fim de que possa exigir seja tratado com igualdade de respeito e disponibilidade para o diálogo. Em outras palavras, somente o homem consciente e com capacidade crítica estaria apto a um diálogo racional capaz de chegar a um consenso. Assim, como afirma GISELE CITADINO7: “A formação racional da vontade pressupõe um exercício público de discussão comunicativa, em que todos os participantes fixam a moralidade de uma norma a partir de um acordo racionalmente motivado.”. Habermas parte ainda da ideia de que: “todos os seres dotados de razão têm de ser capazes de desejar o que se encontra moralmente justificado.”8 Nessa perspectiva, o autor trata de uma ética formalista. Enquanto Kant falava do imperativo categórico, Habermas o substitui pelo método da argumentação moral com a ética do discurso.9 Gisele Citadino esclarece com precisão ao citar Habermas que: “Nas argumentações os participantes partem do pressuposto de que em princípio todos os afetados participam como livres e iguais na busca cooperativa da verdade na qual não se pode admitir outra coerção senão a resultante da forca dos melhores argumentos.”10 Desta maneira, percebe-se que segundo as teorias habermasianas, em um processo deliberativo entre todos os membros da sociedade, vencerá aquele que apresentar o melhor argumento. Somente a partir deste será possível atingir uma decisão razoável para determinada situação. Esta escolha proporcional deve ser feita de forma

A teoria do agir comunicativo de Habermas A teoria do agir comunicativo, ou da ação comunicativa é considerada pelo próprio Jürgen Habermas como o segundo assunto mais importante de que tratou em sua vida3. 3

Entrevista disponível no youtube: www.youtube.com/watch?v=AfmlYOkOuIo Acesso em

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Nesta entrevista o filósofo menciona que o assunto mais importante do qual tratou em suas obras e em sua vida foi a democracia, mais especificamente a democracia deliberativa e o segundo assunto mais importante seria a comunicação, a teoria da ação comunicativa. 4 Idem. 5 Idem. 6 HABERMAS, Jurguen. Comentários à ética do discurso. Tradução: Gilda Lopes Encarnação. Portugal: Instituto Piaget. 1999. 7 CITADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 8 HABERMAS, Jurguen. Comentários à ética do discurso. Tradução: Gilda Lopes Encarnação. Portugal: Instituto Piaget. 1999. 9 Idem. 10 CITADINO, Gisele. Loc. cit, p. 94.

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democrática com a participação de todos da sociedade. Contudo, no dizer de MARGARIDA LACOMBE11: “(...) Uma decisão razoável não corresponde ao mero subjetivismo ou à paixão, mas um tipo de racionalidade, intersubjetiva, que se utiliza da técnica argumentativa e se define pelo consenso”. Habermas12 não ignora o pluralismo, indicando que não há como separar as duas dimensões do pluralismo na sociedade, quais sejam: as concepções individuais sobre o bem e as formas de vida pluralistas. Porém, estas duas dimensões se deparam com a imperiosa necessidade de se justificarem para que permaneçam válidas no âmbito social, não podendo mais se impor apenas pelo que representaram no passado da humanidade. Tal pensamento se justifica porque se baseia no conceito de moralidade pós convencional, onde não há interligação necessária entre vigência e validade social. Na visão de Habermas13 a ética deve ser um conceito neutro e objetivo, não podendo estar baseado em individualismo, nem nas tradições e costumes que integram os mundos plurais. Além disso, com sua ideia do agir comunicativo, o autor alemão supracitado pretende explicar que é mediante discursos morais que se justifica e se criam normas do viver em conjunto.14 Este agir comunicativo é a maneira pela qual ocorre a inter-relação entre sujeito e sociedade. Sujeito e sociedade se inter-relacionam por estruturas linguísticas. Pressupõe-se em sua teoria a existência de um contexto intersubjetivo apto a lidar com as questões moralmente relevantes. A formação discursiva da vontade permite precisamente que, na interação comunicativa, e pela força do melhor argumento, os sujeitos possam modificar tanto convicções normativas das suas formas de vida especificas, quanto concepções individuais sobre a vida digna. Para tanto, Habermas15 propõe dois princípios: o princípio ‘D’ e o princípio ‘U’. O primeiro traduz-se no princípio da ética discursiva, segundo o qual “as únicas normas que têm o direito a reclamar validade são aquelas que podem obter anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático”, enquanto que o segundo significa princípio de universalização, o qual “nos discursos práticos assume o papel de uma regra de argumentação: no caso das normas em vigor, os resultados e as consequências secundárias provavelmente decorrentes de um cumprimento geral dessas mesmas normas e a favor da satisfação dos interesses de cada um, terão de poder ser aceitas voluntariamente por todos.”16

A democracia deliberativa é exercida pois, de maneira contínua e em constante dialética social, impondo-se sempre o constante debate aberto e público sobre as normas e as consequências das mesmas, as quais devem satisfazer o interesse de todos os envolvidos. Trata-se de um pensamento construtivista. Enquanto Rawls pretende construir uma normatividade jurídica objetiva, no caso de Habermas esta seria construída a partir da ampla e irrestrita interação discursiva de uma comunidade, formada por sujeitos competentes, aptos e imparciais, além de dispostos a cooperar comunicativamente. A teoria moral habermasiana está restrita a um processo de reconstrução do procedimento da formação racional da vontade, não pretende orientar a ação dos sujeitos, diferente de Kant que propõe ideias de orientação de conduta. O objetivo da ética discursiva habermasiana é permitir que normas racionalmente justificadas possam ser aplicadas a situações concretas. Assim, temos que a ideia central da teoria do agir comunicativo, tal como citado por WALTER REESE-SCHÄFER é a de que: “(...) é possível atribuir as patologias da modernidade, sem nenhuma exceção, à invasão da racionalidade econômica e burocrática em esferas do mundo da vida, às quais essas formas de racionalidade não são adequadas e, por isso, levam a perda de liberdade e de sentido”. O agir comunicativo é concebido por Habermas de modo a abrir as oportunidades para um entendimento em sentido abrangente, não restritivo.17

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: Uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 198. 12 HABERMAS, Jurguen. Comentários à ética do discurso. Tradução: Gilda Lopes Encarnação. Portugal: Instituto Piaget. 1999. 13 CITADINO, Gisele. Loc. cit, p. 94. 14 CITADINO, Gisele. Loc. cit, p. 94. 15 HABERMAS, Jurguen. Comentários à ética do discurso. Tradução: Gilda Lopes Encarnação. Portugal: Instituto Piaget. 1999. 16 HABERMAS, Jurguen. LocOb.cit, p. 16. 11

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Faticidade e validade A interpretação das instituições e estruturas da democracia somente poder ser levadas a efeito a partir de ações comunicativas. Isso é verificável a partir de uma análise de fonte para efetivar um Estado Democrático pleno. Esta filosofia analítica utiliza dois elementos para tanto: critérios de facticidade e validade. A linguagem é o ponto de partida para a discussão. A partir desta é que será possível aos cidadãos discutirem sobre determinada matéria e verificar qual é a solução mais interessante para sua sociedade. Dessa forma, cada comunidade deve permitir que seus indivíduos discutam sobre determinado assunto para a construção da melhor solução possível. A discussão social para atingir a melhor solução possível deve ser feita a partir de determinados critérios. Somente com esses, o diálogo será democrático e haverá facticidade e validade nas decisões. Fazendo da linguagem o ponto de partida para o debate, os interlocutores devem também utilizar a hermenêutica e a retórica para o diálogo. A utilização destes três elementos deve ser levada a efeito com o princípio da igualdade. Em síntese, para um diálogo democrático devem existir três elementos: linguagem, hermenêutica e retórica. Estes deverão ser regidos pelo princípio da igualdade. 17

REESE-SCHAFER, Walter. Compreender Habermas. Petropolis: Editora Vozes, 2010. (traduzido por Vilmar Schneider).

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A linguagem é o “(...) Conjunto de sinais falados (glótica), escritos (gráfica) ou gesticulados (mímica), de que se serve o homem para exprimir suas ideias e sentimentos.  Qualquer meio que sirva para exprimir sensações ou ideias.  Agregado de palavras e métodos de os combinar usados por uma nação, povo ou raça (...)” 18. A hermenêutica é a técnica de interpretação das palavras. Uma expressão pode indicar vários significados, necessitando de parâmetros para demonstrar qual conceito deve ser utilizado para determinada situação. O trabalho de estudo que busca analisar qual é o melhor sentido do vernáculo para determinado assunto é matéria da hermenêutica. A retórica é a técnica de utilização da linguagem para sustentar determinada ideia. Esta tem o objetivo de persuadir o interlocutor. O convencimento deste mostra que o comunicador utilizou bons argumentos capazes de convencê-lo. O conjunto dos elementos apresentados para uma discussão democrática deve ser regido pelo princípio da igualdade. Este indicará que todos os cidadãos devem ser ouvidos, ter suas opiniões respeitadas e os argumentos não podem ter valores diferentes por um critério de importância social. Todas as posições devem ser consideradas iguais para chegar à melhor solução para a coletividade. A partir das ações comunicativas de todos os cidadãos, haverá uma decisão legítima e válida. A facticidade está no processo democrático de elaboração das leis. Entendido que esse processo de legiferação em Habermas inclui o agir comunicativo e a participação de todos aqueles afetados pela norma. Os cidadãos devem ser ao mesmo tempo autores e destinatários de suas próprias normas. A validade da norma irá decorrer justamente da legitimidade procedimental de sua elaboração. Em outras palavras, a norma será válida se decorre da razão comunicativa, a validade, pois, decorrerá a sua facticidade social.

Ativismo judicial O presente tópico iniciará a discussão acerca da legitimidade do ativismo judicial brasileiro. Toda a análise será pautada nas teorias habermasianas sob um enfoque no critério de fonte. É importante para a discussão a análise prévia dos parâmetros para a exposição das ideias. Inicialmente, dever-se-á restringir os limites para o reconhecimento do sistema jurídico vigente e depois o estudo do ativismo judicial. 18

Dicionário Michaelis. Disponível no site:http://michaelis.uol.com.br/moderno/

274 portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=linguagem

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Breves considerações acerca do positivismo conceitual e do realismo jurídico Muitos filósofos gastaram rios de tinta buscando um conceito de Direito e acabaram encontrando as ruas da amargura como resultado de suas buscas19. Algo tão importante para esta ciência humana aplicada, não foi descoberta uma definição segura para tanto. Muitos autores, como WITTGENSTEIN20 dizem que encontrar um conceito de Direito seria o mesmo que encontrar a definição de jogo: perda de tempo e preciosismo. Não há necessidade de saber o que é um jogo para desfrutar do prazer de jogar e passar o tempo. Contudo, é inegável que se houvesse uma resposta para tanto, muitos problemas já estariam resolvidos. É o caso da verificação da legitimidade do ativismo judicial. A necessidade se faz presente porque dependendo de como o leitor identifica o Direito, a resposta para a pergunta deste trabalho será diferente, qual seja: O ativismo judicial é legítimo? Mas, antes de tratar do ativismo judicial, é necessário indicar o qual conceito de direito a ser adotado para iniciar a discussão acerca do tema do presente artigo. Não é o objetivo do presente trabalho a identificação de um conceito seguro de Direito. Mas tão somente indicar duas concepções que influenciam no estudo do presente artigo, quais sejam: positivismo conceitual e realismo jurídico21. O Direito é identificado pelo positivismo conceitual com critérios fáticos, empíricos e objetivos. Para uma norma ser jurídica, não há a análise de parâmetros morais, mas tão somente a sua fonte22. De acordo com o critério da análise da origem da norma, pode-se identificar a regra como sendo jurídica ou não – critério de fonte. Assim, se uma determinada norma é elaborada conforme os ditames constitucionais vigentes, ela é válida e considerada como jurídica. Do contrário, ela não faz parte do Direito. Exemplos: uma regra de um condomínio que diz ser proibido pisar na grama não é jurídica. Informação verbal obtida nas aulas de Filosofia do Direito I, pelo professor Noel Sthichiner, no curso de graduação em Direito da UFRJ, em 2006. 20 WITTGENSTEIN, Ludwig. O livro azul, coleção biblioteca de filosofia contemporânea, 2008; WITTGENSTEIN, Ludwig. O livro castanho, coleção biblioteca de filosofia contemporânea, 1992. 21 O positivismo jurídico apresenta alguns rótulos. Os mais estudados são: ceticismo ético, positivismo ideológico, formalismo jurídico e o positivismo conceitual. Toda vez que os autores escreverem neste presente trabalho “positivismo”, eles estarão tratando do positivismo conceitual. Para um estudo aprofundado das outras espécies de positivismo: STRUCHINER, Noel. Para falar de regras: o positivismo conceitual como cenário para uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito, tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. 22 Ibid, p. 33. 19

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Contudo, uma regra não ser jurídica não quer dizer que a mesma seja ilegítima. Ora, analisando o exemplo acima, se a regra proibitiva de não pisar na grama foi elaborada pelo consenso dos moradores do condomínio, verificandose procedimento democrático, há legitimidade na regra “promulgada”23. O positivismo jurídico identifica o Direito como um conjunto de regras postas pelo poder soberano. Em um Estado Democrático de Direito, este seria exercido pelo povo – titular do poder de regulamentar e limitar a liberdade individual em prol da liberdade pública24. Segundo KELSEN, Esta construção popular é desenvolvida de forma dinâmica e escalonada – há uma “(...) imagem espacial da supra-infra-ordenação (...)”. Em outras palavras, a ordem jurídica é uma “construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas”, sendo a regra superior o fundamento da norma inferior25. O positivismo jurídico kelseniano indica ser o Direito um conjunto de regras objetivas, devendo ser obedecidas independentes de suas fontes. Se estas forem democráticas ou autoritárias não devem ser levadas em consideração. As normas foram feitas para serem cumpridas. Aqui não há possibilidade interpretativa contra legem, pois isso seria o mesmo que desobedecer ao próprio Direito, identificado como o sistema escalonado de regras. Mesmo identificando o Direito como um conjunto de regras sistematizadas em um plano escalonado, isso não quer dizer que este seja válido. Mesmo que haja um conjunto de regras postas, há que se verificar se elas são validadas ou não. A análise de validade das normas não é tarefa simples (tão complicada como identificar um conceito de Direito). O nível de dificuldade da discussão é indicada por FERRAZ JR26: “A questão da validade das normas jurídicas é tema de muitas facetas. Nele estão implicados problemas relativos ao fundamento da ordem jurídica, que revelam, por sua vez, discussões em torno de conceitos de legalidade e legitimidade. Validade também se toma no sentido de afetividade, de cumprimento e de aplicação das normas. Não se pode esquecer ainda as discussões em torno da validade, como termo primitivo da lógica deôntica, ou as especulações sobre o sentido lógico-transcedental do valer como categoria básica do pensar normativo. A Dogmática Jurídica, por seu lado, costuma assumir o termo nas suas implicações práticas, girando suas discussões em torno da capacidade da norma em resolver tais e tais conflitos, Somente com a comunicação e a participação de todos para a elaboração de regras, haverá facticidade e validade nas normas. (HABERMAS, Jügen. Ob. cit.) 24 Não quer dizer que em um Estado Autoritário, como o da Alemanha Nazista, não há Direito. Ao contrário, há sim para a teoria positivista pura. O que ocorre nesses Estados é a falta de legitimidade das normas. Dessa forma, há um Direito Inválido, sem possibilidade de aplicação. Essa discussão será aprimorada quando os autores tratarem das teorias habermasianas. 25 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, tradução: João Baptista Machado, 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 246-247. 26 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 94. 23

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criando-se, então, conceitos como direito vigente, direito eficaz, normas em vigor, suspensão da vigência, da eficácia, que procuram enquadrar questões como a do âmbito de aplicação, retroatividade e irretroatividade, nulidade e anulabilidade, etc.”.

A discussão acerca da validade e legitimidade da norma jurídica será objeto de tópico específico por ser uma discussão complexa, necessitando de uma análise mais profunda sobre o tema. O realismo jurídico, também conhecido como escola analítica, ou simplesmente Commom Law identifica o Direito como uma investigação dinâmica de explicar explicando. Os realistas não aceitam a existência de normas postas. Eles não dão importância às regras como ponto nodal para explicar e reconhecer o fenômeno jurídico27. Os realistas identificam o Direito como uma investigação empírica do que os operadores jurídicos entendem sobre determinado assunto. Mas, a identificação do entendimento sobre determinada causa deve ser feita principalmente sobre os órgãos decisórios. O fenômeno jurídico seria tão somente conhecimentos jurisprudenciais, estudos direcionados a identificar decisões reiteradas sobre determinado tema28. A escola analítica não rechaça a necessidade de leis. O Direito é pautado em normas. Estas são gerais, abstratas e abertas. A principal vantagem de adotar o realismo jurídico é a constante possibilidade de atualização das regras, de acordo com a dinâmica histórica de cada povo. Diferentemente da Civil Law, não há constantes desatualizações das leis e dos códigos. Neste modelo, há uma constante alteração legislativa que dificilmente consegue atender a dinâmica do comportamento social e dos costumes da população29. Não serão apresentadas as críticas ao positivismo e ao realismo jurídico por não ser objeto de discussão deste trabalho e por necessitar de muitas páginas escritas para tanto. O que foi apresentando é suficiente para a discussão do objeto do presente trabalho, ora tema do próximo tópico.

Conceito de ativismo judicial O ativismo judicial e a judicialização são semelhantes, mas de origens diferentes. Existem causas imediatas geradoras diversas. Nas palavras de BARROSO30, a judicialização “(...) é um fato, uma circunstância que decorre STRUCHINER, Noel. Para falar de regras: o positivismo conceitual como cenário para uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito, tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, p. 38. 28 STRUCHINER, Noel. Op. cit., p. 37-38. 29 ROCHA, José Manuel de Sacadura. Fundamentos de filosofia do direito: o jurídico e o político da antiguidade a nossos dias, 2ª ed. – São Paulo: Atlas, 2010, p. 102-103. 30 BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, p. 6, artigo disponível no site: http://www.plataformademocratica.org/ Publicacoes/12685_Cached.pdf. 27

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do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado da vontade política”. Já o ativismo judicial é uma forma de interpretar a constituição de forma proativa, é uma atitude, um meio interpretativo de agir. Neste caso, há uma hermenêutica específica expansiva de alargar o alcance da constituição31. O ativismo judicial ocorre em situações de inércia do poder Legislativo em situações de necessidade legislativa da sociedade. A falta de norma gera um prejuízo para a população, a qual necessita de uma resposta para certo caso. Dessa forma, o poder Judiciário é acionado pelo povo para suprir essa necessidade. BARROSO32 indica de forma precisa as principais formas de manifestação desta nova atitude judicial, sendo:

Os efeitos da decisão do mandado de injunção têm sido objetos de muitas controvérsias35. O ponto da discussão que interessa a este artigo é a possível usurpação da função típica do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário. Este centro de conflito envolve princípios constitucionais como o da separação dos poderes (art. 60, § 4º, III, CF) e o democrático (art. 1º, caput, CF). Com o ativismo judicial, o Poder Judiciário iniciou uma conduta proativa substituindo o Poder Legislativo em sua atividade típica de elaborar leis. Deixando a discussão da violação do princípio da separação dos poderes de lado (mesmo entendendo que há violação deste princípio por não existir harmonia em avocação de atividade típica) o ponto nodal é a verificação do critério de fonte. No tópico anterior foram apresentadas as teorias do realismo jurídico e do positivismo jurídico. Se o Estado brasileiro tivesse adotado o sistema da Commom Law, era natural ter um ativismo judicial agressivo, pois faz parte da natureza do Direito Comum. Conforme explicitado, há cláusulas abertas elaboradas pelo legislador e o magistrado tem a incumbência de dizer o Direito. Este é reconhecido como sistema de precedentes (jurisprudence sistem) – este é conceituado, de forma muitíssimo simplória, como aquilo que a corte entende sobre determinado caso.

“(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas”.

O ativismo judicial ficou mais latente no Brasil com a discussão acerca da decisão e efeitos do mandado de injunção. Este remédio constitucional, previsto no art. 5º, LXXI da CRFB/8833, tem como objetivo suprir a omissão de norma infraconstitucional regulamentadora, a qual a falta desta torna inviável o exercício de direitos constitucionalmente assegurados. Nos dizeres de JOSÉ AFONSO DA SILVA34, o mandado de injunção: “Constitui um remédio ou ação constitucional posto à disposição de quem se considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades, ou prerrogativas inviáveis por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição. Sua principal finalidade consiste assim em conferir imediata aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas, inerte em virtude de ausência de regulamentação. Revela-se, neste quadrante, como um instrumento da realização prática da disposição do art. 5º, par. 1º.”. Não haverá uma abordagem profunda da judicialização por não ser o objetivo do presente trabalho. Para maiores considerações acerca do tema: BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, p. 6, artigo disponível no site: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.pdf. 32 Ibid. 33 Art. 5º, LXXI, CRFB/88: “Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. 34 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 24ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 448. 31

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Posições iniciais no STF acerca dos efeitos da decisão do mandado de injunção: “Há, como sabemos, na Corte, no julgamento dos mandados de injunção, três correntes: a majoritária, que se formou a partir do Mandado de Injunção nº 107, que entende deva o Supremo Tribunal Federal, em reconhecendo a existência da mora do Congresso Nacional, comunicar a existência dessa omissão, para que o Poder Legislativo elabore a lei. Outra corrente, minoritária, reconhecendo também a mora do Congresso Nacional, decide, desde logo, o pedido do requerente do mandado de injunção e provê sobre o exercício do direito constitucionalmente previsto. Por último, registro minha posição, que é isolada: partilho do entendimento de que o Congresso Nacional é que deve elaborar a lei, mas também tenho presente que a Constituição, por via do mandado de injunção, quer assegurar aos cidadãos o exercício de direitos e liberdades, contemplados na Carta Política, mas dependentes de regulamentação. Adoto posição que considero intermediária. Entendo que se deva, também, em primeiro lugar, comunicar ao Congresso Nacional a omissão inconstitucional, para que ele, exercitando sua competência, faça a lei indispensável ao exercício do direito constitucionalmente assegurado aos cidadãos. Compreendo, entretanto, que, se o Congresso Nacional não fizer a lei, em certo prazo que se estabeleceria na decisão, o Supremo Tribunal Federal pode tomar conhecimento de reclamação da parte, quanto ao prosseguimento da omissão, e, a seguir, dispor a respeito do direito in concreto. É, por isso mesmo, uma posição que me parece concilia a prerrogativa do Poder Legislativo de fazer a lei, como o órgão competente para a criação da norma, e a possibilidade de o Poder Judiciário garantir aos cidadãos, assim como quer a Constituição, o efetivo exercício de direito na Constituição assegurado, mesmo se não houver a elaboração da lei. Esse tem sido o sentido de meus votos, em tal matéria. De qualquer maneira, porque voto isolado e vencido, não poderia representar uma ordem ao Congresso Nacional, eis que ineficaz. De outra parte, em se cuidando de voto, no julgamento de processo judicial, é o exercício, precisamente, da competência e independência que cada membro do Supremo Tribunal Federal tem, e necessariamente há de ter, decorrente da Constituição, de interpretar o sistema da Lei Maior e decidir os pleitos que lhe sejam submetidos, nos limites da autoridade conferida à Corte Suprema pela Constituição.” (Pronunciamento do Ministro Néri da Silveira. Ata da 7ª (sétima) sessão extraordinária do Supremo Tribunal Federal, realizada em 16 de março de 1995 e publicada no Diário de Justiça, 4 abr. 1995, Seção I, p. 8265).

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Verificando as teorias habermasianas indicadas no início do presente trabalho, no realismo jurídico, por uma análise de fonte, o ativismo judicial é legítimo e factível. O motivo para tanto é que o bloco constitucional estadunidense e a inglês foi elaborado por uma escolha democrática da população, feita por uma construção histórica por meio de diálogo e discussão – única forma de enaltecer a democracia e ter a plena legitimidade e facticidade de uma norma36. Assim, como foi o próprio povo que escolheu o sistema jurídico, com a interferência agressiva do Poder Judiciário nas normas do Poder Legislativo37, é legítimo e esperado um ativismo mais agressivo por parte daquele.

O ativismo judicial é uma nova postura não apenas do Supremo Tribunal Federal. Os tribunais de primeiro grau também estão adotando esta nova técnica de decisão. O professor LUIZ FLÁVIO GOMES indica sua preocupação com a questão da segurança jurídica. Diz ele que se cada juiz interpretar a norma de formas diversa, criando soluções com uma hermenêutica elástica, haverá insegurança jurídica. Como a análise do ativismo judicial no presente trabalho é pautada em um critério de fonte, verificar-se-á apenas a questão da legitimidade do órgão judiciário em sua “atividade legiferante”. A melhor forma de verificar a legitimidade do guardião da constituição em sua atividade de dizer e “criar” o Direito é com a análise de suas decisões. Os casos mais emblemáticos julgados pelo STF com a utilização da técnica do ativismo judicial foram: aborto de feto anencefálico, pesquisa com utilização de células-tronco, questão da fidelidade partidária, progressão de regime nos crimes hediondos, declaração de inconstitucionalidade da Lei de Drogas no tocante à obrigatoriedade da prisão preventiva antecipada, entre outros. Em 26 de novembro de 2011, no julgamento da ADPF 54, relatoria do ministro Marco Aurélio, o STF julgou o caso sobre a possibilidade de utilização de técnicas abortivas quando o feto fosse anencéfalo. O bem jurídico em discussão era a vida intrauterina. Se por um lado a interrupção da gravidez deveria ser proibida por lesionar um valor muito caro para a sociedade, por outro a mulher iria carregar em seu ventre um ser sem viabilidade de vida40. A decisão dos ministros foi de aprovar a possibilidade de interrupção da gravidez. A pergunta referente ao caso supracitado é: O Poder Judiciário poderia criar um precedente vinculante em substituição à lei? Sobre a possibilidade de legalização do aborto e seus limites, depois de uma discussão democrática, com plebiscito, votação e participação de toda a comunidade, Portugal legalizou a prática de utilização de técnicas abortivas41. O país lusitano decidiu da forma mais democrática possível acerca de uma regra que irá reger toda sua população. Já no Brasil, houve uma decisão do poder Judiciário sobre o assunto. Não houve diálogo e não houve participação plena dos brasileiros na decisão.

Análise de alguns casos acerca da facticidade e da validade das decisões do Supremo Tribunal Federal segundo as teorias habermasianas Com uma postura mais ativa para alguns e menos democrática para outros, o STF vem agindo de forma a trazer respostas que deveriam ser as soluções por parte do poder Legislativo. Há nesse contexto uma invasão do poder judiciário na atividade legiferante. Em entrevista à revista Consultor Jurídico MARIA BERENICE DIAS38 demonstrou ser favorável a esse novo agir dos magistrados brasileiros. Em seu dizer: “(...) se a tarefa fosse simplesmente aplicar a letra da Constituição, não precisaria de juiz. A Constituição traça normas, mas cabe ao julgador buscar uma solução mais justa, considera. (...) Com isso, o Judiciário tem de suprir essa lacuna. Ele não pode fechar os olhos para realidade”. Já o professor LUIZ FLÁVIO GOMES39 discorda da posição ora exposta. Ele indica que o judiciário não é o legitimado para criar normas regentes da sociedade. Em seu dizer, “Se a norma é inconstitucional, cabe ao juiz declarála inconstitucional. Se esse juiz resolve flexibilizar demais seus entendimentos, deixa valerem suas ideologias. Seja de direita ou esquerda, essas posições deslegitimam o Judiciário. Vira um deus nos acuda. Todo mundo interpreta a sua maneira.”. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política, tradução: George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota, São Paulo: Edições Loyola, 2002. 37 Não há mitigação da separação dos poderes nos países que adotaram a Commom Law – não é isso. É apenas um sistema diferente do romano-germânico, o qual há uma ampliação do espaço interpretativo do bloco de constitucionalidade e das leis por parte do Poder Judiciário. 38 DIAS, Maria Berenice. Entrevista concedida à revista Consultor jurídico disponível no site: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20090714123813935&quer y=home 39 GOMES, Luiz Flávio. Entrevista concedida à revista Consultor jurídico disponível no site: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20090714123813935&quer y=home 36

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ADPF 54. Agr-segundo / DF - Distrito Federal, segundo Ag.Reg. na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, relator(a):  Min. Marco Aurélio, julgamento:  26/11/2008, órgão julgador: tribunal pleno. Ementa: PROCESSO OBJETIVO - CURATELA. No processo objetivo, não há espaço para decidir sobre a curatela. GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - INTERRUPÇÃO - GLOSA PENAL. Em processo revelador de arguição de descumprimento de preceito fundamental, não cabe, considerada gravidez, admitir a curatela do nascituro. Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, desproveu o recurso de agravo. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, a Senhora Ministra Ellen Gracie. Plenário, 26.11.2008. Para maiores detalhes sobre o caso: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ listarJurisprudencia.asp?s1=%28feto+anenc%E9falo%29&base=baseAcordaos 41 Informação obtida no site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1504200701. htm 40

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Segundo as teorias habermasianas, a decisão do STF no caso do aborto de fetos anencéfalos é carente de validade, devendo ser rechaçada. Uma vez que um órgão julgador invade a esfera de outro poder, viola os princípios da separação dos poderes e da democracia. Uma decisão proferida por órgão ilegítimo é inválida. Neste item iremos analisar dois casos distintos em que a Corte Constitucional brasileira decidiu de maneira a regulamentar assuntos que não receberam a devida atenção por parte do Poder Legislativo. O primeiro deles trata sobre o reconhecimento de união entre pessoas do mesmo sexo e a possibilidade de reconhecer na mesma mais uma forma de constituição de família, aos moldes daquela constituída pela união estável entre pessoas de sexos distintos e com previsão no texto constitucional. Em ambas as hipóteses, seja na matéria civil ou penal o fenômeno jurídico do ativismo judicial está presente. Resta analisar se seria ou não legítimo e válido que o Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal pudesse se substituir ao papel reservado democraticamente ao Poder legislativo. Se por um lado, se pode imaginar que o Judiciário ao proferir tais decisões estaria fazendo o papel do Legislativo, o qual teria se omitido, por outro, aos moldes das teorias já visitadas no presente trabalho, tais decisões feririam a essência da democracia deliberativa. Mais que isso, tais decisões nas proposições das teorias habermasianas iriam de encontro ao próprio regime que se menciona e estariam eivadas de facticidade e validade, pois não emanariam do procedimento adequado no qual devem se emanar as normas. Segue apenas em parte transcrição de ementa referente a decisão que reconheceu como forma de constituição de família a união homoafetia:

3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica.(...) A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos. (...) Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (ADF 132-RJ e ADI 4277-DF, Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-102011 PUBLIC 14-10-2011).42

Ementas da ADPF n. 132-RJ e da ADI n. 4277-DF – Uniões homoafetivas 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). (...) UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. (...)

Apesar da enorme controvérsia sobre a matéria acabou prevalecendo no STF a posição daqueles que sustentam que a união entre pessoas do mesmo sexo pode sim ser considerado como entidade familiar e merecendo assim, proteção estatal devida. A par de qualquer comentário sobre o posicionamento adotado pela corte, o objetivo do presente é apenas demonstrar o papel exercido atualmente pelo poder judiciário brasileiro, o qual acaba por praticar o ativismo judicial, que tem legitimidade questionada em razão da falta de legitimidade de fonte, como já vimos anteriormente.

Conclusão A teoria do agir comunicativo indica que para uma decisão democrática ser estabelecida, é necessária a participação de toda a sociedade. Esta contribuição individual em prol da coletividade deve ser feita com ações comunicativas. Em outras palavras, os cidadãos devem discutir de forma paritária para chegar a 42

www.stf.gov.br. Acessado em 08/10/2012.

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um consenso sobre determinado assunto. Somente assim as regras sociais serão dotadas de facticidade e validade. A facticidade ou legitimidade é a verificação da fonte da decisão. É a análise de ser a pessoa ou órgão com atribuição para determinar a vontade e a necessidade da população. Se o órgão ou pessoa é legítimo para representar a sociedade em suas decisões, estas serão válidas. Haverá uma carga de legitimação incontestável, devendo certa regra ser respeitada por todos. Até porque todos decidiram de forma democrática para estabelecer tal norma. Os juízes brasileiros são escolhidos para compor o tribunal por intermédio de concursos públicos, com análise de provas de conhecimentos e títulos. Não há escolha pelo voto popular, tal como ocorre com os membros do poder Legislativo. Dessa forma, sua atividade deve ser exclusivamente jurisdicional. Não há espaço para os magistrados inovarem na ordem constitucional brasileira por carência de legitimidade para tanto. Somente o poder Legislativo, incumbido de representar o povo em sua atividade legiferante é órgão de legítima representação popular para criar regras que regem a coletividade. Quando o poder Judiciário brasileiro utiliza a técnica do ativismo judicial, há a invasão no espaço legítimo do poder Legislativo. Não há legitimidade daquele para inovar na ordem jurídica, sendo papel exclusivo deste. Toda inovação na ordem jurídica do poder Judiciário brasileiro é uma atividade ilegítima que leva a considerar suas decisões invalidadas. Em outras palavras, estas devem ser desconsideradas pela sociedade por carência de facticidade e validade. Ressalte-se que, conforme demonstrado ao longo do texto, se o poder Judiciário fosse constituído por membros indicados pela sociedade, com a participação de todos por intermédio do voto popular, os argumentos do presente trabalho iriam cair por terra. É o que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, onde os juízes são escolhidos pelo povo. Mas, essa é a característica do sistema da Commom Law, sistema não adotado pelo Brasil. Portanto, pelos motivos apresentados ao longo do presente trabalho, sob a análise de um critério de fonte, tendo como base as teorias habermasianas, podese dizer que o ativismo judicial é uma técnica ilegítima, a qual deve ser rechaçada do poder Judiciário brasileiro.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000. HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Portugal. Lisboa: Instituto Piaget. 1999. _____________. A inclusão do outro: estudos de teoria política, tradução: George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota, São Paulo: Edições Loyola, 2002. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, tradução: João Baptista Machado, 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. REESE-SCHAFER, Walter. Compreender Habermas. Petropolis: Editora Vozes. 2009. (tradução de Vilmar Schneider) ROCHA, José Manuel de Sacadura. Fundamentos de filosofia do direito: o jurídico e o político da antiguidade a nossos dias, 2ª ed. – São Paulo: Atlas, 2010. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 24ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2005. STRUCHINER, Noel. Para falar de regras: o positivismo conceitual como cenário para uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito, tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. WITTGENSTEIN, Ludwig. O livro azul, coleção biblioteca de filosofia contemporânea, 2008. WITTGENSTEIN, Ludwig. O livro castanho, coleção biblioteca de filosofia contemporânea, 1992. www.youtube.com/watch?v=AfmlYOkOuIo (ACESSO EM 01/10/2012.) www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20090714123813935&query=home www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1504200701.htm

Referências blibliográficas

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BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, p. 6, artigo disponível no site: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_ Cached.pdf CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: Uma contribuição ao estudo do direito, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. CITADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. Dicionário Michaelis. Disponível no site:http://michaelis.uol.com.br

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Algumas notas sobre a tensão entre a Função Epistêmica do Processo e o Dever de Tutela dos Direitos Fundamentais Marcella Alves Mascarenhas Nardelli1 Eurico da Cunha Neto2 Resumo Pretende-se, por meio deste ensaio, situar a busca da verdade como escopo essencial do processo e apresentar as tensões existentes entre esta e os valores que o processo deve cuidar de tutelar no contexto constitucional, tutela que se expressa através das limitações probatórias. Palavras-chave: Busca da verdade; limitações probatórias; dignidade da pessoa humana; privacidade; prova ilícita. Abstract The aim of this essay is to place the pursuit of truth as an essential goal of the procedure and to present the conflict between this and the other values that the procedure should protect in the constitutional context, wich is expressed through the exclusionary rules. Keywords: Pursuit of truth; exclusionary rules; human dignity; privacy; evidence obtained by ilegal means.

O processo e a busca da verdade Existem opiniões muito variadas em torno do problema de se a verdade dos fatos possa ou deva ser considerada uma finalidade do processo judicial, bem como em que medida e sob quais limitações deva ser buscada. Jeremias Bentham, principal precursor de uma concepção racionalista da prova, estabelece como valor primordial do processo ou, mais especificamente das normas processuais, a “retidão da decisão”. Para ele, compreende-se como tal a conformidade da decisão à lei, já que é com base nesta que os cidadãos gerenciam seus anseios e temores. A lei define a expectativa popular, de modo que em sendo Doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Políticas Públicas e Processo pela Faculdade de Direito de Campos. Professora Asistente de Direito Processual Penal na UFJF. 2 Delegado Regional de Polícia Civil em Minas Gerais. Especialista em Ciências Penais pela UFJF. 1

Algumas notas sobre a tensão entre a Função Epistêmica do Processo e o Dever de Tutela dos Direitos Fundamentais

Marcella Alves Mascarenhas Nardelli e Eurico da Cunha Neto

a decisão judicial conforme a ela, o povo estará satisfeito.3 Assim, uma vez que a aplicação das normas previstas abstratamente pelo legislador pressupõem, para sua concretização, a verificação de uma determinada situação fática ocorrida na realidade, a decisão será conforme a lei caso se tenha estabelecido os fatos no processo da forma mais próxima possível da verdade. Na seara penal, por exemplo, supõe-se a aplicação da pena para quem pratique uma determinada conduta prevista. Se não há uma preocupação em apurar, verdadeiramente, se a conduta foi ou não praticada na realidade para que, somente então, seja a pena aplicada, o processo será um mecanismo de perpetuação de injustiças. Assim sendo, uma correta aplicação do direito pressupõe uma adequada verificação dos fatos lastreada na verdade, motivo pelo qual não há como desvincular Direito e verdade. No mesmo sentido Greco ressalta que “a ideia de Justiça como objeto do Direito sempre esteve axiologicamente ancorada no pressuposto da verdade, ou seja, na incidência das normas jurídicas sobre a realidade da vida tal como ela é.” E continua, constatando que “os indivíduos somente se sentem eticamente motivados a conviver sob o império da lei, quando sabem que a justiça vai dar a cada um o que é seu, em conformidade com a verdade”.4 Não se pode olvidar, como ainda alerta o professor, que uma das maiores ilusões que a consciência democrática contemporânea pode difundir na sociedade é a de que, no Estado de Direito, todo aquele que tiver um direito lesado ou ameaçado receberá do Estado a mais ampla e eficaz tutela jurisdicional apta a lhe assegurar o seu pleno gozo. Isso porque, apesar de ser certo que o direito nasce dos fatos, até hoje não houve nenhuma ciência ou saber humano que fosse capaz de empreender sua reconstrução de forma absolutamente segura e aceita por todos, para que o juiz pudesse se limitar a dizer o direito aplicável.5 Essa reflexão acerca de se a verdade está ou não ao alcance do juiz por meio do processo foi responsável por originar uma série de concepções céticas6 que inclusive chegam a negar a verdade como um fim a ser atingido nesta seara. É comum encontrar teorias que resolvem o impasse simplesmente afirmando que não é objetivo do processo a busca da verdade, visto que seu objetivo seria simplesmente a resolução das controvérsias e não a produção de decisões verdadeiras. Assim, a única verdade que interessaria ao processo seria aquela estabelecida pelo juiz na sentença já que, fora esta, nenhuma outra

é do interesse do Estado, da administração da justiça ou, muito menos, das partes.7 Parece equivocado afirmar que o processo não estaria interessado na determinação da verdade dos fatos, até porque, mesmo que se conceba o processo como instrumento para solucionar conflitos, essa resolução não seria justa enquanto totalmente dissociada da verdade histórica. Como bem constatou Greco, a sociedade do nosso tempo não mais se contenta com qualquer reconstrução dos fatos, mas apenas com aquela que a consciência coletiva assimila e aceita como autêntica, porque a exata reconstituição dos fatos é um pressuposto fundamental de decisões justas e da própria eficácia da tutela jurisdicional dos direitos.8 Mais ainda, uma decisão judicial que se pretende por justa – e é certo que a justiça das decisões é um valor a ser tutelado em um Estado Democrático de Direito – deve estar inequivocamente assentada em pressupostos fáticos verdadeiros, o que, por sua vez, depende de uma atividade adequada de reconstrução dos fatos. Algumas correntes sustentam a impossibilidade prática de se alcançar a verdade no processo, e, nesse sentido, referem-se a uma contradição existente entre a verdade formal (ou processual) – que se estabelece no contexto do processo, e verdade real – que somente seria apurada fora do processo. Dizse que haveria, de um lado, uma verdade processual, estabelecida no processo por meio das provas e pelos procedimentos probatórios e, por outro lado, a verdade material, histórica, insuscetível de ser alcançada pelas provas judiciais. No entanto, como aponta Taruffo, essa distinção é inaceitável, vez que parece insustentável a ideia de uma verdade judicial totalmente distinta e autônoma da verdade ocorrida no espaço e no tempo.9 Cumpre alertar, com apoio em Ferrajoli, para o problema do mito da verdade real que, associado à ideia de um processo penal inquisitivo, remonta a um período marcado por arbitrariedades na obtenção de prova a qualquer custo e sem qualquer respeito ao acusado. Conforme o autor,

BENTHAM, Jeremy. A Treatise on Judicial Evidence. Extracted from the manuscripts of Jeremy Bentham. Esq. by M. Dumont. London: Messrs. Baldwin, Cradock, and Joy, Paternoster-Row, 1825, p. 2-3. 4 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 92. 5 GRECO, Leonardo. Instituições... cit., p. 83. 6 Taruffo analisa essas concepções céticas agrupando-as em três perspectivas: as de impossibilidade teórica; as de impossibildiade ideológica e as de impossibilidade prática de o processo alcançar a verdade. Para compreender cada uma dessas perspectivas, ver: TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Trotta, 2005.

esta pretendida verdade substancial, ao ser perseguida fora de regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, degenera em juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o cognitivismo ético sobre o qual se baseia o substancialismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do processo penal. Em sentido inverso, a verdade perseguida pelo modelo formalista como fundamento de uma condenação é, por sua vez, uma verdade formal ou processual, alcançada pelo respeito a regras precisas e relativa somente a fatos e circunstâncias perfilados como penalmente relevantes.10

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TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos... cit., p. 26-27. GRECO, Leonardo. A Verdade no Estado Democrático de Direito. In: Doutrinas Essenciais de Direito Civil. vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 495. 9 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos... cit., p. 24. 10 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 48. 7 8

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Nessa linha, Pacelli assevera que “a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de de sua perseguição, como meta principal do processo penal.”11 Como efeito, eventuais desvios das autoridades públicas na produção de provas, além de uma ampla iniciativa probatória nas mãos do juiz eram legitimados por essa busca. Está demonstrado empiricamente que o processo penal, sempre que buscou uma verdade mais material e consistente, e com menos limites na atividade de busca, produziu uma verdade de menor qualidade e com pior trato para o imputado.12 A verdade real é, para Aury Lopes Jr., uma artimanha engendrada nos meandros da inquisição para justificar o substancialismo penal e o decisionismo processual típicos do sistema inquisitório.13 Encontra-se, portanto, ideologicamente afastada dos princípios que informam o sistema acusatório. A famosa máxima de que os fins justificam os meios ilustra muito bem a questão, na medida em que as práticas probatórias mais diversas estariam autorizadas quando justificadas pelo nobre fim da obtenção da verdade. Diante da impossibilidade de o juiz atingir uma certeza absoluta no seu processo de reconstrução histórica dos fatos, nem mesmo se faz necessário procurar distinguir a verdade formal, que seria buscada no processo civil, da verdade material, a qual seria perseguida no processo penal. Partindo-se do pressuposto de que a verdade é uma só, uma vez que se tenha como parâmetro os postulados da epistemologia moderna, as expressões serviriam no máximo para distinguir graus distintos de aproximação da verdade absoluta e inatingível, como destaca Badaró.14 No entanto, a despeito da grande improbabilidae de que o juiz atinja a verdade absoluta, não deve ele abdicar dos esforços de buscála, desde que se fale na busca de uma verdade possível, dentro das limitações epistemológicas impostas pela disciplina processual. A partir do momento em que se compreende a verdade como um valor importante a orientar os esforços empregados na dinâmica processual, cumpre analisar se, e em que medida, o processo pode ser considerado “um instrumento epistemologicamente válido e racional, ou seja, se esse é um método eficaz para a descoberta e a determinação da verdade dos fatos em que se funda a decisão”15 16, a despeito das regras procedimentais peculiares que o caracterizam. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 328. 12 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 566. 13 Idem, ibidem. 14 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 34. 15 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p 159. 16 Em sentido semelhante: LAUDAN, Larry. Verdad, error y proceso penal: un ensayo sobre epistemología jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2013; DAMAŠKA, Mirjan. Epistemology and legal regulation of proof. In: Law, probability and risk. nº 02, 2003, p. 117, 130. 11

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As limitações probatórias e a prova ilícita Em sendo a prova o instrumento de que se vale o juiz e as partes para estabelecer a verdade dos fatos, é pertinente a análise geral acerca das normas que disciplinam essa atividade probatória, a fim de se verificar se são epistemologicamente válidas ou se, em sentido contrário, atuam por finalidades outras que não a da descoberta da verdade. Além disso, identificando-se essas normas contra-epistêmicas, deve-se verificar se sua manutenção é indispensável e justificável por outros valores igualmente relevantes ao da descoberta da verdade, bem como o que pode ser feito para atenuar os efeitos desse desvio.17 A verdade que se identifica pelo processo está sujeita à observância de regras e procedimentos que disciplinam sua comprovação. Essas regras procedimentais são as mais variadas na medida em que se compara os diversos sistemas processuais e, inclusive, podem atender finalidades distintas. Como mostra Ferrajoli, muitas dessas normas se apresentam com a finalidade de evitar o abuso e prevaricação das partes, outras servem para nortear o juiz no caso de dúvida, algumas se destinam a reduzir a subjetividade do juízo ou de suas fontes de prova, outras visam preservar os direitos fundamentais e garantias processuais dos envolvidos na atividade probatória. Essas normas, inevitavelmente, substituem os critérios próprios da livre investigação, comuns da busca da verdade em outras áreas do conhecimento.18 No entanto, embora necessárias para atender às peculiaridades da atividade processual, muitas delas parecem estar orientadas para fins opostos à busca da verdade, pois acabam por obstaculizar esse objetivo. O campo das proibições de prova relacionadas à tutela de valores estranhos à economia interna do processo é vasto, como ressaltou Gomes Filho, o que revela que o objetivo de apuração da verdade deve conviver com os demais interesses dignos de proteção pela ordem jurídica.19 É nesse contexto que se situa a limitação probatória decorrente da ilicitude no meio empregado para sua obtenção, o que tem como consequência a sua inutilidade no processo. A vedação da utilização das provas ilícitas se destina a tutelar a qualidade do material probatório introduzido no processo, zelar pela regularidade da persecução penal e, principalmente, evitar a violação a direitos e garantias fundamentais na atividade de obtenção de provas, principalmente quando esta atividade é desenvolvida pelo próprio Estado. Seria contraditório que em um processo penal, destinado à apuração da prática de um ilícito penal, o próprio Estado se valesse de métodos violadores de direitos, comprometendo a legitimidade de todo o sistema punitivo. De fato, no contexto do direito norte-americano, como destaca Miranda Estrampes, o fundamento da proibição da prova ilícita é, em maior grau, Taruffo realizou instigante análise acerca da dimensão epistêmica do processo, envolvendo questões que vão desde a produção das provas, o procedimento empregado, os sujeitos detentores da iniciativa instrutória, até os aspectos relacionados à valoração e o sujeito encarregado de realizá-la: TARUFFO, Michele. Uma Simples Verdade... cit., p. 159 a 222. 18 FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 62. 19 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 98-99. 17

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Algumas notas sobre a tensão entre a Função Epistêmica do Processo e o Dever de Tutela dos Direitos Fundamentais

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pragmático, no sentido de evitar a má atuação policial: “con el transcurso de los años la Corte Suprema Federal norteamericana estableció que su verdadero y único fundamento era disuadir a la policía de llevar a cabo actividades de investigación ilícitas (el conocido como deterrent effect).” Por outro lado, aponta que no contexto europeu continental, esse fundamento é ideológico, ético, estando a proibição, inclusive, prevista nas constituições dos Estados.20 As proibições de provas fundadas na proteção de valores constitucionais são bastante valorizadas no âmbito do processo penal da civil law por representarem uma reação às traumáticas experiências vivenciadas no curso dos procedimentos inquisitivos. Tais práticas arbitrárias eram fundadas justamente no propósito da busca da verdade, motivo pelo qual tal finalidade ainda se vê corriqueiramente demonizada por uma parte da doutrina processual. Nesse ponto é relevante repetir o alerta de Guzmán21 sobre a necessária distinção entre o valor da determinação da verdade no processo penal com os métodos empregados nessa investigação. Renunciar à lógica inquisitiva não implica em renunciar ao valor verdade. Diante disso, a reflexão que deve ser feita é de quando e em quais condições a proteção de interesses ou valores extraprocessuais deve prevalecer sobre a busca da verdade e, do mesmo modo, sobre a exigência de fazer presentes todas as provas relevantes22 para a formação do convencimento do julgador. No Brasil, a obtenção de provas por meios ilícitos era, usualmente, remediada por meio da imposição de uma sanção material para o responsável pela violação, o que não prejudicava a valoração da prova. A situação foi modificada a partir do advento da Constituição de 1988, com a previsão da inadmissibilidade processual da prova ilícita, a partir da qual estabeleceu-se uma “ponte” entre os planos material e processual, nas palavras de Badaró.23 Agora, a violação do direito material para a obtenção da prova enseja não só a sanção material para o agente, como também a processual, no tocante à inadmissibilidade da prova. Apesar de a primeira solução ser aquela que mais se adequa aos interesses epistêmicos do processo – pois, uma vez sancionado o agente violador do direito, não haveria óbice à valoração da prova ilícita – , esta não é a que mais protege a essência dos

direitos fundamentais em jogo. Somente quando se impõe a inadmissibilidade da prova é que se logra atingir a função pedagógica direcionada aos agentes estatais: no sentido de se zelar pela regularidade da persecução penal, evitandose a violação dos direitos e garantias fundamentais em meio às atividades de investigação. Ademais, para que se possa efetivamente contar com a garantia da vedação das provas obtidas por meios ilícitos, em sua função de proteção contra violações de direitos por parte dos órgãos do Estado, é mister que também se impeça a valoração de qualquer outra prova – mesmo que em si lícita, mas que tenha se originado a partir do conhecimento da ilícita. A vedação da prova ilícita por derivação já vinha sendo reconhecida em sede doutrinária e jurisprudencial (após uma resistência inicial do Supremo Tribunal Federal), mas foi disciplinada expressamente no §1º do artigo 157 a partir da reforma processual penal brasileira de 2008. Desse modo, consideram-se igualmente inadmissíveis, em regra, as provas lícitas derivadas, contaminadas pelo vício da repercussão causal. Assim, consagra-se a imprescindibilidade de que a livre valoração da prova recaia apenas sobre o material probatório validamente produzido.24 Conforme aduz Thaman25, duas são as áreas mais críticas nas quais as regras de exclusão probatória são utilizadas para reforçar importantes direitos fundamentais tutelados pelas Constituições e Convenções de Direitos Humanos, quais sejam, aquela na qual a polícia adquire provas por meio de violações ao direito fundamental à privacidade, obtidas por meio do ingresso ao domicílio ou com base nas comunicações privadas; e aquela na qual a prova atinge a dignidade humana, por meio da violação ao direito ao silêncio ou à não autoincriminação. Deste modo, insta realizar uma análise mais detalhada da disciplina da ilicitude probatória a partir de cada uma dessas duas perspectivas.

Como destaca o autor, “este efecto disuasorio aparece consagrado en las sentencias de los casos US vs. Calandra (414 US 338, 1974) y US vs. Janis (428 US 433, 1976). En esta última sentencia se declara que «el principal propósito de la exclusión de las pruebas ilícitas, si no el único, es evitar las conductas policiales ilícitas» y más adelante añade que «la regla por la que se excluye la prueba obtenida en violación de la IV Enmienda, tiende a garantizar los derechos generalmente reconocidos en dicha Enmienda a través de un efecto disuasorio (de la violación misma) y no tanto como expresión de un derecho constitucional subjetivo de la parte agraviada...».” ESTRAMPES, Manuel Miranda. La prueba ilícita: la regla de exclusión probatoria y sus excepciones. In: Revista Catalana de Seguretat Pública. Mai, 2010, pp. 131-151. 21 GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a la epistemología jurídica. 2a ed. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2011, p. 29. 22 TARUFFO, Michele. La Prueba. Trad. Laura Manríquez e Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 51. 23 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012, p. 284. 20

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O Enfrentamento da Prova Ilícita decorrente da Violação à Privacidade Como acentua Greco, a dignidade da pessoa humana constitui um limite intransponível à busca da verdade pelo processo ou fora dele (já que até mesmo o cientista, por exemplo, também encontra limitações éticas em seus experimentos).26 Ademais, considera-se a privacidade como uma projeção da dignidade humana, a qual encontra proteção nos mais diversos pactos Idem, p. 285. THAMAN, Stephen C. (ed.). Exclusionary Rules in Comparative Law. Dordrecht: Springer, 2013, p. xii. 26 O cientista “está proibido, em suas investigações, de realizar experiências degradantes, que violem a liberdade de consciência ou de vontade do ser humano, que exponham publicamente os aspectos mais íntimos de sua personalidade ou o submetam a tratamento humilhante, doloroso ou cruel. Esta proibição está consagrada no Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, em vigor no Brasil, em seu artigo 7º: ‘Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas.’” (GRECO, Leonardo. Instituições... cit., p. 120). 24 25

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internacionais, embora admita-se limitações, como se depreende da previsão expressa no artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos: 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.

Resta clara a necessidade de um juízo concreto de ponderação para que se possa determinar qual dos valores deverá prevalecer e qual deverá ceder em cada caso, se a proteção da privacidade ou a busca pela verdade. No contexto da proteção da privacidade destaca-se a jurisprudência da Corte Constitucional alemã, responsável por desenvolver a chamada teoria dos três graus, no intuito de estabelecer critérios de ponderação entre a privacidade e outro interesse a ela contraposto. Como explica Manuel da Costa Andrade, originariamente pensada para a área específica dos meios de prova que contendem com a esfera da privacidade e segredo, a teoria tem revelado a aptidão para oferecer uma resposta à problemática geral das proibições de prova.27 Andrade explica a teoria dos três graus nos seguintes termos: “α) Em primeiro lugar está a esfera da intimidade, área nuclear, inviolável e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares, e, por isso, subtraída a todo o juízo de ponderação de bens ou interesses. O que significa a proibição radical e sem excepções de todas as provas que contendam com este círculo: ‘O imperativo constitucional de respeitar esta área, a esfera íntima do indivíduo, tem o seu findamento no direito ao livre desenvolvimento da personalidade (...). β) Para além deste núcleo central da intimidade, estende-se a área normal da vida privada, também ela projecção, expressão e condição do livre desenvolvimento da personalidade ética da pessoa. E, nessa medida, erigida em autónomo bem jurídico pessoal e como tal protegido tanto pela Constituição como pelo direito ordinário. Trata-se, porém – e aqui reside a sua diferença – de um bem jurídico que não pode perspectivar-se absolutamente isolado dos compromissos e vinculações comunitárias e, nessa medida, inteiramente a coberto da colisão e ponderação de interesses. O seu sacrifício em sede de prova em processo penal estará, por isso, legitimado sempre que necessário e adequado à salvaguarda de valores ou interesses superiores, respeitadas as exigências do princípio de proporcionalidade (...). γ) Em terceiro e último lugar, é possível referenciar a extensa e periférica área da vida normal de revelação em que, apesar de subtraída ao domínio da publicidade, sobreleva de todo o modo a funcionalidade sistémico27

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ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 94-96.

comunitária da própria interacção. Em termos tais que, em rigor, ‘não terá já sentido falar-se de um direito à própria palavra’ suscetível de lesão e, por isso, digno e carecido de tutela. De qualquer forma tratar-se-ia sempre de lesões socialmente adequadas e como tais socialmente toleradas.”

Trabalhando sobre tal construção, a fim de verificar sua aplicabilidade, Greco esclarece que o primeiro grau corresponde às provas que dizem respeito às relações do ser humano consigo mesmo, a exemplo do diário que registra sua própria memória e opinião sobre fatos e do direito ao conhecimento do próprio corpo. Deste modo, os exames de sangue e DNA, se destinados a apurar características da própria pessoa, a fim de verificar sua capacidade de entendimento ou vontade, estariam enquadradas no primeiro grau. Se para tratar da relação do indivíduo com outras pessoas da comunidade, como a apuração da autoria de crime, estariam enquadrados no segundo grau de privacidade, no qual também se encontram as conversas privadas, hipóteses em que a ponderação fazse necessária para se decidir sobre a admissibilidade da restrição.28 Diante da falta de uma solução mais apropriada, a teoria dos três graus pode ser válida para as ponderações realizadas pelo juiz quanto à admissibilidade das provas que podem constituir violações a direitos fundamentais. Constatando-se uma violação insuperável, estar-se-á diante de uma prova ilícita. Também a jurisprudência da Corte Europeia desenvolveu algumas aplicações a partir do princípio geral da equidade, que pode ser considerada uma garantia processual autônoma. Essa noção pode permitir sancionar um Estado por um processo não equitativo, mesmo em uma decisão que aparentemente respeita as garantias formais do artigo 6º. A razão é que se leva em conta o objeto e o propósito da Convenção Europeia, no sentido de assegurar efetivamente a garantia de um processo justo.29 Interessante e pertinente foi o caso Schenk c/ Suiça, cuja decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos abordou o problema da admissibilidade da prova ilícita na perspectiva do direito a um processo justo, consagrado no artigo 6.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. O caso se trata da juntada aos autos de uma gravação não autorizada de uma conversa telefônica feita entre o acusado e a pessoa que ele contratou para matar a esposa, que foi responsável pela gravação e por entregá-la às autoridades. O Tribunal Suiço condenou o Sr. Schenk com base no conteúdo da conversa gravada. Através de demanda perante a Corte Europeia, foi alegada violação à norma prevista na Convenção que concede o direito a um processo justo, uma vez que a gravação ilegal, sem autorização judicial, foi admitida e valorada em seu prejuízo. Embora vencido, um dos votos reconhecia que o respeito à legalidade na prática das provas não é uma exigência abstrata ou formalista, mas é da máxima importância para que o processo penal seja justo. Nenhum Tribunal pode ter em conta, sem que padeça a boa administração da justiça, uma prova que se conseguiu ilegalmente. Se isso for feito, o processo não será justo no sentido da Convenção. 28 29

GRECO, Leonardo. Instituições... cit., p. 122-123. GUINCHARD, Serge; et. al. Droit Processuel – Droits Fondamentaux du Procès. 7ª ed. Paris: Dalloz, 2013, p. 1067.

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O enfrentamento da prova ilícita decorrente da violação à não autoincriminação Também se contempla por meio desta classe de limitações probatórias contraepistêmcias o direito do investigado/acusado de não se autoincriminar, de onde se extrai o direito ao silêncio. Derivado do princípio da presunção de inocência, o referido direito pode ser invocado em qualquer fase da persecução penal. A lógica da proteção se justifica pela impossibilidade de obrigar qualquer pessoa a causar agressão a seu status de liberdade, colaborando com a acusação na produção de prova que seja contrária aos seus interesses defensivos. O direito à não autoincriminação, ou nemo tenetur se detegere, tem raízes na common law, embora suas precisas origens permaneçam obscuras. Seu status entre os pensadores jurídicos modernos deve algo à falta de popularidade da Star Chamber e High Commission, tribunais ingleses encarregados de investigar alegações de traição e heresia que frequentemente valiam-se de tortura para extrair confissões para legitimar as condenações. Assim, o que é hoje conhecido como direito ao silêncio, é baseado historicamente na rejeição ao autoritarismo, métodos escusos de investigação criminal e, consequentemente, representa a vitória da liberdade e da justiça sobre a tirania e o despotismo.30 Manuel da Costa Andrade31, apoiando-se em Eser, assinala que a liberdade de declaração do indivíduo pode ser analisada em uma dupla dimensão: em primeiro lugar, uma positiva, que abre ao acusado o direito irrestrito de intervenção e declaração em abono de sua defesa. Isso significa que lhe deve ser garantida a oportunidade efetiva de se pronunciar contra os fatos que lhe são imputados com vistas a infirmar as suspeitas ou acusações que lhe são dirigidas. Por outro lado, a dimensão negativa veda qualquer tentativa de obtenção, por meios enganosos ou por coação, de declarações autoincriminatórias. É nesta sede que se situa o nemo tenetur se ipsum accusare. O direito a não depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado encontra sede no art. 8º, 2, alínea “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos e no art. 14, 3, alínea “g”, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Pode ser compreendido como o direito à autodefesa negativa. A Constituição de 1988 se preocupou em proteger o direito do preso a permanecer em silêncio como espécie do direito à não autoincriminação, conforme seu artigo 5º, LXIII. No entanto, até mesmo em decorrência do direito à presunção de inocência, concede-se interpretação ampla ao dispositivo de modo a não se encerrar meramente no direito do preso a se calar. Paralelamente, o Código de Processo Penal prevê em seu artigo 186, parágrafo único, a garantia de que o silêncio não será valorado pelo juiz de modo prejudicial aos interesses da defesa. ROBERTS, Paul; ZUCKERMAN, Adrian. Criminal Evidence. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 538. 31 ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 120. 30

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O direito norte-americano prevê semelhante exigência desde o célebre julgado Miranda v. Arizona, em 1966, no qual a Suprema Corte interpretou a Quinta Emenda no sentido de que todo suspeito, ao ser inquirido pela polícia, devia ser informado da possibilidade de permanecer em silêncio, de que tudo o que disser ou fizer pode ser usado contra ele, bem como de contar com a assistência de advogado escolhido ou nomeado. No referido julgamento a Suprema Corte entendeu que a ausência da formalidade seria suficiente para macular com o vício da nulidade as declarações feitas. O direito à informação sobre a garantia do silêncio ficou conhecido como Miranda’s rights e deve ser lido ao suspeito no momento da custódia. Na Europa entende-se o direito à não autoincriminação como garantia implicitamente constante no artigo 6º §1º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, por força do caso Saunders v. United Kingdom32. No presente caso, a Corte entendeu que, embora não especificamente mencionado no artigo 6º da Convenção, o direito ao silêncio e o direito a não se autoincriminar são geralmente reconhecidos como padrões internacionais que residem no centro da noção de processo justo nos termos do artigo 6º. Sua racionalidade reside na proteção do acusado contra uma coação imprópria das autoridades, assim contribuindo para evitar injustiças e para o cumprimento dos propósitos do artigo 6º. Foi entendido também que o privilégio não se aplica a materiais que possam ser obtidos do acusado compulsoriamente mas que existem independentemente da vontade do suspeito como documentos adquiridos através de mandados, amostras de sangue, urina, ar alveolar e tecidos corporais para o propósito de exames de DNA.33 Basicamente, o princípio se aplica a declarações orais do suspeito. Embora não expressamente consagrada, foi no julgado John Murray v. United Kingdom34 pela Corte Europeia em 8 de fevereiro de 1996 que foi possível definir os contornos mais explícitos a essa garantia. Ficou reconhecido que o domínio do respectivo direito seria limitado à acusação em matéria penal, mas aplicável em todas as fases do processo, tendo podido Murray se silenciar durante a investigação policial. Paralelamente, ficou claro que o silêncio da pessoa investigada não poderia acarretar, isoladamente, sua condenação ou o reconhecimento dos fatos a ela imputados, no entanto, o silêncio poderia constituir elemento de apreciação hábil a ser levado em consideração diante de certas situações que demandariam uma explicação de sua parte.35 European Court Of Human Rights. Case of Saunders v. United Kingdom. Application nº 19187/91. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search. aspx?i=001-58009. Acesso em: 23 de março de 2014. 33 CHOO, Andrew L-T. Give us what you have – Information, Compulsion and the Privilege Against Self-Incrimination as a Human Right. In: ROBERTS, Paul; HUNTER, Jill. Criminal Evidence and Human Rights: Reimagining Common Law Procedural Traditions. Oxford: Hart Publishing, 2013, p. 241. 34 European Court Of Human Rights. Case of John Murray v. United Kingdom. Application nº 18.731/91. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/ search.aspx?i=001-57980. Acesso em: 23 de março de 2014. 35 LIMA, José Antônio Farah Lopes de. Convenção Europeia de Direitos Humanos. Leme: JH Mizuno, 2007. 32

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O direito à não autoincriminação pode ser compreendido tanto no enfoque daquele contra quem já pesa uma acusação e figura, portanto, como réu em determinado processo, como também no enfoque de qualquer pessoa chamada a depor como testemunha. No primeiro caso é intuitivo que o acusado tem a prerrogativa de não produzir prova contra si mesmo como decorrência da presunção de inocência e da distribuição do ônus probatório no processo penal. Seguindo esta lógica, em sendo o acusado presumidamente inocente por determinação constitucional, incumbe ao órgão acusatório a comprovação da imputação e não é cabível compelir o acusado a contribuir nesse intento. Daí decorre o direito ao silêncio e de não responder as perguntas formuladas, tanto na fase extrajudicial, de investigação, como na fase processual, de não participar ativamente de procedimentos investigatórios com a finalidade de obter prova de sua culpabilidade, como a reconstituição do crime e, até mesmo, de ter a mentira tolerada, como pressuposto da autodefesa. Por outro lado, em relação à testemunha chamada a depor, também lhe vem sendo reconhecido o direito de não revelar informações potencialmente autoincriminatórias. Assim, visando a uma máxima efetividade da garantia, o titular do direito de não produzir prova contra si mesmo deve ser qualquer pessoa que possa se autoincriminar. O STF, sobre o tema, já decidiu no HC 73.035/DF (Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/12/96), que não configura o crime de falso testemunho quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la. O que se afigura em jogo, fundamentalmente, é garantir que qualquer contribuição do arguido que resulte em desfavor da sua posição na relação processual seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade.36

Considerações finais A despeito de se conceber o processo como dotado de função epistêmica, eis que direcionado para o fim da descoberta da verdade, o exercício dessa atividade encontrará obstáculos intransponíveis. A tutela dos direitos fundamentais constitui-se alvo de constante tensão em meio aos fins processuais, sendo certo que o processo não deve se afastar de sua função de garantia para facilitar o exercício da pretensão punitiva estatal. É certo que alguns desses obstáculos que poderão representar uma maior dificuldade na descoberta da verdade se justificam no processo para salvaguardar outra ordem de valores e, por tal motivo, deverão ser mantidos para evitar que o processo represente uma violação indevida a direitos igualmente relevantes. Conforme Greco, 36 298 ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 121.

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a verdade não pode ser obtida a qualquer preço, pois o Estado de Direito, assentado na dignidade de todos os seres humanos e na eficácia concreta dos seus direitos fundamentais, não pode admitir que a tutela dos direitos de uns se faça com o sacrifício de um núcleo intangível dos próprios direitos fundamentais de outros.37

É de se destacar que o juiz possui um papel de grande importância nesse contexto, já que os conflitos em questão serão resolvidos, em maior grau, no âmbito concreto, a depender de um juízo de ponderação entre os valores envolvidos. Nesse ponto, inclusive, vem se verificando uma tendência em prol do pragmatismo a serviço do interesse público, como destacou Ashworth38 por meio de uma análise da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos. Essa tendência observada é oriunda em maior grau da concepção do instituto no contexto norte-americano, por meio das inúmeras exceções criadas pelos tribunais à sua aplicação. Em sendo o próprio fundamento da vedação, naquele contexto, decorrente de questões pragmáticas, como destacado por Estrampes, na hipótese de o Congresso ou a Suprema Corte entenderem por sua ineficácia ou pelo advento de novos meios mais adequados, sua razão de ser desapareceria e a regra de exclusão deixaria de ser aplicada.39 Essa interpretação vem ganhando forças também no direito continental onde, originalmente, a vedação se originou a partir de um fundamento ideológico. Como observa Estrampes: La regla de exclusión ha dejado de ser una garantía procesal de carácter constitucional derivada de la posición preferente que los derechos fundamentales ocupan en el ordenamiento jurídico para convertirse en un simple remedio judicial que puede dejar de aplicarse cuando las necesidades de tutela de los derechos fundamentales sustantivos no lo exijan.

Seja como for, não obstante a busca pela eficiência no âmbito da persecução penal, o que se reflete nos meios de investigação e colheita de provas, parecem perigosos os esforços dirigidos a relativizar a tutela dos direitos fundamentais afetados, notadamente o da privacidade e da dignidade da pessoa humana. Embora seja a busca da verdade um escopo do qual o processo não deve se afastar, os meios empregados para alcançá-la serão determinantes para a legitimidade do resultado do provimento jurisdicional. Afinal, como assevera Estrampes, a presunção de inocência somente poderá ser desvirtuada sobre a base de dados que resultem plenamente acreditados e obtidos de forma lícita.40 Op. cit., p. 120. ASHWORTH, Andrew. The Exclusion of Evidence Obtained by Violating a Fundamental Right: Pragmatism Before Principle in the Strasbourg Jurisprudence. In: ROBERTS, Paul; HUNTER, Jill. (ed.). Criminal Evidence and Human Rights: Reimagining Common Law Procedural Traditions. Oxford: Hart Publishing, 2013, p. 145. 39 ESTRAMPES, Manuel Miranda. op. cit., p. 135. 40 Idem, p. 146. 37 38

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Referências bibliográficas ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2013. ASHWORTH, Andrew. The Exclusion of Evidence Obtained by Violating a Fundamental Right: Pragmatism Before Principle in the Strasbourg Jurisprudence. In: ROBERTS, Paul; HUNTER, Jill. (ed.). Criminal Evidence and Human Rights: Reimagining Common Law Procedural Traditions. Oxford: Hart Publishing, 2013. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. _____________. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012. BENTHAM, Jeremy. A Treatise on Judicial Evidence. Extracted from the manuscripts of Jeremy Bentham. Esq. by M. Dumont. London: Messrs. Baldwin, Cradock, and Joy, Paternoster-Row, 1825. CHOO, Andrew L-T. Give us what you have – Information, Compulsion and the Privilege Against Self-Incrimination as a Human Right. In: ROBERTS, Paul; HUNTER, Jill. Criminal Evidence and Human Rights: Reimagining Common Law Procedural Traditions. Oxford: Hart Publishing, 2013. DAMAŠKA, Mirjan. Epistemology and legal regulation of proof. In: Law, probability and risk. nº 02, 2003. ESTRAMPES, Manuel Miranda. La prueba ilícita: la regla de exclusión probatoria y sus excepciones. In: Revista Catalana de Seguretat Pública. Mai, 2010. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. GRECO, Leonardo. A Verdade no Estado Democrático de Direito. In: Doutrinas Essenciais de Direito Civil. vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. _____________. Instituições de Processo Civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011. GUINCHARD, Serge; et. al. Droit Processuel – Droits Fondamentaux du Procès. 7ª ed. Paris: Dalloz, 2013. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a la epistemología jurídica. 2a ed. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2011. LAUDAN, Larry. Verdad, error y proceso penal: un ensayo sobre epistemología jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2013. LIMA, José Antônio Farah Lopes de. Convenção Europeia de Direitos Humanos. Leme: JH Mizuno, 2007. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. ROBERTS, Paul; ZUCKERMAN, Adrian. Criminal Evidence. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2010. TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Trotta, 2005. _____________. La Prueba. Trad. Laura Manríquez e Jordi F. Beltrán. Madrid: Marcial Pons, 2008. _____________. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. THAMAN, Stephen (ed.) Exclusionary Rules in Comparative Law. Dordrecht: Springer, 2013.

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Fontes Normativas da Educação a Distância no Brasil Rossana Marina De Seta Fisciletti1 Resumo Propõe-se a apresentar um panorama da evolução histórica da Educação a Distância, observando a diferença entre os termos “Educação”, “Instrução” e “Ensino”, as gerações da EaD, seus aspectos constitucionais, os requisitos legais para implantação desta modalidade. Além disso, descrever as principais legislações que cuidam do tema, como os Decretos nº 5.622/2005 e 5.773/2006 e a Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), o Projeto de Resolução das Diretrizes e Normas Nacionais para a oferta de Programas e Cursos de Educação Superior na Modalidade a Distância e, ainda, os Referenciais de qualidade para Educação Superior a Distância (BRASIL, 2007), documento que norteia seguramente a criação e desenvolvimento de cursos a distância, uma vez que está absolutamente amparado em legislações esparsas sobre o tema. A metodologia da pesquisa empregada é a revisão bibliográfica sobre o tema e o estado da arte. Palavras–chave: Educação a Distância; referenciais de qualidade; direito educacional; legislação. Abstract It is a special proposed: an overview of the historical evolution of Distance Education. The aims are the difference of the terms “Education”, “Instruction” and “Teaching”, on the technology distance education; the constitutional aspects of itself and the legal requirements for the implementation of this new panoramic.  The paper presents and analyses the main legistation of the issue: Act n. 5.622/2005;  Atc n. 5.773/2006 and Law n. 9.394/1996. That documents are the Brazilian National  Guidelines and    the quality benchmarks for Higher Distance Education to offer programs and higher education courses in Technology Distance Education (BRAZIL, 2007). The results are they creation and development technology distance learning courses as it is absolutely supported in scattered legislation. The research methodology employed is the literary review on the subject and “the state of the art”. Keywords: Distance Education; quality benchmarks; education law; legislation.

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FISCILETTI, Rossana Marina De Seta, Doutoranda em Direito da Universidade Veiga de Almeida (UVA), Mestre em Direito (UGF), Pós-Graduada em Planejamento, Implementação e Gestão da Educação a Distância (UFF), Professora do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá (UNESA) e Pesquisadora do Instituto de Ensino Superior de Rondônia (IESUR/FAAr). Advogada em Direito Privado. E-mail: rossanafisciletti@ gmail.com

Fontes Normativas da Educação a Distância no Brasil

Introdução Breve panorama sobre a evolução da EaD A evolução tecnológica, em alta velocidade, tem desafiado o campo da pesquisa, envolvendo constante atualização, projeção para o futuro, no intuito de antecipar, de estar sempre à frente do tempo, de aprimorar tudo o que se aprende e as novas formas de aprendizagem. Exigência do mercado competitivo? Provável. Não há como desacelerar... É tempo de grandes transformações! Nesse contexto, a Educação a Distância é fundamental para possibilitar o amadurecimento da aprendizagem da sociedade em rede na qual estamos inseridos2. Estabelecendo a diferença entre os termos “Educação”, “Instrução” e “Ensino”, Giesta (2012, p. 25), informa que: O termo educação se refere à formação integral do ser humano, não se restringe ao procedimental/operacional ou somente o cognitivo. Essa palavra também abrange aspectos atitudinais, comportamentais, éticos, valorativos. Instrução é treinamento. Está ligada à capacitação operacional, ao ensinar a fazer. Ensino é direcionado à atuação do professor, aos processos de seleção, de organização e de construção de conteúdos: ele enfoca a transmissão de verdades estabelecidas, de conhecimentos prontos e acabados, e está ligado ao aprender a conhecer (grifou-se).

Dessa forma, o termo ‘Educação’ a Distância parece ser o mais adequado para caracterizar esse modelo educacional tão importante nos dias atuais. A projeção da Educação a Distância ganhou força recentemente, embora não se trate de um tema novo. Não há como pensar na Educação a Distância, sem passarmos pela invenção do alfabeto, ou seja, pelo desenvolvimento da escrita fonética, difundida por volta de 1500 a.C (data incerta, conforme historiadores) em que os fenícios criaram ou aperfeiçoaram a escrita fonética alfabética. A partir do século VIII a.C os gregos assimilaram o alfabeto fenício (palavra primeiramente composta das primeiras letras fenícias aleph e bet e depois pelas gregas alpha e beta), como observa Aranha (2008, p. 43). É, justamente nesse ponto que podemos marchar, através dos tempos, com a evolução da EaD. Além da apontada escrita fonética como ponto de partida, podemos associá-la ao desejo do ser humano de saber, de obter conhecimento (visto como qualidade essencial da espécie). Outro ponto é a habilidade de ensinar, esta ainda mais antiga do que as demais, uma vez que as gerações foram evoluindo 2

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Conceitua Castells que “A sociedade em rede, em termos simples, é uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicação e informação fundamentadas na microelectrónica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informação a partir de conhecimento acumulado nos nós dessas redes. A rede é a estrutura formal. É um sistema de nós interligados. E os nós são, em linguagem formal, os pontos onde a curva se intersecta a si própria”. Disponível em: , p. 20. Acessado em 21 ago. 2015.

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pela transmissão do conhecimento, costumes e normas às gerações posteriores, evidenciada muito antes de qualquer tipo de escrita (pictográfica, cuneiforme, ideográfica, por hieróglifos e fonética). O envio de informação de um ponto a outro é, também, peça fundamental para construção dessa abordagem. Somando-se o interesse e/ou necessidade de transmitir conhecimentos, com o desejo de aprender e o advento da escrita fonética, encontraremos um norte para a Educação a Distância, observada em três gerações, como bem salienta Giesta (2012, p. 25). Na primeira geração, observa-se que o Homem, ser de notória inteligência, encontrou na escrita uma forma de enviar informações importantes a outros destinos, como por exemplo, através dos navegadores e negociantes com suas instruções e cartas e, de cunho mais pedagógico, através do envio de cartas apostólicas (epístolas) a diversos povos para ensino, propagação do Evangelho e regras de costumes cristãos – como as elaboradas pelos apóstolos Pedro e Paulo1. Os cursos por correspondência são destacados na referida geração de EaD. Na segunda geração, a EaD se adapta às mais variadas situações e infraestruturas (Delors, 2001, p. 189), conforme aspectos econômicos, políticos e geográficos. Observa-se, por exemplo, que num país em desenvolvimento o meio de mais baixo custo é o rádio, seguido pela televisão. A televisão, por sua vez, é largamente utilizada também nos países desenvolvidos como instrumento de aprendizagem, especialmente no ensino infantil em regiões que apresentam graves problemas climáticos, dificultando a locomoção dos estudantes até as escolas. Além do rádio e da televisão, esta geração conta com outras mídias, como as fitas de áudio, vídeo e até mesmo do telefone (Giesta, p. 5). Na terceira geração é ainda mais forte a ideia de usar as tecnologias da informação e comunicação para alcançar um número cada vez maior de pessoas, de todas as faixas etárias e em todos os níveis de ensino, da fase pré-escolar à Pós-Graduação (Moran, 2013, p. 1). Nesta geração surge o espaço virtual, que se expande especialmente com os programas de inclusão digital e o desenvolvimento da EaD online. Apresenta-se, como análise da terceira geração (contexto em que vivemos nos dias atuais no Brasil), a seguinte definição: A EaD é um recurso oferecido pela sociedade da informação, como exigência de um Estado Democrático de Direito (artigos 3º, 6º, 205, 206, II, todos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), como forma de ampliar o acesso à Educação. A evolução da Educação a Distância pode ser definida, nos dias atuais, como um sistema marcado por avanços e experiências bem sucedidas em diversos níveis de ensino, além de programas de educação e treinamentos em ambiente corporativo, conforme Martins (2007, p. 175). Algumas são as causas para esse avanço, entre elas: I. Democratização do Ensino: atendimento aos preceitos constitucionais de um Estado Democrático de Direito.

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II. Interatividade: o desenvolvimento tecnológico propulsionou as sociedades do conhecimento3. A cybercultura trouxe a necessidade das pessoas compartilharem conhecimento e estarem cada vez mais envolvidas em espaços virtuais. III. Menor custo. O custo da manutenção de um sistema de ensino de infraestrutura presencial é, via de regra, bem maior que ter sua infraestrutura virtual. IV. Acessibilidade e autonomia. A EaD promove um aprendizado mais autônomo e com horários flexíveis, que privilegia a interatividade.

As dimensões apresentadas por Serra, Oliveira e Mourão (2013, p 17) não estão em compartimento estanque, pois se inter-relacionam e influenciam umas às outras:

Serra, Oliveira e Mourão (2013, p.17) observam que apesar da relevância política, social e ideológica da educação a distância, a mesma segue desacreditada em alguns contextos, sendo alvo de preconceitos, possivelmente pelo fato de ser recente a aplicação deste sistema nas instituições de ensino superior no Brasil4 e pela “incipiência de pesquisas científicas direcionadas para esse segmento educacional, mais especificamente, para o campo da gestão das instituições de ensino”. No esteio da qualidade, os autores demonstram como pode ser organizado um curso na modalidade EaD segundo os “Referenciais de qualidade para a educação superior a distância do MEC”, elaborado pela Secretaria de Educação a Distância em 2007, elencando as seguintes dimensões trazidas neste documento: (a) concepção de educação e currículo no processo de ensino e aprendizagem; (b) sistemas de comunicação; (c) material didático; (d) avaliação; (e) equipe multidisciplinar; (f ) infraestrutura de apoio; (g) gestão acadêmico-administrativa; (h) sustentabilidade financeira. Salienta Demo (2003, p. 353) que a EaD requer capacitação, “precisa inequivocamente realizar adequada aprendizagem do professor, para que este, por sua vez, possa fazer o aluno aprender bem” e ressalta que é preciso quebrar a rotina reprodutiva, improdutiva e atrasada (p. 352). OLIVEIRA NETTO (2010, p. 126), afirma que “todos têm um papel fundamental no desenvolvimento da instituição, principalmente num momento em que se fala tanto na sociedade do conhecimento, ou na chamada sociedade pós-capitalista. Antes, porém, volta-se para os novos desafios competitivos em um mercado marcado pela mudança e pelas inovações contínuas. Os resultados desse novo direcionamento refletem diretamente na competitividade, estabilidade e no lucro da instituição”. 4 MORAN (2005) apresenta argumento no mesmo sentido: “As universidades e escolas demoraram mais do que as empresas para aceitar e incorporar o e-learning. Se preocuparam em ir criando uma cultura própria. Começaram atendendo áreas academicamente problemáticas como atender a alunos reprovados ou que apresentavam maiores dificuldades, principalmente quando vindos de outras instituições. Depois passaram a organizar cursos parcialmente a distância, algumas disciplinas em áreas problemáticas como estatística, metodologia de pesquisa ou disciplinas comuns a vários curso como Sociologia, Filosofia, Língua Portuguesa. Agora estão entrando mais firmemente em cursos a distância, principalmente de especialização e graduação, além dos de extensão, de curta duração”. 3

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O documento ainda esclarece que essas dimensões não se constituem em entidades isoladas, mas se interpenetram e se desdobram em novos entes. Tal forma de constituição mais uma vez, remete inevitavelmente à noção de sistema adotada nesse trabalho, como um conjunto de partes interagentes e coordenadas, que formam um todo unitário para atingir pelo menos um objetivo.

O estudo de cada uma dessas dimensões, conforme a proposta dos citados autores, parte da caracterização de componentes e indicadores úteis à constituição de um curso, alicerçado nos critérios de qualidade referenciados pelo principal órgão que rege a estrutura educacional do país, o Ministério da Educação (MEC).

Educação e Constituição Federal No sistema jurídico, há uma ordem hierárquica de normas, estruturada em forma de pirâmide pelo austríaco Hans Kelsen (1998, p.156). No ápice da pirâmide está a Constituição, justamente por ser o documento mais importante de um país, com o objetivo de harmonizar as relações sociais e políticas. Lenza (2010, p. 60) explica que: A ideia de que todo Estado deva possuir uma constituição e de que esta deve conter limitações ao poder autoritário e regras de prevalência dos direitos fundamentais desenvolve-se no sentido da consagração de um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF/88) e, portanto, de soberania popular.

A área da Educação a Distância, assim como todo e qualquer empreendimento, requer atenção especial em relação às formalidades para seu início. Após a decisão da criação de um curso nessa modalidade, o primeiro item a ser observado por gestores é o aspecto legislativo. Nessa iniciativa, os particulares também se colocam como parceiros do Estado para impulsionar a garantia fundamental da educação5, prevista no mais alto diploma pátrio, que é a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), a qual toda e qualquer produção legislativa deve se alinhar, para não ser expurgada do sistema por inconstitucionalidade. A magnitude da Educação fica evidenciada nas diretrizes do Estado Democrático de Direito, no artigo 1º, da CF/88, que tem entre seus 5

Art. 209, CF/88: Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

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fundamentos os “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (inciso IV), também consagrados como fundamentos da ordem econômica, previstos no art. 170, CF/88. Para que o Estado possa levar adiante tais premissas e concretizálas, o principal instrumento é a educação, que, aliás, é veículo necessário para a formação do cidadão, melhor exercício da democracia e construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), bem como de controle, utilização e exigência do cumprimento dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição (art. 5º). O relevo da educação fica evidente, ainda, através da leitura do capítulo constitucional específico destinado à educação (artigos 205 a 214). Introduzindo o tema, o artigo 205 assevera que:

Por se tratar de norma de caráter programático, o artigo 80 da LDB carecia de regulamentação, o que aconteceu nove anos depois, através do Decreto 5.622/2005, lacuna temporal que certamente fez com que a democratização da Educação através da EaD, se desenvolvesse em estruturas de baixa qualidade, uma vez que a LDB elencou poucos critérios para aplicação da modalidade, como se depreende da leitura dos artigos 62, §§2º e 3º (preveem a utilização de recursos e tecnologias de educação a distância na formação continuada e capacitação dos profissionais de magistério); 46, §3º (participação de professores e alunos nos programas de EaD); 32, §4º (possibilidade da EaD em caráter emergencial no ensino fundamental) e 87, §3º, II e III (criação, pela Administração Pública, de cursos presenciais ou a distância aos jovens e adultos insuficientemente escolarizados e programas de capacitação para professores, utilizando os recursos da educação a distância).

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Em sentido amplo, trabalhou o legislador constitucional, ao abordar a educação como uma garantia de todos. A Educação a Distância está totalmente inserida nesse contexto, principalmente porque prima pela democratização do ensino, uma vez que a acessibilidade é sua principal característica. No entanto, embora a EaD integre o sistema educativo, ainda não substitui formas clássicas de educação e não pode ser tida como um processo autônomo6, como adverte Delors (p. 188).

EaD na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) No contexto de um Estado Democrático, as leis surgem como importantes fontes da ordem jurídica. O princípio da legalidade aponta para o fato de que a lei precisa ser preexistente, para modular os casos concretos da sociedade contemporânea (anterioridade). Na visão de Tartuce (2014, p. 21) “a lei não é o teto para as interpretações jurídicas, mas o seu piso mínimo”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional7 de 20 de dezembro de 1996 (Lei n. 9.394 - LDB) é um marco legislativo importante para a prospecção da EaD no Brasil, mais especificamente o artigo 80 aduz que: “O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada”. 6

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Notadamente na educação infantil, como assevera MORAN (2013, p. 2): “As crianças, pela especificidade de suas necessidades de desenvolvimento e socialização, não podem prescindir do contato físico, da interação. Mas nos cursos médios e superiores, o virtual, provavelmente, superará o presencial”. Também conhecida como Lei Darcy Ribeiro, em razão das manobras que o então Senador fez para aprovar o projeto da sua autoria, desconsiderando projeto (PLC 101/93) elaborado a partir de longos anos de debates da sociedade civil, educadores e profissionais ligados à educação.

EaD no Decreto 5.622 de 19 de dezembro de 2005 Decretos são produções normativas da competência do Chefe do Poder Executivo (art. 84, VI, da CF/88). Todo decreto deve se subordinar total e literalmente à letra da lei, ou seja, é “reservado, limitado e controlado pelo texto da lei” (Barbosa, 2003, p. 33). O Decreto 5.622/2005 conceitua a Educação a Distância em seu artigo inaugural: Art. 1o Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos. (grifou-se)

Pela leitura do artigo acima transcrito, depreende-se que a Educação a Distância (EaD) rompe o obstáculo da limitação no que diz respeito à ambientação, podendo ser extraídas duas características que marcam sua diferença em relação à Educação Presencial: 1ª. Professores e alunos em lugares diversos; 2ª. Professores e alunos poderem estar em tempos diversos (Delors, 2001, p. 186-189). Observe que a primeira característica estará sempre presente na EaD. A segunda característica pode ser ou não verificada, uma vez que alguns cursos são exibidos em tempo real aos alunos, através de conferência, ou seja, de forma síncrona. O § 1o do artigo 1º do Decreto 5.622/2005 preceitua a obrigatoriedade de momentos presenciais na EaD para (i) avaliações de estudantes; (ii) estágios obrigatórios, quando previstos na legislação pertinente; (iii) defesa de trabalhos de conclusão de curso, quando previstos na legislação pertinente; e (iv) atividades relacionadas a laboratórios de ensino, quando for o caso.

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Convém destacar que o referido diploma restringe a oferta da educação a distância à educação básica, desde que em conformidade com o artigo 30 do Decreto; à educação de jovens e adultos, nos termos do art. 37 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996; à educação especial, respeitadas as especificidades legais pertinentes; à educação profissional, abrangendo os seguintes cursos e programas técnicos, de nível médio e tecnológicos, de nível superior e à educação superior, abrangendo os cursos sequenciais, de graduação, de especialização, de mestrado e de doutorado. Outro ponto importante que trata o Decreto 5.622/2005 é o credenciamento para a oferta de cursos e programas na modalidade a distância por instituições públicas e privadas (art. 9º e ss). O artigo 12 traz o rol dos requisitos para formalização do pedido de credenciamento junto ao órgão responsável:

O Decreto, assim como os Referenciais de Qualidade (documento adiante abordado), disciplina sobre projetos pedagógicos de cursos e programas na modalidade a distância, que, segundo o artigo 13, devem:

I - habilitação jurídica, regularidade fiscal e capacidade econômicofinanceira, conforme dispõe a legislação em vigor; II - histórico de funcionamento da instituição de ensino, quando for o caso; III - plano de desenvolvimento escolar, para as instituições de educação básica, que contemple a oferta, a distância, de cursos profissionais de nível médio e para jovens e adultos; IV - plano de desenvolvimento institucional, para as instituições de educação superior, que contemple a oferta de cursos e programas a distância; V - estatuto da universidade ou centro universitário, ou regimento da instituição isolada de educação superior; VI - projeto pedagógico para os cursos e programas que serão ofertados na modalidade a distância; VII - garantia de corpo técnico e administrativo qualificado; VIII - apresentar corpo docente com as qualificações exigidas na legislação em vigor e, preferencialmente, com formação para o trabalho com educação a distância; IX - apresentar, quando for o caso, os termos de convênios e de acordos de cooperação celebrados entre instituições brasileiras e suas co-signatárias estrangeiras, para oferta de cursos ou programas a distância; X - descrição detalhada dos serviços de suporte e infraestrutura adequados à realização do projeto pedagógico, relativamente a: a) instalações físicas e infraestrutura tecnológica de suporte e atendimento remoto aos estudantes e professores; b) laboratórios científicos, quando for o caso; c) pólo de apoio presencial é a unidade operacional, no País ou no exterior, para o desenvolvimento descentralizado de atividades pedagógicas e administrativas relativas aos cursos e programas ofertados a distância; d) bibliotecas adequadas, inclusive com acervo eletrônico remoto e acesso por meio de redes de comunicação e sistemas de informação, com regime de funcionamento e atendimento adequados aos estudantes de educação a distância.

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I - obedecer às diretrizes curriculares nacionais, estabelecidas pelo Ministério da Educação para os respectivos níveis e modalidades educacionais; II - prever atendimento apropriado a estudantes portadores de necessidades especiais; III - explicitar a concepção pedagógica dos cursos e programas a distância, com apresentação de: a) os respectivos currículos; b) o número de vagas proposto; c) o sistema de avaliação do estudante, prevendo avaliações presenciais e avaliações a distância; e d) descrição das atividades presenciais obrigatórias, tais como estágios curriculares, defesa presencial de trabalho de conclusão de curso e das atividades em laboratórios científicos, bem como o sistema de controle de frequência dos estudantes nessas atividades, quando for o caso.

Observa-se que o Decreto 5.622/2005 se preocupou em trazer critérios técnicos para elaboração do projeto pedagógico de curso EaD e faz parte do conjunto de normas que regulamentam a EaD. Seu destaque maior se dá pelo fato de que foi criado com o objetivo de regulamentar o artigo 80 da Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases)8. Outro decreto de relevo na seara da EaD é o de n. 5.773/2006, que discorre sobre credenciamento de cursos. Apesar de não ser norma específica para regulamentação da EaD brasileira, o Decreto 5.773/2006 se refere a esta quando dispõe sobre a Oferta de Cursos, Autorização, Reconhecimento, Credenciamento e Descredenciamento dos cursos na modalidade EaD, sejam de instituições públicas ou privadas.

Referenciais de qualidade para Educação Superior a Distância (2007) Não é suficiente garantir a educação, sem assegurar também que a mesma seja eficiente e de qualidade. O artigo 206, VII da Constituição Federal, dispõe que o ensino deve ser ministrado com base, entre outros, no princípio da “garantia de padrão de qualidade”. Como forma de dar cumprimento ao preceito constitucional do direito social à educação, o Ministério da Educação (MEC) tem incentivado a expansão da EaD, especialmente na educação superior, o que ficou evidenciado pela criação de órgão específico para fiscalização e regulamentação da modalidade: a 8

Revogou o Decreto n. 2.494/98, que regulamentava o art. 80 da LDB.

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Secretaria Especial de Educação a Distância9 (SEED), extinta em 201110, que, com a participação de especialistas da área, universidades e da sociedade em geral, expediu o documento intitulado Referenciais de Qualidade para a Educação Superior a Distância, ainda vigente (Serra, Oliveira e Mourão, 2013, p. 6). A primeira versão desse documento foi elaborada em 2003, mas, diante do avanço da modalidade, em 2007, houve a necessidade de atualização por comissão de especialistas, que após democrática consulta pública, recebidas mais de 150 sugestões e críticas, transformou-se no documento publicado em agosto de 200711, que, embora não seja lei específica e nem tenha o rigorismo formal de um documento legislativo12, ganhou força como principal instrumento norteador da criação, desenvolvimento da EaD e atos legais do poder público, como expõe em sua apresentação (MEC, 2007, p. 2):

Serra, Oliveira e Mourão (2013, p. 6-7), observam que o documento esclarece que essas dimensões não se constituem em entidades isoladas, mas se interpenetram e se desdobram em novos entes. Tal forma de constituição remete à noção de sistema como um conjunto de partes interagentes e coordenadas, que formam um todo unitário para atingir pelo menos um objetivo. Cabe advertir que cada item está minuciosamente descrito no documento, de forma que os responsáveis pela implementação e gestão da Educação a Distância devem seguir o passo a passo descrito aí incluído que norteia seguramente a criação e desenvolvimento de cursos a distância, amparado em legislações esparsas sobre o tema. Ressaltam Aragón, Menezes e Novak (2013, p. 4) que a proposta pedagógica deve “enfatizar a importância da “presença” nos processos de formação a distância, destacando a interação como a forma privilegiada de “encurtar distâncias” e evitar a sensação de isolamento que se tem mostrado um dos principais fatores da evasão”. Embora tanto o Decreto 5622/2005 como os Referenciais de qualidade disponham sobre o projeto pedagógico, os documentos não são antagônicos; pelo contrário, são complementares. Os referenciais abordam o assunto sob o enfoque da qualidade (como equipe e material didático), enquanto o decreto se preocupa com dados mais técnicos que envolvem o oferecimento do curso (como observância às diretrizes legais, descrição de atividades, quantitativo de vagas). Não obstante o documento Referenciais de Qualidade não seja classificado como legislação formal, este recebe status de lei, uma vez que é reconhecido e citado pela legislação especial, como ocorre com o artigo 7º, Parágrafo Único e 10, §4º, ambos do Decreto 5.622 de 2005, que será adiante abordado.

Embora seja um documento que não tem força de lei, ele será um referencial norteador para subsidiar atos legais do poder público no que se referem aos processos específicos de regulação, supervisão e avaliação da modalidade citada. Por outro lado, as orientações contidas neste documento devem ter função indutora, não só em termos da própria concepção teórico-metodológica da educação a distância, mas também da organização de sistemas de EaD.

O documento também orienta a elaboração do Projeto Político Pedagógico de um curso na modalidade a distância que deve conter, expressamente, os seguintes requisitos, elencados nos Referenciais de qualidade (p. 7 e 8): (i) Concepção de educação e currículo no processo de ensino e aprendizagem; (ii) Sistemas de Comunicação; (iii) Material didático; (iv) Avaliação; (v) Equipe multidisciplinar; (vi) Infraestrutura de apoio; (vii) Gestão AcadêmicoAdministrativa; (viii) Sustentabilidade financeira. A Secretaria Especial de Educação a Distância tinha sua competência definida no Decreto 5.773/2006. 10 A extinta Secretaria Especial de Educação a Distância (SEED) teve suas atividades absorvidas pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres), criada em 17/4/2011 pelo Decreto nº 7.480/2011, como “unidade do Ministério da Educação responsável pela regulação e supervisão de Instituições de Educação Superior (IES), públicas e privadas, pertencentes ao Sistema Federal de Educação Superior; e cursos superiores de graduação do tipo bacharelado, licenciatura e tecnológico, e de PósGraduação lato sensu, todos na modalidade presencial ou a distância”. Brasil. Ministério da Educação. Apresentação Seres. Disponível em: . Acessado em 20 ago. 2015. 11 Conforme relatado no portal do Mec. Disponível em: . Acessado em: 20 ago. 2015. 12 Não consistir em lei é uma vantagem dos Referenciais de qualidade, uma vez que o processo legislativo no Brasil é demasiadamente demorado e, com essa dinâmica, o documento está sempre apto a acompanhar a evolução da EaD por meio de atualização que envolvam debates com a participação da sociedade, universidades e especialistas no setor, o que condiz muito mais com a dinâmica que se espera dessa modalidade de ensino. 9

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Resolução das Diretrizes e Normas Nacionais para a oferta de Programas e Cursos de Educação Superior na Modalidade a Distância – Marco Regulatório da EaD O novo Marco Regulatório para a Educação a Distância (processo n. 23001.000022/2013. Parecer CNE/CES Nº: 564/2015)13 do Conselho Nacional de Educação (CNE), visa, através da nova Resolução, estabelecer Diretrizes Nacionais para a oferta de Cursos e Programas de Educação a Distância 13

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO SÚMULA DO PARECER CNE/CES 564/2015. REUNIÃO ORDINÁRIA DOS DIAS 7, 8, 9 e 10 DE DEZEMBRO /2015. CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR. Processo: 23001.000022/2013-98. Parecer: CNE/CES 564/2015. Comissão: Luiz Roberto Liza Curi (presidente), Luiz Fernandes Dourado (relator), Gilberto Gonçalves Garcia, José Eustáquio Romão, Márcia Angela da Silva Aguiar, Sérgio Roberto Kieling Franco e Yugo Okida Interessado: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior (CES). Assunto: Diretrizes e Normas Nacionais para a oferta de Programas e Cursos de Educação Superior na Modalidade a Distância Voto da comissão: Ao aprovar este Parecer e o Projeto de Resolução das Diretrizes e Normas Nacionais para a oferta de Programas e Cursos de Educação Superior na Modalidade a Distância, em anexo, a Comissão submete-os à Câmara de Educação Superior para decisão. Decisão da Câmara: APROVADO por unanimidade. PUBLIQUE-SE Brasília, 18 de dezembro de 2015. Disponível em: . Acessado em: 08 fev. 2016.

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na Educação Superior, bem como a base para as políticas e processos de avaliação e de regulação dos cursos e das Instituições de Educação Superior nos âmbito dos sistemas de educação, conforme artigo 1° do projeto da Resolução, aprovado em 18 de dezembro de 2015, que encontra-se em fase de homologação pela Câmara de Educação Superior14. A Resolução aperfeiçoa a definição da EaD no artigo 2º, caracterizando-a como: modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica, nos processos de ensino e aprendizagem, ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, políticas de acesso, acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, de modo que se propicie, ainda, maior articulação e efetiva interação e complementariedade entre a presencialidade e a virtualidade “real” o local e o global, a subjetividade e a participação democrática nos processos ensino e aprendizagem em rede, envolvendo estudantes e profissionais da educação (professores, tutores e gestores), que desenvolvem atividades educativas em lugares e/ou tempos diversos.

O projeto da Resolução foi amplamente debatido, especialmente no que diz respeito aos parâmetros para a oferta da Educação a Distância pelas IES, inclusive em nível de Pós-Graduação lato e stricto sensu, em razão da necessidade de adaptação às novas realidades tecnológicas e de ensino-aprendizagem, surgidas após o decreto nº 5.622/2005, que estabeleceu as diretrizes e bases da EAD. O Marco Regulatório da Educação a Distância chancela o documento Referenciais de Qualidade, aludindo-o em diversos dispositivos, como os artigos 2°, §3°, IV; 16, II e 26, §2°. Outro ponto, que cumpre destacar, é que o Marco Regulatório dá suporte ao Plano Nacional de Educação15 com vigência até 2024 (Lei n. 13.005 de 25 de junho de 2014), ao qual a meta número 12 propõe elevar a taxa de matrícula na educação superior para 33% da população de 18 a 24 anos. Uma das estratégias do PNE é ampliar os benefícios destinados à concessão de financiamento do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior – FIES e do Programa Universidade para Todos – PROUNI aos estudantes regularmente matriculados em cursos superiores presenciais ou a distância (estratégia 12.20) e expandir a oferta de cursos de Pós-Graduação stricto sensu, com utilização de metodologias, recursos e tecnologias de educação a distância (Meta 14 e estratégia 14.4), razão pela qual o novo Marco Regulatório se apresenta como indispensável. Texto disponível no Portal do MEC:< http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro2015-pdf/31361-parecer-cne-ces-564-15-pdf/file>. Acessado em: 20 jan. 2016. 15 A EaD é mola propulsora para os resultados do PNE também em relação a outros níveis de ensino, visando ampliar o acesso à educação a educação de jovens e adultos (inclusive de comunidades indígenas e quilombolas), nos ensinos fundamental e médio (Meta 10 e estratégia 10.3) e, educação profissional técnica de nível médio (Meta 11 e estratégia 11.3). 14

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Considerações finais Observa-se a importância da Educação a Distância na sociedade contemporânea. Contudo, a pretexto da expansão e democratização em razão da acessibilidade que esta modalidade proporciona, não pode a mesma ser ofertada sem critério e planejamento pedagógico pelos gestores das instituições de ensino, culminando em seu desprestígio e descrédito. Pelo contrário, a “Educação”, em qualquer vertente, alcança dimensão capaz de ativar o macro princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e nessa órbita precisa ser alvo de constantes estudos e debates. Em breve panorama sobre a trajetória da EaD, observa-se que a mesma está inserida na sociedade desde que as informações puderam ser enviadas de um ponto a outro e na medida em que o estímulo para o ensino e aprendizagem foram sendo apurados pela humanidade, por várias gerações. Atualmente, em conceito voltado ao aspecto jurídico, pode-se definir a EaD como um recurso oferecido pela sociedade da informação, como exigência de um Estado Democrático de Direito, como forma de ampliar o acesso à Educação No Brasil, a valorização da Educação tem assento na Constituição da República Federativa do Brasil, vista como “Sol” capaz de iluminar todas as demais fontes normativas, em outras palavras, toda e qualquer lei deve passar pelo crivo constitucional, assim como deve pautar a atuação dos agentes públicos e particulares, especificando neste trabalho aqueles que lidam com a Educação, já que o próprio texto constitucional conclama o Estado e a família como responsáveis pelo exercício desse mister (artigo 205). Nesta seara, a EaD também precisa ser acolhida, aquecida e protegida, para não ser lançada no mercado como “forma menos custosa” e “mais abrangente” de oferecer um “curso qualquer”, de “qualquer coisa”. Outro marco legislativo importante para a EaD é a Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL,1996), que dispõe sobre o incentivo e desenvolvimento de programas de ensino a distância pelo Poder Público, apressando e colocando em pauta a necessidade de maior regulamentação neste segmento. Por essa razão, foi criado o documento intitulado Referenciais de Qualidade para Educação Superior a Distância (BRASIL, 2007), visando operacionalizar os atributos dos cursos que podem ser oferecidos nesta modalidade, contendo os requisitos mínimos para sua oferta, com todas as etapas detalhadas. Na verdade, este documento passou a representar mais do que guia ou manual para elaboração do Projeto Político Pedagógico de um curso na modalidade a distância: passou a ter status legislativo, com atributo de codificação, uma vez que seu conteúdo observa as legislações anteriores à sua criação, sendo citado por normas posteriores, como o Decreto nº 5.622 de 2005, que também disciplina sobre projetos pedagógicos de cursos e programas na modalidade a distância. Na busca por um resultado, pode-se destacar tal observação como o diferencial desta pesquisa.

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Fontes Normativas da Educação a Distância no Brasil

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Em sede legislativa, a EaD vem se destacando como estratégia para cumprimento do Plano Nacional de Educação e, mais especificamente em âmbito de ensino superior, a modalidade está prestes a adquirir novas diretrizes e normas para a oferta de Programas e Cursos, denominado novo Marco Regulatório para a Educação a Distância.

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Marcas de alto renome e a especial proteção conferida pelo Direito Brasileiro Allana Olmo Pinheiro Pinto1 Maria Luiza Firmiano Teixeira2 Resumo A relevância que as marcas adquiriram é um fato notório, na realidade de cada um, entretanto, alguns destes signos atingem relevância superior, é o caso das marcas de alto renome. Para atingir esta categoria, é imprescindível que a marca seja reconhecida por significativa parcela do público geral, o que demanda grande esforço por parte dos de seus titulares. No entanto, o regime protetivo conferido pela legislação brasileira tem demonstrado insuficiência na disciplina desta categoria, cabendo refletir sobre o verdadeiro conteúdo jurídico da proteção especial referida pela Lei de Propriedade Industrial, buscando alcançar um regime que valorize o investimento econômico realizado, bem como previna abusos e desvios da posição privilegiada. Abstract The relevance of the acquired brands is a notorious fact, the reality of each one, however, some of these signs achieve greater relevance in the case of highly reputed brands. To achieve this category, it is essential that the brand is recognized for a significant portion of the general public, which demand great effort on the part of their owners. However, the protective regime conferred by Brazilian law has proved insufficient in the course of this category, fitting to reflect on the true legal content of special protection referred to the Industrial Property Law, seeking to achieve a regime that values realized economic investment and prevent abuse and deviations from the privileged position.

Introdução As marcas, embora presentes nas sociedades humanas desde a Antiguidade como meio de indicar a proveniência de produtos agrícolas ou manufaturados, bem como meio de atestar sua qualidade e prestígio, somente passaram a ser pensadas como objeto de proteção a partir da modernidade – momento em que os avanços tecnológicos das indústrias e do processo produtivo alcançaram as mais diversificadas camadas da sociedade, permitindo que os fabricantes ou prestadores de serviço apresentassem produtos, ou prestassem serviços, com semelhantes padrões de qualidade. Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã CEP 20550-900 - Rio de Janeiro – RJ - ([email protected]) 2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais - Av. Luz Interior, 360, Estrela Sul - CEP 36030-776 - Juiz de Fora - MG - (marialuizaft@ gmail.com) 1

Marcas de alto renome e a especial proteção conferida pelo Direito Brasileiro

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Assim, aos poucos, sobressaiu-se a função individualizadora da marca como instrumento de diferenciação dos produtos ou serviços, por meio de palavras, sinais gráficos, símbolos ou, até mesmo, por sinais percebidos por outros sentidos humanos que não a visão. E, à medida que os avanços tecnológicos se intensificam e se difundem entre os fabricantes, prestadores de serviço e os próprios distribuidores, a marca, enquanto instrumento de individualização desses produtos ou serviços, alcança patamares ainda mais elevados, cercados de interesses econômicos e sociais, o que torna imprescindível a construção de um arcabouço protetivo. O conceito e as funções da marca são, ainda, mais extensos, abarcando aspectos como a indicação da qualidade do produto ou serviço, a função publicitária e o direito exclusivo de exploração da publicidade da marca, a função concorrencial e própria função de identificação do produto. O que torna, cada vez mais explícita, a relevância e a imprescindibilidade da marca na contemporaneidade. No Brasil, a proteção às marcas está prevista na Lei da Propriedade Industrial, que recepcionou, ainda, duas modalidades de proteção especial: as marcas notoriamente conhecidas e as marcas de alto renome. Como não constitui objeto deste artigo o estudo das marcas notoriamente conhecidas, deve-se ressaltar, apenas, que se trata de institutos distintos, assim, enquanto as marcas notoriamente conhecidas são aquelas “conhecidas pelo público relevante, consumidores do produto ou serviço assinalado pela marca, distribuidores, concorrentes e outros” (MORGADO; 2013), as marcas de alto renome são aquelas que se sobressaem das demais em razão da aquisição de excepcional reputação, de tal forma, que a Lei lhe concede proteção para além do segmento em que foi, inicialmente, registrada. E esta proteção se justifica em razão do significativo prejuízo a que estariam sujeitos os titulares da marca frente a possíveis ataques de concorrentes, visando o aproveitamento da fama e visibilidade da marca.

vinho famoso produzido no Lácio. No campo industrial podemos citar como exemplos a cerâmica de Arezzo, o mármore de Luni e o linho de Milão”3. É certo que as marcas, neste período, não possuíam caráter comercial, estando, nesse sentido, adstritas às funções de identificação e atribuição da qualidade do produto. Por conseguinte, não havia proteção jurídica de sua propriedade que conferisse direitos exclusivos de exploração pelo seu criador, e, assim, não havia impedimentos legais à usurpação ou imitação do signo da marca, bem como ao seu emprego indevido de modo a falsear a indicação de origem do produto. Assim, tutelava-se apenas o objeto assinalado pela marca, e não o processo inventivo e a criação que constituíram o signo marcário. Segundo, José Carlos ZEBULUM (2007), “não se discute que as marcas eram efetivamente utilizadas no período Romano, tanto pelo Estado, como por particulares. Também não se discute que já naquela época o homem convivia com a contrafação, e as imitações tinham livre curso”. Já na Idade Média, sobretudo, no período denominado Baixa Idade Média, a expansão do comércio, o surgimento das cidades, o fortalecimento e a consolidação das Corporações de Ofício intensificaram de tal forma as atividades comerciais que as marcas, pela primeira vez na história, passaram a ter uma denotação mercantil. Assim, neste primeiro momento, as marcas converteramse em um procedimento de controle de quantidade e qualidade dos produtos, muito embora, ainda não houvesse qualquer sistema jurídico protetivo. As diferentes marcas existentes à época, de propriedade, de garantia, de origem, de controle ou de comércio passaram a ser grafadas sob a atividade exercida, e, ainda, passaram a constar no registro geral da Corporação de Ofício – registro este que relacionava, além da marca, todos os oficiais inscritos, detalhando nome, filiação, data de admissão e eventual relação de sociedade (ZEBULUM; 2007); e, posteriormente, não poderiam ser inscritos novos sinais análogos. Assim, as marcas passaram a constituir verdadeiro elo entre o produtor, seja ele apenas um indivíduo ou uma Corporação, e o produto. Havia, também, nesse período, a obrigatoriedade de se registrar marcas individuais, que,

Marcas e Generalidades Evolução Histórica das Marcas

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As marcas, enquanto sinais distintivos de produtos agrícolas e manufaturados, tais como, animais, especiarias, armas, utensílios e produtos alimentícios em geral, restam presentes nas sociedades humanas desde a Antiguidade. Os símbolos, sinais e as siglas, comumente utilizados como expressões da marca, indicavam – de maneira semelhante às funções contemporâneas atribuídas às marcas – a origem do produto e atestavam sua qualidade e prestígio. Assim, as operações que envolviam a transferência da propriedade, seja por compra e venda, seja pela troca ou escambo, tornavam-se, pouco a pouco, mais seguras. A título de exemplificação, cumpre citar marcas que, ainda na Antiguidade, serviam como indicação da origem, qualidade e prestígio do produto, “o óleo Venafro; o vinho Falerno, célebre produto da Campânia, ou ainda o Cecubo,

com o passar dos tempos, tais marcas individuais obrigatórias acabaram por se transformar em marcas que representavam a excelência e a boa qualidade dos produtos com o que assumiram função tipicamente concorrencial, com os produtos aceitos e acreditados em função da marca que ostentavam, exatamente como ocorre nos tempos atuais (ZEBULUM; 2007).

Portanto, nesse período é que a concepção de marcas adquire maior relação com os conceitos modernos e contemporâneos, sobretudo, com relação à individualização, à garantia de qualidade e à distinção com relação aos demais produtos e produtores. 3

ZEBULUM, José Carlos. Introdução às marcas. Revista da Escola da Magistratura Regional Federal – Tribunal Regional Federal 2ª região. Cadernos temáticos – propriedade industrial. Rio de Janeiro: EMARF – TRT 2ª região, 2007.

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Na concepção de José Benedito PINHO (1996), o uso pioneiro da marca como elemento de diferenciação do produto ocorreu já no século XIX, com a introdução da marca Old Smuggler, que designava uma linha de uísque que passava por um processo especial de destilação. Nos séculos XVI e XVII e XVIII, no entanto, as marcas já haviam evoluído significativamente, seja com relação aos signos e símbolos utilizados – que passaram a ser mais explorados criativamente –, seja com relação à garantia de origem e qualidade, cada vez conferindo aos clientes mais segurança e certeza quando da aquisição do produto. Até porque, com o advento da Revolução Industrial, no século XVIII, o processo produtivo passou por inúmeras transformações, alcançando dimensões, até então, nunca vistas. Os produtos passaram a ser produzidos em série, em largas quantidades e em um curto espaço de tempo, experimentando uma maciça uniformidade, que, logo, ensejou a necessidade de diferenciação para angariar maiores mercados consumidores, e, consequentemente, maiores lucros. Nos primeiros anos do século XIX, datam-se as primeiras experiências legislativas com relação à proteção e registro das marcas. A primeira lei francesa de marcas data de 12 de abril de 1803 e, embora tenha sido elaborada de acordo com os parâmetros de produção medievais, já apresenta algumas características condizentes com a feição moderna das marcas, a saber: proteção legal conferida ao titular da marca mediante o depósito de exemplar no Tribunal de Comércio e punição de contrafação de marcas particulares através do pagamento de indenização ao titular. Posteriormente, foram editadas as seguintes leis, todas tratando de matéria atinente às marcas comerciais: a lei orgânica francesa de 23 de junho de 1857, a lei italiana de 30 de agosto de 1868, as leis inglesas de 25 de agosto de 1883 e de 23 de agosto de 1887, esta última regulando tema voltado a marcas fraudulentas. A primeira lei norte-americana a respeito do assunto foi editada em 03 de março de 1881 (ZEBULUM; 2007).

No Brasil, a primeira legislação no âmbito do direito marcário foi a Lei 2.682, editada em 23 de outubro de 1875. Ao analisar o texto legal, Douglas Gabriel Domingues (1984) relata que a lei protegia apenas o fabricante do produto ou o seu vendedor e com a marca somente podiam ser assinaladas as mercadorias entregues ao comércio. A marca utilizada pelos comerciantes e industriais para assinalar seus produtos e diferenciá-los de artigos de outra procedência podia consistir da firma ou da razão social da empresa, no nome do fabricante revestido de forma distintiva, e ainda em quaisquer outras denominações, emblemas, selos, sinetes, carimbos, relevos, invólucros de toda espécie, que possam distinguir os produtos da fábrica ou os objetos do comércio.

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Com relação ao registro, cumpre mencionar que, assim como verificado nos dias atuais, a propriedade do signo marcário somente era reconhecida e, efetivamente, protegida pelo Estado a partir do momento em que se tornava público o registro. Nesse sentido, estabelecia a Lei que:

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Art. 2º Ninguem poderá reivindicar por meio da acção desta lei a propriedade exclusiva da marca, sem que previamente tenha registrado no Tribunal ou Conservatoria do Commercio de seu domicilio o modelo da marca, e publicado o registro nos jornaes em que se publicarem os actos officiaes (BRASIL; 1875).

Com o desenvolvimento das indústrias e comércios, algumas marcas alcançaram tamanho reconhecimento que ultrapassaram as barreiras nacionais, expandindo-se internacionalmente, de maneira a consolidar relações comerciais com distintos países. A partir deste fenômeno, difundiu-se a necessidade de uniformização internacional do Direito, sobretudo, do Direito Marcário, tendo em vista que as legislações nacionais, muitas vezes, estabeleciam requisitos distintos de proteção, maior ou menor extensão da proteção com relação ao objeto do direito, dentre outras variáveis, que acabavam por embaraçar as relações comerciais à medida que fabricantes exportadores ficavam vulneráveis às imitações e à contrafação. Diante disso, no de 1883, realizou-se a Convenção da União de Paris, um congresso internacional que buscava a uniformização de normas protetivas com relação aos direitos de invenção e às marcas. Dentre as normas estabelecidas, destacam-se: l Aquele que tiver devidamente apresentado pedido [...] de registro de marca de fábrica ou de comércio num dos países da União, ou o seu sucessor, gozará, para apresentar o pedido nos outros países, do direito de prioridade; l Para a declaração de prioridade nenhuma outra formalidade poderá ser exigida no momento de apresentação do pedido; l Qualquer marca de fábrica ou de comércio regularmente registrada no país de origem será admitida para registro e protegida na sua forma original nos outros países da União; l Os países na União, nos termos da sua lei interna, concederão proteção temporária [...] às marcas de fábrica ou de comércio, para produtos que figurarem nas exposições internacionais oficiais ou reconhecidas oficialmente, organizada no território de qualquer deles (CONVENÇÃO DE PARIS PARA A PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL; 1883).

Desde 1884, o Brasil é signatário da Convenção da União de Paris, que já passou por seis revisões, sendo a última realizada em Estocolmo, na data de 14 de julho de 1967. Especificamente com relação às legislações brasileiras acerca do direito marcário, tem-se o Decreto Lei nº 7.903, de 27 de agosto de 1945, que instituiu o primeiro Código da Propriedade Industrial brasileiro, que consagrou a concessão de marcas de indústria, comércio e de serviços, de nomes comerciais, de títulos de estabelecimentos, insígnias comerciais ou profissionais, de expressão ou sinais de propaganda, e a repressão à concorrência desleal e aos crimes em matéria de propriedade industrial (BRASIL; 1945).

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Posteriormente, foi substituído pelo Decreto Lei nº 254, de 28 de fevereiro de 1967, que estabeleceu os requisitos para a proteção da marca de serviço e, de forma especial, para as marcas notoriamente conhecidas, além de incluir um anexo com a classificação dos produtos e serviços para o registro das marcas de indústria e de comércio. Em seguida, tem-se o Decreto Lei nº 1005, de 21 de outubro de 1969, vigente por um breve período, e logo revogado pelo Código da Propriedade Industrial de 1971 (Lei nº 5.772, de 21 de dezembro de 1971) que emana do Poder Legislativo, ao contrário dos três primeiros, originários do Executivo. Mais tarde, em 1996, finalmente, foi editada a Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, em vigência, que regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial no Brasil (ZEBULUM; 2007).

facultativamente aos produtos e artigos das indústrias em geral para identificálos e diferenciá-los de outros idênticos ou semelhantes de origem diversa”. Pelo que se pode constatar após a leitura e análise dos conceitos transcritos, é imprescindível que a marca seja dotada de um símbolo, um sinal ou uma palavra com características que permitam a identificação do produto ou serviço e o diferencie de outros concorrentes.

O Conceito de Marca Consoante a Lei de Propriedade Industrial, no artigo 122, “são suscetíveis de registro como marca os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais” (BRASIL; 1996). Conforme observado por José Carlos ZEBULUM (2007), a lei, ao dispor com tamanha amplitude o conceito de marcas, contrariou, de certa forma, a tradição dos Códigos outrora vigentes no Brasil. Entretanto, já no artigo 123, a Lei inovou ao prever expressamente a marca de certificação – utilizada para atestar a conformidade de um produto ou serviço com determinadas normas ou especificações técnicas, notadamente quanto à qualidade, natureza, material utilizado e metodologia empregada –, e a marca coletiva – utilizada para identificar produtos ou serviços provindos de membros de uma determinada entidade. José Carlos Tinoco SOARES (1997) ensina que a marca é o sinal gráfico, figurativo ou de qualquer natureza isolado ou combinado e que se destina à apresentação do produto e/ou do serviço ao mercado. Por isso que deve ser distinta, especial e inconfundível. Consistindo a marca num sinal qualquer, e empregada esta palavra genericamente, subentende-se que a marca é Tudo, dispensando-se assim qualquer forma enumerativa, exemplificativa ou restritiva. Este sinal comumente se apresenta de forma gráfica, tendo por objeto a letra, sílaba, palavra, conjunto de palavras; o número ou conjunto de números, o risco, traço, conjunto de riscos e de traços; a sua forma figurativa ou ainda o conjunto das primeiras com esta última.

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Segundo Phillip KOTLER (2000), a marca “é um nome, termo, símbolo, desenho – ou uma combinação desses elementos – que deve identificar os bens e serviços de uma empresa ou grupo de empresas e diferenciá-las da concorrência”. Finalmente, consoante a concepção de João da Gama CERQUEIRA (1946), marcas de fábrica e de comércio são “todo sinal distintivo aposto

Funções da Marca Dentre as funções das Marcas, consagradas pela Doutrina, cumpre ressaltar a indicação de origem dos produtos ou serviços; a garantia de qualidade; e propaganda ou publicidade (DOMINGUES; 1984). Na concepção de Gabriel DI BLASI (2002), Generalizando, marca é um sinal que permite distinguir produtos industriais, artigos comerciais e serviços profissionais de outros do mesmo gênero, da mesma atividade, semelhantes ou afins, de origem diversa. É para o seu titular o meio eficaz para a constituição de uma clientela. Para o consumidor representa a orientação para a compra de um bem, levando em conta fatores de proveniência ou notórias condições de boa qualidade e desempenho. Além disso, a marca atua como um veículo de divulgação, formando nas pessoas o hábito de consumir um determinado bem material, induzindo preferências através do estímulo ocasionado por uma denominação, palavra, emblema, figura, símbolo ou outro sinal distintivo. É, efetivamente, o agente individualizador de um produto, de uma mercadoria ou de um serviço, proporcionando à clientela uma garantia de identificação do produto ou serviço de sua preferência. A marca pode exercer múltiplas funções. Entre outras, proporcionar ao seu titular o direito, através de medidas administrativas e judiciais, de agir contra o seu uso indevido, ou não autorizado, por parte de concorrentes desleais. Auxilia o adquirente (comprador) na operação de compra impelindo-o a reclamar o produto identificado pela marca e não o sucedâneo apresentado pelo vendedor. Em seu amplo sentido, a marca pretende diferenciar e divulgar um bem material, informando e persuadindo as pessoas a comprá-lo.

Em outras palavras, com relação à função de indicação de origem dos produtos e serviços, as marcas efetuam a distinção dos produtos e serviços, disponibilizados no mercado, daqueles de procedência diversa. No que toca à garantia de qualidade, uma vez identificada, a marca possibilita que o consumidor conheça as características intrínsecas ao produto ou serviço e, por isso, usufrua da qualidade inerente à determinada marca. Finalmente, a terceira função, de propaganda ou publicidade do produto ou serviço, está diretamente relacionado à vinculação da marca aos veículos de publicidade e propaganda.

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As marcas de alto renome: conceito e distinções A primeira evidência da marca de alto renome na legislação esteve disposta no artigo 67, do antigo Código de Propriedade Industrial, que assim estabelecia: Art. 67. A marca considerada notória no Brasil, registrada nos têrmos e para os efeitos dêste Código, terá assegurada proteção especial, em tôdas as classes, mantido registro próprio para impedir o de outra que a reproduza ou imite, no todo ou em parte, desde que haja possibilidade de confusão quanto à origem dos produtos, mercadorias ou serviços, ou ainda prejuízo para a reputação da marca. (BRASIL;1971)

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Na redação desde dispositivo há, contudo, uma grave imprecisão terminológica e conceitual, vez que confunde o instituto das marcas notórias com as marcas de alto renome. A primeira, prevista pela Convenção da União de Paris, designa a marca conhecida do público relevante, sejam eles consumidores do produto, ou serviço, assinalado por ela, ou, ainda, distribuidores, concorrentes e outros. A característica mais relevante da marca notoriamente conhecida era o destaque em determinado segmento do mercado, independentemente do território. A proteção se estendia aos segmentos similares, que podem causar confusão. A marca de alto renome, ao contrário tem proteção restrita ao território do registro, abrangendo, porém, todos os ramos de atividade e não apenas um segmento. A notoriedade de uma marca, assim como seu alto renome, em razão da ausência de uma regulamentação clara acerca do tema, foi reconhecida com relativa dificuldade, já que as legislações existentes – apesar de garantirem uma proteção diferenciada – não indicavam o modo, nem a abrangência das distinções destas marcas em relação àquelas protegidas de forma comum. No ano de 1996, foi editada a Lei de Propriedade Industrial (LPI), vigente até os dias atuais, que dispôs, singelamente, sobre as marcas de alto renome: “Art. 125. A marca registrada no Brasil considerada de alto renome será assegurada proteção especial, em todos os ramos de atividade” (BRASIL, 1996). No entanto, somente em 2004, diante da Resolução nº 110, editada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), foram colocadas as primeiras regras para a obtenção da marca de alto renome – posteriormente revogada pela Resolução nº 121/2005. A notoriedade, por sua vez, continuou a cargo dos tratados internacionais, mas não constitui objeto deste trabalho. Vale ressaltar que a legitimidade das Resoluções emitidas pelo INPI foi questionada no Recurso Especial nº 1.162.281, julgado em 2013, pelo Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, o referido Tribunal reconheceu que cabe à autarquia a tarefa de complementar o disposto no artigo 125 da LPI, mas observou que as regulamentações, até então, exaradas não o fazia de forma completa, e constatou, por consequência, a existência de omissão legislativa. A crítica do Tribunal se referia à falta de previsão quanto à solicitação direta do

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reconhecimento de alto renome de determinada marca. Isto porque, no bojo das resoluções editadas, somente era possível requerer a declaração de alto renome em sede de defesa: Resolução nº 121/05, Art. 3º A proteção especial conferida pelo art. 125 Art. 3º da LPI deverá ser requerida ao INPI, pela via incidental, como matéria de defesa, quando da oposição a pedido de registro de marca de terceiro ou do processo administrativo de nulidade de registro de marca de terceiro que apresente conflito com a marca invocada de alto renome, no INPI, nos termos e prazos previstos nos arts. 158, caput, e 168 da LPI, respectivamente. (INPI; 2005)

Provavelmente, incitado pela decisão do Superior Tribunal de Justiça, no mesmo ano, o INPI promulgou a Resolução nº 23, posteriormente, revogada pela resolução de nº 107/2013. De acordo com a nova normativa, é possível requerer, de forma direta, o registro de alto renome: Para efeitos desta Resolução, considera-se de alto renome a marca registrada cujo desempenho em distinguir os produtos ou serviços por ela designados e cuja eficácia simbólica levam-na a extrapolar seu escopo primitivo, exorbitando, assim, o chamado princípio da especialidade, em função de sua distintividade, de seu reconhecimento por ampla parcela do público, da qualidade, reputação e prestígio a ela associados e de sua flagrante capacidade de atrair os consumidores em razão de sua simples presença. (INPI; 2013)

Os requisitos e o processo para obtenção do alto renome é o que veremos no próximo item deste trabalho

Os requisitos para a obtenção Pelo conceito legal exposto, a característica básica e, portanto, requisito para a obtenção da marca de alto renome é, exatamente, a demonstração de que sua abrangência e sua capacidade de diferenciação supera a classe na que a marca se encontra inserida. Entretanto, outros requisitos são necessários. Na redação da Resolução nº 23, não havia previsão expressa acerca dos requisitos, mas um extenso rol de provas possíveis para demonstrar que se tratava de marca de alto renome: 1) data do início do uso da marca no Brasil; 2) público usuário ou potencial usuário dos produtos ou serviços a que a marca se aplica; 3) fração do público usuário ou potencial usuário dos produtos ou serviços a que a marca se aplica, essencialmente pela sua tradição e qualificação no mercado, mediante pesquisa de opinião ou de mercado ou por qualquer outro meio hábil; 4) fração do público usuário de outros segmentos de mercado que, imediata e espontaneamente, identifica a marca com os produtos ou serviços a que ela se aplica, mediante pesquisa de opinião ou de mercado ou por qualquer outro

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meio hábil; 5) fração do público usuário de outros segmentos de mercado que, imediata e espontaneamente, identifica a marca essencialmente pela sua tradição e qualificação no mercado, mediante pesquisa de opinião ou de mercado ou por qualquer outro meio hábil; 6) meios de comercialização da marca no Brasil; 7) amplitude geográfica da comercialização efetiva da marca no Brasil e, eventualmente, no exterior; 8) extensão temporal do uso efetivo da marca no mercado nacional e, eventualmente, no mercado internacional; 9) meios de divulgação da marca no Brasil e, eventualmente, no exterior; 10) extensão temporal da divulgação efetiva da marca no Brasil e, eventualmente, no exterior; 11) valor investido pelo titular em publicidade/propaganda da marca na mídia brasileira nos últimos 3 (três) anos; 12) volume de vendas do produto ou a receita do serviço nos últimos 3 (três) anos; 13) valor econômico da marca no ativo patrimonial da empresa. (INPI; 2013)

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Já a Resolução nº 107, em seu art. 3º, enumerou os requisitos do reconhecimento de alto renome, quais sejam: “I. Reconhecimento da marca por ampla parcela do público em geral; II. Qualidade, reputação e prestígio que o público associa à marca e aos produtos ou serviços por ela assinalados; e III. Grau de distintividade e exclusividade do sinal marcário em questão” (INPI; 2016). Além disso, manteve a indicação dos meios de prova indiciários dessa característica. O primeiro requisito exige, evidentemente, que a marca seja lembrada por parcela significativa do público. Na própria resolução do INPI, no §1º do art. 4º, sugere-se que essa comprovação seja feita por pesquisa de mercado. O segundo requisito refere-se à demonstração das características positivas conhecidas pelo público em geral, neste aspecto, a norma sugere que o requerente apresente pesquisa de imagem da marca com abrangência nacional. Esta exigência pode causar certa estranheza, pela proximidade com a anterior. Entretanto, a marca de alto renome deve demonstrar maior capacidade de distinção e atração de consumidores, e, daí a necessidade de comprovar a boa reputação junto ao público em gral. Não basta apenas que a marca seja conhecida, é preciso que ela seja associada a características positivamente distintivas. O requisito terceiro, que abrange a prova do grau de distintividade e exclusividade, possui natureza complementar à medida que estabelece que a marca de alto renome deve, necessariamente, possuir maior grau de diferenciação que uma marca comum, e uma designação simbólica mais exclusiva. Observese, ainda, que designação simbólica da marca que se pretende declarar de alto renome pode, quando da solicitação, possuir símbolos similares ou até iguais, em outros ramos, cabendo, nestes casos, perquirir o grau de diferenciação exercido pela marca no mercado, bem como sua exclusividade no contexto das marcas registradas. Esta situação, no entanto, suscita dúvidas acerca das consequências para terceiros da declaração de alto renome. Para a análise do requerimento de alto renome, deverá ser composta comissão especial, que emitirá parecer circunstanciado sobre o pedido, podendo

Allana Olmo Pinheiro Pinto e Maria Luiza Firmiano Teixeira

determinar exigências para o prosseguimento do feito. Caberá ao presidente da comissão o julgamento final. De acordo com o INPI, até agosto de 2015, estavam em trâmite 196 petições, na forma de impugnação, e 21 requerimentos de reconhecimento de alto renome. Atualmente, a lista das marcas de alto renome conta com 13 contempladas.

Os efeitos do reconhecimento Os efeitos do reconhecimento do alto renome são tratados pela Doutrina de forma escassa. No entanto, a questão é pertinente, sobretudo, porque a Lei é bastante sucinta com relação ao tema, estabelecendo, apenas, que: “a marca registrada no Brasil considerada de alto renome será assegurada proteção especial, em todos os ramos de atividade” (BRASIL;1996). Portanto, cumpre perquirir, neste trabalho, o significado de “proteção especial”, isto é, quais direitos especiais são garantidos à marca de alto renome em relação às demais marcas. A primeira hipótese passível de consideração diz respeito ao impedimento de novos registros, do mesmo símbolo ou nome, em qualquer das classes existentes. Ou seja, uma vez declarada de alto renome, pelo seu destaque entre os consumidores, nenhuma outra marca poderia ser registrada com aquela simbologia ou escrita. Parece ser este, o efeito que a Resolução 107 do INPI destaca: Art. 1º, §1º O disposto no art. 125 da LPI destina-se a possibilitar a proteção da marca considerada de alto renome contra a tentativa de terceiros de registrar sinal que a imite ou reproduza, ainda que ausente a afinidade entre os produtos ou serviços aos quais as marcas se destinam, a fim de coibir as hipóteses de diluição de sua capacidade distintiva ou de seu aproveitamento parasitário (INPI; 2013).

Entretanto, é imperioso perquirir se seria somente essa a proteção especial conferida pela lei, vez que, para alcançar o alto renome, a marca deve demonstrar um destaque ímpar, e um reconhecimento de suas qualidades e reputação, não somente no segmento dos seus consumidores, mas por parcela significativa do grupo total de consumidores, independentemente de serem compradores de seu produto inicial. A título de exemplificação, vale citar a marca Barbie. Trata-se de signo nominativo de propriedade da Mattel – uma das principais sociedades empresárias na área de fabricação de brinquedos do mundo (ÉPOCA NEGÓCIOS; 2014) – presente na lista de marcas de alto renome do Brasil desde 31 de março de 2015. A marca em questão é conhecida por parcela muito significativa do público, bem além do infantil. Estima-se que o seu valor de mercado é de, aproximadamente, três bilhões de dólares (DALPRA; 2014). Por toda a sua

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repercussão econômica e social, a marca garantiu o seu registro como marca de alto renome. Entretanto, esta condição não foi alcançada apenas com base nas bonecas que levam o nome da marca Barbie. Embora estas constituam parte essencial no processo, afinal, representam, atualmente, cerca de 15% do faturamento da Mattel (TOWNSEND; 2015), a marca se consolidou enquanto marca de alto renome ao estender sua atuação sobre outros produtos:

ser, apenas, a restrição de que outros registrem uma marca similar em qualquer segmento. Entendimento contrário torna injustificável o uso da expressão “proteção especial” pelo legislador. Além disso, repercute o entendimento de que a marca de alto renome é um resquício da marca notoriamente conhecida, o que não encontra amparo na realidade, pois aquelas marcas que alcançam a repercussão do alto renome possuem extremado impacto econômico e traduzem muito mais que uma distinção entre produtos e serviços.

Hoje, os produtos Barbie refletem o estilo de vida da menina - a marca está presente no dia-a-dia das meninas e não é apenas uma personagem, é uma marca aspiracional pelas meninas e sinônimo de moda e feminilidade. No Brasil, em 2005, mais de 2.500 novos itens com a marca foram introduzidos ao mercado, tornando-a líder no segmento infantil feminino (meninas). A boneca detém 86% do mercado de “bonecas fashion” e 78% do mercado de produtos de consumo infantil para meninas, segundo auditoria da FIA USP. A marca está presente em todas as categorias de produtos: beleza, confecção, acessórios, alimentos, artigos esportivos, escolares, para casa, entre outros. (CRESCITELLI, STEFANINI; 2007)

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Deve-se ressaltar que a marca Barbie possui 39 registros junto ao INPI, nas mais variadas categorias, por exemplo: serviços de comunicação, produtos de limpeza e higiene, papel impresso, livros, eletrônicos, entre outros. Estas informações, por um lado, confirmam o fato de que a conquista da posição de alto renome, no ano de 2015, foi impulsionada pela expansão da marca sobre outros segmentos. De outro lado, pode-se inferir que a expansão dos produtos está relacionada ao forte impacto que a marca produz, partindo de seu produto referência – a boneca Barbie. O que se quer dizer é que a marca de alto renome extrapola a ideia de identificação de um único produto ou serviço, refletindo qualidade, estilo, luxo e forte apelo econômico. O caso apresentado da marca Barbie é um exemplo do contexto que envolve as marcas ditas de alto renome, sendo inegável que sua força possa atingir inúmeros segmentos do mercado de produtos e serviços. Assim sendo, por que restringir a sua “proteção especial” à impossibilidade de que outras marcas similares sejam registradas? Se ninguém pode registrar marca similar, por que o titular de uma marca de alto renome terá que buscar o registro desta marca em cada segmento para poder explorá-la? À marca de alto renome não se aplica o princípio da especialidade, isto é, não está adstrita a uma categoria, portanto, não faz sentido exigir que se faça o registro em cada classe, para que se possa expandir as relações da marca. Interessante notar que a “proteção especial” não se confunde com a proteção dada as marcas notórias. No caso destas, a LPI faz expressa referência ao art. 6 bis da Convenção da União de Paris, que estabelece que a marca notória se destaca apenas no seu segmento, e, que, somente nele, merece proteção especial. A marca de alto renome, diferentemente, destaca-se tanto, que é conhecida por consumidores de todos os segmentos, portanto, a sua proteção não pode

Conclusão Ao longo da história humana as marcas sempre se destacaram diante da necessidade de distinguir seus produtos e serviços comercializados. Algumas delas destacaram-se tanto que ganharam uma categoria jurídica própria, primeiramente surgiram às chamadas marcas notoriamente conhecidas, que se destacam em determinado segmento do mercado; após, surgiram às marcas de alto renome, que se destacam de forma a serem conhecidas além de seu segmento inicial. Apesar da importância econômica, a disciplina jurídica ainda é incipiente. Principalmente nos casos da marca de alto renome. A Lei de Propriedade Industrial impõe “proteção especial” (art. 125) para elas, entretanto, pouco se sabe sobre o que isso significa. O INPI, mediante seu poder de complementar a lei, indicou que esta proteção seria passiva, ou seja, ficaria vedado o registro de marcas idênticas ou similares àquela dita de alto renome, em qualquer segmento. Entretanto, não parece ser esse o melhor entendimento. Como se viu, as marcas que alcançam tamanho prestígio deixam de ter apenas a função de distinção e passam a significar valores sociais, estilo de vida, pertencimento a um grupo e são capazes de atrair fama para qualquer segmento que se inclinem. Assim sendo, não é possível que a proteção especial referida pela lei seja idêntica àquela deferida às marcas notoriamente conhecidas. Ademais, é preciso lembrar que uma vez declarada de alto renome, nenhuma outra marca poderá ser registrada em qualquer segmento em seu detrimento, portanto, seu caráter distinvidade já está garantido. Estes e outros argumentos já expostos evidenciam que a proteção especial deve ser ativa e passiva, isto é, contemplando não só a impossibilidade de registro em qualquer segmento, como garantindo a exploração econômica, sem necessidade de outro processo de registro, igualmente, para qualquer segmento

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Precarização da mão de obra e a ordem econômica na Constituição Federal de 1988 Camilo Ferreira de Oliveira1 Danielle Riegermann Ramos Damião2 Resumo O sistema capitalista, ao longo de seu desenvolvimento, passou por grandes transformações, principalmente com relação ao trabalho e as conquistas dos trabalhadores, culminando no chamado capitalismo contemporâneo ou flexível, caracterizado pelo processo de acumulação de capital visando o lucro e a produção de excedente. Dessa forma, ocorreu uma intensificação da concorrência e, consequentemente, a precarização da mão de obra, caracterizada pelo trabalho degradante e pela supressão de direitos trabalhistas em larga escala. O objetivo deste Artigo Científico é compreender os reflexos ou consequências da precarização da mão de obra. Para o desenvolvimento do tema, o texto foi dividido em três seções. A primeira abordou a evolução histórica da ordem econômica na Constituição Federal de 1988 e os princípios que a norteiam. A segunda tratou da precarização da mão de obra e suas causas. Finalmente, na terceira, discutiu-se a inconstitucionalidade do trabalho precário. A pesquisa foi desenvolvida pelo método de abordagem indutivo-dedutivo, e pelo método de investigação ou de procedimento funcionalista dialético, próprios para a pesquisa do Direito. Concluiu-se que a precarização é uma prática inconstitucional, frequente no atual modelo econômico, e que esta prática promove a concorrência desleal, fator determinante para a desestabilização da ordem econômica. Palavras-chave: Interferência na economia e na concorrência; ordem econômica; precarização da mão de obra. Abstract The capitalist system over its development, it has undergone major changes, mainly with regard to work and the achievements of workers, culminating in the so-called Graduação em Direito pela Faculdade de Educação São Luís (2015). Mestrado em Medicina Veterinária pela Universidade Estadual Paulista (2009). Especialização pelo Instituto Qualittas de Pós-Graduação, em Medicina Veterinária (2007). Graduação em Medicina Veterinária pela Universidade de Marília (2004). Advogado. 2 Doutoranda em Função Social do Direito - FADISP (2015). Mestrado em Direito pela Universidade de Marília (2012). Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (2003). Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002). Autora de jurídicas. Atualmente é professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN), Faculdade São Luís e do IMESB – Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro “Victorio Cardassi”. É membro dos conselhos editoriais das revistas “Direito e Liberdade” e da “Atualidades Jurídicas”. Acumula vasta experiência na docência superior (Graduação e Pós-Graduação). Assessora Jurídica da FUNEP Fundação de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão. É advogada e consultora jurídica. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho.

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contemporary or flexible capitalism, characterized by capital accumulation process for profit and production surplus. Thus, there was an intensification of competition and hence the precariousness of hand labor, characterized by degrading work and the suppression of labor rights on a large scale. The objective of this scientific paper is to understand the consequences or deterioration of the consequences of hand labor. To the theme of development, the text was divided into three sections. The first addressed the historical evolution of the economic order in the 1988 Federal Constitution and the principles that guide. The second dealt with the casualization of labor, work and its causes. Finally, in the third, he discussed the unconstitutionality of precarious work. The research was conducted by inductive-deductive method of approach, and the research method or dialectical functionalist procedure, fit for the research of law. It was concluded that the precariousness is an unconstitutional practice, common in the current economic model, and that this practice promotes unfair competition, determining factor in the destabilization of the economic order.

disso, os trabalhadores sujeitam-se a trabalhos em condições desfavoráveis, sem qualquer garantia, com baixos salários, cumprindo jornadas excessivas e, em alguns casos, configurando condições de trabalho análogas ao trabalho escravo. Diante disso, o objetivo do presente trabalho é demonstrar que a precarização da mão de obra é prática inconstitucional e frequente na atualidade, bem como compreender seus reflexos na economia, analisando de que maneira esta prática provoca a desestabilização da ordem econômica. Para o desenvolvimento do tema, o texto foi dividido em três seções, além desta introdução. A primeira aborda a evolução histórica da ordem econômica na Constituição Federal de 1988 e os princípios que a norteiam. A segunda trata da precarização da mão de obra e suas causas. Finalmente, na terceira, discutese a inconstitucionalidade do trabalho precário e sua interferência na ordem econômica. A pesquisa foi desenvolvida pelo método de abordagem indutivo-dedutivo, e pelo método de investigação ou de procedimento funcionalista dialético, próprios para a pesquisa do Direito.

Keywords: interference in the economy and competition; economic order; casualization of labor, work.

Introdução

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A Constituição Federal de 1988 reconhece, em seu artigo 1o, III e IV, como princípios fundamentais da República a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, e em seu artigo 170 caracteriza a valorização do trabalho humano como um dos fundamentos da ordem econômica brasileira. Dessa forma, a Lei Maior determina que o trabalho humano não deve ser visto apenas por sua importância econômica, mas sim como uma expressão da dignidade humana, pois pelo trabalho é que o homem tem a possibilidade de realizar sua vocação e garantir sua subsistência e de sua família. No entanto, com o desenvolvimento do sistema capitalista, que passou por significativas transformações ao longo de sua história, principalmente no que tange ao trabalho e as lutas dos trabalhadores, atingiu-se uma nova fase denominada capitalismo contemporâneo, que também pode ser denominado capitalismo flexível ou de acumulação flexível, caracterizado por um processo de acumulação ilimitada de capital, buscando insaciavelmente o lucro, pela produção do excedente, cada vez mais estimulada pela concorrência intercapitalista no plano mundial. Neste novo cenário, o desenvolvimento industrial e comercial ultrapassou fronteiras, devido à evolução dos meios de comunicação que se tornaram cada vez mais rápidos e eficazes, propiciando o desenvolvimento do modelo capitalista de produção em massa. Com isso, a tendência é que as empresas passem por reestruturações constantes e o grande problema é que isto ocorre, na maioria das vezes, em detrimento de direitos trabalhistas, por meio da precarização do trabalho que se traduz em trabalho degradante. O desenvolvimento econômico das grandes empresas transnacionais, que se relacionam globalmente em cadeias de produção e fornecimento, promove o crescimento da concorrência de forma cada vez mais acirrada. Em consequência

A ordem econômica na Constituição Federal de 1988 e a valorização do trabalho humano A Constituição Federal de 1988 estatui em seu artigo 1o os fundamentos da República Federativa do Brasil, tendo como principal deles, insculpido no inciso III, a dignidade da pessoa humana, devendo a ordem econômica constitucional ser compreendida à luz desse princípio. Ressalta-se, pois, que a existência da ordem econômica está intimamente ligada aos direitos humanos e, portanto, impossível se falar em disciplina jurídica da economia sem que sejam observados os direitos da pessoa humana (PINTARELLI, 2014, p. 339). A seguir, a Constituição elencou como fundamentos da República, no inciso IV, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, colocando o Estado como ente subsidiário, ou seja, deixando que a economia nacional fosse regida pelos agentes de mercado. Claramente, foi abandonada a posição intervencionista do Estado e o modelo econômico passou a se basear na atividade de agentes econômicos particulares (RAGAZZO, 2006, p. 91). Destarte, o Estado passou a interferir na economia nacional somente em casos específicos, para atender “aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (art. 173, CF), e para exercer “as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (art. 174, CF). Ademais, vale lembrar que, para que se alcancem os objetivos elencados no artigo 3o da Constituição Federal, torna-se pressuposto irrefutável a valorização do trabalho humano, visto que o trabalho valorizado visa, primordialmente, erradicar as desigualdades sociais e regionais (BREDA, 2011, p. 12).

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A Lei Maior, ainda que reconheça a livre iniciativa e a propriedade privada como fundamentos da ordem econômica, dá ao Estado brasileiro um perfil claramente social. O Brasil, embora tenha adotado o modelo econômico capitalista, por outro lado, estabeleceu como princípios fundamentais da República a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (BERTONCINI; PORTELLA JUNIOR, p. 192). A livre iniciativa caracteriza uma projeção dos direitos de liberdade individual, que corresponde ao direito de todo homem se aventurar no mercado de produção por sua conta e risco. Embora a doutrina clássica aponte a liberdade de iniciativa como um dos mais básicos princípios de um modelo capitalista, consubstanciada nas ideias do liberalismo econômico e que foi teoria essencial para a implantação do Estado liberal, tal doutrina merece ser desmistificada. O princípio da livre iniciativa, sob seu aspecto jurídico, nunca se caracterizou pela liberdade econômica irrestrita com um Estado completamente ausente, pois sempre conviveu com modelos de políticas públicas criadas pelo Estado (MENDONÇA; ALMEIDA, 2014, p. 208-209). Superado o período liberal, nasceu o Estado moderno, intervencionista, com a vocação de atuar no campo econômico. Passou por alterações no tempo com relação ao seu modo de atuar, que inicialmente voltava-se à constituição e à preservação do modo de produção social capitalista e, posteriormente, à substituição e compensação do mercado (GRAU, 2010, pág. 17). Com o fenômeno da globalização econômica, proporcionado nas últimas décadas pelo meteórico desenvolvimento tecnológico e pela crescente interdependência das nações do mundo, houve uma desregulamentação dos mercados mundiais, em uma tendência autofágica a que se chamou neoliberalismo. Em todo o mundo se pode observar os ataques do neoliberalismo às instituições e às normas que, de alguma forma, coíbem ou limitam o seu desejo irrefreável de maiores lucros e mais poder econômico e político, a qualquer custo. No Brasil, esse movimento autodestrutivo, defendido com discursos capciosos por gente sempre ligada a grupos poderosos, econômicos e políticos, também se manifesta periodicamente, tentando criar leis que “flexibilizam” os direitos dos trabalhadores, que diminuem os encargos sociais, que “terceirizam” serviços típicos de suas fases de produção, que, enfim, reduzem os custos de produção e aumentam os lucros. Felizmente as instituições democráticas do país têm sido fortes o suficiente para rechaçar essas investidas, ao menos quando manifestamente prejudiciais aos trabalhadores ou ao próprio sistema de produção capitalista. A Constituição Federal de 1988 veio à luz em uma época pós-ditadura militar, em que o povo brasileiro, pode-se afirmar, ansiava por liberdade, igualdade, segurança e democracia. Na assembleia constituinte não havia espaço para autoritarismo, usurpação de direitos ou imposição de mandamentos leoninos em favor de poderosos.

O modelo capitalista, embasado nas teorias de livre mercado e de alta competitividade entre as empresas, não respeita as noções básicas de garantias sociais e igualdade. Assim, compromete em diversos aspectos as condições de vida da classe trabalhadora menos favorecida, que é explorada pelo capital como fator de produção e não consegue atingir condições dignas de sobrevivência (MENDONÇA; ALMEIDA, 2014, p. 204). Outra não pode ser a conclusão quando se observa que se tem como princípios fundamentais da República a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1°, incisos III e IV). E que os fundamentos da ordem econômica brasileira são a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, com a finalidade de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” e com a observância dos princípios que enumera (art. 170, caput) (GRAU, 2010, p. 195). Para a Constituição, o primado do trabalho é a base da ordem social, devendo, pois, ser visto para além da sua importância meramente econômica, como expressão da dignidade humana, que constitui o fim último da ordem econômica nacional, podendo-se afirmar que é dever de todos, solidariamente, Estado e sociedade (e também do mercado, em virtude das obrigações impostas pela Constituição Federal, em seus artigos 3° e 170), promover a proteção dos direitos fundamentais e, com destaque à proteção do trabalho humano (BERTONCINI; PORTELLA JUNIOR, 2013, p. 195). Destaca-se o papel ativo que deve ser atribuído ao Estado, devendo este assegurar os primados da livre iniciativa regida pela valorização do trabalho humano, estabelecendo limites interventivos sobre a função empresarial, que deverá ser exercida harmonicamente, em observância dos direitos sociais dos trabalhadores (MENDONÇA; ALMEIDA, 2014, p. 204). Diante disso, o constituinte buscou condensar as normas básicas que estabelecem e organizam a atividade econômica em uma série de princípios, pois os agentes econômicos, ainda que no regime capitalista, necessitam dessas normas para que possam tomar suas decisões e realizar suas transações, de forma segura, com o mínimo de custos possível (SANTOS, 2014, p. 165).

Os princípios da ordem econômica na Constituição Federal de 1988 Conforme já mencionado, os fundamentos da ordem econômica brasileira, quais sejam a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, visam assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os vários princípios nela insculpidos. Dentre os princípios, bem como outros que se encontram espraiados pela Carta de 1988, alguns como fundamentos da própria República Federativa do Brasil (v.g., a dignidade da pessoa humana, no art. 1°, III; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, no art. 1°, IV), cumpre destacar alguns que atendem mais ao escopo do presente trabalho.

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A livre iniciativa e a livre concorrência, que são pilares da produção no sistema capitalista, encontram limitação nos fundamentos da República Federativa do Brasil e nos fundamentos da ordem econômica estabelecida pela Constituição Federal de 1988, que viu na dignidade da pessoa humana e no valor social do trabalho (art. 1°, incisos III e IV, art. 170, caput), valores maiores a cuidar (GRAU, 2010, p. 202). Embora a livre iniciativa esteja prevista também no inciso IV do art. 1°, a interpretação de tal dispositivo, em harmonia com outras disposições da Constituição, como a já indicada dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I), a submissão da ordem econômica aos ditames da justiça social (art. 170, VII), não deixa dúvida quanto à preponderância do valor social do trabalho sobre a livre iniciativa e sobre a livre concorrência, não dando margem a uma exploração irresponsável e desenfreada do trabalho humano (GRAU, 2010, p. 202). Citada também no caput do art. 170 da Constituição Federal, a livre iniciativa figura ao lado da valorização do trabalho humano, como princípio basilar na ordem econômica e financeira. Este enquadramento dúplice dado pela Constituição enfatiza a importância do princípio no ordenamento constitucional brasileiro (TAVARES, 2013, p. 33). De qualquer modo, a livre iniciativa é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e, também, da ordem econômica brasileira, tendo, portanto, enorme importância na vida econômica do país. Trata-se de conceito de múltiplos significados, sendo entendido como liberdade de comércio e indústria; faculdade de criar e explorar uma atividade econômica; não sujeição a qualquer restrição estatal senão as impostas por lei; liberdade de concorrência; neutralidade do Estado no que diz respeito à competição entre agentes econômicos privados; e liberdade obtida a partir de um ofício ou profissão, articulando-se em certa medida com o valor trabalho (SANTOS, 2014, p. 171). Vale ressaltar que liberdade de iniciativa traz consigo a liberdade de profissão, que traduz o desdobramento daquela em um plano individual. Significa dizer que as pessoas são livres para escolher a profissão que mais as agrade, desde que respeitados os limites inerentes a cada uma das profissões (MOREIRA, 2006, p. 108). A partir desse entendimento, é possível concluir-se que, de acordo com o princípio da livre iniciativa, o trabalhador é livre para decidir permanecer ou não em determinado emprego, de acordo com seus interesses particulares. Prevê também, a Constituição de 1988, como um direito fundamental, a propriedade privada (art. 5°, XXII), conferindo garantias ao titular de propriedade (art. 5°, XXIV e XXV), porém determinando que a propriedade atenderá a sua função social. Incluiu também a propriedade privada e a sua função social como princípios da ordem econômica (art. 170, II e III), submetendo-a, assim, aos ditames da justiça social (SANTOS, 2014, p. 175). Assim, conclui-se que a propriedade só é legítima quando atende uma função que se enquadre no conceito de justiça social. “A propriedade privada, portanto, só ganha sentido pleno enquanto estiver em consonância com

as exigências equitativas de uma ordem econômica que se pretende justa” (SANTOS, 2014, p. 176). Admite-se que o conceito de propriedade se estenda ao de empresa, que se pode entender como propriedade dos bens de produção. Quando estes bens são postos em dinamismo, no capitalismo, em regime de empresa, chegamos ao conceito de função social da empresa, ou seja, a função social dos bens de produção em dinamismo (GRAU, 2010, p. 242). A empresa visa lucro e, para alcançar esse objetivo, tem que lidar com os custos de produção, ou de obtenção de mercadorias e manutenção de estabelecimento comercial, ou, ainda, de prestação de serviços, e os preços que pode praticar, haja vista o embate com a concorrência, nem sempre leal. Para o legislador constituinte se apresentou um problema: defender a livre concorrência, permitindo à economia se organizar segundo as leis de mercado e fomentando a qualidade dos produtos ofertados e dos serviços prestados aos consumidores, e, ao mesmo tempo, não permitir comportamentos antissociais dos detentores do poder econômico, que pudessem levar à dominação de mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros (art. 173, § 4°). [...] a opção por uma economia capitalista se funda na crença de que o método mais eficiente de assegurar a satisfação dos interesses do consumidor de uma forma geral é através de um mercado em condições de livre concorrência, especialmente no que diz respeito a preços (BARROSO, 2008, p. 10).

Da análise feita até aqui, é possível ver que o constituinte originário construiu uma Constituição bastante sólida na defesa dos principais interesses da sociedade brasileira, colocando o ser humano e o trabalho humano acima dos interesses econômicos e financeiros, sem descurar, entretanto, de tecer uma ordem econômica firme e harmoniosa, que, além de proporcionar desenvolvimento e riqueza para o país, também trabalha para o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, nos exatos termos ditados pelo legislador constituinte, atendendo aos anseios do povo brasileiro.

A precarização da mão de obra Antes de dar início a qualquer discussão sobre o que vem a ser precarização do trabalho ou trabalho degradante, importa destacar que, conforme os ensinamentos de Merino (2011, p. 19), é consensual o entendimento de que o trabalho subordinado no sistema capitalista, caracterizado pela exploração do homem pelo homem, jamais alcançará a plenitude de dignidade, tendo em vista que este sistema é baseado na desigualdade entre os seres humanos, tendo como característica primordial a exploração do trabalho alheio.

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A consequência do capitalismo global sobre os países emergentes, em especial aqueles não detentores de maior desenvolvimento tecnológico, tem sido a marcha rumo à precarização da mão de obra com intuito de reduzir custos de produção, por meio da flexibilização e desregulamentação laboral, como forma de atrair empresas multinacionais (MENDONÇA; ALMEIDA, 2014, p. 202). Essa postura de otimização no corte de custos, adotada pelas empresas, fica evidente quando se observa que, no Brasil, 15,3 milhões de trabalhadores se encontram na informalidade, segundo dados do IBGE. Isso se justifica pela ausência de fiscalização e de efetiva punição por parte do Estado e pelo fato de que grande parte das empresas tem realizado diminuição de gastos fazendo uso dessa estratégia. Dessa forma, conseguem alcançar maior competitividade em relação às concorrentes (MENDONÇA; ALMEIDA, 2014, p. 205). O termo precarização da mão de obra pode ser caracterizado basicamente pela sonegação em larga escala de direitos trabalhistas básicos e fundamentais, podendo-se citar como exemplos o trabalho degradante, a violação de normas de segurança no trabalho expondo trabalhadores a riscos, a realização de terceirizações fraudulentas, entre outros (MPT, 2012, p. 2). Merino (2011, p. 27) afirma que, em amplo sentido, pode ser caracterizado como aquele em que o trabalhador não encontra situações favoráveis para o desenvolvimento de suas atividades laborais, nos aspectos físico e psíquico. Porém, segue dizendo que esta definição, por sua amplitude, não atribui contornos nítidos ao fenômeno do trabalho degradante, dificultando o seu entendimento. Para melhor definir trabalho degradante, Merino (2011, p. 28) faz um paralelo ao conceito de trabalho decente afirmando que “trabalho decente é aquele que está em consonância com as normas de direito social, protetivas do trabalhador e reconhecedoras de sua humanidade e de sua hipossuficiência dentro da relação de trabalho, e, trabalho degradante, o exato oposto”. Aprofundando o estudo sobre o trabalho degradante, observa-se que este pode ser reconhecido por meio de determinados elementos que o compõe, assim definidos: alienabilidade, insegurança no trabalho, desconstrução psíquica do trabalhador, dessocialização e dessubjetivação do trabalhador (MERINO, 2011, p. 5). Merino (2011, p. 31) relaciona o termo alienação com fenômeno de estranhamento, ou seja, fenômeno pelo qual o homem, ao criar ou produzir algo, dá independência a essa criação como se ela existisse por si mesma. Subordina-se a ela como se a criação fosse um ser superior com poder sobre os homens. A alienação econômica acontece com a venda da força de trabalho pelo homem em troca de um salário, alienando-se assim do objeto que produziu. Ocorre que o preço pago ao trabalhador por sua força de trabalho é sempre inferior ao atribuído à produção que este trabalhador gerou. Isto se confirma quando o trabalhador percebe que pouco pode consumir daquilo que produziu, pois seu salário é inferior ao valor atribuído aos produtos produzidos.

A insegurança no trabalho se revela de várias formas. A instabilidade no emprego é um fator típico que caracteriza o trabalho inseguro, bem como a insegurança física e psíquica do trabalhador; a falta de correspondência concreta entre oferta de mão de obra e contraprestação pelos serviços ofertados que mantenham sua condição de humanidade, garantindo ao trabalhador que receberá para sua própria manutenção e de sua família, dignamente; a alteração in pejus das cláusulas contratuais e a falta de políticas públicas de emprego digno, dentre outros fatores (MERINO, 2011, p. 34). O dano psíquico causado ao trabalhador é um fator que vem sendo cada vez mais estudado. Os novos modelos de gestão implantados atualmente nas relações de trabalho, que têm como escopo a otimização da produção e a redução de custos provocam malefícios psíquicos que afetam gravemente o trabalhador. O grau de pressão no constrangimento sofrido pelo trabalhador é fundamental para que os objetivos citados sejam alcançados dentro de ambientes corporativos (MERINO, 2011, p. 49). A dessocialização no ambiente laboral é causa de degradação do ser humano. A convivência social no ambiente de trabalho é uma das formas de socialização do homem, de criação de laços de amizade e fraternidade, visto que este passa cerca de um terço de seu tempo diário neste ambiente (MERINO, 2011, p. 64). Um dos principais fatores responsáveis por prejudicar a convivência social é o estabelecimento de longas e extenuantes jornadas de trabalho que culminam em malefícios à saúde do trabalhador. A atribuição ao trabalhador de grande volume de trabalho, com o fim de manter a produtividade, obrigando-o a trabalhar em jornada extraordinária, promove a diminuição do tempo de convivência em locais que não sejam o ambiente de trabalho (MERINO, 2011, p. 64-66). O último elemento relaciona-se com a dessubjetivação. Merino esclarece que o contrato de trabalho, como todo e qualquer contrato, deveria ser regido pela autonomia da vontade e que esta vontade não fosse viciada, para que o contrato fosse considerado válido. Porém, não é o que ocorre. O trabalhador, sob pressão, acaba aderindo a um contrato imposto pelo empregador, sem poder ter autonomia de vontade, pois necessita ocupar um posto de trabalho com o fim de auferir renda para se manter. Isto o coloca em posição de desigualdade, sendo tido como hipossuficiente perante o empregador (MERINO, 2011, p. 67-68). Druck (2011, p. 46) apresentou uma tipologia da precarização voltada para a realidade brasileira. Segundo a autora, são tipos de precarização do trabalho: a vulnerabilidade das formas de inserção e desigualdades sociais; a intensificação do trabalho e a terceirização; a insegurança e saúde no trabalho; a perda das identidades individual e coletiva; a fragilização da organização dos trabalhadores e a condenação e o descarte do Direito do Trabalho.

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Inconstitucionalidade do trabalho precário O caput do artigo 170 da Constituição Federal afirma que a ordem econômica deve estar fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. A livre iniciativa, tomada de forma singela e o trabalho humano, consagrado como objeto a ser valorizado. No mesmo sentido, Silva (2014, p. 800) assevera que: “a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado”. Esses conceitos, que são fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constituiu a República Federativa do Brasil (CF, art. 1°, inciso IV), têm por objetivo “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social...”. Observe-se que a referência à “existência digna” e aos “ditames da justiça social” está vinculada à valorização do trabalho humano e à livre iniciativa, sendo indiscutível a prevalência do trabalho sobre os demais valores norteadores da ordem econômica nacional. [...] aquilo que garante à maioria da população uma existência digna é exatamente o fruto do seu trabalho, e para que tal dignidade seja atingida, é necessário que o resultado do trabalho seja distribuído com justiça social, buscando-se a diminuição das desigualdades de renda (MPT, 2012, p. 84).

Também a função social da propriedade, como princípio norteador da ordem econômica (CF, art. 170, inciso III), lembra o MPT, “... é também uma referência indireta ao valor trabalho, pois exige a compatibilização da propriedade privada com os interesses coletivos da sociedade e dos trabalhadores” (MPT, 2012, p. 84). E o art. 186 da CF, em seu inciso III, não deixa qualquer dúvida quanto ao modo como a propriedade privada atenderá à sua função social: quando observar “as disposições que regulam as relações de trabalho”. Dessa forma, fica claramente evidenciado que qualquer forma de agressão ao valor social do trabalho, como nos casos de trabalho degradante e da supressão de direitos trabalhistas, caracterizam atos praticados contra a ordem econômica e financeira, devendo ser punidos para que novas infrações sejam inibidas (MPT, 2012, p. 85-86). Também no artigo 170 da Magna Carta, e de acordo com os princípios nele insculpidos, observa-se que a defesa da concorrência é fundamental para a manutenção da segurança jurídica e da ordem econômica (DAMIÃO, 2014, p. 124). A livre concorrência, arrolada como princípio da ordem econômica no art. 170, IV da Constituição Federal, é apontada como motivo para que o Estado intervenha, em sua defesa, sobre a livre disposição de agentes econômicos no mercado. Esta intervenção está prevista na Constituição em seu art. 173, § 4o. Ocorre que a utilização da mão de obra precária, implica em aumento arbitrário de lucros, prejudicando a livre concorrência e a livre iniciativa. É o chamado dumping social trabalhista, caracterizado pela deterioração do contrato

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individual de emprego visando o lucro do empregador com sacrifício de direitos trabalhistas do empregado, atingindo indiretamente as empresas concorrentes (PINTO, 2011, p. 142). Dispõe José Roberto Freire Pimenta, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, em acórdão proferido por este Tribunal, discorrendo acerca do conceito de dumping social: [...] o dumping social caracteriza-se pelas agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas, praticadas por empregadores, que geram danos não apenas ao trabalhador, mas também à sociedade, pois, com tal prática, as estruturas do Estado social e do modelo capitalista são desconsideradas, com o intuito de se obter vantagens indevidas em face dos outros empregadores [...] (TST-AIRR-380-97.2013.5.15.0107).

É um fenômeno que possui características marcantes, fundadas na redução de custos econômicos em detrimento dos direitos sociais, burlando normas de proteção do trabalho e agredindo os direitos sociais trabalhistas (MENDONÇA; ALMEIDA, 2014, p. 219). Damião (2014, p.125) descreve com precisão esta relação ao dizer que a utilização de mão de obra precária provoca uma redução dos custos de produção em virtude da violação ou negação de direitos trabalhistas, possibilitando a venda de produtos por menores preços. Com a diminuição de preços em decorrência da violação de direitos, há abuso ao direito de concorrência, pois empregadores que cumprem com suas obrigações trabalhistas terão lucros menores ou preços mais elevados. Portanto, não resta dúvida de que a precarização da mão de obra no trabalho afronta os fundamentos da República Federativa do Brasil e desrespeita os princípios norteadores da ordem econômica, o que determina inequivocamente a inconstitucionalidade desta prática.

Conclusão A presente pesquisa conclui que a precarização da mão de obra é uma prática cada vez mais presente nos diversos setores da economia, violando e desrespeitando os direitos fundamentais dos trabalhadores, e que esta prática interfere sobremaneira na economia, na concorrência e na ordem econômica. Na luta contra a precarização do trabalho e suas nefastas consequências, é preciso realçar a necessidade de se implementar políticas de efetiva valorização do trabalho humano, mediante atos concretos do Poder Público e de setores organizados da sociedade, que possam se efetivar principalmente a partir de eventos realizados com esse desiderato, como, por exemplo, a conferência “Trabalho Decente e Desenvolvimento Sustentável – o direito de viver com qualidade”, realizada em 2014 e coordenada pela Prefeitura de São Paulo e pela representação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.

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Esta conferência teve como objetivo a busca pela “igualdade de oportunidades, qualificação, redução da rotatividade da mão de obra, ambiente profissional seguro e saudável e jornadas adequadas”, como meios de se promover o trabalho decente na cidade. Entre as diretrizes da conferência estiveram “a criação de mais e melhores empregos, com equidade de oportunidades e de tratamento, combate ao trabalho forçado e infantil e o fortalecimento do diálogo tripartite entre empresários, trabalhadores e poder público”. Portanto, cabe ao Estado e ao Ministério Público do Trabalho, por sua firme atuação, coibir este tipo de prática, visando a garantia dos direitos dos trabalhadores pela observância de princípios constitucionais fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho e, não menos importante, garantindo a estabilidade da ordem econômica, com a punição severa de qualquer prática de precarização do trabalho que promova a concorrência desleal, lembrando que tal ilícito torna-se punível administrativamente com base na Lei no 12.529/11. Não se deve conferir proteção apenas aos interesses das empresas e dos consumidores, mas, principalmente, aos direitos dos trabalhadores, para que sejam respeitados os princípios que regem a ordem econômica e também para que se promova o bom funcionamento do mercado.

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Aspectos polêmicos envolvendo a Lei 13.097/15, pelo ato de Concentração da Matrícula Imobiliária Anísio Monteschio Junior1 Horácio Monteschio2 Resumo As relações obrigacionais, com o incremento dos meios de comunicação (internet), têm produzido uma maior integração, entre as pessoas físicas ou jurídicas, de proporções mundiais. Neste sentido, cabe destacar que a vida em sociedade além de mais complexa requer maiores cuidados por parte daqueles que assumem compromissos, de qualquer natureza. A seara do direito imobiliário não fica à margem das inovações produzidas, bem como é dever dos órgãos concessionários do serviço de registro de imóveis se manterem atualizado em suas práticas, dando maior dinâmica as relações que lhes são afetas. Dessa atuação, na prática, os atos de registro de imóveis devem manter-se fielmente vinculados as inovações e agilidades que o mercado exige em nossa economia de mercado. Com isso, restrições as práticas imobiliárias, a exemplo das produzidas pela lei 13.097/15, somente vem a corroborar nosso apego a burocracia, impondo aos brasileiros mais um entrave na dinâmica das relações envolvendo direitos imobiliários. Ademais, ao consagrar a restrição, via matrícula imobiliária, nos moldes da lei 13.097/15, abre-se a criação, por via oblíqua, uma classe de bens fora do comércio, em prejuízo as dinâmicas práticas obrigacionais que o nosso país tanto exige. Desta forma, o presente trabalho busca formular uma reflexão prática sobre a inutilidade do texto legal, bem como propor uma maior celeridade as práticas notariais, bem como garantir a devida e indispensável segurança jurídica aos negócios imobiliários. Palavras chave: Direito notarial; direito de propriedade e justiça/segurança jurídica. Abstract The dividend relations, with increasing media (internet), have produced a greater integration between the physical or legal entities, of global proportions. In this regard it is noteworthy that the social life as well as more complex requires more care from those who make commitments of any kind. The harvest of the property right is not the margin of innovations produced and it is the duty of dealers bodies of property registration service to stay up to date on their practices, walk more dynamic relations to them related. This performance, in practice, the land registry of deeds should remain faithfully linked 1 2

Mestrando em Ciência Jurídicas pelo UNICESUMAR de Maringá. Doutorando pela Faculdade Autônoma de São Paulo – FADISP. Mestre em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR Maringá. Professor das Faculdades OPET, ex-Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Assuntos do Mercosul do Paraná; ex-Secretário Municipal de Assuntos Metropolitanos de Curitiba. Advogado.

Aspectos polêmicos envolvendo a Lei 13.097/15, pelo ato de Concentração da Matrícula Imobiliária

Anísio Monteschio Junior e Horácio Monteschio

innovation and agility that the market demands in our market economy. Thus, restrictions on real estate practices, such as those produced by Law 13.097/15, only further supports our attachment to bureaucracy, imposing the Brazilians another obstacle in the dynamics of relationships involving property rights. Moreover, by consecrating the restriction, via real estate registration, along the lines of Law 13.097/15, the creation opens for oblique way, a class of assets out of the trade, to the detriment dynamic dividend practices that our country so requires. Thus, this paper seeks to formulate a practical reflection on the futility of the legal text and propose a more rapid notarial practices and ensure proper and necessary legal certainty to the real estate business.

medida em que impõe mais um excessivo ônus, seja ele financeiro ou mesmo temporal ao brasileiro. O presente trabalho, têm o pleno objetivo de formular uma visão crítica destes dispositivos legais, os quais em nada vem a facilitar a vida negocial no Brasil, pelo contrário, vem a torná-la mais custosa e demorada, o que não coaduna com as práticas dinâmicas que estão sendo implementadas em outros segmentos de nossa sociedade. Desta forma o presente trabalho será dividido em três capítulos, sendo o primeiro deles relacionado à aquisição e transmissão da propriedade imóvel, no qual será abordado o sistema notário e registral brasileiro, suas formalidade, prazos e condições de aperfeiçoamento da aquisição da propriedade imóvel. No capítulo segundo será tratado à questão de aparente antinomia normativa envolvendo a segurança jurídica e a boa-fé na interpretação dos art. 54 da lei 13.097/15, no que se refere à aquisição da propriedade imóvel, aspectos pertinentes a publicidade dos atos notarias e sua repercussão no mundo jurídico. No capítulo terceiro, será objeto de reflexão a utilidade e pertinência jurídica as inovações trazidas pela lei 13.097/15. Por finalmente, apresentam os autores do presente trabalho suas conclusões sobre o tema, o qual não se encerra no presente texto, mas sim, abre a possibilidade para opiniões divergentes e para o debate envolvendo a matéria, para o sempre engrandecimento das relações envolvendo as transações imobiliárias.

Keywords: Notarial law; property rights and justice / legal certainty.

Introdução A aquisição da propriedade imóvel, no Brasil, somente se torna efetiva com o registro no respectivo cartório de registro ao qual o imóvel encontra-se vinculado. A divisão, ou circunscrição imobiliária é efetivamente estabelecido, pela organização judiciária do respectivo Estado da Federação.3 O desenvolvimento das relações envolvendo a transmissão da propriedade imóvel deve pautar-se pelo pleno e efetivo atendimento a justiça e a segurança jurídica, sem que com isso sejam desprestigiados os atuais dispositivos legal, presentes em nosso arcabouço normativo. Desta forma, toda e qualquer inovação legislativa que venha a introduzir obstáculos e este desenvolvimento, incrementar a burocracia e reforçar o apego ao excesso de formalismo nacional devem ser plenamente rechaçados, sob pena de inclusão de mais um item no já elevado “Custo Brasil”. A inovação legislativa introduzida pela lei 13.097/15, em seus arts. 54 e 55 nada mais representa do um exemplo do anacronismo legislativo brasileiro, demonstrando seu excessivo apego a um formalismo, o qual venha justificar a segurança jurídica, em desprezo aos instrumentos legais já existente, como por exemplo o poder geral de cautela do juiz da causa, bem como, na contra-mão das clausulas gerais tão presentes em nosso sistema legal, citando-se como por exemplo a boa-fé do art. 422 do Código Civil. Ademais do que foi dito, as criticadas averbações, nas respectivas matrículas imobiliárias, das ações descritas nos incisos do art. 54, representam além incremento do custo notarial nas relações envolvendo a vida transacional “lato sensu” de todos os brasileiros, bem como um ônus de tempo, ao já saturado e cansado setor empreendedor nacional, o qual tem que atender aos prazos excessivos praticados pelos cartórios de registro de imóveis. A lei 13.097/15 representa o insofismável reconhecimento da “contra mão” nacional na seara do desenvolvimento das relações transacionais, na justa 3

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O imóvel deverá ser registrado em determinado cartório imobiliário. Esse Cartório pode até não estar situado próximo ao imóvel, mas deve, necessariamente, ser único Cartório competente para o registro em determinada área (circunscrição). SILVA. Bruno Mattos. Compra e venda de imóveis : aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos. São Paulo : Atlas, 2015, p. 3.

Aquisição da propriedade imóvel pelo registro notarial - Lei 6.015/73 Em que pese a importância dos regimes notarias Frances e Alemão na constituição do sistema notaria brasileiro, em razão do exíguo espaço destinado a formulação do presente trabalho, faz necessário que o leitor venha obter maiores complementos na obra de Luiz Guilherme Loureiro “ registros públicos – Teoria e prática”. Feitas estas considerações, a aquisição da propriedade imóvel, no sistema brasileiro, é feita, mediante delegação do Poder Público, perante o registro imobiliário, consoante as prescrições estabelecidas no art. 236 da Constituição Federal de 1988.4 Há por parte, do consuetudinário nacional, a ideia enraizada de que elaboração de documento público, a exemplo da Escritura pública de compra e venda, ou mesmo a confecção de documento particular entre as partes transferem Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º  Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º  Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º  O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 4

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Aspectos polêmicos envolvendo a Lei 13.097/15, pelo ato de Concentração da Matrícula Imobiliária

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a propriedade imóvel. No mesmo sentido, a própria posse de documento expedido pelo poder judiciário, a exemplo do formal de partilha, ou do mandado de arrematação, possuem o condão de efetivar a alteração da titularidade imóvel. Em que pese o enorme serviço que os meios de comunicação e as redes sociais têm ofertado ao aperfeiçoamento das relações envolvendo as transferências imobiliárias, retirando do plano empírico a ideia de que tais práticas encerram o ciclo envolvendo a transmissão da propriedade privada, ainda existe, porções recalcitrantes ao sistema registral nacional, o quem ainda vem produzindo dissabores e contendas jurídicas de toda espécie. Destarte, o classificado ciclo de transferência imobiliária, exige como regra a lavratura de escritura pública, a lei somente dispensa a confecção do instrumento público em casos específicos e restritos.5 Por conseguinte, após a prática deste ato é levada ao registro notarial da respectiva circunscrição imobiliária para elaboração do registro imobiliário. Neste sentido, leciona Guilherme Calmon Nogueira da Gama.

Neste sentido de importância da inovação trazida pela lei 6.015/73, cita-se Luiz Guilherme Loureiro, o qual ao final de sua ponderação destaca a possibilidade de constar no texto da matrícula “outros que a lei considera relevantes”, para os quais entendemos que os descritos na lei 13.097/15 não são necessários, nos seguintes termos.

Apenas o registro é peculiar à aquisição da propriedade imobiliária. Tal modo de aquisição decorreu da necessidade de maior segurança à circulação da riqueza imobiliária, daí a instituição de um registro público, no qual devem ser assentadas obrigatoriamente todas as transmissões da propriedade dos bens imóveis permitindo o conhecimento de toda a coletividade.6

O sistema notarial brasileiro encontra regulado no texto da lei 6015/73, o qual erradicou o antigo sistema de transcrições imobiliárias, no qual prevalecia à forma esparsa e a consulta sobre os registro imobiliários demandava a consulta em vários livros do registro imobiliário, o que causava uma enorme demora na prestação do serviço notarial, bem como, em alguns casos não havia completa certeza sobre as informações contidas na transcrição. Com a adoção do sistema de matrícula uma nova eficiência aos serviços notariais acabou por ser imposta, concentrando-se em um único documento as especificações do imóvel, bem traz em seu bojo a continuidade (descrição) dos proprietários da propriedade imóvel. Código Civil brasileiro Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. Há exceções que permitem a contratação por instrumento particular, independentemente do valor desta, é o caso dos contratos celebrados por meio do Sistema Financeiro da Habitação Lei 4.380/64; Os descritos na Lei 8.025/90 imóveis residenciais de propriedade da União, e dos vinculados ou incorporados ao FRHB, situados no Distrito Federal; Decreto-Lei 58/37, os compromissos de compra e venda de imóveis loteados ou não, urbanos ou rurais; Lei 6.766/79 que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento; Decreto 9.760/46, patrimônio da União; Lei 10.188/01 os contratos de alienação fiduciária de imóveis financiados por agentes do Sistema Financeiro Imobiliário, celebrados por pessoa física ou jurídica e contratos de leasing imobiliários 6 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direitos reais. São Paulo : Atlas, 2011, p. 296. 5

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O novo marco legal erradicou a transcrição e criou um registro imobiliário no qual cada folha do livro de registro de imóveis é atribuída a um determinado imóvel (matrícula ou fólio real). Na Matrícula do imóvel deverão ser registrados todos os atos que implicam constituição, transferência, alteração ou extinção de direitos reais (além de outros que a lei considera relevantes).7

Em que pese todo o nosso respeito à possibilidade de inserção no texto de matrícula de assuntos que vão para “além de outros que a lei considera relevantes”, conforme descrita na doutrina acima, pelo respeito ao nobre função delegada, bem como prática dos registros imobiliários, os quais invariavelmente são excessivamente onerosos e de prestação de serviços que demanda um tempo que não coaduna com a agilidade das relações transacionais na atualidade. A matrícula do imóvel representa o prontuário da propriedade imóvel. Pela exigência do art. 227 da Lei 6.015/73 todo o imóvel deve ser matriculado, obedecendo a um número de ordem do respectivo cartório de registro de imóveis que se encontra vinculado, contendo a data de abertura da matrícula, a identificação do imóvel, as respectivas qualificações, completas e corretas dos transmitente e do adquirente, o título da transmissão (compra e venda, doação, direitos hereditários, aquisição originária, etc), valor da transação entre outros. Importante serviço prestado pelos cartórios de registro de imóveis encontrase fundamentado, entre tanto outros, na publicidade e segurança jurídica dos seus atos. Entre estes serviços está o presente no livro de protocolo, o qual atesta a precedência o registro de entrada do documento a ser registrado. Sobreleva enfatizar o fato de que em razão de dois titulares possuírem sobre o mesmo imóvel documento hábil ao registro da propriedade imobiliária será concedido àquele que o primeiro levou ao registro. Por oportuno, cabe destacar que o artigo 188 da lei 6.015/738, estabelece o prazo de 30 dias para o devido procedimento do registro imobiliário, sendo que dentro deste lapso temporal o Oficial deverá proceder ao exame do título, no prazo de quinze dias, indicando, se necessário, todas as exigências que o apresentante deverá satisfazer para o respectivo registro. O prazo previsto na supra citada lei é reduzido nos casos dos imóveis adquiridos pelo Programa Minha Casa Minha Vida, inicialmente regulado pela Lei 11.977/2009 a qual foi alterada pela Lei 12.424/2011, que estabelece um prazo de 15 dias, em seu art. 44-A.9 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 293. 8 Art. 188 - Protocolizado o título, proceder-se-á ao registro, dentro do prazo de 30 (trinta) dias, salvo nos casos previstos nos artigos seguintes. 9 Art. 44-A. Nos atos registrais relativos ao PMCMV, o prazo para qualificação do título e respectivo registro, averbação ou devolução com indicação das pendências a serem 7

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Feitas estas considerações iniciais, as quais não possuem a pretensão de esgotar a matéria, pelo fato inconteste da sua extensa complexidade e extensão legislativa, mas até aqui uma questão que se destaca é importância do registro imobiliário em nosso País. É de fundamental importância destacar que o próprio legislador quando assume que as relações sociais devem ser mais dinâmicas impõe a realização do registro imobiliário de forma mais célere, consoante os casos descritos acima. Corroborando a exigência social de uma maior agilidade nas relações envolvendo as transações imobiliárias, necessário se faz que o mesmo regime seja concedido aos demais atos notariais. Com isso, estar-se-á assegurando uma maior facilidade na conclusão dos negócios jurídicos que exigem registro imobiliário. Por seu turno, ao nobre ato de registro imobiliário, assiste única e tão somente aqueles de relevância imprescindível, notadamente, os descritos a partir do art. 182 da Lei 6.015/73, entre os quais não podem ser incluídos registros e averbações, as quais, por outros meios idôneos podem ser feitos. É de fundamental importância destacar que as custas praticadas pelos registros imobiliários, bem como o lapso temporal que separa, tanto o registro quando o seu respectivos cancelamento, são obstáculos importantes ao desenvolvimento e agilidade das relações imobiliárias. Cabe, por derradeiro salientar o fato de que cabe a parte interessada em adquirir um imóvel efetuar a diligente pesquisa sobre a presença de ônus reais ou reipersecutórios, ou mesmo qualquer outro gravame. Neste sentido, impor, nos moldes do art. 54 da lei 13.097/15, mais uma restrição a facilitar as transações imobiliárias, só vem a prejudicar estas relações. No mesmo sentido, a presença deste tido de registro pode, por via obliqua, estar criando uma classe de bens fora do comércio, o qual, pela torpeza do praticante, pode onerar com um gravame “fictício” o imóvel e retirá-lo de qualquer outra possibilidade de garantia ou mesmo de compra e venda.

Segurança jurídica e boa-fé – aspectos referentes a aplicação da lei 13.097/15 Além da importância da publicidade dos atos registrais, outro aspecto preponderante diz respeito à segurança jurídica em que os mesmo encontram-se a garantir nas relações imobiliárias. É de fundamental importância que em tornar público os atos de registro imobiliário acarreta de forma insofismável uma segurança jurídica de extraordinária envergadura, na medida em que elimina qualquer mácula de dúvida sobre a possibilidade de existência de ônus gravame ou mesmo sobre a legítimo proprietário do imóvel que está sendo transacionado. Neste sentido Marcelo Rodrigues destaca esta importância da publicidade nos seguintes termos. satisfeitas para sua efetivação não poderá ultrapassar a 15 (quinze) dias, contados da data

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Esse “plus” é conferido pelo sistema de publicidade registral, irradiando publicidade ativa do ato jurídico, de forma a que seja oponível perante terceiros (efeito erga omnes); dotando-o de autenticidade, que deriva do poder certificante – fé pública e presunção de verdade – inerente às atividades notariais e registral; promovendo e resguardando a segurança jurídica, valor axiológico perseguido pelo Direito Formal; e, por fim, mas não menos importante, atribuindo-lhe eficácia, vale dizer, a aptidão de produzir efeitos no mundo jurídico, pois o registro, em regra, tem caráter constitutivo e não apenas declaratório. Nesse sentido, por exemplo, prevê o art. 980 do Código Civil de 2002.10

Deste conceito apresentado, várias implicações lhes são decorrentes, especificamente sobre os aspectos relacionados ao caráter vinculante a todos (erga omnes) dos atos de registro, bem como a força que o ato registral possui na órbita das relações jurídicas impondo a esse a força da fé pública e presunção de autenticidade. Por assim dizer, a conjugação destes fatores produz a segurança jurídica que relações imobiliárias tanto exigem, tendo em vista que o grande sonho de todo o brasileiro é aquisição da casa própria, neste sentido Álvaro Villaça Azevedo, corroborando, inclusive, o referido alhures, destaca que “no tocante aos bens imóveis, sua propriedade transfere-se pelo registro imobiliário. Assim, por exemplo, se alguém vender um imóvel mais de uma vez, será proprietário o comprador que, em primeiro lugar, registrar o seu título aquisitivo.”11 A complexidade das relações envolvendo as transações imobiliárias demandam, tanto no período que a antecede, bem como a que a sucede uma presença, por demais oportuna, do denominado princípio da boa-fé, o qual encontra-se presente na legislação civil em seu art. 42212. Desta forma, exigências excessivas e que podem, inclusive restringir as atividades transacionais no Brasil, são expostas por Almiro do Couto Silva no seguinte sentido. Conquanto a boa-fé objetiva tenha um relevo maior no campo do direito das obrigações, especialmente em razão do vasto espectro de “deveres anexos” que a ela se vinculam e do papel que desempenha como base teórica da “culpa in contrahendo”, da responsabilidade pré e pós-negocial, é irrecusável, modernamente, sua importância em todo o território do direito privado.13 RODRIGUES, Marcelo Guimarães. Tratado de registros públicos e direito notarial. São Paulo : Atlas, 2014, p. 10. 11 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito das coisas. São Paulo : Atlas, 2014, p. 55. 12 Código Civil brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 13 SILVA, Almiro do Couto. Conceitos fundamentais do direito no estado constitucional. São Paulo : Malheiros. p. 45. 10

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Em que pese todo o nosso respeito a inovação legislativa produzida pela lei 13.097/15, especificamente presente no seu art. 5414, mas não há como entender como pertinente ou mesmo que a referida legislação esteja em consonância com as necessidades práticas que envolvem as relações imobiliárias, bem como, torna excessivamente formal e onerosa a sua aplicação. É indispensável à adoção de todas as cautelas, por parte, principalmente, do adquirente nas relações imobiliárias. Todavia, estas cautelas não podem chegar ao excesso, nem tão pouco, pode possuir o condão de tornar, ainda mais demorada e onerosa esta relação transacional. A presença da exigência de registro à margem da matrícula, prevista no “caput” do art. 54 é totalmente desnecessária e afrontosa as previsões já existentes tanto na legislação quanto na prática dos atos notariais. Sobreleva enfatizar o fato de que é usual, na práxis dos serviços notários, a elaboração de pesquisa nos cartórios de distribuidor do imóvel de ações em face do proprietário do imóvel. Neste sentido, cita-se, novamente, Bruno Mattos e Silva sobre o tema.

Desta forma, as exigências estabelecidas para a presença à margem da matrícula imobiliária das ações indicadas pela lei 13.097/15 se torna totalmente desnecessária se conjugarmos ao princípio da boa-fé nas relações desta natureza. Há uma aparente antinomia entre o contido na redação do art. 54 da lei 13.097/15 e o art. 422 do código civil brasileiro, em razão da presença de um lado do registro à margem da matrícula do imóvel de propriedade do demandado frente ao princípio da boa-fé presente no Código Civil. A solução que se apresenta é a de maior abrangência normativa e consagra a participação das partes no negocio jurídico imobiliário, sendo totalmente desnecessária a redação da lei 13.097/15. A postura das partes no negócio jurídica demonstram, a saciedade, se estão imbuídos de um espírito nocivo nas relações imobiliárias é não é com a exigência de registro à margem da matrícula que tornará mais segura as relações imobiliárias. Ao contrário do que pode se supor, a exigência só vem a beneficiar o setor notário, que mais uma vez terá que absorver uma carga de trabalho, muito bem remunerada, sem que haja uma razão sólida e específica para justificá-la. Ademais, é fundamental importância salientar o fato de que em caso de conflito de interesses envolvendo a boa-fé na aquisição da propriedade imobiliária, diante, por exemplo, de fraude a execução ou fraude a credores, assistirá ao julgador decidir de efetivamente houve este “consilium” para prejudicar qualquer das partes. No mesmo sentido, os credores possuem instrumental processual apto a dar proteção a sua garantia impedindo que o imóvel seja alienado, por conseguinte, prejudicando a solvência do devedor, a exemplo do contido no art. 615-A do Código de Processo Civil16, não assistindo razão a presença da exigência constante da lei em comento. Sem que estas considerações colocassem em dúvida a presença do art. 54 da Lei 13.097/15, outro argumento surge para corroborar a posição aqui assumida consubstanciado que o Conselho Nacional de Justiça disponibiliza, via internet17, uma ferramenta para obtenção de informações processuais (Central Nacional de Informações Processuais e Extraprocessuais – CNIPE), razão pela qual a averbação à margem da matrícula imobiliária constitui-se instrumento desnecessário e que vem a privilegiar a burocracia nacional. Em razão do aqui exposto, há que se impor as relações imobiliárias, além dos aspectos pertinentes a boa-fé, outros que se sobressaem presentes nos outros instrumentos processuais e administrativos colocados à disposição dos interessados, com o claro intuito de evitar prejuízos. Por derradeiro, no próximo capítulo do presente trabalho será objeto de consideração o fato de que a presença do próprio registro além de custoso e

Em primeiro lugar, a certidão do distribuidor cível, tanto da idade onde está situado o imóvel, como da cidade do domicílio do proprietário do imóvel. Esta certidão deverá ser obtida diretamente no fórum cível ou no cartório do distribuidor cível dessas cidades. Em algumas cidades há mais de um distribuidor cível, hipótese em que deverá ser solicitada certidão em todos os distribuidores. Nessa certidão constarão as ações cíveis nas quais o proprietário é réu.15 Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil; III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. 15 SILVA, Bruno Mattos e. op. cit. p. 143. 14

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Art. 615-A. O exequente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto. 17 http://www.cnj.jus.br/cnipe 16

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demorado traz em seu entorno a desvalorização do imóvel atingido, mesmo que o valor da dívida seja de pequena monta em comparação com o valor do imóvel objeto da restrição. Do mesmo modo, a presença da restrição na matrícula imobiliária, por conseguinte, podem ofertar um “porto seguro” as pessoas imbuídas de má fé ao “produzir” demandas judiciais com o intuito de salvaguardar interesses escusos, bem como cria por via oblíqua uma classe de bens fora do comércio.

Diante deste amplo arco de proteção disponibilizado ao direito de propriedade, assiste a legislação infra constitucional a regulamentação sobre a utilização, a exemplo do que se depreende da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominado Estatuto das cidades, a qual regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal estabelece as diretrizes gerais da política urbana. Por sua vez a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, estabelece a possibilidade de desapropriação da propriedade rural. No mesmo sentido, a lei 6.015/73, denominada Lei dos Registros Públicos, com as atualizações que vem recebendo no decorrer dos tempos, vem impondo um novo olhar sobre as formalidades para aquisição da propriedade imóvel. Não distante das atualizações sociais, bem como dos incrementos das relações envolvendo o cada vez mais dinâmico mercado imobiliário as normas processuais tem produzido legislação apta a dar a devida e imprescindível segurança jurídica que estas transações estão constantemente a exigir. Por sua vez, há que se salientar que a presença do art. 55 da lei 13.097/15 apresenta-se em dissonância com a realidade fática e jurídica em que estamos vivendo atualmente, razão pela qual a sua presença representa um apego excessivo ao formalismo, vem a corroborar a intenção do legislador em continuar vinculado a critérios burocráticos, bem como, a exigência de registro à margem da matrícula de ações envolvendo o proprietário do imóvel só vem a beneficiar os titulares das serventias imobiliárias. A crítica aqui formulada é fundamentada no fato de que outros instrumentos legais, a exemplo dos já citados neste trabalho, servem para salvaguardar de forma mais rápida e tão eficiente quanto a exigência formulada na citada lei. A guisa de raciocínio, o mesmo efeito pretendido pela lei 13.097/15 pode ser atingido pelos institutos tradicionais do arresto e do sequestro. Sem que estes institutos processuais fossem suficientes, assiste a parte interessada solicitar medida de urgência, com fundamento de impedir que o patrimônio do devedor/ demandado seja desfalcado. Pela redação da lei 13.097/15, não se verifica a presença de um critério especifico sobre a extensão do patrimônio a ser atingido em termos quantitativos, não estabelece se a sua totalidade será objeto de registro de indicação imobiliária, razão pela qual os prejuízos a este último por si só são inconteste. Efetivamente, haverá uma desvalorização do patrimônio daquele atingido pelos efeitos do registro descritos pela lei 13.097/15, na justa medida em que mesmo que a propriedade tenha um valor expressivo, acima do pleiteado pela demanda consignada, mesmo assim haverá uma drástica redução do seu valor de mercado em razão da prática perpetrada pelo credor. Nesse particular há um duplo prejuízo, tanto credor quanto devedor, terão seus ânimos acirrados, pela desvalorização imobiliária de um frente a impossibilidade de acordo para composição do débito do outro. Por outro lado, é bem possível, com a aplicação irrestrita do art. 55 da lei 13.097/15 da criação de uma classe de bens fora do comércio. Alerte-se ao fato de que poder-se-á verificar a prática de demandas, dos mais variados

Necessidade, utilizade e pertinência jurídica e social da averbação à margem da matrícula imobiliária produzidas pela Lei 13.097/15 O direito de propriedade, na contemporaneidade, consagrado no art. 5º inciso XXII, no qual assegura o direito de propriedade e logo em seguida no inciso XXIII faz a determinação que esta propriedade atenderá a sua função social, representam, nos dois incisos citados, a importância da propriedade privada consagrada há séculos nos textos legais e na vida das pessoas. A propriedade é essencial a manutenção da dignidade da pessoa humana, corroborada na lei 8.009/90, ao instituir de forma direta a proteção a única propriedade da entidade familiar, portanto, não sendo passível de penhora como regra, somente sendo admissível em casos específicos e de exceção. Destarte, a propriedade atenderá a função social quando atende não só o interesse de particular ao assegurar que é possível conceder a proteção legal contra a penhora do único imóvel da entidade familiar; no mesmo sentido, agora no âmbito coletivo, esta propriedade atenderá a sua função social quando revestida no animus de preservação plural, abrangendo não só ao seu proprietário, mas a coletividade. Ao analisar a função social da propriedade urbana extrai-se do texto constitucional, presente no §2º do art. 182, que será atendida quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Por sua vez o art. 186 da Constituição Federal descreve que a função social da propriedade rural é cumprida quando atende, simultaneamente, os requisitos: a) aproveitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Sobreleva enfatizar o fato de que o mesmo texto constitucional que dá a segurança a aquisição e função social da propriedade, ao abrir o capítulo da Ordem Econômica e Financeira, em seu capítulo I, no art. 17018 que inaugura os princípios gerais da atividade econômica, estabelece a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, com o objetivo de tornar digna a existência digna, priorizando, entre outros: a propriedade privada e a função social da propriedade. 18

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Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

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matizes, com o claro e específico objetivo de criar, de fazer constar uma restrição a propriedade gravada. Neste sentido, como a matrícula receberá a informação da presença de demanda judicial, na qual em alguns casos a mera expedição de certidão ou mesmo de informação constante em bancos de dados, as quais por si só terão o condão de retirar do comércio a propriedade objeto de demanda fraudulenta. Sem que todos estes aspectos fossem suficientes, para dar fundamento a legislação elaborada, abre-se outra possibilidade de prejuízos a partir vigência da lei 13.097/15, destacada no lapso temporal que separa o acordo entre as partes e a retirada do grave imposto pela extravagante legislação. Novamente, além de esdrúxula a citada lei, a qual causa restrição desmedida, injustificada, onerosa, ainda, traz em seu bojo que o interessado deverá aguardar em medida 30 (trinta) dias para a retirada do gravame. Por derradeiro, a presença de outros instrumentos aptos a dar a devida ciência, aos interessados na aquisição de bens imóveis, torna totalmente inócua a presença da lei 13.097/15, que em seu art. 55 estabelece a necessidade de registro à margem da matrícula de ações judiciais envolvendo o titular da propriedade imobiliária. Destarte é totalmente criticável a norma contida na citada lei, pelo fato de em nenhum momento auxiliar a vida comercial, empresarial e dos cidadãos brasileiros, pelo contrário, com a presença deste diploma legal somente estar-se-á a privilegiar o formalismo exagerado, a vinculação com a burocracia e na contra mão com a modernidade e agilidade que estas transações e a vida moderna estão a exigir.

As relações envolvendo a propriedade imobiliária pautam-se pela sua dinâmica, segurança jurídica e também que a propriedade deve cumprir com a sua função social. Aspectos relacionados a impenhorabilidade do único bem da entidade familiar demonstram a importância da função social da propriedade. Por sua vez o art. 170 estabelece a vinculação do sistema brasileiro a livre iniciativa e a proteção a propriedade privada, em razão desta previsão não assiste razão a dar ao texto criticado neste trabalho na exata medida em que cria odioso, oneroso e intempestivo empecilho a dinâmica das relações transacionais envolvendo o mercado imobiliário. Rende-se homenagem a iniciativas como a verificadas e citadas neste trabalho, elaborado pelo conselho Nacional de Justiça consubstanciado na Central Nacional de Informações Processuais e Extraprocessuais – CNIPE, a qual torna, ainda mais pública a relação envolvendo proprietários de imóveis e possíveis demandas judiciais. No mesmo sentido é prática recorrente nos cartórios de notas esclarecer o adquirente sobre os riscos e ônus envolvendo os imóveis objetos da transação, bem como exigir a presença de certidões referentes ao imóvel e relacionada a parte vendedora. Todos estes atos práticos estão em consonância com a vida prática, fazem parte do cotidiano nas serventias, não assistindo razão a criar um novo custo, um novo embaraço neste tipo de relação sendo que existem alternativas mais rápidas, ágeis e menos onerosas e que atendem plenamente a preservação da segurança jurídica. Ao contrário da funesta previsão contida no comando do art. 55 da lei 13.097/15 a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, traz ao conhecimento de todos a existência ou não de demandas envolvendo o proprietário do imóvel que se pretende adquirir. No mesmo sentido, não se está diante de um sistema burocrático, oneroso, de demorada levantamento do gravame. Em razão de todo o exposto, respeitando a existência de posições em sentido contrário, mas o texto legal, alvo de crítica no presente trabalho em nenhum sentido traz beneficio aos brasileiros, ou mesmo as relações imobiliárias. De outro, tal sistema somente vem a beneficiar os titulares de cartórios de registros de imóveis e a burocracia nacional.

Conclusões

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Em razão das considerações apresentadas no presente trabalho, a presença do art. 55 da lei 13.097/15 em nada auxilia a vida dos cidadãos brasileiros, nem tão pouco estão a pacificar as relações sociais. Ao contrário do que pretende o legislador a presença do referido dispositivo legal somente vem a acirrar as relações envolvendo as partes demandantes na medida em que cria mais um ônus financeiro e de tempo para a relação que poderia ser composta de outra forma. Não cabe assiste razão a afirmação de que a presença da legislação citada traria uma maior segurança as relações imobiliárias na medida em que outros instrumentos processuais, de ordem civil e até mesmo de cunho administrativos podem trazer efeitos mais concretos e desprovidos do ônus financeiro e de tempo presentes no exigência do art. 55 da lei 13.097/15. Sobreleva enfatizar o fato de que o próprio agente delegado, no caso os notários (cartorários) são obrigados a informar as partes os documentos necessários e indispensáveis para a lavratura da escritura de compra e venda, bem como pelos riscos assumidos pela sua ausência.

Referências bibliográficas SILVA. Bruno Mattos. Compra e venda de imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos. São Paulo: Atlas, 2015, p. 3. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direitos reais. São Paulo: Atlas, 2011, p. 296. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 293. RODRIGUES, Marcelo Guimarães. Tratado de registros públicos e direito notarial. São Paulo: Atlas, 2014, p. 10. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito das coisas. São Paulo: Atlas, 2014, p. 55. SILVA, Almiro do Couto. Conceitos fundamentais do direito no estado constitucional. São Paulo: Malheiros. p. 45.

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As inovações do Novo Código de Processo Civil e a duração razoável do processo Fernando Rangel Alvarez dos Santos1 Resumo O presente estudo pretendeu identificar, dentre as alterações promovidas pelo novo código de processo civil (Lei nº. 13.105/2015), as inovações que possibilitam concretizar o princípio da razoável duração do processo. Dentro do escopo das diversas alterações inseridas no novo código de processo civil, analisamos as que contribuíram de forma direta ou indireta para a concretização da celeridade e alcance da duração razoável, destacando-se: julgamento antecipado parcial do mérito; extinção dos autos em apartado para exceção de incompetência, impugnação do valor da causa e reconvenção; os negócios processuais; a citação por meio eletrônico; a exigibilidade da obrigação; e o estabelecimento de requisitos objetivos para demonstrativo de cálculos de débitos judiciais. Palvras-chave: Inovação; celeridade; duração razoável; novo código de processo civil. Abstract This study aimed to identify, among the changes introduced by the new Code of Civil Procedure (Law nº. 13,105/2015), the innovations that enable to implement the principle of reasonable duration of the process. Within the scope of the various changes made into the new civil procedure code, we analyze those that contributed directly or indirectly to achieve the speed and the scope of reasonable duration, highlighting: judging early partial termination of merit; judicial proceedings’ records in jurisdiction of exception, and in the cause of value and challenge counterclaim; procedure business, service through electronic; liability of obligation and requirements objectives establishment for planning demonstration of judicial debts. Keywords: Innovation; speed; reasonable time; new civil procedure code.

Introdução O princípio da duração razoável do processo foi inserido no texto constitucional brasileiro pela Emenda Constitucional no. 45-2004, adicionando o inciso LXXVIII ao artigo 5º. da Constituição da República, incluindo assim tal direito no rol dos direitos fundamentais. Tal alteração constitucional ocorreu no sentido de dar efetividade2 ao citado direito nos termos da Convenção Americana 1

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Doutorando do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Veiga de Almeida - UVA (bolsista). Mestre em Direito pela UNESA. Especialista em Direito Civil e Processual Civil (2001) pela UNESA e em Direito Corporativopelo IBMEC. e-mail: [email protected] O nosso entendimento de efetividade se identifica com o expresso por Luís Roberto

As inovações do Novo Código de Processo Civil e a duração razoável do processo

de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica3, que já estava internalizado no ordenamento pátrio desde a Edição do Decreto nº. 678 de 1992. No intuito de dar efetividade ao citado princípio constitucional, temos na Lei no. 13.105/2015, a legalização do princípio, inserido nos poderes e deveres do julgador no texto do artigo 139 4, determinando que o mesmo venha a “velar pela duração razoável do processo.” O novo código, além de atualizar em muito a nossa legislação processual, também tem o intuito de oferecer institutos que consigam dar mais celeridade e que viabilizem a entrega da prestação jurisidicional em prazo mais curto. O presente estudo pretende contribuir para que os aplicadores5 do direito se utilizem das novas ou atualizadas ferramentas para alcançar um possível resultado mais rápido. Muito embora, a produção de novos normativos não garanta a aceleração da entrega definitiva da tutela.6 A abordagem metodológica da pesquisa é o estado da arte, ou seja, o estado do conhecimento. Seu caráter “inventariante e descritivo” permitirá que esta produção acadêmica apresente os argumentos sequenciados harmonicamente para provar as hipóteses lançadas a cada item no texto.

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Barroso: “A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização , no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.” BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade das suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 85. 3 Freddie Didier Jr. faz uma reflexão, tentando distinguir a duração razoável do processo da celeridade. “Não existe um princípio da celeridade. O processo não tem de ser rápido-célere: o processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso submetido ao órgão jurisidicional.” In DIDIER JR, BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Edições Jus Podivm, 2013. p. 67. 4 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento; II - velar pela duração razoável do processo; (grifos nossos) (…) Parágrafo único. A dilação de prazos prevista no inciso VI somente pode ser determinada antes de encerrado o prazo regular. BRASIL. Lei nº 13.105, de 17 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF. D.O.U. DE 17/03/2015, Seção 1, p. 1. 5 Entendemos que os chamados “operadores” do Direito são, em verdade, aplicadores do Direito, pois cooperam para que o Poder Judiciário aplique o Direito. 6 Defendendo a composição do litígio como forma de resolução da lide em prazo razoável, discorre Misael Montenegro Filho: “Nesse particular, quer nos parecer que o magistrado, ao invés de determinar o aperfeiçoamento da citação do réu, após o recebimento da inicial, de forma quase mecânica, como previsto em lei, pode designar audiência de tentativa de conciliação em alguns casos, mesmo que a ação tenha curso pelo rito comum ordinário, estimulando as partes para que ponham fim à controvérsia através da composição manifestada no curso da citada audiência processual, permitindo a provação da sentença homologatória, encerrando o processo com o julgamento do mérito.” In MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil. Atlas, 2008. p. 41.

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Princípio da duração razoável do processo primeiramente, é importante esclarecer que a razoabilidade da demanda tem que ser avaliada não só pelo seu aspecto temporal, ou seja, o citado princípio tem que permitir que o jurisdicionado busque no Poder Judiciário decisões definitivas para os seus conflitos em um tempo em que não se torne o processo em si, um problema social.7 A excessiva quantidade de processos judiciais que existe em tramitação em todas as instâncias do Poder Judiciário não pode ser considerada como a causa direta de ineficiêcia dos resultados esperados pela sociedade das demandas. Tal lógica levaria a se concluir que as vítimas dos conflitos de interesses seriam as “culpadas”, em última análise, tanto pela ineficiência, como pela já conhecida demora dos processos judiciais. O discurso do razóavel, da preocupação com o tempo necessário para a maturação das decisões, esconde a real e antiga ineficiência do Estado brasileiro em providenciar, em tempo esperado pelo cidadão comum, a solução eficiente para os seus conflitos. Ou seja, não há, nem tampouco nunca houve, o aparelhamento necessário para o provimento jurisdicional justo e rápido, mais uma vez, no tempo expectado pela sociedade. O Estado brasileiro sempre alegou a falta de recursos para não empregar mais mão de obra em suas atividades. Enfim, a duração razoável do processo depende de estruturação do Poder Judiciário, contudo, mesmo enfrentando esta nefasta circunstância, percebese que alguns institutos presentes no novo código de processo civil podem contribuir para que tal princípio seja, ao menos, perseguido, mas não sem a certeza de que tais contribuições, diante do quadro atual do Poder Judiciário8, possa alcançar os resultados esperados nos termos da mínima duração esperada e desejada pelo jurisdicionado.

Inovações do novo código de processo civil Para o presente estudo, escolhemos, dentre diversas alterações promovidas pelo novo código de processo civil, alguns institutos ou alterações pontuais, os quais consideramos mais evidenciadores de inovação no que se refere à celeridade processual. 7

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Neste sentido, Diego Martinez Fervenza Cantoario: “O tempo é relevante inimigo da efetiva igualdade no processo. A ‘lentidão’ da Justiça constitui um grave problema social, pois provoca danos econômicos, imobilizando bens e capitais e acentua a disparidade de armas entre os litigantes, favorecendo aqueles que podem suportar os efeitos do tempo.” In SANTANNA, Ana Carolina Squadri et ali. Coordenação: Luiz Fux. Processo Constitucional. Rio de Janeiro. Forense, 2013. p. 910. Atualmente existem tramitando somente na 1a. instância, 78.245.091 processos, sem incluir o acervo da Justiça do Trabalho, segundo dados do CNJ. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em http://www.cnj.jus.br/corregedoria/justica_aberta/? Acesso em 17.03.2016.

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O novo código de processo civil inovou em vários aspectos, contudo destacamos, além dos que serão estudados no presente trabalho, os seguintes: 1) a diminuição da formalidade no incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 134); 2) o estabelecimento de número mínimo de oficiais de Justiça nas comarcas ou seções judiciárias (art.151); 3) a possibilidade de novas formas de comunicação processual, inclusive eletrônica (art. 199); 4) a possibilidade de aproveitamento de atos cometidos com erro de forma (art. 283); 5) a criação da tutela provisória, conjugando as tutelares cautelares do antigo processo cautelar com a antiga tutela antecipada (arts. 294/313); 6) as inovações específicas no procedimento de divisão e demarcação; 7) a possibilidade de julgamento de partilha, mesmo antes da quitação dos tributos; a possibilidade de expedição de formais de partilha antes mesmo do recolhimento dos tributos no rito do Arrolamento (art. 659); 8) a possibilidade de emenda da inicial nas Ações monitórias quando houver dúvida do juiz em relação à prova documental trazida aos autos; a possibilidade de parcelamento na própria monitória, vis-a-vis o que ocorre na execução (art. 701); 9) na Execução para entrega de coisa certa, a possibilidade de se incluir no mandado de citação a hipótese de, em caso de não entrega espontânea, a imissão de posse ou busca e apreensão; e 10) a limitação da interposição de Embargos de Declaração do art. 1.026. Além dos itens acima citados, destacamos para nossa análise os seguintes: Julgamento Antecipado Parcial do Mérito; Extinção dos autos em apartado para Exceção de Incompetência, Impugnação do valor da causa e Reconvenção; Negócios Processuais; Citação por meio eletrônico; Exigibilidade da Obrigação; e estabelecimento de requisitos objetivos para demonstrativo de cálculos para os débitos judiciais.9 9

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Neste sentido em recente artigo, Alexandre Câmara destaca que o novo código de processo civil trouxe “pequenas inovações”, que porém, são de relevante contribuição: “Isto, porém, não é motivo para deixar de lado as pequenas novidades, compostas por regras que muitas vezes têm passado despercebidas, mas que poderão ser muito úteis na construção de um sistema processual mais eficiente do que aquele baseado na legislação anterior.” CÂMARA, Alexandre. Novo CPC, condenações ilíquidas e celeridade processual. Academia.edu. Disponível em https://www.academia.edu/12401450/NOVO_CPC_ CONDENA%C3%87%C3%95ES_IL%C3%8DQUIDAS_E_CELERIDADE_ PROCESSUAL. Acesso em 19.03.2016.

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Julgamento antecipado parcial do mérito10 Tal instituto contempla a possibilidade de se julgar definitivamente matérias incontroversas e segundo a lei, “em condições de imediato julgamento”, tornando líquidos pedidos, que podem ser executados de imediato. O julgamento antecipado parcial do mérito se constitui em inovação11, contribuindo não somente para acelerar a demanda, como também contribui para a eficiência do processo, pois não faz com que o autor, vencedor no pedido julgado antecipadamente, tenha que aguardar até o fim da demanda quando ocorre o deslinde quanto aos demais pedidos. Tal instituto somente vai ser efetivamente provedor de celeridade se os procuradores do autores insistirem em pedir, desde que tenham convicção da incontrovérsia dos seus pedidos, demandando que o Poder Judiciário forneça respostas, como já mencionado, por meio de institutos novos. Ou seja, não adianta colocar a responsabilidade integral pela demora processual, em tais casos, nos membros do Poder Judiciário. Caso não haja pedido neste sentido (a dicção da lei trata de “pedidos”), não haverá decisões tornando a direito concreto. É de conhecimento notório que vários sabemos que nunca vieram a se concretizar, talvez por falta de credibilidade ou mesmo por falta de insistência nos pedidos. Art. 356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: I - mostrar-se incontroverso; II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355. § 1o A decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida ou ilíquida. § 2o A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto. § 3o Na hipótese do § 2o, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva. § 4o A liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz. § 5o A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento. 11 Neste sentido, discorrem Mariangela Guerreiro Milhoranza e Luis Augusto da Rocha Pires: “O art. 356 é uma inovação e não possui correspondente no Código anterior. Trata-se da possibilidade de ocorrer o julgamento antecipado parcial do mérito. Assim, quando um ou mais pedidos formulados, ou até mesmo parcelas dos pedidos, mostrarem-se incontroversos ou estiverem em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 225, haverá o julgamento antecipado parcial do mérito.” In ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Novo código de processo civil anotado / Porto Alegre: OAB-RS, 2015. p. 292. No mesmo sentido: “O Projeto, como se vê, dá mais um passo e regulamenta o “julgamento antecipado parcial do mérito” em Seção própria, dentro do Capítulo do “julgamento conforme o estado do processo”. Cuida-se de uma inovação há muito reclamada pela doutrina.” In SCHENK, Leonardo Faria. O JULGAMENTO CONFORME O ESTADO DO PROCESSO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PRIMEIRAS IMPRESSÕES. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 14, n. 1, 2015. 10

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Percebe-se que é uma ferramenta útil à celeridade e não afeta a “maturação” das decisões. Há que se ressaltar que o legislador teve o cuidado de oferecer possibilidade de afastar o perigo de irrevesibilidade, pois a decisão pode ser atacada por meio de Agravo de Instrumento. A entrega, mesmo que parcial, da prestação jurisidicional, não somente efetiva direitos, como também valoriza as decisões do Poder Judiciário de primeira instância.12

Extinção dos autos em apartado para Exceção de Incompetência13; Impugnação do valor da causa14 e Reconvenção15 A alegação de incompetência relativa, a impugnação do valor da causa e a reconversão no Código de Processo Civil de 1973 são apresentadas em separado, até porque, os processos todos eram físicos e se prestigiava o formalismo no seu processamento. Contudo, com o crescimento do número de demandas, a autuação, e o processamento para os despachos, acabavam causando confusões nas decisões nas demandas por meio de lançamentos em autos indevidos, sem decisões em autos que iam e voltavam dos Juízos sem as mesmas, enfim inúmeros problemas percebidos no cotidiano forense. A possibilidade de apresentação da reconversão na contestação assemelhase muito ao que ocorre com o pedido contraposto nos processos de competência dos Juizados Especiais. A extinção dos autos apartados nos casos mencionados concretiza celeridade também nas hipóteses de autos eletrônicos, pois tais autos “apartados” gerariam outra distribuição, outra numeração, envolvendo servidores e todo o aparato do Poder Judiciário para dar existência a tais processos. Ou seja, a medida, mesmo nos processos eletrônicos, também se revela útil e inovadora na direção do alcance da celeridade. O entendimento acima expresso vem de encontro ao que expõe Vitor Salino de Moura de Eça, defendendo a possibilidade de se aplicar o instituto no Processo do Trabalho, nos seguintes termos: “O uso conjugado dos referidos institutos vai ao encontro da valorização da decisão de primeiro grau, na medida em que permite ao juiz, de plano, entregar ao jurisdicionado a tutela referente ao pedido incontroverso, permitindo o gozo célere de parte de seu direito.” EÇA, Vitor Salino de Moura; MAGALHÃES, Aline Carneiro. O julgamento antecipado parcial do mérito e o seu cumprimento provisório no novo CPC: aplicação subsidiária ao Direito Processual do Trabalho-DOI: http://dx. doi. org/10.15600/2238-1228/cd. V15n28p101-126. Cadernos de Direito, v. 15, n. 28, p. 101-126, 2015. p. 123. 13 Art. 64. A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação. 14 Art. 293. O réu poderá impugnar, em preliminar da contestação, o valor atribuído à causa pelo autor, sob pena de preclusão, e o juiz decidirá a respeito, impondo, se for o caso, a complementação das custas. 15 Art. 343. Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa. 12

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Negócios processuais16 A possibilidade de autocomposição de disposições processuais17 tem vital importância na inserção das avenças contratuais dos citados negócios processuais, ou seja, disposição sobre procedimentos, atos e até provas a serem utilizadas, refletindo tal fato no custo dos negócios jurídicos, pois o risco (componente indispensável na formação dos preços) é avaliado também pela sua possibilidade de se ter ou não que ingressar em Juízo para se exercer a pretensão do direito que está previsto nos citados negócios jurídicos. São exemplos de negócios jurídicos: – Fixação de calendário processual; – Escolha de conciliador, mediador ou câmara privada de conciliação e de mediação; – Pacto de impenhorabilidade; – Possibilidade de ampliação de prazos; – Acordo no rateio de despesas processuais; – Acordo para não promover execução provisória; – Acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação; – Convenções sobre prova. A possibilidade criada pela lei nova de se “negociar” aspectos processuais pode, porventura, afugentar aqueles que são arraigados à ideia de que institutos de direito público não podem ser disponibilizados, contudo reitera-se o que já foi defendido no item anterior, ou seja, se as partes não convencionarem e, no momento das demandas, tais negócios processuais puderam ser exercidos, não haverá efetividade da norma. Não se está afirmando que os membros do Poder Judiciário, no exercício da judicância, estão resistentes à aplicação de tais normas, mas sim que as partes podem se adiantar e celebrar em avenças, isto é, trazendo para seara privada, os direitos previstos na nova lei, demandando em outra categoria, ao Poder Judiciário. Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade. Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso. §1º O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados. 17 Neste sentido, Rodolfo Kronemberg Hartman. HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. O Novo Código de Processo Civil Uma breve apresentação das principais inovações. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 68, p. 235-281, mar. - mai. 2015. p. 292 16

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Citação por meio eletrônico18 19 Esta inovação vem, não somente contemplar a modernização do processo (o Poder Judiciário tem intenção de tornar os autos eletrônicos em todos os casos), como também contribui para a celeridade, pois a lei exige que as empresas, tanto públicas, como privadas, mantenham cadastro no sistema para efeito de recebimento de citações. Tal medida facilita bastante a concretização da relação processual por meio da efetivação da citação, mesmo sendo a pessoa jurídica, em geral, estabelecida em algum local físico, pois a mesma pode mudar de endereço após a relação jurídica que deu ensejo ao processo. O meio eletrônico, como possibilidade para citação, pode vir a evitar que os autores não inaugurem processos, considerando somente a hipótese de serem buscados os endereços do réus, pelos meios que Poder Judiciário oferece (ofícios dirigidos aos órgãos e repartições públicas, concessionárias de serviços públicos etc), mas sim outras hipóteses, até mesmo, os meios de busca que a rede mundial de computadores oferece. Assim, considerando a dificuldade de se encontrar o réu, o processo não seria proposto meramente para interromper prazos prescricionas, mas para tentar que o Poder Judiciário venha a dar efetividade no direito pretendido, colaborando, mesmo que indiretamente, por meio da citação eletrônica.

Exigibilidade da obrigação A sentença que tiver que ter seu valor quantificado meramente por cálculos aritméticos não é considerada ilíquida segundo a dicção do art. 786, não Art. 246. A citação será feita: I - pelo correio; II - por oficial de justiça; III - pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório; IV - por edital; V - por meio eletrônico, conforme regulado em lei. (...) § 1º Com exceção das microempresas e das empresas de pequeno porte, as empresas públicas e privadas são obrigadas a manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por esse meio. 19 O procedimento da citação, na modalidade “por oficial de justiça”, traz ainda outras inovações que podem contribuir em muito para a celeridade, como a possibilidade prevista no parágrafo único do art. 252, onde se determina que nos condomínios edilicios será válida a “intimação” entregue ao funcionário da portaria. Art. 252. Quando, por 2 (duas) vezes, o oficial de justiça houver procurado o citando em seu domicílio ou residência sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar. Parágrafo único. Nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a intimação a que se refere o caput feita a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência. (grifos nossos) 18

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necessitando assim passar por mais uma fase processual. A liquidação, sem estas definições claras sobre sua natureza processual, já gerou muitas dúvidas, ou seja, se era ou não fase do processo de conhecimento ou de execução, e mesmo quais conteúdos de decisões deveriam ser objeto de liquidação. Percebe-se facilmente a contribuição para a celeridade processual, considerando que tal fase na hipótese acima descrita não precisa existir.

Estabelecimento de requisitos objetivos para demonstrativo de cálculos para os débitos judiciais20 A nova codificação traz em três artigos requisitos objetivos para os cálculos de créditos judiciais, a saber: no cumprimento de sentença em obrigação por quantia certa; na mesma espécie quando o devedor é a Fazenda Pública e nas Execuções. A sistematização de tais critérios afasta objetivamente as delongas provocadas por contadores judiciais, assistentes de perícia contábil, e criam uma metodologia uniforme, evitando assim desnecessárias remessas de autos a auxiliares da Justiça, com consequentes aberturas de prazos. Em síntese, trata-se de otimização de tempos processuais. No mesmo sentido pode-se ressaltar também a fixação de critérios para a atribuição do valor da causa, presentes no art. 29221, que também contribuem Art. 524. O requerimento previsto no art. 523 será instruído com demonstrativo discriminado e atualizado do crédito, devendo a petição conter: I - o nome completo, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica do exequente e do executado, observado o disposto no art. 319, §§ 1o a 3o; II - o índice de correção monetária adotado; III - os juros aplicados e as respectivas taxas; IV - o termo inicial e o termo final dos juros e da correção monetária utilizados; V - a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso; VI - especificação dos eventuais descontos obrigatórios realizados; VII - indicação dos bens passíveis de penhora, sempre que possível. § 1o Quando o valor apontado no demonstrativo aparentemente exceder os limites da condenação, a execução será iniciada pelo valor pretendido, mas a penhora terá por base a importância que o juiz entender adequada. § 2o Para a verificação dos cálculos, o juiz poderá valer-se de contabilista do juízo, que terá o prazo máximo de 30 (trinta) dias para efetuá-la, exceto se outro lhe for determinado. § 3o Quando a elaboração do demonstrativo depender de dados em poder de terceiros ou do executado, o juiz poderá requisitá-los, sob cominação do crime de desobediência. § 4o Quando a complementação do demonstrativo depender de dados adicionais em poder do executado, o juiz poderá, a requerimento do exequente, requisitá-los, fixando prazo de até 30 (trinta) dias para o cumprimento da diligência. § 5o Se os dados adicionais a que se refere o § 4o não forem apresentados pelo executado, sem justificativa, no prazo designado, reputar-se-ão corretos os cálculos apresentados pelo exequente apenas com base nos dados de que dispõe. (grifos nossos) 21 Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: I - na ação de cobrança de dívida, a soma monetariamente corrigida do principal, dos juros de mora vencidos e de outras penalidades, se houver, até a data de propositura da ação; 20

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indiretamente para impugnações indevidas, mesmo que feitas em preliminar de contestação. A imposição dos citados critérios revela-se de tão importante, que o legislador determinou no art. 509 22 que o Conselho Nacional de Justiça venha a desenvolver e disponibilizar programas de atualização financeira. Os Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Tribunais Regionais do Trabalho não tem ainda uma metodologia uniforme, nem mesmo aplicam os mesmo índices de atualização monetária. Tal fato acarreta desnecessários Embargos às Execuções por excessos no valor executado, gerando assim mais trabalho e demora nas demandas, portanto, entendemos que muito bem andou a nova lei em prescrever tal determinação, auxiliando, mesmo que de forma indireta, a celeridade e a duração razoável do processo.

a firme intenção de dar o decesso à Justiça por meio dos instrumentos que nos oferece a nova codificação processual. Ponto importante que se acrescenta ao anterior é que o esforço para que o processo seja mais célere e efetivo depende, não é só do julgador, tão criticado por sua entrega no tempo não esperado pelo demandante, mas pelos procuradores daqueles que tem, por obrigação social, se assim podemos chamar, o papel de requerer a tutela, em razão do princípio da inércia não permitir ao julgador atuação, sem provocação. Quanto aos institutos apresentados, destacamos que o julgamento antecipado parcial do mérito, em que pese necessitar de requerimento, carece de atuação desbravada dos nossos julgadores, sob pena de se tornar letra morta na lei, como tantas outras já ocorreram. Entendo que por todos os princípios positivados, por todos os mecanismos criados, alguns acima citados, o Poder Judiciário pode promover, até mesmo por meio de técnicas importadas, a exemplo da vinculação de decisões por precedentes, o exercício da prestação jurisidicional mais célere, dentro da razoabilidade, dando à sociedade a necessária e esperada efetivação deste direito fundamental de forma justa e solidária. Por fim, expressamos o mesmo entendimento de Lênio Streck23 acerca da concretização dos direitos fundamentais: “... o significado de Constituição depende do processo hermenêutico que desvendará o conteúdo do seu texto, a partir de novos paradigmas exsurgentes da prática dos tribunais...”

Considerações finais A mais imediata das constatações é que os institutos acima apresentados não necessitam primordialmente de fatores externos ao Poder Judiciário para se concretizarem, isto é, não há premência de recursos materiais para sua aplicação. Tal consideração é importante, pois sempre que se cogita em exigir qualquer melhoria da atividade jurisdicional, sempre vem a escusa da “falta de recursos”, ou mesmo, “falta de verbas”. A efetivação de direitos fundamentais não ocorre somente com a regulamentação dos mesmos, e, no caso do princípio da razoável duração do processo não é diferente. Ou seja, os aplicadores do Direito tem que ter em mente, não só a cooperação é suficiente, cujo princípio foi trasladado para a presente lei, mas sim que é preciso carregar as tintas dos atos processuais com

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II - na ação que tiver por objeto a existência, a validade, o cumprimento, a modificação, a resolução, a resilição ou a rescisão de ato jurídico, o valor do ato ou o de sua parte controvertida; III - na ação de alimentos, a soma de 12 (doze) prestações mensais pedidas pelo autor; IV - na ação de divisão, de demarcação e de reivindicação, o valor de avaliação da área ou do bem objeto do pedido; V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido; VI - na ação em que há cumulação de pedidos, a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; VII - na ação em que os pedidos são alternativos, o de maior valor; VIII - na ação em que houver pedido subsidiário, o valor do pedido principal. § 1o Quando se pedirem prestações vencidas e vincendas, considerar-se-á o valor de umas e outras. § 2o O valor das prestações vincendas será igual a uma prestação anual, se a obrigação for por tempo indeterminado ou por tempo superior a 1 (um) ano, e, se por tempo inferior, será igual à soma das prestações. 22 Art. 509. Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento do credor ou do devedor: (...) § 3º O Conselho Nacional de Justiça desenvolverá e colocará à disposição dos interessados programa de atualização financeira. (grifos nossos)

Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade das suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em http://www.cnj.jus.br/ corregedoria/justica_aberta/? Acesso em 17.03.2016. BRASIL. Lei nº 13.105, de 17 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF. D.O.U. DE 17/03/2015, Seção 1, p. 1. CÂMARA, Alexandre. Novo CPC, condenações ilíquidas e  celeridade processual. Academia.edu. Disponível em https://www.academia.edu/12401450/NOVO_CPC_ CONDENA%C3%87%C3%95ES_IL%C3%8DQUIDAS_E_CELERIDADE_ PROCESSUAL. Acesso em 19.03.2016. DIDIER JR, BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Edições Jus Podivm, 2013. EÇA, Vitor Salino de Moura; MAGALHÃES, Aline Carneiro. O julgamento antecipado parcial do mérito e o seu cumprimento provisório no novo CPC: aplicação subsidiária ao Direito Processual do Trabalho-DOI: http://dx. doi. org/10.15600/2238-1228/cd. v15n28p101-126.Cadernos de Direito, v. 15, n. 28, p. 101-126, 2015. HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. O Novo Código de Processo Civil Uma breve apresentação das principais inovações. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 68, p. 235-281, mar. - mai. 2015. 23

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As inovações do Novo Código de Processo Civil e a duração razoável do processo

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Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica por danos causados ao meio ambiente: Fundamentos e Diretrizes Jurídicos Thiago Jordace1 Bruno Lúcio Manzolillo2 Resumo O meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito garantido a todos pelo constituinte, sofre constantes abusos por parte da população e de interesses pessoais. Nesse interim, percebe-se a exploração ambiental maciça por parte de empresas – públicas ou privadas – assim como frequentes – e, muitas vezes, extremamente danosos – acidentes ambientais, como grandes agentes na contribuição da degradação ambiental pelas mãos humanas. Partindo da análise doutrinária e jurisprudencial, tanto na esfera penal como na visão ambientalista, o presente trabalho tem o objetivo de analisar quais são os argumentos contrários e favoráveis oferecidos para a imputação de responsabilidade penal à pessoa jurídica por condutas danosas ao meio ambiente. Seria essa construção jurídica – já estabelecida na lei – uma aberração jurídica ou apenas mais um instrumento na defesa de interesses difusos? Palavras-chave: Responsabilidade penal ambiental; responsabilidade da pessoa jurídica; princípios de direito penal; meio ambiente. Abstract The ecologically balanced environment, right guaranteed to all by the constituent, suffers constant abuse by the population and personal interests. In the meantime, we see the massive environmental exploitation by companies – public or private – as well as frequent – and often extremely harmful – environmental accidents as major players in the contribution of environmental degradation by human hands. Starting from the doctrinal and jurisprudential analysis, both in criminal spectrum as the environmentalist view, this study aims to analyze which are the arguments against and favorable offered for attributing criminal liability to corporations for conducts detrimental to the environment. Would this legal construction – already established in the law – a legal aberration or just another instrument in the defense of diffuse interests? Keywords: Environmental criminal liability; liability of legal entities; principles of criminal law; environment. Doutorando em Direito da Cidade e Mestre em Direito Penal pela UERJ. Professor da UFRRJ e IBMEC. Advogado. E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Direito da Cidade pela UERJ. Especialista em Direito Ambiental Brasileiro pela PUC-Rio. Professor de Direito da Unisuam. Advogado. E-mail: [email protected] 1

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Introdução O princípio da responsabilidade integral do degradador do meio ambiente o sujeita, cumulativamente, a sanções repressivas e reparatórias. Isso significa que “os atos atentórios ao ambiente têm (ou podem ter) repercussão jurídica tripla, já que ofender o ordenamento de três maneiras distintas”3. Na prática, percebe-se que certas condutas lesivas à integridade ambiental podem receber, simultaneamente, sanções administrativas, criminais e civis. A aplicação de tais sanções parece adequada quando temos no infrator uma pessoa física (natural). Contudo, não se pode dizer o mesmo quando temos uma pessoa jurídica na qualidade de transgressor. Surge aí uma problemática densa, ao ponto que, conforme se atestará nas páginas que seguem, embora a legislação seja clara em abrir espaço, no ordenamento jurídico, para a imposição de sanções penais à pessoa jurídica – status ímpar na legislação penal – a aplicação da lei e o entendimento doutrinário estão longe de serem pacíficos. Fato é que colocar uma pessoa jurídica na posição de ré num julgamento criminal atenta contra determinados paradigmas no direito penal. Entretanto, por outro lado, o Direito tem o condão de responsabilizar quaisquer infratores por seus atos – ainda mais quando se trata de violações a direitos difusos, no caso, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo. Num mundo onde grandes empresas são responsáveis por acidentes ambientais de escalas globais4, não submeter tais pessoas a sanções criminais parece muito mais perigoso do que as questões principiológicas envolvidas. É onde se espera chegar ao longo do presente estudo.

O expansionismo do Direito Penal As instâncias jurídicas civis e administrativas para a tutela ambiental protegem a natureza de forma compensatória e punitiva. A primeira é levada a efeito por intermédio de imposição de obrigações de fazer em face do sujeito ativo da degradação. Este fica responsável pela restauração da região degradada e/ou se abstém de continuar sua atividade poluidora. Já a segunda forma de proteção pelas instâncias não penais é a imposição de sanções administrativas, tais como a multa e a proibição de contratar com a Administração Pública5. Entretanto, a sociedade padece de constante descrédito perante modalidades de responsabilização jurídica além da oferecida pelo direito MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 9. ed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 335. 4 Servem de exemplo meramente ilustrativo os desastres de vazamento radioativo em Chernobyl (1986), o derramamento de petróleo pelo navio Exxon Valdez, no Alasca (1989), e a explosão da plataforma Deepwater Horizon, da empresa British Petroleum no Atlântico, e consequente derramamento de óleo (2010) 5 BRASIL. Lei nº 9.605/98, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, Seção 1, ano 135, n. 31,p., 13 fev. 1998. 3

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penal, suscitando maior espetro da atuação do direito penal na regulação do meio ambiente.6-7. Em sede penal, o esperado é uma intervenção mínima do direito, que deve ser acionado somente quando outros instrumentos jurídicos não-penais não puderem proteger os bens jurídicos tutelados de forma eficaz – princípio da intervenção mínima. Quando há uma grave afetação destes valores, há a possibilidade de utilização do diploma repressor como último recurso – ultima ratio8-9. Pois bem, o direito penal é o ramo que tutela os bens jurídicos mais importantes da sociedade. A vida, o patrimônio e a dignidade sexual são exemplos desses objetos de tutela penal. No direito penal moderno, é revelada a aparição de novos bens jurídicos e uma ampliação dos objetos de tutela, o aparecimento de “novos interesses”10. Estes seriam a origem de novos bens jurídicos sensíveis e importantes, tais como o meio ambiente e a ordem tributária. São novas relações sociais e/ou realidades que não existiam e não foram previstas pelo legislador. Estes surgem principalmente na parte especial das legislações penais11. Esses novos objetos de tutela penal são interesses coletivos e difusos. Determinado ato atentatório a estes bens jurídicos afeta toda a coletividade. Portanto, a doutrina do direito penal mínimo12 não deve ser levada a SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industrial. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 57-62 7 VERSIANI, Tatiana; JORDACE, Thiago Legitimação do direito penal econômico para a tutela de crimes ambientais e financeiros. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO DE DIREITO, 20., 2011, Vitória. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2012. p. 1568. 8 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 84-85. 9 “A razão pela qual o Direito Penal apenas deve ser empregado quando fracassam todos os outros meios político-sociais de coibição de um comportamento social criminoso reside no fato de que a punição pode prejudicar a existência social do condenado e arrastalo para à margem da sociedade, tendo até mesmo um efeito socialmente nocivo. Por isso, deve-se preferir, no lugar da punição, todas as medidas que possam evitar uma perturbação social, mas que tragam para o condenado consequências menos incisivas. Costuma-se expressar essa ideia dizendo que o Direito Penal seria a ultima ratio (o último recurso) da política social.”. (ROXIN, Claus; ARTZ, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao direito penal e ao direito processual penal. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 8). 10 SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Op. cit., p. 33-34. 11 HASSEMER apud GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de resistência. Tradução de Érica Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 45. 12 Direito Penal Mínimo ou Modelo Ultraliberal – os adeptos desta linha doutrinária entendem ser a esfera penal a mais restrita possível, restringindo-se à tutela básica de bens jurídicos individuais – vida, saúde, liberdade e propriedade. Qualquer bem jurídico diferente destes deve ser protegido por outras esferas jurídicas. (SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Op. cit. p. 27). 6

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efeito quando o bem jurídico for o meio ambiente. Até porque, as atividades degradantes são muitas vezes irreparáveis ou de difícil reparação, podendo comprometer as presentes e futuras gerações13.

do meio ambiente pela via penal e administrativa de forma global e específica. A legislação anterior à lei de crimes ambientais não previa a liquidação do ente coletivo pela prática de infração ambiental. A pessoa jurídica poderia cometer infrações administrativas sem ter sua liquidação forçada por decisão judicial. Entretanto, a lei 9.605/98 foi ao encontro do texto constitucional em seu art. 3º19, prevendo sanção quando o ente coletivo for criado ou utilizado para permitir, facilitar ou ocultar crime definido na lei. Os seus bens serão transferidos para o Patrimônio Penitenciário Nacional20. O ordenamento jurídico anterior também não previa a extinção da punibilidade pela reparação do dano ambiental. Agora, ao contrário, a punição é extinta com a apresentação do laudo probante de recuperação da natureza21. Um avanço legislativo importante para a manutenção do ecossistema equilibrado. O Direito Positivo anterior à lei 9605/98 previa para a pessoa física a aplicação de penas alternativas para crimes com pena privativa de liberdade aplicada até dois anos, não havendo disposição acerca de medidas alternativas que seriam mais benéficas ao meio ambiente. Havia apenas o intuito de punir, não existia preocupação de ser a punição uma forma de beneficiar a natureza e manter o equilíbrio ecológico. Com a vigência da lei de crimes ambientais, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos é possível quando a pena prevista for de até quatro anos22. Ressaltando que a maioria dos crimes previstos pela referida legislação tem limite de quatro anos de prisão. Pois bem, quanto a responsabilização de pessoas naturais não há divergência doutrinária acerca da possibilidade de aplicação de sanção penal. Todas as penas indicadas pelo art. 5º, XLVI da CRFB/88 são aplicáveis ao ser humano23.

Bases legais da responsabilização da pessoa jurídica por dano ambiental Em 1988, com o advento de nossa Constituição Federal, o constituinte, ao dar especial destaque à tutela ambiental, consubstanciada em seu art. 225, determinou a responsabilização pelas vias administrativa e penal por condutas lesivas ao meio ambiente, prevendo, ainda, a responsabilidade penal das pessoas físicas e jurídicas pelos atos lesivos à natureza14. A referida determinação da Constituição levou ao reconhecimento da existência e da relevância do meio ambiente para o ser humano, e, com o status constitucional adquirido por tal bem jurídico,15 o poder constituinte entendeu por bem utilizar a ultima ratio para garantir a proteção eficiente da natureza16-17. Contudo, até então, a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica não era apenada, por ser norma constitucional de eficácia limitada, ou seja, necessitava de uma norma infraconstitucional para total aplicabilidade. Além disso, em atendimento ao princípio da legalidade, a criminalização de condutas somente é possível com elaboração de leis penais incriminadoras – e, como isso não existia para o ente coletivo, sua responsabilização penal era impossível18. Com o intuito de solucionar a omissão constitucional, dez anos após a promulgação da Carta Magna, o legislador promulgou a lei de crimes ambientais – lei 9.605/98, a principal legislação regulamentadora do art. 225 da Constituição Federal de 1988. A norma vem a suprir uma ordem constitucional de proteção FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 36. 14 CRFB/88, art. 225, § 3º: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. 15 Apesar de existir divergência se o meio ambiente pode ser bem jurídico penal, deve-se considerá-lo como objeto de tutela penal. 16 PRADO, Luiz Régis. Crimes contra o meio ambiente: anotações à Lei 9.605 de 12.2.98, doutrina, jurisprudência legislação. 2.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2001. p. 59. 17 Este entendimento é verificado na maioria da doutrina brasileira. Contudo, muitos autores nacionais e estrangeiros entendem de forma diversa – por todos: Eugênio Raul Zaffaroni e René Ariel Dotti (PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (coords.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva, coordenação. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011). Os argumentos contrários e favoráveis acerca da responsabilização penal da pessoa jurídica serão apresentados e estudados no item 3.4 e seguintes do presente trabalho. 18 Informação obtida com estudo comparativo das leis nacionais de proteção ambiental com a legislação brasileira atual. 13

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Lei 9.605/98, art. 3º: “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”. 20 Lei 9.605/98, Art. 24: “A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional”. 21 Lei 9.605/98, art. 28. “As disposições do art. 89 da Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta Lei, com as seguintes modificações”: I – “a declaração de extinção de punibilidade, de que trata o § 5° do artigo referido no caput, dependerá de laudo de constatação de reparação do dano ambiental, ressalvada a impossibilidade prevista no inciso I do § 1° do mesmo artigo”. 22 Lei 9.605/98, art. 7º: “As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade quando”: I – “tratar-se de crime culposo ou for aplicada a pena privativa de liberdade inferior a quatro anos”. 23 CRFB/88, art. 5º, XLVI: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos. 19

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Contudo, a questão não é tão simples quando a discussão versa sobre a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica24. Ainda que a questão seja legalmente pacificada pelo atual texto constitucional e legal, como se trata de uma ficção jurídica, sua responsabilidade penal sofre alguns entraves técnicos para o reconhecimento de sua imputação e sanção criminal. Diferentemente da pessoa natural, a qual é a individualização jurídica do ser humano, pessoa jurídica é o conjunto de pessoas ou bens que, por imposição legal, formam as associações, instituições, corporações e sociedades25. São associações ou instituições formadas, por imposição legal, para certa finalidade, sendo reconhecidas no ordenamento jurídico como sujeitos de direitos e deveres. As pessoas jurídicas são também conhecidas como pessoas morais, pessoas coletivas, pessoas civis e pessoas sociais26. Ressalte-se que a simples associação de bens ou de pessoas não caracteriza a pessoa jurídica. São necessários, ainda, mais dois elementos: imposição legal e finalidade. A primeira é a permissão ou obrigação imposta pelo ordenamento jurídico para o reconhecimento de tal ente. A segunda é o objetivo do ente coletivo, devendo ser claro, explícito e permitido pela legislação. Dessa forma, não deixando dúvidas sobre o assunto, Ruggiero27 indica o seguinte conceito de pessoa jurídica:

O reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Direito brasileiro está intimamente ligado à discussão sobre a natureza jurídica do ente coletivo. Dependendo da teoria adotada, há a possibilidade de responsabilização criminal ou sua inviabilidade. Beviláqua afirma existir sete teorias que procuram explicar a natureza da pessoa jurídica. As mais notórias teorias são as da Ficção Jurídica – Von Savigny – e da Realidade Objetiva – Gierke28. Tendo como principal precursor Savigny, a teoria da ficção jurídica indica ser a pessoa jurídica uma “[...] entidade fictícia criada pelo Direito e não seres reais. Nas pessoas coletivas a única realidade é a das pessoas físicas que a compõem”. Identificando-a dessa forma, o ente coletivo é um ente artificial, não possui vontade e capacidade de ação. Neste raciocínio, não há possibilidade de responsabilização penal de algo que não pode expressar seu dolo. A vontade livre e consciente dos administradores, dirigida para um determinado fim, não pode refletir nas corporações, pois estas não exprimem suas vontades. A realização de um ato ilícito pelo ente moral é um paradoxo entre sua finalidade, sua definição e sua natureza. A única forma de agir transgredindo a lei penal seria identificar sua atuação de forma artificial, identificando sua vontade de agir e a possibilidade de ação exprimida a partir do ser humano (administrador), podendo relacionar a atitude deste com a pessoa jurídica29. Já a teoria da realidade objetiva30, que viu em Gierke seu idealizador, indica serem as pessoas jurídicas “[...] verdadeiros organismos sociais, assemelhados às pessoas naturais, inclusive com vontade própria”31, são “[...] pessoas reais, dotadas de uma real vontade coletiva, devendo ser equiparáveis, como seres sociais que são [...]”32. É certo que existem elementos de incompatibilidade entre o ser humano e o ente moral, mas sua capacidade é equivalente à das pessoas. A possibilidade de querer e agir é verificada por intermédio de seus órgãos, agentes e administradores. Adequando a teoria ao ramo penal, pode-se responsabilizar o ente coletivo por ser capaz de agir com dolo. Este é concretizado pela sua administração, gerência, reunião, deliberação e voto da assembleia geral de seus membros33.

[...] qualquer unidade orgânica resultante de uma coletividade organizada de pessoas ou de um complexo de bens a que, para a consecução de um fim social duradouro e permanente, é pelo Estado reconhecida uma capacidade de direitos patrimoniais. “Pessoa jurídica – A personalidade jurídica depende da própria ordem jurídica, pois houve épocas em que o homem era considerado coisa, como em Roma, onde os escravos não eram dotados de personalidade civil. Ademais, além da pessoa natural existem figuras jurídicas que, por ficção, acham-se dotadas de personalidade; são as pessoas jurídicas. Dessa forma, a personalidade civil é conferida pela lei ao próprio ser humano enquanto tal, ou a um ente coletivo, como a pessoa jurídica”. [...] “Chama-se pessoa jurídica, coletiva ou moral o ente ideal, abstrato, racional que, sem constituir uma realidade do mundo sensível, pertence ao mundo das instituições ou ideais destinados a perdurar no tempo. A pessoa jurídica pode ser formada por pessoas naturais (CC: art. 981), ou por bens, tratando-se de fundações (CC: arts. 44, III, e 62 e ss.). A pessoa tem existência que independe de cada um dos indivíduos que a integram, e seu objetivo é próprio, destacado da simples soma dos objetivos daqueles que participam. As pessoas jurídicas, nos diz Francesco Ferrara, são tão reais como outras instituições (contratos, heranças). Trata-se de uma realidade ideal, jurídica, não sensível [...]” (ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico Acquaviva. 5. ed. São Paulo: Rideel, 2011. p. 641). 25 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975. v.3, p. 1160-1161. 26 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva: 2011. v.1, p. 125. 27 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Campinas: Bookseller, 1999. p. 550-559. 24

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LUISI, Luiz. Notas sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (coords.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva, coordenação. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 29. 29 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 33-34. 30 A teoria da realidade objetiva também é conhecida como teoria da personalidade real ou teoria orgânica ou teoria da vontade real. 31 LUISI, Luiz. Op. cit., p. 29. 32 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 90. 33 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 90-91. 28

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Argumentos doutrinários para a responsabilidade penal da pessoa jurídica Sustentando a impossibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica, a doutrina brasileira34 indica os seguintes argumentos: (i) ausência de responsabilidade sem culpa; (ii) princípio da personalidade da pena; (iii) impossibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade à pessoa jurídica; (iv) impossibilidade de arrependimento do ente moral, visto que é desprovido de vontade – não podendo ser intimidada ou reeducada35; (v) interpretação equivocada da CRFB/88; (vi) princípio da igualdade; (vii) direito de regresso – princípio da dupla garantia; (viii) tempo do crime; (ix) lugar do crime; (x) conduta humana como primeiro elemento do crime, e; (xi) verificação da culpabilidade36. O primeiro argumento contra a responsabilidade penal da pessoa jurídica é que não há responsabilidade sem culpa. Como o ente moral não é provido de consciência, inteligência, raciocínio e vontade, ele não pode agir dirigido a um determinado fim – dolo. Dessa forma, não pode cometer crime por si só, suas atitudes são sempre vinculadas a pessoas físicas37. Outro entrave para responsabilizar penalmente a pessoa jurídica é o princípio da personalidade da pena ou individualização da pena. Previsto no art. 5º da CRFB/8838, tal aprumado limita o poder punitivo estatal vedando que a pena aplicada a um indivíduo seja de caráter pessoal, impossibilitando alguém responda criminalmente além dos limites de sua culpabilidade39-40. Desta forma, Encontram-se nesta corrente majoritária da doutrina pátria: Hungria, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Claudio Heleno Fragoso, José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Alberto Rufino, Celso Delmanto, Cesar Roberto Bittencourt, João Carlos Oliveira Robaldo, João Mestieri, José Henrique Pierangeli, Juarez Tavares, Luiz Alberto Machado, Luiz Carlos Rodrigues Duarte, Luiz Regis Prado, Luiz Vicente Cernicchiaro, Manoel Pedro Pimentel, Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti, Sheila Jorge Selim Salles (LUISI, Luiz. Op. cit., p. 36) e José Danilo Tavares Lobato (LOBATO, José Danilo Tavares. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: uma inconsistência dogmática e de princípios. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 13, n. 50, 2010. p. 268-286). 35 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 91-92. 36 DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica. In: PRADO, Luiz Regis, DOTTI, René Ariel (coords.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 163-202. 37 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 25-27. 38 CRFB/88, art. 5º, XLV: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. 39 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 326. 40 Culpabilidade penal é o juízo de censura pessoal pela realização de um injusto típico, endereçada ao indivíduo – culpabilidade de vontade (Responsabilidade penal da 34

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a responsabilidade penal do ente moral é inadmissível por ser a culpabilidade própria do homem, sendo inviável sua verificação no ente coletivo. Portanto, a incriminação deste é uma responsabilidade penal sem culpa – responsabilidade penal objetiva – sendo vedada pelo ordenamento jurídico penal brasileiro41. O terceiro argumento é a impossibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade ao ente moral. Este raciocínio é facilmente verificado, pois esta sanção penal é incompatível com a natureza do ente coletivo. Mais um fator que impossibilita o reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica é a impossibilidade de arrependimento do ente moral, visto que é desprovido de vontade – não podendo ser intimidada ou reeducada. As funções da pena, relativamente à prevenção geral, prevenção especial, afirmação do ordenamento jurídico e ressocialização, não são compatíveis com o ente coletivo. Assim afirmam Mir Puig e Muñoz Conde42: A pena não pode ser dirigida, em sentido estrito, às pessoas jurídicas no lugar das pessoas físicas que atrás delas se encontram, porque conceitualmente implica uma ameaça psicológica de imposição de um mal para o caso de quem delinquir e não se pode imaginar que a pessoa jurídica possa sentir o efeito de cominação psicológica alguma.

O quinto argumento jaz na interpretação equivocada da CRFB/88, especificamente em seu art. 225, parágrafo 3º. Os adeptos desta posição reconhecem ser a redação ambígua do dispositivo, mas é inviável responsabilizar criminalmente os entes coletivos. O texto indica os termos respectivos: “conduta” e “atividade”; em sequência, refere-se a “pessoas físicas ou jurídicas”. Portanto, o legislador teria diferenciado as modalidades sancionatórias para ambas, sendo aplicáveis aos cidadãos sanções de natureza administrativa, civil e penal, às pessoas morais somente as punições administrativas e cíveis43. O próximo ponto indicado pelos doutrinadores que rechaçam a responsabilização penal da pessoa jurídica é a violação do princípio da igualdade, vez que o Estado, detentor do ius puniendi, não poderia ser responsabilizado penalmente e o ente moral privado iria ser punido. Fato é que o detentor do poder punitivo não pode aplicar uma autopunição de caráter criminal, não podendo decretar sua auto liquidação ou aplicar uma pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In:____; DOTTI, René Ariel (coords.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 133). 41 LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros (orgs.). Direito ambiental contemporâneo. Barueri: Manole, 2004. p. 152-153. 42 MIR PUIG, Santiago; MUÑOS CONDE, Francesco apud PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: ____; DOTTI, René Ariel (coords.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 134-135. 43 PRADO, Luis Regis. Curso de direito penal brasileiro. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 302.

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multa a si mesmo, visto que haveria confusão44 entre credor e devedor. Além disso, se houvesse a aplicação de uma pena de prestação à comunidade, quem iria ser punido, na verdade, seria o contribuinte – violação clara do princípio da intranscendência da pena, pois haveria transferência de verbas do erário público45. Argumenta-se ainda quanto a impossibilidade de direito de regresso por parte do Estado para reaver o prejuízo causado por seus agentes. O art. 37, § 6º da CRFB/88 prevê o princípio da dupla garantia46. É assim chamado porque confere ao cidadão o benefício da responsabilidade civil objetiva do Estado, ou seja, a reparação do dano independe da comprovação de culpa. A segunda garantia é referente ao agente público, pois este somente será responsabilizado via ação de regresso, ajuizada pelo Estado, a fim de reaver o valor pago ao administrado em ação indenizatória por ato ilícito praticado pelo representante estatal47. Se houver a aceitação da responsabilidade penal do ente moral, não poderia o ente estatal promover ação de regresso contra o preposto causador do dano, pois este foi “corresponsável” pelo crime gerador do dever de indenizar. Dessa forma, carece de legitimidade na demanda, pois um réu não pode ajuizar ação em face de corréu ação reparatória oriunda de delito que ambos cometeram. Fundamenta também este raciocínio o art. 270 do CPP: “O corréu no mesmo processo não poderá intervir como assistente do Ministério Público”48. Sustentam, ainda, a impossibilidade de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica por afrontar regras de aplicação de pena, tais como o tempo e o lugar do crime. Quanto ao primeiro, verifica-se grande dificuldade para determinar o tempo do delito. Isso ocorre porque o Poder Legislativo indicou ser o momento da infração penal pautado na conduta humana, uma atividade

dirigida a uma finalidade praticada por uma pessoa natural, não prevendo ser o ente moral como sujeito ativo de um ilícito penal. Também há problemas ao determinar o lugar do crime, pois é inviável estabelecer o local da atividade praticada por um ente coletivo. Este tem diretoria e administração em várias partes do território nacional e, por vezes, do globo. Mesmo adotando a teoria da ubiquidade, não seria fácil indicar onde foram praticados todos os atos de execução49. Outro entrave teórico é a incompatibilidade com a teoria do crime. Especificamente são duas incongruências indicadas pela doutrina: (1) conduta humana como primeiro elemento do crime; (2) medida da culpabilidade50. Crime é fato típico, ilícito ou antijurídico e culpável. O primeiro elemento do delito é composto pela ação humana, nexo de causalidade, resultado e tipicidade. Sendo a conduta do ser humano o primeiro elemento do fato típico, pode-se dizer que pessoa jurídica não pratica conduta, não age, não atua. O agir desta “[...] configura-se apenas no plano de valoração da norma. Ontologicamente esta ação não passa de uma conduta humana das pessoas que legalmente são autorizadas a atuarem em nome da pessoa jurídica”51. Como último argumento, a doutrina contrária à responsabilização penal da pessoa jurídica ressalta a impossibilidade de auferir a culpabilidade desta. Conforme indica Davi Tangerino52, culpabilidade é “[...] um juízo de reprovabilidade dirigido contra aquele que escolheu agir em contrariedade ao ordenamento jurídico. Compõe-se da imputabilidade, do potencial conhecimento da ilicitude e da inexigibilidade de conduta diversa”. Os críticos da responsabilidade do ente moral alegam ser impossível auferir juízo de reprovabilidade de uma ficção jurídica, pois esta é não possui vontade própria. Como o terceiro elemento do conceito analítico de crime é intimamente vinculado à pretensão de agir e querer, sua inviabilidade de identificação gera responsabilidade objetiva – rechaçado pelo direito penal pelo princípio da culpabilidade53-54.

Confusão é a “[...] reunião numa mesma pessoa, da qualidade de credor e de devedor, de modo que tal pessoa teria de exigir um crédito de si própria, como ocorre na sucessão em que o herdeiro devia dinheiro ao de cujus; recebendo deste a herança, ocorre a confusão, no próprio herdeiro, das qualidades de credor e devedor” (ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Op. cit., p. 216). Código Civil, art. 381: “Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor”. 45 LOBATO, José Danilo Tavares. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: uma inconsistência dogmática e de princípios. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 13, n. 50, p. 268-286, 2010. 46 CRFB/88, art. 37, § 6º: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. 47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 327904. Relator Ministro Carlos Britto. Brasília, 15 de agosto de 2006. Diário da Justiça, Brasília, 8 set. 2006. 48 DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica. In: PRADO, Luiz Regis, DOTTI, René Ariel (coords.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 163-202. 44

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CRUZ , Gysele Maria Segala da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público nos crimes contra o meio ambiente: uma visão pragmática. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 18, 2007. Disponível em: . Acesso em: 07 dez. 2013. 50 DOTTI, René Ariel. Ibid. 51 LOBATO, José Danilo Tavares. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: uma inconsistência dogmática e de princípios. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 13, n. 50, p. 268-286, 2010. 52 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2011. p. 255. 53 MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito Constitucional do Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 393-395. 54 JABOR, Marília. Aspectos contábeis e jurídicos do passivo ambiental. In: COSTA 49

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De outro lado, temos a corrente que sustentam a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica. Aqui, a doutrina pátria55 indica os seguintes argumentos: (i) comando constitucional específico; (ii) princípio da isonomia; (iii) teoria da realidade objetiva; (iv) adaptação do elemento culpabilidade, e; (v) sistema da dupla imputação. A doutrina que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica indica que a tutela penal do meio ambiente é uma ordem constitucional. Uma vez prevista no art. 225, parágrafo 3º da CRFB/88, a proteção da natureza pelo direito penal é obrigatória. Além disso, a interpretação de não atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica, por intermédio de um argumento formulado a partir de uma interpretação meramente literal é inadequada e indevida. Conforme indicam Passos de Freitas, a Carta de 1988 indicou de forma clara, ao usar a conjunção conectiva “e” entre as palavras penais e administrativas, protegendo o meio ambiente de forma cumulativa – ramos penal, cível e administrativo. Além disso, o legislador reafirmou o objetivo protecionista pelo poder constituinte ao atribuir responsabilidade penal ao ente coletivo na lei 9605/98, em seu art. 3º. Portanto, com dois indicativos – constitucional e legal – resta clara a constitucionalidade da previsão de sanção penal para os entes morais. Adiante, rechaçar a viabilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas por danos causados ao meio ambiente importaria violação do princípio da isonomia. Este segundo argumento fundamenta a maior incidência da lei penal, indicando que se o ente moral pode auferir ganhos com ilícitos, também deve arcar com o ônus. Seria anti-isonômico apenar a pessoa física por um ilícito penal e não fazer o mesmo com o ente moral, uma vez que ambos são sujeitos de direitos e deveres para com a sociedade56. Pelo argumento acima, verifica-se a não adoção da teoria da ficção como identificadora da natureza da pessoa jurídica. Os adeptos da responsabilidade penal do ente moral adotam a teoria da realidade objetiva – Otto Gierke. Indicam ser a mais adequada por alguns argumentos. O primeiro, de ordem filosófica, afirma ser a pessoa jurídica uma ficção simplesmente para cumprir os objetivos de legitimar a ordem jurídica, fazendo-a parecer como instituições concretas da sociedade, e alienar as pessoas que não atentam sobre o caráter ficto ou aparente das instituições jurídicas57. O segundo argumento se referente à criação do ente

moral, atribuindo arbitrariedade na imposição de criações do Estado, inventadas do nada para satisfazer a técnica judiciária58. A teoria da ficção não fundamenta a natureza da pessoa jurídica, sendo construção dogmática formulada por uma via diversa da aplicabilidade normativa ao caso concreto59. O quarto argumento favorável à responsabilidade penal da pessoa jurídica é a possibilidade de adaptar o elemento culpabilidade para ser uma via de garantia, contendo o poder punitivo60. O terceiro elemento do crime seria identificado para o ente coletivo como responsabilidade social, limitada à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito61. Valdir Sznick62 diz ser o juízo de reprovabilidade social “[...] uma culpa diferenciada, diversa da culpa tradicional, dentro do interesse público, fundamento da ‘strict liability’, do direito americano, que prescinde da ‘mens rea’, ou seja, do dolo”. Vez que a punição do ente coletivo pelo direito penal é uma realidade, verifica-se a necessidade de parâmetros garantistas para conter o poder punitivo estatal, sendo estes indicados pela doutrina: violação da norma penal deve decorrer da deliberação do ente moral; o autor material do delito deve ser vinculado à pessoa jurídica; transgressão da norma penal com o intuito de beneficiar a pessoa jurídica; deve ser pessoa jurídica de direito privado; o sujeito ativo do crime deve agir no amparo da pessoa jurídica; a conduta deve ocorrer na esfera de atividades da pessoa jurídica. Portanto, o ente moral somente pode ser responsabilizado quando houver intervenção de uma pessoa física63. Pelos parâmetros garantistas de adequação da culpabilidade para a responsabilização penal da pessoa jurídica, verifica ser possível apenar o ente moral64. Os parâmetros de garantia para auferir culpabilidade do ente coletivo

FILHO, Adalberto Vieira. Responsabilidade social das empresas: a contribuição das universidades. v 3. São Paulo: Peirópolis, 2004. p. 396-398. 55 Encontram-se nesta corrente minoritária da doutrina pátria: Gerson Pereira Dos Santos, João Marcello De Araújo Júnior, Sérgio Salomão Shecaira, Fausto Martins De Sanctis, Eládio Lecey, Maria Celeste Cordeiro Leite Dos Santos, Paulo José Da Costa Júnior, Ivete Senise Ferreira, Walter Claudius Rothenburg (LUISI, Luiz. Op. cit., p. 36), Vladimir Passos De Freitas, Gilberto Passos De Freitas, Antonio Evaristo De Moraes Filho, Paulo Affonso Leme Machado, Celso Ribeiro Bastos, Júlio Fabbrini Mirabete, Ada Pelegrini Grinover, Ivete Senise Ferreira, Maria Auxiliadora Minahim, Herman Benjamin, Roque De Brito Alves, Édis Milaré, entre outros (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Op. Cit., p. 69-71). 56 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Op. cit., p. 33-34. 57 COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 533.

SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade dos administradores de S/A: business judment rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 106-107. 59 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Op. cit., p. 35. 60 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Op. cit. 61 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 610.114. Relator Ministro Gilson Dipp. Brasília, 17 de novembro de 2005. Diário da Justiça, Brasília, 19 dez. 2006. p. 463. 62 SZNICK, Valdir. Direito penal ambiental. São Paulo: Ícone, 2001. p. 66-67. 63 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 610.114. Relator Ministro Gilson Dipp. Brasília, 17 de novembro de 2005. Diário da Justiça, Brasília, 19 dez. 2006. p. 463. 64 É possível responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, porém não recomendável. Nos dizeres de Davi Tangerino: “Tal como está, o Direito penal ambiental representa um retrocesso, eis que responsabilização da pessoa jurídica, por ato de outrem, é incontroversamente um modelo de responsabilidade objetiva. Peca, ademais, ao reforçar a lógica da dissuasão que impregna a pena privativa de liberdade, cuja falência é evidente. A superação do paradigma clássico do Direito penal é um desafio que perpassa toda a dogmática penal. Curiosamente, o Direito penal ambiental oferece campo profícuo para que se vivenciem transformações, em especial no que diz respeito à pessoa jurídica. Os modelos de culpabilidade de empresa propiciam círculos virtuosos de prevenção delitiva que poderão, de fato, proteger com maior eficiência o meio ambiente a partir de um movimento crescente de envolvimento com o bem jurídico” (TANGERINO, Davi de Paiva Costa. A responsabilidade penal da pessoa jurídica para além da velha questão de sua constitucionalidade. Boletim IBCCRIM, n. 214, 2010.).

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são mais adequados aos preceitos constitucionais. Nos dizeres de Sieber65,  os elementos da culpabilidade supramencionados projetam a função preventiva da pena, conforme estudos criminológicos, os quais constataram que  “o comportamento dos empregados é principalmente sensível à influência exercida pela própria empresa. Em um estudo empírico comparativo, descobriu-se que o cometimento de crimes é consideravelmente menor nas empresas onde existem regras éticas e programas de compliance”. Verificando a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, a doutrina e jurisprudência divergem em um ponto importante: o ente coletivo pode ser responsabilizado criminalmente de forma autônoma ou há necessidade de dupla imputação conjunta com a pessoa física? A responsabilização criminal autônoma seria interessante por serem complexas as estruturas empresariais modernas. Estas favorecem a impunidade dos crimes ambientais, pois a individualização das condutas das pessoas físicas envolvidas é dificultosa. Com isso, há ineficiente e injusta sanção exclusiva dos “peixes pequenos”66. A exigência da dupla imputação para responsabilizar penalmente a pessoa jurídica é um óbice para a aplicabilidade da lei penal67. Nos dizeres de Passos de Freitas68:

Em sentido diametralmente oposto, corrente majoritária da doutrina entende ser necessária a dupla imputação. “[...] o art. 3º da Lei 9.605/98 consagrou a chamada teoria da dupla imputação ou da imputação por ricochete, ou seja, é imprescindível, para que a pessoa jurídica integre o polo passivo, que também nele figure pessoa física, que tenha agido em nome e benefício do ente moral”69. Os juristas adeptos desta linha de pensamento sustentam a necessidade da dupla imputação pelo fato de ser a pessoa jurídica uma realidade fática. Dessa forma, seu dolo está nas atuações dos seus agentes e dirigentes. Portanto, somente a responsabilização conjunta com a pessoa física satisfaz a dogmática penal70.

[...] a responsabilidade penal da pessoa jurídica não excluiu a das pessoas naturais. O art. 3º, parágrafo único, da lei 9.605/1998 é explícito a respeito. Assim, a denúncia poderá ser dirigida apenas contra a pessoa jurídica, caso não se descubra a autoria ou participação das pessoas naturais, e poderá, também, ser direcionada contra todos. Foi exatamente para isto que elas, as pessoas jurídicas, passaram a ser responsabilizadas. Na maioria absoluta dos casos, não se descobria a autoria do delito. Com isso, a punição findava por ser na pessoa de um empregado, de regra o último elo da hierarquia da corporação. E quanto mais poderá a pessoa jurídica, mais difícil se tornava identificar os causadores reais do dano. No caso de multinacionais, a dificuldade torna-se maior, e o agente, por vezes, nem reside no Brasil. Pois bem, agora o Ministério Público poderá imputar o crime às pessoas naturais e à pessoa jurídica, juntos ou separadamente. A opção dependerá do caso concreto.

SIEBER apud TANGERINO, Davi de Paiva Costa. A responsabilidade penal da pessoa jurídica para além da velha questão de sua constitucionalidade. Boletim IBCCRIM, n. 214, 2010. 66 VERSIANI, Tatiana. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e concurso necessário de agentes. Trabalho de Conclusão de Curso (Grau de Bacharel em Direito) – Faculdade de Direito, Centro de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. p. 47. 67 BRASIL. Tribunal Regional Federal 4ª Região. Mandado de Segurança nº 2007.04.00.026624-9/SC. Relator Desembargador Federal Tadaaqui Hirose, 21 de novembro de 2007. Diário Eletrônico da Justiça Federal da 4ª Região, Porto Alegre, ano 2, n. 270, 28 nov. 2007. 68 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Op. cit., p. 72. 65

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Conclusão Do analisado do presente trabalho percebe-se que a legislação vigente é completamente favorável à responsabilização da pessoa jurídica por conduta danosa ao meio ambiente – tanto na Constituição Federal quanto na legislação infraconstitucional. Já a doutrina está longe de ser pacífica quanto a tal tema. Ambientalistas e criminalistas apresentam argumentos fortes, com rechaça legal e jurisprudencial, mas a questão não se exaure. Conclui-se que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é acatada pela doutrina e pelo judiciário brasileiro sem problemas de ordem dogmática, somente para os crimes ambientais. Quanto aos outros delitos, a responsabilização do ente coletivo não é teoria acolhida.

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A execução da pena e os Direitos Humanos no Estado Democrático de Direito: instrumentos Legislativos de proteção à Dignidade Humana Cláudia Queda Toledo1 Lívia Pelli Palumbo2 Resumo Sendo a pena privativa de liberdade a última ratio imposta pelo Estado àquele membro da sociedade que tenha conduta contraria a previsto no direito positivo e deve haver ponderação na decisão do juízo criminal. Após a decisão pela supressão da liberdade, direito fundamental previsto no inciso XV do artigo 5º do texto constitucional, o Estado deve se atentar ao cumprimento de pena de forma dignidade com o mínimo para uma sobrevivência digna no cárcere. Porém, conforme se observa das comprovações das condições de alojamento e higiene, o sistema prisional, nos moldes em que se encontra, ofende a dignidade humana da pessoa condenada, que teve uma punição com a supressão do seu direito fundamental à liberdade, porém, é detentora de direitos fundamentais e deve tê-los respeitados. Palavras-chave: Execução da pena; direitos humanos; dignidade humana. Abstract As the term of imprisonment the last resort imposed by the state that member of society who has conduct contrary to laid down in positive law and should be weighted in the decision of the criminal court. After the decision by the suppression of freedom, a fundamental right provided for in item XV of Article 5 of the Constitution, the state should pay attention to the fulfillment of penalty dignity way with the minimum for a dignified survival in prison. However, as seen from the evidence of housing conditions and hygiene, the prison system, in the way it is, offends the human dignity of the convicted person had a punishment with the deletion of their fundamental right to freedom, however, is holder of fundamental rights and must have them respected. Keywords: Execution of the sentence; human rights; human dignity.

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Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC-SP (2008). Doutora em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – ITE, Bauru/SP (2012). Docente  (graduação e pós-graduação) da FDSM. Advogada. E-mail: [email protected]. Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – ITE, Bauru/SP (2013). Especialista em Jurisdição Constitucional e Direitos Humanos – Universidade de Pisà (2013). Docente do IMESB. Advogada. E-mail: [email protected].

A execução da pena e os Direitos Humanos no Estado Democrático de Direito: instrumentos Legislativos de proteção à Dignidade Humana

Introdução A incidência do princípio da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito consolidado na Constituição Federal de 1988, requer apenas uma condição para a sua efetividade como manto protetivo do indivíduo, que não faz distinções de qualquer natureza, a não ser a de que apenas e tão somente está-se diante de um ser humano. Esta é a única imposição para a incidência do princípio: a mera condição de humanidade, que extrai da base estrutural do ordenamento jurídico constitucional a indicação de que independentemente de qualquer outra circunstância, tal condição – humana – faz valer na sociedade a concretização dos direitos e garantias fundamentais espraiados por todo o texto constitucional. Assim, não se pode olvidar de que qualquer pessoa está,  no âmbito da convivência em sociedade, sujeita ao cometimento de um crime e, se processado e considerado culpado, deve cumprir a pena imposta pelo Estado. Porém, quando do cumprimento de sua pena, o apenado deve ter sua dignidade respeitada, o que é inerente a todo ser humano no contexto do Estado Democrático de Direito.

Execução da pena e dignidade humana Dignidade como meta princípio no ordenamento jurídico brasileiro A dignidade humana preocupou-se em tratar o indivíduo sob a óptica do ser e não do ter, e por se tratar de argumento em decisões e argumentações, o mesmo acabou por se erigir em meta princípio. Cármen Lúcia Antunes Rocha (2004, p. 130) dispõe que “a vida digna não é mais uma possibilidade. É um imperativo para que se assegure a igual liberdade e a livre igualdade de todos os homens”. Em plano concreto, há casos reais decididos por Cortes Internacionais, sendo que em todos eles há um ponto em comum em suas argumentações, qual seja, a necessidade de se fixar um sentido e alcance real da dignidade humana. Assim: de conceito filosófico que é, em sua fonte e em sua concepção moral, o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana tornou-se uma forma nova de o Direito considerar o homem e o que dele, com ele e por ele se pode fazer numa sociedade política. Por força da juridicização daquele conceito, o próprio Direito foi repensado, reelaborado, e diversamente aplicadas foram as suas normas, especialmente pelos Tribunais Constitucionais (ROCHA, 2004, p. 330.

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A Constituição da República de Weimar de 1919 introduziu os direitos sociais e trouxe a garantia à existência digna, como direito de todos, em seu artigo 151; “Garantia de uma existência humana digna para todos.” Outro documento importante que trouxe a inviolabilidade da dignidade humana é a lei

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fundamental da República Federal da Alemanha, que começa seu texto com um capitulo sobre os direitos fundamentais e seu artigo I dispõe que: “A dignidade do ser humano é inviolável”. (HABERMAS, 2012, p. 80). Foi após as atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial que o conceito filosófico de dignidade humana, que já existia na Antiguidade e, com Kant, adquiriu sua concepção que é válida nos dias atuais, foi introduzido no direito das gentes e nos textos constitucionais de diferentes nações. Em contrapartida, o conceito de dignidade humana como conceito jurídico não aparece nem nas declarações clássicas dos direitos humanos do século XVIII, nem nas codificações do século XIX. Por que no direito o discurso dos “direitos humanos” surgiu tão mais cedo do que o da “dignidade humana”? Com certeza, os documentos de fundação das Nações Unidas, que estabelecem expressamente o vínculo dos direitos humanos com a dignidade humana, foram uma resposta evidente aos crimes de massa cometidos sob o regime nazista e aos massacres da Segunda Guerra Mundial. Explica-se por isso o papel proeminente que dignidade humana assume nas constituições pós-guerra da Alemanha, Itália e Japão, isto é, nos regimes que sucederam aos dos que causaram essa catástrofe moral do século XX e dos que foram seus aliados? É somente no contexto histórico do holocausto que a ideia de direitos humanos é depois carregada (e possivelmente sobrecarregada) moralmente com o conceito de dignidade humana? (HABERMAS, 2012, p. 10).

Na seara da execução da pena, importante o direito de ser-viver em dignidade no cumprimento de condenação penal, pois, “todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes inclusive consigo mesmos” (SARLET, 2010, p. 43). A dignidade não tem valoração, trata-se de um valor absoluto, dispondo de uma qualidade intrínseca que a coloca em sobreposição de qualquer medida de fixação de preço. Desta forma, a pessoa condenada por sentença penal transitada em julgado, enquanto do cumprimento de sua pena, deve ter sua dignidade respeitada, o que vale dizer, receber tratamento condigno e respeitoso em relação às condições de sobrevivência nos estabelecimentos do sistema penitenciário brasileiro. Jesús González Pérez (1986, p. 24) apresenta: “la dignidad de la persona es, pues, el rango de la persona como tal”. No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988 a dignidade humana foi preconizada no artigo 1º, inciso III, que funciona como princípio maior, ou seja, meta princípio do ordenamento jurídico brasileiro: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana”. Sendo o Brasil Estado Democrático de Direito, a atual Magna Carta possuindo como fundamentos: soberania; cidadania; dignidade humana;

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A execução da pena e os Direitos Humanos no Estado Democrático de Direito: instrumentos Legislativos de proteção à Dignidade Humana

Cláudia Queda Toledo e Lívia Pelli Palumbo

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e pluralismo político. E como objetivo deste modelo de Estado, tem-se a busca do bem social e da justiça social, com a proteção dos direitos e garantias ao indivíduo, sujeito mais importante desta relação, uma vez que o Estado é um meio para tal, e não um fim em sim mesmo. Como prestação imposta ao Estado, a dignidade humana reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando sua promoção, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição, sendo, portanto, dependente da ordem comunitária, já que é de se perquirir ate que ponto é possível ao individuo realizar, por si mesmo, de forma parcial ou total, suas necessidades existenciais básicas (SARLET, 2010, p. 47). Cabe ao direito a integração de todos os sistemas que compõem a realidade social, caracterizando verdadeiro diálogo, na função de mediador social. Se o direito será o resultado, os princípios constitucionais serão os componentes que darão a tônica deste diálogo, pois é o direito constitucional, hoje, reconhecido como a matriz de todos os ramos do direito, bem como na seara da execução penal.

de eficácia positiva. A aplicação das normas acerca da execução da pena com viés constitucional deve ser analisado pelo “neoconstitucionalismo penal” que se define como: a) presença invasora da Constituição; b) maior presença judicial no lugar da autonomia do legislador; c) revisão completa da teoria da interpretação; d) ênfase nos princípios e nos direitos fundamentais; e) mais ponderação; e, f ) pensar o direito fora do âmbito de aplicação judicial (opções legislativas e políticas públicas) e sim em campo constitucional, qual seja a medida de atitudes, por meio das políticas públicas, a fim de se alcançar a proteção dos direitos fundamentais e a dignidade humana. Como dimensões da vida humana, tem-se a integridade física e a integridade moral e, ambas, devem ser respeitadas, ainda que a pessoa tenha sua liberdade destituída. Nesse sentido, há menção expressa em dispositivo na Constituição Federal e no Código Penal:

Mínimo existencial: núcleo da dignidade O mínimo existencial “corresponde ao núcleo da dignidade humana a que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário” e está presente na atual Magna Carta, conforme explica Ana Paula de Barcellos (2011, p. 302), possui quatro elementos, quais sejam, três materiais e um instrumental: a educação básica, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça. Em relação à proteção da saúde como um dos direitos do núcleo mínimo da dignidade humana, exige-se que o Judiciário seja obrigado a colocar as prestações que fazem parte do mínimo existencial à disposição da sociedade, daí a discussão acerca do argumento da “reserva do possível” utilizado pelo Poder Executivo. Ana Paula de Barcellos (2011, p. 321): [...] o Judiciário poderá e deverá determinar o fornecimento das prestações de saúde que compõem o mínimo, mas não deverá fazê-lo em relação a outras, que estejam fora desse conjunto. Salvo, é claro, quando as opções políticas dos poderes constituídos – afora e além do mínimo – hajam sido juridicizadas e tomem a forma da lei. Também aqui caberá ao Judiciário dar execução – eficácia positiva ou simétrica – à lei. No caso do mínimo existencial, entretanto, a eficácia positiva decorre diretamente do texto constitucional e prescinde da intervenção legislativa.

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Como consequência de normas constitucionais sobre a dignidade e sobre a saúde, é de competência do Poder Judiciário a determinação do fornecimento do mínimo existencial independentemente de outra coisa, é o que se denomina

Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; […] Código Penal, art. 38: O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 5º preceitua: Direito à integridade pessoal. 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. 3. A pena não pode passar da pessoa do delinquente. 4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas. 5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. 6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados (GOMES, 2008, p. 35).

O item 1 dispõe acerca da proteção da integridade física, psíquica e moral: o respeito à integridade física (biológica), psíquica (mental) e moral (relacionada com honorabilidade) nada mais significa que expressão da dignidade da pessoa humana (contemplada no art. 1º, III, da CF, como fundamento da República Federativa do Brasil). Cuida-se a dignidade humana do valor-síntese do modelo de Estado (constitucional e de Direito) que adotamos (GOMES, 2008, p. 35).

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O artigo 40 preceitua: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”, estando, assim, protegidos os direitos fundamentais do homem que servem de suporte aos demais, quais sejam, a vida, a saúde, a integridade corporal e a dignidade humana. A CF protege a integridade física e moral do preso em outros dispositivos, quais sejam: a) artigo 5º, inciso III: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; b) artigo 5º, inciso XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”; c) artigo 5º, inciso LVIII:  “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”; d) artigo 3º, inciso IV: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Julio Fabbrini Mirabete (2004, p.119) corrobora no sentido de que:

proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Extrai-se desse dispositivo, conforme Julio Fabbrini Mirabete (2004, p. 28), duas ordens de finalidades, quais sejam: a) “a correta efetivação dos mandamentos existentes na sentença ou outra decisão criminal, destinados a reprimir e prevenir os delitos”; b) “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, ou seja, “instrumentalizada por meio da oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança possam participar construtivamente da comunhão social”. Ainda, “[...] se adotou o princípio de que as penas e medidas de segurança devem realizar ‘a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade’, está visível a adoção dos princípios da Nova Defesa Social”, qual seja, uma das finalidades da pena, que é a reinserção social do condenado. O objetivo é o de integrar, socialmente, o condenado ou o internado, uma vez que “a natureza retributiva da pena não busca apenas a prevenção, mas também a humanização. Objetiva-se, por meio da execução, punir e humanizar” (MARCÃO, 2008, p. 1). Além do fato de que as decisões que determinam efetivamente os caminhos da execução são jurisdicionais, conforma redação do artigo 194 da Lei de Execução Penal3, ao transitar em julgado a sentença condenatória, nasce, assim, uma complexa relação jurídica entre o condenado e o Estado, que envolvem direitos e/ou suas expectativas, interesses, incidentes de execução, e qualquer eventual conflito, que para ser dirimido, demanda intervenção jurisdicional (MIOTTO, 1975, p. 59 Apud MIRABETE, 2000, p. 19). Ressalta-se que um dos objetivos fundamentais da execução penal é a reinserção social do condenado e, para tal, o Estado deve fornecer os meios para essa efetivação. Desta forma, agir em proteção aos direitos e condições mínimas de sobrevivência no cárcere do apenado, respeitando os objetivos da Lei de Execução Penal, as normas constitucionais e internacionais e o meta princípio da dignidade humana. Porém, a realidade do sistema carcerário brasileiro e as reais condições de sobrevivência quando do cumprimento da pena privativa de liberdade.

em todas as dependências penitenciárias, e em todos os momentos e situações, devem ser satisfeitas as necessidades de higiene e segurança de ordem material, bem como as relativas ao tratamento digno da pessoa humana que é o preso. A Resolução nº 14. De 11-11-94, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, reitera o princípio fundamental de que deve ser assegurado a qualquer pessoa presa ‘o respeito à sua individualidade, integridade física e dignidade pessoal’(art. 3º). A Lei nº 9455, de 7-4-97, que define os crimes de tortura, tipifica como ilícito penal quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio de prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal, bem como aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de apurá-las (art. 1º, §§ 1º e 2º).

A Resolução nº 14, o conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária adotou algumas regras mínimas para o tratamento dos presos no Brasil, seguindo os princípios da Declaração Universal dos Direitos. Embora existam várias normas que determinam um tratamento mais humano aos presos, não foi esse o cenário o encontrado pelos pesquisadores da Human Rights Watch, que visitaram diversos estabelecimentos prisionais no Brasil entre setembro de 1997 e abril de 1998, tendo apresentado relatório nada animador (MATTOS, 2002, p. 660). Direito fundamental previsto na Constituição Cidadã que deve ser respeitado dentro do sistema prisional, porém, com a realidade, há afronta a tal direito, desrespeitando o mínimo para uma sobrevivência digna no estabelecimento prisional.

Objetivos da Lei de Execução Penal

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O fundamento jurídico da aplicação da Lei de Execução Penal deve estar relacionado ao antropológico e, nesse sentido, o artigo 1º da LEP: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e

Princípios constitucionais de Direito Penal e garantias constitucionais no processo A análise dos princípios constitucionais no direito penal e das garantias constitucionais no processo penal se faz necessária, uma vez que o ramo do Direito Penal e Processual Penal deve se adequar à Constituição Federal. Márcia Dometila Lima de Carvalho (1992, p. 142) acentua: 3

Artigo 194. O procedimento correspondente às situações previstas nesta Lei será judicial, desenvolvendo-se perante o Juízo da execução.

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A interpretação do Direito Penal, a sua aplicação, a legislação, o tratamento dos bens jurídicos a serem tutelados, em ultima ratio, pelo Direito Penal, material e processual, têm de estar imbuídos dos valores cristalizados na ordem político-constitucional. O Direito Penal deve servir à ideologia presente no texto constitucional, sem deixar de ser ético, entretanto. Para isso, o aplicador da lei penal há de perceber onde está a justiça social que a Constituição quer e fazer a sua interpretação consentânea com ela.

Princípios e garantias que norteiam o tratamento do condenado, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos assim dispõe: 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. 3. A pena não pode passar da pessoa do delinquente. 4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstancias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas. 5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. 6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados (GOMES; MAZZUOLI, 2008, p. 35).

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José Cirilo de Vargas (2002, p. 46) ressalta que não basta a proclamação dos direitos, necessário os meios de efetivação para o exercício deles, “para desfrutálos, para afastar a ideia de mero complexo de princípios filosóficos e generosos, sem eficácia executória”. Na organização jurídica fundamental do Estado, em há hierarquia do texto constitucional, as normas de Direito Penal e Processual Penal devem respeitar a Constituição Federal, ou seja, qualquer norma que contrarie disposições constitucionais não é valida. A CF vigente, considerada a Constituição Cidadã, por apresentar rol de garantias individuais, prevê, também, princípios que devem ser aplicados em âmbito infraconstitucional do direito penal e processual penal, de modo que o Estado deve definir os direitos fundamentais, bem como regulamentá-los, garanti-los e respeitá-los. “As garantias consistem nas prescrições que vedam determinadas ações do Poder Público que violariam direito reconhecido. São barreiras erigidas para a proteção dos direitos consagrados” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 251). De modo que, o texto constitucional traz princípios referentes ao ordenamento jurídico penal, como um todo, sendo que alguns dizem respeito especificamente às medidas punitivas, ou seja, a aplicação, a cominação e a execução da pena,

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princípios estes que mais interessam ao presente trabalho que buscará o fim almejado, qual seja, demonstração dos direitos das pessoas, mais especificamente, as garantias individuais das pessoas, na execução penal. Assim, em relação à pena, a Magna Carta traz os princípios da legalidade, da pessoalidade, da individualização da pena e da humanização. Ainda, implicitamente, o texto constitucional de 1988 permite a extração de princípios implícitos, quais sejam, os da necessidade, proporcionalidade e função ressocializadora da sanção penal (SCHECAIRA, 1995, p. 27). A Constituição Cidadã, que apresenta maior rol de direitos fundamentais e garantias individuais, em razão de apresentar inovações em relação às garantias constitucionais, trazendo, ainda, o adjetivo “fundamental” à expressão de direitos e garantias, que se deu em face da possibilidade de se enfatizar o homem, o mais novo sujeito de direitos em ordem internacional e a preocupação do Estado Democrático Social. O direito penal, como última ratio, possui sua finalidade que pode ser explicado pelo princípio da função ressocializadora da sanção penal. A Lei de Execução Penal, em seus artigos 4º e 61, inciso VII apresenta a função ressocializadora da execução pena, uma vez que chama a sociedade para efetiva atuação (participação e cooperação) nesta fase do procedimento criminal. A sanção penal possui como finalidade a retribuição e a prevenção, sendo que: na ótica da prevenção, [...], há o aspecto preventivo individual positivo, que significa a reeducação ou ressocialização. Uma das importantes metas da execução penal é promover a reintegração do preso à sociedade. E um dos mais relevantes fatores para que tal objetivo seja atingido é proporcionar ao condenado a possibilidade de trabalhar e, atualmente, sob enfoque mais avançado, estudar (NUCCI, 2007, p. 402).

E esta função não é atingida na realidade carcerária brasileira, em que os estabelecimentos penais estão super lotados: “[...] quando o presídio está superlotado a ressocialização torna-se muito mais difícil, dependente quase que exclusivamente da boa vontade individual de cada sentenciado.” (NUCCI, 2007, p. 402). Na realidade, a ideia de ressocialização pode assumir uma grande variedade de significações, que de um modo geral situam-se entre um Maximo e um mínimo de conteúdo moral. As concepções situadas no primeiro extremo pretendem uma correção moral do condenado, uma modificação da sua atitude interior relativamente às normas de convivência social e particularmente às normas penais; visam, portanto em ultima analise, a uma modificação da sua personalidade, propondo um modelo de tratamento de cunho predominantemente médico-psicológico, que prescinde do consentimento do interno para a sua atuação. As concepções situadas no segundo extremo, colocando a garantia da liberdade individual como uma barreira à persecução da máxima eficácia da prevenção do sistema penal,

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impedem a atuação do Estado sobre a conformação moral do condenado e a intervenção coativa sobre sua personalidade [...]. Sob essa ótica não se persegue, por meio da execução da pena privativa de liberdade, a interiorização, pelo condenado, dos valores protegidos pelo ordenamento jurídico, mas busca-se simplesmente que ele respeite as normas penais e não cometa novos crimes [...] (RIBEIRO. In PRADO, 2007, p. 110).

Esta nova ideia, presente nos sistemas contemporâneos de execução penal, traz o oferecimento de ajuda aos reclusos de uma vida futura distante da criminalidade, porém, a escolha é feita pela consciência e vontade de cada um (SCHECAIRA; CORRÊA JUNIOR, 1995, p. 45). No sistema de execução penal brasileiro, esta nova concepção está presente nos artigos 3º e 40 da Lei de Execução Penal: Artigo 3º. Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política. [...] Artigo 40. Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.

O artigo 59 do Código Penal traz a finalidade da sanção penal como retributiva e preventiva (ressocialização do delinquente). Sérgio Salomão Schecaira e Alceu Corrêa Junior (1995, p. 44) expõem que: “O fim ou finalidade da imposição da sanção penal não deve, portanto, se esgotar no castigo somado à restauração da ordem jurídica (retribuição) [...]”. No Brasil, Estado Democrático de Direito, não pode se falar que a pena tenha finalidade puramente retributiva (retribuição jurídica) em razão de que a sanção deve ter caráter construtivo, relacionado à solução dos problemas da sociedade. Porém: o sistema prisional brasileiro não consegue cumprir a função de ressocializar os condenados. “Eles saem com ódio e uma desesperança muito grande. Saem prontos para cometer novos delitos”, afirma, lembrando que o interior dos presídios é dominado por facções criminosas que cooptam presos de pequena periculosidade e que não há como resistir à cooptação, “até por uma questão de sobrevivência” (OAB, 2013).

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Com a realidade do sistema penitenciário brasileiro e a falta de estrutura e de condições mínimas de saúde para o condenado quando do cumprimento de sua pena, faz com que a pena perca sua função ressocializadora e, também, descumpre princípio geral do direito, previsto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que se aplica de forma subsidiaria à esfera criminal e, consequentemente, à execução penal, que dispõe: “na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

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Desta forma, a nova ideia de reintegração social como finalidade da pena exige uma atuação positiva da comunidade no destino dos egressos, que possui papel fundamental nos relacionamentos sociais após o cumprimento da pena, daí o disposto no artigo 4º, 78 e 79 da Lei de Execução Penal, demonstrando a preocupação com a integridade física e moral dos reclusos, em respeito à dignidade humana e o incentivo de comunicação entre o mundo da prisão e o mundo livre.

Direitos dos presos e Direitos Humanos A preocupação em relação à efetiva proteção do indivíduo, tanto nas ordens jurídicas interna dos Estados, bem como na ordem internacional, se deu, primordialmente, como resposta para evitar as barbáries ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial. Adauto Suannes (1999, p. 129) expõe que: dentre os direitos humanos fundamentais sobressai aquele concernente à liberdade física. Não se ignora que o conceito filosófico de liberdade é sempre relativo. [...] A liberdade, ainda que focada apenas sob a ótica jurídica, será sempre um vir a ser.

O Estado tem o direito de executar a pena, sendo que tais limites constam na sentença penal condenatória, devendo o condenado submeter-se a ela. A esse dever significa que o sentenciado tem o direito de não sofrer, ou seja, de não ter de cumprir pena, seja qualitativa ou quantitativamente diferente daquela prevista em sentença. Sendo a pena privativa de liberdade a última ratio imposta pelo Estado aquele membro da sociedade que tenha conduta contraria a previsto no direito positivo e deve haver ponderação na decisão do juízo criminal. Após a decisão pela supressão da liberdade, direito fundamental previsto no inciso XV do artigo 5º do texto constitucional, o Estado deve se atentar ao cumprimento de pena de forma dignidade com o mínimo para uma sobrevivência digna no cárcere. é antiga a ideia de que os presos não têm direito algum. O condenado é maldito (sacer esto) e, sofrendo a pena, é objeto de máxima reprovação da coletividade, que o despoja de toda proteção do ordenamento jurídico que ousou violar: O criminoso é execrável e infame, servo da pena, perde a paz e está fora do direito. O outlaw no antigo direito inglês podia ser morto por qualquer pessoa, pois, como se dizia nos próprios textos, ‘pode ser morto meritoriamente sem a proteção da lei, o que não quer viver conforme a lei’. No direito primitivo impunha-se ao delinquente a pena de expulsão do grupo (que virtualmente significava a morte (FRAGOSO, 1980, p. 1).

Julio Fabbrini Mirabete (2004, p. 41-42) assevera que:

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eliminados alguns direitos e deveres do preso nos limites exatos dos termos da condenação, deve executar-se a pena privativa de liberdade de locomoção, atingidos tão-somente aqueles aspectos inerentes a essa liberdade, permanecendo intactos outros tantos direitos. A inobservância desses direitos significaria a imposição de uma pena suplementar não prevista em lei. Está previsto nas Regras Mínimas para Tratamento dos Presos da ONU o princípio de que o sistema penitenciário não deve acentuar os sofrimentos já inerentes à pena privativa de liberdade [...]. Este parece ser o ponto mais levantado atualmente por certos juristas quando afirmam que na sanção imposta pelo Código Penal – a privação de liberdade – não estão incluídos os sofrimentos acrescidos pela situação reinante nas prisões, ao quais terminam por agravar a pena a que foi condenado o infrator. (grifo nosso)

Não é em razão de ter cometido uma atitude considerada criminosa e tido sua culpabilidade comprovada que o preso perde seus direitos humanos, deve, tão somente, perder aquele direito de ir e vir, pela aplicação da pena privativa de liberdade, e nos termos da sentença penal condenatória. Tem-se, então, que aos condenados à pena privativa de liberdade, devem estar intactos os direitos consagrados pela Constituição Cidadã, pela Lei de Execução Penal e pelos documentos internacionais de direitos humanos, como As Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros (ONU) – 1955, sendo que o item 57, 2ª parte deste documento internacional dispõe que: A prisão e outras medidas cujo efeito é separar um delinquente do mundo exterior são dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à autodeterminação, privando-o da sua liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá, exceto por razoes justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação.

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Em âmbito internacional, foi apresentada uam visão ampla acerca desta proteção e a fim de se alcançar uma sobrevivência digna quando do cumprimento da pena, o ordenamento jurídico, como um todo, deve aplicar os princípios básicos para uma boa organização penitenciária e as práticas relativas ao tratamento dos presos. No ordenamento jurídico interno, a LEP apresenta os direitos dos presos nos artigos 41 a 43, prevendo que os condenados possuem tais direitos, que devem ser respeitados por parte das autoridades públicas no desenvolvimento do cotidiano carcerário. A atual Magna Carta, nos trinta e dois incisos do artigo 5º dispõe acerca das garantias fundamentais do homem, destinados, também, a proteção da pessoa presa. Em âmbito infraconstitucional e de forma especifica, existe a LEP, que prevê os direitos infraconstitucionais garantidos ao condenado durante a execução de sua pena. “A interpretação que se deve buscar é a mais ampla, no sentido de que tudo aquilo que não constitui restrição legal, decorrente da particular condição do encarcerado, permanece como direito seu”, explica Renato Marcão (2008, p. 32).

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Esta lei específica apresenta extensão dos direitos constitucionais aos prisioneiros, com a preocupação em evitar o excesso ou o desvio da execução a fim de se alcançar o meta direito da dignidade e a humanidade da pena, aquele como meta direito do ordenamento jurídico nacional e o segundo como princípio da execução penal. A LEP, em seu artigo 41, elenca os direitos por ela disciplinados, como o respeito à integridade física e moral dos presos. Ressalta-se que referido rol não pode ser considerado exaustivo (taxativo ou numerus clausus), uma vez que o preso possui o exercício de todo o direito de sua condição humana, claro desde que não comprometa e seja compatível com a pena imposta, sob pena de, assim não procedendo, violar o meta direito previsto no inciso III do artigo 1º da CF. Assim, esta lei apresenta o cenário para se impedir o excesso e o desvio da execução que possa comprometer a dignidade e a humanidade do cumprimento da pena, tornou expressa a extensão de direitos constitucionais aos presos. Ainda, assegura condições para que os sentenciados, em decorrência de sua situação particular, possam desenvolver-se no sentido da reinserção social (MIRABETE, 2004, p. 42). O sistema punitivo e de execução penal devem estar em consonância aos fins atribuídos pelo ordenamento jurídico interno, em respeito à dignidade humana e atingir a função social da pena. De modo que o Estado tem o direito de executar a pena, mas nos limites da sentença penal condenatória. Porém, conforme se observa das comprovações das condições de alojamento e higiene, o sistema prisional, nos moldes em que se encontra, ofende a dignidade humana da pessoa condenada, que teve uma punição com a supressão do seu direito fundamental à liberdade, porém, é detentora de direitos fundamentais e deve tê-los respeitados.

O sistema prisional em face da realidade carcerária, a dignidade humana e o Estado Democrático de Direito O direito subjetivo de punir e aplicar a pena por parte do Estado, o ius puniendi, se traduz na faculdade de imposição ao réu a cumprir o conteúdo da sentença penal condenatória, ou seja, a perda da liberdade e dos direitos afetados por ela. “A prisão é a forma última e mais radical de confinamento espacial. Também parece ser a maior preocupação e foco de atenção governamental da elite política na linha de frente da ‘compressão espaço-temporal’ contemporânea” (BAUMAN, 1999, p. 114). Nesse diapasão, dispositivo constitucional do inciso III do artigo 5º que prevê: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradantes”. A proteção constitucional ao preso não se limita tão somente à impossibilidade de tratamento indigno ao ser humano, se encontra no núcleo dos direitos e garantias fundamentais, ou seja, cláusula pétrea, o que vale dizer,

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normas imutáveis, em que o inciso XLIX do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ao qual o Brasil é signatário e a ratificação se deu por meio do Decreto nº 592, de 6-07-1992, prevê, em seu artigo 10, inciso I, o direito do preso em ser tratado com humanidade e ter sua dignidade respeitada: “Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”. O artigo 5º, incs. I e II do Pacto de San José da Costa Rica dispõe:

do Estado Social e no princípio da igualdade” (CAMBI, 2011). O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha contribuiu de forma significativa para a doutrina do mínimo existencial, fundamentando-o na dignidade humana, na cláusula do Estado Social e no princípio da igualdade (TORRES, 2009, p. 64). Assim, “[...] não sendo tarefa dos direitos fundamentais assegurar a dignidade, mas as condições existenciais mínimas necessárias para sua realização” (CAMBI, 2011, p. 393). “Os estabelecimentos prisionais brasileiros padecem cada vez mais de superlotação e não cumprem sua função ressocializadora” (OAB, 2013).

toda pessoa tem o direito que se respeite sua integridade física, psíquica e moral; ninguém deve ser submetido a torturas, nem penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade do ser humano.

Diante da situação carcerária brasileira, verificamos que presos passam forme, contraem doenças, sofrem violências físicas e morais, são mortos em rebeliões e estão sujeitos a toda forma humilhante de tratamento, ou seja, na atual condição no nosso sistema penitenciário, o preso é reduzido à condição de coisa, de objeto do Estado. Assim, diante da prevalência dos preceitos constitucionais, o preso deve ser tratado com dignidade, uma vez que isso é o pressuposto mínimo, é a regra, a garantia de qualquer ser humano em ser tratado e reconhecido como pessoa, independente da situação fática peculiar que surgir em sua vida (BORNIN. In: SIQUEIRA, 2010, p. 74).

Lei infraconstitucional, a Lei de Execução Penal traz o direito à integridade física e moral dos presos em seus artigos 40 e 41. No entanto, a realidade carcerária é outra, segundo dados do ICPS, o qual informa que a população carcerária no Brasil é estimada em 274 detentos para cada 100 mil habitantes, taxa considerada alta para um país com apenas 1.478 instituições carcerárias. “The Economist” (2013) apresentou a situação carcerária no Brasil, sendo que o ranking foi feito com base em dados do Centro Internacional de Estudos Carcerários (ICPS, na sigla em inglês). O Brasil, país que possui 548.003 detentos, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) de dezembro de 2012, aparece em 7º (sétimo) lugar no ranking, atrás de países como Haiti, Irã e Paquistão. Apresenta que que o nível de ocupação das prisões no Brasil está em 171,9%, o que significa que ultrapassa em 71,9% a lotação máxima permitida. “Hoje, no Estado Democrático de Direito, aprofunda-se a meditação sobre o mínimo existencial, sob a ótica da teoria dos direitos humanos e do constitucionalismo” (TORRES, 2009, p. 7). A positivação do direito ao mínimo existencial: há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas. O direito ao mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. A Constituição de 1988 não proclama em cláusula genérica e aberta, senão que se limita a estabelecer que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil ‘erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais’(art. 3º, III) (TORRES, 2009, p. 8).

As declarações internacionais sobre direitos humanos prevêem o direito ao mínimo existencial, como os artigos XXV e XXVI da Declaração Universal dos Direitos do Homem. “O conceito de mínimo existencial deve ser buscado no núcleo dos valores constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, na clausula

A presente situação carcerária é preocupante. Os reclamos atuais por parte dos condenados giram em torno do desrespeito à dignidade, direito este inerente à sua condição de pessoa humana e que representa um princípio basilar e infranqueável, seja em qual condição esteja, motivo este que representa um dos fundamentos da República (art. 1º, III, CF), e que atualmente acaba sendo afrontado de várias formas (PRADO; HAMMERSCHMIDT; MARANHÃO; COIMBRA, 2013, p. 91).

Entretanto, a realidade dos estabelecimentos penais que se encontram superlotados e o Poder Público argumenta no alto custo da manutenção da estrutura do sistema penitenciário. “Mas superlotação é só um dos problemas que atingem o sistema prisional. Instalações precárias, sem higiene, sem banheiros suficientes, sem camas, com água contaminada e ratos e baratas circulando livremente são recorrentes” (OAB, 2013). A superlotação contribui para o processo de desumanização do preso, o que é um desrespeito ao princípio da humanidade da pena. Além da superlotação, há proliferação de inúmeras doenças em razão de fatores estruturais, má alimentação dos presos, seu sedentarismo, uso de drogas, falta de higiene. A falta de estrutura e condições mínimas de permanência na penitenciária, o condenado recebe tratamento que ofende seus direitos básicos e a sobrevivência digna: “a pena de prisão propriamente dita e o lamentável estado de saúde que ele adquire durante a sua permanência no cárcere” (BERTOLI; GIMAEL; OLIVEIRA, In ARAUJO, 2003, p. 510). Aqui, presente o desrespeito aos dispositivos da LEP, em especial, o artigo 44 que prevê o direito do preso à saúde. Para a prestação do direito à saúde, os estabelecimentos penitenciários devem estar providos de

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A execução da pena e os Direitos Humanos no Estado Democrático de Direito: instrumentos Legislativos de proteção à Dignidade Humana

instalações médico-sanitárias a fim de que os médicos e demais profissionais desta área exerçam seus serviços preventivos e curativos, cumprindo as normas sanitárias e de higiene nas prisões. A Magna Carta, em seu artigo 5º, inciso XLIX, garante o direito à integridade física e moral e a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 143 prevê: “A legislação penitenciária estadual assegurará o respeito às regras mínimas da Organização das Nações Unidas para o tratamento de reclusos [...]”. As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos nasceu do Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do delito e Tratamento do delinquente, objetivando a uma melhor organização penitenciária e um melhor tratamento ao recluso, sendo adotada pelo Brasil, através de Resolução de 30/08/1955 BERTOLI; GIMAEL; OLIVEIRA. In ARAUJO, 2003, p. 510). A pessoa, quando condenada à uma pena privativa de liberdade, está condenada em seu direito de ir e vir, de modo que deve ficar restrito ao cumprimento deste cerceamento, mas não é essa a realidade prisional, pois há direitos fundamentais que deveriam ser preservados, porém estão sendo violados assustadoramente, o que não continuar, uma vez que os presos possuem seus direitos humanos invioláveis, como pessoa e respeito ao metaprincípio da dignidade humana e o modelo protetivo do Estado Democrático de Direito.

Considerações finais

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Necessária se faz a releitura do ordenamento da execução da pena,em que o cumprimento da pena deve se dar em respeito à dignidade e aos direitos humanos, inerentes a todas as pessoas, e em conformidade ao modelo de Estado Democrático de Direito. Reside no meta princípio da dignidade humana a realidade da execução penal, em que os fatores acabam por se colidir. O sistema penitenciário brasileiro não oferece condições mínimas de cumprimento da pena a qualquer sentenciado, por fatores relacionados à superpopulação carcerária e, consequentemente, questões ergonômicas que acabam se transformando em uma consequência daquela. Se existe um contingente excessivo de sentenciados dentro de uma penitenciária, é óbvio que as condições ergonômicas dentro das celas acabam ficando comprometidas. As cadeias brasileiras não possuem condições de aplicar a sua finalidade imposta por lei, que é a restauração (ressocialização, reinserção) do apenado.A execução penal e o seu cumprimento devem estar em consonância com os referidos textos, respeitando a dignidade e os direitos humanos, não sendo cabível, nas hipóteses de omissão do Estado quanto ao cumprimento destas regras e estrutura, o argumento da reserva do possível, pois na balança (Pessoa X Estado), aquela deve prevalecer, pois detentora de cumprimento de pena de forma digna e respeito aos seus direitos humanos, uma vez que somente um direito lhe foi suprimido, o de locomoção, sendo pessoa detentora de todos os “demais” direitos humanos.

Cláudia Queda Toledo e Lívia Pelli Palumbo

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Da mera irregularidade procedimental ao prejuízo efetivo: o Direito de punir estatal e o respeito às garantias de defesa dos administrados Vanessa Oliveira de Queiroz1 Resumo No ordenamento jurídico brasileiro, os servidores públicos estão sujeitos à responsabilização penal, cível e administrativa pelo exercício irregular das atribuições inerentes aos seus respectivos cargos. O Direito Administrativo Sancionador, em particular, exige que a Administração Pública adote esforços apuratórios e de responsabilização diante de ilícitos funcionais. Assim, a conduta dos agentes é alvo de procedimentos administrativos disciplinares, que podem resultar na aplicação de sanções, dentre as quais a suspensão temporária de suas atividades, com a perda da remuneração durante o período de afastamento, e até mesmo a demissão do serviço público e a cassação de aposentadoria. Por outro lado, existem balizadores para a condução dos procedimentos, principalmente com vistas a assegurar o respeito a garantias mínimas dos servidores, como os direitos ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. Muitas vezes, porém, a atuação da Administração pode implicar na inobservância desses direitos, motivando a adoção de medidas judiciais por parte daqueles que se sentem prejudicados. Nesse contexto, devese distinguir aquelas situações que configuraram meras irregularidades procedimentais daquelas que, efetivamente, acarretam violações graves, a merecer correção, não apenas em atenção ao princípio da autotutela, mas sobretudo em observância ao princípio da eficiência. Palavras-chave: Direito administrativo sancionador; devido processo legal; contraditório; ampla defesa; nulidade. Abstract In Brazil’s legal system, the civil servants are subject to criminal, civil and administrative liability regarding the irregular exercise of their powers. Sanctioning Administrative Law, in particular, requires the adoption by Public Administration of investigatory and accountability efforts in relation to functional violations. Thus, the agents’ conducts are target by disciplinary administrative procedures that can result in sanctions, like their temporary suspension, with the loss of compensation during the leave period, and even the resignation and retirement’s cassation. In other side, there are requirements 1

Advogada e Consultora Jurídica (RJ). Mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Da mera irregularidade procedimental ao prejuízo efetivo: o Direito de punir estatal e o respeito às garantias de defesa dos administrados

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to the procedures conduction, especially to ensure the respect of minimum guarantees, like due process of law, full defense and contradictory. Often, however, the Administration performance may imply the breach of these rights, prompting the adoption of judicial measures by those who feel harmed. In this context, it is important to distinguish the situations where are configured only procedural irregularities from those which, effectively, lead to serious violations, deserving rectification, both in attention to principle of selfprotection, but especially in the observance the efficiency principle.

Partindo-se do cenário descrito, alguns questionamentos podem ser apresentados no tocante à regularidade na condução dos trabalhos empreendidos por instâncias investigativas da Administração Pública, seja em sede de sindicâncias ou no âmbito de procedimentos administrativos disciplinares (PADs).2 Decerto, há de se analisar se, nesses procedimentos, pelo menos os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório são satisfatoriamente observados. Certas medidas adotadas naquele caso seriam qualificadas por alguns como meras irregularidades que, de maneira alguma, poderiam dar ensejo à revisão dos atos administrativos processuais e à sua emenda, anulação ou revogação, conforme o caso. Outros, porém, julgariam tais ocorrências como situações graves, que necessariamente deveriam motivar a adoção de ações corretivas. Apesar de inicialmente parecer própria de uma discussão inócua, essa divergência de compreensão tem sido o principal elemento a justificar a reprodução de processos judiciais cujo objetivo é o de demandar o pronunciamento jurisdicional sobre a legalidade de procedimentos administrativos disciplinares. Embora seja assegurado constitucionalmente o acesso à Justiça aos administrados, essa intensa judicialização atenta contra o princípio da eficiência – também previsto na Carta Magna de 1988, inserido pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998 (cf. artigo 37, caput3) –, porquanto, mediante a obtenção de decisões liminares que determinam o sobrestamento dos procedimentos administrativos e de sentenças definitivas que os invalidam por completo, resta prejudicada a regularidade dos esforços de apuração e responsabilização adotados pela Administração Pública em relação às infrações disciplinares. Dito isso, mostra-se oportuno repensar uma vez mais o tema, em particular para indagar se, atualmente, no ordenamento jurídico brasileiro, o Direito Administrativo Sancionador oferece respostas coerentes com as expectativas básicas que cercam a gestão daqueles procedimentos. Em especial, a observação busca identificar se há uma adequada e razoável compatibilização entre a maneira de condução dos procedimentos disciplinares para a efetivação de seus fins e o respeito aos direitos dos servidores investigados.

Keywords: Sanctioning administrative law; due process of law; contradictory; full defense; nullity.

Introdução

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Imagine-se que determinado servidor de uma universidade pública estadual, ocupante de cargo de chefia, é notificado para prestar esclarecimentos perante uma comissão de sindicância. No texto de sua convocação, há apenas a menção ao número do procedimento administrativo correlato e a indicação da data e do horário em que deve comparecer para ser ouvido. Assim, no dia agendado, o servidor se apresenta e é indagado pelos sindicantes a respeito de determinados fatos relativos à rotina de seu setor. Na mesma ocasião de seu depoimento, com o intuito de colaborar com os trabalhos da Comissão, o servidor propõe apresentar posteriormente amplo conjunto documental que julga pertinente à elucidação da questão investigada. Entretanto, no momento em que tenta juntar os documentos em tela ao processo, o presidente da comissão o impede de fazê-lo, referindo-se tão somente à desnecessidade da anexação. Tempos depois, aquele servidor é novamente notificado, dessa vez para que tome ciência sobre a abertura de inquérito administrativo em seu nome e para que apresente defesa. A comunicação se restringe a indicar que o novo procedimento foi inaugurado com base na apuração promovida por aquela comissão, estando ausentes quaisquer apontamentos sobre as possíveis infrações funcionais cometidas ou até mesmo sobre os fatos que supostamente lhe teriam sido imputados. O servidor requer vistas ao processo administrativo, vindo, finalmente, a descobrir o teor das conclusões apresentadas pela comissão de sindicância ao reitor da universidade, emitidas após a oitiva de um número considerável de testemunhas, cujas oitivas não chegara a acompanhar. Descobre, ainda, que o reitor decidira pela abertura do inquérito através de despacho em que apenas se referiu àquelas conclusões. Percebe a ausência de publicação da decisão de instauração do novo procedimento em Diário Oficial ou em boletim interno da instituição. Não identifica, ademais, nenhum apontamento no relatório da comissão no sentido de que seria ele o responsável por supostas irregularidades detectadas no funcionamento de seu setor, só constatando que um único sindicante apontara aquele servidor como o indivíduo que deveria ser indiciado pela comissão instituída para a condução do inquérito.

O status quo das nulidades processuais disciplinares É cada vez maior o número de ações judiciais movidas por servidores e ex-servidores públicos contra as autoridades, os órgãos e os entes estatais para Os PADs também são referidos em alguns Estados e municípios como inquéritos administrativos. Tal nomenclatura é adotada, por exemplo, pelo Decreto-lei n. 220, de 18 de julho de 1975, que dispõe sobre o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro. De outro modo, o Decreto estadual n. 2.479, de 08 de março de 1979, que regulamenta o mencionado Estatuto, emprega a denominação PAD. 3 In verbis: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (...)”. 2

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questionar decisões relativas à aplicação de sanções administrativas ou para forçar o arquivamento de procedimentos administrativos disciplinares ou a invalidação de medidas adotadas no curso dos mesmos, entre outros propósitos. Comumente, reproduzem-se argumentos defensivos baseados em alegações sobre a nulidade daqueles procedimentos, que envolvem a falta de razoabilidade e proporcionalidade na penalização, o cerceamento de defesa, a não abertura de prazo para memoriais, a deficiência na fundamentação das decisões punitivas etc. No que diz respeito ao recurso ao Poder Judiciário para o controle dos referidos atos, não há dúvidas sobre sua legitimidade, já que “a atuação da Administração, por meio do processo [...] pode vir a apresentar ilegalidade, considerando-se, sobretudo, a possibilidade de afronta não só às regras, como aos princípios que regem o Direito Administrativo” (CAGGIANO, 2013, p.6). Não obstante isso, em muitos casos se verifica a configuração de vícios sanáveis, que não demandam a adoção de providências tendentes a retirar o ato praticado do ordenamento. Isso acontece principalmente pela baixa lesividade acarretada pelo descumprimento de certa previsão procedimental. Os tribunais nacionais vêm reiteradamente lançando mão do princípio do pas de nullité sans grief4 para negar pedidos de anulação de atos administrativos sancionatórios, consagrando a noção do processo como mero instrumento (princípio da instrumentalidade das formas), não devendo a forma prevalecer sobre a finalidade e sobre o conteúdo do ato.5 A tendência interpretativa é no sentido de que o desfazimento desses atos só é possível nos casos em que o servidor comprovar a ocorrência de efetivo prejuízo em virtude da não observância de determinada regra. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade também são aplicados em um exercício de ponderação sobre a necessidade ou não de se alijar determinados atos do ordenamento em função da constatação de irregularidades. Ora, a ideia, aqui, é prestigiar o interesse público no tocante à elucidação de fatos que envolvem o desempenho de atividades funcionais – objetivo maior da atividade “jurisdicional” no âmbito do Direito Administrativo Sancionador –, impossibilitando que defeitos relativos apenas à forma possam justificar a invalidação de esforços apuratórios e de responsabilização. Por analogia, aplicase o disposto no artigo 563 do Código de Processo Penal brasileiro, segundo o qual “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. Trata-se do chamado princípio do prejuízo, de acordo com o qual as formas processuais figuram apenas como um instrumento para a correta aplicação do Direito, não sendo, portanto, fundamentais per si, mas tão somente em função

dos bens que visam proteger. Por isso, a invalidade só tem lugar quando a própria finalidade buscada pela norma é atingida pelo vício (GRINOVER et al, 2004, pp. 31, 79). Não por outro motivo, os diplomas legais pátrios abraçam esse entendimento na esfera do Direito Administrativo, como é o caso da lei estadual (RJ) n. 5.427/2009, cujo artigo 19, caput, prevê que “os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir”. O dispositivo, aliás, reproduz integralmente o teor do artigo 22, caput, da lei sobre processos administrativos da Administração Pública Federal (lei n. 9.784/1999), refletindo a adoção do princípio do formalismo moderado, consoante o qual a formalidade dos atos só é exigida quando seu descumprimento implicar prejuízo à defesa do acusado ou aos esforços voltados ao alcance da verdade dos fatos (CGU, 2015, p. 138). Efetivamente, certos atos procedimentais (ou sua inexistência) constituem meras irregularidades, que, por não representarem ofensas de maior gravidade aos direitos dos administrados, podem sofrer sanatória, não demandando a invalidação. Já os atos ensejadores de nulidades ou sujeitos à anulabilidade envolvem vícios que, de algum modo, acarretam danos consideráveis à defesa ou à própria probidade do processo, como a aplicação de sanções por autoridade incompetente (COSTA, 2005, p. 432). Esse juízo depende, portanto, da qualidade do vício, que pode envolver a ausência ou deficiência na prática de atos imprescindíveis/estruturais, de caráter essencial, ou prescindíveis/acidentais, que, por sua natureza, não maculam o resultado dos procedimentos. No mesmo diapasão, menciona-se a existência ora de nulidades relativas, ora de nulidades absolutas (LESSA, 2001, p.134). Os diplomas normativos nacionais costumam contemplar essa diferenciação, vislumbrando soluções particulares para cada caso. Cite-se, por exemplo, o estatuto jurídico dos servidores públicos federais (lei federal n. 8.112/1990), que determina à autoridade julgadora que declare a nulidade total (desde o início do apuratório) ou parcial (com aproveitamento de certos atos) do processo administrativo uma vez verificada a ocorrência de vicio insanável.6 Por seu turno, a lei federal n. 9.784/1999 e a lei estadual (RJ) n. 5.427/2009 exigem que os processos administrativos observem “as formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados” (respectivamente, art. 2º, §único, inciso VIII, e art. 2º, §1º, inciso IX). Como se sabe, o processo administrativo abrange um conjunto de atos preparatórios, cujos participantes operam em sistema de contraditório (princípio audi alteram partem), direcionados ao atingimento de um ato final a ser exarado pela Administração (CAGGIANO, 2013, p.8). Sendo assim, há uma dialética inerente a tal procedimento que deve ser respeitada no sentido de ofertar

Trata-se de uma concepção consagrada pela Ordenança Francesa de 1667 e que, no Brasil, foi adotada na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, tendo na mesma os legisladores expressado a necessidade de se afastar o que chamaram de “frívolo curialismo que se compraz em espiolhar nulidades” (MOSSIN, 2005, p. 79 apud PEREIRA, 2009, 22). 5 Nesse sentido os seguintes julgados do STJ: AgRg no REsp 933453 e MS 7489-DF. Outros julgados para consulta: TJ-RN HC 14651, TJ-DF MS 0008267-24.2002.807.0000, TJSP Apelação 994070415410. 4

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É o que prevê o artigo 169: “Verificada a ocorrência de vício insanável, a autoridade que determinou a instauração do processo ou outra de hierarquia superior declarará a sua nulidade, total ou parcial, e ordenará, no mesmo ato, a constituição de outra comissão para instauração de novo processo”.

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principalmente àqueles que estão sendo acusados a oportunidade ampla de se manifestarem sobre os fatos e provas que lhe são imputados, exercendo o direito de defesa mediante o uso de todos os meios em Direito admitidos. Nessa toada, é preciso recordar que o novo Código de Processo Civil (lei federal n. 13.105/2015) prevê, no artigo 157, a aplicação supletiva e subsidiária de suas disposições ao processo administrativo diante da ausência de normas que regulem questões específicas. Como os princípios da ampla defesa e do contraditório estão previstos expressamente na parte inicial do novo Código8, sua observância no âmbito dos procedimentos administrativos será, pois, ainda mais essencial (BORTOLETO, 2016). No que diz respeito à prática administrativa, tem-se que, no exercício da autotutela, cabe à Administração rever seus próprios atos quando eivados de ilegalidade. Por isso, no curso dos procedimentos, se a comissão processante identificar a existência de vícios insanáveis, deve deliberar no sentido de refazêlos. Ademais, especialmente diante de ocorrências que envolvam a inobservância dos princípios acima referidos, impõe-se à autoridade competente para o julgamento dos procedimentos disciplinares ou outra de hierarquia superior proceder, de ofício ou por provocação, à declaração de nulidade total ou parcial dos mesmos, indicando a necessidade de refazimento dos trabalhos da comissão processante, quando for o caso. Dependendo da gravidade do vício, é possível o aproveitamento de atos praticados no bojo do procedimento invalidado, cabendo à nova comissão processante analisar a sua viabilidade e desde que não tenham sido contaminados pelo fato que deu causa àquela invalidação. Também nesse caso haverão de ser respeitados o contraditório e a ampla defesa (CGU, 2015, pp. 109, 127, 138). Já o controle jurisdicional empreendido nessa seara tem se restringido à análise sobre a conduta da Administração Pública no sentido de observância das garantias mínimas reservadas aos administrados para o exercício pleno de suas defesas. Além disso, visa assegurar que as decisões administrativas sejam proporcionais, evitando a configuração do chamado desvio de finalidade. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro possui entendimento nessa direção, afirmando que “[o] controle judiciário dos atos administrativos está (...) limitado pela legalidade, vez que não pode o Poder Judiciário pronunciar-se sobre a sua conveniência e oportunidade, salvo se ocorrer evidente violação da razoabilidade (congruência entre os motivos e a finalidade de interesse público)” (Apelação n. 0132234-89.2010.8.19.0001, DJ 15/05/2012).9

Em relação à repetição de processos baseados na arguição de nulidades, outro ponto relevante, em particular, que já foi objeto de vigorosas discussões, é a questão da assistência jurídica. O Supremo Tribunal Federal (STF) editou uma súmula vinculante cujo enunciado esclarece o entendimento de que a ausência de defesa técnica por advogado em processo administrativo disciplinar não caracteriza ofensa à Constituição Federal.10 O Superior Tribunal de Justiça (STJ), não obstante divergências internas11 e o não cancelamento da Súmula 34312, também incorporou essa posição por ocasião do julgamento do MS 10.837DF (Terceira Seção, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJe 17/04/2009), afirmando que basta oportunizar ao servidor acusado a possibilidade de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, não configurando causa de nulidade a não constituição deste último. Logo, em princípio, não é mais cabível a interposição de recursos ao STJ ou ao STF com o objetivo de se anular procedimentos daquela espécie sob o fundamento da falta de defesa por advogado. Por outro lado, as cortes nacionais têm identificado situações passíveis de levar à invalidação total ou parcial dos atos administrativos praticados em procedimentos administrativos disciplinares. Isso ocorre principalmente quando é verificada, de plano, alguma arbitrariedade por parte das comissões processantes, como a negativa desmotivada de requerimentos formulados pela defesa dos acusados para a produção de provas, como a realização de perícias técnicas. Também se verifica quando deixam de ser cumpridos requisitos básicos para a instalação dos procedimentos investigativos, como a indicação dos fatos passíveis de responsabilização funcional e a ausência de publicidade dos atos de instauração daqueles processos. Isto posto, são examinadas a seguir três segmentos particulares que reúnem algumas irregularidades passíveis de redundar em reais prejuízos à defesa dos investigados e, assim, justificar a adoção de providências retificadoras.

In verbis: “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”. 8 Com efeito, assim dispõe o artigo 7º do referido diploma: “É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. 9 De forma semelhante, manifestou-se o Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “O controle judicial do mérito do ato administrativo disciplinar é juridicamente 7

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incabível, somente justificado em casos em que o direito a ampla defesa e ao devido processo legal foram inobserservados” (Apelação Cível 5021088-71.2012.404.7200, DJ 12/12/2013). 10 É o que dispõe a Súmula Vinculante nº 5: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. 11 Inicialmente, a Ministra Laurita Vaz manifestou-se no sentido de que a constituição de advogado ou defensor dativo seria, também no âmbito do processo disciplinar, uma condição “elementar à essência da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Para a Ministra, “não se pode vislumbrar a formação de uma relação jurídica válida sem a presença, ainda que meramente potencial, da defesa técnica” (MS 10.837-DF, Terceira Seção, Rel. p/ acórdão Min. Laurita Vaz, DJe 13/11/2006). 12 De acordo com o enunciado da mesma, “[é] obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”.

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Justa causa para abertura de inquérito e providências iniciais Notadamente, o fato de o servidor público responder a um processo disciplinar constitui um elemento negativo no tocante ao desempenho de suas atividades. Além disso, algumas legislações estaduais e municipais relativas ao regime jurídico de seus respectivos servidores preveem impedimentos ao regular exercício de suas atribuições como resultado daquele fato. Como exemplo, recordam-se as disposições legislativas que obstam a aposentadoria do servidor que esteja respondendo a um PAD até a prolação de decisão final administrativa e, ainda, aquelas situações em que, mesmo diante de omissão legislativa, os órgãos públicos rejeitam pedidos de aposentadoria em função da referida circunstância.13 Tal constatação é tão somente mais um fator a influenciar a adoção cautelosa de decisões voltadas à inauguração de processos disciplinares, especialmente aqueles que podem implicar no sancionamento. Dessarte, a instauração de procedimentos voltados à aplicação de penalidades mais gravosas aos servidores – em geral, a suspensão por mais de 30 (trinta) dias, a demissão, a cassação de aposentadoria ou disponibilidade, e a destituição de cargo em comissão – deve ser fruto de uma decisão bem fundamentada. Não basta que a autoridade competente indique as infrações que teoricamente dariam ensejo ao sancionamento por aquelas penas, devendo necessariamente apontar mínimos indícios mínimos que justifiquem a instauração de PADs para a apuração da conduta deste ou daquele servidor, sob pena de banalizar a utilização do expediente. Exige-se, portanto, a ocorrência de justa causa. Continuando, ressalta-se que, logo após a instauração, o servidor acusado deve receber uma notificação prévia para que tome ciência de que responde a um processo disciplinar, antes da efetivação de qualquer ato instrutório, sob pena de configuração de nulidade insanável (BRASIL, 2015, p. 39). É esse o entendimento adotado pelo STJ, para o qual “é indispensável que se proporcione ao servidor processado, esteja ele já indiciado [...] ou ainda como simples acusado (na fase de instrução do inquérito administrativo), o direito à ampla defesa e ao contraditório, devendo-se chamar o acusado ao feito desde o seu início para que tenha oportunidade de acompanhar a instrução” (MS 6798-DF, Terceira Seção, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 14.08.2000). 13

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A lei complementar n. 10.098/1994, que dispõe sobre o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado do Rio Grande do Sul, traz, em seu artigo 194, caput, previsão expressa no sentido de que somente após a conclusão do inquérito administrativo poderá o servidor aposentar-se voluntariamente, e desde que tenha sido reconhecida sua inocência. Para mais sobre o assunto, ver: SILVA, Márcio Vinícius de Araújo. Possibilidade de concessão de aposentadoria a servidor público que esteja respondendo a Processo Administrativo Disciplinar, na visão dos Tribunais, ante a falta de previsão legal. Revista da Controladoria-Geral da União, v. 7, n. 11, jul/dez. 2015, pp. 155-176. Disponível em: . Acesso em: 04 fev. 2016.

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Ademais, o ato de instauração do PAD deve ser publicado em boletim interno do órgão processante ou em diário oficial, e deve conter descrição sobre as infrações imputadas ao servidor acusado (BORIS, 2004). Tais providências visam, em primeiro lugar, assegurar a publicidade do processo, de forma a materializar o direito de acesso à informação. Permite, ainda, o controle sobre os atos administrativos no que se refere ao motivo e à finalidade, já que não é dado ao administrador utilizar-se da instauração de PADs com objetivos outros que não a promoção do interesse público, evitando a instrumentalização da medida como forma de promoção de perseguições por divergências políticas, por exemplo – em total afronta ao princípio da impessoalidade. Por aplicação analógica do disposto lei federal n.º 4.717/1965, tem-se que a ausência da devida publicação oficial, em afronta ao princípio da publicidade, constitui vício de forma que atinge a validade do ato de instauração do procedimento disciplinar, merecendo, pois, sua anulação (FRANÇA, 2016). Em segundo lugar, a clara delimitação dos trabalhos investigativos favorece a preparação da defesa pelo servidor e, com isso, o previne contra surpresas no curso do processo, sob pena de tornar extremamente dificultoso ou mesmo inviável o exercício daquele direito. Como consequência, não poderá ser imputada ao acusado a prática de ilícitos funcionais que não guardem qualquer relação com os fatos que motivaram a abertura do PAD14, a menos que, ao longo dos trabalhos investigativos, sejam descobertos outras infrações disciplinares e desde que seja oportunizada a ampla defesa e o contraditório em relação às mesmas.

Produção probatória Os procedimentos administrativos disciplinares possuem como objetivo precípuo a verificação sobre a adequação da conduta de servidores públicos no exercício de suas atribuições, buscando identificar, em particular, a ocorrência de ilícitos funcionais praticados no contexto de tal exercício ou que tenham alguma relação com as atribuições inerentes ao cargo (MARQUES, 2014, p. 3). Contudo, para a concretização desse propósito, não pode a Administração Pública desrespeitar os direitos dos servidores investigados, principalmente no que diz respeito à tentativa de provar a sua inocência. Como se sabe, figura como requisito básico de qualquer condenação – seja em âmbito penal, cível ou administrativo – a reunião de provas contra o acusado. Essas provas constituem-se basicamente em documentos, depoimentos de testemunhas, e laudos periciais, além de constatações in loco alcançadas pelos 14

Tal afirmação não resulta na conclusão de que o enquadramento jurídico dado inicialmente aos fatos – no âmbito da decisão de instauração do PAD, por exemplo – não possa ser alterado ao final dos trabalhos investigativos. Isso porque, como resta consolidado na jurisprudência pátria, o indiciado deve se defender contra os fatos a ele imputados, diante do que eventual modificação na tipificação das condutas não se caracteriza como ato atentador à ampla defesa e ao contraditório. Nesse sentido, o acórdão proferido em julgamento do MS 16.075 – DF (STJ).

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investigadores. A aquisição desse acervo, no entanto, deve ser realizada a partir da adoção de alguns cuidados na fase instrutória dos procedimentos disciplinares. De início, é preciso que o servidor investigado seja convocado a depor através de comunicação que expressamente refira a qualidade de acusado, quando for o caso, uma vez que lhe deve ter assegurado o direito de não produzir prova contra si mesmo15 (princípio do nemo tenetur se detegere).16 O interrogatório do servidor suspeito da prática de infração funcional só é válido se lhe for assegurado o direito de não se autoincriminar, isto é, de permanecer em silêncio, impedindo, assim, que o que venha a dizer perante a comissão processante seja usado contra ele. O fato de o servidor decidir manter-se em silêncio não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa, conforme aplicação analógica do artigo 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal. Logo, a indicação prévia da qualidade na qual o servidor está sendo chamado a depor previne futuras arguições de nulidade, além de permitir o exercício pleno de sua defesa. Na prática, é muito comum constatar-se a reprodução de casos em que, ao serem chamados a prestar esclarecimentos sem qualquer indicação de que figuram como alvos das investigações, os servidores nem mesmo cogitam a possibilidade de constituir advogados para orientá-los. Como resultado, são diversas as situações em que os servidores ouvidos apresentam manifestações de autoincriminação ou mesmo se atrapalham durante os interrogatórios, surpresos muitas vezes com as acusações que lhe são feitas e das quais têm ciência somente por ocasião daqueles atos. Aliás, há um claro prejuízo à própria celeridade processual, pois que a falta de comunicação prévia sobre o assunto das sindicâncias e PADs aos convocados a depor impede que os mesmos reúnam documentos para robustecer suas falas, os quais poderiam contribuir ao esclarecimento dos fatos. Outro problema comum observado na práxis, é o despreparo de alguns integrantes de comissões processantes, que demonstram total desconhecimento de regras jurídicas elementares e, assim, contribuem para a declaração de nulidade posterior dos procedimentos. É o que ocorre, por exemplo, por ocasião da condução de interrogatórios e testemunhos. Nesse sentido, conforme reconhece a Controladoria-Geral da União, o fato de o acusado ser interrogado após prestar compromisso de dizer a verdade pode ensejar a nulidade de todo o

interrogatório e de eventuais provas que forem colhidas a partir do mesmo (CGU, 2015, p. 75) – incide, aqui, a teoria do fruto da árvore proibida, considerando a contaminação do ato nulo em relação aos posteriores que com ele guardem relação de dependência. É o que entende o STJ, consoante o julgado abaixo colacionado a título exemplificativo:

Trata-se de princípio com assento constitucional e natureza de direito fundamental, em decorrência da previsão contida no inciso LXIII do artigo 5º da Carta Magna (“o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”). A Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) elenca dentre as garantias judiciais de toda pessoa acusada de um delito o “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada” (art. 8º, 2, g). Idêntica previsão consta do artigo 14, item 3, alínea g, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966). 16 Como exemplo de demanda que envolve o tema, veja-se o Mandado de Segurança impetrado por servidora pública contra ato do Presidente do Departamento de Transportes do Rio de Janeiro (DETRAN) e do Presidente da Comissão de Sindicância desse mesmo órgão perante a Sétima Vara de Fazenda Pública da capital (cf. processo n. 0044420-73.2009.8.19.0001). 15

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[...] a servidora foi interrogada por duas vezes durante o processo administrativo disciplinar, e, em ambas as oportunidades, ela se comprometeu “a dizer a verdade das perguntas formuladas”. [...] Os interrogatórios da servidora investigada, destarte, são nulos e, por isso, não poderiam embasar a aplicação da pena de demissão, pois deles não pode advir qualquer efeito. Como, na hipótese em comento, o relatório final da comissão processante que sugeriu a demissão e a manifestação da autoridade coatora que decidiu pela imposição dessa reprimenda se valeram das evidências contidas nos interrogatórios, restaram contaminados de nulidades, motivo pelo qual também não podem subsistir. [...] (RMS 14.901/TO, Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 10/11/2008) (grifo nosso)

Uma outra ocorrência comum, grande motivadora de pedidos para que sejam nulificados procedimentos disciplinares, é a negativa manifestada pelas comissões processantes quanto à juntada de provas pelos interessados. Em alguns casos, o indeferimento é expressamente motivado pela alegação de que se trata de procedimento de caráter meramente investigativo, sem caráter sancionatório. De fato, a realização da chamada sindicância preparatória (investigativa) não resulta na aplicação de penalidades, servindo apenas como fase preliminar para a análise de denúncias e coleta de indícios sobre a prática de irregularidades. Não obstante isso, há sindicâncias de caráter acusatório (sindicância contraditória), cujo desfecho pode, sim, abranger o sancionamento do servidor, que pode ser penalizado, por exemplo, com advertência e suspensão por até 30 (trinta) dias. Ora, nesse último caso não pode prosperar a justificativa sobredita, só podendo ser rejeitada a prova que se mostrar de plano inadequada às circunstâncias do caso, e sempre mediante fundamentação específica. Nesse sentido, por exemplo, dispõe a lei que rege os atos e processos administrativos no âmbito do Estado do Rio de Janeiro (lei estadual n. 5.427/2009), em seu artigo 34, parágrafo único, in verbis: Art. 34 - O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada de decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo. Parágrafo Único – Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas ou manifestamente impertinentes, desnecessárias ou protelatórias.

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A lei federal 8.112/1990 possui previsão análoga no parágrafo 1º de seu artigo 156, in verbis:

no âmbito administrativo o reconhecimento sobre a imprescindibilidade da fundamentação em atos decisórios, ainda que de caráter interlocutório. O rigor na condução dos procedimentos disciplinares nessa direção também visa evitar críticas jurídicas posteriores, capazes de obstruir o curso regular das apurações. No mesmo sentido, quando as informações coletadas indicarem à comissão processante somente no curso do processo que determinado servidor é o possível responsável pela (s) irregularidade (s) apurada (s), é necessária a sua cientificação sobre todo ato tendente à produção probatória, como a oitiva de testemunhas, a realização de diligências a espaços físicos etc. Essa medida se mostra adequada à garantia do exercício do contraditório pelo acusado, que pode acompanhar os trabalhos pessoalmente ou através de advogado18 e reunir dados para sua defesa. O artigo 41 da lei n. 9.784/1999 vem nesse mesmo sentido, determinando que os interessados sejam intimados de prova ou diligência ordenada, com antecedência mínima de três dias úteis, mencionando-se data, hora e local de realização.

Art. 156. É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial. §1º O presidente da comissão poderá denegar pedidos considerados impertinentes, meramente protelatórios, ou de nenhum interesse para o esclarecimento dos fatos. §2º Será indeferido o pedido de prova pericial, quando a comprovação do fato independer de conhecimento especial de perito.

Dessa maneira, não se reputa adequado que as comissões processantes assumam como premissa a noção de que os meios de prova ofertados ou requeridos pelos acusados representam instrumentos de protelação dos trabalhos investigativos. Na verdade, devem concebê-los, a princípio, como ferramentas voltadas à completa elucidação dos fatos e, somente diante de situações flagrantes de desnecessidade ou má-fé, apresentar fundamentos por escrito para negar a produção, o que também é recomendado pela jurisprudência17 (BRINGEL, 2009). Tal providência permite o exercício posterior do controle interno, além de afastar alegações de cerceamento de defesa, pois, estando a decisão administrativa bem fundamentada, as chances de o Poder Judiciário imiscuir-se no mérito decisório são reduzidas. É o que se extrai, inclusive, das orientações apresentadas pela ControladoriaGeral da União, órgão correicional existente que atua no âmbito da Administração Pública federal. Para o mesmo, constituem nulidades absolutas, que revelam indubitavelmente prejuízos à defesa – prejuízos esses que dispensam avaliação ou demonstração –, o indeferimento, sem motivação, tanto da oitiva de testemunha arrolada pelo acusado, quanto de requerimento pela realização de perícia técnica formulado pelo acusado (CGU, 2014). Desta feita, há de se incorporar de vez 17

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Por ocasião do julgamento da Apelação Cível 2008.51.01.009186-2 (RJ), o Tribunal Regional Federal da 2ª Região afirmou que “[o] indeferimento motivado de provas requeridas no curso de processo administrativo disciplinar não constitui cerceamento de defesa” (DJ 22/04/2009). O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por sua vez, já se manifestou no sentido de que é passível de anulação parcial o procedimento administrativo em que há negativa de prova pela comissão sindicante insuficientemente motivada (Apelação Cível 0006011-97.2006.4.05.8200 PB, DJ 07/04/2008). Nesse sentido também dispôs o acórdão proferido no julgamento do AgRg no AResp 236.803/CE (STJ, Quinta Turma, Rel. Min. Campos Marques, DJe 27/02/2013): “O indeferimento de produção de provas é ato norteado pela discricionariedade regrada do julgador, podendo ele, portanto, soberano que é na análise dos fatos e das provas, indeferir, motivadamente, as diligências que considerar protelatórias e/ou desnecessárias [...]”. Em julgamento recente, o STJ novamente ressaltou que “o indeferimento da oitiva de uma das testemunhas arroladas e de perícia técnica no computador do imputado foi devidamente motivado pela Comissão Processante, não cabendo ao Judiciário entrar no exame do mérito administrativo” (AgRg no RMS 32711/PE, Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 10/11/2015).

Ausência de alegações finais No ordenamento jurídico brasileiro, há, em geral, uma omissão legislativa no sentido de se exigir das comissões processantes que procedam à abertura de prazo aos acusados/indiciados para a apresentação de memoriais de defesa após a emissão do relatório conclusivo. Por isso, são raros os casos em que os servidores têm a oportunidade de tomar ciência do teor das conclusões alcançadas pelas comissões e sobre as mesmas se manifestarem antes de seu encaminhamento para as autoridades julgadoras e, consequentemente, da emissão da decisão final. Desse modo, uma afirmação comum apresentada por parte dos servidores punidos vem no sentido de que o devido processo legal19 administrativo foi violado, já que não lhes é dada oportunidade de contraditar as conclusões apresentadas pelas comissões e, por conseguinte, de influenciar diretamente a tomada de decisão pela autoridade competente. Nesse caso, a alegação baseiase na vertente adjetiva do due process of law, que visa garantir formalmente a observância de um procedimento legal, de modo a assegurar às partes, seja em processos administrativos ou judiciais, o direito à ampla defesa e ao contraditório (NETO & GARCIA, 2011/2012, p.5). Ocorre que o STF possui entendimento consolidado no sentido de que, uma vez ausente qualquer dispositivo na lei nº 8.112/1990 – analogicamente, em todos os demais diplomas sobre o tema – a respeito da apresentação de alegações finais, não prospera a alegação de cerceamento de defesa sob tal aspecto.20 Adota-se, aqui, uma interpretação baseada na legalidade estrita, que, data vênia, deixa de perceber que, em determinados casos, poderão advir danos O STJ já decidiu que não configura cerceamento de defesa o fato de a oitiva de testemunhas ter sido acompanhada apenas pelo defensor do acusado (v.g. RMS 43212, Min. Humberto Martins, DJe 24/02/2016). 19 De acordo com o que estabelece o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição federal de 1988, in verbis: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. 20 Conforme se manifestou a citada corte, por exemplo, por ocasião do julgamento do RMS 26226/DF (DJe 27/09/2007). 18

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reais para o administrado em virtude da ausência de oportunidade para a oferta de memoriais. A lei complementar do Estado do Rio de Janeiro que dispõe sobre a organização da Procuradoria-Geral do Estado (LC n. 15/1980) acerta, nesse sentido, ao prever expressamente a possibilidade de o Procurador submetido a estágio confirmatório na carreira influenciar a tomada de decisão final do Procurador-Geral quanto à sua permanência no cargo, tendo em vista o disposto no artigo 24, in verbis: “Quando o relatório concluir pela não-confirmação, dele terá conhecimento o Procurador do Estado, que poderá oferecer alegações no prazo de 10 (dez) dias”. Por sua vez, o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo (lei n. 10.261/1968) prevê a apresentação de alegações finais no âmbito do procedimento de revisão de processos administrativos, após a fase de instrução, conforme redação do artigo 318: “Concluída a instrução do processo, será aberta vista ao requerente perante o secretário, pelo prazo de 10 (dez) dias, para apresentação de alegações”. Nesse caso, deve-se impulsionar a edição de dispositivos semelhantes com vistas ao saneamento da omissão legislativa supracitada, em particular no que diz respeito à redação da lei federal n. 8.112/1990 e de todos os demais diplomas que regulam os procedimentos administrativos disciplinares. Decerto, a alteração legislativa tendente a permitir a manifestação do indiciado a respeito dos termos do relatório conclusivo da comissão processante não parece ofertar riscos ao interesse público. Pelo contrário, uma reforma nessa direção, além de contribuir para que o servidor prove sua inocência, pode aumentar as chances de andamento regular dos processos e de definitividade das decisões punitivas ainda em sede administrativa, porquanto justificaria até mesmo o indeferimento de pedidos liminares apresentados em ações judiciais com propósitos desconstitutivos ao afastar a identificação do fumus boni iuris. Assim, os procedimentos administrativos poderiam seguir o seu curso e alcançar sua finalidade sem a interferência externa que, em muitos casos, leva à suspensão das investigações e à produção de situações funcionais indefinidas. Ainda que tal proposta seja implementada, as entidades e os órgãos públicos deverão instituir e aprimorar os mecanismos voltados à garantia da duração razoável do processo – também aplicável em sede administrativo-disciplinar –, inclusive para evitar a prescrição do jus puniendi. Esse movimento depende, em grande parte, da racionalização dos mecanismos de responsabilização, com a oferta de cursos de instrução aos servidores (futuros sindicantes e processantes), a seleção de equipes de apoio permanentes, a instituição de prazos peremptórios para os próprios agentes processantes e para aqueles que forem chamados a colaborar com as investigações, sob pena de responsabilização funcional, entre outras medidas.

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Conclusão Como visto, o desenvolvimento de novos mecanismos de responsabilização e o aprimoramento dos sistemas tradicionalmente adotados no âmbito do Direito Administrativo Sancionador não podem implicar na flexibilização dos instrumentos de defesa dos indivíduos processados. Ademais, apesar de não ser legítima a solução nulificadora diante de qualquer arguição relativa a não observância de regras procedimentais, existem situações que denotam a ocorrência de prejuízos concretos aos administrados. Logo, é preciso otimizar os meios de responsabilização e, caso a caso, apurar de forma acurada a possível configuração de vícios insanáveis. O princípio da legalidade norteia a atuação dos agentes públicos, sendo-lhes dado praticar atos quando autorizados pela lei ou com base em determinações vinculantes nela expressas. Há, porém, um conjunto de princípios jurídicos que também devem influenciar o agir administrativo, dentre os quais se encontram o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, cuja observância é obrigatória no âmbito dos processos administrativos, inclusive por força da aplicação supletiva e subsidiária do novo Código de Processo Civil. Nesse caso, muitas vezes a conduta esperada por parte da Administração não é por essa efetivada, seja por mero descuido ou sob a justificativa da necessidade de garantia da celeridade processual. De fato, não é qualquer ato da Administração Pública produzido sem o respeito às formalidades legais que pode dar ensejo à solução pela invalidação. No entanto, como desejou apontar este breve ensaio, existem equívocos procedimentais que não podem ser enquadrados como meras irregularidades, pois, no caso concreto, obstaculizam o exercício do direito de defesa por parte de acusados e indiciados. É o que acontece quando as Comissões processantes impedem que os administrados esgotem suas possibilidades probatórias, negando-lhes a juntada de documentos ou a realização de perícias, muitas vezes sem a devida fundamentação. Também ocorre quando a autoridade competente determina a instauração de PAD sem delinear os fatos pelos quais deverá responder o servidor acusado ou, ainda, quando não é dada publicidade à referida decisão. Essas são situações que, dentre outras, podem ser reconhecidas como prejudiciais ao próprio interesse público. Ora, o Direito Administrativo Sancionador, além de buscar prevenir a ocorrência de ilícitos funcionais, tem em seu aspecto repressivo o claro propósito de permitir, por meio de procedimentos formais, o esclarecimento integral sobre a ocorrência ou não do descumprimento de deveres e proibições impostos aos servidores públicos. Nesse caso, impedir os acusados de esgotar os meios de prova pode resultar no alcance da verdade formal, e não da verdade real (material) – o que, por evidente, não contribui para a garantia da integridade no serviço público. Retomando o que foi dito acima, mostra-se necessária, dentre outras medidas, a alteração da Lei Federal nº 8.112/1990 – e das legislações estaduais

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e municipais relativas ao tema – para que passe a constar expressamente a previsão de abertura de prazo para a apresentação de alegações finais por parte do indiciado. De fato, a mudança legislativa seria adequada também no sentido de evitar a dedução de novas pretensões ao Judiciário com a intenção de nulificar sindicâncias contraditórias e PADs. Assim sendo, há de se conduzir com cautela os esforços apuratórios e persecutórios, principalmente se considerarmos que as decisões proferidas naqueles procedimentos podem – além de implicar na perda do cargo ou função pelo servidor – abranger a determinação de remessa de cópia integral dos autos para entidades como o Ministério Público21 e o Tribunal de Contas. Tal providência cumpre o papel de permitir que esses entes, com base nos elementos coletados naquelas instâncias, exerçam suas respectivas competências no controle da legalidade, do que pode resultar, evidentemente, a piora da situação do servidor. À vista disso, a Administração deve levar a sério os argumentos de defesa, ao invés de pré julgá-los como necessariamente próprios de um “frívolo curialismo que se compraz em espiolhar nulidades”. A prestação de contas e a efetiva responsabilização de servidores no âmbito funcional são ferramentas fundamentais para a melhoria contínua das atividades desempenhadas em prol do interesse público. Como tais, precisam ser conduzidas em observância estrita às garantias individuais mais sensíveis. É o que exige, aliás, o princípio constitucional da eficiência administrativa, que, de modo algum, justifica o uso indiscriminado do poder punitivo estatal.

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Sobre a realização de tal encaminhamento, cita-se, como exemplo, o disposto no artigo 180 da Lei n. 1.060/2011, que trata do regime jurídico dos servidores públicos do município de Queimados, das suas autarquias e fundações públicas, in verbis: “Quando a infração estiver capitulada como crime, o inquérito administrativo disciplinar será remetido ao Ministério Público para instauração da ação penal”. Em sentido semelhante, o parágrafo único do artigo 154 da Lei n. 8.112/1990, in verbis: “Na hipótese de o relatório da sindicância concluir que a infração está capitulada como ilícito penal, a autoridade competente encaminhará cópia dos autos ao Ministério Público, independentemente da imediata instauração do processo disciplinar”.

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Da mera irregularidade procedimental ao prejuízo efetivo: o Direito de punir estatal e o respeito às garantias de defesa dos administrados

OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. PARANÁ. Procuradoria-Geral do Estado. Manual Prático do Processo Administrativo Disciplinar. Curitiba, ago. 2013. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2016. PEREIRA, Maísa Carla Borges. Da observância do princípio do prejuízo nas nulidades absolutas no processo penal: uma análise na perspectiva da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pós-Constituição de 1988. 2009. 75f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito. Centro Universitário de Brasília, São Paulo, 2009. RIO DE JANEIRO. Lei n. 5.427, de 01 de abril de 2009. Disponível em: . Acesso em: 07 jan. 2016. RIO DE JANEIRO. Lei Complementar n. 15, de 25 de novembro de 1980. Disponível em: . Acesso em: 07 jan. 2016. RIO GRANDE DO SUL. Lei Complementar nº 10.098, de 03 de fevereiro de 1994 (atualizada até a Lei Complementar n.º 14.821, de 30 de dezembro de 2015). Disponível em: . Acesso em: 07 jan. 2016. SILVA, Márcio Vinícius de Araújo. Possibilidade de concessão de aposentadoria a servidor público que esteja respondendo a Processo Administrativo Disciplinar, na visão dos Tribunais, ante a falta de previsão legal. Revista da Controladoria-Geral da União, v. 7, n. 11, jul/dez. 2015, pp. 155-176. Disponível em: . Acesso em: 04 fev. 2016. SÃO PAULO. Lei n. 10.261, de 28 de outubro de 1968. Disponível em: . Acesso em: 06 mar. 2016. QUEIMADOS. Lei n. 1.060/11, de 22 de dezembro de 2011. Disponível em: . Acesso em: 07 jan. 2016.

Mutação Constitucional em julgados da Suprema Corte Americana Laryssa Luma Lima Lapa1 Resumo O presente artigo visa a desenvolver a temática da Mutação Constitucional, deslindando inicialmente o estudo do tema em abstrato, para depois abordá-lo sinteticamente em função das diferenças entre os ordenamentos brasileiro e americano no que concerne às alterações constitucionais. Por fim, o artigo abrange diversos casos icônicos da jurisprudência americana em que a interpretação de certos dispositivos constitucionais pela Suprema Corte gerou a mutação de algumas de suas cláusulas mais importantes, especialmente decisões envolvendo direitos humanos, segregação racial e a liberdade de expressão e imprensa. Palavras-chave: Direito constitucional; Suprema Corte Americana; direitos humanos; liberdade de expressão e imprensa; Mutação Constitucional. Abstract This article aims to develop the theme of Constitutional Mutation, initially unraveling the subject of the study in the abstract, and then approaching it synthetically due to differences between the Brazilian and American systems with regard to constitutional amendments. Finally, the article covers several iconic cases in American jurisprudence where interpretation of certain constitutional provisions by the Supreme Court led to the mutation of some of its most important clauses, especially decisions involving human rights, racial segregation and freedom of speech and press. Keywords: Constitutional law; US Supreme Court; human rights; freedom of speech; Constitutional Mutation.

Introdução A definição de Constituição possui por pressuposto reduzir a escrito os comandos normativos tidos por centrais em uma determinada sociedade ou nação. Assim sendo, as noções de sua estabilidade, permanência e perenidade também lhe são atribuídas como inerentes à sua função maior de resguardar valores fundamentais, o que, inicialmente, torna inusitado o conceito de um fenômeno denominado “mutação constitucional”. Entretanto, as sociedades não são estáticas e seus valores e estruturas políticas tampouco. Destarte, não seria possível aos aplicadores do direito permanecer inertes na interpretação de valores constitucionais muitas vezes consolidados há décadas ou, em alguns casos, até mesmo séculos, como é o caso da Constituição Americana.

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Advogada formada pela UERJ

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Como nos lembra PAULO BONAVIDES:

ou, ainda, em relação de ‘incongruência’, situação na qual ocorre a mutação constitucional. Nesse sentido, Dau-Lin define a mutação constitucional como sendo a ‘incongruência entre as normas constitucionais e a realidade constitucional’. Segundo ele, a mutação constitucional é o resultado da conjugação de três características: 1) a incompletude e a elasticidade das normas constitucionais; 2) as peculiaridades do Estado como objetico de regulação jurídica; e 3) a falto de uma instância superiorque garantia a existência da constituição. Por fim, propõe uma classificação das mutações constitucionais, a saber: a) mutação por meio de práticas estatais formais que não violem a Constituição; b) mutação pela impossibilidade do exercício de determinada atribuição descrita na Constituição; c) mutação por meio de uma prática constitucional contrária à Constituição; e d) mutação por meio da interpretação da Constituição.”5

“O direito não é ciência que se cultive com indiferença ao modelo de sociedade onde o homem vive e atua. Não é a forma social apenas o que importa, mas em primeiro lugar a forma política, pois esta configura as bases de organização sobre as quais se levantam as estruturas do poder.”2

Portanto, quando há distância considerável entre os valores da época do legislador originário e os da sociedade contemporânea ainda regida por seus preceitos, várias situações contraditórias se apresentam, demandando a adoção de novas significações para cláusulas constitucionais elaboradas por outras gerações de juristas. Em feliz síntese, NADJA BOTELHO coloca que: “a questão que subjaz a contemporânea crise de legitimidade constitucional é, portanto, como desvincular fundamentalidade de fundamentalismo, ou, noutras palavras, como legitimamente incorporar mudanças em ideais e valores numa teoria constitucional que aspira à permanência”3

LUÍS ROBERTO BARROSO também enfatiza a necessidade de adequação dos preceitos constitucionais à realidade, ao manifestar que: “uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto o possível com o antigo”4

Ou seja, a maior dificuldade do jurista nesses cenários é reinterpretar normas consagradas na Constituição sem permitir que percam sua essência como valores fundamentais de sua sociedade. Ao tempo que não lhe é permitido estar insensível às mudanças ocorridas em determinado meio social, cabe ao intérprete a difícil tarefa de manter a legitimidade social da Constituição, refletindo os valores centrais que permanecem como pilares de seu respectivo ordenamento jurídico. De forma clara, enuncia WELLINGTON MÁRCIO KUBLISCKAS que:

Por conseguinte, é justamente nesse cenário que surge a mutação constitucional como alternativa de reforma apta a adaptar parâmetros constitucionais ao contexto em que se inserem sem alterá-los textualmente, mas atribuindo-lhe nova significação e consequências jurídicas. Como o sistema americano e o brasileiro tratam este instituto de forma diferenciada, ao longo deste artigo trataremos de forma mais aprofundada das diferenças entre suas expressões no civil law e no common law, especialmente em relação à forma de adaptar o sistema do precedente à noção de mutação constitucional, além de realizar breve análise sobre os casos mais icônicos da Suprema Corte sobre o tema.

Mutação constitucional no Brasil e nos EUA Como se sabe, a mutação constitucional pertence ao gênero de reformas constitucionais que podem ocorrer por via formal, emendas à constituição, ou por via informal, mutações constitucionais6. O maior diferencial entre ambas está no fato de que na mutação o texto em si não sofre alteração legislativa direta ou textual, alterando-se apenas o sentido, abrangência ou conteúdo da norma em questão. Sobre o tema, NADJA BOTELHO sintetiza que: “Reforma e mutação operam de maneira complementar, pois quando um ordenamento jurídico é submetido a reformas contínuas, a mutação perde muito do seu sentido, mas, inversamente, quando se receia recorrer à reforma, proliferam as mutações constitucionais, o que demonstra ser inútil tentar barrar as mudanças.”7

“A norma e a realidade constitucional podem estar em relação de congruência, quando: a) a realidade se adapta à norma (situação de plena vigência da norma constitucional) ou b) a norma constitucional se adapta à realidade (situação em que ocorre a modificação formal da Constituição); BONAVIDES, Paulo. O direito constitucional e o momento político. Revista de Informação Legislativa, ano 21, nº 81, jan./mar, 1984. p. 217 a 230. 3 BOTELHO, Nadja Machado. Mutação Constitucional: a Constituição viva de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 16. 4 BARROSO, Luís Roberto. Natureza jurídica e funções das Agências Reguladoras de serviços públicos. In: Boletim de Direito Administrativo, ano XV, n.º 6, junho, 1999. 2

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KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Emendas e Mutações Constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009. p. 71. 6 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 57. 7 BOTELHO, Nadja Machado. Mutação Constitucional: a Constituição viva de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 37-38. 5

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Ou seja, no modelo brasileiro, pode-se dizer que mutações e emendas constitucionais funcionam de forma coordenada na função de suprir lacunas e esclarecer dispositivos constitucionais por vezes muito abstratos, conferindo efetividade ao texto da Constituição. Neste sentido, posiciona-se UADI LAMMÊGO BULOS, ao dispor que: “É precisamente no poder constituinte difuso que as práticas constitucionais encontram esteio. São, em essência, fruto dessa manifestação invisível, latente, por meio da qual os poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) continuam a obra do legislador constituinte originário, interpretando disposições vagas, ambíguas ou obscuras, bem como colmatando lacunas, preenchendo, assim, os espaços em branco do produto constitucional legislado.”8

Em um sistema em que a Constituição é analítica e em que a edição de emendas é uma prática consagrada pelo próprio texto constitucional, esta complementariedade entre emendas e mutações constitucionais se dá exatamente da forma acima referida, conferindo à Constituição o nível de adaptabilidade necessário para manutenção de seus valores primeiros. Todavia, ao se considerar o sistema americano, em que a Constituição é extremamente sintética e possui valor de documento histórico, a edição de emendas é evento raríssimo e as poucas editadas já possuem décadas de história. Por essa razão, em um ordenamento de common law a mutação constitucional assume papel protagonista na interpretação do texto da Carta Magna. LUÍS ROBERTO BARROSO enuncia essa diferença de forma clara ao mencionar que: “No direito norte-americano, o fenômeno da mudança não formal do texto constitucional é, a um só tempo, potencializado e diluído em razão de duas circunstâncias. A primeira está associada ao caráter sintético da Constituição, na qual estão presentes normas de textura aberta, como federalismo, devido processo legal, igualdade sob a lei, direitos não enumerados, poderes reservados. A segunda diz respeito ao próprio papel mais discricionário e criativo desempenhado por juízes e tribunais em países nos quais vigora o sistema do common law. Em consequência dessas peculiaridades, foram desenvolvidas jurisprudencialmente inúmeras teses que não tinham previsão expressa, como a teoria dos poderes implícitos, a imunidade tributária recíproca entre os entes da federação, a doutrina das questões políticas, o direito de privacidade, dentre muitas outras.”9

Considerando, pois, as evidentes diferenças entre ambos os ordenamentos, cumpre compreender de que formas as mutações constitucionais podem ocorrer em um sistema de common law, alterando seu sistema de precedentes. Sobre o tema disserta NADJA MACHADO BOTELHO: 8 9

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BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 172. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2010. p.125.

“Buscando fundamentação no princípio do stare decisis e na história constitucional norte-americana, a Suprema Corte considerou que a superação de precedentes é apropriada quando ocorrem mudanças nas circunstâncias fáticas ou na compreensão desses fatos, lançando dúvidas sobre verdades atemporais, paradigmas ou princípios supostamente neutros, que não mais são capazes de solucionar questões constitucionais. A reflexão aponta as incoerências do originalismo e do textualismo e os riscos do stare decisis se transmudar em jurisprudência mecânica, que perca a conexão com a mudança social.”10

Veremos a seguir alguns casos mais icônicos acerca de como a Suprema Corte decidiu em litígios envolvendo a mutação constitucional de alguns de seus preceitos mais centrais, como litígios envolvendo direitos humanos e as cláusulas de liberdade de expressão e imprensa.

Mutação constitucional em direitos humanos Um dos campos em que a aplicação de mutações constitucionais se manifesta de forma mais evidente e relevante no campo social e político, diz respeito a sua influência em temas de direitos humanos. A primeira e maior temática que trataremos nesse capítulo diz respeito à escravidão e segregação racial nos Estados Unidos e a alteração no tratamento do tema pela Suprema Corte desde o século XIX ao XX. O primeiro caso a ser mencionado será Dred Scott v. SandFord (1857). Dred Scott era um escravo em Missouri que residiu em Illinois, um Estado livre, entre 1833 a 1843, e em uma área do território da Louisiana onde a escravidão era proibida pelo “Missouri Compromise” de 1820. Depois de retornar a Missouri, Scott processou sem sucesso nas Cortes de Missouri pela sua liberdade, alegando que sua residência em território livre fazia dele um homem livre. Scott então iniciou a demanda na corte federal enquanto seu dono sustentou que nenhum negro de sangue puramente africano, descendente de descendentes de escravos, poderia ser cidadão no sentido do artigo III da Constituição. A corte entendeu, por sete votos a dois, que Scott era ainda escravo. Segundo os artigos III e IV, ninguém que não fosse cidadão americano poderia ser cidadão de um Estado, e apenas o Congresso poderia oferecer cidadania americana. O Chefe Taney chegou à conclusão de que nenhuma pessoa descendente de escravos africanos era cidadã, para os fins do artigo III. A Corte, portanto, considerou o “Missouri Compromise” inconstitucional na tentativa de encerrar os questionamentos similares sobre a escravidão como um todo. Como se pode aferir, ao tempo deste litígio a “Citizenship Clause”, cláusula de igualdade dos cidadãos perante a Constituição, não se aplicava aos escravos ou descendentes de escravos e uma lei estadual que concedesse liberdade aos cativos de uma determinada região seria considerada inconstitucional com fundamento no artigo III da Constituição Americana. 10

BOTELHO, Nadja Machado. Mutação Constitucional: a Constituição viva de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 51.

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Décadas depois, foi decidido o caso Plessy v. Ferguson envolvendo a segregração racial em vagões de trem em 1896. O Estado de Lousiana promulgou uma lei que exigia vagões de trem separados para brancos e negros. Em 1892, Homer Adolph Plessy, que era 7/8 caucasiano (avaliações da época), ocupou um espaço no carro apenas para brancos e se recusou a sair, sendo preso. A questão levada à Corte foi se o mandamento da Lei de Segregação da Louisiana possuía violação inconstitucional dos privilégios e imunidades de igual proteção da Quarta Emenda. Em decisão de sete votos a um, a Corte entendeu que a lei estadual estaria dentro dos limites constitucionais baseandose na “separate but equal doctrine”, que considerava que a separação de instalações para negros e brancos não violava a Quarta Emenda desde que houvesse absoluta igualdade entre as raças perante a lei. Em resumo, segregação por si mesma não constituiria discriminação ilegal e não implicaria em violação à Constituição, desde que houvesse igualdade formal. Por fim, mencionaremos o caso mais icônico e conhecido sobre mutações constitucionais: Brown v. Board of Education of Topeka, de 1954. Crianças negras tiveram sua admissão negada em escolas públicas frequentadas por crianças brancas com fundamento nas diversas leis que requeriam e permitiam segregação racial. Em defesa da segregação, argumentava-se que as escolas brancas e negras tinham atingido igualdade em termos de instalações, currículos, qualificações e salários dos professores. Esse caso foi decidido em conjunto com casos de teor similar como Briggs v. Elliott, Davis v. County School Board of Prince Edward County, e Gebhart v. Belton. O questionamento central da causa foi se a segregação de crianças em escolas públicas com fundamento apenas em sua raça privaria essas crianças de proteção igual perante a lei garantia pela 14ª Emenda. A Corte entendeu em unanimidade que, apesar da igualdade das escolas em termos objetivos, outras questões eram aptas fomentar e manter a desigualdade. A Corte defendeu que a segregação racial na educação pública tem um efeito negativo sobre as crianças das minorias, porque ele é interpretado como um sinal de inferioridade e isolamento. Considerou-se que a “separate but equal doctrine” é inerentemente desigual no contexto da educação pública e a opinião unânime encerrou finalmente com todas as formas de separação racial mantidas e legitimadas pelo Estado da época. Trata-se do caso que consagrou a mutação constitucional da Quarta Emenda, demonstrando como mudanças sociais e ideológicas podem tornar necessária a reinterpretação de uma garantia constitucional. LUÍS ROBERTO BARROSO descreve a diferença causada pelas decisões, refletindo as mudanças na sociedade da época:

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“(...) quando Earl Warren deixou a presidência da Suprema Corte, em 1969, a segregação em escolas e demais ambientes públicos já não era mais permitida; o arbítrio policial contra pobres e negros estava minorado; comunistas ou suspeitos de serem comunistas não podiam ser expostos de maneira degradante e ruinosa para suas carreiras e suas vidas; acusados em processos criminais não podiam ser julgados sem advogado; o Estado não

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podia invadir o quarto de um casal em busca de contraceptivos. Todas as profundas transformações acima relatadas foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou decreto presidencial.”11

Caso mais recente que comprova o protagonismo da Suprema Corte no campo das mutações constitucionais envolvendo direitos humanos, diz respeito à decisão de 26 de junho de 2015 do caso “Obergefell vs. Hodges” que consagrou a tão aguardada legalização do casamento homoafetivo nos Estados Unidos. O fundamento utilizado no decisum foi a aplicação das cláusulas de devido processo legal e de proteção da Quarta Emenda que, inalteradas em sua essência textual, passam a ser interpretadas de forma a permitir o direito à celebração de matrimônio civil de forma igualitária aos cidadãos em todos os estados da nação, impedindo a edição e aplicação de leis que o vedem no ordenamento.

Mutação constitucional e liberdade de expressão e imprensa Também há vários casos interessantes no que concerne aos conflitos entre liberdade de expressão da imprensa e direito de privacidade dos indivíduos. Sobre o assunto abordaremos o caso New York Times Co. v. Sullivan (1964), que, decidido conjuntamente com o caso Abernathy v. Sullivan, diz respeito a um anúncio de página inteira no New York Times que anunciava a prisão do Rev. Martin Luther King Jr. por perjúrio no Alabama como parte de uma campanha para destruir seus esforços para integrar instalações públicas e encorajar negros a votar. L. B. Sullivan, o Comissário da cidade de Montgomery, iniciou uma ação contra o jornal e contra os quatro pastores negros que supostamente endossaram a publicação, afirmando que as alegações contra a polícia de Montgomery o difamaram pessoalmente. Segundo a lei do Alabama, Sullivan não tinha que provar que foi atingido, e a defesa alegou que o anúncio tinha sido verdadeiramente inapto a ofender o Comissário uma vez que continha erros acerca dos fatos. Sullivan recebeu 500,000 no julgamento. O questionamento principal do processo era se a lei do Alabama, ao não requerer de Sullivan prova de que o anúncio o ofendeu pessoalmente, estaria violando a proteção à liberdade de expressão e prerrogativas de imprensa da Primeira Emenda. Contudo, em decisão unânime, a Corte entendeu que a Primeira Emenda protege a publicação de quaisquer declarações, sobre a conduta de qualquer oficial público, mesmo que falsas, exceto quando são feitas com malícia e conhecimento de sua falsidade. Desta forma, pelo julgamento da Suprema Corte, Sullivan perdeu a causa. 11

BARROSO, Luís Roberto. A Americanização do Direito Constitucional e Seus Paradoxos: Teoria e Jurisprudência Constitucional no Mundo Contemporâneo. Disponível em: < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/ pdf/a_americanizacao_do_direito_Constitucional_e_seus_paradoxos.pdf>

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Caso similar foi o caso Gertz v. Robert Welch (1974) que também envolveu o conflito entre liberdade de imprensa e direito individual de obter reparação pela prática de difamações. Gertz era um advogado contratado por uma família para processar um oficial de polícia que assassinou o filho da família. Em uma revista chamada “American Opinion”, a Sociedade John Birch acusou Gertz de ser “Leninista” e representante comunista porque ele escolheu representar clientes que estavam processando um oficial da lei. Gertz perdeu o processo de difamação porque o tribunal de primeira instância considerou que a revista não havia violado o teste real de malícia por calúnia que o Supremo Tribunal tinha estabelecido no caso New York Times v. Sullivan (1964). Entretanto, em decisão apertada de cinco votos a quatro, a Corte reverteu a decisão de primeira instância e entendeu que os direitos de Gertz haviam sido violados. O Juiz Powell entendeu que a aplicação do parâmetro do caso New York Times v. Sullivan nessa hipótese não seria apropriado porque Gertz não era oficial público tampouco figura pública. Powell também estabeleceu que cidadãos comuns deveriam possuir mais proteção contra declarações difamatórias que as pessoas públicas, mas que o parâmetro da malícia não deixa de ter importância também nesses casos pois podem ser usados para verificar a aplicação de “punitive damages”. Ou seja, nessa hipótese, considerando os direitos do cidadão comum, a Suprema Corte alterou sua interpretação da Primeira Emenda, adaptando-a às peculiaridades deste caso concreto e mitigando a liberdade de imprensa em favor dos direitos individuais de figuras não-públicas. Sobre o tema, ainda cabe mencionar o caso Hustler Magazine v. Falwell (1988), posterior ao Gertz v. Robert Welch, e que envolveu posicionamento diverso da Suprema Corte em face de demanda similar. Em novembro de 1983, a Hustler Magazine apresentou uma “paródia” de um anúncio publicitário, modelado em uma campanha de anúncio real, alegando que Falwell, um ministro fundamentalista e líder político, tinha uma relação incestuosa embriagado com sua mãe em uma cabana. Falwell processou a revista para reparar os danos pela difamação, invasão de privacidade e inflição proposital de sofrimento emocional. Falwell venceu o veredito do júri sobre a alegação de sofrimento emocional e recebeu 150,000 em reparação, mas a revista apelou alegando ofensa à Primeira Emenda e à Liberdade de Imprensa. Em decisão unânime, a Corte entendeu que pessoas públicas, como Jerry Falwell, não poderiam ser reparados de sofrimento emocional sem demonstrar que a publicação de ofensa continha uma falsa declaração de fato feita com “real malícia”. A Corte acrescentou que a proteção da liberdade de expressão era mais importante que a proteção de pessoas públicas contra discursos ofensivos, desde que tal discurso não possa ser razoavelmente interpretado no sentido de indicar fatos reais sobre o assunto, o que não seria o caso. Em suma, diante da regência da mesma cláusula de liberdade de imprensa da Primeira Emenda, estas três decisões sobre litígios similares possuíram julgamentos díspares pela Suprema Corte que interpretaram a cláusula

considerando elementos do caso concreto e limitando sua abrangência em algumas hipóteses. A ideia de que pessoas públicas não teriam direito à indenização por difamação hoje já está completamente superada na jurisprudência americana, mas o texto que fundamenta a liberdade de imprensa e de expressão mantém absolutamente a mesma redação de séculos antes, demonstrando como foram comuns na história as mutações constitucionais em sua interpretação.

Conclusão Com a dinamicidade das relações sociais e constantes mudanças de valores, as transformações sofridas pela sociedade necessariamente se traduzem em todas as áreas do Direito, especialmente e de forma mais profunda no que refere a sua Constituição, sendo as mutações constitucionais apenas uma das expressões possíveis dos métodos de reforma do seu conteúdo. Como aferível pelos exemplos históricos apresentados, a Constituição Americana se manteve textualmente íntegra durante períodos de escravidão, abolição, segregação racial, alta intervenção estatal na esfera privada e ainda hoje quando se estendem direitos civis básicos a cidadãos homossexuais, circunstâncias que jamais teriam sido concebidas ao tempo do constituinte originário. Justamente por se manter íntegra, resguardando o “sentimento de constituição”12 que a animou, é que a sintética Constituição Americana demanda intenso trabalho interpretativo no seu resguardo, exigindo dos juristas e intérpretes não apenas sua leitura e simples aplicação, mas também sensibilidade para atender as novas e legítimas demandas sociais em prol de sua efetividade como protetora de direitos fundamentais dos cidadãos americanos. De fato, como resume ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, a mutação constitucional, tanto no ordenamento americano e brasileiro, só tem espaço: “quando, por essa via, se transmuda o sentido atribuído aos conceitos fixados pela norma constitucional, para adaptá-la a realidades novas, a situações distintas, a momentos e circunstâncias sócias, políticas ou econômicas diferentes; ocorre, também, quando se altera, se amplia ou se restringe o programa apenas esboçado pela norma constitucional; ocorre, ainda, quando se preenchem vazios constitucionais, se suprem omissões, se esclarecem obscuridades, dando-se, por via legislativa, novo alcance ao texto constitucional, que irá abranger situações novas ou disciplinar; de modo atual e definido, comportamentos imprecisamente imprevistos na Constituição”13 BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e o Monitoramento de suas Emendas. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado, nº 1, janeiro/fevereiro/março, Salvador-Bahia, 2005. 13 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais.  São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 92. 12

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Portanto, apesar de tão diversa da nossa, a análise da experiência americana serve para demonstrar que a realização de valores constitucionais exige muito mais do intérprete que mera leitura textual de dispositivos. É necessária a contextualização histórica, cultural e política do momento de edição da norma e também do momento em que ela deve ser defendida ou aplicada, sem cometer o equívoco de despir a Constituição de seus valores primordiais. Como enuncia Earl Warren, presidente da Suprema Corte Americana, Chief Justice, entre 5 de Outubro de 1953 a 23 de Junho de 1969, e responsável por grande parte dos mais relevantes julgados favoráveis ao fim da segregação racial: “it is the spirit and not the form of law that keeps justice alive”. As mutações constitucionais devem ser, destarte, um mecanismo para promoção da justiça a ser aplicado apenas quando o texto constitucional, em suas limitações, não se mostrar apto a fazê-lo.

Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. A Americanização Do Direito Constitucional E Seus Paradoxos: Teoria E Jurisprudência Constitucional No Mundo Contemporâneo. Disponível em: < http://www.luisrobertobarroso.com.br/> . Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2010. p.125. . Natureza jurídica e funções das Agências Reguladoras de serviços públicos. In: Boletim de Direito Administrativo, ano XV, n.º 6, junho, 1999. BONAVIDES, Paulo. O direito constitucional e o momento político. Revista de Informação Legislativa, ano 21, nº 81, jan./mar, 1984. p. 217 a 230. BOTELHO, Nadja Machado. Mutação Constitucional: a Constituição viva de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 16, 37-38, 51. BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e o Monitoramento de suas Emendas. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado, nº 1, janeiro/fevereiro/março, Salvador-Bahia, 2005. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 57 e 172. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais.  São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 92. KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Emendas e Mutações Constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009. p. 71.

Contribuições do Direito Penal Econômico para a proteção do Meio Ambiente Bruna Laiber Monteiro1 Thamyrys Baur Tuffi Alli2 Resumo O artigo expõe sobre as contribuições do Direito Penal Econômico, controvertido ramo do Direito Penal, para a proteção do meio ambiente. Inicialmente, expõemse, de modo geral, exemplos de sua aplicação em conjunto com o Direito Ambiental, especialmente no que tange à busca por um desenvolvimento econômico sustentável. Por último, discutem-se soluções trazidas pela doutrina do Direito Penal Econômico à imputação de autoria por crimes ambientais, como a responsabilização penal da empresa que é utilizada na produção dos fatos danosos, bem como o compliance, instituto que vem contribuindo à persecução penal. Palavras-chave: Meio ambiente; direito penal econômico; direito penal ambiental; responsabilidade penal da empresa; criminal compliance. Abstract The article disserts on the contributions of the Economic Criminal Law, the controversial field of the Criminal Law, toward the protection of the environment. It begins by presenting examples of the application in conjunction with the Environmental Law, particularly regarding the pursuit for a sustainable economic development. Lastly, the article discusses solutions present in the doctrine of the Economic Criminal Law to the attribution of liability for environmental crimes, such as allowing a corporate criminal liability if the corporation is used in the commitment of a crime, as well as compliance programs contributing to the prosecution of felonies. Keywords: Environment; economic criminal law; environmental criminal law; corporate criminal liability; criminal compliance.

Introdução Conhecemos o professor Maurício Motta logo no primeiro período da Faculdade de Direito na UERJ, quando tivemos o privilégio de tê-lo tanto como professor quanto como nosso diretor da faculdade. Sempre com aulas dinâmicas e certa irreverência, mais que um excelente professor, é um ser humano incrível. Sempre prestativo com seus alunos e ex-alunos, não importa ao estejamos passando, sempre faz questão de nos cumprimentar. 1

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Bacharel em Direito pela UERJ. Mestre em Direito Penal pela UERJ. Consultora Jurídica. Bacharel em Direito pela UERJ. Mestre em Direito Penal pela UERJ. Advogada.

Contribuições do Direito Penal Econômico para a proteção do Meio Ambiente

Bruna Laiber Monteiro e Thamyrys Baur Tuffi Alli

Diante disso, foi uma honra poder participar dessa singela homenagem a esse grande profissional e pessoa que é. Pensando na sua ligação com o Direito Ambiental, procuramos conciliar tal tema com um outro tão polêmico quanto: o Direito Penal Econômico (DPE), disciplina que conta com um grande acervo nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, mas que, infelizmente, aqui é tão escasso. Nosso objetivo com o presente trabalho é demonstrar como o DPE pode tutelar e proteger o meio ambiente, e como os institutos de tal disciplina contribuem para solucionar problemas que, aparentemente, o direito penal clássico seria ineficiente.

Afere-se do texto de nossa Carta Maior que cabe ao poder público assegurar a efetividade desse direito. Ademais, segundo seu art. 225, § 3º, as condutas e atividades lesivas sujeitam seus infratores a sanções tanto administrativas quanto penais, adicionais ao dever de reparação dos danos. Destarte, pode-se mesmo afirmar haver um mandado constitucional de criminalização. Além do emprego de esforços não apenas no âmbito civil e administrativo, tão importante é o meio ambiente para o espírito da nossa Constituição que também se mostrou imprescindível sua proteção pela esfera da responsabilidade penal. Cumpre informar que este artigo não focará na prova sobre a necessidade da tutela penal ao meio ambiente, tópico inserido por muitos autores na polêmica acerca da legitimidade do bem jurídico coletivo e da tipificação de tipos de perigo abstrato7. É inegável, contudo, que o Direito Penal Ambiental guarda estreita relação com o Direito Penal Econômico. Conforme afirma João Marcello de Araujo Junior, ele seria ramo do Direito Penal sujeito a princípios liberais e garantistas. Com isso, poder-se-ia dizer que possuiria ainda características próprias a despeito da destinação prática no sentido de “fazer funcionar a política econômica”8. Para o autor, o Direito Penal Econômico destina-se a regular o comportamento daqueles que participem do mercado e também a proteger a estrutura e funcionamento deste, bem como a política econômica estatal9. Sendo um dos objetivos basilares do Direito Penal Ambiental justamente garantir o desenvolvimento sustentável, ao regular as relações e a exploração do meio ambiente pelo mercado, também constituiria em mais uma das facetas do próprio Direito Penal Econômico. De fato, assim como algumas novidades legislativas ocorreram visando sua aplicação ao Direito Ambiental, igualmente observa-se um considerável índice de aplicação dos institutos do Direito Penal Econômico com vista a garantir uma eficaz proteção do meio ambiente. Os itens seguintes deste trabalho serão dedicados a aprofundar ao estudo desta afirmação, como o uso do Direito Penal Econômico pode ser eficaz na defesa do meio ambiente e se deve ser utilizado com tal propósito e a responsabilização penal da empresa, com o fim de inibir aqueles entes morais responsáveis por ampla parte dos danos sofridos pelo meio ambiente e que, graças à sua estrutura complexa, são usados para dificultar a apuração de responsabilidade para a reparação não apenas penal, mas também conseguem ludibriar a reparação tanto administrativa quanto civil.

O meio ambiente e o Direito Penal Econômico O meio ambiente é entendido como um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Sua proteção norteia-se por princípios como do desenvolvimento sustentável, da cooperação, da prevenção, da precaução, do poluidor-pagador, entre outros. Em especial desde a segunda metade do século XX, aumentou a preocupação por preservá-lo, um esforço global de construir, com esses princípios, uma política ambiental responsável para possibilitar o desenvolvimento sustentável3. Isso se reflete no Direito por inúmeras legislações dedicadas ao Direito Ambiental. No plano internacional, surgiram instrumentos importantes de cooperação entre os Estados, como a Declaração de Estocolmo4, de 19725. Internamente, nossa mais importante lei infraconstitucional é a L. nº 9.605/98, dispondo sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Além desta, porém, já em 1988, nossa Constituição Federal dedicava um capítulo à proteção do meio ambiente. José Afonso da Silva considera esse capítulo como “um dos mais importantes e avançados”, seguindo ou até mesmo ultrapassando constituições mais recentes no tocante à proteção do meio ambiente6. Segundo seu art. 225, [t]odos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. O meio ambiente (natural) como sujeito passivo dos crimes ambientais. In: D’ÁVILA, Fábio; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito penal secundário. Estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: RT, 2006, p. 246 4 Trata-se do resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, um encontro pioneiro sobre o tema. 5 CAMPOS, Aline da Veiga Cabral. Precaução ambiental na era do direito penal secundário. In: D’ÁVILA, Fábio; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito penal secundário. Estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: RT, 2006, p. 110. 6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 845-846. 3

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Para mais detalhes, sugerimos a consulta a GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e Crimes de Perigo Abstrato – Uma introdução ao debate sobre bem jurídico e as estruturas do delito. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 12. Nº. 49 São Paulo: RT, 2004, p. 92 e ss. 8 ARAUJO JUNIOR, João Marcello. O Direito Penal Econômico. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 7, n. 25, 1999, p. 149. 9 Ibid, pp. 149-150. 7

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O Direito Penal Econômico na defesa do meio ambiente Com a globalização, veio um processo de integração com uma ampla homogeneização da vida dos homens e dos povos em vários âmbitos de seu convívio. É fácil constatar que, no último século, a sociedade evoluiu e passou por mudanças em vários âmbitos. Nesse diapasão, o crime não ficou indiferente. Resultado disso foi a produção de novas necessidades sociais, culminando no surgimento de novos interesses e direitos, numa progressiva expansão, que fomentam novos espaços de tensão, ocupando áreas que, até certo tempo, estavam vagas. Paralelamente, surgem novos perigos e a consequente criação de novos tipos penais e, por conseguinte, a tutela de interesses que antes não estavam na mira do Direito Penal, novos valores específicos, os quais a coletividade elegeu como de fundamental importância. Assim, como bem ressalta Luciano Feldens, [a] expansão do Direito Penal Clássico, com a ampliação de tutela para determinadas áreas do setor econômico, surge como decorrência da expansão do próprio Direito – mais especificamente dos direitos – e do incremento dos interesses e necessidades sociais.10 [grifos do autor]

As atuais mudanças a nível social levaram a uma sociedade que vem a gerar novos riscos e uma criminalidade complexa e o direito penal diante de novas categorias de desafios, chega ao limite de suas funções, quando se trata de proteger a sociedade e a liberdade do indivíduo. Essas “novas guerras” (expressão cunhada por Ulrich Sieber) traz uma necessidade de proteção contra o perigo e de prevenção. Nesse sentido, os ordenamentos jurídicos atuais ficam diante de desafios novos, onde os institutos clássicos do Direito Penal, direito este que acaba tendo que criar um novo direito que traga a tão almejada segurança.11 [O]s novos riscos são frequentemente acompanhados de maior complexidade dos tipos de delito, que sebaseiam não apenas em causas técnicas ou econômicas, mas também em estruturas de autoria especiais, maior número de vítimas ou grande abrangência geográfica da execução do crime.12

Dentro dessa nova realidade que se põe, o Direito Penal vai encontrar seus limites funcionais e procurar respostas novas que deem uma solução eficaz aos problemas que surgiram, ameaçando ou lesionando os novos bens jurídicos FELDENS, Luciano. A criminalização da atividade empresarial no Brasil: entre conceitos e preconceitos. In: BOTTINO, Thiago; MALAN, Diogo. Direito penal e economia. FGV, 2012. p. 100. 11 ULRICH, Sieber. Limites do direito penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa em direito penal no Instituto Max-Planck de direito penal estrangeiro e internacional. Cadernos Direito GV, São Paulo, documento 23, v. 5, nº. 3, maio/2008. p. 24. 12 Ibid. p. 25. 10

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que nascem e necessitam de uma tutela. Assim, a política criminal apresenta respostas diferentes para os novos desafios que a sociedade global de risco impõe. Uma resposta que vem prevalecendo sugere a ampliação do direito penal bem como sua desfronteirização, assinalada através de um Direito Penal com uma aparelhagem mais forte quando diz respeito à prevenção e à segurança, salvo a tutela já na fase precedente à execução da infração e da suspeita do fato. O movimento de expansão do Direito Penal nuclear eclode do desenvolvimento dos interesses sociais na atualidade, fazendo surgir novos ramos de direitos, que, em gradativo alargamento, fomentam novos espaços de tensão, ocupando áreas que, até certo tempo, estavam vagas. No entanto, apesar dessa ampliação do campo de ingerência da ciência penal, a mesma não foi seguida por uma evolução da dogmática no mesmo quilate. Consequentemente, os institutos do Direito Penal clássico não foram delineados para fazer frente a essa nova realidade. Há um crescente desenvolvimento do direito material no campo dos bens jurídicos supraindividuais e delitos de perigo abstrato. Tenta-se, aqui, uma proteção antecipada por meio dos institutos do Direito Penal. Um ramo, cuja particularidade é o fato das condutas típicas praticadas não afetarem um bem jurídico individual, determinado, como, por exemplo, a vida, mas atingem os chamados bens jurídicos supraindividuais, indeterminados, causando danos que não podem ser individualizados e incontroláveis, é o do Direito Penal Econômico. Entretanto, Ana Bechara diz não ser “possível simplesmente transpor o valor constitucionalmente garantido à esfera penal. É necessário delimitar o sentido material do interesse fundamental a ser penalmente protegido”13, questionando, inclusive, a possibilidade de existir um alusivo individual. Pela temática ser um caminho árduo e dissonante, onde os autores não são unânimes divergindo-se sobre o assunto, não iremos nos aprofundar no estudo do bem jurídico e conceito no direito penal econômico. Apesar das discordâncias, certo é que ambas as expressões encontram-se vinculadas estrutural e funcionalmente, assim a posição que for adotada em uma refletirá no outra14. Diante desse panorama, diversas posições vão se formando, dentre as mais propagadas pelo mundo as posturas restritivas e ampla no que diz respeito ao conceito de Direito Penal Econômico15. BECHARA, Ana. Critérios político criminais da intervenção penal no âmbito econômico: uma lógica adequada. In: FRANCO, Alberto; LIRA, Rafael. Direito penal econômico: questões atuais. 1ª ed. [S.I.]: Revista dos Tribunais, 2011. p. 51. 14 CERVENI, Raúl. Derecho penal económico. Perspectiva integrada. CIIDPE: Centro de Investigación Interdisciplinaria en Derecho Penal Económico, 30 out.2014. Disponível em: . Acesso em: 1 fev.2016. p. 1-2. 15 GARCÍA CAVERO, Percy. Derecho penal económico. Parte general. Tomo I. 2ª ed. Lima: Editora Jurídica Grijley, 2007. p. 21-22. 13

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(…) Mientras la definición estricta abarca solamente las normas penales que respaldan la intervención del Estado en la ordenación del mercado (control de precios, generación de ingresos, protección de clases débiles económicamente), la definición amplia se extiende además a todas las conductas delictivas que se verifican en las relaciones económicas derivadas de la producción, distribución y comercialización de bienes y servicios.16

Entretanto, existe um consenso na doutrina de que o Direito Penal Econômico deve ser conceituado num sentido amplo17, dentre os vários motivos cita-se a “necesidad pragmática de contar con una categoría aglutinante de las más variadas agresiones sociales y también como consecuencia de una creciente tendencia a postergar los rigores sistemáticos que ofrece la dogmática”18. Como consequência, dessa noção ampla do Direito Penal Econômico, estão incluídos dentro da categoria de delitos econômicos os danos ao ecossistema ou delitos contra o meio ambiente19. Todavia, acolher com tanta facilidade novas formas econômicas, traz inúmeras discussões, desta forma Abanto Vasquez assinala que se deve “(…) sistematizar los delitos económicos, en función de los bienes jurídicos diretamente afectados (…)”20. Além disso, adotar uma concepção expansiva, dificulta a delimitação da noção do que se entenda por delito econômico21, que nas palavras de Cervini é a “infracción que afectando a un bien jurídico patrimonial individual, lesionaba o ponía en peligro en segundo término la regulación jurídica de la producción, distribución y consumo de bienes y servicios.”22. A escolha do conceito, seja amplo ou estrito, do Direito Penal Econômico vai determinar os limites de tutela, isto é, os bem jurídicos a serem protegidos pelo mesmo. Ao definir o Direito Penal Econômico com um conceito amplo, “no solo se trata de proteger el derecho de la dirección de la economia por el Estado (concepto limitado), sino también de la regulación de la producción y de la frabricación y distribución de bienes económicos (concepto amplio)”23, um grande número de espécies de delitos passam a integrar esse ramo do Direito, como consequência iniciou-se questionamentos por parte da doutrina se realmente aquele tipo de delito deve compor o grupo de infrações que integram o Direito Penal Econômico, dentre esse embate, encontra-se o tema, foco desse titulo, se os delitos contra o meio ambiente devem ser parte integrante do Direito Penal Econômico e, como consequência, contar com a tutela do mesmo. Ibid. p. 22. Idem. No mesmo sentido: ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. Derecho penal económico. Consideraciones jurídicas y económicas. Lima: IDEMSA, 1997. p. 29. 18 CERVINI, Raúl. Op. Cit. p. 19. 19 Nesse sentido: CERVINI, Raúl. Op. Cit. p. 19-20; ABANTO VASQUEZ, Manuel A. Op. Cit. p. 30. 20 ABANTO VASQUEZ, Manuel A. Op. Cit. p. 30.

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Como foi aludido, o conceito de delito econômico se associa a definição do que seja Direito Penal Econômico, desta forma, doutrinadores inquirem por que os delitos contra o meio ambiente estão dentro do grupo dos delitos que configuram o Direito Penal Econômico se, via de regra, não são delitos econômicos? É fato que, em uma rápida análise, a tutela do meio ambiente não depende do sistema econômico, uma vez que alcança domínios alheios aos puramente econômicos24. Entretanto, tem-se que reconhecer que muitas condutas atingem consideravelmente o meio ambiente25. Condutas essas que fazem parte da produção de bens, integrando, via de regra, o ciclo de desenvolvimento da economia. Inclusive, vale lembrar que, a proteção do meio ambiente, por intermédio da seara penal, é decorrente do atual desenvolvimento do sistema atual econômico26. Desta forma, (…) Por un lado, se presentan opiniones que entienden que la economía está cada vez más orientada a la protección del medio ambiente y que incluso la determinación de los límites de riesgo permitido y prohibido tiene en cuenta factores económicos. A este parecer se le opone la línea de interpretación que afirma que el derecho del medio ambiente protege el ámbito vital del hombre, lo cual ciertamente no puede depender de cuestiones económicas.27

Segundo Alfonso Cadavid Q., essa proteção do meio ambiente dentro do contexto mais amplo do Direito Penal Econômico justifica-se com base em uma simples consideração: (…) la de que es la actividad de los intervinientes en los procesos productivos, y muy especialmente las personas jurídicas, el espacio básico en el que se realizan conductas lesivas para un bien jurídico sobre cuya necesidad de protección penal no parece existir controversia en la doctrina penal reciente.28

Para dar uma solução a esse embate, deve-se ter em conta que alguns tipos penais que tutelam o meio ambiente encontram-se cravejados em estruturas econômicas. Los delitos ecológicos normalmente se engloban dentro de la categoría Derecho penal económico, pero no por efecto del desarrollo de una noción “amplia” del mismo. Lo integran más por su significación social que por

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CERVINI, Raúl. Op. Cit. p. 22. Ibid. p. 23. 23 ABANTO VASQUEZ, Manuel A. Op Cit. p. 29. 22

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GARCÍA CAVERO, Percy. Op. Cit. p. 61-62. Idem. 26 Idem. 27 Ibid. p. 61. 28 CAVIDAD, Alfonso Q. La protección penal del medio ambiente en el derecho penal colombiano. p. 211-231. In: TERRADILLOS BASOCO, Juan María; ACALE SÁNCHEZ, Maria (coords.). Nuevas tendencias en derecho penal económico. Seminario internacional de derecho penal. 1ªed. Espanha: Univversidad de Cádez, 2008. p. 213. 24 25

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coherencia conceptual o sistemática. Sin embargo, aún empíricamente, veremos que los delitos ecológicos se vinculan estrechamente al Derecho penal de la empresa, en tanto de regla, serán cometidos mediante la utilización de corporaciones, constituyendo verdaderas conductas disvaliosas hacia el exterior de la empresa.29

De fato, delitos contra o meio ambiente são comumente praticados mediante a utilização de uma empresa legal. Relatórios sobre o assunto expõem que o comércio ilegal de fauna e flora envolve variadas atividades que visam fraudar o processo. Uma quantidade muito grande de animais é contrabandeada do Brasil para países não-signatários da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção – CITES, e até signatários, onde recebem documentações falsas e, em seguida, são exportados. (…) Esse contrabando provavelmente conta com fiscais e funcionários posicionados em locais estratégicos como portos, aeroportos e postos alfandegários nas fronteiras entre os países, para facilitarem esse processo. Há também uma participação danosa de alguns pesquisadores que atuam em esquemas internacionais de tráfico, se utilizando de credenciais e autorizações oficiais concedidas às instituições para as quais trabalham (…).30

Há ainda casos que envolvem a “lavagem” de animais ou pseudolegalização31, onde os criminosos, fazendo uso de zoológicos, criadouros de conservação ou científicos e criadouros comerciais (legalizados ou não), emitem um atestado falso, como se aquela espécie tivesse nascida em cativeiro, numa suposta condição legal, quando na verdade são selvagens32. Há várias formas dos criminosos, utilizando-se de empresas, ludibriarem as autoridades de forma a obterem êxito em sua empreitada criminosa. Pode-se citar, por exemplo, o uso de documentos legais para encobrir produtos ilegais; usar documentos verdadeiros para fraudar permissão ou certificação ou mesmo alterar dados da espécie a ser comercializada de forma ilegal. O que deve atentar é a facilidade que os criminosos encontram empresas que possam intermediar esse comércio ilegal, facilitando o mesmo. Inclusive estando familiarizado com outros crimes como a corrupção. CERVINI, Raúl. Op. Cit. p. 25. RENCTAS. 1º relatório nacional sobre o tráfico de fauna silvestre. Brasília: RENCTAS, 2014. p. 24-25. 31 PORTAL BRASIL. Polícia Federal desarticula quadrilhas que traficavam animais silvestres. Agência Brasil, 2 abril.2012. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/ defesa-e-seguranca/2012/04/policia-federal-desarticula-quadrilhas-que-traficavamanimais-silvestres>. Acesso em: 5 fev.2016. 32 RENCTAS. Op. Cit. p. 25-27. 29 30

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Nesse sentido, especialistas afirmam que o comércio ilegal de fauna e flora caminha lado a lado com outros crimes econômicos, como a corrupção, a lavagem de dinheiro e até mesmo o financiamento do terrorismo33; por isso, tais crimes também devem ser alvos de combate como exemplo. O RENCTAS, em pesquisas realizadas, verificou casos de animais que traficados para serem usados como moedas de trocas e para lavagem de dinheiro34. Investigações ainda revelam que quando se trata de exploração mineral, onde empresas e garimpos agem clandestinamente, geram consequências na mesma linha: provocam evasão de divisas e lavagem de dinheiro35. O próprio comércio autorizado por lei de espécies da fauna e flora pode ser objeto de lavagem do dinheiro oriundo de uma atividade ilícita, como já foi constatado na Colômbia, onde o setor pesqueiro seria financiado pelo capital gerado pelo narcotráfico36. Em suma, feita essa breve exposição, pode-se observar que o meio ambiente é um direito supraindividual e/ou coletivo: pertence a todos, que devem fazer um uso sadio do mesmo para que as gerações futuras possam disfrutar de tamanha dádiva. Em uma época, onde os crimes se intercomunicam, fica difícil criar uma fronteira para saber qual é o bem jurídico a ser tutelado. Nesse sentido, apesar de o meio ambiente não ser dotado de um conteúdo exclusivamente econômico, um delito cometido contra o mesmo pode ser refletido na economia como foi demonstrado nas linhas anteriores, por isso que os autores tendem, majoritariamente, incluí-lo no rol de delitos que compõem o Direito Penal Econômico, como uma forma de tutelar esse bem que, caso deixe de existir por causa de condutas irresponsáveis, afetará de forma, talvez até exagerada de falar, irremediável, uma vez que muitos danos são irreversíveis quando não, levam anos para voltarem ao seu status quo. Além dessa tutela do meio ambiente, o Direito Penal Econômico também pode fornecer instrumentos para imputar de forma adequada o sujeito ativo do delito, principalmente quando se tratar de pessoa jurídica. É o que se passa a tratar no próximo item.

PERASSO, Valéria. Nova corte internacional lutará por Justiça para animais. O Globo, caderno natureza, 15 jul.2015. Disponível em: . Acesso em: 5 fev.2016. 34 ESCOBAR, Herton. O Estado de S. Paulo – Narcotráfico e animais silvestres: grande negócio. RENCTAS na mídia, Em Fique Por Dentro, 27 jun. Disponível em: < http:// www.renctas.org.br/o-estado-de-s-paulo-narcotrafico-e-animais-silvestres-grandenegocio/>. Acesso em: 8 fev.2016. 35 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão parlamentar de inquérito destinada a “investigar o tráfico ilegal de animais e plantas silvestres da fauna e da flora brasileiras”. Disponível em: . Acesso em: 9 fev.2016. p. 31-32. 36 Ibid. p. 40. 33

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Responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais Como mencionado no primeiro item deste trabalho, uma fração importante dos crimes ambientais é cometida por meio de uma empresa, um dado que não é surpresa. Com a expansão do capitalismo, as empresas aumentaram sua importância no último século, assim como seu tamanho. Para acompanhar esse crescimento, logicamente, precisaram também aumentar suas operações, dependentes da matéria prima e de outros recursos naturais. Por consequência, também acompanhou essa maior proporção a exploração do meio ambiente. Igualmente, como também já mencionado, a comunidade global passou a concentrar esforços para a sua proteção, tanto através de tratados quanto através de legislações. Embora países da tradição da Civil Law, como o Brasil, não aceitassem até então uma responsabilização penal do ente coletivo37, vários ordenamentos passaram a incorporar a tese predominante da Common Law para que esses também pudessem sofrer sanções na esfera penal, junta ou separadamente das pessoas naturais.

Problemática na imputação de autoria Estendendo afirmação acima, explicitamos brevemente sobre essas dificuldades em imputar penalmente o fato danoso a um autor. Primeiramente, ressalta-se que importante parcela dos crimes ambientais foi reunida na Lei 9.605/98. Promulgada em 1998, a lei de natureza mista atende a recomendações trazidas pela Carta da Terra e pela Agenda 21, documentos aprovados na Conferência do Rio de Janeiro. Estabelece o parágrafo único de seu artigo 3º esclarece que, não obstante a possibilidade de incriminar uma pessoa jurídica, a lei não exclui a responsabilidade da pessoa física38. Com isso, doutrinariamente, discute-se qual seria a justificação mais adequada de forma a abranger a ação impetrada e reprová-la na justa medida. O problema recrudesce no âmbito dos crimes ambientais em razão de sua maioria ocorrer no âmbito da empresa, o que dificulta, se não impossibilita a delimitação do que o autor realmente contribuiu para o feito criminoso. Em meio à estrutura organizacional, as ações tomadas não são facilmente Pode-se afirmar que, originalmente, a pessoa jurídica era sim criminalmente responsabilizada, contudo nem mesmo a pessoa jurídica consistia no mesmo que atualmente, nem o Direito Penal. (Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. A (i) responsabilidade penal da pessoa jurídica – incompatibilidades dogmáticas. In: Luís Greco e Danilo Lobato (coords.). Temas de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.) 38 “A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.” 37

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averiguáveis; um resultado lesivo ao bem jurídico pode haver sido provocado em conjunto por múltiplos sujeitos, com diversas posições hierárquicas e graus díspares de informação39, além da possível dissociação entre quem planeja a comissão do delito e quem de fato executa esses planos40. Conforme expõe Mariano Longobardi, há o dilema com respeito à identificação do autor ou da pessoa capaz de ser considerado sujeito ativo do delito e, ainda, em como distinguir o autor dos seus eventuais cúmplices, bem como dos que não contribuíram de maneira penalmente relevante para o evento41. Com isso, um “homem de trás”, muitas vezes homem de alto cargo da empresa, age em concurso com um executor imediato. Por exemplo, caso a conduta se trate de um delito especial, e esse executor não atender às condições impostas pelo tipo, poderia o planejador sair impune não obstante sua contribuição ser de importância superior à do próprio executor42. Essa limitação gera a sensação de impunidade para os participantes nos feitos lesivos a bem jurídico43. A desproporcionalidade põe em discussão a aplicabilidade das teorias de autoria aos crimes ambientais, principalmente, se cometidos no contexto empresarial44. A lei 9.605/98 oferece a possibilidade de concurso de agentes45 em conjunto com o executor do diretor, do administrador, entre outros, desde que soubessem da conduta criminosa e deixassem de impedi-la, se o pudessem. Contudo, a solução mais radical nessa lei e, até o momento, unicamente aplicável a crimes ambientais, é a previsão de se imputar autoria criminal a uma empresa. ASSIS MACHADO, Marta Rodriguez de; et al. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, Série Pensando o Direito, Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), nº 18, 2009, p. 235. 40 LONGOBARDI, Mariano. Autoría y dominio del hecho en los delitos socioeconómicos. In: Revista de Derecho Penal y proceso Penal, fasc. 10. Buenos Aires, 2005, p. 756. 41 Ibid. 42 ALLI, Thamyrys Baur Tuffi. Responsabilização criminal da pessoa jurídica: algumas questões relacionadas à sua adoção. In: Temiminós Revista Científica, v. 5, n. 1, 2015, p. 113. 43 PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel. Criminalidad de empresa: problemas de autoría y participación. IN: Revista Penal, n. 9, La Ley, Sevilha, 1997, p. 120. 44 MIGLIARI JÚNIOR, Arthur. Crimes ambientais: Lei 9.605/98, novas disposições gerais penais: concurso de pessoas: responsabilidade penal da pessoa jurídica: desconsideração da personalidade jurídica. Campinas: Interlex Informações Jurídicas, 2001, p.51. 45 “Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.” 39

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Responsabilidade criminal da empresa Para solucionar as dúvidas de imputação e a subsequente impunidade do evento danoso, a doutrina se divide entre reformular as teorias de individualização da conduta e admitir a responsabilização criminal da pessoa jurídica, cuja estrutura for utilizada para o cometimento do delito. Ambas soluções recebem merecidas críticas, contudo o trabalho se concentrará apenas no que tange à pessoa jurídica, pois é a grande inovação trazida graças à preocupação com proteger o meio ambiente. A controversa responsabilização penal da pessoa jurídica encontra-se prevista no art. 3º da lei46, para os casos de infração cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Adotou-se, assim, o modelo francês ao definir-se a possibilidade para os crimes contra o meio ambiente47. Os partidários da constitucionalidade dessa previsão concordam que a Constituição de 1988 haveria feito uma autorização expressa para a responsabilização de entes coletivos através de dois dispositivos, quais sejam o artigo 173, §5° e o artigo 225, §3°. Dessa forma, o legislador pátrio apenas optou por utilizar essa espécie de autoria ao redigir o art. 3° da lei em análise48. Sobre os requisitos para que haja essa responsabilização, haveria dois: que a decisão sobre a conduta seja cometida por seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, bem como que a infração haja sido cometida no interesse ou em benefício da pessoa jurídica. O artigo 4º, por sua vez, reafirmou a possibilidade já trazida pelo Código Civil quanto à desconsideração da personalidade jurídica, quando esta for usada como obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Além disso, também se encontram nessa lei as punições possíveis para as pessoas jurídicas. Elas estão elencadas no artigo 2 e compreenderiam: multa, restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade. Com relação às restritivas de direito, o artigo 22 especifica serem cabíveis tanto a suspensão parcial ou total de atividades, quanto a interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, assim como a proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações49. “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.” 47 ALLI, op. cit,. p. 118. 48 BITENCOURT, op.cit., p. 105. 49 Ao final de 2015, foi editada a MP 703 que, com o fim de atrair investimentos para o país, tenta flexibilizar a proibição de contratar para empresas que hajam sido as primeiras a firmar um acordo de leniência. Não menciona, contudo, que se estenda aos efeitos da lei de crimes ambientais. 46

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A pena mais severa encontra-se no artigo 24. Ele determina a liquidação forçada da empresa condenada. Ademais, quando a mesma for constituída com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido na lei, seu patrimônio seria considerado instrumento do crime e, como tal, perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional. Processualmente, até pouco tempo, era exigido que numa ação criminal em que a empresa constasse do polo passivo, também era necessário simultaneamente haver uma pessoa natural entre os imputados, o que muitos chamavam de dupla imputação. O Supremo Tribunal Federal reconheceu em decisão mais recente, entretanto, que a empresa podia ser julgada mesmo sem a presença dessa pessoa natural. Pronunciou a Ministra Rosa Weber justamente sobre a complicada imputação de autores para os crimes contra o meio ambiente. Segundo ela, “a dificuldade de identificar o responsável leva à impossibilidade de imposição de sanção por delitos ambientais. Não é necessária a demonstração de coautoria da pessoa física”50. A ementa também reafirma o que viemos defendendo durante este trabalho, pois “em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual”51. Não mais limitada ao Direito Penal Ambiental, o anteprojeto de reforma ao Código Penal também prevê, expressamente, a responsabilidade criminal da empresa.

Os programas de compliance Não apenas a exceção discutida acima à responsabilidade individual tem auxiliado na repressão a crimes ambientais. Os programas de compliance, atualmente adotados pela maioria das grandes empresas, também contribuem tanto para a prevenção de delitos no âmbito da empresa, quanto na investigação para a correta autoria quando ocorrer o fato danoso. Isto porque, conforme bem colocado por Sieber Ulrich, permitem determinar a partir de que ponto ocorreu a violação do dever de cuidado, por seus responsáveis52. Para Lothar Kuhlen, compliance seria “las medidas mediante las cuales las empresas pretenden asegurarse de que sean cumplidas las reglas vigentes para ellas y su personal, que las infracciones se descubran y que eventualmente se sancionen”53. STF - RE: 548181 PR, Relator: Min. Rosa Weber, Data de Julgamento: 06/08/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: 30-10-2014. 51 Ibid. 52 SIEBER, Ulrich. Programas de ‘compliance’ en el derecho penal de la empresa. Una nueva concepción para controlar la criminalidad económica. Trad. Abanto Vásquez. In El derecho penal económico en la era compliance. Arroyo Zapatero, Luis; Nieto Martín, Adán (Dir.). Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 87. 53 KUHLEN, Lothar. Cuestiones fundamentales de compliance y derecho penal. In ___; Pablo Montiel, Juan; UBINA GIMENO, Iñigo Ortiz de (Org.). Compliance y Teoría del Derecho Penal. Madrid: Macial Pons, 2013, p 51. 50

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Por outro lado, Sieber Ulrich diz se tratar de conceitos e nomes variados, definindo objetivos e procedimentos das empresas. Apontariam, primeiramente, para certos valores nos negócios empresariais, como também, indicariam as diretrizes gerais de conduta, funcionando como uma proteção54. Ele possui uma função reguladora, como se dentro de cada empresa – ou terceirizado a escritórios independentes – houvesse um departamento de polícia que reforça as regras de conduta e recebe denúncias de descumprimentos enquanto regularmente verifica o bom andamento. Certo é que, aliado à possibilidade de se responsabilizar criminalmente uma empresa, o compliance revelou-se forte aliado contra as empresas danosas ao meio ambiente, tanto preventivamente quanto a posteriori. Isto porque o entendimento dos funcionamentos internos obtido pelo programa e seu acesso a documentos confidenciais mostram-se valiosos também para a investigação policial55.

necessária, que, em grandes companhias, vem-se alastrando uma conscientização do cuidado com o meio ambiente para se garanti um futuro certo e uma política corporativa de desenvolvimento e crescimento.

Conclusão Neste trabalho em homenagem ao eminente jurista e nosso professor dos nostálgicos tempos de graduação, tratou-se sobre a contribuição dos mecanismos do Direito Penal Econômico para efetivar e maximizar a proteção ao meio ambiente. Data máxima vênia, em que pese as opiniões dos doutrinadores de que as normas penais econômicas possuem uma finalidade distinta da que se dirige as do ordenamento jurídico ambiental, deve-se atentar que um delito ambiental é um delito social, pois a partir do momento em que afeta os patamares da existência social econômica, também reflete contra recursos que são imprescindíveis para atividades produtivas, chegando a por em risco o sistema de relação do ser humano com o espaço. Além disso, desde o momento em que os recursos da natureza encontrassem em situação de vulnerabilidade, poderia haver um desequilíbrio de proporções consideráveis nas relações de cunho econômico baseadas no comércio e consumo de tais recursos. Embora o próprio Direito Penal Econômico sofra críticas por parte de defensores da doutrina penalista clássica em razão de suas inovações, certo é que a busca pelo desenvolvimento sustentável como uma de suas bases se alinha àquele que deve ser um dos mais importantes princípios do meio ambiente. O sustento da economia moderna baseia-se numa correta investigação e radicação de um possível impacto ambiental. Tal conduta demonstra-se tão imperiosa e 54 55

SIEBER, Ulrich. Op. cit., p. 65-66. Recomendamos a leitura de SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Atribuição de responsabilidade na criminalidade empresarial: das teorias tradicionais aos modernos programas de compliance. In: Revista de Estudos Criminais, n° 54, 2014, p. 119. Nesse sentido também SIEBER, Ulrich. Programas de compliance en el derecho penal de la empresa. Una nueva concepción para controlar la criminalidad económica. In ARROYO ZAPATERO, Luis. NIETO MARTÍN, Adán (Dir.). El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant, 2013, pp. 89-92.

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Por um ordenamento jurídico que proteja efetivamente os Direitos Fundamentais Fernando Chaim Guedes Farage1 Resumo O presente trabalho se propõe em linhas gerais, proceder à análise das concepções de ordenamento jurídico propostas por Hans Kelsen, Ronald Dworkin, Robert Alexy bem como a Teoria do Discurso de Jurgen Habermas, e a partir delas, fazer uma reflexão de como são tutelados os direitos fundamentais dentro de cada visão teórica, a fim de se saber, qual destes ordenamentos oferece uma maior proteção aos direitos fundamentais, e que legitima o próprio Direito. Palavras-chave: Análise; concepção; reflexão; proteção; direito. Abstract This paper aims broadly to examine the conceptions of law proposed by Hans Kelsen, Ronald Dworkin, Robert Alexy and the Discourse Theory of Jurgen Habermas, and from them, to reflect on how the rights are protected within each fundamental theoretical insight in order to know which of the jurisdictions provides greater protection of fundamental rights, and which legitimizes the law itself. Keywords: Analysis; design; reflection; protection; law.

Introdução Os direitos fundamentais são uma das construções mais nobres que o Direito ergueu ao longo dos anos. Entretanto, com uma sociedade cada vez mais complexa, interpretá-los de maneira correta, se faz uma necessidade para o próprio cumprimento eficaz destes direitos, e para garantir a própria justiça de uma decisão. Para tal intento, é imperioso que se proceda a uma concepção de ordenamento jurídico capaz, de levar em consideração todas as peculiaridades de cada caso, que não se reduza a relativização e nem se limite a segurança legal em detrimento da justiça no caso. É nesta tônica, que procederemos à análise das principais concepções jurídicas de ordenamento, fazendo ainda, as devidas críticas e buscando ao final, entender qual delas, pode oferecer em nosso tempo uma resposta satisfatória aos anseios que o próprio Direito assume para si. 1

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Mestre pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC de Juiz de Fora - MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora-MG. Advogado. Email: [email protected]

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A teoria pura do Direito de Kelsen A teoria pura do Direito de Hans Kelsen, em suma, tratou de estabelecer a concepção de um sistema jurídico de regras escalonadas, onde uma norma, é justificada, por outra imediatamente superior, e esta por sua vez, por outra norma superior, e assim se continuaria em ascendência até que se alcançasse o topo da cadeia, e lá teríamos a norma fundamental, que é a norma última do sistema jurídico, que justifica todas as demais, esta por sua vez, não necessitaria de ser justificada em qualquer outra, é neste sentido que vai afirmar que a norma fundamental é: [...] o ponto de partida de um processo: do processo da criação do Direito positivo. Ela própria não é uma norma posta, posta pelo costume ou pelo ato de um órgão jurídico, não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta, na medida em que a instância constituinte é considerada como a mais elevada autoridade e por isto não pode ser havida como recebendo o poder constituinte através de uma outra norma, posta por uma autoridade superior. Se se pergunta pelo fundamento de validade de uma norma pertencente a uma determinada ordem jurídica, a resposta apenas pode consistir na recondução à norma fundamental desta ordem jurídica, quer dizer: na afirmação de que esta norma foi produzida de acordo com a norma fundamental. [...]2

Na concepção Kelseniana, as funções do aplicador do Direito, se diferem daquela exercida pelo cientista do Direito3. Para ele, cabe ao cientista do Direito proceder a analise, tão somente dos quadros de possíveis interpretações, das mais variadas que um determinado caso pode apresentar. Ao aplicador por seu turno caberia, o que Kelsen chama de interpretação autêntica4, qual seja, escolher dentro das várias hipóteses possíveis aquela que se encaixa com o caso sob julgamento, nas palavras de Kelsen: [...] Se por ‘interpretação’ se entende a via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. [...] Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura de uma norma geral. [...]5 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo. Martins Fontes, 1998, p.139. 3 KELSEN, Hans. Opus cit., p.145. 2

4

Ibid., p.250.

5 450 Ibid., p. 247.

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Mas como se escolher qual a decisão “correta” para um determinado caso envolvendo direitos fundamentais? Qual é a resposta de Kelsen? A resposta é a seguinte: [...] A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam no quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer – segundo o próprio pressuposto que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema da teoria do Direito, mas um problema da política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas. [...]6

Kelsen ainda vai tratar de dizer, que quando o juiz se deparar com um caso que não se encaixe dentro das várias possibilidades legais poderá se valer da interpretação autêntica, para suprimir tal ausência, e que tal decisão se legitimará quando do trânsito em julgado da decisão.7 Podemos apontar alguns elementos que nos fazem pensar se a teoria de Kelsen é de fato capaz de dar guarida de forma plena aos direitos fundamentais, para tanto nos valeremos das palavras de Lúcio Antônio Chamon Júnior que em crítica direta a teoria de Kelsen afirma: [...] Mas a saída encontrada por Kelsen esvazia o próprio conteúdo de uma pretensa legitimidade na operacionalização do sistema jurídico ao interpretar que mesmo uma norma individual porventura alcançada fora da moldura do Direito não seria invalidada porque haveria uma via salvífica de interpretação funcional que viria reconhecer o ‘princípio’ da coisa julgada como capaz de superar a dificuldade quando encarado o mesmo problema em termos normativos. [...] O positivismo Kelseniano leva, ao final, a um modelo de regras sufocante: o que é juridicamente válido não só o é na medida em que tem sua validade oriunda da norma superior e condicionada ao fato de sua eficácia, mas também em razão de os tribunais poderem determinar, em última hipótese, sua vontade como objetivamente válida desde que também minimamente eficazes. [...]8

Resta claro, portanto, uma série de incongruências na proposta teórica de Kelsen que permitem a legitimidade do Direito pela mera faticidade dos eventos que se apresentam, o que, por conseguinte, poderá se tornar um problema para própria estabilidade das decisões em um caso concreto, que fica fragilizada, Ibid.,p 249. Ibid.,p. 250. 8 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2006, p. 46-47. 6 7

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frente a incontáveis possibilidades de interpretação normativa e também saída criada com a interpretação autêntica, que abrem brechas temerariamente ao decisionismo exacerbado. Colacionamos ainda, à crítica feita por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, a respeito da proposta de ordenamento de Kelsen: [...] Não é que não haja várias interpretações possíveis para o Direito, ou em termos mais precisos, várias normas válidas, que a princípio poderiam vir à regular esse caso, mas é que, para interpretar o Direito, para aplicálo, é necessário levar em consideração, e isso é justamente o que Kelsen não faz, o caso concreto. Que várias interpretações sejam possíveis ou que várias normas não sejam validas, isso não quer dizer que todas elas sejam adequadas ao caso concreto9. A reconstrução do caso concreto, argumentativamente realizada através e nos limites do processo jurisdicional, deve ser tomada como parte integrante do próprio processo de reconstrução ou determinação da norma a aplicar. Afinal, o processo jurisdicional implica uma série de atos que, realizados em contraditório entre as partes10, prepara o provimento jurisdicional. [...]11

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coerência com o passado; passaria a elaborar um novo direito, indagando qual lei estabeleceria a legislação em vigor, qual é a vontade popular ou o que seria melhor para os interesses da comunidade no futuro.[...]12

Ele vai nos informar também, que tanto regras quanto princípios fazem parte do ordenamento jurídico diferentemente do pensar positivista. É neste sentido que comentando a obra de Dworkin, Lúcio Antônio Chamon Júnior, vai nos esclarecer a respeito deste ponto e nos dizer de onde decorre a legitimidade do Direito na perspectiva teórica de Dworkin: [...] Os princípios integram o Direito, assim como as regras: é a tese inicial de Dworkin. [...] Dworkin afirma que os princípios, mais ‘abertos’ que as regras – sobretudo em Taking rights seriously –, fazem parte do que compreendemos por Direito, sendo obrigatórios e capazes de vincular os juízes em suas decisões. Todavia, essa vinculação, seu caráter jurídico, não pode ser proposta sem ser justificada. E dessa justificação decorre a noção de legitimidade de todo o Direito. Outra pergunta mais ampla é necessária: por que, obedecemos aos comandos do Direito? A resposta se faz curta: porém densa: porque vivemos em uma comunidade de princípios. [...] O modelo de princípios, como propõe Dworkin, exige das pessoas que elas tenham uma compreensão compartilhada, mas no sentido de que certas pessoas apenas podem ser consideradas como membros de uma comunidade se admitem que tem seus destinos estão reciprocamente ligados, não no sentido emotivo, mas quando ‘aceitam que são governados por princípios comuns, e não apenas regras criadas por um acordo político’ [...] A integridade do Direito, que pode ser entendida como essa coerência princípiológica do sistema de normas, faz com que tratemos a comunidade política como uma comunidade princípios. [...] A validade do Direito, melhor diríamos, sua legitimidade decorre do fato de ser uma ordem em que o princípio da integridade – em uma noção de comunidade de princípios – permite que os cidadãos respirem um sistema idealmente coerente, assentado em uma comunidade associativa. O Direito vale não em função de uma norma fundante, mas em razão de um sistema de princípios hermenêutica e criticamente tomado em conta que, como diria Dworkin, está na base e confere legitimidade às decisões das instituições políticas. E, justamente por ser força legítima, vincula os juízes, e ficando assim, rechaçada a discricionariedade do juiz em moldes positivistas. [...]13

O ordenamento jurídico de Ronald Dworkin Se com Kelsen tínhamos uma concepção do Direito como um sistema de regras, com Ronald Dworkin invertemos completamente estes conceitos. Para Dworkin o ordenamento jurídico deve ser entendido como um ordenamento principiológico e não positivo em sentido estrito. É assim que vai afirmar: [...] O convencionalismo estrito fracassa como interpretação de nossa prática jurídica mesmo quando – e sobretudo quando – enfatizamos seu aspecto negativo. E fracassa pela seguinte razão paradoxal: nossos juízes, na verdade, dedicam mais atenção às chamadas fontes convencionais do direito, como as leis e os precedentes, do que lhes permite o convencionalismo . Um juiz consciente de seu convencionalismo estrito perderia o interesse pela legislação e pelo precedente exatamente quando ficasse claro que a extensão explícita dessas supostas convenções tivesse chegado ao fim. Ele então entenderia que não existe direito, e deixaria de preocupar-se com a Neste trecho o autor inclui comentário e referência à obra dê: DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Havard University Press, 1978, p.14 e seguintes, “desenvolve toda uma crítica às teses positividas de H.L.A. Hart, dentre elas a tese da discricionariedade do juiz que, sem dúvida, serviu, muitas vezes, de base para críticas desenvolvidas aqui à tese kelseniana da interpretação autêntica. Num outro sentido, embora extremamente interessante, ver JOUANJAN, Olivier. Preséntation du traducteur. In: Muller, Friedrich, Discourse de la méthode juridique. Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p.7. et seq.” 10 Nova referência, desta vez, a obra dê: GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p.102 et seq. 11 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001, p.59-60. 9

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Mas como proceder à aplicação legal, em tal proposta teórica? Dworkin vai propor então a figura de um juiz imaginário: Hércules. E através da figura deste magistrado fictício, vai nos oferecer um modelo de interpretação ideal, que deve inspirar e ser seguido pelos magistrados da vida real, na busca pela resposta mais correta ao caso concreto, nos trazendo ainda, a noção do romance em cadeia, outro elemento importante no ato de aplicação legal. É assim que diz: DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. Martins Fontes. São Paulo, 2007, p. 159. 13 CHAMON JÚNIOR, op. cit., p.50-52. 12

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[...] Os juízes, porém, são igualmente autores e críticos. Um juiz que decide o caso McLoughlin ou Brown introduz acréscimos na tradição que interpreta; os futuros juízes deparam com uma nova tradição que inclui o que foi feito por aquele. É claro que a crítica literária contribui com as tradições artísticas em que trabalham os autores; a natureza e a importância dessa contribuição configuram em si mesmas, problemas de teoria crítica. Mas a contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre autor e intérprete é mais uma questão de diferentes aspectos de um mesmo processo. Portanto, podemos encontrar uma comparação ainda mais fértil entre literatura e direito ao criarmos um gênero literário artificial que podemos chamar de ‘romance em cadeia’.14 [...] No direito, porém, a exemplo do que ocorre na literatura a interação entre adequação e justificação é complexa. Assim como, num romance em cadeia, a interpretação representa para cada intérprete um delicado equilíbrio entre diferentes tipos de atitudes literárias e artísticas, em direito é um delicado equilíbrio entre convicções políticas de diversos tipos; tanto no direito quanto na literatura estas devem ser suficientemente afins, ainda que distintas, para permitirem um juízo geral que troque o processo de uma interpretação sobre um tipo de critério por seu fracasso sobre outro. Devo tentar expor essa complexa estrutura da interpretação jurídica, e para tanto utilizarei um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobrehumanas, que aceita o direito como integridade. Vamos chamá-lo de Hércules.15 16

Para o intento de julgar, portanto, o magistrado Hércules tem de ser capaz de superar as dimensões de adequação e de ajuste normativos para alcançar a resposta correta para tal caso, levando em consideração a integridade do Direito e entendendo este como um romance em cadeia. Explicando melhor estes conceitos nos assevera Lúcio Antônio Chamon Júnior: DWORKIN, Ronald, op. cit., p.275. Ibid., p. 286-287. 16 Há também nota do autor em referência a outra obra de sua autoria, onde explica a respeito de Hércules, qual: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. 3. ed. Martins Fontes. São Paulo, 2010, p. 165 e seq. Nesta obra nos traz maiores esclarecimentos sobre Hércules, os quais colacionamos um trecho, que define a respeito de Hércules dizendo: “Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a que chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras não controversas que constituem e regem sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamental racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo.” 14 15

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[...] Em seu ofício de interpretação, Hércules encontrará duas dimensões que deverá superar: a dimensão da adequação interpretativa e a dimensão do ajuste.17 Na dimensão de adequação, Hércules vai alcançar as interpretações a priori aceitáveis para o caso concreto. Para tanto, baseando-se na ideia de integridade, o juiz interpreta esse sistema de princípios à luz da prática das instituições de sua comunidade: aqui os precedentes têm muita importância. A solução de um hard case consiste no fato de ser permitido ao juiz uma leitura daquilo que é, em parte, reflexo da história política da comunidade: quais são os princípios e soluções alcançados dentro do amplo sistema de normas. Dentre as possibilidades que se mostram aceitáveis para um determinado caso, o juiz Hércules deverá optar por aquela leitura interpretativa que melhor satisfaça ao ideal de integridade. Trata-se daquela interpretação mais bem fundamentada. [...] Pode ser que nenhuma solução até então dada sirva como ponto de fundamentação para a solução cunhada por Hércules, mas não se pode desconsiderar a importância que tais construções historicamente datadas têm na compreensão interpretativa do Direito enquanto sistema de princípios – afinal, à metáfora do Hércules, Dworkin complementa outra: a metáfora do romance em cadeia. É mediante essa forma de interpretação que se ‘des-cobre’ o direito e não o cria: reconstrói-se, então o direito, e não um direito para o caso concreto. [...]18

Mas e os direitos fundamentais? Será que neste tipo de teoria que leva em consideração os precedentes históricos de uma determinada comunidade, pode tutelar com racionalidade um caso não anteriormente previsto e que vá de encontro aos preceitos desta? Ou perguntando de outra forma: Poderá Hércules superar os preceitos históricos e políticos construídos por uma comunidade, para decidir pelo Direito em favor de um cidadão? Devemos entender no sentido de que não é possível frente ao fato de que mesmo o Direito ter a capacidade de se reconstruir frente a novos casos, ele ainda sim estaria limitado institucionalmente pelo que tivesse sido decido anteriormente. Tal compreensão é assim posta, quando entendemos o já exposto até aqui, e também as palavras, colacionadas de Lúcio Antônio Chamon Júnior: [...] Segundo Dworkin, o Direito tem a possibilidade de ir se aprimorando, geração a geração, a partir de deslizes e equívocos do passado, orientandose, para tanto, em uma ideia de auto-purificação. Porém, sob a óptica das decisões jurisdicionais, isso não poderia implicar em um Direito ‘mais puro’ daquele que o juiz, em seu esforço interpretativo, deva se esmerar em sua aplicação.19 [...] Assim é que entende Dworkin que o seu juiz Hércules, jamais poderia ignorar a supremacia legislativa e o precedente de tribunais que imponham uma limitação interpretativa à sua jurisdição sob o argumento Em referência direta a: DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 1999, p. 277 e ss. 18 CHAMON JÚNIOR, op., cit. p.54. 19 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009, p. 250. 17

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de que o que se pretenderia seria um aperfeiçoamento da integridade do Direito – porque, procedendo-se desta maneira, teria violado a integridade, uma vez que o sucesso interpretativo dessa seria completamente dependente do reconhecimento dessas ‘limitações institucionais’[...]Tudo isso, ao final, porque entende Dworkin que a moral é ao final justificaria o Direito, por supostamente oferecer uma ‘melhor justificativa do Direito contemporâneo’20

Diante do exposto, fica evidente, que a proposta de Dworkin é extremamente racional, entretanto, não está livre de incongruências, uma vez que, contém a inconsistência de justificar o Direito pela Moral o que acaba, por fim, sendo perigoso se queremos tutelar direitos fundamentais, haja vista, as limitações institucionais de uma forma ou de outra, acabarem por diminuir o âmbito de proteção que o próprio Direito deve dar aos direitos fundamentais em um caso concreto, visto que, limita institucionalmente o âmbito de atuação do julgador.

A proposta de Robert Alexy Robert Alexy, embora não se declarando adepto a teoria de Kelsen, se vale do conceito de norma fundamental deste, fazendo suas devidas considerações e modificações do estabelecido por este21, para dar coerência a toda a sua teoria. Neste sentido colacionamos um trecho de sua obra, onde vai afirmar a necessidade da existência de uma norma fundamental e ainda criticar a visão de Dworkin sobre a concepção de um ordenamento jurídico, dizendo que esta incompleta: [...] Segundo ele, também se integra o direito a totalidade dos critérios que devem ser considerados para satisfazer a pretensão de correção, necessariamente vinculada ao direito. Com efeito, esses critérios não podem ser totalmente identificados com base numa regra que se oriente pela legalidade Em referência às palavras de Dworkin em: DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 1999, p. 485. 21 ALEXY. Robert. Conceito e validade do direito. Tradução: Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo. Martins Fontes, 2009, p.138. É neste sentido que Alexy vai afirmar: “Por isso, resumidamente, é possível constatar o seguinte quanto à teoria da norma fundamental de Kelsen: ele tem razão quando afirma que uma norma fundamental deve ser pressuposta se se pretende passar da constatação de que algo é estabelecido e eficaz para a constatação de que algo é juridicamente válido ou juridicamente devido. Mas essa norma fundamental não precisa ter o conteúdo da norma fundamental kelseniana. Assim, ela pode conter elementos morais que considerem argumentos de injustiça. Ademais, deve-se concordar com Kelsen que, embora se deva pressupor necessariamente uma norma fundamental quando se pretende interpretar o direito como ordenamento de dever, também é possível renunciar a essa interpretação. Por isso, a norma fundamental tem apenas um caráter transcendental fraco. Por fim, é correto que a norma fundamental é uma norma meramente pensada. Em contrapartida, não é correta a afirmação de Kelsen de que a norma fundamental não é suscetível de fundamentação. Ao contrário, ela carece de fundamentação. Isso leva ao problema de uma norma fundamental normativa.” 20

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conforme o ordenamento e pela eficácia social. Mesmo assim, o argumento dos princípios não elimina a possibilidade de uma norma fundamental. Ele mostra apenas que uma norma fundamental que só tome por base fatos empiricamente constatáveis (legalidade/eficácia) não é capaz de identificar totalmente o direito. O que essa norma fundamental pode identificar é, isso sim, o direito estabelecido conforme o ordenamento e socialmente eficaz. Por isso, ela deve ser interpretada de maneira que a legalidade conforme o ordenamento, juntamente com a eficácia social, constituam apenas uma condição suficiente, mas não necessária do pertencimento do direito22. [...] uma norma fundamental não é apenas possível, como também necessária para poder realizar a passagem de fatos empiricamente constatáveis para a validade jurídica. [...]23

Como se percebe, Alexy entende a necessidade de uma norma fundante para dar coerência ao ordenamento jurídico, mas não aos moldes de Kelsen e sim, estabelecendo diferenças, que tornam seu ponto de vista diferente do primeiro. Também não é adepto a visão de Dworkin, como exposto. Então quais são os elementos que deve conter um ordenamento jurídico na visão de Alexy? Colacionamos um trecho de sua obra que responde tal indagação: [...] O direito é um sistema normativo que (1) formula uma pretensão à correção, (2) consiste na totalidade das normas que integram uma constituição socialmente eficaz em termos globais e que não são extremamente injustas, bem como na totalidade das normas estabelecidas em conformidade com essa constituição e que apresentam um mínimo de eficácia social ou possibilidade de eficácia e não são extremamente injustas, e (3) ao qual pertencem os princípios e outros argumentos normativos, nos quais se apoia e/ou se deve apoiar o procedimento de aplicação de do direito para satisfazer a pretensão à correção.[...]24

Se com Dworkin, a noção de integridade do Direito, nos fornece elementos para solução de conflitos de direitos fundamentais, entendendo o Direito como um romance em cadeia, e assim, encontrando a resposta mais correta para o caso, Alexy se difere deste, partindo que a resposta para se encontrar a solução no caso de colisão entre princípios passa pela noção de sopesamento dos princípios no caso concreto25 ALEXY, Robert, op. cit., p.123. Ibid., p. 123. 24 Ibid., p.151. 25 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. 2.ed. Malheiros. São Paulo, 2011, p. 93-94. É assim que Alexy vai afirmar: “Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido - , um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com 22 23

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se valendo da criação da lei de colisão26 que fornece através de uma fórmula, como se conceber o sopesamento de um princípio em face de outro. Alexy parte deste entendimento, concebendo que os princípios são comandos de otimização, os quais poderiam ser satisfeitos em graus variados, dado o fato de que esta satisfação não depende das circunstâncias fáticas, mas também das circunstâncias jurídicas, e estas por sua vez, se determinam pelas regras e princípios colidentes27. Alexy vai nos informar que a resposta para tal conflito passa pela teoria dos princípios e da máxima proporcionalidade dentro de sua concepção da lei da colisão, é neste sentido que vai dizer:

As críticas feitas à proposta de Alexy, são firmes no sentido de que sua proposta não oferece uma resposta inteligente a colisão de princípios, e logo a proteção dos direitos fundamentais, haja vista, partir de critérios axiológicos de interpretação que maculariam a própria interpretação do Direito. É assim, que Lúcio Antônio Chamon Júnior, em referência à crítica feita à Alexy, por Klaus Günther, vai dizer:

[...] Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de colisão. Visto que a aplicação de princípios válidos – caso sejam aplicados – é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos. Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter principiológico das normas de direitos fundamentais. [...]28

Para esclarecer ainda mais tais conceitos, nos valeremos das palavras de Lúcio Antônio Chamon Júnior que explica a lógica do sopesamento dos princípios: [...] Este raciocínio inerente à chamada lei da ponderação, segundo a qual quanto maior for o grau de insatisfação de um princípio, tanto maior deve ser a importância da satisfação do princípio oposto. Alexy busca uma fundamentação racional para alcançar noções de preferibilidade, e as razões para justificar essa hierarquização de princípios, perante o caso concreto, em campos como a intenção do legislador, as consequências que dita medida traria para sociedade, opiniões de especialistas etc. [...]2930

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maior peso tem maior precedência.Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além desta dimensão, na dimensão do peso.” Fazendo referência ao final deste trecho a obra de Ronald Dworkin, qual seja: DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. 2.ed. London. Duckworth, 1978, pp. 26-27. 26 Ibid., p. 94. 27 Ibid., p. 90. 28 ALEXY, Robert, op.cit., p. 117-118. 29 CHAMON JÚNIOR, Teoria constitucional do direito penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. op. cit., p.59. 30 Há também referência a obra dê: GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no estado democrático de direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Revista de Informação Legislativa, cit., p.194.

[...] Tratar os princípios como pretende Robert Alexy é submeter o Direito, e sua aplicação a uma questão de preferências frente a fins que não segue uma ótica capaz de ser defendida como valida perante um sistema de direitos fundamentais. A operação de ponderação é, assim, alheia a qualquer critério de racionalidade normativa, se transformando em uma discussão que chega, para Habermas, a resultados discricionários ou arbitrários. A norma podemos dizer, não é mais ou menos realizada ou ordenada. Ela submete a uma noção binária. Pela visão de Alexy, um princípio poderia fazer com que não se alcançasse um grau ótimo em sua aplicação, o que corresponde dizer que a norma fora mais ou menos cumprida. Ora, o Direito é obedecido, ou não é. O direito subjetivo não pode ser mais ou menos: ele não se submete a um peso gradual que pode ceder tanto perante outros direitos, bem como também a metas coletivas,31 bem contrariamente a Dworkin. [...]32

Refletindo a respeito das críticas, é forçoso reconhecer, que a possibilidade de se sopesar princípios, mesmo obedecendo à regra de colisão criada por Alexy, acaba por tornar a atividade jurisdicional possível de ser feita, entretanto, desprovida de qualquer racionalização para o caso concreto, visto que não se leva em consideração justamente, as questões intrínsecas ao caso que o tornam único. Ademais, é impossível se “medir” um princípio frente ao outro, visto que, somente a reconstrução do caso, a análise de todas as circunstâncias, do Direito aplicável é que são capazes de fornecer uma solução não por aproximação, mas sim, correta para o caso. É nesta toada que o próprio Dworkin reconhece que: [...] Já disse o que vem a ser o direito? A melhor resposta seria: até certo ponto. Não concebi um algoritmo para o tribunal. Nenhuma mágica eletrônica poderia elaborar, a partir de meus argumentos, um programa de computador que fornecesse um veredito aceito por todos, uma vez que os fatos do caso e o texto de todas as leis de decisões passadas fossem colacionados à disposição do computador. [...] O que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de resposta. O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. [...]33 Há nota do autor fazendo referência à obra onde Alexy concebe tais afirmações, quais seja: ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona. Gedisa, 1997, p.185. 32 CHAMON, Júnior. Teoria constitucional do direito penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. op. cit., p.63-64. 33 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. op. cit., p.490-492. 31

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Desta forma, não é possível conceber uma proteção efetiva aos direitos fundamentais, com base em tais pressupostos teóricos, em face de todas as críticas, que evidenciam a dificuldade de se conceber o Direito pelo Direito, submetendo este a uma análise de valores subjetivos de sopesamento, em face da dificuldade gritante de se estabelecer “pesos” para um determinado princípio que permitiriam uma balança ideal para servir de base para o julgador.

Pelo entendimento a partir de Habermas, o ordenamento jurídico se legitima, através de um processo de comunicação concebido em um processo democrático, que por sua vez, legitimariam a construção normativa, através do discurso de justificação e por conseguinte, quando de sua aplicação, no chamado discurso de aplicação normativa. É o que nos explica Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira ao dizer que: [...] Nesse sentido, as análises empreendidas pela Teoria Discursiva do Direito são fundamentais para o nosso estudo, pois reconhecem que a problemática acerca da interpretação jurídica é, no fundo, uma questão em torno de uma disputa de paradigmas de Direito, de pré-compreensões a respeito de como se deve interpretar e aplicar o Direito. [...]Por isso, a atividade de interpretação jurídica não se dá como acreditam certas correntes positivistas, porque a linguagem através da qual a norma se expressa é ambígua ou obscura ou porque aquele que editou a norma assim o quis. Toda comunicação implica interpretação, não no sentido de que seja preciso desvendar um pretenso verdadeiro significado, ou seja, aquele significado que o emissor quis ou intentou expressar, mas no sentido de que interpretar implica atribuir sentido, compreender o que se comunica, sob o pano de fundo de tradições e mundos de vida compartilháveis. [...]O que queremos é romper tanto com o Positivismo que desconsidera a questão jurídica da justiça, quanto com um Realismo que advoga a impossibilidade de certeza, ainda que procedimental, do Direito. [...] Os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático [...]Já os discursos de aplicação se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso concreto, nos termos do Princípio da Adequabilidade,sempre pressupondo um ‘pano de fundo de visões paradigmáticas seletivas [...]35

A proposta de Jurgen Habermas A perspectiva de Habermas se difere de outros autores, tendo em vista a ideia, da teoria do discurso deste, partir de uma perspectiva diferente daquela até então concebida. Para Habermas, as leis se tornam legitimas quando democraticamente, se permite a participação de todos em seu processo de elaboração, é neste que afirma: [...] De acordo com o princípio do discurso, podem pretender validade as normas que poderiam encontrar assentimento de todos os potencialmente atingidos, na medida em que estes participam de discursos racionais. Os direitos políticos procurados têm de garantir, por isso, a participação em todos os processos de deliberação e de decisão relevantes para a legislação, de modo que a liberdade comunicativa de cada um possa vir simetricamente à tona, ou seja, a liberdade de tomar posição em relação a pretensões de validade criticáveis. A juridificação simétrica do uso político das liberdades comunicativas corresponde o estabelecimento de uma formação política da opinião e da vontade, na qual o princípio do discurso encontra aplicação. [...] Quando introduzimos o sistema dos direitos desta maneira, torna-se compreensível a interligação entre soberania do povo e direitos humanos, portanto a co-originariedade da autonomia política e privada. Com isso não se reduz o espaço da autonomia política dos cidadãos através de direitos naturais ou morais, que apenas esperam para ser colocados em vigor, nem se instrumentaliza simplesmente a autonomia privada dos indivíduos para fins de uma legislação soberana. Nada vem antes da prática da autodeterminação dos civis, a não ser, de um lado, o princípio do discurso, que está inserido nas condições de socialização comunicativa em geral, e, de outro lado, o medium do direito. Temos de lançar mão do medium do direito, caso queiramos implementar no processo de legislação – com o auxílio de iguais direitos de comunicação e participação – o princípio do discurso como princípio da democracia. [...] Na medida em que o sistema de direitos assegura, tanto a autonomia pública como a privada, ele operacionaliza a tensão entre faticidade e validade, que descrevemos incialmente como a tensão entre a positividade e a legitimidade do direito. [...]34 34

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HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade, volume I. Tradução: Flávio Bueno Sienebeneichler. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1997, p.165-166.

Ou seja, a partir desta perspectiva da teoria do discurso transportamos para o Direito uma nova concepção de legitimidade, haja vista, os discursos de justificação e legitimação oferecerem uma melhor compreensão do Direito como sistema, e o legitimando através da história, mas, sobretudo, não se limitando a aspectos legais, como o sistema convencionalista Kelseniano faz, ou preso institucionalmente por decisões anteriores, como ocorre na perspectiva de Dworkin, e ainda sem recorrer a fórmulas para resolver conflitos, uma vez que parte de outros pressupostos para se legitimar, qual seja a própria democracia. Podemos compreender, em face de tal proposição teórica que a garantia de participação popular nos processos de criação da norma (discurso de justificação), com base do princípio democrático, permite por si só, ampla discussão a respeito dos direitos e fundamentais, visto que abre precedente para se opinar e garantir a construção normativa de acordo com os resultados do processo 35

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. p. 143-146.

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de comunicação, o que legitima a democracia e o próprio Direito, e o que permitirá quando do julgamento de um caso concreto a aplicação tão somente de argumentos jurídicos, para construção de uma solução para o caso, visto que democraticamente se convencionou como Direito daquela forma estabelecida. Para elucidar tal questão nos dizendo como é o proceder do julgador em tal noção teórica nos valemos das palavras de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, que assevera:

reconstrução do caso com a competente análise de suas especificidades a luz de argumentos jurídicos, capazes de trazer a solução correta para o caso. Desta forma, das propostas analisadas, podemos concluir que a de Habermas nos fornece elementos mais legítimos e racionais de se operacionalizar o Direito, frente à complexidade cada vez maior da sociedade em nosso tempo, pois permite a todos se manifestarem sobre o que anseiam do próprio Direito. Assim para termos um ordenamento jurídico que de fato de proteção aos direitos fundamentais, temos sobretudo, que dar voz àqueles que querem ver estes direitos protegidos, a sociedade, para que a própria trace o destino que o Direito deve dar na garantia da proteção dos direitos fundamentais.

[...] Assim, um juízo singular deve fundar-se no conjunto de todas as razões pertinentes que sejam relevantes em um dado ponto, com as vistas à uma interpretação completa da situação. Ao juiz, então, cabe desenvolver um senso de adequabilidade: que várias interpretações sejam possíveis ou que várias normas sejam válidas, da perspectiva dos discursos jurídicos de justificação, isso não quer dizer que todas elas sejam adequadas no caso concreto [...] A solução correta advém, pois, do desenvolvimento de um senso de adequabilidade normativa, de uma interpretação racional e argumentativamente fundada em cada situação, tendo em vista uma reconstrução paradigmática apropriada do Direito vigente. [...] Portanto, a reconstrução adequada da situação de aplicação, condicionada e garantida pelo Direito Processual, é que possibilita, juridicamente, a determinação, de qual, dentre as normas válidas, é a que deve ser aplicada. [...]36

Conclusão Após procedermos à análise das quatro propostas teóricas, cada qual, objetivando ao seu modo, a legitimidade do ordenamento jurídico, e observando os pontos marcantes que as constituem, podemos perceber a respeito da proteção dos direitos fundamentais, que se quisermos dar-lhes proteção, se faz mais que necessário a garantia da democracia. Se com Kelsen, temos a segurança de uma norma fundamental, ou com Dworkin, as limitações institucionais que garantem segurança, ou com Alexy uma fórmula para resolver a colisão de princípios, a proposta de Habermas se mostra mais racional, haja vista, permitir ao próprio povo participar do processo de criação da norma, com toda sorte de argumentos e assim legitimar o Direito, tornando sua aplicação fruto de uma consciência democrática, mas, sobretudo jurídica. Temos de reconhecer que o Direito nasce da sociedade e para esta deve se voltar, e sendo a participação democrática meio onde todos podem opinar para construir a norma, conseguimos nos desvencilhar assim das ideias de um ethos compartilhado, ou da justificação do Direito pela Moral, para avançarmos para uma construção livre de dogmas, e que permite um Direito de acordo com a vontade daqueles que o construíram, não se esquecendo de ninguém, visto que todos podem participar de sua criação, evitando-se, arbitrariedades e permitindo uma aplicação coerente com a necessidade da tutela pretendida, através de uma 36 462 CATTONI DE OLIVEIRA, opus cit., p. 148-158.

Referências bibliográficas ALEXY. Robert. Conceito e validade do direito. Tradução: Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo. Martins Fontes, 2009. ______________. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. 2.ed. Malheiros. São Paulo, 2011, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009. ______________. Teoria constitucional do direito penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2006. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. 3. ed. Martins Fontes. São Paulo, 2010. ______________. O império do direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. Martins Fontes. São Paulo, 2007. HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade, volume I. Tradução: Flávio Bueno Sienebeneichler. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1997. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo. Martins Fontes, 1998.

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Pensar o Pensamento: uma análise Epistemológica da necessidade de produção de Conhecimento Consciente e Emancipatório Taísa Regina Rodrigues1 Resumo Um discurso crítico se faz fundamental em um mundo em que a tecnicização tornou-se hegemônica. Assim, o propósito inicial deste trabalho é analisar a ambiência em que se constituiu a moderna mentalidade científica. Nesta apreciação, nos valeremos principalmente das lições de Adorno e Horkheimer na obra “Dialética do esclarecimento” e de Edgar Morin em “Ciência com consciência”. No segundo tópico, intentaremos algumas considerações epistemológicas a respeito do combate a cegueira científica e o estabelecimento de um saber científico consciente. Para isso, uma reflexão do caráter dual que a ciência moderna e a tecnologia têm conferido ao corpo social se faz necessária. Palavras-chave: Conhecimento emancipatório; tecnicização; progresso científico. Abstract A critical discourse is essential in a world where technicisation became hegemonic. Thus, the initial purpose of this paper is to analyze the ambience in which they established the modern scientific mentality. In making this assessment, we will primarily use the lessons of Adorno and Horkheimer in the book “ Dialectic of Enlightenment “ and Edgar Morin in “Science with conscience.” In the second topic, we are attempting some epistemological considerations about the fighting blindness science and the establishment of a scientific knowledge conscious. For this, a dual character of reflection that modern science and technology have influence in society is needed. Keywords: Emancipatory knowledge; technicisation; scientific progress.

Introdução Século XX, século da tecnologia da informação. A sociedade, sob égide do sistema capitalista, estava sendo governada por uma tecnociência revolucionária. Diversas áreas da vida humana passaram a ser regidas por esse progresso do conhecimento otimista. As conquistas científicas passavam a ser aplicadas no cotidiano em ritmo vertiginoso, como foi o caso da descoberta do DNA e sua manipulação, em especial, no campo da agricultura.2 1

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Mestranda em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST) (2014). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2012). e-mail: [email protected] DUPAS, Gilberto. Ética e poder na sociedade de informação: de como a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito do progresso. 3 ed. São Paulo. UNESP, 2011. p. 13.

Pensar o Pensamento: uma análise Epistemológica da necessidade de produção de Conhecimento Consciente e Emancipatório

Taísa Regina Rodrigues

Inquietação. Assim encerra-se este século. A hegemonia do capitalismo determinou o desenvolvimento concentrado da ciência com a apropriação privada de seus triunfos e a sua vinculação a critérios de utilidade e valoração econômica. A tecnicização restou desamparada de princípios morais e éticos, com fito no processo produtivo, estabeleceu-se o estado atual de insegurança. Para elucidar, o exemplo da manipulação genética é satisfatório: a ciência prospera em linhas tênues entre o avanço e a destruição do patrimônio comum humano.3 Assim, o século XX teve suas últimas décadas imergidas em estado de insegurança. O futuro sendo pensado como desconhecido e com potencialidades catastróficas, os sistemas de radicação políticos e econômicos depararam-se, novamente, com impasses que, com o êxito da ciência, acreditavam ter eliminado, como o desemprego, a desordenada concentração de renda e a ostensível crise estatal.4 A ciência em seu molde contemporâneo teve seu encetamento em meados do século XVII e início do século XVIII, tendo o movimento iluminista como um dos seus principais pilares. Através do ideário capital desta época em prol da emancipação do indivíduo, focado na racionalidade imergida em viés objetivo, ojerizava todas as formas de dogmatismo, inquirindo as doutrinas políticas e religiosas dominantes.5 O pensamento Kantiano, um dos pontos centrais do século das luzes, defendia que o esclarecimento era “a saída do homem de sua menoridade”.6 De modo mais enfático, foi no século oitocentista que se evidencia o anacronismo entre progresso e emancipação humana pelo cientificismo; a racionalização, principal linha de frente do discurso iluminista ante o confronto ao obscurantismo, é a principal ferramenta de dominação da humanidade. Impotência. No processo dialético instado entre hegemonia e precariedade da tecnociência, o obscurantismo do futuro parece impenetrável. A ciência tecnicizada produz cada vez mais inovações imbuídas de valor econômico, entretanto seu caráter ambivalente começa a desvelar-se. Num processo em que tudo parece possível, florescem os impasses e instabilidades das revoluções científicas. Sedimenta-se o sentimento de impotência ao descontrole dos revezes produzidos ou na iminência de virem a sê-lo.7 Buscaremos, no primeiro tópico esboçar uma superficial análise da ambiência em que se constituiu a moderna mentalidade científica. Nesta apreciação, nos valeremos principalmente das lições de Adorno e Horkheimer na obra “Dialética do esclarecimento” e de Edgar Morin em “Ciência com consciência”, fazendo uso destes não só como fonte, mas, também, como metodologia de seleção e interpretação de fontes.

No segundo tópico, intentaremos algumas considerações epistemológicas que contribuem com o propósito desde trabalho: o combate à cegueira científica e o estabelecimento de um saber científico consciente. Não será elaborado um trabalho inédito, tampouco exaustivo, sobre os tópicos abordados. Não é a pretensão deste artigo adotar uma postura reacionária ou tecnofóbica, mas, sim, evidenciar a ambivalência entre o vitorioso e o destrutivo processo da racionalização instrumental da ciência. Em um cenário de escassez de valores e eticidade, o homem é a principal arma de destruição em face do próprio homem.

Ibid., p. 14. Id. 5 MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Ed. rev. e mod. pelo autor. 16 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. p. 14. 6 Disponível em: Acesso em:12/10/2015 7 DUPAS, Gilberto. Op.Cit., p. 49. 3 4

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Ambiência do pensamento (in)consciente e sua (des) emancipação “Mas uma tempestade está sendo soprada do Paraíso; pegou suas asas tão violentamente que o anjo não as consegue mais fechar. A tempestade o suga para trás, para o futuro, enquanto os destroços se acumulam em direção aos céus, diante de seus olhos. Essa tempestade chama-se progresso.” Walter Benjamin8

A história do saber científico é dotada de impressionantes progressos, advindos da associação da ciência com a desenfreada especialização de sua técnica. No entanto, cumpre salientar, que o desenvolvimento é indissociado da complexidade intrínseca que reside no epicentro científico: ao mesmo tempo em que dispõe de incontestáveis avanços, agregam-se (in) esperados malefícios. O progresso tecnológico do mundo capitalista, que se realiza, exemplificadamente, com o combate à miserabilidade material e desenvolvimentos da medicina em prol da sobrevida, traz, em contraste, problemas que imaginava ter eliminado: crise estatal, desemprego. Objetivando a dominação e manipulação, não apenas da natureza, este progresso tem como consequência o poder que constitui indivíduos vazios, com sua subsequente dominação. Os avanços proporcionados à civilização refletem, antagonicamente, a dominação e sujeição dos indivíduos. Ao passo que se produz conhecimento científico, constrói-se destruição. É preciso que o saber científico se edifique com a consciência de seu caráter ambivalente. É neste contexto que este trabalho se corporifica.9 Nesse ambiente de irreflexão e anonimato, o corpo científico produz – às vezes, mediante coação tecnoburocrática estatal – conhecimento que dota de poder instâncias já empoderadas, na esfera econômica e política, e não têm domínio sob os resultados que serão produzidos. Estas instâncias maniqueístas e redutoras do pensamento promovem a subjugação, utilizando-se das ferramentas elaboradas pelo saber científico.10 Ibid.,p. 5. MORIN, Edgar. Op.cit. p.16. 10 Ibid., p. 18. 8 9

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Elucidando o problema, tomemos dois exemplos: primeiramente, a energia nuclear, com seu progresso cego e irrefletido, a sociedade tem Hiroshima como um de seus resultados negativos; e o desenvolvimento da bioengenharia, transformando, especulativamente, a manipulação genética como nova modalidade de mercado de consumo. A respeito dos progressos da energia nuclear, o primeiro teste foi executado no deserto do novo México, e apesar dos riscos, os cientistas acreditavam que o uso militar daquele artefato estaria subjugado a um amplo debate democrático. Ironicamente, a bomba atômica de Hiroshima foi uma decisão emanada por um único homem, Truman, que era conhecido por seu viés político humanístico.11 A manipulação genética como nova modalidade de mercado de consumo, por ora, tem sua maior preocupação em nível de especulação. Entretanto, estão sendo recorrentes os casos em que os experimentos realizados com o fito de cura de doenças ou prevenção de eventuais distúrbios de origem genética, estão tendo sua finalidade desviada, funcionando como instrumento de melhoria com valor econômico. É o caso do melhoramento da musculatura para melhor desempenho dos atletas; melhoramento da memória e da altura de pessoas perfeitamente saudáveis apenas com intuito de maior destaque no mercado de trabalho e a seleção de sexos, ao bel prazer dos pais.12 A ciência atual rogou aos cientistas mero papel de coadjuvantes. Não se questiona a importância de determinado avanço da técnica, senão se é possível executá-lo. O poder de autodestruição tem como exemplo, no século XX, a energia nuclear e seu uso irresponsável ante milhões de civis; no século XXI, o domínio e potencial manipulatório do patrimônio genético humano. A negligência da imprevisibilidade de resultados, ao lado da tecnicização destituída de roupagem moral e ética, remete ao ostracismo aqueles deslumbrados pela tecnicização. Habermas traz em sua obra “O futuro da natureza humana” citação de Wolfgang Van den Deale a respeito do desenvolvimento científico: “Aquilo que se tornou tecnicamente disponível por meio da ciência deve voltar a ser normativamente indisponível por meio do controle moral.”13 São incontestáveis os custos sociais que se configuram com a racionalização instrumental científica. Com alargamento do hiato no cerne da sociedade, incluídos em um mundo no qual há uma lacuna de irreflexão na trajetória das pesquisas a despeito de suas negatividades, o fascínio ante descobertas espetaculares no campo da manipulação genética, por exemplo, leva os indivíduos, orientados em um sistema regido pela competição, tornarem-se pessoas inócuas e inconscientes, e que, acreditando na redenção humanitária, estão semeando os artífices da própria ruína.

Adorno e Horkheimer, no curso da 2ª Guerra Mundial, em 1944, lançaram a primeira edição de seu livro “A Dialética do Esclarecimento”, ocasião em que se encontravam exilados nos Estados Unidos. Elaborando crítica à sociedade ocidental contemporânea e sua devoção à técnica e à racionalidade, estes autores iniciam a obra sedimentando a ambiência da ciência moderna, em que o processo de racionalização tinha como pilar a unicidade de pensamento, o qual se alcançava mediante cálculos matemáticos e que proporcionava ao saber status indissociável de poder.14 Esta racionalização do saber corporificava-se concomitantemente com a elaboração de métodos que almejavam a objetivação do saber e do uso da técnica calculista, com intuito de previsibilidade e controle do corpo social. Tem se, assim, advogada a plenitude de uma ciência fechada em si, que preserva dogmaticamente suas instâncias. O esclarecimento seria a forma de emancipação humana. O controle da natureza era cerne do ideário da ciência moderna, e ele se dirigia à desconstituição dos mitos. “A matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas”.15 A cegueira radicada pela elite dominante – tanto na esfera política, quanto na econômica – imergida do otimismo antropocêntrico e determinista, é desprovida de viés crítico na seara de apreensão do saber científico. “O esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento. (...) [a razão] tornou-se a finalidade sem fim que, por isso mesmo, se deixa atrelar a todos os fins.” (Parênteses nosso)16 Os autores lecionavam que “o esclarecimento era o desencantamento do mundo”.17 Teorizavam, com palavras fortes, que este modo de fazer ciência operava o desencantamento, ou seja, a racionalização da vida subtraia-lhe seu mistério, seu encantamento. O mundo moderno reduziu-se ao vazio das proposições pragmáticas sobre a experiência sensível; este mundo da unidade e da probabilidade levou a humanidade ao niilismo. Dessa forma, a ciência preocupada com uma metodologia que demarca a separação das instâncias subjetivas e objetivas, como se barreira instransponível se impusesse, consagrava um dos alicerces da modernidade: o que não se pode calcular unificar e lhe conferir utilidade é mera ilusão. E na modernidade era assim: a permuta do estudo do conceito, pelo estudo da fórmula. E mais, tudo o que era possível delinear como submetido a qualquer esfera de influência subjetiva, era mito. “Todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito.” 18 Assim, se estabelece a permuta do estudo do conceito, pelo estudo da fórmula. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1997. 15 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Op. Cit., p. 9. 16 Ibid., p. 15. 17 Ibid., p. 5. 18 Ibid., p. 6. 14

DUPAS, Gilberto. Op. Cit., p. 61. 12 SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2013. p. 23. 13 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.p. 34. 11

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Uma das contribuições mais contundentes destes autores, é que a dominação gerada por esse saber esclarecedor manifesta-se em todos os tipos de regimes políticos, desde os liberais aos totalitários, trata-se de racionalização estabelecida pela produção capitalista. A ciência moderna, mediante seu viés objetivo, calculista, ditador de uma razão única, traz que este modo de pensar é a única que pode ser considerada legítima, jogando todas as outras formas no imaginário. Assim, não importa qual o sistema de radicação política se encontra determinado corpo social, a dominação se dá pelo simples fazer ciência, “o esclarecimento sempre simpatizou, mesmo durante o período do liberalismo, com a coerção social e a unidade da coletividade manipulada consiste na negação de cada indivíduo”.19 O saber esclarecedor é paradoxal. Esta frase justifica-se, pois na proporção que se visa a libertação humana, se gera mais dominação. Isto ocorre devido à concepção imergida em viés quantitativo – e não qualitativo, como se espera de uma ciência emancipatória – e vinculada ao que se considera útil. Está sedimentada a cegueira. Não importam os aspectos qualitativos a respeito do estudo da natureza e da sociedade, mas, sim, os aspectos que se ligam à lógica formal e à uniformização de suas estruturas. O esclarecimento opera-se de modo cíclico. Ao repelir o mito, projetando a redenção humana, acentua-se a gênese da dominação do homem sob o homem. Assim, verifica-se a dialeticidade existente entre pensamento esclarecido e mito: enquanto o primeiro combate o segundo, o primeiro transforma-se em uma nova configuração do segundo. O campo do “desvario político”20 edifica-se, assim, ante a supremacia da técnica, com consequente insulamento de forma diversa de fazer saber, que instrumentaliza a destruição, subjugação e dominação. O ritual matemático do qual resulta em pensamento imediático, é presente tanto em regimes totalitários quanto em democráticos, pois deste processo de coisificação e uniformização do saber, procede, pessoas inócuas, manipuladas e dominadas.

O desencantamento, projeto da modernidade, é fruto da primazia da técnica. Saber e poder tornam-se sinônimos neste arcabouço conceitual. De forma incontestável, os ventos da ciência nunca mais soprarão na mesma direção. A barbárie está configurada. O esclarecimento é totalitário.22 O desencantamento do mundo conduz a indivíduos igualmente desencantados. Racionalizados, inócuos, os sujeitos da modernidade tinham o mercado os regendo. E a dominação, com roupagem científica e racional, passa despercebida. Os indivíduos idiotizados através do pensamento imediático, presos em sua cegueira, não percebem a subjugação que o êxito científico proporcionou às suas vidas. Essas indicações muito breves servem ao propósito deste trabalho. Aqui se busca sedimentar a concepção que é necessário pensar o pensamento. Ao questionar os paradigmas dos quais se partem, ter consciência que toda ciência parte de um senso comum e que o pensamento irrefletido acarreta em destruição, é que se funda o conhecimento emancipatório da humanidade.

A unificação da função intelectual, graças à qual se efetua a dominação dos sentidos, a resignação do pensamento em vista da produção da unanimidade, significa o empobrecimento do pensamento bem como da experiência.21

Destarte a supremacia dessa forma de apreensão do saber, com racionalização, instrumentalização, ao tempo que traz possibilidades de erradicação da miséria, resultou no aumento da miserabilidade; o vazio individual exposto à manipulação coercitiva; discursos de ódios (políticos, raciais); elucidam o caráter arcaico e inadequado deste paradigma cíclico que é a razão instrumental pregada pela ciência moderna. Só o pensamento que se pensa é capaz de afugentar os mitos e se consolidar em prol da redenção da humanidade. Ibid., p. 9. 20 Ibid., p. 2. 21 Ibid., p. 19. 19

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Pensamento reflexivo como força propulsora da libertação: refutabilidade teórica, importância do erro e a superação de obstáculos “O que é elucidativo não precisa ser elucidado”23. Ante esse contexto afirma-se que a ciência não possui olhar crítico e reflexivo sobre sua própria produção, ao passo que edificada sob o paradigma da dicotomia radical entre sujeito e objeto, acredita elaborar conhecimento objetivo e refletir o real. E com o fenômeno da superespecialização, elabora-se, na teia dos saberes, conteúdos dotados de ignorância e incoerência, excluindo-se a concepção que a ciência é intrinsecamente vinculada às peculiaridades da inserção cultural e social do cientista. Assim, resta evidente que a ciência tem caráter “local”. Os moldes em que se encontra a epistemologia têm como um de seus fundamentos o processo desencadeado por intelectuais do século XIX, esta se arquitetou excluindo o senso comum da atividade do cientista, conforme já evidenciado neste texto. Os cientistas impuseram distanciamento do senso comum ao elaborarem suas teorias, ao passo que este se liga às experiências primeiras e impede a formulação de perguntas. Poderiam, mesmo, questionar-se: por que procurar novas questões se já tenho as respostas? Assim, o conhecimento velho torna-se obstáculo ao novo conhecimento. “Todo conhecimento é resposta a uma questão. Se não houve questão, não pode haver conhecimento científico. Nada corre por si mesmo. Nada é dado. Tudo é construído”.24 Bachelard, coloca em novos termos a discussão Ibid.,p.6. MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 21. 24 BACHELARD, Gaston. Epistemologia: trechos escolhidos por Dominique Lecourt. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 148. 22 23

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epistemológica ao demonstrar que o problema do conhecimento científico deve se dar em termos de obstáculos. “Conhecemos contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal feitos, superando-se o que, no próprio espírito, cria obstáculo à espiritualização”25. Este fornece elementos que permitam evidenciar a necessidade da ruptura com o passado como condição fundamental para a evolução da ciência. “Chegar à ciência é, espiritualmente, rejuvenescer, é aceitar certa mutação brusca deve contradizer o passado”.26E para isto, defende que o corte epistemológico é condição histórica para a realização desta. Este autor empreende que não há cumulatividade e não há continuidade na história do saber. Através dos cortes epistemológicos, o conhecimento novo substitui o velho, ao passo que o conhecimento gera desconhecimento, devendo sempre ser questionado. A noção de senso comum pode ser encontrada na obra de Popper. Este assinala que a gênese das ciências passa a ser um obstáculo para o pesquisador na medida em que não se problematizam os princípios de determinada ciência. 27 Eis, então, a tese que aqui sedimenta-se: A “evolução” do conhecimento científico, não se dá apenas horizontalmente , como se mera zona de acumulação fosse. O conhecimento científico é feito de rupturas, superação de obstáculos. O conhecimento velho tem que ser substituído por um novo conhecimento emancipador. Almeja-se, agora, apresentar as concepções essenciais da crítica de Karl Popper. Analisaremos sua postura quanto às noções de indução, empirismo, falseabilidade e o papel fundamental do erro no caminho do conhecimento científico. “Existe um critério para classificar uma teoria como científica?”28Este fragmento é suficiente para demonstrar o encetamento da problemática levantada por Popper. Este tinha por objetivo “traçar uma distinção entre a ciência e a pseudociência”.29 A experiência científica, ainda atualmente, conforme já minudenciado neste trabalho, teve seus contornos traçados nos conformes dos critérios de investigação científica correntes do início do século, sendo corroborada por “método empírico, essencialmente indutivo, que decorre da observação ou da experimentação”.30 Popper não compartilhava do ideário positivista que só havia saber científico quando os conceitos eram reduzidos à observação empírica através do emprego do método lógico, restando ao campo da metafísica as falsas proposições não verificáveis através do método positivista. Popper vai além, busca um critério que evidencie tanto o prognóstico científico quanto a metafísica como ferramenta de inquirição e ponto de partida do labor científico. 31

Popper advoga que a ciência, em seu viés positivista, crê ter seu êxito fundado no observável, isentando-se do conteúdo subjetivista do próprio cientista, e, a partir disto, esta acredita observar regularidade em seus fenômenos. Popper aduz que esta postura padece em equívoco e explica: ao verificar a regularidade de determinado fenômeno, o cientista se propõe, automaticamente, fazer uso de sua carga anterior para definir, com origem em sua subjetividade, o caráter de indução do fenômeno que se analisa. Ou seja, a indução que o cientista alcança tem seu encetamento em sua subjetividade, e não no fenômeno observável.32 Nesta senda, não é ousadia afirmar que o saber científico tem origem mítica. Assim, pode-se extrair da lição popperiana que o saber científico evidencia o mito que se sustenta mediante a constatação da regularidade conferida pela observação sensível dos fenômenos. Edificando sua concepção em oposição ao princípio da indução como metodologia do saber científico, Popper, que era membro do Círculo de Viena, distinguiu-se destes no que tange a metodologia de verificabilidade. Para ele, “(...) era apenas outra maneira de formular o venerável critério dos indutivistas; não havia diferenças real entre as ideias de indução e de verificação”.33 Popper é defensor que o conhecimento científico sedimenta-se através de seus erros e a busca pela superação destes. Seu critério, no que tange o progresso científico, consiste na superação de teorias científicas inadequadas em prol de novas teorias de maior conteúdo.34 Para os positivistas havia um muro entre ciência e metafísica, sendo significado por aquilo que se verifica ou não. A lição popperiana caracteriza a demarcação entre ciência e metafísica com o conceito de falseabilidade. Toda proposição que possa ser refutada por experiência sensível observável é científica; caso contrário, a proposição em questão é metafísica. Não se exige – e nem se deseja – que um sistema seja suscetível de ser dado como válido de uma vez por todas em sentido positivo;“(...)exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema científico empírico”. 35 Um dos pontos cruciais do levantado por Popper é, então, a produção de um critério de comprovação do fazer científico seguro. Sendo essencial se fixar que o saber empírico deve ser submetido à logica da verificação e refutação, tendo como consequência seu status de verdadeiro ou falso. Dessa forma, a partir do critério popperiano de Falseabilidade, o objetivo do laborar científico consiste na tentativa de refutação das teorias estabelecidas pela comunidade científica através de ferramentas empíricas, e, diante disso, quanto mais uma teoria persistir em vigor, maior é sua força. Popper aponta, ademais, que a ciência

Ibid., p. 147. Ibid., p. 148. 27 POPPER, Karl apud MORIN, Edgar. Op. Cit. p. 21. 28 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações (O progresso do conhecimento científico). Brasília, Editora da UNB, 1994. Pág.63. 29 Id. 30 Id. 31 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo. Editora Cultrix,1985. p. 32 25 26

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Ibid, p.27 e ss. POPPER, KARL. Autobiografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1986.p. 87-88. 34 POPPER, Karl. Op. Cit.,p. 244. 35 Popper, Karl. Op. Cit., p.21. 32 33

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“(..)A não está interessada em teorias que pareçam ter a probabilidade de oferecer-nos melhor apreensão dos fatos. A ciência não está interessada em ter a última palavra, (...), mas sim em aprender com as nossas experiências; isto é, em aprender com os nossos enganos.”36

Popper revoluciona o estudo da epistemologia ao asseverar que o erro apresenta-se como pilar fundamental para a construção do conhecimento científico, funcionando, em verdade, verdadeiro fomento para a mudança nos quadros científicos. Nas palavras do autor: Requerem que abandonemos a ideia antiga de que podemos atingir a certeza (ou mesmo um alto grau de ‘probabilidade’ no sentido do cálculo de probabilidade) com as proposições ou da ciência (ideia que deriva da associação da ciência com a magia e do cientista com o mago): o alvo do cientista não é descobrir uma certeza absoluta, mas descobrir teorias cada vez melhores (ou inventar holofotes cada vez mais potentes), capazes de ser submetidas a testes cada vez mais severos (e conduzindo-nos com isto sempre a novas experiências, que iluminam para nós). Mas isto significa que essas teorias devem ser mostradas falsas: é pela verificação de sua falsidade que a ciência progride37

Baseando-se nisto, conclui-se que a lição de Popper se desenvolve no sentido de que o que faz uma teoria ser científica não é sua verdade, mas quando aceita que seja falseada. As doutrinas e dogmas não aceitam a falseabilidade de seu pensamento e sacralizam seus princípios como se últimas instâncias da verdade fossem. A ciência é provisória. Uma teoria persiste no campo científico até ter suas falhas reveladas pela refutação. Nunca se alcança a verdade absoluta de uma ciência, mas muito conhecimento científico se produz com a evidenciação da falsidade existente nos saberes científicos.38 No caminho do saber científico, não se devem verificar e, eventualmente, demonstrar sua falseabilidade somete das teorias científicas, este processo também deve se aplicar aos princípios de explicação, ou seja, aos postulados metafísicos, princípios que partem os cientistas ao elaborarem o saber científico. Deve-se inquirir o senso comum do elaborador do conhecimento científico.39 “O conflito das ideologias, dos pressupostos metafísicos (conscientes ou não) é condição sine qua non da vitalidade da ciência”.40 O saber científico, ao contrário do que afirma a tradição da ciência moderna, não opera como espelho refletindo o real. Ele realiza-se incluído em um universo de paradigmas, teorias e com influência tríptica: sua imersão cultural, histórica e social. “(...) porque não há espírito sem cérebro (...) As teorias científicas surgem dos espíritos humanos no seio de uma cultura hit et nunc.”41 POPPER, K. R. Conhecimento objetivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975. p. 331. 37 Ibid., p.332. 38 Id. 39 POPPER, K. R. Conhecimento objetivo.(...) p.317 40 MORIN, Edgar. Op. Cit., p.25. 41 Id. 36

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A humanidade não está inserida em um mundo concebido como se máquina precisa fosse. Nesta senda, revela-se ostensível que a prosperidade do saber científico emancipatório, ao constituir-se, produz conhecimento carente da certeza determinista, calculada, quantificada da ciência moderna. O pensamento que se pensa tem consciência e reflete sobre a ignorância inerente ao processo de seu pensar, “que nos liberta de uma ilusão ingênua e nos desperta de um sonho lendário: é uma ignorância que se reconhece como ignorância”.42 O progresso, fruto do conhecimento científico, é fundamental para a libertação e prosperidade da sociedade. Nesta senda, o corpo científico é dominado por duas máximas, paradoxais em essência: “ética do conhecimento, que exige que tudo seja sacrificado à sede de conhecer. O Segundo é o da ética cívica e humana.”43 O primeiro é o que revela o frágil limite entre progresso do conhecimento científico e barbárie. Ao passo em que se impõe que tudo seja esvaído de valor em prol da busca do fazer saber, desvela-se a ausente roupagem ética e moral da atividade científica. Esta concepção, ao ser adotada e dominada pelos interesses estatais, sub-rogam e dominam as massas. É preciso elaborar-se o conhecimento científico sob preponderância da segunda máxima de Morin em detrimento da primeira. É preciso fazer ciência com consciência, sob domínio da ética cívica e humana. Assume-se a importância da contribuição dos mencionados autores ao longo deste artigo, porém, cumpre alertar que suas lições são complexas e demasiadas extensas para serem descritas em poucos parágrafos, em decorrência disto procurou-se examinar apenas alguns conceitos centrais e que têm especial importância para elaboração deste trabalho. Dito isso, passemos às considerações finais.

Considerações finais Um discurso crítico se faz fundamental em um mundo em que a tecnicização tornou-se hegemônica. A reflexão do caráter dual que a ciência moderna e a tecnologia têm conferido ao corpo social, deve se dar, principalmente, em prol da promoção da vida humana, pois muito do que se produz hoje como ciência, não passa de mero instrumento de fortalecimento de instâncias já empoderadas que objetivam a dominação da população. A tecnicização em massa e a concepção de progresso, em um primeiro momento, geram a fantasiosa ideia de que a grande quantidade de informação produzida é conhecimento. Ao analisar, por exemplo, o emblemático livro de Adorno e Horkheimer “A dialética do esclarecimento”, que é de um radicalismo que só pode ser compreendido a luz do tempo em que foi escrito, este possui vários elementos importantes que permitem pensar problemas contemporâneos e abriu caminho para as demais posturas críticas iconoclastas subsequentes na 42 43

MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 24. Ibid., p. 36.

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história do saber, qual seja: o projeto de destruição e fragmentação completa do iluminismo. Conclui-se, assim, que a miríade de informação e tecnologia não é sinônimo de conhecimento. A produção de conhecimento científico não se reduz a tamanha simplicidade. Através da postura de contraposição à natureza apologética das instituições – em vigor na época em que viviam – corporifica-se a espetacular lição de Adorno e Horkheimer que aqui se debruçou. Suas críticas não se restringiam somente à época, mas, dotadas de viés profético, têm caráter extremamente atual: escolas, universidades, perpassam o dever de glorificação do iluminismo, ou seja, perpetuam o conhecimento irrefletido, dominador. Desse modo, parece claro o potencial do discurso que aqui se pretende estabelecer: é preciso que o corpo científico do tempo presente opere conhecimento emancipador. Instrumentalizando o progresso científico com consciência, a contingência do futuro pode não assumir o viés negativo e catastrófico salientado, especulativamente, neste texto. O erro como ferramenta do conhecimento emancipador, ao lado da superação da obstaculização do conhecimento velho/dominador, a refutação das teorias em vigor e a compreensão que aquele que faz ciência é um ser humano falho – sedimentando a inerência do senso comum como gênese do trabalho que se executa – são alguns dos pontos que devemos destacar para a elaboração de projetos científicos que promovam a redenção humana, tanto desejada há séculos e séculos. O progresso científico e a velocidade cada vez maior da produção mercantil, criando necessidades e mercadorias antes não pensadas, serve como estratégia para a ascensão de interesses de classes dirigentes, visando a lucratividade em detrimento da emancipação humana, típico do sistema capitalista. Assimetrias e desigualdades sociais assumem roupagem cada vez mais inquietante. Mudança. Uma radical configuração nos quadros do fazer científico deve ser executada, com observância dos riscos e danos – efêmeros ou não – dessa produção e da localização da relação correlacionada entre ciência, tecnologia e emancipação humana. A ciência deve assumir responsabilidade social e não continuar sendo gerenciada sob égide de avelhantados sistemas de radicação política e econômica. O conhecimento científico nos moldes modernos, ainda é uma realidade nas instituições acadêmicas e está propenso a agravar o atual quadro de dominação. A pesquisa científica deve ser estimulada a libertar-se dos sistemas que a gerem e ser executada de forma a promover o bem estar social, saúde, de forma consciente, florescendo sob nova roupagem, qual seja: neutra, eficaz, libertadora. A pesquisa científica deve visar o progresso, o desenvolvimento, mas não deve cegar-se para as problemáticas e latentes questões, como, apenas a título de ilustração: a finitude dos recursos naturais, problemas com o conhecimento da energia nuclear (contaminação ambiental, guerras) e as consequências da manipulação genética.

Parece que no século da inquietação ocorreu a secularização da figura escatológica judaico-cristã, sendo esta não mais ditada por Deus, mas governada pelas ações humanas. A contingência do futuro vincula-se tão e somente com a superação do pensamento esclarecido. É preciso pensar o pensamento científico. Afastando-nos de roupagem reacionária ou tecnofóbica, elucidamos o caráter polarizado do processo da racionalização instrumental da ciência. A comunidade científica no modelo atual está intrinsicamente vinculada ao desafio de concatenar progresso e conhecimento científico, por um lado, e ética e valores morais, por outro. Isso não denota que tal empreitada seja impraticável, apenas que características problemáticas do sistema lhe conferem contornos mais complexos. Destarte, o laissez-faire do mercado possivelmente não lidará bem com essa demanda, no entanto cabe aos Estados constituírem políticas que incorporem essa responsabilidade em concomitância à conscientização de toda a sociedade, cientistas ou não, com o destino do saber científico.

Referências bibliográficas Livros: BACHELARD, Gaston. Epistemologia: trechos escolhidos por Dominique Lecourt. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. DUPAS, Gilberto. Ética e poder na sociedade de informação: de como a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito do progresso. 3 ed. São Paulo. UNESP, 2011. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. 2 ed. São Paulo. Martins Fontes, 2010. HORKHEIMER, M., e ADORNO, T. W., Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997 MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Ed. rev. e mod. pelo autor. 16 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014 POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2001. ______________. Autobiografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1986. ______________. Conhecimento objetivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975. Sites Disponível em: Acesso em: 12/10/2015

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O Iluminismo Jurídico-penal: um retrato pelas lentes da Criminologia Hamilton Gonçalves Ferraz1 Resumo O presente artigo estuda e investiga o iluminismo, mais especificamente o iluminismo jurídico-penal, analisando seu contexto e desenvolvimento histórico pela criminologia, suas características fundamentais, seus pontos de ruptura com o Antigo Regime, suas implicações no que se refere ao sistema penal e ao poder punitivo, e sua recepção na América Latina em geral e no Brasil em particular (sobretudo com o advento do Código Criminal de 1830), destacando seus aspectos distintivos, a experiência do iluminismo jurídico-penal brasileiro e, ao final, analisando criticamente suas atualidades na experiência jurídico-penal brasileira, demonstrando como as ideias desenvolvidas naquele período ainda continuam vivas na forma de estudo e elaboração jurídico-penal contemporânea. Palavras-chave: Criminologia; iluminismo jurídico-penal. Abstract This paper studies and investigates enlightenment, more specifically criminal enlightment, analyzing its context and historical development by criminology, its main characteristics, its breaking points with the Old Regime (“Ancien Régime”), its implications towards the penal system and the punitive power, and reception in Latin America in general and in Brazil in particular (mostly with the advent of the Brazilian Criminal Code of 1830), highlighting its distinguishing aspects, the Brazilian penal experience, and, finally, critically emphasizing its actualities in Brazilian penal experience, showing how ideas developed in that particular period are still alive in the methods of study and contemporary criminal elaboration. Keywords: Criminology; criminal enlightenment.

Introdução Permanente objeto de fascínio e estudo das ciências criminais, o iluminismo é uma fase do pensamento ocidental que se destaca não apenas por sua amplitude e pluralidade de novas ideias em diversas áreas do conhecimento, mas também por sua atualidade – já que a influência daquele conjunto de reflexões (e suas mentalidades e formas de se pensar) até hoje se faz muito presente. Em grande medida, o direito penal é um filho do iluminismo, que, engendrado para limitar juridicamente o poder punitivo do Antigo Regime2, Mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. 2 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p. 25. 1

O Iluminismo Jurídico-penal: um retrato pelas lentes da Criminologia

Hamilton Gonçalves Ferraz

não apenas consagra os princípios e ideais do movimento, como a legalidade, proporcionalidade, culpabilidade, a presunção de inocência, entre outros, mas também traz em seu âmago toda uma sorte de visões de mundo consagradas naquele período histórico. O presente artigo se debruça sobre este importante período histórico e as principais heranças que deixou para as ciências criminais. Nesse sentido, pelas lentes da criminologia, será feita uma contextualização histórica e abordagem criminológica do iluminismo; em um segundo momento, será estudada a chegada e recepção deste movimento em terras latino-americanas – em especial, no Brasil -, para que assim seja possível uma compreensão com horizontes mais amplificados acerca do que o iluminismo significou para as ciências criminais, seus legados, heranças e atualidades.

à ascensão e consolidação da classe burguesa no poder e a um novo capitalismo, de feição industrial, dotado de novas técnicas de produção e exploração, seja no meio rural, seja no meio urbano. O olhar interessado da criminologia, na lição de Massimo Pavarini, orienta que se interprete o período em questão a partir de suas “demandas por ordem” 6 . A partir dessa perspectiva, em grande e apertada síntese, o movimento das luzes representou um enorme esforço de ruptura com aquele mundo anterior teocêntrico e mercantil, em que o poder político e o poder religioso se imiscuíam, em prol do nascente mundo do capitalismo industrial e suas características correlatas – a defesa das liberdades, do mercado, do individualismo e, acima de tudo, da propriedade privada. Com efeito, ao analisar o poder punitivo da revolução industrial, Zaffaroni percebe que o surgimento de uma nova e poderosa classe social, como a dos industriais e comerciantes, em concorrência com a classe estabelecida (nobreza e clero), determinou que a primeira buscasse debilitar o poder de dominação da segunda, o que se consubstanciou numa empreitada de redução do poder punitivo, manifestando-se num discurso penal redutor e em mudanças na realidade operativa do poder punitivo, funcional ao crescimento e expansão desta nova classe social7. Não por acaso, o iluminismo provocou grandes mudanças na distribuição do poder e nas formas de punição estatais pelo cometimento de infrações penais: das penas de execução pública, dos suplícios e das penas corporais, passou-se às penas privativas de liberdade, às Casas de Correção e aos estabelecimentos prisionais, em que a pena passou a ser caracterizada por pelo menos dois elementos centrais: tempo e trabalho, disciplinarmente administrados, elementos tão caros ao nascente mundo industrial que naquele período se concebia8.

Contextualização histórica e abordagem criminológica Aspectos preliminares Antes de se adentrar no iluminismo (e, em particular, no iluminismo jurídico-penal), deve-se apresentar, em linhas gerais, o contexto histórico e social em que o movimento surgiu. A expressão “iluminismo” foi cunhada por Imannuel Kant, em 1784, para definir a filosofia dominante na Europa ocidental do século XVIII; a palavra vem de “esclarecimento”, para designar a condição para que o homem (no sentido de humanidade) fosse autônomo pelo uso de sua razão3. Sua atmosfera cultural fundamentava-se, sobretudo, nas bases racionais e otimistas assentadas pelos pensadores da revolução intelectual do século XVII, em que ideias tradicionais concernentes a Deus, à existência humana e ao universo foram questionadas e, em larga medida, modificadas drasticamente ou de todo abandonadas4. Em síntese, pelas palavras de Heleno Fragoso, “iluminismo significa a autoemancipação do homem da simples autoridade, preconceito, convenção e tradição, com insistência no livre pensamento sobre problemas que tais instâncias consideravam incriticáveis”5. O mundo ocidental que assistiu ao nascer das Luzes passava por diversas e significativas mudanças. Foi o mesmo período que deu início à revolução industrial e as revoluções burguesas em geral; que passou por intensas revoluções científicas, concebendo métodos racionalistas e empiristas para o desenvolvimento dos saberes humanos e que passou pela ascensão e queda do Estado Absolutista, e de suas formas mercantilistas de capitalismo, para dar lugar SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 2ª Ed., 2ª Reimpr. São Paulo: Contexto, 2009, p. 210. 4 BURNS, Edward McNall; LERNER, Robert E. Mcnall; MEACHEM, Standish. História da civilização ocidental: do homem das cavernas, às naves espaciais, V.2. Trad. de Donaldson M. Garshagen. 43ª Ed. São Paulo: Globo, 2005, p.453-460. 5 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. A nova Parte Geral. 9ª Ed, revista. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 38. 3

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PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Trad. de Ignacio Muñagorri. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2002, p. 20. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 43. 8 MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Trad. de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2006, 91-92; estudando as mudanças no sistema penal conforme as mudanças nos sistemas econômicos, RUSCHE, Georg; KIRCHHIMER. Punição e estrutura social. Trad. de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999; por fim, são precisas as palavras de Foucault: “Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue, mas também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando seus circuitos. Em resumo, constituir uma nova economia e uma tecnologia do poder de punir: tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. 38ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 86). 6

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Vistos os aspectos mais importantes do contexto subjacente ao iluminismo, pode-se analisar com mais profundidade suas características teóricas fundamentais, em especial, seus aspectos jurídico-penais.

legitimidade do poder punitivo do Estado) era considerado delinquente, um traidor ao compromisso social de organização, merecendo ser punido13. Outros traços fundamentais do iluminismo – e, agora, mais especificamente, seus aspectos penais –, são a diferenciação entre direito e moral14; a desontologização do crime e do criminoso15 e o desenvolvimento das ideias de legalidade estrita, prevenção, proporcionalidade e limites ao poder punitivo16. Ainda conforme Bustos Ramírez, no bojo do iluminismo podem ser identificadas três correntes: (i) a que acentuava bases jusnaturalistas, tendo origem em Samuel Puffendorf; (ii) a que destacava a racionalidade como qualidade inerente ao homem e também ao Estado (racionalismo), que se expressou especialmente em Montesquieu; e (iii) a que ressaltava o utilitarismo e o pragmatismo, sustentada principalmente por Beccaria e Bentham17. Com o surgimento do Estado de Direito liberal do século XIX, estas três correntes se separaram e se reagruparam: (i) o racionalismo iluminista e sua ênfase no direito natural deu origem à chamada Escola Clássica do direito penal, em que este passou a ser estudado como disciplina autônoma; (ii) a vertente que acentuou o utilitarismo e o pragmatismo das Luzes se voltou ao empírico, se debruçando sobre o novo estado de coisas existentes: formou as bases para o positivismo, que permitiu o surgimento da criminologia como disciplina autônoma dentro do fenômeno delitivo; (iii) por fim, esforços ecléticos dirigidos a construir uma ponte entre ambas as disciplinas (direito penal e criminologia) deram nascimento à política criminal18.

Características principais Conforme leciona Bustos Ramírez, os filósofos iluministas não podem ser reconduzidos a uma mesma linha de pensamento9; contudo, pode-se traçar as feições comuns daquele conjunto de ideias. As ideias iluministas, em geral, eram marcadas por uma crescente análise científica, centralizada em torno da razão; erguiam-se contra a aceitação inquestionada de tradição e autoridade; denunciavam os estados de ineficiência e corrupção das instituições existentes; também se criticava a superstição e crueldade dominantes, tendo como ponto de partida a “lei natural”, “direitos naturais” e a “igualdade natural”, todas interpretadas pela voz da razão10. Uma aproximação das diferentes correntes iluministas pode ser feita a partir da noção de “contrato social”. Embora esta noção passasse a ser desenvolvida pela filosofia do século XVII, é no iluminismo que ela alcançou seu maior vigor, estando diretamente relacionada aos ideais das revoluções burguesas (americana e francesa, em especial) que provocaram marcantes rupturas à ordem econômica, social e política do Antigo Regime. Cada filósofo das Luzes sustentou sua própria concepção de contrato social, de modo que, para os fins do presente estudo, basta que se aponte a importância teórica da forma de se pensar a sociedade a partir do contrato (método absolutamente compreensível à luz daquele capitalismo industrial nascente). O contrato social, composto por homens livres e em igualdade natural, elevava a sociedade de seu estado natural para um estado de liberdade civil, com o resguardo do seu direito de propriedade11 – era um princípio de organização da sociedade e do Estado, que impunha limites a cada uma das partes, bem como assegurava aos indivíduos o direito natural de resolução em caso de inadimplemento ou abuso12. O aspecto jurídico-penal desta construção é que aquele que se colocava contra o contrato social (cuja validade garante a BERGALLI, Roberto, RAMÍREZ, Juan Bustos e MIRALLES, Teresa. El pensamento criminológico, Vol. I. Un análisis crítico. Bogotá: Editorial TEMIS Libreria, 1983, p. 27. 10 Idem, ibidem. 11 BERGALLI, Roberto, RAMÍREZ, Juan Bustos e MIRALLES, Teresa. El pensamento criminológico, Vol. I. Un análisis crítico. Bogotá: Editorial TEMIS Libreria, 1983, p. 27. 12 Assim é a concepção contratualista de John Locke, ao assegurar um direito de resistência ao indivíduo contra o abuso e a opressão: “Qualquer pessoa que usar a força ilegalmente, como todos fazem em uma sociedade em que não existe lei, coloca-se em estado de guerra contra aqueles contra quem ele a usa, e nesse estado todos os vínculos anteriores são cancelados, todos os outros direitos cessam e cada um tem o direito de se defender e resistir ao agressor”. (LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Intro: J.W.Gough; trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994 – (Coleção clássicos do pensamento político), p. 225 e p. 234. 9

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BERGALLI, Roberto, RAMÍREZ, Juan Bustos e MIRALLES, Teresa. El pensamento criminológico, Vol. I. Un análisis crítico. Bogotá: Editorial TEMIS Libreria, 1983, p. 27-28. 14 RUSCHE, Georg; KIRCHHIMER. Punição e estrutura social. Trad. de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 101. Prefere-se falar em diferenciação ao invés de separação, para se indicar que é a partir do iluminismo que se permite o tratamento distinto entre direito e moral; a articulação de um e outro varia conforme a corrente filosófica. 15 Não há autor que melhor possa ilustrar este aspecto do que Francesco Carrara, ao compreender o delito não como ente de fato, mas como ente jurídico: “Prossegue-se o delito, não como fato material, mas como ente jurídico. A ação material terá por objeto a coisa ou o homem; o ente jurídico não pode ter por objeto senão uma ideia: o direito violado, que a lei protege por meio da proibição”; “Nós vimos que o delito não é um simples fato. É um ente jurídico cuja essência, que consiste em uma relação, exige o concurso de certos elementos que produzem o conflito do fato com a lei civil, conflito que constitui a criminalidade da ação” (tradução livre). CARRARA, Francesco. Programme du cours de droit criminel. Partie générale. 4ª Ed. Trad. de Paul Baret. Paris: Marescq Ainé, 1876, p. 34 e 42. 16 BERGALLI, Roberto, RAMÍREZ, Juan Bustos e MIRALLES, Teresa. El pensamento criminológico, Vol. I. Un análisis crítico. Bogotá: Editorial TEMIS Libreria, 1983, p. 28 e 29. 17 Idem, p. 30. 18 Idem, ibidem. 13

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Acerca da Escola Clássica19, devem-se fazer algumas considerações. Na síntese de Pablos de Molina, ela era composta de três fundamentos sólidos: (i) a imagem do homem como ser racional, igual e livre; (ii) a teoria do contrato social como como fundamento da sociedade civil e do poder; (iii) a concepção utilitária do castigo, não desprovida de apoio ético20. Baratta percebe que, consequentemente, o direito penal e a pena eram considerados pela Escola clássica não tanto como meio para intervir sobre o sujeito delinquente, modificando-o, mas, sobretudo, como instrumento legal para defender a sociedade do crime, criando, onde fosse necessário, um dissuasivo, ou seja, uma contramotivação em face do crime21.

De qualquer forma, para os fins do presente trabalho, basta assinalar que a emancipação dos países hispano-americanos caracterizou-se por um conservadorismo subsequente aos movimentos revolucionários de independência, assegurando-se a desigualdade entre as elites latifundiárias e as demais camadas subalternas (indígenas, mestiços, mulatos livres, negros, etc.), mantendo-se na sociedade as configurações delineadas pelos velhos sistemas de castas coloniais25.

As luzes penais na América Latina A emancipação da América Espanhola Conforme Gabriel Anitua, o influxo dos ideais iluministas, defendidos pelas revoluções americana e francesa, foi fundamental para a independência dos atuais Estados da América Latina22. Reagiu-se contra a administração da justiça e o exercício do poder punitivo, o que pode ser percebido não apenas nas primeiras medidas independentistas relativas à abolição da Inquisição, na queima dos instrumentos de tortura e na eliminação de penas cruéis23. O processo de emancipação política e econômica na antiga América Espanhola assumiu características peculiares. A manutenção das estruturas políticas e econômicas do período colonial, associado a um processo violento de independência deu à luz regimes políticos extremamente instáveis, marcados por guerras civis e violência; o fim da escravidão, nesse contexto, tampouco se deu de forma imediata, tendo sido possível em grande parte para fins de recrutamento militar e guerra24. O termo “Escola Clássica” foi cunhado pelos então representantes da “Escola Positiva” da criminologia, para se referir (e criticar) seus antecessores, defendendo não um estudo metafísico, mas científico do crime e do criminoso, partes da “doença do crime” que deveria ser combatida pelas ciências criminais. Elucidando esta concepção, FERRI, Enrico. The positive school of criminology: three lectures given ar the University of Naples, Italy on April 22, 23 and 24, 1901. Trad. de Ernest Untermann. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1913, p. 5-10. 20 MOLINA, Antonio García-Pablos de. Tratado de criminología. 3ª Ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2003, p. 340. 21 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 31. 22 ANITUA Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p. 158. 23 Idem, ibidem. 24 DONGHI, Tulio Halperin. História da América Latina. Trad. de. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Editora Paz e Terra S.A., 1986, p.113-116. 19

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O Penalismo ilustrado no Brasil Em que pese o contraste entre o processo de independência nas colônias espanholas e o processo brasileiro, apontando-se a relativa facilidade da consolidação da Independência do Brasil com a complicada emancipação hispano-americana, Boris Fausto recorda que tampouco o processo brasileiro correspondeu a uma passagem pacífica, havendo luta entre movimentos autonomistas e os que sustentavam a permanência da união com Portugal. De qualquer forma, admitido o uso da força e as mortes daí resultantes, o Brasil constituiu-se como país independente em poucos anos, sem grandes desgastes, e é emblemático que ao final desse período de mudanças e revoluções burguesas o Brasil, perante a América Latina, tenha permanecido uma monarquia entre repúblicas26. De acordo com Gizlene Neder, o período das Luzes europeias no Brasil não se reverteu em ruptura, do ponto de vista ideológico e político, no pensamento político brasileiro com o português, mesmo após a emancipação política (1822)27. Se em Portugal as ideias iluministas foram apropriadas e traduzidas em um sentido conservador, próprio de um Estado absoluto, no Brasil, mais do que uma “fonte inspiradora”, este pensamento ibérico será uma matriz fundamental28. Assim, no Brasil, o que ocorreu foi, nas palavras de Gisálio Cerqueira, “um absolutismo ilustrado, com realce para as ambiguidades, ambivalências e contradições, na forma de uma modernização política conservadora”29. A grande legislação que encarnou a tradução do iluminismo jurídico-penal no Brasil foi o Código Criminal de 1830. Esta lei, bem como as demais leis penais que em torno do Código gravitaram, possui dois eixos de compreensão: (i) a contradição entre o liberalismo e a escravidão (tão profunda que, se a Constituição de 1824 abolira a pena de açoites, não obstante, no Código ela era prevista apenas para os escravos, e largamente aplicada30) e (ii) o movimento Idem, p. 117-118. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª Ed. Atual. e. ampl., 1. Reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 124-126. 27 NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 18. 28 Idem, p. 166-167. 29 Idem, p.7. 30 BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros. In: BATISTA, Nilo (org.). Novas tendências do direito penal: artigos, conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 110.

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político de descentralização e centralização, que se manifestou de forma intensa no desenvolvimento de nosso direito processual31. Dentre as principais influências do Código, destacam-se a influência francesa do Código Penal Napoleônico, o pensamento de Bentham e Livingstone e o pensamento ibérico de Pascoal José de Mello Freire32. Batista e Zaffaroni apontam ainda que, nos debates parlamentares sobre a elaboração do que seria o Código Criminal de 1830, seguiu-se no Brasil o caminho inverso de Beccaria: se este se opunha à pena de morte, salvo para crimes políticos33, aqui foi o contrário, prevendo-se pena capital (art. 38) para os líderes de insurreição de escravos – crime que não era considerado político, mas contra a “segurança interna do Império e pública tranquilidade” – (art. 113, se escravo e art. 114, se pessoa livre), aos homicidas (art. 192) e ao roubo com morte (art. 271)34. Assinala Gizlene Neder que, no quadro de valores escravistas, a noção de “ordem” sobrepunha-se à de “justiça”, com a prevalência de uma expectativa de obediência passiva35; e que se persiste, no Brasil, com um legado, uma herança do absolutismo português, com a fantasia absolutista do controle social (policial) absoluto sobre os espaços urbanos (na verdade, o controle absoluto sobre a massa de ex-escravos, de seus descendentes afro-brasileiros, e de trabalhadores urbanos, de um modo geral); assim, entende-se a ênfase nas campanhas de “lei e ordem”, ainda discutidas e implementadas pelas polícias no Brasil no tempo presente36. Em relação à execução das penas no Brasil, verifica-se que ao tempo da entrada em vigor do Código Criminal de 1830 não havia uma Casa de Correção (inaugurada apenas em 1850), sendo os condenados alocados ora

no calabouço37 (destinado para controle de escravos), ora no Aljube38, tendo funcionado até 1856. O Aljube foi o destino da maioria dos presos comuns, indiscriminadamente, e, com uma capacidade para 20 pessoas continha, em 1830, nada menos de 39039. A Casa de Correção, na análise de Manoel Barros da Mota, era, ao mesmo tempo, o espelho invertido da sociedade nova, fundada na igualdade jurídica e na liberdade, e da sociedade antiga, escravista: de um lado, consagrava algumas instituições jurídicas liberais, e de outro, na sua face escravista, consagrava o castigo físico, a violência sistemática dos senhores sobre o corpo dos escravos e encarrega o Estado de punir os escravos rebeldes a mando dos senhores40. Ilustrativamente, vale a pena trazer um relato emblemático: em 1869, o médico e Diretor da Casa de Correção, Almeida Valle, foi categórico ao afirmar que, considerando sua experiência como médico na clínica especial da penitenciária durante uma década, uma “pena maior de dez anos equivale, em regra, à sentença de morte”, por serem “muito raros os (condenados) que cumprem este tempo e, se por acaso cumprem, não tem adquirido lesões graves que constituam valetudinário durante o tempo mais ou menos limitado de vida que lhes reste”41. Outro elemento fundamental para compreender a apreensão do penalismo ilustrado no Brasil reside no estudo do medo. Na percepção de Vera Malaguti, a hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social, tendo este uso do medo do caos e da desordem servido para alavancar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas42. A revolução do Haiti (1791-1804), que já causara um impacto profundo nos grandes proprietários de escravos do continente sulamericano, bem como as demais revoltas ao longo da chegada da família real no Brasil (1808) e da consolidação do Império – destaca-se a sublevação dos escravos conhecida como Revolta dos Malês (1835) – compõem um cenário de medo das insurreições, no qual se encontra a chave de leitura para se compreender o que foi, efetivamente, o penalismo ilustrado e a construção de sua arquitetura institucional de repressão no Brasil43. Por fim, a continuidade entre um sistema penal privado subjacente à escravidão, com um nascente sistema penal público pretensamente liberal

BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro, I. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 423. 32 BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro, I. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 430-434. É controversa a influência de Mello Freire: Gizlene Neder entende de forma afirmativa (NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídicopenal luso-brasileiro: obediência e submissão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 187); Batista e Zaffaroni apontam que é difícil fazer tal afirmativa categoricamente, uma vez que diversos dispositivos defendidos por Mello Freire não foram abraçados pelo Código de 1830 (BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro, I. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 434). 33 Beccaria admitia a pena de morte a um réu quando, ainda que privado de liberdade conserva o poder e relações tais que podem afetar a segurança nacional, ou quando sua existência possa produzir uma revolução perigosa para a forma de governo estabelecida (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa; revisão de Roberto Leal Ferreira. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 95). 34 BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro, I. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 436 e NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 195. 35 NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 194. 36 Idem, p. 184. 31

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Cárcere construído para escravos detidos por punição disciplinar e/ou fugitivos. Cárcere eclesiástico cedido pela Igreja à Coroa. 39 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Exclusão moderna e prisão antiga. In: SÁ, Alvino Augusto de, TANGERINO, Davi de Paiva Costa e SHECAIRA, Sérgio Salomão (coords.). Criminologia no Brasil: história e aplicações clínicas e sociológicas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 9-10. 40 MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: nascimento da prisão no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 175. 41 Idem, p. 179. 42 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 21-22. 43 Idem, p. 25 e 135, 145. 37 38

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permitiu não apenas o trânsito de práticas penais do espaço do senhor ao espaço do juiz, como também a própria desqualificação jurídica entre os sujeitos (traço distintivo da escravidão, em que o sujeito escravo era coisa para o ordenamento jurídico e sujeito quando da prática de infração penal, e sujeito a penas de morte, galés e açoites), o que alcançou o Código de 1830 e se reflete até hoje sob a forma de uma cidadania à qual os pobres acedem somente através do direito penal 44.

do bem e do mal: o delito é um dano para a sociedade, o delinquente é um mal, e a sociedade constituída, um bem; (iii) princípio da culpabilidade: o delito é uma atitude interior reprovável por contrariar valores sociais pré-positivados; (iv) princípio da finalidade ou prevenção: a pena não apenas retribui, mas previne o crime, criando uma justa e adequada contramotivação ao comportamento criminoso; (v) princípio da igualdade: a lei penal é igual para todos e o crime é a violação da lei penal por um comportamento desviante; (vi) princípio do interesse social e do delito natural: o núcleo dos delitos definidos nos códigos penais representa a ofensa de interesses fundamentais, de condições existenciais à existência de toda a sociedade48. Modernas concepções contratualistas, baseadas na razão, na utilidade e na análise econômica do direito (e do direito penal), na esteira de movimentos neoliberais, também buscam fontes de inspiração iluministas49. Entretanto, Wacquant demonstra, em linhas gerais, que, ao declínio do Estado social ao final dos anos 60 e à correspondente ascensão de modelos neoliberais de Estado (os chamados “Estados mínimos”) correspondeu-se, na mesma medida, uma hipertrofia do Estado penal, desenhando-se, segundo o professor, uma figura de formação política de um tipo novo, espécie de “Estado centauro”, de cabeça liberal sobre um corpo autoritário, que aplica a doutrina do “laissez faire, laissez passer” ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando trata de assumir as consequências50. Por outro viés totalmente distinto, busca Ferrajoli inspiração direta no pensamento iluminista para construir sua teoria do garantismo jurídico, que considera o ponto mais alto da história da cultura penal 51. É com base no legado daquele período e em sua atualização crítica que Ferrajoli entende que

Considerações finais As ciências criminais carregam marcas indeléveis do movimento iluminista. É fundamental o estudo deste período histórico, não apenas nos países centrais, mas, sobretudo, em nossa margem, em nosso próprio país. Para conclusão, importa indicar algumas atualidades daquelas ideias no pensamento jurídicopenal contemporâneo. Uma das mais fortes marcas iluministas no pensamento Ocidental é a ideia de progresso, ou seja, a ideia de que a sociedade, organizada de acordo com a (ideologia da) Razão, melhoraria indefinidamente45. Assim, quando se lê em manuais de direito penal, ou em textos doutrinários, acerca da necessidade de “evolução do direito penal”, o que subjaz a esse pensamento é essa crença no constante aperfeiçoamento da humanidade através da Razão. Trata-se de uma visão extremamente criticada pela filosofia, sociologia e história, já que, em apertadíssima síntese, o “progresso científico e tecnológico”, se é inegável, não pressupõe o “progresso da humanidade em si”, sendo necessário tratar o conhecimento não por concepções lineares ou unidimensionais, mas sim considerando as ideias de rupturas e permanências, permitindo se trabalhar a história como uma construção46. Embora mais desenvolvida pelo positivismo, a ideia de defesa social é uma grande herança iluminista e ainda se faz presente nas mentalidades jurídico-penais contemporâneas. Não se desconhece as profundas diversidades existentes entre os filósofos iluministas, mas o fato é que a concepção nuclear da defesa social, de que “é melhor prevenir delitos do que puni-los”47, tem origem neste período. Baratta sintetiza a ideologia da defesa social em seis princípios (que, posteriormente, desconstrói ao longo de sua obra): (i) princípio da legitimidade: o Estado, como expressão da sociedade, é legitimado para reprimir a criminalidade; (ii) princípio BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros. In: BATISTA, Nilo (org.). Novas tendências do direito penal: artigos, conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 106-111. 45 ANITUA Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p. 136-137. 46 TURINI, Leide Alvarenga. A crítica da história linear e da ideia de progresso: um diálogo com Walter Benjamin e Edward Thompson. Educação e filosofia. v.18, n.º 35-36, p. 123-124, jan./dez., 2004. 47 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa; revisão de Roberto Leal Ferreira. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 130.

O objetivo geral do direito penal, tal como resulta da dupla finalidade preventiva ora ilustrada, pode ser, em uma palavra, identificado com o impedimento do exercício das próprias razões, ou, de modo mais abrangente, com a minimização da violência na sociedade. Tanto o delito como a vingança constituem exercício das próprias razões. (...) A lei penal é voltada a minimizar esta dupla violência, prevenindo, através de sua parte proibitiva, o exercício das próprias razões que o delito expressa, e, mediante a sua parte punitiva, o exercício das próprias razões que a vingança e outras possíveis reações informais expressam. (...) Este é, sim, a proteção do fraco contra o mais forte: do fraco ofendido ou ameaçado com o delito, como do fraco ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o

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BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 31-42. 49 ANITUA Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p. 791-798. 50 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 55. 51 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4ª Ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 17. 48

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O Iluminismo Jurídico-penal: um retrato pelas lentes da Criminologia

réu e na vingança é o ofendido ou os sujeitos públicos ou privados que lhe são solidários52.

Encerra-se esta leitura criminológica do iluminismo com a crítica de Nilo Batista, que percebe que o iluminismo, na verdade, não empreendeu uma crítica da razão punitiva. Na verdade, seu racionalismo filosófico fez da lei penal um imperativo categórico, abrindo-se as portas para um culto racionalista à pena53. Em suas palavras: Por ora, o que se vê com clareza é que a pena, este monstro saído de um bestiário medieval que o penalismo ilustrado não quis deslegitimar, e sim pretendeu domesticar, está engolindo, um após o outro, aqueles princípios que deveriam ser a sua focinheira 54.

Referências bibliográficas ANITUA Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002. BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros. In: BATISTA, Nilo (org.). Novas tendências do direito penal: artigos, conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 103-116. _____________. No quarto de despejo do penalismo ilustrado. In: BATISTA, Nilo (org.). Novas tendências do direito penal: artigos, conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 71-77. _____________. ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro, I. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003 _____________. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa; revisão de Roberto Leal Ferreira. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BERGALLI, Roberto, RAMÍREZ, Juan Bustos e MIRALLES, Teresa. El pensamento criminológico, Vol. I. Un análisis crítico. Bogotá: Editorial TEMIS Libreria, 1983. BURNS, Edward McNall; LERNER, Robert E. Mcnall; MEACHEM, Standish. História da civilização ocidental: do homem das cavernas, às naves espaciais, V.2. Trad. de Donaldson M. Garshagen. 43ª Ed. São Paulo: Globo, 2005. CARRARA, Francesco. Programme du cours de droit criminel. Partie générale. 4ª Ed. Trad. de Paul Baret. Paris: Marescq Ainé, 1876. DONGHI, Tulio Halperin. História da América Latina. Trad. de. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Editora Paz e Terra S.A., 1986. Idem, p. 311. BATISTA, Nilo. No quarto de despejo do penalismo ilustrado. In: BATISTA, Nilo (org.). Novas tendências do direito penal: artigos, conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 76 54 Idem, p. 77.

Hamilton Gonçalves Ferraz

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Evolução Histórico-normativa do Direito de Propriedade Privada no Brasil Neimar Roberto de Souza e Silva1 Resumo O presente artigo tem como objetivo permitir uma melhor compreensão da propriedade privada brasileira e sua regulação, a partir do delineamento da evolução histórico-normativa do direito dominial brasileiro. Para tanto, a partir da pesquisa bibliográfica, os contornos jurídicos da propriedade imóvel privada, nos contextos colonial, imperial e republicano são aqui, sem a pretensão de grandes aprofundamentos, pontuados. Palavras-chave: Direito de propriedade; evolução normativa; história do Brasil. Abstract This article aims to give a better understanding of the Brazilian private property and its regulation, from the design of historical and normative evolution of the Brazilian dominial law. Therefore, from the literature, the legal boundaries of private property ownership, the colonial, imperial and republican contexts are here, with no claim to large penetrations scored. Keywords: property rights; regulatory developments; history of Brazil.

Notas introdutórias Em nossa cultura jurídica, o entendimento do direito de propriedade como relação jurídica complexa vem se firmando. Neste sentido, não se concebe simplesmente como uma relação de subordinação de uma coletividade (sujeito passivo universal) ao respeito do vínculo do proprietário com sua coisa, mas uma situação jurídica em que múltiplas relações intersubjetivas se entrelaçam. Além dos poderes inerentes ao domínio, levam-se em conta os deveres do proprietário em relação a terceiros. No dizer de Pietro Perlingieri, citado por Francisco Eduardo Loureiro: Para entender a propriedade contemporânea, há necessidade de superar a impostação clássica e constatar que o interesse do proprietário não é objeto central de tutela, mas apenas um interesse protegido, num quadro de outros interesses contrastantes, que o ordenamento reconhece e também tutela com mecanismos similares àqueles postos anteriormente a serviço do dominus. (2003, p. 46) 1

Advogado especialista em Direito Civil e Gestor Imobiliário. Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito de Valença-RJ. Mestrando em Hermeneutica Jurídica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC. E-mail: prof. [email protected].

Evolução Histórico-normativa do Direito de Propriedade Privada no Brasil

O fato é que a nova propriedade se caracteriza, conforme Karl Larenz (p. 317) tanto como “garantia jurídica de um espaço ‘externo’ de liberdade”, quanto pelo “limite social decorrente das exigências de convivência, em uma comunidade jurídica”. Também, a noção unitária de propriedade vem cedendo a de multiplicidade dominial. Não há mais que se falar em propriedade, mas em propriedades, já que a diversidade da matéria levou à criação de diferenciados estatutos que disciplinam de forma específica cada categoria de propriedade, seja qualitativa (pública, privada; urbana, rural; intelectual; móvel, imóvel; bens de consumo e produção, etc.) ou quantitativamente (grande, pequena e microempresa; grande e pequena propriedade rural), como reflete Loureiro (2003, p. 61). A mutação do conceito de propriedade no Brasil é um fato decorrente da própria mutação dos nossos sistemas sociais. O Direito, enquanto um destes, tende a se amalgamar à soma de valores e expectativas da sociedade considerada em sua historicidade. Destarte, para o estudo do direito dominial brasileiro, o estudo de sua evolução histórico-normativa constitui-se numa importante ferramenta, que permite ao jurista a compreensão de sua dimensão dinâmica.

A propriedade arcaica no Brasil Para GILISSEN, a “pré-história do direito quase escapa inteiramente ao nosso conhecimento”, pois não havendo documentos escritos, os vestígios deixados pelos povos arcaicos (cerâmicas, esqueletos, armas, etc.) não fornecem informações suficientemente úteis à compreensão de institutos jurídicos, como o casamento, a sucessão, o escambo, a propriedade, que já existiam antes do seu ingresso na história (2013, p. 31). Para o historiador, um método para se chegar a este conhecimento é o estudo dos povos e etnias que atualmente vivem em estado arcaico. Ainda sim, não é seguro, pois a maioria destes, pelo contato com a civilização europeia, já sofreram muitas transformações, além de ser “quase impossível encontrar ainda um ‘direito primitivo’, no ‘estado puro’.”(2013, p. 32). Sabe-se que, entre outras qualidades, as sociedades arcaicas apesentam um direito fortemente impregnado pela religião. A esta característica, dá-se o nome de indiferenciação: a confusão entre regras religiosas e jurídicas. A noção de propriedade móvel é anterior à de imóvel. O solo é sagrado, e sua apropriação “leva a desigualdades sociais e económicas” (GILISSEN, 2013, p. 35, 44-46). Em certas tribos indígenas, ao tempo da descoberta do Brasil, a posse coletiva das coisas úteis era, em regra, entre os habitantes da mesma oca, sendo de propriedade individual apenas certos bens móveis, como redes; armas; utensílios de uso pessoal; etc.. Não havia a propriedade individual sobre o solo. A posse deste era coletiva e temporária, uma vez que não permaneciam fixos em um lugar por mais de cinco ou seis anos (BEVILÁQUA, 1956, p. 97). Segundo Giuliano Martignetti:

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A forma de Propriedade mais antiga é certamente a forma coletiva das comunidades gentilícias (grupos familiares, clã, tribo). Cada um dos seus membros pode ter sobre os bens móveis e imóveis unicamente um direito temporário de gozo, inalienável e não transmissível. O predomínio da Propriedade coletiva funda-se provavelmente em concepções semelhantes às investigadas pelos etnólogos entre os povos chamados primitivos: o indivíduo não conta, o que conta é a comunidade” (1998, p. 1.030)

A propriedade no Brasil Décadas antes do seu apossamento, as terras brasileiras já estavam sob a titularidade da Coroa portuguesa, em razão do Tratado de Toledo, de 6 de março de 1480. Por este diploma, as águas e terras situadas ao sul das Canárias seriam de domínio lusitano. Em 4 de maios de 1943, o tratado foi reconhecido pela Bula Inter Coetera, do Papa Alexandre VI, que conferia domínio exclusivo de todas as ilhas e terras, descobertas ou a se descobrirem, situadas a oeste de uma linha imaginária traçada a cem léguas ao ocidente dos Açores e cabo Verde, desde que já não estivessem possuídas por algum príncipe cristão (MELO, 2008, p. 5-6). Assim como os Reis Católicos da Espanha, D. João II, rei de Portugal, não aceitou a Bula Papal, porque intentava a divisão do chamado “Novo Mundo” por uma linha paralela, traçada à altura das Canárias, onde as terras do norte ficariam para a Espanha, e, as do sul, para Portugal. Disto, resultou o Tratado de Tordesilhas, de 7 de junho de 1494, ratificado pelo rei português, em fevereiro de 1494 (ANGELOZZI, 2009, p. 28), que dividia as novas terras entre os reinos, por um meridiano traçado 250 léguas a oeste das Ilhas de cabo Verde. A parte ocidental seria espanhola, e a oriental, portuguesa. Posteriormente, o costume da época, a Igreja confirmou o tratado, por meio da Bula Papal de Julio II, de 24 de janeiro de 1504, chamada Pro Bono Pacis, que, além de determinar qual ilha cabo-verdiana serviria de marco inicial, redefiniu a distância do meridiano para 370 léguas a oeste (PEREIRA, J., 2003, p. 18). Assim, as terras de Vera Cruz, descobertas em 1500 por Pedro Álvares Cabral, já tinham a sua borda ocidental juridicamente definida, a despeito da milenar possessão destas pelos indígenas que aqui já se encontravam. Mas, como ensina Flávia Lages de Castro (2003, p. 302), inicialmente a nova colônia não era tão interessante à metrópole, pois não possuía um mercado interno para o consumo dos seus produtos. No plano internacional, divisão do Novo Mundo entre Portugal e Espanha não era aceita por nações que, em razão do processo histórico de centralização política no ocidente europeu, estavam a alterar o equilíbrio de forças na Europa, como Inglaterra e França, por exemplo. Segundo Ricardo Pereira Lira (1991, p. 315), D. Francisco I, rei da França, ao responder à solicitação de retirada dos navios franceses das águas americanas, teria ironizado, ao embaixador de Carlos V, que desconhecia a cláusula testamentária deixada por Adão e Eva, que legava o mundo exclusivamente para espanhóis e portugueses.

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Neste contexto, para não perder a posse de seu domínio, haja vista a investida das outras nações europeias na América, a Coroa portuguesa passa a empreender a colonização do Brasil.

no prazo legal ou no previsto em carta de adjudicação. Como o as terras eram domínio eminente da Coroa, as terras incultas eram devolvidas, dái o termo devolutas, e poderiam ser dadas em sesmarias (VARELA, 2005, p. 24-25). Os seus destinatários eram os senhores de terras, leigos ou eclesiásticos, e caberia o cultivo destas aos lavradores e seus filhos e netos; àqueles “que possuíssem menos de 500 (quinhentas) libras em bens”; àqueles que não tivessem senhor certo nem ocupação. Os senhores tinham o dever de compeli-los ao trabalho, sob pena de perderem as terras. Ainda, estas não se destinavam a qualquer cultivo, sendo este determinado pela lei. Impunha-se de igual modo restrições à criação de gado (VARELA, 2005, p. 34-38). No Brasil3, o regime sesmarial não teve o mesmo sucesso que o aplicado em Portugal. A sanção que levava à perda do bem não era devidamente aplicada, e o sistema acabou por permitir a formação de latifúndios4. O Regimento de 1548, no capítulo XX, cogita em concessão de sesmarias para a construção de engenhos de açúcar e estabelecimentos semelhantes, já demonstrando o ethos latifundiário da versão colonial de sesmaria (PEREIRA, J., 2003, p. 21). Segundo Pinto Ferreira:

Período Colonial brasileiro De início, o método utilizado por D. João III, para a concretização da posse, foi o mesmo empregado nos Açores e Ilha da Madeira: a divisão do território em capitanias hereditárias. Estas foram em quinze, doadas a doze donatários. Começavam no litoral e formavam uma faixa territorial, de bordas equidistantes que chegava à divisa ocidental, traçada pelo Tratado das Tordesilhas2. Eram doações, transmissíveis por sucessão mortis causa, e condicionadas à colonização do solo e à fundação de povoações, entre outras. Os donatários ao receberem as Cartas de Doação também recebiam as Cartas Forais, que indicavam seus direitos, como a cobrança e recebimento de taxas; nomeação de autoridades administrativas e judiciárias; e distribuição de terras, e obrigações, como a de arcar com as despesas da colonização (ANGELOZZI, 2009, p. 32-33). O sistema de capitanias foi um fracasso. Fatores como o desinteresse de muitos dos donatários e os altos custos de manutenção das possessões, em parte devido às grandes dimensões territoriais, dificultaram a consecução do seu objetivo. Vale dizer que apenas as capitanias de São Vicente e Pernambuco lograram algum êxito. Assim, em 1548, deu-se a criação de um governo geral, com a transplantação dos modelos administrativos e judiciários praticados na metrópole, e uma presença mais intensa dos colonizadores. Foram três os governadores-gerais: Tomé de Sousa; Duarte da Costa e Mem de Sá, em ordem cronológica (ANGELOZZI, 2009, p. 32-33). Marcando o início de um sistema fundiário que perdurou por cerca de três séculos, as sesmarias passam a ser o grande modelo de propriedade rural no Brasil colônia. Como aponta Laura Beck Varela, as sesmarias surgiram em Portugal, provavelmente em 1375, no reinado de D. Fernando I, com o objetivo de combater a profunda crise de abastecimento, acentuada pela Grande Peste de 1348-50, que assolou o campo, reduzindo drasticamente a mão de obra rural. Como também assolou o meio urbano, a diminuição do contingente desses trabalhadores fez com que os salários artesanais aumentassem o que estimulou o êxodo dos rurícolas para as cidades. Assim, a Lei Sesmarial, além de disciplinar a concessão das terras incultas, procurou também reprimir a ociosidade dos cidadãos e criar mecanismos de fixação do homem no campo. Nela se encontra “uma primeira consagração” do princípio da obrigatoriedade do cultivo (2005, p. 20-23). As sesmarias consistiam na atribuição de terras incultas (nunca antes cultivadas ou abandonadas) a alguém, que ficava com o encargo de cultivá-las, 2

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Com 50 léguas de costa, as capitanias possuíam uma enorme extensão. Diferentemente das demais, a doada a Martim Afonso de Souza contava com 100 léguas de costa (FERREIRA, 1994, p. 110).

Cabe mencionar um traço feudal no sistema, o que levou a um resultado diferente daquele obtido em Portugal. No Brasil tal traço feudal encaminhou para uma estrutura fundiária baseada na grande propriedade rural, contrariando ao que historicamente aconteceu em Portugal, e outras colônias, onde o sistema originou a pequena propriedade agrícola. Em suma, o florescimento da instituição das sesmarias provocou o nascimento do latifúndio ou grande propriedade agrícola ou pastoril. (1994, p. 110).

Embora Portugal tivesse tentado, por atos administrativos, fazer correções no sistema e impor um limite máximo de 3 (três) léguas quadradas para as sesmarias, os regulamentos administrativos não conseguiram impedir as “concessões contrárias ao interesse público” (MELO, 2008, p. 18). Ao impor aos futuros sesmeiros o pagamento de foro conforme a quantidade e qualidade da terra, e de dízimo à Ordem de cristo, A Real Ordem, de 27 de dezembro de 1695, consagra a influência dominialista no sistema sesmarial. Posteriormente, várias legislações especiais vão moldando a instituição na colônia, merecendo destaque o Alvará de 5 de outubro de 1795, que consolidou as várias disposições anteriores, e o Alvará de 22 de junho de1808, que atribuiu à Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, a confirmação5 das sesmarias (PEREIRA, J., 2003, p. 22-23). Ao citar Ruy Cirne Lime, José Edgard Pereira (2003, p. 20) informa que o primeiro documento de sesmarias no Brasil é a carta patente, dada a Martim Afonso de Souza, em 20 de novembro de 1530. 4 Marco Aurélio Bezerra de Melo cita que uma única sesmaria, pertencente a Brás Cubas, abrangia 30 (trinta) por cento do Estado de são Paulo (MELO, 2008, p. 17). 5 Embora os governadores e capitães-gerais tivesse atribuição para a concessão das sesmarias, estas somente se aperfeiçoavam com a confirmação régia. 3

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Brasil Imperial Por seu anacronismo em relação ao novo conceito de propriedade vindo dos países europeus desenvolvidos e pelas distorções do próprio sistema, que acabou por gerar inúmeras situações de posses irregulares, daqueles que estavam excluídos da possibilidade de receber as datas de terras, entre outros fatores, D. Pedro I, sob a recomendação de José Bonifácio de Andrada e Silva, põe termo ao regime de sesmarias por meio da Resolução de 17 de julho de 1822 (PEREIRA, J., 2003, p. 24-25). A extinção das sesmarias futuras não veio acompanhada de nenhuma legislação ou políticas públicas que pretendesse a redistribuição das terras ou planificar a estrutura fundiária do Império. Embora a Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março 1824, no seu art. 179, houvesse garantido o direito de propriedade como base dos direitos civis dos cidadãos (caput); a inviolabilidade de domicílio (inc. XII); os direitos de autor (inc. XXVI), e ter declarado a garantia da propriedade em toda a sua plenitude (inc. XXII), o que se verificou, na realidade, foi um período de total omissão quanto à política fundiária nacional6. No dizer de José Edgard Pereira: Diante da revogação das sesmarias e da manifesta preferência governamental pelo sistema de ocupação, viveu, o Pais, durante vinte e oito anos, ‘um regime quase caótico’, em que imperava o princípio que reconhecia valor à posse ou ocupação, o qual só viria a ser substituído em 1850, pela Lei de Terras. (2003, p. 28).

A aquisição por ocupação se tornou comum e acabou por privilegiar quem tinha mais poder econômico. Os “mais fortes”, ao ocuparem as melhores terras, muitas vezes expulsavam delas seus antigos possuidores. Com o agravamento desta situação, o governo tratou de elaborar uma legislação que disciplinasse a utilização e aquisição das terras públicas. Assim surgiu a Lei de Terras (AVVAD, 2009, p. 26). Ente outras coisas, a Lei n.º 601, de 18 de setembro de 18507, revalidou as sesmarias já constituídas, ainda que não houvessem cumprido qualquer das condições pelas quais foram concedidas, desde que se achassem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada habitual do antigo sesmeiro ou quem o representasse (art. 4.º). A mesma regra se aplicou para os concessionários. Os que possuíssem, de forma mansa e pacífica, primária ou derivada do primeiro ocupante, terras cultivadas ou com princípio de cultura, com morada habitual sua ou de quem os representassem, foram legitimados na posse (art. 5.º); Como indica José Edgard Pereira (2003, p. 26), o governo não pretendia realizar uma distribuição mais democrática das terras, até porque grande parte da população era composta por escravos, ou seja, por quem não tinham capacidade de direito para adquirilas. Ao que parece, seu intento era legitimar a posse dos que aqui residiam, e negar aos portugueses ausentes do país a propriedade das terras. 7 Dispunha sobre as terras devolutas do Império. 6

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determinou a demarcação das posses legitimadas, sob a pena de comisso (art. 8.º); determinou que os posseiros tirassem os respectivos títulos dos terrenos, sem os quais não poderiam hipotecá-los ou aliená-los por qualquer forma (art. 11); organizou um registro geral (registro do vigário ou paroquial) das terras possuídas por particulares (art. 13); Assegurou e disciplinou a alienação de terras públicas pelo governo (art. 14 e seguintes). Por fim, instrumentalizou a política imigratória de estrangeiros livres, a custo do Tesouro, para servirem de mão de obra em estabelecimentos rurais8. No dizer de Marco Aurélio Bezerra de Melo: O advento da lei de terras deixou marcas profundas na história brasileira, levando a travessia do país do feudalismo ao capitalismo, com a substituição do regime escravocrata pelo assalariado, tornando a terra mercadoria e constituindo uma nova classe social a quem é extremamente difícil chegar, no campo ou na cidade, ao sonho burguês da propriedade formal: os trabalhadores assalariados.

Outra norma jurídica de grande importância no Império foi a Lei n.º 1.237, de 24 de setembro de 1864, a Lei Hipotecária. Ela consolidou no ordenamento jurídico a nova propriedade, de viés absolutista e individual, ao permitir a sua constituição como garantia de outros negócios jurídicos. Ela e o Decreto n.º 3.453, de 26 de abril de 1865, estabeleceram o Registro Geral, que nos trouxe os princípios da especialização, da publicidade e da prioridade registral, acabando com as hipotecas ocultas. Também, “previu a criação do Banco Rural e Hipotecário e das sociedades de crédito real, responsáveis pela emissão de letras hipotecárias.” (VARELA, 2005, p. 174-175).

República Em 1890, pelo esforço do governo provisório, foram promulgados o Decreto-federal n.º 451-B, de 31 de maio, e o Decreto n.º 955-A, de 5 de novembro, que criaram o Registro Torrens (VARELA, 2005, p. 190). Mais tarde, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, dispôs sobre a competência exclusiva dos Estados para legislarem sobre impostos de transmissão sobre a propriedade imóvel (art 34, 29º), e garantiu o direito de propriedade no seu art. 72, caput e § 17. Contudo, foi a lei n.º 3.071, de 1.º de janeiro de 1916, o Código Civil Brasileiro, que mais detalhadamente disciplinou o direito de propriedade, consagrando os poderes inerentes ao domínio, no seu art. 524, e tratando de suas características, tipos, modos de aquisição e extinção da propriedade. Também, disciplinou a posse; o direito de vizinhança; direitos reais de fruição e garantia, e o registro de imóveis. 8

A Lei n.º 601, de 1850, incentivou a imigração europeia, ao destinar generosas porções de terras aos estrangeiros livres que se interessassem na produção agropastoril. Em contraponto, nenhuma facilitação foi dada os recém-libertos da escravidão, para a aquisição da pequena propriedade rural (MELO, 2008, p. 28).

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O Código Civil de 1916, previsto para ser organizado “quanto antes” no art. 179, inc. XVIII, da Constituição de 1824, levou setenta e dois anos, desde os esforços do Barão de Penedo junto ao Instituto da Ordem dos advogados Brasileiros, em 1845 à sua vigência, em 1.º de janeiro de 19179. Representou um avanço para a época, se comparado com as Ordenações Filipinas e as miríades de leis extravagantes que disciplinavam seus institutos jurídicos, sendo elogiado por grandes civilistas, de diversos países. Todavia, representou uma concepção de mundo que, com o estender de sua longa vigência10, foi se tornando anacrônica, sofrendo várias alterações e modulações interpretativas pelos tribunais. No dizer de Francisco Amaral:

interesse e o bem-estar social. A partir da Constituição de 24 de janeiro de 1967, fala-se em função social da propriedade. Atualmente, há inúmeros diplomas legais que disciplinam o direito propriedade, nos planos federal, estadual e territorial, distrital e municipal. No primeiro plano, entre várias normas jurídicas relevantes ao tema, merecem destaque: Decreto-Lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional; Decreto-Lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, que dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações; Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que institui o Código Penal; Decreto-Lei n.º 3.365, de 21 de julho de 1941, que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública; Decreto-Lei n.º 9.760, de 5 de setembro de 1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União; Lei n.º 4.132, de 10 de setembro de 1962, que trata da desapropriação por interesse social; Lei n.º 4.504, de 30 de novembro de 1964, o Estatuto da Terra; Lei n.º 4.591, de 16 de dezembro de 1964, a Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias; Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a Lei de Registros Públicos; Lei n.º 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que disciplina o parcelamento do solo urbano; Lei n.º 8.009, de 29 de março de 1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família; Lei n.º 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária; Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial; Lei n.º 9.514, de 20 de novembro de 1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências; Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, sobre direitos autorais; Lei n.º 9.636, de 15 de maio de 1998, que dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União; Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o vigente Código Civil; Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade; Lei n.º 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária dos assentamentos localizados em áreas urbanas, entre outras. Todos estes diplomas foram recepcionados ou promulgados sob os auspícios da Constituição Federal de 1988, que lhes serve de tábua axiológiconormativa para fins de interpretação e aplicação de suas normas.

O Código Civil Brasileiro é um código de sua época, elaborado a partir da realidade típica d uma sociedade colonial, traduzindo uma visão de mundo condicionado pela circunstância histórica, física e étnica em que se revela. Sendo a cristalização axiológica das ideias dominantes no seu tempo, principalmente nas classes superiores, reflete as concepções filosóficas dos grupos dominantes, detentores do poder político e social da época, por sua vez determinadas, ou condicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais. [...] Sob o ponto de vista ideológico, consagrava os princípios do liberalismo das classes dominantes, defendido por uma classe média conservadora que absorvia contradições já existentes entre a burguesia mercantil, defensora da mais ampla liberdade de ação, e a burguesia agrária, receosa dos efeitos desse liberalismo. (1998, p.125-126).

As Constituições posteriores continuaram a disciplinar o direito de propriedade, garantindo-o e regulando questões como: competência para legislar sobre impostos de transmissão e territoriais; desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social; inviolabilidade do domicílio; propriedade autoral; requisição da propriedade particular pela autoridade pública em casos de perigo eminente, etc. Diferentemente dos demais diplomas legais, as Constituições de 193411 (art. 113, 17); 1946 (art. 147, caput); 1967 (art. 157, III) e a Emenda Constitucional n.º 1, de 1969 (art. 160, III), além de garantirem o direito de propriedade, exigem que o mesmo deva ser exercido em consonância com o Entre outros projetos, vitorioso foi o de Clóvis Beviláqua, de inspiração no BGB (Bürguerliches Gesetzbuch) alemão. Contudo, sua tramitação entre as Casas Legislativas durou cerca de onze anos. 10 Oitenta e cinco anos, de 1917 a 2002. 11 A Constituição de 10 de novembro de 1937, outorgada pelo presidente Getúlio Vargas, assegura o direito de propriedade no seu art. 122, caput. No art. 135, ao dispor sobre a ordem econômica, dispõe que a iniciativa individual deve estar de acordo com a ordem pública. Também, que o Estado poderia legitimamente intervir na economia, quando fosse necessário suprir as deficiências da iniciativa individual, entre outras causas de interesse nacional. 9

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Conclusão Embora goze de maior estabilidade, em comparação com outros ramos do direito civil, o direito de propriedade não é imune às grandes mutações políticoeconômicas da ordem social. Como exemplo, a propriedade privada brasileira dos meados do séc. XX, regida pelo Código Civil de 1916 não pode mais se comparar à propriedade privada funcionalizada dos dias atuais, garantida e modificada pela Constituição Federal de 1988, e disciplinada pelo Código Civil de 2002 e outras leis extravagantes.

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Evolução Histórico-normativa do Direito de Propriedade Privada no Brasil

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Com a ameaça da ocupação das terras recém-descobertas da Coroa pelos Estados não católicos, que desprezavam os tratados e bulas papais que dividiam o Novo Mundo entre as Coroas portuguesa e espanhola, Portugal passa a intensificar sua presença no Brasil e a estimular seu povoamento. Destarte, o direito de propriedade do Brasil colonial, fundamentado pelas Ordenações Manuelinas e, principalmente, Filipinas, e garantido pelas Cartas de Doação, Cartas Régias e Forais, num primeiro momento surge como meio de exploração, demarcação e estímulo à vinda e fixação dos primeiros colonizadores. O sistema de capitanias hereditárias, nos moldes de outras colônias, como cabo verde e açores, é empegado. Contudo, por uma série de fatores, como o alto custo de manutenção e o desinteresse dos donatários, o sistema não prospera, restando o parcelamento do solo regulado principalmente pelo regime de sesmarias. Às vésperas da Proclamação da Independência, o regime sesmarial é abolido, pela Resolução de 17 de julho de 1822. O Império Brasileiro passa então por um apagão fundiário, onde a falta de regulamentação da aquisição e alienação da propriedade imóvel rurícola permite o estabelecimento da cultura da posse e do esbulho possessório dos mais abastados sobre os menos favorecidos, que se perdura por quase trinta anos, até a vigência da Lei de Terras, de 1850. A disciplina jurídica do direito de propriedade ganha maior atenção na fase republicana, com a edição do Código Civil de 1916, e outras leis extravagantes. As Constituições Federais sempre garantiram o direito de propriedade, mas foi com a Constituição Cidadã de 1988 que o direito, além de ser garantido, sofreu a sua maior transformação, passando a não mais ser tratado como um direito real unitário e absoluto, nos moldes do liberalismo oitocentista, mas como um direito-função, onde seu exercício se condiciona e ela se legitima a partir da função social que deve cumprir.

MARTIGNETTI, Giuliano. Propriedade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (coords). Dicionário de política. 7. ed. Brasília: UNB, 1998, v. 2, p. 1.021-1.035. MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Legitimação de posse: dos imóveis urbanos e o direito à moradia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. PEREIRA, José Edgard Penna Amorim. Perfis constitucionais das terras devolutas. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

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Ação Civil Pública como forma de combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil Carla Sendon Amejeiras Veloso1 Inês Lopes de Abreu Mendes de Toledo2 Resumo O presente trabalho elabora reflexões sobre a ação civil pública como mecanismo judicial de combate a escravidão contemporânea em nosso país. A análise terá como escopo a erradicação do trabalho escravo no Brasil. A abordagem se dará através do estudo da origem, competência, finalidade, objetivo, legitimidade, ajuizamento, bem como penalidades impostas e efeitos da coisa julgada desta ação judicial. A justificativa do tema se dá pela relevância social da questão que viola os Direitos Fundamentais dos indivíduos, e, pela relevância na demonstração da atuação do Ministério Público do Trabalho no combate a esta forma desumana de trabalho. A relevância do assunto também pode ser demonstrada uma vez que para competirem com os preços de mercadoria internacionais constatamos tanto no âmbito urbano como rural a prática criminosa de exploração de mão de obra. Palavras-chave: Ação civil pública; escravidão; direitos humanos; ministério público; rrradicação. Abstract This paper elaborates thoughts on the civil action and judicial mechanism to combat modern-day slavery in our country. The analysis will have scoped the eradication of slave labor in Brazil . The approach will be through the study of the origin, competence, purpose, goal, legitimacy , prosecution and penalties imposed and the effects of res judicata this lawsuit. The justification of the topic is given to the social relevance of the issue which infringes the fundamental rights of individuals, and the importance in the statement of operations of the Ministry of Labor in combating this inhumane form of work . The relevance of the subject can also be demonstrated once to compete with the prices of international merchandise found in both urban and rural areas within the criminal practice of labor exploitation. Keywords: civil action public; slavery; human rights; public prosecution; eradication.

Introdução O presente artigo possui como finalidade demonstrar a atuação da ação civil pública como mecanismo jurisdicional de erradicação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Para atingir esse objetivo opta-se por realizar pesquisas de caráter bibliográfico e científico. 1 2

Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP. Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP.

Ação Civil Pública como forma de combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil

A Ação Civil Pública Trabalhista que iremos abordar terá como foco a erradicação do trabalho escravo contemporâneo, sendo a análise voltada para os direitos metaindividuais difusos, coletivos e individuais homogêneos. Vale asseverar, que o direito do trabalho, surgiu, em sua concepção como um direito da classe dos trabalhadores, sendo certo afirmar que as demandas iniciais possuíam caráter individual ou coletivo, através da representação sindical. Excetuando o direito sindical não haviam outros mecanismos de tutela coletiva. Em nosso direito pátrio constata-se que a Lei 4.717/65 instituiu a ação popular significando grande avanço à tutela dos chamados direitos metaindividuais, ou seja, aqueles direitos que transcendem o indivíduo para alargar-se de formas, sempre em grupos, definidos ou não. Entretanto, considerando-se que a ação popular destina-se à defesa do patrimônio público e que a sua legitimidade para propô-la é do cidadão, que em regra é a parte hipossuficiente na relação de trabalho, na esfera trabalhista ela foi restringida ou quase anulada3. Desta sorte, cumpre asseverar, que a Ação Civil Pública, inserida através da Lei 7.347/85, e, ampliada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e pelo Código de Defesa do Consumidor através da Lei 8.078/90 preencheram a lacuna na defesa dos interesses metaindividuais, com ampla aplicação no direito do trabalho. Nas lições de Maurício Godinho Delgado: “As ações metaindividuais não se dirigem, portanto, à tutela de qualquer tipo de pretensão, em face de qualquer tipo de interesse e direito, em decorrência de qualquer tipo de dano. É fundamental que haja certo nexo de massividade em torno do dano, do interesse, do direito e da pretensão objetivados. Tal nexo de massividade é encontrado nos chamados interessses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.”4 A escolha do tema se justifica por representar o trabalho análogo a escravidão uma ameaça à ordem interna Estatal, caracterizando-se frontal violação aos direitos humanos, sendo, necessário uma abordagem sobre este instrumento jurídico eficaz de proteção aos interesses metaindividuais. Por se tratar de uma pesquisa bibliográfica e científica, opta-se por trabalhar com doutrinadores, teóricos e estudiosos que possam contribuir para a discussão de forma crítica com a expectativa de superar o senso comum sobre o fenômeno do combate a escravidão através da Ação Civil Pública, assim como análise de casos concretos.

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O TRT da 10ª Região declarou, inclusive, a incompetência da Justiça do Trabalho para conhecer da ação popular com finalidade de anular licitação de mão de obra temporária da Caixa Econômica Federal ante o argumento de que na Justiça do Trabalho tal questionamento deveria se dar via ação civil pública e não ação popular, que teria a Justiça Comum como competente para o seu julgamento (TRT 10ª Região, 1 Turma, RO:00992-206-009-10). DELGADO, Maurício Godinho. Direito Coletivo do trabalho. 4. ed. São Paulo, Ltr., 2011, p. 247.

Carla Sendon Amejeiras Veloso e Inês Lopes de Abreu Mendes de Toledo

Considerações iniciais Origem A Ação Civil Pública surge no ordenamento jurídico processual brasileiro através do advento da Lei Complementar número 40/1981 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), de forma restritiva, e, ampliada com a criação da Lei 7.347, de 24 de julho de 1885. O atual texto foi integrado pelas modificações inseridas pelas normas processuais da Lei 8.078/1990 que estabeleceu o Código de Defesa do Consumidor em nosso sistema jurídico. Vale aduzir, que as legislações pretéritas foram recepcionadas pela Carta da República de 1988 em seu artigo 129, inciso III, conferindo legitimação ativa ao Ministério Público, bem como utilizando-a como instrumento de cidadania, destinado à defesa de quaisquer interesses metaindividuais da sociedade. Um ano após a promulgação da referida carta, a lei n° 7.853, de 24 de outubro de 1989, previu a tutela jurisdicional coletiva ou difusa para atender os anseios dos portadores de deficiência, também o fez a lei n° 7.912, de dezembro de 1989 que tratava de Ação Civil Pública por danos causados aos investidores no mercado de valores. Tornando-se assim precedentes preciosos para a tutela total dos direitos da coletividade. Contudo, foi somente com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, foi inserido, em nosso ordenamento jurídico, os conceitos legais de interesses difusos e dos interesses coletivos que oportunamente serão abordados no decorrer do trabalho. A Lei Complementar número 75/1993, em seu artigo 83, estabeleceu o cabimento na esfera trabalhista da Ação Civil Publica, verbis: 5 “Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: I - (.....) II- (....) III- promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos.” Observa-se, portanto, que a Justiça do Trabalho, possui ampla competência para processar e julgar esta demanda, sendo, relevante, destacar que ela possui um papel fundamental na punibilidade das demandas que envolvem a escravidão contemporânea.

Conceito e competência da Justiça do Trabalho A Ação Civil Pública, disciplinada pela Lei n.º 7.347/85, é conceituada por Hely Lopes Meirelles como: 5

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp75.htm, visitado em 06/01/2016.

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Ação Civil Pública como forma de combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil

“... instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, protegendo os interesses difusos da sociedade. Não se presta a amparar direitos individuais, nem se destina à reparação de prejuízos causados por particulares pela conduta, comissiva ou omissiva, do réu”.6 Gianpaolo Poggio Smanio, aduz que a Ação Civil Pública “é aquela que tem por objeto os interesses transindividuais ou metaindividuais”.7 Hugo Nigro Mazzini 8, justifica o uso da expressão Ação Civil Pública em contraposição a Ação Penal Pública que é competência exclusiva do Ministério Público. Sua designação é justificada tanto pela titularidade da ação, como pelo seu objeto que é a defesa de interesse público, ou seja, interesse difuso especificamente. Vale aduzir, que tanto a Lei n. 7.347/85, como as Leis posteriores, e a própria Constituição, ao disciplinarem a “ação civil pública”, não a restringiram à iniciativa do Ministério Público. Ação civil pública passou a significar não só a ação ajuizada pelo Ministério Público, como a ação proposta por outros legitimados ativos – pessoas jurídicas de direito público interno, associações e outras entidades – desde que seu objeto fosse a tutela de interesses difusos ou coletivos (agora um enfoque subjetivo-objetivo, baseado na titularidade ativa e no objeto específico da prestação jurisdicional). O conceito de ação civil pública alcança hoje, portanto, mais que as ações de iniciativa ministerial; é útil, contudo, dar atenção especial a estas últimas, porque, ordinariamente, é o Ministério Público quem toma a iniciativa de sua propositura. Em se tratando das ações de que cuida o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), em regra seu ajuizamento cabe aos órgãos do Ministério Público investidos nas funções de Curadoria de Menores (os quais, nas novas Leis Orgânicas do Ministério Público, certamente oficiarão perante os Juízes da Infância e da Juventude, sendo provável que venham a chamar-se os Curadores da Infância e da Juventude, cf. arts. 146 e 148, IV, do Estatuto).9 Ibraim Rocha esclarece acerca da competência material ser da Justiça do Trabalho competente para apreciar as ações civis públicas para conciliação e julgamento ligadas aos interesses metaindividuais, envolvendo trabalhadores e empregadores, Administração Pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União decorrentes da relação de trabalho.10 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data. São Paulo, Editora Malheiros, pág.152. 7 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses difusos e coletivos, 3ªedição. São Paulo: Editora Atlas S.A, 1999 pág 110. 8 MAZZILLI, Hugro Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p 62. 9 http://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/acpnoeca.pdf, visitado em 06/01/2016. 10 LOTTO, Luciana Aparecida.. Ação Civil Pública Trabalhista contra o Trabalho Escravo no Brasil. 2ª Ed. São Paulo. Ltr. 2015., pág. 100. 6

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Assim, podemos afirmar que caso a ação civil pública tenha por objeto controvérsia decorrente de relação de trabalho, a competência para apreciação será da Justiça do Trabalho, por expressa previsão constitucional através do artigo 114, CRFB, inserido com a EC 45/20014. Por se tratar de competência em razão da matéria, temos que esta é absoluta. Desta forma, serão da competência da Justiça do Trabalho as Ações Civis Públicas que visem tutelar direitos metaindividuais trabalhistas. Insta mencionar que tais ações coletivas têm sido amplamente utilizadas na seara trabalhista, eis que nas relações de trabalho encontramos uma enorme quantidade de lesões em massa, principalmente em razão de ser o empregador, essencialmente, um ser coletivo, de modo que seus atos provocam consequências amplas, podendo lesar, ao mesmo tempo, diversos, milhares de trabalhadores. Nesse diapasão, vale exemplificar no campo de aplicabilidade da ação civil pública na Justiça do Trabalho os casos em que se visa tutelar o meio ambiente do trabalho e a saúde do trabalhador, o combate ao trabalho infantil e a regularização do trabalho do adolescente, combate às discriminações nas relações de trabalho, ao trabalho escravo, às terceirizações ilícitas, cooperativas de trabalho fraudulentas, assédio moral, casos de greve e de lime simulada. Observa-se que na seara trabalhista, a importância da ação civil pública destaca-se ainda mais, tendo em vista a hipossuficiência do trabalhador, o qual, diante de ameaças de desemprego, não teria condições de bem tutelar seus direitos. Nesse mesmo sentido, Raimundo Simão de Melo: “Há, contudo, outros fatores inibidores da defesa de tais direitos, como ocorre, por exemplo, no Direito do Trabalho, em que, além da subordinação econômica e da hipossuficiência presumida do trabalhador, sofre este ameaças do desemprego e até mesmo as retaliações praticadas por empregadores inescrupulosos em represália pela busca de uma reparação perante o Poder Judiciário Trabalhista. Por essas e outras razões verificadas em cada caso concreto, a Ação civil pública trabalhista representa uma adequada forma de acesso do cidadão ao verdadeiro direito de ação, que, individualmente, vem, em muitos casos, tornando simples retórica o comando do inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, que diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. Por isso, é considerada essa ação como um instrumento ideológico de satisfação dos direitos e interesses fundamentais da sociedade moderna” (2008, p. 89/90). Podemos concluir a temática do cabimento afirmando a extrema importância da ação civil pública na seara trabalhista, eis que é nessa seara que mais encontramos lesões em massa e que, normalmente, atingem a própria saúde e integridade física dos trabalhadores. Por isso a necessidade de um instrumento célere e eficaz, capaz de conferir a tutela jurisdicional adequada aos direitos metaindividuais decorrentes de relação de trabalho.

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Objeto

Atuação do Ministério Público do Trabalho

O artigo 3º da Lei 7.347/85 dispõe que a ação civil pública poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, ao passo que o artigo 11 da mesma lei prevê que na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor. Saliente-se que foi com o advento do Código de Defesa do Consumidor, o qual acrescentou o inciso IV ao artigo 1º da Lei 7.347/85, que a ação civil pública passou a constituir o meio apto para a tutela de qualquer outro interesse difuso ou coletivo. O artigo 83 do Código de Defesa do Consumidor, aplicável à ação civil pública, dispõe que, para a defesa dos direitos e interesses por ele protegidos, são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela. Assim, como a lei não traz qualquer restrição, podemos afirmar que a ação civil pública pode ter por objeto um comando condenatório, declaratório, cautelar, mandamental, constitutivo positivo, constitutivo negativo, de liquidação, de execução ou qualquer outra espécie que seja necessária à tutela dos interesses metaindividuais em questão. Deste modo, a ação civil pública pode ser utilizada para se obter uma decisão cominando obrigação de fazer, não fazer ou pagar, sempre com cominação, ainda, de astreinte em caso de descumprimento da ordem judicial. O dano moral coletivo já encontra fundamento legal, conforme se depreende do artigo 6º, incisos VI e VII do Código de Defesa do Consumidor, sendo que, na esfera do direito do trabalho, temos tidos diversas condenações em dano moral coletivo. Neste mesmo sentido, Raimundo Simão de Melo: “A esfera do Direito do Trabalho é bastante propícia para eclosão do dano moral, como vem ocorrendo com frequência e realmente reconhecem a doutrina e a jurisprudência, inclusive no ambiente laboral, em que são mais comuns as ofensas morais no sentido coletivo sctricto sensu. No Direito do Trabalho não são raros os casos de ocorrência de danos morais coletivos, por exemplo, com relação ao meio ambiente do trabalho, ao trabalho análogo à condição de escravo, ao trabalho infantil, à discriminação de toda ordem (da mulher, do negro, do dirigente sindical, do trabalhador que ajuíza ação trabalhista, do deficiente físico etc.), por revista íntima etc (2008, p. 105). Quanto à possibilidade de se ter por objeto a reparação de direitos individuais homogêneos, tal tema será tratado mais adiante, no capítulo final do presente estudo. Por fim, insta salientar que a própria Lei 7.347/85, em seu artigo 12, autoriza a concessão de mandado liminar pelo juiz, com ou sem justificação prévia, a pedido da parte interessada ou até mesmo ex officio. Pela própria característica dos direitos metaindividuais, os pedidos de tutela de urgência são rotineiros, sendo que as tutelas de urgência pretendidas podem ser em relação ao próprio direito material vindicado (tutela antecipada) ou para proteção do processo (medida cautelar).

O Ministério Público do Trabalho, integrante do Ministério Público da União juntamente com o Ministério Público Federal, Ministério Público Militar e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, é um órgão essencial à justiça, atuando na defesa dos interesses públicos primários, sempre que tais interesses ou lesões/ameaças de lesões a estes decorram de relações de trabalho. Luís Antônio Camargo de Melo assim define o Ministério Público do Trabalho: “Alçado à sua plenitude com a Magna Carta de 1988, como instituição comprometida com a democracia e justiça social, o Ministério Público do Trabalho, assim como os demais ramos do Ministério Público da União, atua de forma independente e imparcial na defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, desvinculado dos interesses particulares e estatais. O tratamento conferido pelo art. 127 da Constituição Federal foi claro e preciso: instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (2012, p. 21). O Ministério Público do Trabalho, ao exercer suas atribuições constitucionalmente definidas, atua tanto na esfera judicial quanto na extrajudicial. No tocante à atuação extrajudicial, vide a Lei Complementar 75/93, artigo 84. A atuação extrajudicial do Ministério Público do Trabalho vem crescendo mais a cada dia, sendo de suma importância, haja vista que tal modalidade de atuação, além de célere, tem se mostrado altamente eficaz na solução de diversos problemas. A eficácia de tal atuação deve-se especialmente ao fato de que o descumpridor da legislação protetiva do trabalhador envolve-se diretamente nas tratativas e acordos concernentes à regularização de sua conduta às determinações legais, que representam o mínimo de proteção à pessoa do trabalhador e a seus direitos coletivos. Cumpre ressaltar que na solução de litígios por meios extrajudiciais não há obrigatoriedade de ajuste de conduta, a adesão é espontânea. Não há a possibilidade de o Parquet trabalhista, de per si, obrigar ao cumprimento da legislação protetiva, o que significa que em caso de resistência, será acionado o Judiciário para a resolução da questão e imposição da observância da legislação. Exatamente por ser mais célere e mais econômica do que a atuação judicial, os meios extrajudiciais sempre preferem aos judiciais, de modo que, diante de uma situação em que seja necessária a intervenção do Ministério Público do Trabalho, deve este órgão, primeiramente, verificar a possibilidade de solução extrajudicial e, somente em não sendo esta eficaz, deverá o  Parquet  Laboral buscar a solução pela propositura da ação judicial cabível. Além das funções extrajudiciais básicas previstas no artigo supra, temos também o papel do Ministério Público do Trabalho como articulador social. Nos dizeres de Carlos Henrique Bezerra Leite “(...) desponta no seio da instituição uma outra forma de atuação administrativa, que é a do Ministério Público do Trabalho como agente de articulação social. Nesse caso, o Parquet Laboral atua de forma imediata, orientando os interessados por meio de audiências públicas,

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Ação Civil Pública como forma de combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil

Carla Sendon Amejeiras Veloso e Inês Lopes de Abreu Mendes de Toledo

palestras, workshops, reuniões setoriais etc., visando a defender, de forma mediata, o cumprimento efetivo da ordem jurídica” (2011, p. 127).               Na busca de ajuste de conduta de pessoa, seja física ou jurídica, que desrespeita a legislação protetiva do trabalhador, atua o Ministério Público do Trabalho, antes de acionamento do Judiciário, por meio de investigações levadas a cabo por inquérito civil, que pode resultar na propositura de assinatura de TAC – Termo de Ajuste de Conduta, documento que, em caso de descumprimento, pode ser executado diretamente, pelo fato de ser título executivo extrajudicial. O TAC comporta obrigações de fazer e não fazer, multa e pagamento de dano moral, sendo que os valores referentes aos pagamentos em dinheiro podem ser revertidos diretamente em benefício da comunidade, pois há a possibilidade de o procurador do trabalho direcionar o montante a instituições sem fins lucrativos que atuam na profissionalização de jovens ou adultos, em programas de proteção à criança e adolescente, no resgate de moradores de rua, com abrigo e ensino profissional, entre outros. Já judicialmente, a atuação do Ministério Público do Trabalho pode se dar na qualidade de parte ou de custos legis. O artigo 83 da Lei Complementar 75/93 trata de tais modalidades de atuação. Considerando que a legitimação exclusiva do Ministério Público ocorre única e exclusivamente para a propositura de ação penal e que a Justiça do Trabalho não possui competência criminal, verifica-se que a legitimação para atuação judicial do Ministério Público do Trabalho será sempre concorrente. Não obstante a ampla atuação em sede judicial, a realidade é que, atualmente, a Ação civil pública constitui o principal meio de ação do Ministério Público do Trabalho em âmbito judicial, haja vista que é o meio adequado a tutelar direitos transindividuais, podendo trazer em seu bojo pedido de cominação de obrigações de fazer, não fazer e pagar quantia.

O artigo 627, da CLT, dispõe sobre a atuação preventiva do Ministério do Trabalho e Emprego, estabelecendo o “critério da dupla visita”, instrumento por meio do qual a fiscalização do trabalho instrui os responsáveis sobre o fiel cumprimento das normas trabalhistas. Segundo orientação celetista, a atuação repressiva da fiscalização do trabalho, com a aplicação de multa, deve ocorrer prioritariamente na segunda visita, mas desde que comprovado que os sujeitos contratantes não respeitaram as normas de proteção ao trabalho que foram esclarecidas, previamente, na primeira visita (art. 627, CLT)29. De toda forma, entende-se que o “critério da dupla visita” não se aplica às situações de trabalho forçado dada a necessidade urgente de seu combate, especialmente porque tal violação afronta um dos direitos mais inestimáveis do ser humano, a liberdade. Em todos os casos em que o auditor fiscal do trabalho concluir pela violação de normas trabalhistas, deverá lavrar auto de infração, imputando responsabilidade ao sujeito infrator, nos termos do art. 628, da CLT. Pode-se afirmar que o objetivo institucional do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é “promover o desenvolvimento da cidadania nas relações de trabalho, buscando a excelência na realização de suas ações, visando à justiça social”.12 Quanto à erradicação do trabalho forçado e degradante, o art. 12, II, do Regimento Interno do MTE/MG, enuncia que: “À seção de fiscalização do trabalho compete: [...] II – combater o trabalho escravo, infantil, e quaisquer outras formas degradantes”. Para a concretização da missão institucional do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente com relação ao trabalho em condições análogas à de escravo, foi criado, repita-se em 1995, o GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, subordinado à Câmara de Políticas Sociais do Conselho de Governo e coordenado pelo próprio MTE. Trata-se de grupo móvel de fiscalização concebido para apurar denúncias e suspeitas de ocorrência de trabalho forçado e degradante. Com o mesmo desígnio – combate e erradicação ao trabalho em condições análogas à de escravo – foi instituído o GEFM, Grupo Especial de Fiscalização Móvel.

Os instrumentos de atuação do Ministério do Trabalho e Emprego O Ministério do Trabalho e Emprego, em sua atuação preventiva ou repressiva, ocupa-se da fiscalização das relações de trabalho, buscando o fiel cumprimento da legislação trabalhista, garantindo sua eficácia, especialmente por meio de reposições patrimoniais (art. 626, CLT). Esta postura da fiscalização, balizada por lei, denota a compreensão de que o descumprimento dos preceitos trabalhistas viola não apenas o direito específico e particularizado de cada trabalhador a desenvolver relações dignas de trabalho, mas também a própria ordem pública, que rechaça a figura dos trabalhos degradantes e forçados. Por essa razão é que ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA identifica, na relação de trabalho, “um caráter ao mesmo tempo privado-público”, na qual se considera “não somente o interesse subjetivo das partes, mas também o interesse social do cumprimento da lei trabalhista”11.

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11

SILVA, Antônio Álvares. Competência Penal Trabalhista. São Paulo: LTr, 2006. p.94.

Dados atuais sobre o trabalho escravo O trabalho escravo contemporâneo é uma realidade a qual milhares estão sujeitos ao redor do mundo. São homens, mulheres e crianças que mudam de trabalho, de cidade, de estado, e até mesmo de país, em busca de uma vida melhor, mas acabam encontrando apenas sofrimento e desilusão. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT atualmente, na América Latina e Caribe, diversos governos estão agindo seriamente contra o trabalho forçado. O Brasil tomou medidas fortes contra o trabalho forçado na agricultura e em acampamentos de trabalho afastados. O 12

Missão institucional do Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível no site http:// www.mte.gov.br Acesso em 22 de outubro de 2015.

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Ação Civil Pública como forma de combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil

Carla Sendon Amejeiras Veloso e Inês Lopes de Abreu Mendes de Toledo

governo do Brasil assumiu oficialmente a existência de trabalho forçado perante a OIT em 1995. Desde então, tem combatido o problema com muita visibilidade. Um Plano Nacional de Ação contra o Trabalho Forçado foi implantado em março de 2003. Recentemente, vários outros governos latino americanos decidiram confrontar o trabalho forçado, especialmente em seus setores agrícolas. Bolívia, Peru e Paraguai deram passos importantes para desenvolver, juntamente com as organizações de trabalhadores e empregadores novas políticas para combater o trabalho forçado. Existem cerca de 1,3 milhões de trabalhadores forçados na América Latina e no Caribe, de um total de 12,3 milhões em todo o mundo; 75% dos trabalhadores forçados na América Latina são vítimas de coerção para exploração do trabalho, enquanto o restante das vítimas estãou ou em trabalho forçado pelo estado ou na exploração sexual comercial forçada; 250.000 trabalhadores forçados, ou 20% do número total na região, foram traficados internamente ou através das fronteiras; O rendimento estimado derivado do tráfico para trabalho forçado na América Latina e Caribe é de US$ 1,3 bilhões.13 A escravidão pode ser conceituada como recrutamento de terceiros, pela fraude ou coação com propósitos de exploração. É uma grave violação dos direitos humanos e deve ser combatida de forma sistêmica pelo Estado. A finalidade maior da escravidão contemporânia é o lucro, ou qualquer outro benefício, obtido por meio de alguma forma de exploração da vítima, mercantilizando sua força de trabalho, a integridade física e a principalmente a dignidade. Serão analisados, também, os instrumentos jurídicos-institucionais do Ministério Público do Trabalho, tais como o termo de ajuste de conduta enquanto instrumento de atuação extrajudicial e a Ação Civil Pública que mostra-se como mecanismo eficaz no combate ao trabalho escravo contemporâneo.

Sob o prisma jurídico, vale afirmar que escravizar é violar direitos fundamentais difusos da sociedade, infringindo o princípio constitucional. Pode-se verificar que nosso país possui várias ferramentas de erradicação do trabalho escravo, tendo na esfera administrativa com o Plano de Erradicação do Trabalho Escravo, como na esfera judidicial/extrajudicial com a ação civil pública, inquérito judicial e Termo de Ajuste de Conduta. Mister salientar, que a Ação Civil Pública será interposta após a abertura de Inquérito Civil, com a utilização do Termo de Ajuste de Conduta, ou seja, como último instrumento para combater os escravocratas contemporâneos, tanto no âmbito rural como urbano. Assim, na ousada proposta de enfrentar esse desafio, preza-se pela atuação do Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho e Emprego, dentro de suas prerrogativas, como um dos principais mecanismos jurídico-institucionais orientados à erradicação das modalidades de escravidão contemporânea, valendo destacar os Termos de Ajuste de Conduta e as Ações Civis Públicas. Devemos encerrar destacando que a Ação Civil Pública Trabalhista contra o trabalho escravo no Brasil é eficaz na medida de sua propositura, ou seja, não é eal isoladamente, capaz de coibir tal prática ilegal, e sim mediante todo o complexo de normas constitucionais e infraconstitucionais, passando a ser mais eficaz na conscientização da classe trabalhadora acerca de seus direitos e maior na aplicação de penalidade aos infratores desta chaga nacional.

Considerações finais Apesar de todos os esforços constata-se a existência em pleno século XXI de trabalho escravo contemporâneo em nosso território nacional constatamos que mais de 125 anos após a abolição da escravatura, o Brasil ainda combate uma versão contemporânea de escravidão. A presente pesquisa constatou que o trabalho escravo é uma chaga social que perpassa a história da humanidade desde os primórdios até os dias atuais. A existência desta forma tão degradante de exploração humana suscita o desenvolvimento de ações correlacionadas tanto na esfera jurídica, como na social, que sejam capazes de combatê-lo em favor da promoção de um trabalho decente, digno, respeitado e louvável pelo todo social, vez que construtor da própria identidade humana. 13

http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/relatorio/america_latina_caribe.pdf.

514 Acesso em 29 de outubro de 2015.

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Ação Civil Pública como forma de combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil

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O Poder Letal da Pistola Finca pinos Armenia Cristina Dias Leonardi1 Carla Sendon Ameijeiras Veloso2 Resumo O artigo pretende analisar a possibilidade da relação entre a ferramenta denominada “pistola finca pinos”, utilizada na construção civil, e a ocorrência de homicídios ou acidentes através de seu manuseio. Serão examinados os tipos, as características e os mecanismos da pistola finca pinos paralelamente às características da arma de fogo, com o objetivo de comprovar sua letalidade e a possibilidade da ocorrência do crime de homicídio. Serão verificadas as normas regulamentadoras da venda e manuseio da ferramenta, assim como a análise de casos de mortes decorrentes do uso da pistola finca pinos e a atenção policial conferida a cada caso: homicídio ou acidente? Palavras-chave: Finca pinos; crimes; letalidade. Abstract Thearticle analyzesthe possibilityof the relationship betweentool called”gun fincapins”, usedin construction, and the occurrence of accidents or homicides through handling. Typeswill be examined, the features and the pins finca gunme chanisms along side the fire arm characteristics, in order to prove its lethality and the possibility of occurrence of the crime of murder. The regulatory rules of the sale and hand lingtool will be checked as well as the analys is of cases of deaths resulting from the use of the gun finca pins and police attention given to each case: murderor or accident? Keywords: Fincapin; crimes; lethality.

Introdução O crescimento dos índices de violência em nossa sociedade atualmente desperta a curiosidade e a necessidade de verificação de novos instrumentos utilizados para a prática de crimes. A pistola finca pinos é uma ferramenta desenvolvida para a construção civil, com o objetivo de perfuração e fixação de superfícies duras com a utilização de cargas (pinos) de vários formatos, mediante explosão de pólvora. Este estudo pretende mostrar que a ferramenta finca pinos é equiparada a uma arma de fogo e possui poder letal cujos efeitos, excluídos os acidentes de trabalho acarretados pelo mau uso do instrumento no próprio corpo do empregado, causados na vítima não podem ser considerados simples acidentes. Docente da Universidade Estácio de Sá e Mestranda em Direito da Universidade Católica de Petrópolis 2 Docente da Universidade Estácio de Sá e Mestranda em Direto da Universidade Católica de Petrópolis 1

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O Poder Letal da Pistola Finca pinos

Armenia Cristina Dias Leonardi e Carla Sendon Ameijeiras Veloso

Será demonstrado o mecanismo da pistola finca pinos e que por meio dele não há possibilidade de lesão sem a imobilização da vítima. Para entender a possibilidade de uso de uma ferramenta da construção civil como instrumento de crime, esta pesquisa fará breves comentários acerca dos conceitos e classificações das armas de fogo e as especificações da pistola finca pinos. Será verificada a existência de normas regulamentadoras para a venda desta ferramenta, dado o seu poder de dano. A conceituação de tipos penais, especificamente o homicídio, e seus elementos também serão estudados, uma vez que a definição de dolo é essencial para a conclusão da pesquisa. Ao equiparar e classificar a pistola finca pinos como uma arma de fogo e admiti-la como instrumento causador de homicídios, será exposto o conceito de prova, prova pericial, principalmente, o exame de corpo de delito. Serão analisadas também as lesões causadas pela pistola finca pinos, cujo disparo equipara-se ao tiro encostado, com a descrição de alguns casos ocorridos e transmitidos pela mídia. O objetivo deste artigo não é exaurir o assunto, mas ressaltar a necessidade de elaboração de normas de controle para a venda da pistola finca pinos e provocar a discussão a respeito das mortes causadas por esta ferramenta, pois estas ocorrências não devem ser consideradas acidentes e obter maior atenção das autoridades policiais.

Independente da classificação da pistola finca pinos como arma de fogo, apesar de ser irrefutável esta adequação, deve ser considerada pelo Direito Penal como “arma” se utilizada para a prática de tipos penais.

Armas de fogo O estudo da pistola finca pinos para apuração do seu poder letal, inicialmente, requer a explanação da conceituação, características e classificação das armas de fogo para permitir a equiparação das características da ferramenta, objeto desta pesquisa, às características de uma arma de fogo. Para o Direito Penal todo objeto que pode causar danos ou ameaça “à incolumidade física da vítima e denota periculosidade” (MIRABETE, 1999), tipifica o fato e qualifica o crime:

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Foram consideradas como “arma”, por exemplo, “uma garrafa empunhada pelo agente” (RJDTACRIM 10/146), “uma chave de fenda” (RJDTACRIM 9/82) e “um pedaço de madeira” (RJDTACRIM 10/152). Pouco importa para o Direito Penal, porém, se se trata de arma própria ou imprópria, proibida ou não. Assim, não se distingue para qualificar o roubo uma “faca” ou um “estilete” (RJDTACRIM 11/148). A lei não define o que é arma, mas em vários tipos penais menciona seu emprego como fator de qualificação do crime (art. 146, §1; 157, §2, inciso I etc.), casos em que ela serve como instrumento para a prática de conduta típica. Em outros casos é suficiente que o agente a tenha consigo ou a porte (art. 288, parágrafo único). O emprego da arma não só denota a maior periculosidade do agente, como também é uma ameaça maior à incolumidade da vítima. (MIRABETE, 1999)

Conceito de arma de fogo Armas de fogo são instrumentos utilizados para lançamento de projeteis sólidos mediante a propulsão de gases derivados da combustão de substância explosiva, geralmente, a pólvora. (http://www.armasnobrasil.com.br/armas-dear/legislacao. Pesquisado em 21/12/2015). Segundo o Prof. Rodrigo G. Garrido (2015): “De forma superficial, as armas de fogo são equipamentos mecânicos de arremesso, utilizados para expelir projéteis, através da expansão dos gases produzidos pela combustão de um propelente como força de propulsão.” A partir deste conceito, a pistola finca pinos pode ser classificada como uma arma de fogo, pois é um instrumento de fixação de elementos sólidos em superfícies duras, movido mediante o deslocamento de gases que acarretam a combustão da pólvora.

Classificação das armas de fogo As armas de fogo classificam-se de acordo com suas dimensões, móveis, portáteis (longas e curtas), semiportáteis e fixas; com sua forma de municiamento, antecarga e retrocarga; com o calibre; alma raiada ou alma lisa. De acordo com as dimensões, as armas portáteis são aquelas que podem ser facilmente transportadas, como o revólver e a pistola, classificando-se em curtas e longas; as armas semiportáteis podem ser transportadas, mas dividem-se em duas partes, necessitando de duas pessoas para sua locomoção; as armas fixas são aquelas que permanecem em um determinado suporte, como os canhões; as armas móveis podem ser transportadas, mas dependem de força motriz. (GEORG, KELNER E SILVINO, 2011) A classificação conforme a forma de carregamento divide a inserção de munição em antecarga, quando a munição é colocada pela “boca do cano” ou retrocarga, quando a arma é carregada pela parte posterior do cano. A alma ordena as armas em raiada, que possui estrias em seu cano e produz sulcos na munição e possibilita a identificação da arma pela perícia, como a pistola, o revolver e o fuzil; e a lisa, cujo cano é liso, como a espingarda e a carabina, não deixam impressões na munição. (GARRIDO, 2015) O calibre é a medida, diâmetro, do cano da arma, associado à munição adequada, podendo ser medida em milímetros ou polegadas (GARRIDO, 2015).

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A pistola finca pinos: especificações A pistola finca pinos é uma ferramenta utilizada na construção civil para fixação de paredes de drywall, forros de gesso, telas para amarração de alvenaria, superfícies de concreto e aço estrutural (http://www.diprotec.com.br/nossalinha/pistolas-de-fixacao, pesquisado em 21 de dezembro). A pistola finca pinos possui um mecanismo de fixação à pólvora, dividido em dois tipos: ação direta e indireta. A carga inserida na ferramenta são os pinos, que devem ser escolhidos de acordo com a superfície a ser perfurada e o sistema da pistola. A pistola finca pinos de ação direta desloca o pino através do cano com alta velocidade e potência, penetrando diretamente na base escolhida. A pistola de ação indireta atua com baixa velocidade e o pino é empurrado por um êmbolo até sua penetração na superfície. Independente do sistema, existem pistolas finca pinos à pólvora de calibres .22 a .27, sendo imprescindível a pressão da ferramenta contra a superfície, até encontrar resistência, para concretizar a perfuração, funcionando como modo de segurança contra acidentes. As pistolas de calibre .27 geralmente são recomendadas para perfuração em concreto e aço estrutural e as pistolas de calibre .22 são recomendadas para superfícies mais frágeis, como o gesso e drywall. Evidentemente, por sua potência e calibres, a pistola finca pinos pode ser utilizada para a prática de homicídios, porém, por seu mecanismo somente disparar a carga quando pressionado contra a superfície até encontrar resistência, encontraremos influência na tipificação do delito e tipo de lesão. A finca pinos somente poderá disparar à longa distância se o seu mecanismo for modificado. Seu poder letal equivale ao poder de uma pistola .22, a diferença está no tipo de disparo: a pistola .22 dispara a longa distância e a pistola finca pinos somente dispara por pressão na superfície, ou seja, curta distância. Existem diversos tipos de ferramenta e carga para ser utilizados, conforme figuras a seguir:

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Figura 2 – cargas

http://ancora.com.br/site/portfolio/pinos-e-finca-pinos-acao-direta/(pesquisado

em 28/12/2015)

Figura 4 – mecanismo da ferramenta finca pinos

Figura 1 – pistola de fixação à pólvora de ação direta finca pino

Considerando as características das armas de fogo, a pistola finca pinos pode ser classificada como uma arma de fogo, automática ou semiautomática, de alma lisa, com arremesso de projéteis por meio de combustão de pólvora, calibres .22 a .27, articulada a curta distância e sob pressão.

Normas regulamentadoras https://www.google.com.br/search?q=finca+pinos+de+a%C3%A7%C3%A3o+direta &biw=1366&bih=657&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved (pesquisado em 28/12/2015)

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Não existe legislação regulamentando a venda da ferramenta finca pinos, podendo ser adquirida até mesmo através de sites na Internet. A ausência destas normas facilita a compra e utilização da ferramenta para a prática de homicídios, tratados como “acidentes” pela polícia.

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O Poder Letal da Pistola Finca pinos

As normas regulamentadoras (NR) para utilização da pistola finca pinos pertencem à esfera trabalhista, estabelecidas pelo Ministério do Trabalho, através da Portaria MTB Nº 3.214, de 08 de junho de 1978, resumindo-se aos cuidados com o trabalhador, como uso de EPI’s e treinamento para manuseio do aparelho: Portaria 3214/78 – Ministério do Trabalho e Emprego – Normas Regulamentadoras de Segurança a Saúde no Trabalho. NR 1 - DISPOSIÇÕES GERAIS (101.000-0) 1.1. As Normas Regulamentadoras - NR, relativas à segurança e medicina do trabalho, são de observância obrigatória pelas empresas privadas e públicas e pelos órgãos públicos da administração direta e indireta, bem como pelos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, que possuam empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. (Alteração dada pela Portaria nº 06, de 09/03/83) NORMA REGULAMENTADORA n.º 18 - Condições e Meio Ambiente de Trabalho na Indústria da Construção: 18.11.15.5 - Quando utilizadas ferramentas de fixação de pinos devem-se observar as seguintes disposições: a)antes da fixação de pinos por ferramenta de fixação devem ser verificados o tipo e a espessura do substrato,o tipo de pino e finca pino mais adequados; b) a região o posta à superfície de aplicação deve ser previamente inspecionada e isolada; c) devem ser transportadas ou guardadas descarregadas (sem o pino e o finca pino). NORMA REGULAMENTADORA 22 – NR 22 – Segurança e saúde ocupacional na mineração: 22.11.17. Na utilização e manuseio de ferramentas de fixação a pólvora devem ser observadas as seguintes condições: a) o operador deve ser devidamente qualificado e autorizado; (222.116-0/ I4); b) o operador deve certificar-se que quaisquer outras pessoas não estejam no raio de ação do projétil, inclusive atrás de paredes; (222.117-9/ I4); c) o operador deve certificar-se que o ambiente de operação não contém substâncias inflamáveis e explosivas; (222.118-7/ I4); d) as ferramentas devem ser transportadas e guardadas descarregadas, sem o pino e o finca pino e (222.119-5/ I4); e) as ferramentas devem ser guardadas em local de acesso restrito. (222.1209/ I4).

O Ministério do Trabalho estabelece regras de segurança especificamente para a prevenção de acidentes de trabalho em relação à pistola finca pinos, considerando sua alta periculosidade, porém, frise-se que seu mecanismo de disparo sob pressão foi elaborado para impedir acidentes. A elaboração das Normas Regulamentadoras pelo Ministério do Trabalho exalta a periculosidade da ferramenta finca pinos.

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Tipos penais: breves considerações Para o estudo da letalidade da pistola finca pinos, é necessário explicitar brevemente os conceitosde crime (tipos penais) e tentativa. O conceito de crime está disposto no artigo 14, I, do Código Penal, que estabelece que o crime consumado é aquele que “reúne todos os elementos” que o tipifiquem; e a tentativa é a não consumação do crime por circunstâncias alheias à vontade do agente, disposto no art. 14, II, do Código Penal.

Elementos do tipo penal Trata-se da análise do comportamento ilícito e as características ou elementos do fato punível, objeto do estudo dos crimes em espécie: conduta, resultado, relação de causalidade e tipicidade.

Conduta É a ação ou omissão humana consciente, com o objetivo de atingir um evento configurador da conduta típica, com a finalidade de produzir um dano, sempre verificando o nexo de causalidade entre o agente e o crime cometido. A conduta (ação ou omissão) que é o comportamento humano consciente dirigido a determinada finalidade, é representada por um verbo que constitui o núcleo do tipo e indica, também, por vezes, o resultado ou evento (efeito natural da ação que configura a conduta típica) a ela ligado pela relação de causalidade. Isso não ocorre nos crimes formais ou de mera conduta em que não se exige ou não há evento naturalístico. (MIRABETE, p. 44, 1999)

Há diversificação no cometimento do tipo penal, podendo, o homicídio, por exemplo, ser praticado de várias formas, por ação (tiros, envenenamento) ou por omissão. (MIRABETE, p. 44, 1999)

Dolo O dolo (artigo 18, CP) é a ação ou omissão consciente, com a intenção de produzir o evento criminoso. O agente age com vontade, sabedor do fato, das consequências para a vítima e os meios que pode utilizar (dolo direto). O dolo é o componente mais importante para a conclusão desta pesquisa: “pela lei brasileira, considera-se crime doloso quando o agente quis o resultado (dolo direto e alternativo) ou assumiu o risco de produzi-lo (dolo eventual).” (MIRABETE, p.45, 1999). Considerando o mecanismo da pistola finca pinos, é suficiente a ponderação sobre o conceito geral de dolo, vez que não há possibilidade de disparo à longa distância, o que desclassifica a possibilidade de dolo eventual, porém, não pode ser descartada a probabilidade de dolo alternativo, quando o agente tem o conhecimento de dois resultados possíveis: o homicídio ou a lesão corporal.

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O Poder Letal da Pistola Finca pinos

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O crime culposo é entendido pela doutrina como o evento que produz um resultado antijurídico não intencional, mas previsível. A concepção do mecanismo da pistola finca pinos, pressão sobre superfície, descarta a possibilidade de crime culposo, pois necessita da pressão em ponto letal do corpo da vítima para atingir o resultado morte.

ferramenta sobre a superfície para obter resultado. Se o agente comete homicídio com a ferramenta finca pino, a intenção (vontade) já está demonstrada, pois, para que o resultado morte ocorra, deverá ocorrer a imobilização da vítima e o posicionamento da pistola em ponto fatal de seu corpo. Caso o homicídio seja cometido com a utilização de uma pistola finca pinos poderá ser classificado como homicídio doloso, qualificado, com base no artigo 121, § 2°, III e IV, do Código Penal, em virtude do mecanismo da pistola.

Culpa

Resultado É o efeito da ação imaginada e concretizada pelo autor do fato típico conectados pela relação de causalidade.

Relação de causalidade Trata-se do vínculo entre o resultado e a ação do autor do fato típico.

É a prática do ato sem atingir o resultado pretendido por circunstâncias alheias à vontade do agente. No caso de crime praticado por meio da pistola finca pinos, somente será caracterizada a tentativa se a vítima conseguir defender-se e fugir do agressor.

Tipicidade

Prova

Adequação entre o fato típico cometido e a descrição legal. A ação somente será considerada criminosa se estiver prevista em como fato típico e cumprir todos os requisitos estabelecidos pela norma. Estes conceitos são importantes para concluirmos se o mecanismo da pistola finca pinos, já constatada nesta pesquisa como arma de fogo, permite o cometimento de crime, principalmente, de homicídio doloso, culposo, tentado ou acidente. Destaca-se que a ausência de normas na esfera penal para aquisição destas ferramentas permite que qualquer pessoa, mesmo que não possua treinamento e experiência, possa adquiri-las utilizá-las para qualquer fim.

É o elemento que acarreta o conhecimento do fato criminoso, cuja finalidade é instruir a decisão judicial. O objeto da prova são os fatos relevantes ao deslinde da questão jurídica. (GRECO, p. 2011, 2009)

Homicídio: simples e qualificado

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Tentativa

O conceito de homicídio simples está disposto no art. 121, caput, Código Penal – simples: “matar alguém”. Trata-se de crime material, cuja conduta típica é a eliminação da vida de uma pessoa e consuma-se com a morte da vítima. O sujeito ativo, o agente, e o sujeito passivo, a vítima, podem ser qualquer pessoa. A simples confissão do agente não supre a prova do homicídio. Deverá ser realizado o exame necroscópico (exame direto- perícia) ou a reconstituição através de testemunhas (exame indireto) (art. 158 e 167, CPP) (MIRABETE, 1999). O homicídio qualificado está tipificado no § 2, do artigo 121, do Código penal: os motivos do agente, recursos utilizados, grau de periculosidade e impossibilidade de defesa da vítima. A pistola finca pinos possui poder letal por utilizar cargas perfurantes e atravessar superfícies duras, porém, somente funciona com a pressão da

Prova pericial: exame de corpo de delito O exame pericial é o meio de prova realizado por técnicos conhecedores do objeto do fato típico. O técnico deve elaborar um parecer coma descrição de suas observações, respondendo aos quesitos formulados, de acordo com as regras técnicas estabelecidas legalmente. Para efeito deste estudo, o meio pericial relevante é o exame de corpo de delito: o exame de corpo de delito é a perícia sobre os vestígios da infração, que são alterações materiais deixadas pela conduta criminosa. (GRECO, p.211, 2009)

Tiro encostado: lesões causadas por uma pistola finca pinos As lesões causadas pela pistola finca pinos são equivalentes às lesões causadas por uma arma de fogo com tiro encostado. A arma deve estar pressionada em lugar letal no corpo da vitima para o disparo atingir o resultado morte, portanto, descarta-se a possibilidade de acidente. São características do tiro encostado: a forma irregular causada pela explosão dos gases (Mina de Hoffmann), o diâmetro da lesão é maior que a carga expelida (explosão dos gases), impressão do cano da arma causada pela pressão na superfície (Sinal de Werkgaertner), sem zona de tatuagem ou esfumaçamento, sendo possível o trajeto com orifícios de entrada e saída, quando transfixante. (GARRIDO, 2015)

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O Poder Letal da Pistola Finca pinos

O disparo pela pistola finca pinos é um tiro encostado, sem orifício de saída, sem zona de tatuagem, trajeto simples: projétil único.

Casuística Homicídio “Acidente de trabalho mata jovem coiteense de 20 anos, em Guarajuba: A vítima trabalhava com uma pistola finca pino que disparou na mão do ajudante e atingiu seu peito. O jovem Vanderley Santos Silva, que completou 20 anos na última segundafeira, 21, morreu por volta das 16h30 de quinta-feira, 24, quando trabalhava em uma residência no Distrito de Guarajuba-Camaçari, depois que uma pistola conhecida por “finca pino” utilizado por profissionais que trabalham na fixação de placa de gesso residencial ou comercial, disparou da mão de outro rapaz que não teve a identidade revelada. Segundo informações de familiares, Ney como era conhecido, viajou na segunda-feira, 21, dia do ser aniversário para fazer um serviço de gesso para a empresa com sede em Coité e estava em cima de um andaime com a pistola, ele teria entregado o objeto para o ajudante enquanto descia para beber água, quando a pistola que funciona por muita pressão disparou, o objeto perfurante usado para furar lage, saiu com tanta força que ultrapassou a palma da mão do ajudante e acertou em cheio o peito de Vanderley que teve morte instantânea. O CN percorreu algumas empresas que trabalham com este tipo de equipamento, mas não encontrou ninguém que mostrasse, então recorreu ao Google e encontrou este modelo como primeira opção e estamos apresentando, não temos informações se é deste modelo, mas pelo que se pode visualizar a pressão deve ser a mesma, conforme a apresentação da mesma em um vídeo. O que pode se notar é que o equipamento se assemelha e tem um poder de fogo idêntico a uma arma.” http://www.calilanoticias.com/2013/10/acidente-de-trabalho-mata-jovemcoiteense-de-20-anos-em-guarajuba.html (pesquisado em 30/12/2015)

Homicídio “Um menino de seis anos morreu em um acidente com uma pistola de pressão para colocação de gesso na noite do último sábado (2), na comunidade dos Dois Irmãos, em Curicica, zona oeste do Rio. A polícia informou que ele foi atingido na rua pelo disparo da pistola de pressão que estava sendo limpa por um vizinho. Um prego atingiu a veia femoral e o menino não resistiu. Até por volta das 15h deste domingo, o responsável pelo disparo não tinha comparecido na delegacia. O enterro da criança está marcado para a partir das 15h de hoje no cemitério do Pechincha, em Jacarepaguá, também na zona oeste. O caso foi registrado na 32ª DP (Taquara).”

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Armenia Cristina Dias Leonardi e Carla Sendon Ameijeiras Veloso

Nota: eu sei usar esse aparelho, chama-se pistola finca pinos e é absolutamente impossivel de ser disparada a não ser que se pressione fortemente contra o local onde vai ser fincado o pino de aço. Portanto ela jamais podia ter disparada ao limpar a ferramenta a não ser que tivesse sido modificada para disparar sem pressionar a mola. Para mim se trata de um homicídio. A finca pinos precisa ser fortemente pressionada contra uma parede para que possa disparar, a pressão comprime a mola que aciona o seu percussor, de modo que só poderia disparar em direção a uma pessoa se tivesse sido modificada com a finalidade de transformá-la em uma arma.” https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20110403164007AAtz3LR (pesquisado em30/12/2015)

Conclusão O estudo da pistola finca pinos induz à conclusão de que os homicídios causados por seu uso, conforme casos apresentados neste artigo. A pistola finca pinos, considerando seu mecanismo, pode ser classificada como arma de fogo, calibres .22 a .27, de alma lisa, disparo à curta distância, lesão por tiro encostado. Por ser uma ferramenta perfurante, à pólvora e acionada por pressão na superfície, ou seja, um ponto fatal no corpo da vítima, o crime cometido por seu uso deve ser investigado como homicídio doloso, fundamentado no artigo 121, § 2, III e IV, CP. A elaboração de normas regulamentando a venda e o uso da pistola finca pinos é indispensável para evitar a propagação de crimes com este instrumento, principalmente envolvendo crianças, que são facilmente imobilizadas.

Referências bibliográficas GARRIDO, Rodrigo Grazinoli. GIOVANELLI, Alexandre. Ciência Forense: uma introdução à criminalística. Editora Projeto Cultural: Rio de Janeiro, 2015. GEORG, Natacha Juli. KELNER, Lenice. SILVINO JUNOR, João Bosco. Armas de fogo: aspectos técnicos periciais. Revista Jurídica. CCJ ISSN 1982. 4858. v. 15, nº. 30, p. 37/56, ago./dez. 2011. 49. GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. Editora Saraiva: São Paulo, 2009. MIRABETE, Julio Fabrinni. Manual de Direito Penal. Editora Atlas: São Paulo, 1999. Sites consultados: http://ancora.com.br/site/portfolio/pinos-e-fincapinos-acao-direta/ http://www.armasnobrasil.com.br/armas-de-ar/legislacao, pesquisado em 21 de dezembro de 2015. http://www.calilanoticias.com/2013/10/acidente-de-trabalho-mata-jovem-coiteense-de20-anos-em-guarajuba.html. pesquisado em 20 de dezembro de 2015. http://www.clubedetirobarrabonita.com.br/form/classificacao.htm, pesquisado em 21 de dezembro de 2015. http://www.diprotec.com.br/nossa-linha/pistolas-de-fixacao. pesquisado em 21 de dezembro de 2015.

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Princípio da Razoável Duração do Processo à Luz do Novo Código de Processo Civil nas perícias das ações de Concessão de Auxílio-doença Acidentário Marcilene Margarete Cavalcante Marques1 Resumo O estudo proposto tem por fim analisar a demora na realização das pericias medicas no âmbito administrativo. Já no âmbito judicial Estadual, o porquê da necessidade de realização de duas perícias, quando já se poderia em uma única perícia de nexo causal detectar se a incapacidade laborativa do segurado decorre de acidente de trabalho ou de doença ocupacional em razão das atividades exercidas pelo segurado. Pois assim, teríamos uma demanda justa e célere, sem gastos desnecessários para o Estado com a realização da 2ª perícia. Quando o Magistrado não determina seja identificada a relação do nexo causal já na primeira perícia, isso faz com que o segurado fique no “limbo”, pois não recebe do INSS nem do seu empregador. Devemos atentar que quando o cidadão procura o judiciário, ele espera ter uma justiça célere, eficaz e justa já que é um direito fundamental esculpido no artigo 5º, inciso LXXVIII, da nossa Constituição Federal. Palavras chaves: Perícias médicas; nexo causal; justiça; direito fundamental. Abstract The present study aims to analyze the delay in the accomplishment of medical examinations in the administrative scope. And also the necessity of the accomplishment of two medical examinations in the State judicial scope, since it is possible, in just one medical examination of causal nexus, detect if the incapacity of the insured results from an accident at work or occupational decease in reason of his labor activities. In this way, it would be possible a fair and quick judicial demand, without unnecessary expenses for the State with the accomplishment of the second medical examination. When the Magistrate does not determinate the causal nexus relation already in the very first medical examination, this will lead the insured to be in a source of ¨limbo”, since he will not receive from the Social Security (INSS) or from his employer. We must attempt to the fact that when the citizen looks for the judiciary, he expects to get access to a quick, effective and fair justice. And also, that this is a fundamental right, sculptured in the article 5º, LXXVIII of our Federal Constitution. Keywords: Medical examinations; causal nexus; justice; fundamental right. 1

Mestranda da UCP - Universidade Católica De Petrópolis; Professora da Universidade Estácio de Sá; Advogada Especialidade na área Trabalhista e Previdenciária.

Princípio da Razoável Duração do Processo à Luz do Novo Código de Processo Civil nas perícias das ações de Concessão de Auxílio-doença Acidentário

Introdução

Da proteção dos Direitos Humanos

A morosidade de nossa justiça é fato amplamente debatido em nossos dias, sem, no entanto ser um problema dos dias de hoje. É um problema que remonta à antiguidade e que vem sendo questionado desde então. Esse trabalho almeja levar a todos a reflexão de como se pensar em mecanismos para diminuir, ao máximo e na medida do possível, o tempo que leva, atualmente, um processo judicial e administrativo. Por haver uma escassez em dados estatísticos, esse trabalho utilizou pesquisa na literatura jurídica e filosófica.

A duração razoável do processo por ser um direito fundamental consagrado em diversos documentos internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos, nos impõe fazer uma breve digressão sobre esses documentos. A Carta Internacional de Direitos Humanos se destaca na proteção e promoção dos direitos humanos no mundo e consiste em três documentos: Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia-Geral da ONU em 1948, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos também aprovados pela Assembleia-Geral da ONU em 1966. Os pactos internacionais, uma vez ratificados pelos Estados-membros das Nações Unidas, possuem força de lei no âmbito interno. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos consagra o direito a um processo justo, com inúmeras garantias, entre as quais a de um julgamento em tempo razoável. Quanto ao direito ao processo em tempo razoável, embora implicitamente este princípio já vigorasse em razão do direito ao devido processo, expressamente só ingressou no ordenamento jurídico em 24.04.1992 quando o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos entrou em vigor no Brasil. Sendo que a EC 45/2004 apenas imprimiu maior visibilidade a sua existência com o objetivo de garantir efetividade ao incluir o inciso LXXVIII no artigo 5º da nossa Carta Magna:

Origem Podemos afirmar que existem vestígios que o princípio do devido processo se iniciou há mais de cinco séculos antes de Cristo. Especificamente na peça Antígona de Sófocles exibida em Atenas ao redor de 441 a.C., onde se invocavam princípios morais e religiosos não escritos frontalmente opostos à tirania das leis escritas. Muito embora se tenha afirmado que o due process of law, que primeiramente era conhecido como law of the land, se iniciou em 15.06.1215, na Inglaterra, com a declaração de direitos conhecida como Magna Carta das Liberdades (Great Chart of Liberties). Tal declaração foi chancelada pelo então Rei João, chamado “O Sem-Terra”, que se viu obrigado a apor selo real. A princípio, a finalidade era de atuar como um limite ao poder do rei, uma defesa contra o Estado. O documento compunha-se de 63 artigos, e um dos mais importantes era o artigo 39 que estabelecia: “Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.”

Significava que o rei devia julgar os indivíduos conforme a lei, seguindo o devido processo legal, e não segundo a sua vontade, até então absoluta. Também estabelecia a Carta Magna que o rei não poderia mais criar impostos ou alterar as leis sem antes consultar o Grande Conselho, órgão que seria integrado por representantes do clero e da nobreza. Além disso, nenhum súdito poderia ser condenado à prisão sem antes passar por um processo judicial. Nas colônias inglesas da América do Norte esse princípio foi reconhecido e evoluiu para uma posterior consagração na Constituição dos Estados Unidos. Em 12.06.1776 com a Declaração de Direitos da Virginia, mais uma vez, se fortalecia a ideia de associação do devido processo e da duração razoável do processo.

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LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Duração razoável do processo A questão do tempo no processo filia-se à própria ideia de justiça e é tão difícil de defini-lo como a justiça, que é vista de diversas formas, seja no campo da sociologia, da filosofia ou do direito. Para melhor entendermos, ficaremos com a perspectiva aristotélica de justiça como uma mediania. Ou seja, a justiça é uma virtude e se traduz em uma mediania, a justa medida (in medios virtus). Esta concepção aplica-se ao tempo no processo, vez que a prestação jurisdicional apressada pode significar verdadeira injustiça, pois a jurisdição exige reflexão. O jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr.2 Adverte que não há nada pior que a injustiça célere, que é a pior forma de denegação da justiça. Por outro lado o excesso de tempo na prestação jurisdicional é uma verdadeira sonegação de justiça. Como ensina Rui Barbosa3: “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. REALE JR., Miguel. Valores fundamentais da Reforma do Judiciário. Revista do Advogado. vol.24. n.75. p.78-82. São Paulo: IASP, 2004. 3 Ruy Barbosa de Oliveira foi um extraordinário brasileiro, tendo se destacado principalmente como jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador. 2

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De certo que a decisão justa não se esgota apenas no conteúdo, mas também na forma em que é produzida, quer dizer, deve estar consoante com os princípios processuais, aos quais a atividade jurisdicional deve obediência. Assim, pode se dizer que uma decisão só é justa quando é formal e materialmente justa. A forma da decisão (decisão formalmente justa) refere-se ao tempo. Uma decisão justa não pode ter o açodamento e a irreflexão, incompatíveis com a atividade jurisdicional, tampouco pouco pode ter a morosidade destrutiva da efetividade da jurisdição. Quer dizer, há de se encontrar a justa medida para se fazer justiça. Assim, percebe-se que o direito a um processo em tempo razoável é um direito correlato ao direito ao devido processo ou ao processo justo e equitativo. Ou seja, o processo com duração razoável nada mais é do que uma consequência lógica do devido processo.

Dignidade da Pessoa Humana O princípio da razoável duração do processo está intrinsecamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é elencado como princípio fundamental esculpido no artigo 1º, inciso III da nossa Carta Magna. Indispensável à configuração do Estado, o princípio da dignidade da pessoa humana preconiza que o ser humano é merecedor de consideração e respeito por parte do Estado e visa lhe conferir condições mínimas de existência digna. Importantíssimo registrar-se as considerações de Ingo Wolfgang Sarlet4, para quem: A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.

O princípio constitucional à luz da razoável duração do processo que mais ascende é o da dignidade da pessoa humana, vez que se ocorrer a duração irrazoável do processo, ocorrerá a violação desse princípio, não se olvidando que quanto mais demorado for o final do processo, menos será a justiça. Por isso, é esperado que o Poder Judicial atue com qualidade e celeridade na prestação jurisdicional, assegurando a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal. 4

Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição

532 Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 88-89. 3.

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Como medir a razoabilidade da duração do processo? Essa vem a ser a preocupação que ronda há muito os tribunais de todo o mundo. A duração razoável do processo é um conceito vago e indeterminado, porém segue sendo o objeto dos TEDH e dos Tribunais Constitucionais dos países europeus há mais de 30 anos. Como também da Suprema Corte Americana, que reconhece que: “O direito a um julgamento célere é um conceito mais vago do que outros direitos processuais. É, por exemplo, impossível determinar com precisão quando o direito foi negado. Não podemos dizer definitivamente o quanto pode ser considerado longo em um sistema em que a justiça deve ser supostamente rápida, mas prudente”.

Apesar de reafirmarmos que a razoável duração do processo é um conceito vago e indeterminado, isso não pode importar na negatividade de efetividade ao direito até porque é função do Judiciário interpretar conceitos vagos e indeterminados. No entanto, a imprecisão desse conceito poderia nos levar à tentação de se entender necessária a fixação de prazo para se verificar a razoabilidade e o tempo e, por consequência, o descumprimento destes indicaria a violação do direito. Seria essa uma saída? Lopes Jr.5 defende que todos têm direito de saber, antecipadamente e com precisão, o tempo máximo de duração dum processo concerto, justificando ser inerente às regras do jogo. É uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão. Ou seja, associa-se desta forma a fixação de prazo com a própria natureza democrática do processo. Por outro lado, os que defendem a não fixação de prazo, o fazem embasados no fato de que o tempo é relativo e subjetivo. Assim, quem teria melhor condição de aferi-lo ao processo? O legislador, que deve atuar de forma genérica e abstrata ou o juiz que atua no caso concreto? A Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH) também perfilha o entendimento de que não é possível fixar um prazo razoável e que os Estados não estão obrigados a prescrever um prazo fixo. É certo que estamos tratando de um conceito vago e indeterminado. Mas, nem por isso se pode tomar por justificativa a imprecisão do texto para se negar efetividade à norma constitucional, consagrada também em instrumentos internacionais. Igualmente, não se pode interpretar esse preceito arbitrariamente sem balizar-se em nenhum critério. A parte de ser uma matéria por demais polêmica, O TEDH como também os Tribunais Constitucionais de países europeus, buscando dar objetividade na 5

Aury Celso Lima Lopes Junior é um jurista gaúcho, graduado em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande  em 1991, especialista em Direito desde 1993 e obteve seu doutorado em  Direito Processual Penal  pela Universidade Complutense de Madrid em 1999.

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análise da duração razoável do processo, destaca alguns critérios. Certo é que tais critérios são igualmente aplicáveis à realidade brasileira. São eles:

A responsabilidade do Estado por demora na prestação jurisdicional não é um tema simples. E impõe a discussão de dois pontos muito polêmicos: de um lado, a questão preliminar e geral sobre os limites da responsabilidade do Estado por dano decorrente da prestação jurisdicional, o que vale ressaltar que dificilmente em nosso ordenamento jurídico se encontrará tema de maior contraste. E, por outro lado, a questão da responsabilidade do Estado por comportamentos omissivos dos seus agentes, que resultam na demora na prestação jurisdicional. A regra geral na matéria, segundo a jurisprudência amplamente majoritária, é a responsabilidade pessoal do magistrado, ancorada nas regras do direito civil, vale dizer, a responsabilidade subjetiva e direta do agente público, exigente de demonstração da culpa, referida em diversas disposições infraconstitucionais. Segundo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal e pela jurisprudência majoritária, o Estado somente responde por danos decorrentes da prestação jurisdicional em hipóteses expressamente indicadas na lei:

1. Analisar a efetiva duração do processo fixando o período a ser considerado; 2. Considerar os critérios objetivos para aferição da razoabilidade do prazo. 3. Pronunciar-se sobre a violação do direito e sobre o pedido formulado. De toda a forma, a elaboração destes critérios reflete o esforço de se buscar uma racionalização que permita uma interpretação coerente fugindo à arbitrariedade. É importante frisar que a importância concreta do processo para os demandantes é um fator que deve, indubitavelmente, ser considerado pelo Judiciário na aferição de violação do direito à duração razoável do processo. Outro ponto importantíssimo de registro são as justificativas levantadas pelo Judiciário pelos atrasos questionados: o acúmulo do trabalho, a falta de juízes, a legislação deficiente, o comportamento das partes, problemas estruturais e conjunturais. No entanto, o TEDH se mostra intransigente com tais justificativas, alegando que ao consagrarem a Convenção, os Estados devem efetivamente cumprir seus compromissos. Concluindo, é necessário rigor na avaliação das justificativas sob pena de se negar a efetividade do direito ao processo em tempo razoável por deficiência estrutural do Estado que assumiu o dever de garantir a todos este direito fundamental, seja quando depositou sua adesão ao pacto internacional, seja quando incluiu o inciso LXXVIII do artigo 5º da CRFB/88. Afinal, como ensina Canotilho6, viu-se nesta fase que a pessoa não tinha apenas o direito a um processo legal, mas, sobretudo, a um processo justo e adequado, pois o processo devido deve ser orientado materialmente por princípio de justiça. Não pode o legislador criar qualquer procedimento para conduzir as pessoas à privação da liberdade e de outros valores. Por tal razão passou-se a exigir que o processo seja justo, pautado nos valores e critérios materiais fixados na Constituição. Isso deve ocorrer desde a criação legislativa e os Juízes, baseados em princípios constitucionais de justiça, poderiam e deveriam analisar os requisitos intrínsecos da lei, daí o surgimento do judicial review of legislation.

Da responsabilidade civil do Estado Não se pode deixar de dizer da responsabilidade civil do Estado por violação ao direito à duração razoável do processo. Contudo, a via indenização do Estado muita das vezes é insatisfatória, pois o tema ainda é bem tímido no Brasil. Todavia, começam a surgir as primeiras decisões de responsabilização do Estado por demora injustificada. 6

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7.ed.

534 Coimbra: Almedina, 2003. P. 492-494.

1. erro judiciário em condenação penal (CF, art. 5º, LXXV); 2. quando o condenado ficar preso além do tempo fixado na sentença (CF, art. 5º, LXXV). Ou seja, jurisprudência nacional admite a responsabilidade objetiva e direta do Estado apenas na esfera criminal e para decisões definitivas, condenatórias, objeto de revisão penal. Na ausência de previsão explícita e específica, há irresponsabilidade do Estado.

Da problemática da duração razoável do processo nas demandas de concessão do benefício de auxílio-doença acidentário O objetivo desse trabalho é informar como a dificuldade da aplicação do princípio da duração razoável do processo, até mesmo pela inexatidão do conceito, prejudica o andamento das ações de concessão de benefício de auxílio-doença acidentário pela demora na realização de perícias médicas na Justiça Estadual. Tal benefício é requerido pelo segurado que sofre um acidente de trabalho, que de acordo com o artigo 19 da Lei 8213/91 consiste em:

Conceito de acidente de trabalho Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do artigo 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

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Princípio da Razoável Duração do Processo à Luz do Novo Código de Processo Civil nas perícias das ações de Concessão de Auxílio-doença Acidentário

Como o acidente de trabalho é um evento de natureza não programada, incorrendo em perda da capacidade laborativa do trabalhador, e consequentemente de sua subsistência, o Estado compreendeu a necessidade de amparo a todo trabalhador nessa situação. E, também por isso, o auxílio-doença acidentário gera a estabilidade provisória de 12 meses quando o empregado retornar ao trabalho de 12 meses, conforme Sumula 378 do TST, e seu valor corresponderá a 100 % do saláriode-benefício. E conforme preceitua o artigo 129 da Lei 8213/91, a competência para julgamento de lides acidentárias é sempre da Justiça dos Estados.

Conceito de incapacidade

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A incapacidade para o trabalho é a impossibilidade temporária ou definitiva do desempenho das funções específicas de uma atividade ou ocupação, em consequência de alterações morfopsiquicofisiológicas provocadas por doença ou acidente para o qual o examinado estava previamente habilitado e em exercício. O risco de vida para si ou para terceiros, ou de agravamento, que a permanência em atividade possa acarretar, está implicitamente incluído no conceito de incapacidade, desde que palpável e indiscutível. O conceito de incapacidade deve ser analisado quanto ao grau, à duração e à profissão desempenhada. Ou seja, para fazer jus ao benefício do auxílio-doença acidentário tem de se estabelecer o nexo causal entre a incapacidade e a atividade laborativa do trabalhador. E esse nexo causal é feito através de perícia médica. Nesse trabalho nos deteremos apenas nas perícias médicas incidentes nas ações judiciais para obtenção do auxílio-doença acidentário na Justiça Estadual, cujo maior entrave é justamente a demora na sua realização. Como sabemos, a demora na prestação da tutela jurisdicional pode proporcionar graves danos àqueles que necessitam se socorrer ao EstadoJuiz, cujo objetivo é obter êxito na pretensão, principalmente as pessoas mais necessitadas de recursos financeiros e as detentoras de interesse legítimo. Em resposta a tal morosidade, o Novo Código de Processo Civil em seu art. 4º inseriu nova redação, já previsto no inciso LXXVIII no art. 5º da Constituição Federal de 1988, que assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. No entanto, a resolução do problema da morosidade não passaria apenas pela criação do princípio da razoável duração do processo, mas sim pela elaboração de mecanismos eficientes que sejam passíveis de tornar tal princípio efetivo. E assim, a situação mais comum de quem se socorre do Poder Judiciário para fazer valer o seu direito à concessão do referido benefício, devido à demora entre a realização das perícias na Justiça Estadual, é a angústia por não poder trabalhar, face a sua incapacidade; o não recebimento do salário do empregador e ainda, em razão da demora, o não recebimento do benefício da Previdência Social.

Marcilene Margarete Cavalcante Marques

A demora das perícias médicas O que acontece hoje é que após o ajuizamento da ação, o juiz determina a perícia médica para se constatar a incapacidade alegada. E isso, por suposto leva algum tempo. Depois de realizada, o juiz novamente determina outra perícia para o estabelecimento do nexo causal entre a incapacidade e a atividade laborativa do trabalhador, para que ocorra a concessão o restabelecimento ou manutenção do benefício decorrente de acidente de trabalho. E, infelizmente, isso também leva outro tanto de tempo. Enquanto isso, o trabalhador está sem trabalhar por conta de sua incapacidade, sem receber do empregador, pois a ele não lhe compete mais essa obrigação, vez que está por conta do INSS, que também não lhe paga a espera da sentença do juiz. Ou seja, o trabalhador está totalmente à deriva, sem capacidade de subsistência própria e de sua família. É uma realidade estrutural que acaba por causar grave prejuízo aos segurados.

Concessão, restabelecimento ou manutenção Os pedidos de ações de auxílio-doença acidentário podem ser de concessão, de restabelecimento ou de manutenção do benefício. Veremos a seguir cada uma das situações. Concessão: nos casos de indeferimento de pedido de auxílio-doença acidentário pelo INSS, após a perícia médica não atestar a incapacidade, pode o trabalhador recorrer ao Poder Judiciário. Restabelecimento: quando ocorre do INSS dar alta a um segurado, embora persistindo sua incapacidade, o segurado, depois de pedido de prorrogação ou de reconsideração indeferido, também está apto a ajuizar ação judicial. Manutenção: o objetivo desse pedido é evitar o término do auxílio doença antes da melhora do estado clínico do segurado, submetendo-o a nova avaliação para que o perito médico do INSS possa considerar a necessidade da continuidade do afastamento do trabalho. No entanto, é comuníssimo nos dias de hoje, que a data da nova perícia normalmente ultrapasse o prazo previsto para o fim do benefício. E, aí, entende o INSS que o segurado deve ficar sem receber o benefício até que tal perícia possa ser realizada, independente do tempo de espera. Dado o caráter alimentar do benefício, ao trabalhador não lhe resta alternativa a não ser ir ao judiciário. Muito embora, lá também haverá espera, apesar de menor.

Causas da obtenção do auxílio-doença acidentário: doenças Ocupacionais As doenças ocupacionais são aquelas deflagradas em virtude da atividade laborativa desempenhada pelo individuo, que resultando de constante exposição a agentes físicos, químicos e biológicos, ou mesmo do uso inadequado dos novos recursos tecnológicos, como os da informática. Dividem-se em doenças profissionais e doenças do trabalho. 537

Princípio da Razoável Duração do Processo à Luz do Novo Código de Processo Civil nas perícias das ações de Concessão de Auxílio-doença Acidentário

Doenças profissionais

Beneficiários do Auxílio-Doença Acidentário (B-91)

Classificam-se como decorrentes de situações comuns aos integrantes de determinada categoria de trabalhadores, relacionadas como tal no Decreto 3.048/99, Anexo II, ou caso comprovado o nexo causal entre a doença e a lesão, aquela reconhecida pela Previdência, independente de constar da relação. As doenças profissionais são chamadas de idiopatias, tecnopatias ou ergopatias.

Empregados, trabalhadores avulsos e segurados especiais, pois somente estes são abrangidos pelo SAT, bem como os médicos residentes. Os demais segurados, contribuinte individual e facultativo, receberão auxílio-doença comum. Bem, discorridas as principais características desse benefício previdenciário, passemos agora para a nossa efetiva preocupação, objeto desse trabalho, que é a demora da realização das perícias médicas nas ações judiciais de concessão, restabelecimento e manutenção de benefício de auxílio-doença acidentário.

Doenças do trabalho São aquelas adquiridas ou desencadeadas em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, estando elencadas no Anexo II do Decreto 3.048/99, ou reconhecidas pela Previdência. As doenças do trabalho são denominadas mesopatias. A prevenção no caso deve ser baseada na limitação do tempo de exposição (duração da jornada e concessão de pausas regulares), na alteração do processo e organização do trabalho (evitando excessos de demanda) e na adequação de máquinas, mobílias, equipamentos e ferramental do trabalho às características ergonômicas dos trabalhadores. Nas doenças ocupacionais não existem violência nem subtaneidade (como no acidente de trabalho típico), pois as doenças são previsíveis e não dependem de evento violento e súbito; são as contingências do trabalho desempenhado ao longo do tempo que estabelecem o nexo causal entre a atividade laborativa e a doença.

Comunicação da empresa

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Segundo o art. 22 da Lei 8.213, é obrigação da empresa comunicar o acidente do trabalho à Previdência Social até o 1º (primeiro) dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o limite mínimo e o limite máximo do salário de contribuição, sucessivamente aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social. A comunicação não exime a empresa de responsabilidade pela falta do cumprimento do disposto neste artigo. A multa, contudo, não se aplica na hipótese do caput do art. 21‑A da lei 8.213/91. Dessa comunicação receberão cópia fiel o acidentado ou seus dependentes, bem como o sindicato a que corresponda a sua categoria. Na falta de comunicação por parte da empresa, podem formalizá‑la o próprio acidentado, seus dependentes, a entidade sindical competente, o médico que o assistiu ou qualquer autoridade pública, não prevalecendo nestes casos o prazo previsto neste artigo. Os sindicatos e entidades representativas de classe poderão acompanhar a cobrança, pela Previdência Social, das multas previstas neste artigo. A multa de que trata este artigo não se aplica na hipótese do caput do art. 21-A da lei 8.213/91.

A precária condução do processo administrativo e judicial para concessão de benefícios Embora o foco desse trabalho seja o processo judicial, é bom que se diga que a precariedade na concessão do benefício de auxílio-doença acidentário por incapacidade laboral, tanto na esfera administrativa quanto na judicial se deve a demora extrema no agendamento de perícias médicas. O resultado disso, é a afronta aos direitos fundamentais dos segurados, que são privados de seu trabalho, e ao mesmo tempo da proteção estatal em forma pecuniária, seguro social devido a este tipo de risco social. A solução seria na esfera administrativa tornar obrigatório o deferimento inicial pelas agências de previdência de todo país tendo por base os pareceres dos médicos assistentes. Uma vez que pela ausência de efetivo necessário nas agências da Previdência Social, que não possuem um número de peritos-médicos suficientes para atender, as filas de segurados doentes se tornam gigantescas. Em 2012, foram as agências do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) do Paraná as que mais demoram no país para analisar os pedidos de aposentadoria, auxílio-doença e auxílio-maternidade, entre outros. Segundo dados do Boletim Estatístico da Previdência Social, de dezembro de 2011, 47% dos benefícios solicitados naquele mês demoraram mais de 45 dias para serem examinados – quase o dobro da média nacional, que foi de 25%. O que vai de encontro ao estabelecido no próprio Decreto 3.048/99 do INSS, que estipula que a primeira parcela do benefício solicitada pelo trabalhador seja paga em até 45 dias após a entrega da documentação exigida. Não à toa, o INSS aparece como litigante (uma das partes do processo) em 43,1% das ações em trâmite na Justiça Federal do país, conforme pesquisa do Conselho Nacional de Justiça7. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) é o maior litigante do País nas justiças Estadual e Federal. Isso significa que o órgão participa da maior fatia do total de processos, 4,38%, ingressos na Justiça Comum e nos Juizados Especiais, entre janeiro e o fim de outubro de 2011, último dado disponível. Ao todo são 56 tribunais espalhados pelo País, que integram o SIESPJ (Sistema de 7

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/

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Estatísticas do Poder Judiciário). Somente na Justiça Federal, o INSS liderou com 34,35% das ações. A segunda posição nesta área é da Fazenda Nacional, que detém 12,89% dos processos. Os dados são da pesquisa Os 100 maiores litigantes 2012, publicada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Boa parte dos processos em tramitação são recursos do INSS contra decisões favoráveis a trabalhadores que reivindicam benefícios, especialmente aos relacionados a auxílio-doença. Levantamento do instituto revela que só no Grande ABC, entre janeiro e maio, as agências da Previdência Social realizaram 75.992 perícias médicas. Sendo elas iniciais ou recorrentes. Apenas para auxílio-doença, os médicos que atendem na região realizaram 41.030 perícias. Segundo o INSS, 56,55% dessas consultas resultaram em concessões de benefícios. Outras 17.828 terminaram em indeferimentos aos trabalhadores.

que viabilizem tais direitos, surgindo a necessidade de assegurar meios que possibilitem seu exercício. Há uma preocupação do Novo Código de Processo Civil em, mais que agilizar, entregar à demanda um laudo conclusivo para elucidar a causa em questão e entregar a justa prestação jurisdicional no menor tempo possível. E é justamente disso que trata esse trabalho. A perícia no Novo Código de Processo Civil é tratada nos artigos 464 a 480 e é aquela que conta com um especialista em determinada área técnica (perito) para esclarecer certo fato que interessa à demanda. E se destacam quatro novidades de maior interesse prático: produção de prova técnica simplificada; apresentação de currículo do perito; perícia consensual; e requisitos do laudo pericial. Está expresso no artigo 464, parágrafo 2º que “de ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade.”. Assim, de acordo com o parágrafo 3º, a denominada “prova técnica simplificada” consistirá apenas na inquirição, pelo juiz, de especialista na área, que poderá se valer de qualquer recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens para esclarecer os pontos controvertidos da causa, conforme disposto no parágrafo 4º. Sem dúvida alguma, trata-se de importante inovação do NCPC, a permitir a desburocratização em demandas nas quais, embora exista a necessidade da prova técnica, a baixa complexidade envolvida em nada justifica que as partes se sujeitem à demorada e custosa produção da prova pericial nos moldes tradicionais, tal como previstos atualmente. Igualmente importante é ressaltar a necessidade imperiosa, agora prevista em lei, de que o perito, no prazo de cinco dias de sua nomeação, junte aos autos, além da sua proposta de honorários e dos seus contatos profissionais, também o seu currículo atualizado com a devida comprovação de sua especialização, sob pena de substituição, conforme disposto no artigo 462, parágrafo 2º, inciso II e artigo 468, inciso I do NCPC. O que é muito alvissareiro, pois que não raro se vê na prática a nomeação de peritos não especialistas na matéria objeto de controvérsia entre as partes. Outra grande novidade está no artigo 471 do NCPC: é a  “perícia consensual”, nos litígios que comportem autocomposição, onde, as partes  de comum acordo poderão escolher um perito de confiança de ambos e indicá-lo, vinculando o próprio juiz a esta indicação. Igualmente importante é a previsão do artigo 473 sobre os requisitos do laudo pericial, que assim dispõe: “o laudo pericial deverá conter: I – a exposição do objeto da perícia; II – a análise técnica ou científica realizada pelo perito; III – a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou; IV – resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público”.

Perícias médicas Como vimos acima, não vencida a etapa na área administrativa, recorre o trabalhador à esfera judicial. Aqui, o maior empecilho no processo judicial é a desnecessidade de duas perícias médicas para o estabelecimento do nexo causal entre a incapacidade e a atividade laborativa do trabalhador. Para que, assim, seja deferida a concessão, restabelecimento ou manutenção do auxílio-doença acidentário. O tempo percorrido entre essas duas perícias é longo, fazendo com que a duração do processo também seja longa. E como se pode aplicar o princípio da duração razoável do processo num caso assim? Por certo, que como discutido acima a aplicação desse princípio, por conceito aberto e indefinido, é um desafio aos aplicadores do Direito. A sugestão abordada nesse trabalho seria de reduzir a uma perícia médica, isto é, logo na primeira perícia deferida no processo, o perito atestaria a incapacidade e sua conexão com a atividade laborativa do trabalhador, ou seja, o nexo causal. Assim, se reduziria o tempo de duração do processo. Não podemos esquecer que esse trabalhador nesse momento está sem salário do empregador, sem o benefício do INSS e sem poder trabalhar pela incapacidade. Na lista de soluções para reduzir a litigiosidade crescente e desatravancar os fóruns e tribunais brasileiros que julgam ações contra o INSS está o uso do processo coletivo, instaurado por meio de ações civis públicas, apto a reduzir de forma considerável as milhões de demandas individuais que discutem questões meramente de direito.

Conclusões 540

A evolução dos direitos fundamentais confirma que não mais se pode falar em liberdade e igualdade sem a existência dos pressupostos materiais

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Esse dispositivo também exige que o laudo seja fundamentado em linguagem simples e com coerência lógica, de acordo com o parágrafo 1º, pautando, assim, seu trabalho técnico na busca da elucidação do fato controvertido que realmente interessa à demanda Tal solução vai ao encontro dos objetivos da República, permitindo que, no conflito entre os direitos fundamentais do segurado e o interesse público secundário, prevaleçam os primeiros. Exigência de uma sociedade pluralista em que se busca a efetivação da justiça social.

Referências bibliográfcas PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 256. CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 492-494. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p.537-567. REALE JR., Miguel. Valores Fundamentais da Reforma do Judiciário. Revista do Advogado. vol.24. n.75. p.78-82. São Paulo: IASP, 2004. MACHADO, Edinilson Donisete; NAHAS, Thereza Christina; PADILHA, Norma Sueli. Gramática dos Direitos Fundamentais. 1.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p.21-44. NICOLITT, André. Razoável Duração do Processo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2014. p.15-40. WOLFGANG, Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 88-89. 3.  http://www.dgabc.com.br/Noticia/41772/inss-lidera-ranking-de-processos-judiciais. Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/

Apontamentos sobre o devido Processo Legal: Direito ao Contraditório e Análise Probatória Bruno dos Santos Vieira1 Resumo O presente artigo realiza um breve apanhado histórico acerca do surgimento de dois corolários do devido processo legal: o princípio do contraditório e a análise das provas, tecendo considerações acerca dos institutos e apontando posições doutrinárias e questionamentos. Palavras-chave: Devido processo legal; contraditório análise probatória. Abstract The present article presents a short historical briefing on two important aspects of the due process of law: the principle of the contradictory and the probation analyses, pointing out some positions embraced by the judicial doctrine and raising questions about the institutes. Keyword: Due process of law; contradictory, probation analyses.

Breve evolução histórica Não podemos discorrer sobre a temática relativa ao direito ao contraditório sem realizar uma breve introdução da evolução do denominado devido processo legal. A expressão, cunhada em inglês due process of Law, remonta aos tempos da Inglaterra feudal onde a semente dos Estados modernos germinava. Os ingleses contribuíram com o marco teórico inicial do devido processo legal por meio da outorga, por João Sem Terra, da chamada Magna Carta de 1215. Segundo Reale, “A Magna Cartha Libertatum constituiu um pacto feudal, mediante o qual os chefes de maior prestígio fizeram valer perante o Rei da Inglaterra determinadas prerrogativas que passaram a constituir limites à ação do Poder público” 2. Após anos de absolutismo, já no século XVIII, o advento da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e, mais recentemente no póssegunda guerra, a Declaração Universal dos Direitos da ONU, vieram consolidar a positivação de Direitos Fundamentais no âmbito internacional, no que foi acompanhada pelo direito interno da grande maioria dos países ocidentais que consagram hoje em suas cartas constitucionais vários princípios, dentre os quais Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos – MG. 2 Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.p.264. 1

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os que interessam para nosso estudo, os do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da inafastabilidade da jurisdição, dentre outros correlatos que se completam mutuamente. Voltando no tempo, e a título de curiosidade, o que acabará culminando por entender o presente com base no estudo do passado, Michel Foucault, em seu brilhante livra A Verdade e as Formas Jurídicas, nos contempla com uma análise histórica interessantíssima que percorre desde a longínqua idade média para demonstrar o quanto o Direito vem evoluindo e quão precárias eram as regras processuais, se é que poderíamos então classificá-las desta maneira. Segundo o professor francês, reportando-se ao Direito feudal, explica que este não apresentava os elementos dos procedimentos de inquérito presentes nas sociedades gregas e no império romano: No direito feudal o litígio entre dois indivíduos era regulamentado pelo sistema de prova (épreuve). Quando um indivíduo se apresentava como portador de uma reivindicação, de uma contestação, acusando um outro de ter matado ou roubado, o litígio entre os dois era resolvido por uma série de provas aceitas por ambos e a que os dois eram submetidos. Esse sistema era uma maneira de provar, não a verdade, mas a força, o peso, a importância de quem dizia. 3

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A confirmação de que ao nível da prova só se tratava de um jogo verbal, é que, no caso de um menor, de uma mulher ou de um padre, o acusado podia ser substituído por outra pessoa. Essa outra pessoa, que mais tarde se tornaria na historia do direito o advogado, era quem devia pronunciar as fórmulas no lugar do acusado. Se ele se enganava ao pronunciá-las, aquele em nome de quem falava perdia o processo.5

Provas do tipo mágico-religiosas eram juramentos em que, se houvesse hesitação ou recusa no proferimento, perdia-se o processo. Provas físicas consistiam numa espécie de jogo, luta ou resistência com o próprio corpo, e vejamos com o exemplo de Foucault que a realidade supera a ficção e que tivesse o exemplo sido dado em uma obra literária, seria classificada como realismo fantástico ou mesmo absurda, tão excêntrico era o grau de sua condição: Por exemplo, na época do Império Carolíngio, havia uma prova célebre imposta a quem fosse acusado de assassinato, em certas regiões do norte da França. O acusado devia andar sobre ferro em brasa e, dois dias depois, se ainda tivesse cicatrizes, perdia o processo. Havia ainda outras provas como o ordálio da água, que consistia em amarrar a mão direita ao pé esquerdo de uma pessoa e atirá-la à água. Se ela não se afogasse, perdia o processo, porque a própria água não a recebia bem e, se ela se afogasse, teria ganho o processo visto que a água não a teria rejeitado.6

Segundo Foucault, havia provas do tipo social, provas do tipo verbal, provas de cunho mágico-religiosas e provas físicas, corporais (denominadas ordálios): No velho direito da Borgonha no século XI, quando alguém era acusado de assassinato podia perfeitamente estabelecer sua inocência reunindo a sua volta doze testemunhas que juravam que ele não tinha cometido o assassinato. O julgamento não se fundava, por exemplo, no fato de terem visto, com vida, a pretensa vítima, ou em um álibi para o pretenso assassino. Para prestar juramento, testemunhar que um indivíduo não tinha matado era necessário ser parente do acusado. Era preciso ter com ele relações sociais de parentesco que garantiam não sua inocência, mas sua importância social. Isto mostrava a solidariedade que um determinado indivíduo poderia obter, seu peso, sua influência, a importância do grupo a que pertencia (...) A prova da inocência, a prova de não se ter cometido o ato em questão não era, de forma alguma, o testemunho. 4

As características de então relacionada à prova (binariedade, automaticidade, estabelecimento de força) não levavam em conta provar a verdade de sua pretensão. Com o advento (retomada) do inquérito (que guarda relação com as formas e condições de possibilidade do saber), ocorre uma sistematização do procedimento de averiguação do cometimento de uma infração. O soberano, na pessoa de um procurador, assume para si o controle da apuração de supostas infrações (que agora não atingem somente outra pessoa, mas o soberano, o detentor do poder político). O soberano então passa a utilizar-se da inquisitio, que possui origens na Igreja Católica e que caracteriza-se como instrumento útil de busca pela reconstrução ou pela reconstituição dos acontecimentos a fim de dar mais certeza ao procedimento a ser instaurado

Provas do tipo verbal eram fórmulas que, proferidas corretamente, garantiam a inocência do acusado de roubo ou de assassinato, e muitas vezes um erro gramatical ou mesmo a troca de palavras ou expressões invalidava a fórmula, frisando-se que tal fórmula não guardava relação com a verdade do que se queria provar. Uma boa tese do surgimento da figura do advogado advém dessa época: Foucault, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Tradução de Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003 pp. 58-59. 4 Op. cit. p.59.

O procurador do Rei vai fazer o mesmo que os visitantes eclesiásticos faziam nas paróquias, dioceses e comunidades. Vai procurar estabelecer por inquisitio, por inquérito, se houve crime, qual foi ele e quem o cometeu. (...)O inquérito teve uma dupla origem. Origem administrativa, ligada ao surgimento do Estado na época carolíngia; ordem religiosa, eclesiástica, mais constantemente presente durante a Idade Média. É este o inquérito que o procurador do rei – justiça monárquica nascente – utilizou para

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Idem p.59-60. Idem p. 60.

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preencher a função de flagrante delito. (...) Tem-se aí uma nova maneira de prorrogar a atualidade, de transferi-la de uma época para outra e de oferecêla ao olhar, ao saber, como se ela ainda estivesse presente. Essa inserção do procedimento do inquérito reatualizando, tornando presente, sensível, imediato, verdadeiro, o que aconteceu, como se estivéssemos presenciando, constitui descoberta capital.7:

De lá pra cá muitos anos se passaram, muitos pensadores, filósofos e nações debateram acerca da necessidade de conjugação de colheita prévia de provas e ação efetivamente judicializada, a ponto de chegarmos aos dias de hoje com um avanço importantíssimo que constitui a Sumula Vinculante n. 14 que assim estatui: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

A única crítica que fazemos é a relacionada à expressão “é direito do defensor”. Ora, se a Sumula, como bem asseverou Celso de Mello qualifica-se como eficaz instrumento de preservação de direitos fundamentais,8 esse direito fundamental diz respeito ao investigado, e não somente ao defensor. (modestamente pensamos que a redação da Sumula deveria então obedecer à garantia dada ao réu – é direito do investigado, em seu próprio interesse, ter acesso amplo, por meio de defensor legitimamente constituído, aos elementos de prova documentados que digam respeito ao exercício do direito de defesa).

Garantia do Contraditório A necessidade de informação possibilitando a devida reação caracteriza os elementos essenciais do contraditório. Antonio Scarance Fernandes, citando Joaquim Canuto Mendes de Almeida aduz que a noção clássica do contraditório abarca esses dois elementos e pode ser definido como “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”.9 Segundo Fernandes, o contraditório deve ser pleno (exigência do contraditório durante todo o procedimento) e efetivo (possibilidade real de meios e condições de contraditar), principalmente no âmbito penal. A respeito da plenitude e efetividade leciona Ada Pellegrini Grinover: E plenitude e efetividade do contraditório indicam a necessidade de se utilizarem todos os meios necessários para evitar que a disparidade de Idem p. 71. Gaio Junior, Antonio Pereira e Coelho, Frederico de Souza Andrade. Provas e o exercício do contraditório na construção qualitativa do inquérito policial. p.22. 9 Fernandes, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. p. 57.

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posições no processo possa incidir sobre seu êxito, condicionando-o a uma distribuição desigual de forças. A quem age e a quem se defende em Juízo devem ser asseguradas as mesmas possibilidades de obter a tutela de suas razões.10

Existe controvérsia acerca das diligências realizadas em inquérito policial, ainda que exista a possibilidade de contraditório diferido, mormente porque o réu não foi intimado ou não esteve presente na produção de provas ocorridas. A respeito do tema assevera Fernandes que: Em suma, pelo art. 155 do Código de Processo Penal, o juiz somente pode julgar com base em provas produzidas em contraditório judicial, mas poderá levar em conta, não exclusivamente, elementos informativos da investigação quando constituírem provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.11

Já na esfera cível, admitem-se presunções de veracidade dos fatos alegados caso a parte seja revel, levando a doutrina majoritária a entender que no processo civil basta ciência com oportunidade de resposta (citação válida) para satisfazer o princípio do contraditório. A questão se torna polêmica quando arguimos a questão relativa à presunção de veracidade, conforme iremos observar a posição de Jordi Ferrer Beltran ao discorrer sobre o direito à prova.

Direito à Prova Para Grinover, ação, defesa e contraditório estão intimamente ligados, sendo o direito à prova importante link de conexão entre os institutos na medida em que a prova irá formar o convencimento do magistrado responsável pelo provimento jurisdicional. Para ela, são essenciais ao contraditório a presença do juiz e a presença das partes como condição de validade das provas. Por maior que seja o esforço na busca da chamada verdade real em detrimento da verdade processual, a realidade vem mostrando que quando tratamos de retratar, de reconstituir, de recapitular, enfim, de reconstruir contextos passados ou fatos ocorridos, em qualquer área do conhecimento relativo a ciências humanas, nos deparamos com a dificuldade, senão impossibilidade, de constatação da verdade absoluta. Claro que o advento de tecnologias cada vez mais invasivas relacionadas à gravação de imagens e sons, a documentação melhor sistematizada, entre outros avanços, certamente proporciona melhores possibilidade probatórias dentre as que são admitidas em direito. No entanto, e com razão, salienta Jordi Ferrer Beltran: El processo judicial puede ofrecer sustento unicamente a verdades aproximadas; la información disponible en el mismo acerca de los hechos a probar es deficiente, tanto por sua faliabilidad relativa como por su carácter

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Grinover, Ada Pellegrini, Novas tendências do Direito Processual. p. 18. Apud Fernandes p. 65

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incompleto. Nunca el proceso judicial podrá ser um adecuado instrumento para la adquisición de información completa que pueda justificar uma decisión sobre los hechos que vaya más allá del carácter aproximativo12:

Beltran elenca quatro elementos como essenciais quanto se trata da temática dos elementos integrantes do direito às provas. O primeiro elemento diz respeito à amplitude do campo do conjunto probatório, que pode ser traduzido e adequado para a realidade processual, como um princípio de ampla defesa do que se pretende arguir judicialmente: juízes e tribunais devem admitir todos os meios lícitos de produção de prova a fim de que seja garantido às partes o direito de demonstrar a verdade dos fatos que fundamentam sua pretensão. Beltran alerta que são inconstitucionais as restrições ao carreamento (aposição) de provas que não estejam justificadas pela proteção de outros direitos fundamentais eventualmente em conflito, e chega mesmo a questionar a legitimidade do legislador para gravar de presunções determinados fatos, alegando que presunções absolutas (iure et de iure) podem configurar, de maneira dissimulada, um impedimento ilegítimo de provar-se fatos relevantes para a pretensão de uma das partes, podendo vir a constituir uma violação do direito à prova. O segundo elemento caracteriza uma maximização da participação das partes (portanto uma efetivação plena do direito ao contraditório) concedendose oportunidade plena de contradita. Consideramos, e não estamos sós em nossa posição, que o direito à prova exige uma leitura no sentido de compreendermos não só como amplo direito de produzir as provas mas como amplo direito de vê-las analisadas racionalmente (valoração racional das provas) pelo Juízo; este é o terceiro elemento assinalado por Ferrer Beltran, citando Taruffo: El reconocimiento del derecho de las partes a que sean admitidas y praticadas las pruebas relevantes para demonstrar los hechos que fundamentan su pretensión, es “uma garantia ilusoria y meramente ritualista si no se asegura el efecto de la actividad probatoria, es decir, la valoración de las pruebas por parte del juez em la decision”(grifo do autor).13

Beltran assevera que a exigência da valoração racional pode ser decomposta em dois elementos distintos, quais sejam, a exigência de que as provas admitidas e praticadas sejam consideradas sob o aspecto de justificativa da decisão e também sob o prisma da racionalidade; vale dizer que, para o autor, não basta que seja analisada ou justificada uma decisão com base no conjunto probatório; as provas devem ser analisadas de maneira individualizada para somente em um segundo estágio obter-se um rigor maior na análise do conjunto probatório. Beltran diz ainda, citando posição de Igartua, que a não valoração de uma prova deveria constituir violação do direito à prova. 12

Beltran, Jordi Ferrer. La Valoración Racional de La Prueba p.23.

13 548 Apud Beltran p.56.

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Relativamente à necessidade de análise racional das provas, devemos nos perguntar que tipo de racionalidade deve estar envolvida: basta o uso de silogismos? Bom senso? Ou o Juiz está adstrito somente à sua visão do que entende provado? Finalmente, o quarto elemento que caracteriza o alcance do direito à prova seria a exigência de motivação das decisões judiciais, devendo o julgador mencionar expressamente os fatos provados e os não provados. Beltran faz uma crítica aludindo a uma falta de sistematização dos critérios de racionalidade que deveria estar envolvidos na valoração da prova, ausência esta que acaba por conceder maior margem de discricionariedade ao magistrado que se vincula quase que exclusivamente, segundo o autor, à sua íntima convicção (livre valoração da prova). Claro que a critica tem procedência se tratarmos de sistemas que adotam o íntimo convencimento, mas não é esse o caso do Brasil, que adota o livre convencimento motivado (persuasão racional) ou da Itália, que adota o prudente aprezzamento ou da Alemanha, com o freie beweiswuerdigung. In casu, entendemos, data vênia, que certa margem de discricionariedade mitigada pela razão (se possível – ou de maneira desejada – racionalmente) se faz presente porquanto interpretar provas periciais, levar em conta com parcimônia os depoimentos e testemunhos, provar fatos que ocorreram, enfim, tentar reconstituir verdades, muitas vezes esbarra na impossibilidade de reinterpretação fidedigna plena do momento ocorrido ou mesmo na impossibilidade da produção da prova pelo decurso do tempo. Não obstante as dificuldades apontadas, para o bem ou para o mal a decisão do Juiz está dotada de autoridade. Um tema que chama a atenção quando tratamos da prova no processo penal são as chamas provas ilícitas e sua mitigação. Conquanto exista farta doutrina acerca da impossibilidade de utilização de provas obtidas por meio ilícito, Fernandes elenca quatro correntes fundamentais acerca do tema: 1ª: a prova ilícita é admitida quando não houver impedimento na própria lei processual, puindo-se quem produziu a prova pelo crime eventualmente cometido (Cordero, Tornaghi, Mendonça Lima) 2ª: o ordenamento jurídico é uma unidade e, assim, não é possível consentir que uma prova ilícita, vedada pela Constituição ou por lei substancial, possa ser aceita no âmbito processual (Nuvolone, Frederico Marques, Fragoso, Pestana de Aguiar) 3ª: é inadmissível a prova obtida mediante violação de norma de conteúdo constitucional porque será inconstitucional (Capelletti, Vigoriti, Comoglio). 4ª: admite-se a produção de prova obtida em violação de normas constitucionais em situações excepcionais quando, no caso, objetivavase proteger valores mais relevantes do que aqueles infringidos na colheita de prova e também constitucionalmente protegidos (Baur, Barbosa Moreira, Renato Maciel, Hermando Duval, Camargo Aranha, Moniz Aragão)

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Apontamentos sobre o devido Processo Legal: Direito ao Contraditório e Análise Probatória

No RE 251 – 445 – GO, o Ministro Celso de Mello assim manifestou-se A cláusula constitucional do due process of Law encontra, no dogma da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras, pois o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado, de não ser condenado com apoio em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites ético-jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal(...)No contexto do regime constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, impõe-se repelir, por juridicamente ineficazes, quaisquer elementos de informação, sempre que a obtenção e/ou a produção dos dados probatórios resultarem de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo, notadamente naquelas situações em que a ofensa atingir garantias e prerrogativas asseguradas pela Cara Política (RTJ 163/682 – RTJ 163/709), mesmo que se cuide de hipótese de ilicitude por derivação (RTJ 155/508), ou, ainda que não se revele imputável aos agentes estatais o gesto de desrespeito ao sistema normativo, vier ele a ser concretizado por ato de mero particular.14:

Os argumentos favoráveis à proporcionalidade germânica ou à razoabilidade norte americana, a nosso sentir, não podem prosperar em nosso país. Interessante observar a possibilidade de mitigação da questão quando se trata de direito de defesa: Poder-se-ia supor da apreciação de provas ilicitamente obtidas em Estados de exceção, tais como os fascistas. O rigor científico que deve caracterizar o defensor da democracia, bem como a sistemática análise da norma jurídica, impõenos coerência com a finalidade que ilustra o texto constitucional. Vedação da prova ilícita em favor da acusação não admite exceções. Diverso, contudo, a eventual presença de prova ilícita pro reo encontra substrato jurídico no corpo da Constituição Federal de 1988, basicamente nos princípios da ampla defesa (art. 5ºLV) e da plenitude de defesa no júri (art. 5ºLVII)15

Ricardo César Franco cita a decisão AI503717AgR – PR. Rel. Min. Carlos Velloso DJ 04/03/05 que trata da conversas gravadas sem que um dos interlocutores saiba (“A gravação de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles, sem conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, nada tem de ilícita, principalmente quando constitui exercício de defesa.”) Apesar dos aspectos controversos, a matéria encontra-se regulamentada no art. 157 do CPP. Importante ressaltar a diferença entre prova ilícita e prova ilegítima, sendo a primeira uma afronta ao direito material e a segunda ao direito processual, podendo ser refeita ou renovada a teor do disposto no art. 573 CPP. 14

Informativo STF n. 197

15 550 Franco, Ricardo César. Há que se relativizar a admissibilidade de provas ilícitas?

Bruno dos Santos Vieira

Problematizando as Garantias Constitucionais Consoante a leitura dos seguintes incisos elencados no artigo quinto da Carta Constitucional brasileira: X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; LIV – Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens em o devido processo legal; LV – Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meio e recursos a ela inerentes; LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; XXXV – A lei não excluirá da proteção do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; São muitas as questões que surgem das garantias elencadas e poucas as respostas encontradas, senão vejamos: Denúncias caluniosas, seja com que intuito for, afetam a garantia supra citada? Podemos considerar como privação de liberdade ou de bens, por exemplo, matérias jornalísticas de ampla divulgação que imputam sejam condutas criminosas sejam atos contrários à moralidade de uma comunidade? As pessoas podem ser privadas do direito ao contraditório fora do ambiente judiciário? A horizontalidade das garantias constitucionais (eficácia horizontal) é uma falácia? Estamos ainda muito longe do ideal quando se trata da consolidação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares? Vazar fotos de conteúdo privado seja em revistas seja na internet tem gerado efetiva reparação/punição? Com relação ao princípio do contraditório conjugado com o direito à prova: constitui, a presunção de veracidade na contumácia, ofensa ao princípio da motivação das decisões? (se conjugado com o princípio do livre convencimento motivado do Juiz?). Deve-se abrir dilação probatória ou basta que o Juiz, utilizando-se de uma ficção legal, faça remissão à lei processual para afirmar verdadeiros os fatos alegados desde que outra conclusão não se possa extrair dos autos? (E como existe uma parte revel e na maioria das vezes não ocorreu ainda a fase de dilação probatória, dificilmente outra conclusão se poderá extrair). A resposta a tais questões caberá a cada operador do direito, na medida de seu interesse em casos concretos, mesmo porque não pretendemos neste artigo apresentar soluções, mas tão somente instigar quanto à variedade de problemas e perguntas sobre a fascinante temática. Esperamos, com os apontamentos e principalmente, com os questionamentos colocados, provocar nos leitores a reflexão crítica tão necessária no ambiente jurídico contemporâneo.

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Referências bibliográficas Beltran, Jordi Ferrer. La Valoración Racional de La Prueba. Madrid: Marcail Pons, 2007. Fernandes, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. Foucault, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Tradução de Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. Franco, Ricardo César. Há que se relativizar a admissibilidade de provas ilícitas?. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3885, 19 de fev. de 2014. Disponível em: [http://jus.com. br/artigos/26733] Gaio Junior, Antonio Pereira; Coelho, Frederico de Souza Andrade. Provas e o exercício do contraditório na construção qualitativa do inquérito policial. Disponível em: [http:// www.gaiojr.adv.br/artigos] Grinover, Ada Pellegrini, Novas tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996. Legislação e Periódicos: Constituição Federal 1988 Informativo STF n.197

Principais Inovações no Processo Civil Brasileiro trazidas pelo NCPC/2015 – Uma Análise Epistemológica e Constitucional Bruno Leiroz Lopes Chaves1 Resumo O presente trabalho tem por finalidade analisar de maneira exauriente os principais institutos jurídicos introduzidos pelo Novo Código de Direito Processual Civil Brasileiro – NCPC/2015 e as principais alterações e supressões existentes em relação ao antigo Código de Direito Processual Brasileiro de 1973. Tal análise se mostra inicial dada a vacatio legis de um ano e a entrada em vigor do NCPC em 2016. Mostraremos as novas normas e a visão da melhor doutrina a cerca dos institutos. Palavras-chave: Novo código de direito processual civil brasileiro; NCPC/2015; direito processual civil brasileiro; inovações; alterações; supressões. Abstract This study aims to analyze in a complete way the main legal institutions introduced by the New Brazilian Code of Civil Procedure Law - NCPC / 2015 and the major changes and supressions that exist in relation to the former Brazilian Code of Civil Procedure Law of 1973. Such analysis is initial because of the vacatio legis of a year and the NCPC will take effect in 2016. We will show the new laws and the view of the best doctrine about the institutes. Keywords: New brazilian code of civil procedure law; NCPC/2015; brazilian civil procedure law; innovations; changes; supressions.

Dos Princípios Processuais Civis mais alterados pelo NCPC/2015 Contraditório Conforme o art. 5º, LV, CF: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, como os meios e recursos a ela inerentes.” Assim como a 1

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Advogado; Consultor Jurídico; Palestrante; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor de Direito; Parecerista; Assessor Jurídico no Centro de Estudos Avançados em Direito – CEADI – CESVA – FAA; Pós-Graduando em Direito Processual Civil – Universidade Anhanguera – UNIDERP; Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Valença/ RJ (FDV) – Centro de Ensino Superior de Valença/RJ (CESVA) - Fundação Educacional Dom André Arcoverde (FAA); Aprovado em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Diversos cursos de especialização, nível Magistratura e Ministério Público; e- mail: [email protected].

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Lei da Arbitragem (art. 21, § 2º, Lei 9.307/1996), também traz previsão do contraditório no âmbito do processo arbitral. Tal princípio em tela é formado por três elementos: informação, reação e poder de influência. O magistrado é obrigado a informar as partes dos atos processuais (dever judicial), enquanto as partes podem reagir (ônus processual). Tal princípio encontra-se no art. 9º, “caput” do NCPC, nos trazendo uma interpretação que nenhuma decisão será proferida, sem que a parte adversa seja intimada e a ela seja oportunizada a possibilidade de manifestação. Já o art. 7º, NCPC, nos traduz a ideia de que o juiz zele pelo efetivo contraditório, ou seja, que ele se manifeste no sentido de concretamente poder influenciar o convencimento do juiz. Assim, solucionando a confusão que existe entre decidir de ofício e decidir sem a oitiva das partes2, determinadas questões devem ser levadas ao processo para serem conhecidas, enfrentadas e decididas. Assim o magistrado, antes de tomar a sua decisão, mesmo em relação a matérias cognoscíveis de oficio, deve intimar as partes e dar-lhes oportunidade para se manifestarem. Nesse sentido, é muito claro o art. 10 do NCPC (Lei 13.105, de 16- 3 – 2015), em que nenhum órgão jurisdicional poderá julgar sem que se tenha dado às partes do processo oportunidade para se manifestarem ainda que em relação à matérias conhecíveis de ofício. Já o contraditório diferido encontra-se no parágrafo único do art. 9º do NCPC, prevendo os casos de tutela provisória de urgência, tutela de evidência e a decisão prevista no art. 701, NCPC. Importante frisar que não basta que seja tutela provisória de urgência, mas que haja risco do perecimento do direito e/ou ineficácia da tutela pretendida. Merece especial destaque, os atos de abuso do direito de defesa, que são atos processuais com manifesto propósito protelatório, praticados fora do processo, gerando consequências processuais. Nestes casos, não há que se falar em antecipação de tutela, entretanto o réu poderá ser punido por litigância de má-fé (art. 80, NCPC), atentatório à dignidade da jurisdição (art. 77, IV, NCPC) ou atentatório à dignidade da justiça (art. 774, NCPC).3 A melhor doutrina que já se manifestou sobre o tema, defende a possibilidade de concessão liminar de tutela antecipada por atos praticados pelo réu antes mesmo da propositura da demanda.4 Dessa forma, procura- se evitar no NCPC, o contraditório inútil. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2005, V.1, p.48-50 3 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 154; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas de urgência. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.330. 4 THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. , p.567. Contra: DIDIER JR.-BRAGA-OLIVEIRA, Curso, p.636. 2

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Motivação Inicialmente, não faremos a diferenciação entre motivação (em que o juiz explica o que pessoalmente acha sobre o Direito) e fundamentação (em que o julgador explica porque razões aceita ou rejeita determinada interpretação e compreensão do Direito estabelecida pelo cidadão).5 Motivar e fundamentar significam exteriorizar as razões de decidir, e nessa tarefa obviamente as opiniões pessoais do juiz são irrelevantes, devendo o magistrado aplicar ao caso concreto o Direito, e não concretizar suas aspirações pessoais.6 O princípio ora analisado tem assento no texto constitucional no seu art. 93, IX, como também o NCPC o consagra no art.11. Entretanto o NCPC foi além, previu no art. 489, § 1º, as hipóteses em que não se consideraram fundamentadas qualquer decisão judicial. Dessa forma, o julgador estará mais controlado e terá sua atuação supervisionada pelo texto de lei no sentido em que o magistrado terá que apresentar os reais motivos de sua fundamentação para o caso concreto, não se valendo mais de fundamentações genéricas, sob pena de nulidade da sentença. E ainda nesse sentido, o rol das hipóteses descritas no dispositivo legal ora analisado é meramente exemplificativo.7 Da mudança de paradigma desse novo princípio, temos a transição no sistema brasileiro de um sistema de fundamentação das decisões judiciais da fundamentação suficiente8 (atual) para um sistema de fundamentação exauriente. Além disso, percebemos da análise do sistema que o Brasil está adotando o sistema de precedentes judiciais, sendo um misto do Civil Law com o Common Law. De acordo com o art. 927, NCPC passamos a ter diversas hipóteses de eficácia vinculante. Finalmente, no art. 489, § 2º, NCPC nos é apresentada a Técnica de Ponderação, onde o magistrado deve justificar sua ponderação nos casos de colisão entre normas.

Do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) Conforme o art. 976, caput do NCPC, o IRDR é cabível quando houver, simultaneamente, efetiva repetição de processos quem contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Busca-se através desse incidente, dar um tratamento isonômico a diferentes processos que versem sobre a mesma matéria jurídica, garantindo dessa forma a segurança jurídica. 5

OMMATI, José Emilio Medauar. A fundamentação das decisões jurisdicionais no projeto do NCPC. Salvador: JusPodivm, 2014, v.3, p.109

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NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo CPC. Rio de Janeiro: Forense,2015. Enunciado 303 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 8 STJ, 2ª Turma, AgRg no AREsp 549.852/RJ; AgRg nos EDcl no REsp 1.353.405/SP. 7

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Com este instituto, busca-se a solução dos denominados conflitos de massa como ações que envolvam consumidores e prestadoras de serviço, recorrente caso o das empresas de telefonia, evitando-se assim que todas as causas que possam ser solucionadas de uma única forma tenham que sofrer inúmeros atos para se chegar ao exato mesmo resultado por tratarem-se da mesma questão.9 A referência do incidente é oriunda do Direito Alemão, baseado em uma lei criada em 2005 de nome “kapitalanleger-Musterverfahrengesetz”, criada inicialmente para litígios acerca do mercado de capitais e possuindo prazo temporário de 05 anos, devendo ser extinta depois de decorrido tal limite temporal. No entanto, antes do término do prazo, o instituto foi incorporado ao ordenamento jurídico, vindo a fazer parte do código de processo civil alemão ZPO “Zivilprozessordnung”. O primeiro caso, e que deu origem à ferramenta, foi o caso (DT) Deustche Telekom, onde milhares de investidores buscaram a via judicial em razão de se sentirem lesados pela notícia de uma eventual extensão de patrimônio da sociedade, tendo sido ajuizadas ações por aproximadamente 15 mil investidores representados por mais de setecentos e cinquenta advogados.10 O IRDR aplica-se a recurso, remessa necessária ou a qualquer processo de competência originária de tribunal.11 É incabível o IRDR quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material e processual repetitiva, a luz do §4º, art. 976, NCPC. Os legitimados para o pedido de instauração do incidente estão elencados no art.977, NCPC e tal incidente será dirigido ao presidente do tribunal. A competência para julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo RI dentre aqueles responsáveis pela uniformização da jurisprudência no tribunal. (art.978, NCPC). O incidente de demandas repetitivas compete a tribunal de justiça ou tribunal regional.12 A instauração e o julgamento do IRDR serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade por meio de registro eletrônico no CNJ (art. 979, caput, NCPC), como forma de orientar o juízo e as partes. O procedimento do incidente se desenvolverá da seguinte maneira: após a distribuição do incidente, o órgão colegiado competente para julgar o IRDR procederá ao seu juízo de admissibilidade (art.981, NCPC) na forma do art. 976, NCPC. Admitido o incidente, o relator, suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região; poderá requisitar informações ao órgão a quo e intimará o MP para se manifestar no prazo de

15 dias. (art. 982, NCPC). Conforme o § 3º do art. 982, como garantia da segurança jurídica, os legitimados do art. 977, II e III, NCPC, quais sejam: partes, MP e Defensoria Pública poderão formular pedido junto ao STF e STJ para que todos os processos repetitivos em trâmite no território nacional sejam suspensos, ainda que o IRDR tenha sido suscitado apenas em um Estado (JE) ou em uma região judiciária (JF). O relator ouvirá as partes, inclusive com a intervenção do amicus curiae e o MP. Julgado o IRDR, a tese jurídica será aplicada a todos os processos, individuais ou coletivos, que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitam na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive nos JE. Assim como a tese fixada será aplicada aos casos futuros que versem sobre idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo no caso de revisão da tese, prevista no art. 986, NCPC. (art. 985, NCPC). Do julgamento do mérito do IRDR, caberá Recurso Extraordinário ou Recurso Especial, conforme o caso. (art. 987, NCPC). A prescrição ficará suspensa até o trânsito em julgado do IRDR.13 Havendo a cumulação de pedidos simples, a suspensão a que se referem os arts. 982 I e § 3º e 987, § 1º, NCPC, poderá provocar apenas a suspensão parcial do processo, não impedindo o prosseguimento em relação ao pedido não abrangido pela tese a ser firmada no incidente de resolução de demandas repetitivas.14 Os interessados serão intimados da suspensão de seus processos individuais, podendo requerer o prosseguimento ao juiz ou ao tribunal onde tramitam, demonstrando a distinção entre a questão a ser decidida e aquela a ser julgada no IRDR ou nos recursos repetitivos.15 O IRDR será julgado no prazo de um ano e terá preferência sobre os demais feitos. (art. 980, NCPC). O Incidente é voltado para conflitos de massa, em que há obrigação do intérprete a considerar a carta política em sua globalidade, afastando as aparentes antinomias, sendo isto um exemplo fiel do que deve ser levado em conta na aplicação das normas que tratam do processo de massa, conferindo-o, deste modo, unidade e coerência.16

MONTENEGRO FILHO, Misael.  Projeto do Novo Código de Processo Civil: Confronto entre o CPC atual e o projeto do novo CPC: com comentários às modificações substanciais. São Paulo: Atlas, 2011. p. 404. 10 NUNES, Dierle; PATRUS, Rafel Dilly. Novas Tendências do Processo Civil – Estudos Sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil, Salvador: JusPodivm, 2013.p. 477. 11 Enunciado 342 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 12 Enunciado 343 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 9

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Do Incidente de Assunção de Competência É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos. (art. 947, NCPC). Enunciado 206 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). Enunciado 205 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 15 Enunciado 348 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 16 CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993. P. 226. 13 14

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Por força da expressão “sem repetição em diversos processos”, não cabe o incidente de assunção de competência quando couber julgamento de casos repetitivos.17 O objetivo do legislador ao criar esse incidente foi no sentido da previsibilidade de processos únicos e/ou raros de alta relevância social em que se faz necessária a análise cuidadosa por um órgão colegiado experiente para fixar tese na hipótese em tela. O §4º do art.947 do NCPC cria mais uma hipótese de cabimento do incidente de assunção de competência quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal. Temos aqui mais uma nítida demonstração da tentativa de unificação de jurisprudência nos tribunais com a criação de precedentes que servirão como leading cases para fixação de teses que vincularão todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese (overruling) (§3º art. 947, NCPC). O procedimento do incidente em tela ocorre quando o relator, propondo de oficio ou a requerimento da parte, do MP ou da Defensoria Pública, que o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária seja julgado pelo órgão colegiado que o regimento interno do tribunal designar. (art. 947,§ 1º, NCPC). O juízo de admissibilidade que acarretará no julgamento do incidente pelo órgão colegiado levará em conta o interesse público na assunção de competência. (§2º, art. 947, NCPC). Finalmente, da análise aprofundada do instituto ora analisado, vemos uma clara intenção do legislador de unificar a jurisprudência dos tribunais, ocasionando a segurança jurídica, onde processos especiais com grande repercussão geral ou interesse público (usados neste contexto como sinônimos) sejam conhecidos, processados e julgados, com ampla discussão por órgãos colegiados designados no tribunal para este fim e que permitam um julgamento mais acertado do tema em análise.

Tal negócio jurídico pode ser celebrado por qualquer parte, inclusive a Fazenda Pública19, o MP20 (na condição de autor ou réu), em processos individuais ou coletivos21. O instituto ora estudado remonta o direito inglês (case management) e o francês (contrat de procédure) e cria uma cláusula geral de negociação processual, que pode ter como objeto as situações processuais das partes, o procedimento e a fixação de um calendário procedimental. O magistrado, por sua vez, de ofício ou a requerimento da parte, controlará a validade das convenções previstas no contrato, recusando-lhes aplicação nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade. (§ único art. 190, NCPC). Assim percebe-se que o procedimento acordado entre as partes depende de homologação judicial. De comum acordo juiz e partes, fixar-se-á calendário para a prática dos atos processuais22. O calendário os vinculará e os prazos neles previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados. Uma vez elaborado o calendário haverá a dispensa de intimação das partes para a prática de atos processuais. (art. 191, NCPC). A homologação judicial se apresenta como condição de eficácia do negócio jurídico.23 No nosso sentir, trata-se de uma grande mudança no nosso direito processual civil em que o estado-juiz vincula-se à vontade das partes, mesmo que com elas não concorde o magistrado. O controle dos requisitos objetivos e subjetivos de validade da convenção de procedimento deve ser conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade do ato sem prejuízo.24 Há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem assistência técnico-jurídica.25 Além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os vícios sociais podem dar ensejo à invalidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 190, NCPC.26 Negocio jurídico processual pode ser invalidado parcialmente.27 Conforme já se manifestou a melhor doutrina, estão entre os poderes de convenção o poder de não recorrer ou acordo de instância, de forma que as partes podem convencionar que o processo será decidido definitivamente somente em uma determinada instância. Esse entendimento afastará a resistência atual na admissão da renúncia prévia ao direito de recursal, ainda que realizada mediante acordo das partes.28

Do Negócio Jurídico Processual Versando o processo sobre direitos que admitam a autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. (art.190, NCPC). No nosso sentir, trata-se de uma das maiores novidades trazidas pela Lei 13.105/2015, onde as partes poderão determinar o procedimento, “as regras do jogo” para a solução do conflito no qual fazem parte. A indisponibilidade do direito material discutido no processo não impede, por si só, a celebração do negócio jurídico ora analisado.18 17

Enunciado 334 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC).

18 558 Enunciado 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC).

Enunciado 256 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). Enunciado 253 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 21 Enunciado 255 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 22 Instituto existente no direito francês e italiano. 23 Enunciado 260 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 24 Enunciado 16 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 25 Enunciado 18 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 26 Enunciado 132 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 27 Enunciado 134 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 28 FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,2004, p. 949; ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT,2008, n.19.4.1.4,p.166; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.v.5, n.185,p.343 19 20

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O negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boafé e à cooperação.29 Limites ao negócio jurídico processual, forma exemplificativa: São admissíveis os seguintes negócios processuais bilaterais, dentre outros: pacto de impenhorabilidade, acordo bilateral de ampliação de prazos das partes, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória.30 Além desses também são admissíveis: acordo para realização de sustentação oral, acordo para ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento convencional do mérito convencional, convenção sobre prova, redução sobre prazos processuais.31 Não são admissíveis os seguintes negócios bilaterais, dentre outros: acordo para modificação da competência absoluta, acordo para supressão da 1ª instância.32 É válida a convenção para excluir a intervenção do MP como fiscal da ordem jurídica.33 O negócio jurídico celebrado nos termos do art. 190, NCPC obriga herdeiros e sucessores.34 Tal instituto, ora analisado, apresenta grande interesse acadêmico, entretanto, a sua aplicabilidade no bojo da prática forense se dará com o decurso do tempo.

O CPC/2015 é inovador ao determinar um procedimento definido e inteligente que realmente possa incrementar a conciliação e a mediação como forma de solução da lide e a extinção do processo por sentença homologatória de autocomposição. Visa – se, pois, a pacificação social ou o deslinde da lide sociológica. Os artigos relacionados aos conciliadores e aos mediadores judiciais estão previstos dos arts. 165 a 175 do NCPC. Interessante nesse momento fazer a distinção entre conciliador e mediador. O conciliador atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem (§2º, art. 165, NCPC). Já o mediador atuará de forma preferencial nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes e auxiliará os interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos. O mediador dessa maneira não propõe soluções, apenas intermedeia o diálogo entre as partes para que estas possam por si mesmas encontrar a solução do conflito. A melhor doutrina nos ensina que o mediador deve escutar com atenção, interrogar para saber mais e resumir o que entendeu para esclarecer pontos importantes do conflito.35 Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos (art. 165, NCPC). A conciliação e a mediação serão regidas pelos seguintes princípios: independência, imparcialidade, autonomia da vontade, confidencialidade, oralidade, informalidade e da decisão informada, conforme art.166, NCPC. Será permitida a criação de câmaras privadas de conciliação e mediação que serão inscritas em cadastro nacional e em cadastro do tribunal de justiça ou do tribunal regional federal. (art.167, NCPC). Nesse mesmo contexto é importante destacar que as partes, de comum acordo, poderão escolher o conciliador, o mediador ou a câmara privada de conciliação e de mediação. (art. 168, NCPC) A União, os Estados, o distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação para a solução consensual de conflitos no âmbito administrativo. (art. 174, NCPC)

Da Mediação e da Conciliação O NCPC nos trouxe uma série de modificações no tocante ao processo civil brasileiro. Além do fato de que a sentença de mérito passou a ser a prioridade para os magistrados brasileiros, a autocomposição também se apresenta como um elemento essencial para a solução dos litígios de uma forma menos agressiva para as partes envolvidas. A preocupação do NCPC com os equivalentes jurisdicionais já se encontra no art.3º, §3º do diploma ora estudado, em que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual dos conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do MP, inclusive no curso do processo judicial. O §1º do art.3º trata da previsão legal expressa de permissão da arbitragem e o §2º nos ensina que o Estado promoverá sempre que possível a solução consensual dos conflitos, sendo formas alternativas de solução de conflitos e parte da doutrina até os chama de meios adequados. Enunciado 06 do II Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 30 Enunciado 19 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 31 Enunciado 21 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 32 Enunciado 20 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 33 Enunciado 254 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 34 Enunciado 115 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 29

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Da Intervenção de Terceiros Outro tema que sofreu considerável modificação com o advento do NCPC foi a intervenção de terceiros. O tema em análise está previsto nos arts. 119 a 138, NCPC. Assim, dessa forma, serão consideradas intervenções de terceiros para a Lei 13.105/2015, os seguintes casos em número de cinco: a assistência (que se 35

Fernanda Tartuce, Mediação, p.208

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subdivide em assistência simples e assistência litisconsorcial), a denunciação da lide, o chamamento ao processo, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica e o amicus curiae. Deixaram de fazer parte do título da intervenção de terceiros no NCPC os seguintes casos (dois): oposição e nomeação à autoria. Trataremos de forma resumida dos casos supracitados, dando preferência ao que é novo no NCPC.

Como se pode perceber, teremos a formação de um litisconsórcio unitário, facultativo e ulterior.37 Requisitos: lide pendente, lide própria e interesse jurídico (a sentença atingirá diretamente uma relação jurídica do assistente). O assistente litisconsorcial é parte, é litisconsorte e, será alcançado pela coisa julgada material. Da denunciação da lide Tal instituto encontra-se presente no art. 125, NCPC. Ele se materializa em duas situações: inciso I) na evicção e inciso II) no direito de regresso. Como exemplo do I temos: A (alienante) vende determinado bem a B (adquirente), C por sua vez ingressa com Ação Reivindicatória sobre o bem. Neste caso B denuncia à lide A, que deverá indenizar B. Também é possível no caso de imissão na posse. Como exemplo do inciso II, temos uma situação triangular entre A (seguradora), B (segurado) e C (vítima). C ingressa com Ação de Reparação de Danos em face de B, este por sua vez denuncia à lide A (seguradora). Tal previsão também está no Código Civil no art. 787, CC, em especial no §3º. Se for caso de seguro obrigatório (art.788, CC), a indenização por sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro prejudicado. Importante destacar nesse momento as súmulas 529 e 537 do STJ. No caso de Ação contra ato praticado por servidor público, a vítima deverá ingressar contra a Fazenda Pública cuja responsabilidade é objetiva e esta promoverá a devida Ação Regressiva em face do servidor, cuja responsabilidade é subjetiva, dependendo da demonstração de culpa. Sobre a inclusão de fundamento novo em denunciação da lide, existem três posições: 1ª) Interpretação restritiva, 2ª) Interpretação ampliativa e 3ª) Interpretação intermediária, que é a posição do STJ, em que é possível a inclusão de fundamento novo, desde que não comprometa a celeridade processual (provando, por exemplo, uma lide paralela com ampla instrução probatória). 38 O art. 456, CC foi revogado pelo art. 1072, NCPC. A denunciação da lide não é obrigatória nem mesmo no caso da evicção. É possível ação autônoma de regresso. (art. 125, §1º, NCPC). Segundo o §2º do art. 125, NCPC será admitida uma única denunciação sucessiva. A natureza da relação entre o denunciante e o denunciado é de Litisconsórcio, conforme doutrina de Arruda Alvim (posição majoritária) e do STJ e conforme arts. 127 e 128, I, NCPC. l

Da Assistência Pendendo causa entre duas ou mais pessoas, o terceiro juridicamente interessado em que a sentença seja favorável a uma das partes, poderá intervir no processo para assisti-la. A assistência será admitida em qualquer procedimento e em todos os graus de jurisdição, recebendo o assistente o processo no estado em que se encontre. (art. 119, NCPC) l

Da assistência simples O assistente simples atuará como auxiliar da parte principal, exercerá os mesmos poderes e sujeitar-se- á aos mesmos ônus processuais que o assistido. Sendo revel ou de qualquer modo, omissivo o assistido, o assistente será considerado seu substituto processual. (art. 121, NCPC). Ele poderá praticar atos benéficos à parte mas não poderá praticar atos maléficos ou de disposição, como por exemplo, o reconhecimento da procedência do pedido e a transação. O assistente simples não está sujeito à coisa julgada material, mas não poderá em processo posterior discutir a justiça da decisão (art. 123, NCPC) com exceção dos incisos I e II. Três requisitos são necessários para que ocorra a assistência simples: lide pendente, lide alheia e interesse jurídico (a possibilidade de a sentença atingir reflexamente uma relação jurídica do assistente). 36 O interesse não pode ser apenas econômico ou afetivo. Como exemplo desse tipo de intervenção, podemos citar uma ação de despejo entre o locador e o locatário e o sublocatário intervém como assistente simples do locatário. Importante destacar o caso da Intervenção anômala ou anódina prevista no parágrafo único da Lei 9.469/97, em que é dispensado o interesse jurídico. l

Da assistência litisconsorcial Considera-se litisconsorte da parte principal o assistente sempre que a sentença influir na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido. (art. 124, NCPC) Como exemplo desse tipo de assistência, podemos destacar o seguinte caso: X e Y são condôminos, proprietários de um terreno, X entra com uma ação reivindicatória em face de Z, neste caso Y poderá ingressar como assistente litisconsorcial de X. l

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Rodrigo da Cunha – Anotações de aula

Do Chamamento ao Processo Previsto no art. 130, NCPC, trata-se de uma forma de facilitar a cobrança de uma dívida envolvendo devedores solidários; fiador e afiançado ou fiadores, por meio de um litisconsórcio ulterior provocado pelo réu. l

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Rodrigo da Cunha – Anotações de aula Rodrigo da Cunha – Anotações de aula

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Só é possível para o pagamento de quantia, não sendo aceito para entrega de coisa. (art. 130, III, NCPC).39

A tutela provisória de urgência poderá ser cautelar ou antecipada e poderá ser concedida em caráter antecedente ou incidental. (PU do art. 294, NCPC). A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito (fumus boni iuris) e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (periculum in mora). (art. 300, NCPC). A tutela de urgência antecipada, nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil ao processo. (art. 303, NCPC). A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão. (§3º, art. 300, NCPC). Concedida a tutela antecipada, o autor deverá aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final em 15 dias ou em outro prazo maior que o juiz fixar (§1º, I, art. 303, NCPC), sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito (§2º, art. 303, NCPC). Já a tutela de urgência cautelar será verificada quando a petição inicial da ação que visa à prestação de tutela cautelar em caráter antecedente indicará a lide e seu fundamento, a exposição sumária do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. Tal tutela será efetivada nos moldes do art. 301, NCPC. Por fim a tutela de evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; as alegações puderem ser comprovadas apenas documentalmente e já houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante; se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito; a petição inicial for instruída com prova documental suficiente do direito do autor a qual o réu não oponha defesa que possa gerar razoável dúvida.

Do Incidente de Desconsideração da Personalidade jurídica Prevista nos arts. 133 a 137, NCPC e nos arts. 50, CC e 28, CDC. O incidente é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução de título extrajudicial. Também é cabível no procedimento comum, nos procedimentos especiais e nos juizados especiais (art. 1062, NCPC). A legitimidade será de qualquer das partes ou do MP quando lhe couber intervir no processo. O incidente não poderá ser suscitado de ofício pelo juiz. Esse incidente poderá ser dispensado se a desconsideração for requerida com a inicial. Neste caso, será citado o sócio (se a desconsideração for tradicional) ou a PJ (se a desconsideração for a inversa) e não haverá a suspensão do processo. Procedimento do incidente: 1º) requerimento de instauração do incidente, com a demonstração dos requisitos legais. (art. 50, CC ou 28, CDC). 2º) comunicação ao distribuidor para as devidas anotações e suspensão do processo. 3º) citação do sócio ou da PJ para se manifestar e requerer provas em 15 dias. 4º) instrução, se necessária. 5º) Decisão interlocutória. Temática recursal: Agravo de Instrumento contra decisão de juiz e Agravo Interno contra decisão de relator. Obs.: percebe-se dessa forma que houve a criação de um caso de agravo nos JEC.40 l

Do Amicus Curiae Instituto previsto no art. 138, NCPC. É o sujeito do processo que auxilia o julgador, aprimorando a qualidade da decisão judicial. Pode ser tanto PN quanto PJ. Não se confunde com o assistente simples, pois sua intervenção não precisa de interesse jurídico. Sua intervenção pode ser espontânea ou provocada. Requisitos da intervenção: relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia. O amicus curiae não pode recorrer, exceto para interpor Embargos de Declaração ou para recorrer do IRDR. A decisão do magistrado que defere o ingresso do amicus curiae é irrecorrível.41 l

Da Tutela Provisória A tutela provisória fundamentar-se-á em urgência ou evidência. (art. 294, NCPC). Rodrigo da Cunha – Anotações de aula Rodrigo da Cunha – Anotações de aula 41 Rodrigo da Cunha – Anotações de aula 39

Dos Recursos Essa foi uma das áreas mais modificadas pelo NCPC. Diversos recursos foram repaginados e outros foram extintos. A regra hoje do ordenamento é da não recorribilidade. Ou seja, nem toda decisão é recorrível, mas toda decisão pode ser atacada de alguma forma.42 Agora o juízo de admissibilidade será feito pelo órgão ad quem. Dos recursos que foram extintos, podemos destacar: o Agravo Retido, os Embargos Infringentes, o Agravo do art. 544 do CPC/73. Já os recursos que foram modificados, cabe especial atenção ao Agravo de Instrumento.

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Renato Montans – Anotações de aula.

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Considerações finais Por tudo quanto foi exposto, procuramos apresentar algumas das principais modificações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2015. As interpretações que foram apresentadas no decorrer da exposição foram as primeiras impressões mais importantes ao nosso sentir e aos olhos da melhor doutrina que já se manifestou sobre o diploma supracitado. Importante frisar que o amadurecimento de tal doutrina somente se fará com o decurso do tempo e a consolidação jurisprudencial ao longo dos anos. Somente com o amadurecimento doutrinário e jurisprudencial teremos a real dimensão do NCPC e veremos o que será colocado em prática e o que será letra morta de lei. Por fim, mas não menos importante, que esses estudos ora apresentados possam servir de norte para a interpretação inicial dos principais institutos trazidos pelo diploma que revolucionará o Direito Processual Civil Brasileiro.

Ações afirmativas com o fito de reduzir a Discriminação, com enfoque na Lei de Cotas Étnico-raciais para ingresso em Universidades Públicas Fernando Amiel Junior1 João Matheus Vianna Amiel2 Renan de Carvalho Pinheiro3 Resumo Este trabalho faz uma análise das ações afirmativas na sociedade brasileira, comparando com contextos de outras sociedades e utilizando o direito comparado como uma ferramenta de estudo. O enfoque do trabalho reside em uma ação afirmativa específica, as chamadas cotas raciais para o ingresso em universidades públicas que hoje obedecem ao critério étnico-racial. É imprescindível analisar, primeiramente, o histórico da discriminação. Dentro dessa perspectiva de análise da questão discriminatória as ações afirmativas nos fazem vislumbrar um antídoto para esse problema, no sentido de integrar um grupo desfavorecido de alguma maneira, à sociedade. O presente trabalho visa fornecer substratos para que o leitor tenha fundamentos para basear sua posição acerca do tema. Palavra-chave: Ações afirmativas; sociedade brasileira; outras sociedades; cotas raciais; critério; étnico-racial. Abstract This work is an analysis of affirmative action in Brazilian society, compared to contexts of other companies and using the comparative law as a study tool. The work of the focus is on a specific affirmative action, calls racial quotas for entry into public universities today obey the ethnic and racial criteria. It is essential to analyze, first, the historical discrimination. Within this perspective of analysis of discriminatory question affirmative actions make us envision an antidote to this problem, to integrate a disadvantaged group in some way to society. This paper aims to provide substrates for the reader to have grounds to base its position on the subject. Keyword: Affirmative action; brazilian society; other societies; racial quotas; criterion; ethno racial. Mestre em Administração Pública – Fundação Getúlio Vargas - Bacharel em Ciências Econômicas – Universidade Gama Filho - Bacharelando em Direito – Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM - E-mail: [email protected] 2 Bacharel em Direito – Universidade Candido Mendes - E-mail: [email protected] 3 Bacharel em Direito – Universidade Candido Mendes - E-mail: renanc_pinheiro@globo. com 1

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Ações afirmativas com o fito de reduzir a Discriminação, com enfoque na Lei de Cotas Étnico-raciais para ingresso em Universidades Públicas

Introdução O Brasil está entre os 15 países com maior desigualdade no mundo. Embora a vida da camada mais pobre tenha melhorado nas últimas décadas, não se pode afirmar, com certeza, que houve uma diminuição no abismo entre os que estão no topo e na base da pirâmide social.  Dessa forma, baseando-se na Constituição Federal de 1988, cabe o seguinte questionamento: o Brasil pode adotar leis que estabeleçam o sistema de cotas com o objetivo de promover o ideal de igualdade? E quanto a outros tipos de ações afirmativas, elas afrontam a nossa Carta Magna? Alguns critérios utilizados geram discordâncias, ao menos em uma gama da sociedade, como é o caso das cotas para estudantes da rede pública de ensino, negros, pessoas com deficiência e integrantes de outras minorias étnicas, enquanto outras políticas alternativas não sofrem, a princípio, com óbice tão grande, como é o caso do critério da idade, com vistas a concessão de prioridade de tramitação processual. O presente trabalho tem como finalidade debater o tema das políticas afirmativas, tão atual em nossa sociedade, dando um enfoque especial à questão de cotas. Para isso, será percorrido um longo caminho, analisando-se os meandros da questão racial ao longo do tempo, tanto no Brasil quanto em outras sociedades. Em 28 de agosto de 1963, em Whashington, capital dos Estados Unidos da América, o pastor Martin Luther King4 discursou para mais de 250.000 pessoas de diferentes etnias. A manifestação teve por escopo divulgar as condições do negro na sociedade americana e exigir maior comprometimento do Estado para assegurar os direitos civis a esses cidadãos. Aproveitamos aqui o ensejo para transcrever um trecho do discurso acima referido: “Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter.”5

Conceito das ações afirmativas O termo “ação afirmativa”, adotado no Brasil, tem origem norte- americana, no entanto, em todas as partes do mundo, foram criadas correntes que seguiam os mesmos princípios de promoção da equidade utilizando-se denominações distintas como “discriminação positiva”, “ação positiva”, “política afirmativa”, entre outros. Sendo assim, diversos estudiosos criaram seus conceitos acerca dessas correntes. LUTHER KING, Martin. Nascido em Atlanta 1929, a partir do ano de 1955, começou a lutar pelos direitos civis dos negros norte-americanos organizando inúmeras manifestações pacifistas. Recebeu o prêmio Nobel da paz no ano de 1964. Assassinado no Tennessee em 1968. 5 LUTER KING. Martin. Discurso. Disponível em: . Acesso em: 10 mai 2015. 4

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Para Antonio Sergio Guimarães (1997, p.223), baseado em seu fundamento jurídico e normativo, essas ações: (...) Consistiriam em promover privilégios de acesso a meios fundamentais – educação, emprego, principalmente – a minorias étnicas, raciais ou sexuais, que de outro modo, estariam deles excluídas, total ou parcialmente.

Weiden (2005, p.495) conceitua da seguinte forma: (...) são medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros.

Para o Ministério da Educação, em seu site, educação para as relações étnico-raciais é: […] conjunto de medidas especiais voltadas a grupos discriminados e vitimados pela exclusão social ocorridos no passado ou no presente. Com o objetivo de eliminar as desigualdades e segregações, de forma que não se mantenham grupos elitizados e grupos marginalizados na sociedade, ou seja, busca-se uma composição diversificada onde não haja o predomínio de raças, etnias, religiões, gênero, etc. (PROUNI. http://etnicoracial.mec.gov.br/acoes-afirmativas-cotas-prouni 2002).

Percebemos assim que todos os conceitos apresentados identificam características comuns para essas correntes tão debatidas na sociedade atual. Outro ponto importante é ressaltar que as ações afirmativas devem ser temporárias, ou seja, devem entrar no ordenamento, produzir seus efeitos e depois, deixar o ordenamento. Ocorre que para que as ações afirmativas saiam do ordenamento não é necessário um prazo determinado, e sim depois que elas efetivamente surtirem os objetivos para quais foram criadas.

Histórico As ações afirmativas originaram-se na década de 1940, na Índia, onde existe o sistema de castas que está intimamente relacionado às suas crenças religiosas. Cerca de 2500 anos antes de Cristo, um povo chamado de brancos arianos veio à Índia (provavelmente da Pérsia). Os arianos formaram um sistema de castas a fim de manter a pureza do seu sangue e a supremacia branca. Originalmente, eles reconheceram apenas quatro castas: Brâmanes, sacerdotes e estudiosos, Kshatriyas, nobres guerreiros, Vaishyas, os agricultores e comerciantes, Sudras, servos e escravos. Mais tarde, essas quatro castas foram se multiplicando, atualmente, existem milhares de castas na Índia. Na década de 1940, um intelectual indiano, Bhimrao Ramji Ambedkar, idealizou um sistema de cotas para as castas garantindo a reserva de vagas no ensino superior, no Parlamento e no funcionalismo público para aqueles

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membros da casta dos dalits ou intocáveis. Esse sistema foi implementado na lei maior da Índia no art. 16 da Constituição de 1949:

(CLT), em 1943, que determinava o percentual de dois terços de brasileiros empregados nas empresas como uma resposta à crescente imigração europeia e asiática. Além disso, também o seu artigo 373-A, incluído na CLT em 1999, direcionava para a adoção de políticas voltadas para corrigir as desigualdades entre homens e mulheres. O próximo passo na criação das ações afirmativas viria em 1968 quando o Ministério do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho tornaram-se favoráveis à criação de uma lei que obrigasse as empresas privadas a manter uma percentagem mínima de empregados negros, porém essa lei nunca chegou a ser elaborada. Somente em 1983, através do projeto de Lei n. 1332 do deputado federal Abdias Nascimento, que as ações afirmativas começaram a ganhar forma em nossa sociedade. Essa lei propunha mecanismos para compensação para o afrobrasileiro após anos de discriminação através de estratégias como reserva de 20% de vagas para mulheres negras e 20% para homens negros na seleção de candidatos ao serviço público; incorporação da imagem positiva da família afrobrasileira ao sistema de ensino e à literatura didática e paradidática; bolsas de estudos, entre outros. No entanto, novamente o projeto não é aprovado pelo Congresso Nacional. Em 1988, é promulgada a nova Constituição que traz em seu texto a proteção ao mercado de trabalho da mulher como parte dos direitos sociais, e a reserva percentual de cargos e empregos públicos para deficientes. A Constituição Federal que passou a vigorar, embora fosse pródiga em previsões e princípios que, em tese, encorajariam a prática de ações afirmativas, não hospeda uma norma autorizadora dessas ações de um modo geral. A rigor, o único preceito específico sobre o tema consiste no dispositivo que assegura reserva percentual dos cargos e empregos públicos a deficientes físicos (art. 37, VIII). Dessa forma, as políticas afirmativas, em sua grande maioria, surgem da interpretação constitucional, de tal forma que uma interpretação sistemática da constituição, levando em conta a unidade do texto permite-nos concluir que o diploma é permissivo quanto à adoção de políticas afirmativas, através de leis infraconstitucionais. Em 1995, surge a primeira política de cotas nacional através da legislação eleitoral que estabeleceu a cota mínima de 30% de mulheres para as candidaturas de todos os partidos políticos. No ano seguinte, é lançado o Programa Nacional dos Direitos Humanos pela Secretaria de Direitos Humanos, que tinha como algum de seus objetivos “desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” e “apoiar as ações da iniciativa privada que realizem discriminação positiva”. Apenas a partir de 2001, é que foram aprovadas políticas de ação afirmativa para os negros por decisão do Poder Público, exemplo disso foi a portaria que determinava a contratação, até o fim de 2002, de 20% de negros, 20% de mulheres e 5% de portadores de deficiências físicas para os cargos de assessoramento do Ministério da Justiça.

(...) (4) Nada neste artigo deve impedir o Estado de prover a reserva de compromissos ou postos em favor de qualquer classe desfavorecida de cidadãos que, na opinião do Estado, não esteja adequadamente representadas nos serviços públicos. (4A) Nada neste artigo deve impedir o Estado de prover a reserva em matéria de promoção para qualquer classe ou classe de postos nos serviços estatais em favor das castas e tribos incluídas as quais, na opinião do Estado, não estão adequadamente representadas nos serviços públicos. (Índia apud PISCITELLI, 2009, p.84)

Na Malásia, em 1971, também foram implementadas ações afirmativas através do sistema de cotas para malaios e outras tribos que sofriam desigualdade socioeconômica diante dos chineses e indianos. Nesse país, essas ações significaram uma reivindicação da população nativa (malaios). (Índia apud PISCITELLI, 2009, p.84) Podemos citar diversos países em que, nos últimos anos, essas ações foram adotadas. Na África do Sul, existem cotas para promover equidade no mercado de trabalho entre brancos e negros; no Reino Unido, uma lei recruta igualmente católicos e não católicos no serviço policial na Irlanda do Norte; na China, existem cotas para representação de minorias na Assembleia Nacional e para ingressarem nas universidades, entre outros exemplos. Na América, as ações afirmativas foram criadas na década de 1960 tendo os Estados Unidos como pioneiros nessa criação e tinham como objetivo promover a igualdade entre os negros e os brancos norte – americanos, tiveram, portanto, sua origem na questão racial. Sobre esse assunto e seus notáveis resultados temos a seguinte citação de Joaquim Barbosa: Antonio Sergio Guimarães (1997, p.235), (...) De acordo com os dados apresentados no magnífico estudo conduzido por um ex-presidente da Universidade de Harvard e ex-diretor da Faculdade de Direito daquela mesma universidade, Derek Bok, em colaboração com um ex-presidente da Universidade de Princeton, William Bowen, os avanços obtidos pelos negros norte-americanos na área da educação, em consequência das ações afirmativas, são simplesmente impressionantes, sobretudo se levarmos em conta o fato de que, até o início dos anos 60, negros eram proibidos de frequentar os mesmo locais públicos, as mesmas escolas, os mesmos locais de diversão frequentados pelos brancos.

As Ações Afirmativas no Brasil

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Como visto, diversos países iniciaram a criação de suas ações afirmativas de acordo com seu contexto histórico. Nosso país teve os Estados Unidos como inspiração e comparação para políticas que usam o critério racial como forma de promover igualdade. Historicamente, no entanto, podemos identificar, já em 1940, a lei dos dois terços que se consolidou no artigo 354 da Consolidação das Leis do Trabalho

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No ensino superior, a primeira lei que criava ações afirmativas foi aprovado também em 2001, entrando em vigor em 2002 estabelecendo que 50% das vagas dos cursos de graduação das universidades estaduais sejam destinadas a alunos oriundos de escolas públicas. E, finalmente, em 2012, é lançada a chamada lei de cotas que garante a reserva de vagas tanto pelo critério racial quanto pelo social. Pela Lei de Cotas, LEI Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012:

existentes no mercado de trabalho, o que foi efetivado, em um primeiro momento, no âmbito do governo federal. Já seu sucessor, Lyndon Johnson, não só conseguiu pressionar o Congresso Nacional a estender tais medidas para o setor privado, como impôs também, na órbita federal, a adoção de práticas favoráveis a membros de minorias étnicas e raciais (as mulheres foram beneficiadas posteriormente), de variadas formas (ex. recrutamento, contratação, transferência, níveis salariais e benefícios indiretos, promoção e treinamento), com o escopo de corrigir as desigualdades decorrentes de discriminações existentes ou passadas. Já para análise do direito sueco, tomaremos por base o texto “O Ombudsman Sueco contra a discriminação étnica e imigratória” do professor doutor Carlos Alberto Provenciano Gallo, que nos dá os substratos mínimos para compreensão da mens legis no tocante à questão discriminatória no direito sueco. Com propriedade o nobre professor assevera que (Gallo, 2008, p 181):

Art. 1o  As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único.  No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. Art. 3o  Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Parágrafo único.  No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Direito comparado O direito comparado é uma excelente ferramenta de estudo jurídico. No que tange ao presente trabalho, tomaremos como elementos de análise o direito norte-americano e o direito sueco. No plano mundial, esse tema ganhou maior destaque a partir do início da década de 60, com a ascensão de John Fitzgerald Kennedy 6 à presidência dos Estados Unidos. Foi ele, inclusive, que, pela primeira vez, em um texto normativo, utilizou o termo que passou a designar as políticas oficiais e os programas privados que visam proteger determinados grupos sociais, qual seja: “affirmativeaction” (a tradução literal sugere uma certa redundância. Daí, os juristas portugueses preferirem a expressão “ação positiva”). Apenas dois meses após assumir o cargo, Kennedy viu-se pressionado pela opinião pública, em face das promessas feitas durante a campanha política e o aumento dos conflitos raciais, a tomar medidas enérgicas tendentes a estabelecer uma igualdade de oportunidades e a erradicar a discriminação e o preconceito 6

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KENNEDY, John Fitzgerald. Nasceu no Estado de Massachusetts, um dos maiores redutos do Partido Democrata dos Estados Unidos, em 1917. Teve como lema de sua candidatura à presidência: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país”. 

“A atual Constituição da Suécia contém normas expressas contra a discriminação étnica. Essas normas dirigem-se aos poderes públicos para que sejam afastados da legislação ordinária sueca quaisquer elementos etnicamente discriminatórios, pondo em relevo os princípios da igualdade de todos os seres humanos, da liberdade e da dignidade que deve existir em uma nação politicamente organizada.”

Assim, a Constituição Sueca, tal qual a Constituição da República Federativa Brasileira, serve como um imperativo categórico, devendo as normas infraconstitucionais curvarem-se diante dela, respeitando sobretudo a dignidade da pessoa humana. O artigo 15, do capítulo II da Constituição sueca, vai ao encontro dessa assertiva, proibindo que normas hierarquicamente inferiores afrontem as minorias étnicas: “Nenhuma lei ou decreto poderá implicar discriminação de qualquer cidadão concernente a uma minoria por causa de sua raça, cor de pele, ou origem étnica”. Na mesma toada de garantia aos cidadãos, o artigo 16 do capítulo II da lei maior sueca veda a discriminação de qualquer cidadão quanto a seu sexo. “Nenhuma lei ou decreto poderá implicar discriminação de qualquer cidadão quanto a seu sexo”. Gallo afirma que, por meio do objetivo da cooperação, procurou-se assentar o bom relacionamento das etnias na sociedade, isto é, uma harmonia de convivências, afirmando-se um profundo respeito mútuo. O combate à discriminação, na sociedade sueca vai além, assegura o autor (Gallo, 2008, p 186): “Em 1986, a fim de aprimorar a política de imigração, o Parlamento sueco houve por bem aprovar um elenco de medidas contra a discriminação de imigrantes e de outros grupos étnicos. Uma delas foi a que se refere à criação de uma nova instituição: a do Ombudsmam contra a discriminação étnica, cujas atribuições precípuas estão reguladas por lei aprovada pelo Parlamento durante a primavera de 1986, tendo entrado em vigor em 1º de julho do mesmo ano, tendo por escopo evitar essa modalidade de discriminação.”

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No preâmbulo da referida lei, encontramos as diretrizes da luta contra a discriminação étnica:

Diversas leis estaduais foram surgindo na década de 2000, implementando percentual de vagas a serem preenchidas por pessoas negras. No Rio de Janeiro, por exemplo, tivemos a lei n° 3.708/2001, que determinou mínimo de 40% para negros e pardos, tanto para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) quanto para a Universidade Estadual NorteFluminense (UENF). Assim como no Rio de Janeiro, proliferaram-se os exemplos de leis estaduais acerca da matéria, nos mais variados Estados do Brasil e no Distrito Federal. No entanto, a nível nacional a matéria só foi disciplinada em lei no ano de 2012. A lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, assegurando 50% das vagas das instituições federais para estudantes oriundos de escolas públicas. Se restava alguma dúvida acerca da constitucionalidade das ações afirmativas, os informativos 663 e 665 do Supremo Tribunal Federal trataram de dissipá-las. Assim, hoje, não há que se questionar quanto a constitucionalidade dessas medidas, pois isso já foi debatido no órgão máximo do judiciário brasileiro.

“Entende-se por discriminação étnica o fato de que uma pessoa ou grupo de pessoas sejam desfavorecidas com relação a outras ou de que sejam expostas de alguma outra forma a um tratamento injusto, devido a sua raça, cor da pele, origem nacional ou étnica, ou religião”.

Base legal A base legal, em que a matéria pertinente pode ser verificada em nossa legislação, encontra-se esparsa em nossa Constituição e até mesmo nas leis infraconstitucionais. Como se depreende do artigo 3°, caput e inciso IV, a promoção do bem geral é um objetivo fundamental do Brasil. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.’

“Reveste-se de constitucionalidade o programa de ação afirmativa estabelecido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, que instituiu o sistema de cotas como meio de ingresso em seus cursos de nível superior. Ao reafirmar esse entendimento, o Plenário, por maioria, desproveu recurso extraordinário em que pretendida a declaração de inconstitucionalidade da reserva de vagas. Na espécie, candidato que não alcançara classificação suficiente em exame vestibular para ser admitido naquela universidade – não obstante tivesse atingido pontuação maior do que a de aprovados no mesmo curso pelas cotas destinadas a egressos das instituições de ensino público e a estudantes negros e indígenas de escolas governamentais – insurgira-se contra os mencionados critérios. Destacou-se que a matéria fora debatida de forma exaustiva no julgamento da ADPF 186/DF (acórdão pendente de publicação, v.  Informativo 663), em que se concluíra pela constitucionalidade: a) das políticas de ação afirmativa; b) da utilização dessas políticas na seleção para o ingresso em curso superior, especialmente nos estabelecimentos de ensino públicos; c) do uso do critério étnico-racial por essas políticas; d) da autoidentificação como método de seleção; e e) da modalidade de destinação de vagas ou de instituição de cotas. Rechaçouse, ainda, o argumento de ausência de lei formal autorizadora dessa ação afirmativa de reserva de cotas ao fundamento de que a Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) deixaria para as universidades a fixação dos critérios a serem utilizados na seleção de estudantes. Asseverou-se que o art. 51 do mencionado estatuto (“As instituições de educação superior credenciadas como universidades, ao deliberar sobre critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, levarão em conta os efeitos desses critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos sistemas de ensino”) teria esteio no art. 207 da CF, a garantir às universidades a autonomia didático-científica. RE 597285/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 9.5.2012. (RE-597285)7 

Da mesma forma, o artigo 5º, que talvez seja o artigo mais importante da Constituição da República Federativa Brasileira, por tratar dos direitos e garantias fundamentais, em seu corpo, especialmente no caput e nos incisos I, VI, XLII, traz a previsão para a supressão de preconceitos discriminatórios Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; XLII  - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Já no artigo 23 da Constituição de 1988, encontramos preceituado que competirá a União, aos Estados e Municípios zelarem pela garantia das pessoas portadoras de deficiência, ou seja, encontramos o amparo constitucional para a realização de ações afirmativas que visem integrar portadores de deficiência à sociedade Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

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As ações afirmativas têm guarida no texto constitucional, mas, em se tratando de leis infraconstitucionais, elas começaram a figurar recentemente.

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BRASIL. Jurisprudência. RE 597285/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 9.5.2012. (RE-597285).

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Análise da conjuntura brasileira Em 2014, a UNESCO lançou o Relatório de Vulnerabilidade Juvenil à Violência que tinha por objetivo sinalizar indicadores para a criação de políticas públicas e de estratégias de prevenção e enfrentamento das altas taxas de violência observadas no país contra adolescentes e jovens, em especial jovens negros, que, em 2013, foram 30,5% mais vítimas de homicídios dos que os jovens brancos, segundo dados da 8ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Na tabela e gráfico que se seguem, retirados na íntegra do citado relatório, faremos um resumo da análise da atual conjuntura brasileira baseada nas diferenças entre a vulnerabilidade à violência do jovem negro e branco em nosso país. (UNESCO. Gráficos e Tabelas. http://unesdoc.unesco.org/ images/ 0023/002329/ 232 97 2POR.pdf )

Gráfico 1: Taxa de homicídio entre jovens por raça/cor. Brasil e regiões. 2012.

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Pela Tabela 1, podemos perceber que os Estados do Nordeste são os que apresentam maiores índices de vulnerabilidade para o jovem brasileiro. Além disso, Paraíba, Alagoas e Pernambuco, respectivamente, são os Estados em que o risco relativo de morte violenta de jovens negros é maior do que em jovens brancos. Para exemplificar, na Paraíba a chance de um jovem negro morrer vítima da violência é 13 vezes maior do que um jovem branco. Enquanto isso, os estados do sudeste são os que apresentam os menores índices de vulnerabilidade à violência para os jovens brasileiros e também os menores riscos para os jovens negros quando comparados aos jovens brancos. Destaca-se o Estado do Paraná que é o único estado brasileiro em que o risco de um jovem branco morrer de forma violenta é maior do que o de um jovem negro. Situação peculiar apresenta-se no Distrito Federal que apresenta um dos menores índices de vulnerabilidade para o jovem brasileiro, porém é a quarta maior unidade da federação em relação ao risco relativo para o jovem negro, que tem 6 vezes mais chances de sofrer violência se comparado ao jovem branco. Percebemos, portanto, que nosso país possui grandes diferenças regionais em seus índices de vulnerabilidade e risco para o jovem negro, mas ainda assim o cenário nacional apresenta uma taxa de homicídio entre jovens negros 155% maior do que a de jovens brancos. No gráfico 1 , vemos que, em todas as regiões, a taxa de homicídios em negros é maior, demonstrando como a violência tem sido seletiva no país e como se faz necessária a implementação de políticas públicas focalizadas nesse grupo de risco. Além da pesquisa da Unesco, o jornal Folha de São Paulo realizou uma pesquisa e constatou que o índice de representantes negros que ocupam cargos importantes na sociedade é muito baixo:

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“dos 513 deputados federais eleitos em 2014, 80% são brancos. Na Justiça, a prevalência dos brancos é ainda maior: 25 dos 29 ministros do Superior Tribunal de Justiça são brancos, três são pardos e um, preto. Todos os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, a corte máxima do país, são brancos, desde que Joaquim Barbosa se aposentou.”8

Portanto, é de fácil percepção que a desigualdade na sociedade brasileira salta aos olhos, sendo necessária a constante implementação de políticas públicas para sanar esse vício social. Uma dessas medidas acaba de ser aprovada, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a reserva mínima de 20% das vagas em concursos para a magistratura a serem preenchidas por candidatos negros. É a primeira carreira jurídica a implementar esse tipo de ação afirmativa e um importante passo para a modificação da conjuntura brasileira. O ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, salientou: “Esse é um passo histórico muito relevante, pois estamos contribuindo para a pacificação e a integração deste país, e de certa forma reparamos um erro histórico em relação aos afrodescendentes”.

Dicotomia As políticas afirmativas, não obstante estejam em consonância com muitos preceitos constitucionais, podem sofrer argumentação reversa, podendo estar, de certa forma, em conflito com a própria constituição. Não se quer com isso asseverar que a ação afirmativa colide, de forma insuperável, com os ditames constitucionais pátrios. Ao invés, essas políticas, com os devidos cuidados, podem ser muito úteis para a concretização de verdadeiros ideais de justiça. Essa natureza dúplice, em que um fato tem como resultado a colisão, o choque entre duas ou mais normas constitucionais, é chamada de antinomias constitucionais pela doutrina. Sobre a questão, ensina o atual ministro do supremo Luís Roberto Barroso9 “Os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos – hierárquico, temporal e especialização – não são aptos, como regra geral, para a solução de colisões entre normas constitucionais, especialmente as que veiculam direitos fundamentais. Tais colisões, todavia, surgem inexoravelmente no direito constitucional contemporâneo, por razões numerosas. Duas delas são destacadas a seguir: (i) a complexidade e o pluralismo das sociedades modernas levam ao abrigo da Constituição valores e interesses diversos, que eventualmente entram em choque; e (ii) sendo os direitos fundamentais expressos, frequentemente, sob a forma de princípios, sujeitam-se, como já exposto (v. supra), à concorrência com outros princípios e à aplicabilidade no limite do possível, à vista de circunstâncias fáticas e jurídicas.” JORNAL. Folha de São Paulo. Disponível em: < www.folha.uol.com.br/ >. Acesso em: 08 mar 2015. 9 BARROSO, Luís Roberto. Colisão  entre  Liberdade  de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Disponível em: < www.milhas.com. br/arquivo_artigo/art_-3-10_01.htm>. Acesso em: 20 mar 2015. 8

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Quando uma norma ou princípio constitucional vai de encontro com outra norma ou princípio constitucional, no caso concreto estamos diante de antinomias entre normas constitucionais. Ambas possuem a mesma hierarquia normativa, são pertinentes ao caso em questão e são mutuamente excludentes. Para solucionar esse conflito de normas, esclarece Luís Roberto Barroso10 “o intérprete ou aplicador da lei, seja quem for, juiz, governador, deputado ou jurista, tem que buscar a unidade e a integridade da Constituição. Seu dever principal é, pois, harmonizar os dois preceitos, sem tornar qualquer um deles letra morta”. Para Falcão, “qualquer interpretação que exclua um dos dois princípios estará equivocada. Mutila a Constituição”. A solução desse problema far-se-á através de dois princípios constitucionais: o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade (razão e proporção) Diante das normas constitucionais em conflito, será feita uma ponderação para saber qual norma será suprimida e qual será aplicada. Dessa forma, será feita a seguinte pergunta para a aplicação de ações afirmativas: será que, em prol da inserção de um grupo na sociedade, o Estado pode suprimir, por um tempo, direitos de outros cidadãos? Parece que, sim, pois com a utilização do princípio da razoabilidade percebemos que é sim razoável a adoção de tais medidas, com a supressão momentânea dos direitos colidentes. Quanto à proporcionalidade, a resposta é ainda mais clara, é evidente que a adoção de políticas afirmativas é proporcional à finalidade pretendida, ou seja, a adoção de políticas afirmativas é um meio que levará a inclusão dos grupos beneficiados por elas na sociedade.

Diferenças entre honrar e promover um valor A diferença entre honrar e promover um valor foi articulada por Philip Pettit11·, essa distinção nos proporciona um olhar diferenciado acerca do tema de políticas afirmativas. Segundo Pettit (1993, p. 230-37): “Se for determinado que o valor mais importante da vida humana é a lealdade para com sua família, surge a seguinte questão: deve-se honrar esse princípio passando todo seu tempo disponível com sua família ou deve-se promover esse valor, por exemplo, esgotando seu tempo no intuito de conscientizar as pessoas para que passem mais tempo com suas próprias famílias, ainda que isso implique, no curto prazo, violar o princípio que se deseja obter ?”

Pettit (1993, p. 230-37), traz o exemplo do caso RAV vs City of St. Paul, no qual um grupo de adolescentes que queimara uma cruz no quintal de uma família negra, foi considerado pela Suprema Corte como passível de proteção pela primeira emenda. BARROSO, op. cit., apud FALCÃO, Joaquim de Arruda. Direito da Mulher. [S.l.: s.n.], 200_. 11 PETTIT, Philip, Consequentialism. Aldershot ,dartnmouth press, 1993.

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“Ainda que aceitemos a tese de que a decisão honrou a liberdade de expressão ao não punir os rapazes, é, minimamente plausível, supor que essa mesma decisão pode ter efeitos negativos na liberdade de expressão na sociedade como um todo (por exemplo, pelo fato de que a disseminação de ideias racistas e nazistas, de modo a mobilizar o aparato estatal ou opinião pública a seu favor, pode implicar a supressão da liberdade de expressão de milhões de integrantes de minorias étnicas) o que possibilitaria que a livre expressão de uma posição política intolerante conduza à exclusão de outras posições.”

(Pettit 1993, p. 230-37) Sendo assim, aplicando a teoria construída por Pettit no nosso tema, devemos ponderar se é mais importante honrar o princípio constitucional da igualdade, aplicando-o irrestritamente, ou se devemos promover tal princípio constitucional, assegurando que o mesmo seja aplicado a todos os cidadãos, justificando, assim, a adoção de políticas afirmativas, com o intuito de fornecer a igualdade a todos os membros da sociedade.

Adoção de ações afirmativas menos gravosas Quando se trata de políticas afirmativas, determinados questionamentos vêm à tona de forma latente: Como é possível a adoção de políticas que favorecem cidadãos negros, sem que tais benefícios não representem uma “discriminação reversa” aos cidadãos brancos? Da mesma forma, como é possível compatibilizar a igualdade constitucionalmente assegurada entre homens e mulheres com a discriminação profissional que a elas foi imposta durante décadas? A resposta a esses questionamentos pode ser encontrada através da adoção de políticas afirmativas menos gravosas, talvez seja essa a evolução das políticas afirmativas, que devem ser gradativamente suprimidas, desde que tenham surtido os seus devidos efeitos. Assim, percebemos que existem outras formas de implementação de ações afirmativas, como a oferta de treinamentos profissionais diferenciados para membros de certos grupos sociais que são considerados mais adequados para a correção dos desequilíbrios existentes.

Considerações finais Com a elaboração do trabalho e as pesquisas necessárias para sua confecção, procuramos formular uma proposição inovadora acerca do tema, algo que não encontramos em nenhum livro doutrinário. No direito civil, para ser mais preciso, dentro da matéria concernente à Responsabilidade Civil, há uma criação doutrinaria, uma teoria, chamada perda de uma chance. Os autores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho conceituam responsabilidade como sendo: (2009, p.3-16)

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A responsabilidade, para o Direito, nada mais é, portanto, que uma obrigação derivada – um dever jurídico sucessivo – de assumir as consequências jurídicas de um fato, consequências essas que podem variar (reparação dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os interesses lesados.

Sobre a teoria da perda de uma chance, ensina o brilhante doutrinador Sergio Cavalieri Filho: (2014, p.97-105) O critério do decréscimo patrimonial matemático sofrido pela vítima revelou-se também inconsistente na quantificação da indenização no caso de perda de uma chance por não ser possível atribuir à oportunidade perdida um valor econômico que possa ser tomado como diminuição patrimonial.

Conforme já ressaltado, não se deve olhar para a chance como perda de um resultado certo porque não se terá a certeza de que o evento se realizará. Devese olhar a chance como a perda da possibilidade de conseguir um resultado ou de se evitar um dano. Devem-se valorar as possibilidades que o sujeito tinha de conseguir o resultado para ver se são ou não relevantes para o ordenamento. Essa tarefa é do juiz, que será obrigado a fazer, em cada caso, um prognóstico sobre as concretas possibilidades que o sujeito tinha de conseguir o resultado favorável. Assim, a adoção da teoria da perda da chance exige que o julgador saiba diferenciar bem o improvável do quase certo, bem como a probabilidade da perda da chance de lucro, para atribuir aos fatos as consequências adequadas. O valor da indenização deverá ser fixado de forma equitativa pelo juiz, atentando também aqui para o princípio da razoabilidade. A indenização deve ser pela perda da oportunidade de obter uma vantagem e não pela perda da própria vantagem. No caso do advogado que perde o prazo para recorrer de uma sentença, por exemplo, ele frustra as chances de êxito de seu cliente. Responde, portanto, pela perda da probabilidade de sucesso no recurso. Mas a indenização não será pelo benefício que o cliente do advogado teria auferido com a vitória da causa, mas pelo fato de ter perdido essa chance; não será pelo fato de ter perdido a disputa, mas pelo fato de não ter podido disputar. O que deve ser objeto da indenização é a perda da possibilidade de ver o recurso apreciado e julgado pelo Tribunal. O valor da indenização, repita-se, deverá ser fixado de forma equitativa pelo juiz, atentando também para o princípio da razoabilidade. A teoria possui um ponto controvertido na doutrina e na jurisprudência, com relação à natureza jurídica da responsabilidade civil, por perda de uma chance, para alguns, trata-se de danos emergentes; para outros, lucro cessante, há ainda uma terceira corrente que entende que é dano moral e, por fim, os que acreditam tratar-se de uma categoria autônoma Apesar da juventude dessa teoria, ela já é adotada pelos nossos tribunais. Vejamos um exemplo para melhor compreensão da teoria da perda de uma chance, observando que tal teoria não foi aplicada apenas porque o autor não

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logrou êxito em comprovar real expectativa de ocorrer a contratação, no caso em questão: 1ª Ementa DES. NATACHA TOSTES OLIVEIRA - Julgamento: 28/05/2015 VIGÉSIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL CONSUMIDOR  APELAÇÃO. CONSUMIDOR. CURSO PROFISSIONALIZANTE. AULA NÃO MINISTRADA POR FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. REVELIA DO RÉU. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA PARCIAL JULGANDO PROCEDENTE O RESSARCIMENTO QUANTO AOS VALORES DISPENDIDOS E IMPROCEDENTE QUANTO AOS LUCROS CESSANTES, HONORÁRIOS CONVENCIONADOS E DANOS MORAIS. APELAÇÃO DA PARTE AUTORA PLEITEANDO A PROCEDÊNCIA TOTAL DOS PEDIDOS FALHA DO SERVIÇO QUE RESTOU DEMONSTRADA. FRUSTRAÇÃO QUE ULTRAPASSA O MERO ABORRECIMENTO, SENDO ASSIM AFASTADA A SÚMULA 75 DESTE TRIBUNAL. EXPECTATIVA DO AUTOR EM MELHORAR A QUALIDADE DE VIDA DE EXPECTATIVA EM INGRESSO NO MERCADO DE TRABALHO. DANO MORAL QUE SE CONFIGURA. LUCROS CESSANTES, CONSUBSTANCIADOS NA TEORIA DA  PERDA  DA  CHANCE.  IMPÕE-SE O SEU DESACOLHIMENTO, E ISTO PORQUE A PARTE NÃO LOGROU DEMONSTRAR EXPECTATIVA REAL DE CONTRATAÇÃO. AFIGURA-SE RAZOÁVEL FIXAR A VERBA INDENIZATÓRIA PARA R$ 5.000,00, PORQUANTO EM CONFORMIDADE COM A MÉDIA QUE VEM SENDO ATRIBUÍDA POR ESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM CASOS SIMILARES. PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE DANOS MATERIAS QUANTO AO VALOR DOS HONORÁRIOS QUE NÃO SE RECONHECE FACE GRATUIDADE DE JUSTIÇA E TERMOS CONTIDOS NA DECLARAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. RECURSO QUE SE CONHECE E QUE SE DÁ PROVIMENTO PARCIAL PARA RECONHECER O DANO MORAL, MANTIDOS OS DEMAIS TERMOS DA SENTENÇA.

Essa teoria, analisada sob a ótica das políticas afirmativas, a priori, poderia levar o leitor mais distraído a um olhar de que a teoria da perda de uma chance seria aplicada a quem, por exemplo, perde sua vaga em uma Universidade pública para um aluno cotista, no entanto não é essa a nossa proposta. O que se pretende demonstrar é que o jovem socialmente desfavorecido tem a possibilidade de conquistar sua vaga retirada pelo Estado, tendo em vista as péssimas condições do ensino público nacional. Dessa forma, essa consideração oferece-nos em mais um argumento favorável à implementação das políticas afirmativas na área estudada. Em suma, as ações afirmativas revelam-se eficazes, desde que sejam adotadas efetivamente, podendo assim, integrar um grupo desfavorecido à sociedade, contribuindo para a desmistificação de paradigmas sociais..

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