Reflexões sobre o futuro da sociabilidade humana.

Share Embed


Descrição do Produto

REFLEXÕES SOBRE O FUTURO DA SOCIABILIDADE HUMANA





José Flávio Motta
Iraci del Nero da Costa







SUMÁRIO


1. Introdução






2. O pensamento de esquerda: um pensamento em construção


José Flávio Motta


Iraci del Nero da Costa

3. A democracia plena e os direitos de cidadania apontam para além do
capitalismo
Iraci del Nero da Costa

4. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da
sociabilidade humana

Iraci del Nero da Costa


José Flávio Motta

5. A mercadoria força de trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova
forma de sociabilidade humana

Iraci del Nero da Costa

José Flávio Motta

6. Revisitando três "miradas" estimulantes dirigidas à história da
humanidade
Iraci del Nero da Costa

7. Nota sobre uma busca inglória

Iraci del Nero da Costa

8. Sobre os autores












1. INTRODUÇÃO





Nos textos ora reunidos, publicados no correr dos três últimos
lustros, centramos nossas preocupações em algumas questões concernentes à
renovação do pensamento de esquerda em face da derrocada do socialismo
real, do avanço da assim chamada globalização e dos problemas decorrentes
da crise gerada pelas práticas econômicas e sociais calcadas no pensamento
neoliberal, o qual, para muitos analistas econômicos e políticos definiu-
se, por alguns anos, como absolutamente dominante e o único capaz de
fornecer respostas definitivas para os impasses socioeconômicos defrontados
pelas mais diversas nações do planeta.

Nossa atenção, como seria de esperar, voltou-se para um conjunto
complexo de ideias e de fatos concretos. Tentamos evidenciar, antes do
mais, que o pensamento de esquerda é um pensamento em construção e, até o
momento, apenas encetou seus primeiros passos restando aos críticos do
capitalismo um imenso trabalho de elaboração teórica. O texto principal a
embasar nossos argumentos sobre este tema intitula-se O pensamento de
esquerda: um pensamento em construção.1 Um segundo artigo, escrito por
apenas um de nós, evidencia as limitações do modo de produção capitalista
no que tange aos direitos democráticos: A democracia plena e os direitos de
cidadania apontam para além do capitalismo.2

As conclusões acima apontadas derivaram, basicamente, de nossa postura
segundo a qual o desfazimento do mundo socialista e a universalização da
ideologia neoliberal não podem ser vistos como o fim da história e a
sagração, para todo o sempre, do modo de produção capitalista. Não, o
capitalismo conduziu-nos, tão só, ao que consideramos ser o fim da história
natural da sociabilidade humana; depois dela poderemos vir a conhecer a
efetivação de uma forma nova de sociabilidade integralmente sustentada pela
ação política consciente do espírito humano. Com respeito ao fenômeno
apodado de "o fim da história" dirigimos nosso pensamento para o filósofo
ao qual se atribui a proposta inicial de tal formulação; destarte,
escrevemos um artigo que se abre com o seu nome: Hegel e o fim da história:
algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana.3

Ademais, para deixar clara nossa posição quanto à possibilidade da
concretização de novas estruturas sociais e econômicas, acrescentamos os
argumentos expendidos em A mercadoria força de trabalho, o capitalismo e a
emergência de uma nova forma de sociabilidade humana.4 A este texto soma-se
outro, da lavra exclusiva de um de nós, intitulado Revisitando três
"miradas" estimulantes dirigidas à história da humanidade.5 Por fim, do
mesmo autor, é trazida ao leitor uma crítica aos pensadores de esquerda
preocupados em encontrar um novo sujeito revolucionário apto a desempenhar
as tarefas as quais, segundo Marx, caberiam ao proletariado; segundo se
pensa, cumprirá a todos homens e mulheres, politicamente conscientes, a
função de, eventualmente, superar o capitalismo, vai isso explicitado em:
Nota sobre uma busca inglória.6

Os Autores





Notas

1. MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O pensamento de esquerda:
um pensamento em construção. Informações FIPE. São Paulo, FIPE, n. 223, p.
24-26, 1999.

2. COSTA, Iraci del Nero da. A democracia plena e os direitos de cidadania
apontam para além do capitalismo. Versão em português do Pravda.ru online,
3 de abril de 2012.

3. COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. Hegel e o fim da
história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana.
Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro,
Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.

4. COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. A mercadoria força de
trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de sociabilidade
humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de
Janeiro, Editora 7 Letras, número 14, jun. 2004, p. 32-47.

5. COSTA, Iraci del Nero da. Revisitando três "miradas" estimulantes
dirigidas à história da humanidade. São Paulo, texto com divulgação pela
Internet, junho de 2007.

6. COSTA, Iraci del Nero da. Nota sobre uma busca inglória. São Paulo,
texto com divulgação pela Internet, 2004. Também publicado: Informações
FIPE [boletim eletrônico]. São Paulo, FIPE, n. 294, p. 13-16, 2005.

2. O pensamento de esquerda: um pensamento em cons-trução



JOSÉ FLÁVIO MOTTA

Iraci del Nero da Costa






Para nós, o desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital
conhece seu ponto culminante com a emergência da mercadoria força de
trabalho, ou seja, com o estabelecimento do capitalismo, no âmbito do qual
se dá o pleno amadurecimento de tais formas. Estabelecido em espaço
geográfico considerável passa ele a operar de maneira a subordinar e
recriar, à sua feição, todo o espaço social, econômico e físico com o qual
entra em contato. Observa-se, assim, não só a emergência da história
universal, mas, também, de uma mudança qualitativa na própria história da
humanidade; a partir de então só persiste o modo de produção capitalista –
que a tudo ilumina, como se diria em termos clássicos – tudo subordinando,
condicionando e determinando.

De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento superior
daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade natural da
humanidade; a partir de então – e na medida em que o capital industrial
traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua reposição – apenas
um movimento do espírito, da ação conscientemente dirigida do homem, poderá
conduzir à superação das condições dadas, vale dizer, do capitalismo, o
qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente. O primeiro passo
necessário à sua superação estará, pois, no estabelecimento da crítica
teórica das condições dadas, estudo este que deverá fundamentar a ação
consciente no sentido da negação do status quo; assim, a crítica da lógica
de funcionamento do capital industrial e do capitalismo define-se como
pressuposto imprescindível à aludida superação.

A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e
publicação de O Capital – incluído aqui o estudo que privilegiou a
categoria modo de produção e o desenvolvimento histórico observado na
Europa Ocidental, que teria ocorrido segundo o encadeamento de modos de
produção num continuum lógico-histórico característico dessa área –
representaram o primeiro momento do referido movimento do espírito
indispensável à criação das condições subjetivas para que a humanidade
pudesse propor-se a negação do capitalismo e, portanto, passar a empenhar-
se nessa tarefa.

Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a
condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista.
Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e o irrecorrível
espraiamento do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a crítica do
sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e a formulação,
inda que num mero bosquejo, de uma nova forma de sociabilidade, a primeira
a se assentar inteiramente no espírito e que, portanto, terá de ser por ele
sustentada (isto é, terá como suporte a ação consciente do homem, ou de
homens livremente associados, ou do "Partido", caso se queira).

No que respeita à referida formulação, dever-se-á ter em mente o
seguinte: no capitalismo, a dimensão econômica representada pela produção
física e, em larga medida, a própria esfera política assim como a
ideológica – todas integrantes da vida social – subordinam-se à dimensão do
lucro imediatamente vinculada à produção de valores de troca, dimensão esta
a qual, de resto, além de passar a desempenhar papel central na esfera
econômica apresenta desdobramentos novos à medida que se dá o
amadurecimento pleno das formas mercadoria, dinheiro e capital. Este
domínio da dimensão dos ganhos ou do lucro faz com que a ela também se
subordinem a alocação dos fatores, a maneira ou modo de produzir, o que e
quanto produzir, bem como a distribuição do produto ou dos resultados da
produção. Prevalece, pois, no capitalismo, a solidariedade fundada no
lucro.

Já as políticas que foram propugnadas pela velha esquerda, sobretudo
por socialistas e comunistas, ferem, por via de regra, apenas a tecla
concernente à distribuição do produto. Ademais, os teóricos do socialismo
preconizaram, principalmente, formas mais equânimes, harmônicas ou
igualitárias de se efetuar a distribuição da produção sem se voltarem mais
detidamente ao estudo de formas de alocação e de produção alternativas às
que são próprias do capitalismo. Tal estreiteza teórica, aliada a outros
fatores dos quais alguns colocam-se abertamente no campo da patologia
individual e social, também contribuiu para o derruimento do socialismo
real colaborando, portanto, para a afirmação e universalização de práticas
neoliberais.

Na esteira de tais mudanças situa-se o novo alinhamento de segmentos
majoritários da antiga esquerda e da socialdemocracia que, em larga medida,
deixaram de lado a perspectiva socialista e passaram a propor soluções
meramente redistributivistas ou assistencialistas que não vão além dos
limites da sociedade capitalista. Essas propostas recentes configuram, tão
somente, o que outro autor denominou capitalismo com desconto; com elas se
pretende, de fato, "parasitar" o capitalismo, cobrando da sociedade, com
incidência particularmente forte sobre o capital, um "tributo" que
clamaríamos de "taxa de garantia do direito de existir", cuja destinação
seria atender aos menos privilegiados. Assim, por exemplo, é deste feitio a
solução que tentam implementar na Europa alguns partidos de extração
socialdemocrata ou comunista, com o que não apenas se desfigura a esquerda
mas, sobretudo, obsta-se, de imediato, a própria construção da nova forma
de sociabilidade humana na qual se deveria empenhar.

Quanto a esse desfigurar-se da esquerda, escreveu-se já há alguns
anos: "Espremida entre uma base social cambiante e um horizonte político em
contração, a socialdemocracia parece ter perdido sua bússola. ... Houve
época, nos primeiros anos da Segunda Internacional, em que ela orientou sua
ação para a superação do capitalismo. Empenhou-se depois por reformas
parciais, consideradas passos gradativos rumo ao socialismo. Finalmente,
contentou-se com o bem-estar social e o pleno emprego dentro do
capitalismo. Se ela admitir agora uma diminuição do bem-estar e desistir do
pleno emprego, em que tipo de movimento vai se transformar?" (ANDERSON,
1996, p. 23-24).

De outra parte, se, como apontamos, as propostas que têm surgido no
seio das esquerdas são, digamos assim, diversionistas, quais os elementos
que deveriam, afinal, estar presentes no esboço de que aqui se trata? Sem
pretendermos sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos
furtamos a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de
encaminhar a discussão.

Em primeiro lugar, considerando que terá de haver livre assentimento
com respeito à nova forma de sociabilidade, é indispensável uma ambiência
democrática, vale dizer, a democracia e os direitos que expressam a
cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a ambos,
obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e
coletiva. Em segundo, tal sociedade terá de se erigir com base na negação
da propriedade privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode
haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços
e sua distribuição consoante as necessidades dos indivíduos. Em terceiro,
para a gestão da vida econômica dessa sociedade "pós-capitalista" precisar-
se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com a(s) engenharia(s)
de hoje, nem com a administração como a conhecemos, nem com a economia como
a praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá
estabelecer as relações que vincularão a produção física com os recursos e
as técnicas disponíveis e com as demandas de caráter individual e social.

Em suma, temos, no capitalismo, um sistema "natural" integrado, auto-
regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-se
"naturalmente" delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o embrionário
pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro coerente e
articulado do que deverá vir a ser, em ideia, o sistema pelo qual almejam
os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que nos parecerá muito
mais rudimentar se tivermos presente o quanto lhe resta por avançar, pois,
por se tratar de algo "antinatural", tudo, ou quase tudo, ainda está por
ser elaborado. Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato
de que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabelecimento
e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade humana.




Referências bibliográficas

ANDERSON, Perry. Introdução. In: ANDERSON, Perry & CAMILLER, Patrick. Um
mapa da esquerda na Europa Ocidental. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996, p. 9-31.





3. A DEMOCRACIA PLENA E OS DIREITOS DE CIDADANIA APONTAM PARA ALÉM DO
CAPITALISMO





Para Tito, amigo inesquecível


Iraci del Nero da Costa




A democracia – entendida aqui como a estrita obediência às decisões
tomadas pela maioria, conforme normas de legalidade permanentes e
consensuais e com total observância do respeito devido aos direitos e à
livre expressão e organização das minorias – assim como os direitos de
cidadania – os quais, a nosso juízo, consubstanciam, obviamente num todo
uno, o conjunto dos direitos do homem e do cidadão – assumiram, no século
XXI, papel central quanto ao caminho futuro da história da humanidade e, em
particular, quanto aos destinos das correntes políticas de esquerda.

A condicionar tal relevância primordial conjugam-se quatro fatores
deletérios basilares: a definitiva derrocada do socialismo real; o processo
de globalização o qual se caracterizou, basicamente, pela mundialização dos
interesses das grandes corporações e conglomerados econômicos e do qual
decorreu a internalização de tais interesses por parte das nações
periféricas; a maneira irracional e calcada em inverdades da reação dos EUA
em face dos ataques terroristas pelos quais foram vitimados e o caráter
reacionário do pensamento ideológico que, a contar de então, passou a
predominar largamente no seio de alguns de seus principais grupamentos
políticos e, por fim, o novo papel assumido pela China tanto no âmbito
político como, sobretudo, no cenário econômico mundial. Consideremos mais
detidamente os fenômenos aqui apontados e as implicações políticas que
deles poderão decorrer.

A superação efetiva do chamado socialismo real trouxe, para a ordem do
dia dos teóricos da esquerda de corte marxista, como item essencial, a
necessidade de um verdadeiro aggiornamento ideológico. Parece ter ficado
evidenciado claramente representarem a democracia e os direitos de
cidadania componentes fulcrais de qualquer formulação comprometida com o
estabelecimento de uma sociedade apta a oferecer ao homem condições de vida
material e de existência espiritual superiores às vigentes no modo de
produção capitalista. Logo, é impossível pensar-se uma nova forma de
sociabilidade – socialista, caso se queira chamá-la assim – sem admitir
que ela terá de assentar-se, necessariamente, sobre três princípios
fundamentais: a inexistência da propriedade privada sobre os meios de
produção, a vivência democrática e o absoluto acatamento dos direitos de
cidadania tomados em sua integralidade; sobre estas questões, permitimo-nos
lembrar o artigo de COSTA, Iraci del N. & MOTTA, José F. Hegel e o fim da
história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana.
Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro:
Editora 7 Letras, n. 7, dez. 2000, p. 33-54.

Destarte, garantir a plena vigência da democracia e "lutar" pelo
socialismo, além de se mostrarem tópicos políticos indissociáveis,
correspondem a um só e único objetivo, não podendo, portanto, ser
contemplados como instâncias táticas e/ou estratégicas distintas.

Fixado este primeiro ponto, atenhamo-nos às questões suscitadas pela
globalização.

A adoção de práticas econômicas ditadas pelos neoclássicos e
incorporadas pela ideologia neoliberal acarretou, tanto em países mais
avançados como em nações subdesenvolvidas, um leque de retrocessos
socioeconômicos no qual compareceram, com distintos graus de intensidade,
as seguintes mazelas: especulação financeira desenfreada e descontrolada,
maior concentração da renda e da riqueza, desindustrialização e dependência
crescente com respeito à exportação de bens primários; a par disso,
aumentou a dependência dos mais pobres com respeito a práticas
assistencialistas do Estado e não ocorreram mudanças significativas no
âmbito dos serviços sociais em geral: saúde, educação, segurança e
habitação. Correlatamente, em muitas nações o desemprego atingiu níveis
dramáticos e a emigração desordenada aumentou substantivamente, de sorte a
afetar a vida de milhões de pessoas a cujas carências materiais somaram-se
incontáveis padecimentos de ordem moral e o dolorido desenraizamento com
respeito às suas plagas natais. Não obstante o tamanho incomensurável dos
prejuízos já havidos, notadamente nas nações europeias em crise poderão vir
a se dar novos cortes na esfera econômica e na órbita de direitos
trabalhistas de há muito adquiridos.

Enfim, para os desprivilegiados, a globalização sinonimiza com perdas
econômicas e políticas, sendo de se esperar a ocorrência de mais pressões
nesses dois campos. Assim, apenas a resistência democrática e a reconquista
dos direitos perdidos serão capazes de barrar os avanços das práticas
lesivas impostas pela globalização. Disso se infere a existência de um elo
imediato entre o combate ao neoliberalismo e a ação voltada à defesa dos
direitos democráticas e de cidadania.

Vejamos, num terceiro lapso, os problemas afetos à traumática atuação
político-militar, em escala planetária, dos norte-americanos.

Embora a guerra promovida no Afeganistão contra seus ex-parceiros do
Talibã e da Al Qaeda e a desencadeada no Iraque contra um outro seu ex-
aliado representem a continuidade da política intervencionista norte-
americana, sobretudo a aventura contra Saddam Hussein, enriqueceu
sobremaneira o currículo do militarismo dos EUA. Como sabido, a motivação
aventada para a derrubada do regime iraquiano cingiu-se a um aranhol de
mentiras e de informações forjadas as quais não resistiram à análise mais
superficial e encontraram na ONU e nos próprios parceiros dos EUA seus
primeiros críticos; isso para não lembrar os norte-americanos isentos que,
desde a primeira hora, postaram-se contra o discurso insano de George W.
Bush e as descabidas operações de guerra por ele capitaneadas. De toda
sorte, o mínimo a dizer é que a farsa tragicamente encenada no Iraque
significou um golpe dos mais fortes contra as normas consensualmente
pactuadas no âmbito da ONU e consagradas pelo direito internacional e uma
clara falta de subordinação à verdade dos fatos, sem a qual é impossível
imaginar-se um mundo autenticamente democrático.

Ademais, as humilhações, torturas e cerceamento extremado dos direitos
– internacionalmente reconhecidos – dos prisioneiros mantidos, no passado
e no presente, nas prisões norte-americanas existentes no Afeganistão, no
Iraque e em sua base cubana de Guantánamo demonstram como as forças
militares norte-americanas estão dispostas a levar a negação dos direitos
de cidadania a pontos extremados.

Em suma, a união das teses de políticos conservadores com os
interesses da indústria de armamentos e os de conglomerados econômicos
ligados aos mais variados ramos econômicos representa, juntamente com o
processo maior de globalização, uma séria ameaça às liberdades, pois a
persistência de tal aliança conduzirá à limitação crescente, em nível
mundial, da democracia e dos interesses da cidadania. Mesmo Barack Obama,
cujas numerosas promessas quando candidato à presidência representaram para
muitos de seus eleitores uma esperança de renovação de grande porte, chega
ao fim de seu primeiro mandato com um pequeno acervo de realizações
positivas.

Nesse quadro bastante conturbado vimos desabrochar, em toda sua
plenitude, a China, ou melhor, uma "nova" China: soberana pela
concretização, segundo velocidade ímpar, de seu imenso potencial econômico,
mas cujo regime político, altamente concentrado, distingue-se por ser
absolutamente fechado e discricionário. Ali, como em muitas outras nações,
as liberdades veem-se coarctadas e os direitos de cidadania negados. Além
disso, é forçoso reconhecer não estarmos, na China, em face de um sistema
socioeconômico socialista, pois, enquanto sua vida política é regida de
maneira ditatorial, sua economia pode ser tomada como um tipo híbrido de
capitalismo no qual se encontram presentes tanto a iniciativa estatal como
a privada; vale dizer, o governo chinês permaneceu avesso a mudanças de
cunho político, mas aderiu abertamente a uma prática econômica dominada
pelo capital. Eis descrito, pois, o último dos quatro fatores adversos
anotados acima.

Como se depreende do exposto, esse conjunto de elementos negativos
indica as evidentes e crescentes insuficiências do modo de produção
capitalista com respeito à geração de condições favoráveis ao avanço da
democracia e ao alargamento dos direitos de cidadania. Paralelamente, a
indicar a insatisfação popular que se generaliza planetariamente, podemos
arrolar episódios históricos da maior significância, tais como a Primavera
Árabe, o movimento "Ocupe Wall Street" e a mobilização das populações das
nações europeias contra a implementação de programas de "ajuste econômico"
inspirados em moldes restritivos quanto a direitos econômicos das camadas
detentoras de rendimentos mais modestos.

Disso não se infere, evidentemente, estarmos a vivenciar o surgimento
de um novo mundo, pois se deve concluir, tão somente, o quão limitado é o
"mundo" no qual nos encontramos: o mundo do capital!

Restam explicitados, assim, os entraves do capitalismo com referência
à democracia e aos direitos de cidadania; dessarte, a ação das esquerdas
pela reconquista e ampliação de direitos terá de se ocupar das forças
retrógradas, de sorte a assegurar a efetivação das resoluções
democraticamente alicerçadas e impedir o solapamento do Estado de direito.
A luta pela democracia e pelos direitos de cidadania, ítens indispensáveis
à constituição de uma eventual sociabilidade a ser instaurada futuramente,
aponta, pois, para além das limitações próprias do modo de produção ora
dominante.

Obviamente, com esta nossa constatação não pretendemos propor, aos que
tomam o socialismo como algo desejável, um programa de atuação política
consubstanciado, unicamente, na defesa da democracia e dos aludidos
direitos. Abalançamo-nos, no entanto, a afirmar que, na elaboração da
referida plataforma, deve ser emprestada importância máxima aos dois
fatores aqui realçados.
















4. HEGEL E O FIM DA HISTÓRIA: ALGUMAS ESPECULAÇÕES SOBRE O FUTURO DA
SOCIABILIDADE HUMANA



Iraci del Nero da Costa
José Flávio Motta



"No es difícil darse cuenta, por lo demás, de que vivimos en
tiempos de gestación y de transición hacia una nueva época.
El espíritu ha roto con el mundo anterior de su ser allí y
de su representación y se dispone a hundir eso en el
pasado, entregándose a la tarea de su propia
transformación."

(HEGEL, 1983, p. 12)





Mobilizados por estas instigantes palavras de Hegel, propomo-nos,
neste breve artigo, atingir dois objetivos. Primeiramente, tratamos de
estabelecer nossa leitura, que pretendemos marxista, das postulações de
Hegel sobre o "fim da história" – para o que nos inspiramos largamente na
segunda parte de Razão e Revolução, de Herbert Marcuse (cf. MARCUSE, 1978,
p. 230-349). Em seguida, ocupamo-nos com a consideração, ainda que sucinta,
de um conjunto de opiniões, expostas por autores diversos, sobre as
eventuais formas a serem assumidas pela sociabilidade humana no século que
se avizinha; tal consideração é acompanhada pelo bosquejo de nosso
entendimento acerca da aludida sociabilidade. Evidentemente, os comentários
que integram a segunda parte deste artigo acham-se alicerçados em nossa
leitura de Hegel previamente explicitada.





O Fim da História como Início da História

Segundo entendemos, o capitalismo é a forma superior e derradeira da
existência natural da sociabilidade humana. Superior porque nele as formas
mercadoria, dinheiro e capital chegam ao seu pleno desenvolvimento; os
homens definem-se como simples portadores de relações: o capitalista
personifica o capital, o trabalhador a força de trabalho reduzida à
condição de mercadoria. O capital, por seu turno, traz implícitos os
pressupostos de sua re-produção e acumulação; assim, enquanto os homens
sujeitarem-se à condição de portadores de relações, o modo de produção
capitalista recolocar-se-á automática e autonomamente. Natural porque até
então os homens restringiram-se, tão somente, a acomodar-se e amoldar-se às
circunstâncias dadas. Neste sentido pode-se dizer que a história fez-se por
e mediante eles, mas não foi posta pelos homens, não podendo, pois, ser
considerada como criação efetivamente humana, vale dizer, como produto
resultante da ação consciente do homem. Este último fato justificaria a
seguinte afirmação de Marx: "Pero adviértase que aquí sólo nos referimos a
las personas en cuanto personificación de categorías económicas, como
representantes de determinados intereses y relaciones de clase. Quien como
yo concibe el desarrollo de la formación económica de la sociedad como un
proceso histórico-natural, no puede hacer al individuo responsable de la
existencia de relaciones de que él es socialmente criatura, aunque
subjetivamente se considere muy por encima de ellas" (MARX, 1978, vol. I,
p. XV).

Segundo a perspectiva marxista, tal forma de existência só será
superada pela ação do espírito, da consciência, votada à negação da
propriedade privada sobre os meios de produção, base objetiva sobre a qual
se assenta aquela forma de sociabilidade. Tal ação, política por sua
natureza, pressupõe a conjugação orgânica de consciências, às quais,
necessariamente, cumpre efetuar a crítica da situação presente e
estabelecer, teórica e empiricamente, as bases da nova sociedade. A crítica
da lógica do capital e a formulação do quadro em que se movimentará a nova
forma de sociabilidade definem-se, portanto, como pressupostos desta
última. Esta condição é absolutamente nova para a humanidade justamente
porque, até o presente, a história desenvolveu-se no plano natural. É esta,
ademais, a interpretação que damos às palavras de Lukács: "Pues las clases
que en anteriores sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto,
fueron capaces de realizar revoluciones victoriosas, se encontraron
subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa precisamente de la
inadecuación de su consciencia de clase respecto de la estructura económica
objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su propia función
en el proceso del desarrollo social. Les bastó con imponer sus intereses
inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y el sentido social de sus
acciones les quedó siempre oculto, entregado a la 'astucia de la razón' en
el proceso social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en la
historia con la tarea de una transformación consciente de la sociedad,
tiene que producirse en su consciencia de clase la contradicción dialéctica
entre el interés inmediato y la meta última, entre el momento singular y el
todo. Pues el momento singular del proceso, la situación concreta con sus
concretas exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad,
a la sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su
estructura económica. Y no se hace revolucionaria más que se inserta en la
concepción total del proceso, cuando se introduce con referencia al
objetivo último, remitiendo concreta y conscientemente más allá de la
sociedad capitalista. Pero eso significa, subjetivamente considerado, para
la consciencia de clase del proletariado, que la relación dialéctica entre
él interés inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad
queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez de
desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores, más allá de la
consciencia (atribuible), como proceso puramente objetivo. La victoria
revolucionaria del proletariado no es pues, como para las demás clases
anteriores, la realización inmediata del ser socialmente dado de la clase,
sino – como ya lo vio y formuló agudamente el joven Marx – la
autosuperación de la clase. El Manifiesto Comunista formula esa diferencia
del siguiente modo: 'Todas las clases anteriores que conquistaron para sí
el dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado en la vida
sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su logro. Los
proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción
más que suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello,
todo modo de apropiación existido hasta ahora.' (cursiva mía – G.L.). Esta
dialéctica interna de la situación de clase dificulta, por un lado, el
desarrollo de la consciencia de clase proletaria a diferencia del caso de
la burguesía, que en el despliegue de su consciencia de clase pudo quedarse
en la superficie de los fenómenos, detenida en la empiria más abstracta y
grosera, mientras que para el proletariado, y ya en estadios muy primitivos
de su desarrollo, el rebasiamiento de lo inmediatamente dado fue una
imposición básica de su lucha de clases" (LUKÁCS, 1975, p. 77-78).

Estamos a tratar, pois, do fim da história natural do homem. É assim
que se interpreta neste artigo a postulação de Hegel quanto ao "fim da
história"; também sob esta ótica leem-se as assertivas de Marx: "Em um
caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês
moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação
econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última
forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no
sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das
condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças
produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa, criam ao mesmo
tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta
organização social termina, assim, a Pré-História da sociedade humana"
(MARX, 1977, p. 25).

Cabe esclarecer, desde logo, que o termo "natural" não é aqui aplicado
no sentido de uma projeção da natureza sobre o social, o que implicaria a
desnaturação desta segunda categoria; uma projeção desta sorte limita-se,
como sabido, à "sociedade" das abelhas ou das formigas. Também não se está
negando o social como fundante do próprio homem, tema já fixado
definitivamente por Marx (cf., especialmente, Manuscritos económicos-
filosóficos de 1844; MARX & ENGELS, 1966, p. 25-125). Igualmente, não se
pretende confundir natureza e social num conceito híbrido, pois, como
avançado, reconhece-se o primado do social. O termo natural é empregado na
medida em que o social "comporta-se" segundo modelo próprio da natureza,
vale dizer, na medida em que o homem não se apresenta como senhor auto-
consciente de seu futuro. Ou seja, o termo "natural" é usado com o intuito
de exprimir a condição na qual o homem, embora se defina como agente, ainda
não aparece como sujeito que o é em si, para si e por si mesmo. Enfim,
tenta-se dar conta das situações que podem ser sumariadas pela frase: ao
ser social deve-se a criação de relações que se impõem ao homem como
objetividade similar à que é própria da natureza.




É possível apontar vários autores que inspiraram a postura aqui
perfilhada. Destarte, lê-se em Engels: "Com a produção mercantil – produção
não mais para o consumo pessoal e sim para a troca – os produtos passam
necessariamente de umas mãos para outras. O produtor separa-se do seu
produto na troca, e já não sabe o que será feito dele. Logo que o dinheiro,
e com ele o comerciante, intervém como intermediário entre os produtores,
complica-se o sistema de troca e torna-se ainda mais incerto o destino
final dos produtos. Os comerciantes são muitos, e nenhum deles sabe o que o
outro está a fazer. As mercadorias agora não passam apenas de mão em mão,
mas também de mercado em mercado; os produtores já deixaram de ser os
senhores da produção total das condições da própria vida, e tão pouco os
comerciantes chegaram a sê-lo. Os produtos e a produção estão entregues ao
acaso.

"Mas o acaso não é mais do que um dos pólos de uma interdependência,
da qual o outro pólo se chama necessidade. Na natureza, onde também parece
imperar o acaso, há muito tempo que pudemos demonstrar, em cada domínio
específico, a necessidade imanente e as leis internas que se afirmam em tal
acaso. E o que é certo para a natureza também o é para a sociedade. Quanto
mais uma actividade social, uma série de processos sociais, escapam ao
controle consciente do homem, quanto mais parecem abandonados ao puro
acaso, tanto mais as leis próprias, imanentes, do dito acaso, se manifestam
como uma necessidade natural. Leis análogas também regem as eventualidades
da produção mercantil e da troca de mercadorias; frente ao produtor e ao
comerciante isolados, aparecem como forças estranhas e no início até
desconhecidas, cuja natureza precisa de ser laboriosamente investigada e
estudada. Estas leis econômicas da produção mercantil modificam-se de
acordo com os diversos graus de desenvolvimento dessa forma de produção;
mas cada período da civilização está regido por elas. Até hoje o produto
ainda domina o produtor; até hoje, toda a produção social ainda é regulada,
não segundo um plano elaborado colectivamente, mas por leis cegas, que
actuam com a força dos elementos, em última instância, nas tempestades dos
períodos de crise comercial" (ENGELS, s/d, p. 231-232).

A mesma linha de raciocínio é desenvolvida por Lukács: "Tampoco es
casual que la economía política no haya nacido como ciencia sustantiva sino
en la sociedad capitalista. Y no es casual porque la sociedad capitalista,
por su organización mercantil y del tráfico, ha dado a la vida económica
una peculiaridad tan autónoma, tan cerrada y tan basada en legalidades
inmanentes, que en vano se buscará en las sociedades anteriores. Por eso la
economía política clássica está, con todas sus leyes, más cerca de la
ciencia natural que de otra alguna. El sistema económico cuya naturaleza y
cuyas leyes estudia se acerca efectivamente mucho, por su peculiaridad, por
la construcción de su objetividad, a la naturaleza estudiada por la física,
por la ciencia natural. En ella se trata de conexiones plenamente
independientes de la peculiaridad humana de los hombres, de todo
antropomorfismo, religioso, ético, estético o de otra naturaleza; se
estudian conexiones en las que el hombre no aparece más que como número
abstracto, como algo reducible a números y a conexiones y relaciones
numéricas; relaciones en las cuales, según las palabras de Engels, las
leyes pueden descubrirse, pero no dominarse. Pues se refieren a conexiones
en las cuales - esto también lo ha dicho Engels - los productores han
perdido el poder sobre sus propias condiciones sociales de vida, en las
cuales, a consecuencia de la cosificación de aquellas condiciones, las
relaciones han cobrado autonomía plena, vivem por sí mismas y cristalizan
en un sistema independiente, cerrado y explicado en sí. (...) La forma más
pura – puede incluso decirse que la única forma pura – de este dominio de
las leyes naturales sociales sobre la sociedad es la producción
capitalista. Pues la misión histórico-universal del proceso civilizatorio
que culmina en el capitalismo es la consecución del dominio humano sobre la
naturaleza. Estas 'leyes naturales' de la sociedad, que dominan la
existencia del hombre como fuerças 'ciegas' (incluso cuando se reconoce su
'racionalidad', y hasta más intensamente en este caso), tienen la función
de someter la naturaleza bajo las categorías de la per-sociación, y la han
realizado en el curso de la historia" (LUKÁCS, 1975, p. 98-99). Aliás,
Marx, no prefácio de O Capital, já havia evidenciado o caráter "cego" (vale
dizer, necessário) das assim chamadas "leis naturais" da sociedade: "Lo que
de por sí nos interesa, aquí, no es precisamente el grado más o menos alto
de desarrollo de las contradicciones sociales que brotan de las leyes
naturales de la producción capitalista. Nos interesan más bien estas leyes
de por sí, estas tendencias, que actúan y se imponen con férrea necesidad"
(MARX, 1978, vol. I, p. XIV).

Com o ardil da razão, assim entendemos, Hegel, por seu turno, aponta a
questão de forças que se impõem inexoravelmente ao homem: "La idea
universal no se entrega a la oposición y a la lucha, no se expone al
peligro; permanece intangible e ilesa, en el fondo, y envía lo particular
de la pasión a que en la lucha reciba los golpes. Se puede llamar a esto el
ardil de la razón; la razón hace que las pasiones obren por ella y que
aquello mediante lo cual la razón llega a la existencia, se pierda y sufra
dano. Pues el fenómeno tiene una parte nula e otra parte afirmativa. Lo
particular es la mayoria de las veces harto mesquino, frente a lo
universal. Los indivíduos son sacrificados y abandonados. La idea no paga
por sí el tributo de la existencia y de la caducidad; págalo con las
pasiones de los indivíduos" (HEGEL, 1982, p. 97). Evidentemente, para Hegel
tais forças fogem ao controle humano – "en la historia universal y mediante
las acciones de los hombres, surge algo más que lo que ellos se proponen y
alcanzan, algo más de lo que ellos saben y quieren inmediatamente. Los
hombres satisfacen su interés; pero, al hacerlo, producen algo más, algo
que está en lo que hacen, pero que no estaba en su conciencia ni en su
intención" (HEGEL, 1982, p. 85) – e somos levados à única solução possível:
o reconhecimento da necessidade – "Esta inmensa masa de voluntades,
intereses y actividades son los instrumentos y medios del espíritu
universal, para cumplir su fin, elevarlo a la consciencia y realizarlo. Y
este fin consiste solo en hallarse, en realizarse a sí mismo y contemplarse
como realidad" (HEGEL, 1982, p. 84). Não obstante, mesmo assim dar-se-ia a
superação da natureza enquanto tal, pois: "Tal es el fin de la historia
universal; que el espíritu dé de sí una naturaleza, un mundo, que le sea
adecuado, de suerte que el sujeto encuentre su concepto del espíritu en esa
segunda naturaleza, en esa realidad creada por el concepto del espíritu y
tenga en esa objetividad la consciencia de su libertad y de su racionalidad
subjetivas. Este es el progreso de la idea en general; y este punto de
vista ha de ser para nosotros lo último en la historia. El detalle, el
hecho mismo de haber sido realizado, eso es la historia" (HEGEL, 1982, p.
211-212). Foge ao escopo deste artigo considerar as críticas levantadas
contra o pensamento de Hegel. Poder-se-iam lembrar as qualificações
efetuadas por Marx, mas preferimos reproduzir, tão somente, umas poucas
palavras de um crítico duro e profundo e que dizem respeito ao tema central
de que aqui se trata: "La crítica socialista del capitalismo reconoce,
pues, en la Fenomenología hegeliana algunas esenciales y correctas
determinaciones del proceso que Marx llamará más tarde la 'prehistoria' del
desarrollo humano" (LUKÁCS, 1985, p. 537).

Ademais, superar o plano natural, suplantar o ardil da razão e fundar
uma nova era histórica são elementos de um mesmo processo. Assim, na
"Fenomenología, el 'saber absoluto' no parece que sea para Hegel solamente
la edificación de una lógica especulativa, un nuevo sistema filosófico que
se anada a los anteriores y los complete, sino la inauguración de un nuevo
período en la historia del espíritu del mundo. La Humanidad ha tomado
consciencia de sí mesma, se ha hecho capaz de arrostrar y engendrar su
propio destino" (HYPPOLITE, 1974, p. 539). Na mesma linha, afirma outro
autor: "en la medida en que lo histórico llega a saberse como el devenir
infinito de lo finito – unidad esencial de lo finito y lo infinito –, capta
su fundamento en sí mismo, prescinde de los nexos trascendentes que antes
se antojaban indispensables para explicar su subsistencia y descubre su
condición ontológica originaria. En tanto que se sostiene a sí mismo y él
mismo es su fin, el devenir histórico ya no puede considerarse en términos
de fenómeno o accidente del ser, sino que se manifiesta como el ser mismo,
la realidad concreta (...) no debe olvidarse que el ser histórico se hace
totalidad del devenir sólo cuando deja de concebirse a sí mismo como simple
objetividad contingente dominada por la temporalidad cronológica y se
reconoce como sujeto, esto es, como devenir en sí y para sí infinito. El
espíritu es el devenir que ha cobrado consciencia de sí mismo y que se sabe
como infinito verdadero. Sólo a partir de esto se erige en sujeto ..."
(CORTÉS DEL MORAL, 1980, p. 210).

Pelo exposto, evidencia-se que a opinião perfilhada neste artigo
converge com as visões de Hyppolite e Cortés del Moral. Outras
interpretações do pensamento hegeliano conduzem a conclusões aparentemente
muito apartadas das aqui esposadas; a título de exemplo, lembre-se a
leitura de Kojève: "Así, para que el Hombre pueda conocerse a sí mismo,
debe previamente objetivarse, exteriorizarse, devenir um Mundo: 'el Hombre,
dice Hegel, debe realizarse en primer término y objetivarse por la Acción,
antes de poder conocerse'. Y la objetividad del Hombre, es precisamente la
existencia de sus Trabajos y de sus Luchas, o sea, la existencia de la
Historia que es el Tiempo. Ahora bien, en tanto que dura el Tiempo, en
tanto que hay Historia el Objeto permanece exterior ao Sujeto y el Hombre
no se reconoce pues en sus obras objetivas; el Mundo histórico que ha
creado se le aparece como un Mundo creado por otro que él: por un Espíritu,
ciertamente, pero por un Espíritu que no es el suyo, es decir, por un
Espíritu divino (...). Pero la Historia, es la oposición entre el Hombre y
el Mundo (natural). El comienzo del 'movimiento', es lo que no está en el
movimiento; es la ausencia de oposición entre el Hombre y el Mundo, o lo
que es igual, es la ausencia del Hombre. Por eso Hegel dice: 'el Círculo
presupone su comienzo', es decir: el Tiempo presupone el Espacio; el Hombre
presupone el Mundo; la identidad del Hombre y del Mundo es antes del
Hombre. Dicho de otro modo, esta identidad es la identidad no-revelada del
Mundo, que es recóndito o mudo porque todavía no implica al Hombre. Mas,
este origen del Hombre no existe para el Hombre. Porque el Ser-para-el-
Hombre es el Ser-revelado-por-el-concepto y desde que hay revelación del
Ser, ya existe el Hombre que lo revela por su Discurso. Y el Hombre es la
Acción, es decir, la oposición entre el Hombre y el Mundo, esto es,
precisamente el 'movimento-dialéctico' o el Tiempo. El Tiempo (humano)
tiene entonces un comienzo en el Mundo: la Historia comienza en un Mundo
(natural) ya existente. Pero la Historia es la historia de la Acción
humana, y esa Acción es la 'supresión-dialéctica' de la oposición entre el
Hombre y el Mundo. Y la 'supresión' de la oposición es la 'supresión' del
Hombre mismo, es decir de la Historia y por tanto del Tiempo (humano). En
consecuencia, el fin del 'movimiento' es también Identidad, como lo es su
comienzo. Sólo al final la Identidad es revelada por el Concepto. El
'movimiento', es decir, la Historia que es en última instancia el proceso
de la revelación del Ser por el Discurso, no alcanza (erreicht) por tanto
su comienzo sino al final: es que sólo al final de la Historia la identidad
del Hombre y del Mundo existe para el Hombre, o en tanto que revelada por
el Discurso humano. La Historia que há comenzado tiene necesariamente un
fin: y ese fin es la revelación discursiva de su comienzo ... . Mas si el
comienzo del Hombre, de la Historia y del Tiempo no existe, para el Hombre,
sino al final del Tiempo y de la Historia, este fin ya no es un nuevo
comienzo ni para el Hombre ni del Hombre, sino verdaderamente su fin. En
efecto, la identidad revelada del Hombre y del Mundo suprime el deseo que
es precisamente el comienzo de la Historia, del Hombre y del Tiempo. El
Círculo del Tiempo no puede ser recorrido más que una sola vez; la Historia
se acaba, pero no recomienza más; el Hombre muere y no resucita (por lo
menos en tanto que Hombre).

"Pero aun no siendo cíclico, el Tiempo es necesariamente circular; al
final se alcanza la Identidad del comienzo. Sin esa identidad (es decir sin
el Mundo natural) la Historia no habria podido comenzar; sólo se termina
con el restablecimento de esa Identidad; mas entonces se termina
necesariamente. Se vuelve por último al punto de partida: a la nada del
Hombre" (KOJÈVE, 1985, p. 159-163).

Não obstante esta cristalina interpretação de Kojève, ainda assim
observávamos ser apenas aparente a contraposição entre o seu e o nosso
entendimento sobre o fim da história. Isto é particularmente evidenciado ao
considerarmos nossa afirmação de que a superação do "natural" coloca-se
como requisito necessário de uma história posta pelo homem, pois o que
resta afirmado por Kojève é justamente a absoluta subordinação ao Espírito
e a anulação do homem, e isto, tendo-se em conta o quadro no qual foi
elaborada a obra de Hegel – afirmação plena do capitalismo –, está em
concordância com a tese aqui defendida de que este modo de produção, na
ausência da ação política consciente do homem, perpetua-se no "espaço",
anulando o tempo e reduzindo sua subsistência a mera duração. Não se trata,
pois, do fim da História, mas do fim da história natural do homem e da
emergência de condições que tornam possível o início de uma História
verdadeiramente humana; não se trata da anulação do Homem, mas da negação
do homem determinado por forças naturais que atuam cegamente (embora
"racionalmente") e da efetivação de situação limite que torna possível a
existência de um Homem que atuará como sujeito que o é em si, para si e por
si, tornando-se, assim, senhor autoconsciente de seu futuro. História esta
que se marcará, não pela negação da natureza enquanto tal, nem pela
supressão da "necessidade" por ela imposta, mas, sim, pela sua superação,
calcada na ação conscientemente dirigida: "En efecto, el reino de la
libertad sólo empieza allí donde termina el trabajo impuesto por la
necesidad y por la coacción de los fines externos; queda pues, conforme a
la naturaleza de la cosa, más allá de la órbita de la verdadera producción
material. Así como el salvage tiene que luchar con la naturaleza para
satisfacer sus necesidades, para encontrar el sustento de su vida y
reproducirla, el hombre civilizado tiene que hacer lo mismo, bajo todas las
formas sociales y bajo todos los posibles sistemas de producción. A medida
que se desarrolla, desarrollándose con él sus necesidades, se extiende este
reino de la necesidad natural, pero al mismo tiempo se extienden también
las fuerzas productivas que satisfacen aquellas necesidades. La libertad,
en este terreno, sólo puede consistir en que el hombre socializado, los
productores asociados, regulen racionalmente este su intercambio de
materias con la naturaleza, lo pongan bajo su control común en vez de
dejarse dominar por él como por un poder ciego, y lo lleven a cabo con el
menor gasto posible de fuerzas y en las condiciones más adecuadas y más
dignas de su naturaleza humana. Pero, con todo ello, siempre seguirá siendo
éste un reino de la necesidad. Al otro lado de sus fronteras comienza al
despliegue de las fuerzas humanas que se considera como fin en sí, el
verdadero reino de la libertad, que sin embargo sólo puede florecer tomando
como base aquel reino de la necesidad" (MARX, 1978, vol. III, p. 759).

Nosso enfoque da interpretação de Kojève coloca-se como oportuno,
ademais, uma vez que tal interpretação é apontada como principal fonte
teórica da recente revivescência equivocada e distorcida da temática do fim
da história, vale dizer, o escrito de F. Fukuyama. É patente neste último
autor o tratamento simplista, efetivo empobrecimento das ideias hegelianas:
"Para Hegel, (o fim da história-JFM/INC) seria o Estado liberal ... .
Isso não significava o fim do ciclo natural de nascimento, vida e morte ...
. Significava, isso sim, que não haveria mais progresso no desenvolvimento
dos princípios e das instituições básicas, porque todas as questões
realmente importantes estariam resolvidas" (FUKUYAMA, 1992, p. 12-13). Mais
ainda: "Com as revoluções francesa e americana, Hegel concluiu que a
história chega ao fim porque a aspiração que impulsionou o processo
histórico – a luta pelo reconhecimento (do homem pelos outros homens, como
ser humano – JFM/INC) – está agora satisfeita numa sociedade caracterizada
pelo reconhecimento universal e recíproco. Nenhum outro ajuste das
instituições humanas é mais capaz de satisfazer essa aspiração, e portanto
não é possível nenhuma outra mudança histórica progressiva" (idem, p. 19).
E Fukuyama evidencia sua filiação ao pensamento de Kojève: "Escrevendo no
século XX, Alexandre Kojève, o grande intérprete de Hegel, afirma
intransigentemente que a história terminou porque o que ele chama de
'Estado homogêneo e universal' – que podemos entender por democracia
liberal – definitivamente resolveu a questão do reconhecimento,
substituindo a relação senhor-escravo pelo reconhecimento universal e de
igualdade. O que o homem vem procurando através da história - o que deu
impulso aos primeiros 'estágios da história' – é o reconhecimento. No mundo
moderno, ele o encontrou finalmente e ficou 'completamente satisfeito'"
(idem, p. 22-23).

Avancemos, pois, nossas considerações. Primeiramente, é preciso
apontar, como o faz Perry Anderson, que a leitura de Hegel feita por Kojève
envolve um desvirtuamento da própria substância do Estado: "Para Hegel, o
Rechsstaat é a consubstanciação racional da liberdade moderna. Os
principais temas de toda a sua exposição do desenvolvimento político são
Razão e Liberdade, as quais se concretizam ambas na substância ética do
Estado moderno. Na visão de Kojève do fim da história, elas recuam
gradualmente para o background – as referências a ambas tornam-se cada vez
mais residuais, até mesmo vestigiais. Em lugar delas, dois conceitos muito
diferentes passam a dominar a cena: Desejo e Satisfação. Kojève extraiu-os
da dialética da autoconsciência no quarto capítulo da Fenomenologia: o
desejo humano é fundamentalmente desejo do que não é ele próprio – a
consciência desejosa de outros. É essa dinâmica que desencadeia a disputa
recíproca de subjetividades cuja primeira figura histórica é a dialética do
senhor e do servo, na qual o que está em jogo é o reconhecimento. A vitória
nessa luta (...) é Befriedigung: satisfação. Com efeito, Hegel usa o termo
para indicar o objeto da dialética do desejo: 'a autoconsciência só realiza
a sua satisfação numa outra autoconsciência'. Mas, em si mesmo, isso
constitui apenas um episódio na aventura do espírito. Quando o relato de
Hegel atinge o quinto capítulo da Fenomenologia, o vocabulário de desejo e
satisfação desaparece: um outro e mais alto drama é agora encenado, cujo
palco é a razão. Para além dele, por sua vez, residem as vicissitudes das
liberdades inauguradas pela vontade geral. Na época em que veio a escrever
sua filosofia política propriamente dita, quinze anos depois, Hegel faz
pouca menção de desejo ou reconhecimento. A satisfação ainda é uma
categoria central, mas o seu registro é agora principalmente econômico,
relacionado com necessidades materiais. Assim, Kojève não foi totalmente
infiel a Hegel; mas realçou o que Hegel tendia a abandonar ou a suplantar"
(ANDERSON, 1992, p. 60-61).

Ora, quando recuperamos esse registro fundamentalmente econômico, isto
é, ao pensarmos a Liberdade e a Necessidade no seio da sociedade
capitalista, abrimos espaço para nossa visão sobre o fim da história. Pois
no capitalismo, como bem observa Marcuse, "o indivíduo é 'livre'. Nenhuma
autoridade lhe pode dizer como ele deve se manter; cada um pode escolher
trabalhar no que lhe aprouver. Um indivíduo pode decidir produzir sapatos,
outro, livros, um terceiro, rifles, um quarto, botões de ouro. Mas os bens
que cada um produz são mercadorias, isto é, valores de uso, não para ele,
mas para outros indivíduos. Cada um deve trocar seus produtos por outros
valores de uso que satisfarão suas próprias necessidades. Em outras
palavras, a satisfação das necessidades de cada um pressupõe que o produto
do seu trabalho atenda a uma necessidade social. Mas ele não o pode saber
com antecedência. Só quando traz os produtos do seu trabalho ao mercado é
que pode verificar se empregou, ou não, um tempo de trabalho social. O
valor de troca dos seus bens vai mostrar-lhe se estes bens satisfazem ou
não uma necessidade social. Se ele pode vendê-los ao custo da produção, ou
acima deste custo, a sociedade estava disposta a empregar uma porção do seu
tempo de trabalho na produção desses bens; de outra forma, ou ele
desperdiçou ou não gastou tempo de trabalho socialmente necessário. O valor
de troca das suas mercadorias decide seu destino social. (...).

"Marx chama este mecanismo pelo qual a sociedade produtora de
mercadorias distribui, entre os diferentes ramos da produção, o tempo de
trabalho à sua disposição, de lei do valor" (MARCUSE, 1978, p. 275-276).

A lei do valor na sociedade capitalista funciona, assim, como uma "lei
natural", "um mecanismo cego fora do controle consciente dos indivíduos". E
isto é desse modo exatamente na medida em que, no capitalismo, "a sociedade
não é um sujeito consciente" (idem, ibidem). Retorna-se, por conseguinte,
ao nosso entendimento da sociedade capitalista como o estágio final de uma
história "natural", que se fez por e mediante os homens, mas não foi posta
conscientemente por eles.




A Possibilidade de uma Sociedade "Pós-Capitalista": um não ao Neofa-talismo


Nem a superação da visão stalinista da evolução social, nem a
derrocada do socialismo real livraram-nos, no plano das ideias
socioeconômicas, da perspectiva fatalista, pois, tal postura, parece-nos,
ganhou novo fôlego nos dias correntes, em que se observa a proliferação de
escritos, assinados por intelectuais brasileiros e estrangeiros, nos quais
os autores opinam acerca das eventuais formas a serem assumidas pela
sociabilidade humana no século XXI.

É o caso, por exemplo, do artigo de Robert Kurz intitulado Para além
de Estado e mercado. Nele, o autor explicita, antes do mais, o insucesso,
tanto da instituição estatal – seja o Estado social keynesiano, seja o
Estado socialista – como do mercado, em realizar "o sonho da emancipação
social, da autodeterminação do homem, de uma produção autônoma da vida". A
partir daí, discute a emergência de um terceiro setor, quiçá possuidor de
uma "força histórica renovadora", apto a superar os problemas que não se
resolveram mediante a ação daquelas duas instituições que têm ocupado boa
parte do espaço social: "talvez o sistema totalitário da economia de
mercado (assim como o Estado) seja ele próprio um Golias corpulento, para
quem a pedra e a funda já estão armadas, à espera do momento exato para
derrubar o gigante" (KURZ, 1995, p. 14). Este terceiro setor – que em certa
medida encontra seu precursor no cooperativismo – é composto por
instituições que têm sido denominadas Organizações Não-Governamentais
(ONGs) e Non-Profit Organizations. Estaríamos, pois, frente a "novas formas
de reprodução social, para além do Estado e do mercado".

Nesse contexto, Kurz discute as propostas do sociólogo André Gorz e do
economista Jeremy Rifkin, e aí vêm à tona os aspectos que aqui nos
interessa salientar: "Salta aos olhos o fato de autores como Gorz ou Rifkin
ainda descreverem o problema de acordo com as categorias impostas pela
economia de mercado. ... Em ambos os casos, ... o terceiro setor é visto
como o irmão caçula do mercado, pois as fontes de 'financiamento' são
necessariamente as migalhas de caridade deixadas pela produção que visa ao
lucro. ... Os pontos de vista de Gorz e Rifkin ameaçam permanecer um
simples modelo de subvenção para países ricos, uma espécie de passatempo
altruísta para os campeões do mercado" (Idem, ibidem).

A reflexão sobre o futuro da sociabilidade humana também está presente
no artigo intitulado Lógica da emancipação, de José Arthur Giannotti. Os
vínculos com o mercado são encarados de forma não tão negativa como em
Kurz, o que decorre provavelmente de uma aceitação mais tranquila da
inexorabilidade de tais vínculos: "... parece-me evidente que não existem
hoje meios de criar riqueza social totalmente desvinculados de uma forma ou
outra de mercado. Nada impede Robert Kurz de anunciar, em altos brados, a
crise do modo de produção de mercadorias. Nem ele nem ninguém foi até agora
capaz de nos dizer como um futuro modo de produção se organizará para
evitar a violência da competição capitalista e o estigma do mercado, sem
cair na regulamentação autoritária e no fundo ineficaz do sistema
produtivo. Qualquer projeto de produção cientificamente planejada, que
fosse capaz de ajustar oferta e demanda na base de um cálculo racional
prévio, foi irremediavelmente refutado pelos fatos" (GIANNOTTI, 1995, p.
9). Ver-nos-íamos encerrados, portanto, no âmbito do mercado.

Não obstante, isto não acarreta a perspectiva de um futuro pouco
promissor. Ao contrário, lembrando a "... observação de Marx de que o
capitalismo gera simultaneamente a maior riqueza e a maior pobreza",
Giannotti estabelece seu diagnóstico: "Ora, os instrumentos que nos
oferecem as ciências econômicas e a crítica filosófica da alienação bastam
para desenhar instituições compensatórias que, sem pretender ser
inteiramente transparentes, cuidem para que o todo tenda a ser justo e
racionável. Carecemos de instituições capazes de intervir na política
econômica mundial. E, como desde logo se descarta a ideia de que se tenha
uma única política correta, justa e racionável, essas instituições só podem
ser representativas, vale dizer, permeáveis à diversidade dos interesses e
da luta pelo poder. Noutras palavras, para que se conviva com as alienações
da produção mercantil, para que seus efeitos sejam cada vez mais
circunscritos e podados, é preciso aprofundar o sistema político
representativo, em escala regional e mundial, a fim de que ele democratize
as decisões de política econômica" (Idem, ibidem). Conforme nos sugere o
autor em questão, provavelmente não será mais capitalista a forma de
sociabilidade humana que emergiria da ação dessas instituições
compensatórias.

Da posição de Giannotti parece aproximar-se Alain Touraine (A longa
crise de transição do liberalismo). De um lado, este último autor salienta
que, "se quisermos evitar a catástrofe de conhecer hoje, em escala mundial,
o equivalente da proletarização e da miséria urbana na Europa de Dickens e
de Victor Hugo, temos de resistir aos encantos do hiperliberalismo". De
outro, porém, escreve Touraine: "... temos de conferir uma importância
central ao próprio sistema político, em vez de acalentar esperanças por
movimentos sociais ainda dominados e paralisados por ideologias vindas do
século passado. Digo sistema político, e não Estado, pois não se trata de
atribuir a esse último um papel condutor na modernização agora
internacionalizada, mas de exigir que o sistema político combine de forma
razoável as transformações econômicas e a integração social, de modo a
realizar esse desenvolvimento com a equidade tão bem pregada pelos
pesquisadores do Prealc e da Cepal. O que nos falta, portanto, são debates
e intervenções políticas. ... É preciso agora ingressar urgentemente num
período pós-liberal, ou seja, de reconstrução dos controles legais,
administrativos e sociais, a fim de impedir a selvageria econômica, o
aumento da exclusão e a difusão da violência em sociedades que perderam o
controle de sua própria transformação" (TOURAINE, 1996, p. 10).

Críticos todos – com maior ou menor veemência (ou veneno!) – da
desigualdade, da exclusão próprias do capitalismo, esses pensadores – num
comportamento irrepreensivelmente racional, digamos de passagem – refletem
sobre o devir da humanidade ocorrendo em meio a um processo que, aparadas
inevitáveis mas superáveis arestas, apresenta-se como eminentemente
natural. De fato, este "aparar de arestas" põe-se como marco a delimitar a
extensão das críticas que se têm multiplicado, as quais assumem afinal um
caráter "conciliatório". Ilustrativas desse caráter são as considerações
seguintes, de Paul Singer: "A globalização resultante da contra-revolução
liberal do último quarto de século não precisa ser irreversível. Se houver
vontade política por parte de alguns governos, a globalização poderá ser
reorientada, deixando de estar submetida à hegemonia do capital privado.
Sempre será possível reinstaurar algum controle intergovernamental do
movimento internacional do capital financeiro e produtivo, seja pela ação
de um agrupamento informal de economias nacionais poderosas, como o G-7,
por exemplo, ou de algum organismo multilateral, como o FMI ou o Banco
Mundial" (SINGER, 1996, p. 3).

Em suma, não obstante as marcantes disparidades que apartam algumas
das opiniões acima arroladas, elas se aproximam em um aspecto crucial. De
forma mais ou menos relevante – "por bem ou por mal" –, todas integram em
seu bojo soluções ditas de mercado, as quais se acham contempladas,
invariavelmente, a partir de um evidente traço fatalista; ao assumirem tal
"inevitabilidade" como que condimentam os cenários antevistos com uma
pitada de concessão ao neoliberalismo. Ora, a nosso ver, há que pôr em
questão esse traço fatalista que empurra, entre outros, os estudiosos
citados – todos eles mais audaciosos que nós –, no sentido de uma espécie
de "mercado light", com respeito ao qual é muito difícil distinguir a
efetiva superação do capitalismo da mera expressão da extrema flexibilidade
característica desse modo de produção. Nosso ponto, explicitado com maior
detalhe na primeira parte deste artigo, funda-se no entendimento do
capitalismo enquanto forma superior e derradeira da existência natural da
sociabilidade humana. Esta existência é denominada natural porque até então
a postura dos homens era essencialmente ditada pela passividade frente às
circunstâncias com que se defrontavam. De outra parte, enquanto a
sociabilidade humana mantiver-se restrita a essa expressão natural, vale
dizer, enquanto estiverem os homens relegados à condição de portadores de
relações, colocar-se-á, aí sim inevitavelmente, a re-produção automática e
autônoma do capitalismo.

Contudo, a ação do espírito, da consciência, tornada possível com a
sociedade capitalista, tem, a sua vez, o poder de acarretar a ruptura
daquele movimento de re-produção. A partir daí, abrir-se-ia a possibilidade
para uma etapa distinta, diríamos mesmo antinatural, em que a sociabilidade
humana ver-se-ia moldada conscientemente pelo homem: é o fim da história
natural, o início da história posta pelo homem. É evidente que nada
garante, a priori, que se efetive essa sociedade fruto da ação consciente
do ser humano. Exatamente porque ela não se porá "naturalmente" é que ela
se apresenta como mera possibilidade. Todavia, das enormes dificuldades que
ante ela se erguem não decorre a necessidade de descartar essa
possibilidade in limine, mediante a adoção de soluções mais fáceis, "de
mercado", com o que o ponto culminante da história "natural" do homem tende
a tornar-se, de fato, o ponto final de sua história.

Saliente-se, por fim, que não estamos a advogar, teimosamente, a volta
ao experimento do socialismo real. Estamos afirmando ser possível a ação
consciente, "não natural", do homem enquanto sujeito da história. A
alternativa a isto parece-nos ser o triste perfilhar da inexorabilidade do
neoliberalismo, a "entrega dos pontos" frente à onipotência do mercado e,
junto com isso, a assunção do mesmo pessimismo presente, por exemplo, em
artigo de João Sayad ("O início do próximo século que já começou é muito
difícil. ... Temos que aguardar que o tempo e o sofrimento de tantos
excluídos produzam crises, guerras e uma nova solução"; SAYAD, 1996, p. 2).
Vale dizer, esperaremos cabisbaixos o término das crises e das guerras que
hão de vir, no íntimo reconfortados por pensarmo-nos de antemão entre os
sobreviventes do mais pífio darwinismo social. Como adverte Lester Thurow:
"Ninguém jamais experimentou o capitalismo de sobrevivência do mais apto
por muito tempo, na era moderna. Para os cientistas sociais, essa
experiência será interessante. Para os que serão objeto da experiência,
será muito doloroso. Para os interessados na estabilidade social, os riscos
serão grandes" (THUROW, 1996, p. 2). Serão mesmo estes os riscos que
quereremos correr? Por outro lado, a configuração de uma eventual
trajetória alternativa apontaria para o que, exatamente? Vejamos.

Antes do mais, como sabido, uma vez superado o capitalismo a
mercadoria deixa de existir como a conhecemos hoje. Os bens deixarão, pois,
de ser valores de troca e limitar-se-ão à condição de valores para o uso.
Não obstante, permanecerão problemas econômicos afetos à alocação dos
recursos e dos fatores de produção às técnicas produtivas e à
produtividade, assim como os vinculados à distribuição dos resultados da
produção. Trata-se, pois, de uma situação na qual a vida econômica ver-se-á
absolutamente imersa (esgotar-se-á) na produção física de bens e serviços e
na distribuição dos seus resultados. Para dar conta de tais problemas
necessitar-se-á, portanto, de uma "engenharia econômica" que não se
confunde com a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a
conhecemos, nem com a economia como a praticamos nos dias correntes. A essa
nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão a produção
física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de
caráter individual e social.

Tais soluções, frisemos novamente, contrariamente ao que ocorre no
âmbito da sociedade capitalista, terão de ser formuladas conscientemente e,
necessariamente, sua formulação terá de anteceder sua aplicação efetiva.
Ademais, uma vez que estamos a tratar de "uma nova forma de sociabilidade,
a primeira a se assentar inteiramente no espírito e que, portanto, terá de
ser por ele sustentada..." (MOTTA & COSTA, 1999, p. 25), cumpre lembrar que
tal sustentação só se verá garantida se forem obedecidas duas condições
essenciais e sem as quais, cremos, é impossível pensar-se numa sociedade
"pós-capitalista" auto-sustentável. Em primeiro, considerando que terá de
haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade, é
indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia e os
direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e
irrestritamente, e a estes elementos, obviamente, há de estar aliado o
maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. De outra parte, as
vontades individuais desenvolvidas em tal ambiência devem associar-se
livremente de sorte a chegar-se à organização necessária àquela
sustentação. Liberdade e associação definem-se, pois, não só como metas
desejáveis por si, mas, e sobretudo, como elementos imanentes à assim
chamada sociabilidade "pós-capitalista" ou socialista, caso se queira.

Pelo exposto, tanto o nazismo como o fascismo reais, ainda que de
maneira apenas tangencial, podem ser entendidos, também, como tentativas de
estabelecimento de sociedades que, embora essencialmente capitalistas,
traziam alguns poucos traços "pós-capitalistas". Não é preciso lembrar que
tais incursões do espírito (preferimos pensar em incursões de um pavoroso
"inconsciente" do espírito) efetuadas de modo totalitário e largamente
inconsciente redundaram, apenas, em horror próprio para servir como objeto
de estudos restritos aos campos da patologia social e da psicopatia, o que,
de resto, também caracterizou o stalinismo.

Caso não sejam formuladas conscientemente alternativas às soluções
derivadas do funcionamento automático do capital, a tentativa de se
construir uma sociedade de corte socialista poderá terminar em mera
acumulação ampliada de ineficiência econômica, imposições autoritárias e
dirigismo burocrático. Descontados os horrores que o cercaram e outros
fatores que o condicionaram, não teria sido esta a experiência vivenciada
pelo fracassado socialismo real? E a aventura cubana, ainda que se defronte
com o brutal cerco imposto pelos Estados Unidos, não estaria a conhecer,
por causa de suas próprias mazelas, um fim semelhante?

Mas este desenlace melancólico da experiência socialista conduzida de
maneira puramente empírica não é o único possível. Poderão, os socialistas,
ainda, pretender "parasitar" o capitalismo, cobrando da sociedade, com
incidência particularmente forte sobre o capital, um "tributo" que
chamaríamos de "taxa de garantia do direito de existir" cuja destinação
seria atender aos menos privilegiados. Não é deste feitio a solução que
tentam implementar na Europa alguns partidos de extração social-democrata
ou comunista? Como é patente não se pode falar, neste caso, em sociedade
"pós-capitalista", pois, a "solução" aventada e os intentos aludidos não
pretendem alcançá-la e limitam-se, tão somente, a aceitar a perpetuação de
um "capitalismo não-raivoso". Quanto a este tópico, escreveu-se já há
alguns anos: "Espremida entre uma base social cambiante e um horizonte
político em contração, a social-democracia parece ter perdido sua bússola.
... Houve época, nos primeiros anos da Segunda Internacional, em que ela
orientou sua ação para a superação do capitalismo. Empenhou-se depois por
reformas parciais, consideradas passos gradativos rumo ao socialismo.
Finalmente, contentou-se com o bem-estar social e o pleno emprego dentro do
capitalismo. Se ela admitir agora uma diminuição do bem-estar e desistir do
pleno emprego, em que tipo de movimento vai se transformar?" (ANDERSON,
1996, p. 23-24).

Outra possibilidade colocada no mesmo plano consubstanciar-se-ia na
geração de bolsões controlados de capitalismo que serviriam para
complementar uma "produção de tipo socialista" não muito bem definida.
Neste caso gerar-se-ia, em verdadeiros "enclaves socioeconômicos", uma
espécie de capitalismo enclausurado, "enjaulado" ou domado e manipulável de
sorte a conformar-se às necessidades políticas e econômicas de uma
sociedade "socialista" inclusiva. Seria este o caso da China dos dias
correntes? Aparentemente sim, embora os crimes comuns e de caráter político
cometidos pelos dirigentes chineses sejam tamanhos que nos causa engulho
considerá-los como homens e mulheres de esquerda. De toda sorte, para nós,
observadores externos e distantes que somos, o rumo tomado pelos
dirigentes chineses parece decorrer de dois fatores que se acham
intimamente relacionados: por um lado, da incapacidade de se gerar o número
necessário de postos de trabalho para garantir o prometido pleno emprego de
sua imensa força de trabalho; de outra parte, do receio das reações
políticas da massa de sua população caso o compromisso supracitado venha a
ser descumprido. Estaríamos em face, assim, antes de uma concessão do que
de uma solução desejada, planejada e perseguida.

Em suma, e voltando ao eixo central deste artigo, ao proporem uma nova
forma de sociabilidade, os socialistas e comunistas clássicos prenderam-se,
basicamente, à questão da distribuição do produto deixando de lado a
discussão das formas a adotar para se efetuar a alocação de recursos e
fatores e para se promover a produção. Neste sentido pode-se afirmar que as
propostas das esquerdas cingiram-se à apresentação de formas mais equânimes
de se distribuir a produção efetuada, não podendo ser vistas, portanto,
como soluções econômicas integradas e orgânicas, pois lhes faltou,
justamente, uma vertente essencial, qual seja a concernente à produção
propriamente dita, a qual, como tudo o mais, é automática e imediatamente
resolvida, no capitalismo, pelo funcionamento da "lei do valor". Na
sociedade "pós-capitalista" não se dá (dará) o mesmo. Ademais, os
paradigmas empiricamente adotados pelas nações do Leste Europeu que
conheceram o socialismo real e que se encontravam calcados, sobretudo, na
experiência proporcionada pela Revolução Industrial e nas técnicas e
métodos adotados pelos países ocidentais na primeira metade do século XX
mostraram-se absolutamente insuficientes para promover um crescimento
econômico harmônico, consistente e auto-sustentável. Por outro lado, o
asfixiante e totalitário sistema político brutalmente imposto tornou o
assim chamado socialismo real absolutamente inaceitável pelas populações e
nações por ele vitimadas. Destarte, de "positivo", as aludidas sociedades
do Leste Europeu conheceram, tão só, uma política de pleno emprego que
esboroou e práticas assistencialistas que foram descontinuadas.

Ora, se pensarmos uma sociedade na qual se deseje ver promovida, sem
nenhuma mediação, a distribuição da produção de acordo com as necessidades
de cada um de seus integrantes (e é isto que os comunistas alegam querer),
seremos obrigados a admitir que seus pressupostos são: 1) tal sociedade tem
de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de
produção, já que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a
produção de bens e serviços e sua distribuição; 2) essa sociedade tem de
ser "pensada", projetada, antes de existir concretamente, pois, como vimos,
a natureza é incapaz de instituí-la, de produzi-la; aliás, pelo contrário,
o que se produziu "naturalmente" foi justamente a propriedade privada sobre
os meios de produção, óbice maior à instituição da aludida sociedade
almejada pelos comunistas; 3) como visto, tal sociedade não é um produto da
natureza, mas algo antinatural, decorrente da vontade dos homens (do
espírito); não traz em si, portanto, os elementos necessários à sua
reprodução (re-posição), pois, "colocada" (posta) pelo espírito, por ele
terá de ser re-colocada, cabendo a ele, portanto, sustentá-la. Destarte,
tanto sua existência como sua persistência (subsistência) derivarão da
vontade dos homens, de sua tensão em mantê-la. Não há, portanto, repisemos,
nenhuma razão de ordem natural para que ela venha a existir ou permaneça
existindo.

Cumpre notar por fim que, na ausência de controles automáticos, a vida
econômica de tal sociedade terá de ser gerida pela anunciada "engenharia
econômica" a qual, até o momento, não se acha sequer esboçada.




Referências Bibliográficas

ANDERSON, Perry. O fim da história: de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1992.

ANDERSON, Perry. Introdução. In: ANDERSON, Perry & CAMILLER, Patrick. Um
mapa da esquerda na Europa Ocidental. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996, p. 9-31.

CORTÉS DEL MORAL, Rodolfo. Hegel y la ontologia de la historia. México,
D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 1980.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
Lisboa: Editorial Presença, s/d. (Síntese, 3).

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro:
Rocco, 1992.

GIANNOTTI, José Arthur. Lógica da emancipação. Folha de S. Paulo, Caderno
Mais!, 17 de dezembro de 1995, p. 8-9.

HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal.
Madrid: Alianza Editorial, 1982.

HEGEL, G. W. F. Fenomenología del espíritu. Madrid: Fondo de Cultura
Económica, 1983.

HYPPOLITE, Jean. Génesis y estructura de la "Fenomenología del Espíritu" de
Hegel. Barcelona: Ediciones Península, 1974.

KOJÈVE, Alexandre. La antropología y el ateísmo en Hegel. Buenos Aires:
Editorial La Pléyade, 1985.

KURZ, Robert. Para além de Estado e mercado. Folha de S. Paulo, Caderno
Mais!, 3 de dezembro de 1995, p. 14.

LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Editorial
Grijalbo, 1975. (Instrumentos, 1).

LUKÁCS, Georg. El joven Hegel y los problemas de la sociedad capitalista.
Méxixo, D.F.: Editorial Grijalbo, 1985.

MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. (O Mundo Hoje, 28).

MARX, Carlos. El capital: crítica de la economía política. México, D.F.:
Fondo de Cultura Económica, vol. I e III, 1978.

MARX, Carlos & ENGELS, Federico. Escritos económicos varios. México, D.F.:
Editorial Grijalbo, 1966.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins
Fontes, 1977.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O pensamento de esquerda: um
pensamento em construção. Informações fipe. São Paulo: FIPE, n. 223,
p. 24-26, abril/1999.

SAYAD, João. As notas do século 21. Folha de S. Paulo, Caderno Negócios, 29
de janeiro de 1996, p. 2.

SINGER, Paul. O fim forçado das contradições. Folha de S. Paulo, Caderno
Mais!, 11 de fevereiro de 1996, p. 3.

THUROW, Lester. Capitalismo de sobrevivência do mais apto. O Estado de S.
Paulo. Primeiro Caderno, p. 2.

TOURAINE, Alain. A longa crise de transição do liberalismo. Folha de S.
Paulo, Caderno Mais!, 21 de janeiro de 1996, p. 10.






5. A MERCADORIA FORÇA DE TRABALHO, O CAPITALISMO E A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA
FORMA DE SOCIABILIDADE HUMANA1



Iraci del Nero da Costa

José Flávio Motta







Intróito

Largo período da vida econômica da humanidade pode ser entendido,
também, como a história do desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro
e capital; desse desenvolvimento resultou a universalização de tais formas.
Mercadoria, dinheiro e capital, relações sociais que são, chegam à sua
culminância – vale dizer, universalizam-se objetiva e absolutamente – com a
emergência da mercadoria força de trabalho como propriedade absoluta do
trabalhador direto. Assim, este último passa a dispor livremente – porque
juridicamente livre e despossuído de outros meios de subsistência – dessa
mercadoria, da qual é pleno proprietário, no âmbito de uma sociedade na
qual todos são fixados como proprietários absolutos de suas mercadorias. Em
suma, a emergência da mercadoria força de trabalho funda o modo de produção
capitalista, possibilitando a transformação do trabalhador livre em
assalariado, do dinheiro em capital industrial e do detentor dos meios de
produção – e/ou da capacidade de mobilizá-los, mediante a propriedade de
dinheiro ou outros haveres – em capitalista.

Dentre as inúmeras implicações do surgimento da mercadoria em questão,
ocupamo-nos, em outros artigos, dos atributos do capitalismo como forma
superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana.2 Desta
feita, nossa atenção centrar-se-á em algumas outras das mencionadas
implicações.

Num primeiro momento, ainda presos ao plano estrito da vida econômica,
consideraremos o movimento de autonomização, de isolamento, da órbita
econômica nos quadros da vida social; assim também o fenômeno da
"coisificação" do homem, isto é, de sua total desumanização; e, por fim, em
sintonia com os dois itens anteriores, a possibilidade que se concretiza,
no plano das ideias, da definição da economia como ciência autônoma com
objeto próprio e claramente delimitado e, mais ainda, o estabelecimento de
uma determinada teoria – a neoclássica – como descrição, e tão somente mera
descrição, relativamente bem-sucedida da realidade dada pelo modo de
produção capitalista.

Num segundo tópico preocupar-nos-emos com algumas consequências de
natureza política do surgimento da aludida mercadoria. Mais
especificamente, trataremos da universalização da propriedade privada, da
liberdade e da cidadania, universalização esta que se acha integrada ao
próprio funcionamento do Estado Moderno, instância garantidora da dominação
política da classe economicamente dominante.3

Em seguida, ocupar-nos-emos com algumas decorrências da eventual
superação do modo de produção capitalista e, portanto, da supressão da
forma mercadoria.




Implicações Econômicas da Emergência da Mercadoria Força de Trabalho


A autonomização do econômico decorre da mercantilização da força de
trabalho e ambas definem-se no âmbito do capitalismo. De fato, como observa
Lukács, "(...) en las sociedades pre-capitalistas las formas jurídicas
tienen que penetrar constitutivamente en las relaciones económicas. En
estas sociedades no hay categorías económicas puras – categorías económicas
son según Marx 'formas de existencia, determinaciones de la existencia' –
presentadas posteriormente en formas jurídicas, fundidas en el molde de la
forma jurídica. Sino que las categorías económicas y las categorías
jurídicas están materialmente, por su contenido, inseparablemente
entrelazadas. (Piénsese en los ejemplos (...) de la renta de la tierra y el
impuesto, la esclavitud, etc.). Dicho hegelianamente: la economía no há
alcanzado tampoco objetivamente en esas sociedades el estadio del ser-para-
sí, y por eso no es posible, en el seno de una tal sociedad, una posición a
partir de la cual pueda hacerse consciente el fundamento económico de todas
las relaciones sociales" (LUKÁCS, 1975, p. 62). Vale dizer, na medida em
que nas sociedades pré-capitalistas não havia um mecanismo puramente de
mercado mediante o qual pudesse se dar a passagem de renda de uma classe
social a outra, o econômico e o político achavam-se imediatamente
imbricados; a extração de renda, gerada no plano econômico, dava-se em
decorrência da subordinação política imposta pelo explorador (proprietário
de escravos ou senhor feudal, caso consideremos o escravismo e o feudalismo
clássico) ao trabalhador direto (escravo ou servo, ainda pensando nos casos
acima aludidos). Já no capitalismo, a passagem de renda dá-se mediante a
compra e venda da mercadoria força de trabalho, processo esse que ocorre no
âmbito estrito do mercado; daí decorre, pois, a autonomização do econômico.
Agora o econômico e o político vinculam-se mediatamente, e não
imediatamente como ocorria em modos de produção precedentes.

O exemplo do escravismo, aduzido por Lukács, remete-nos a um
ilustrativo contraponto entre a autonomização do econômico e a
mercantilização da força de trabalho. Referimo-nos às pertinentes
considerações efetuadas por Castro, em sua análise do escravismo da época
mercantilista: "No capitalismo, uma vez constituído o proletariado, a
pressão surda das condições econômicas sela o poder de mando do capitalismo
sobre o trabalhador. Caracteristicamente, no entanto, no escravismo moderno
– onde o escravo atua, 'portas adentro', como um proletário – não há em
princípio mecanismos socioeconômicos a determinar o seu comportamento. No
capitalismo, mais uma vez, 'os agentes principais deste sistema de
produção, o capital e o operário assalariado, não são, como tais, mais que
encarnações, personificações do capital e do trabalho assalariado,
determinados caracteres sociais que o processo social de produção imprime
nos indivíduos ...' fazendo com que a história do proletariado tenda a
correr pelos trilhos da história do capital. No escravismo aqui estudado,
no entanto, um pelo menos dos 'agentes principais' não tem o seu caráter
social efetivamente moldado pelo regime de produção e, consequentemente,
não pode ser considerado como a encarnação de uma categoria econômico-
social (...). Os escravos são fundamentalmente 'cativos' e se ajustam (bem
ou mal) ao aparelho de produção de que tratamos, por uma combinação mais ou
menos eficaz de violência, agrados, persuasão etc. Paradoxalmente,
portanto, os escravos, que a tradição juridicista teima em chamar de
'coisa', impossibilitam a reificação das relações sociais – com o que fica
definitivamente prejudicada qualquer tentativa no sentido de 'descobrir a
lei econômica que preside o movimento' deste regime social" (CASTRO, 1980,
p. 93-94).

As considerações de Castro lembram, ademais, os vínculos que se
estabelecem entre a autonomização do econômico e a "coisificação" do homem,
vínculos estes que se assentam, repisemos uma vez mais, na emergência da
mercadoria força de trabalho, elemento fundante do modo de produção
capitalista. Assim, no capitalismo, o trabalhador assalariado define-se
como mero portador de relações sociais, no caso, a mercadoria em tela;
correlatamente, o capitalista atua como personificação do capital. O homem,
pois, desumaniza-se, deixa de estar presente, – ou melhor, consubstancia-se
numa presença ausente – aliena-se. Agir como coisa e conformar-se a tal
papel: esta a maneira de atuação efetiva do homem na forma hodierna de
sociabilidade humana.

Ora, aí estão postas as condições para o surgimento da ciência
econômica como algo dado historicamente. Seu início demanda a prévia
mercantilização da força de trabalho, pois antes era impossível a própria
emergência da ciência econômica como ramo específico do conhecimento. Seu
objeto havia que se autonomizar. Como escreve Lukács, "tampoco es casual
que la economía política no haya nacido como ciencia sustantiva sino en la
sociedad capitalista. Y no es casual porque la sociedad capitalista, por su
organización mercantil y del tráfico, há dado a la vida económica una
peculiaridad tan autónoma, tan cerrada y tan basada en legalidades
inmanentes, que en vano se buscará en las sociedades anteriores" (LUKÁCS,
1975, p. 98).

Por outro lado, se os homens agem como coisas, é preciso vê-los como
mera coisa, isto é, de uma perspectiva positivista. Daí a economia
neoclássica mostrar-se aparelhada para descrever tal homem. A esse
conhecimento, como instrumento de entendimento e/ou manipulação, basta
captar o comportamento dos agentes econômicos; para maximizar não é
necessário saber porque o homem age mas, tão somente, como ele se
comportará tendo em vista esta ou aquela mudança nas variáveis econômicas.
O caráter ideológico da teoria neoclássica reside no fato de pretender ser
aplicável para sempre, e isto só será verdade se as condições dadas não
forem mudadas pelo homem. Dessa forma, observamos que, nos limites do
capitalismo, a aludida teoria, enquanto conhecimento que tenta captar o que
é, não é passível de reparos, à exceção dos decorrentes de critérios
internos de cientificidade. Isto porque ela espelha, presente o seu escopo,
o comportamento do homem no contexto de sua absoluta desumanização. Assim,
a teoria neoclássica só será negada de fato se, e quando, o capitalismo for
suprimido. Por conseguinte, a tarefa de negar os neoclássicos não caberá
aos economistas ou filósofos, mas ao cidadão. A crítica será feita mediante
a ação política e não pela via do discurso teórico. Esta última verificação
leva-nos, pois, à consideração das implicações políticas decorrentes da
emergência da mercadoria força de trabalho.




Algumas Implicações Políticas Decorrentes da Existência da Mercadoria Força
de Trabalho


A transformação do trabalhador livre em assalariado, ao passo que
conforma a relação de produção definidora da sociedade capitalista, imprime
nos indivíduos que integram tal sociedade uma igualdade fundamental, dada
pela propriedade privada. Essa universalização da propriedade está, de
fato, na base do atributo de grande plasticidade próprio do capitalismo. Em
outras palavras, dita plasticidade decorre do fato de, na sociedade em
questão, a transferência de renda – exploração da mais-valia, para alguns,
obtenção de lucros, para outros – dar-se no âmbito dos mercados em
decorrência de contratos estabelecidos entre iguais, vale dizer, entre
proprietários de mercadorias, ainda que muitos o sejam, apenas, de sua
própria força de trabalho.

Sobre essa igualdade – todos são proprietários – funda-se o Estado
Moderno, que deixa de ser um mero instrumento de dominação política a
expressar imediatamente os interesses da classe economicamente dominante.
Como afirma Poulantzas: "o Estado capitalista apresenta o fato particular
de que a dominação propriamente política de classe não está nunca presente,
sob a forma de uma relação política: classes dominantes-classes dominadas,
nas suas próprias instituições. Tudo se passa nas suas instituições, como
se a 'luta' de classe não existisse. Esse Estado apresenta-se organizado
como unidade política de uma sociedade com interesses econômicos
divergentes, não interesses de classes, mas interesses de 'indivíduos
privados', sujeitos econômicos". Tal peculiaridade do Estado capitalista
"(...) permite distinguir radicalmente esse Estado (...) por exemplo dos
Estados escravagista ou feudal. Estes últimos limitavam a organização
política das classes dominadas, fixando institucionalmente as classes dos
escravos ou dos servos, nas suas próprias estruturas, através de estatutos
públicos, quer dizer, institucionalizando a subordinação política de classe
– 'estados-castas'" (POULANTZAS, 1977, p. 181).

Evidencia-se, pois, para o autor em foco, a contradição principal do
Estado capitalista, em cuja descrição se faz presente, uma vez mais, a
aludida igualdade entre todos os indivíduos: "o Estado capitalista tem por
função desorganizar politicamente as classes dominadas, enquanto organiza
politicamente as classes dominantes; de excluir do seu seio a presença,
enquanto classes, das classes dominadas, enquanto nele introduz enquanto
classes, as classes dominantes; de fixar a sua relação com as classes
dominadas como representação da unidade do povo-nação, enquanto fixa a sua
relação com as classes dominantes como relação com classes politicamente
organizadas; em suma, esse Estado existe como Estado das classes
dominantes, ao mesmo tempo que exclui do seu seio a 'luta' de classes. A
contradição principal desse Estado não consiste no fato de se 'dizer' um
Estado de todo o povo quando é um Estado de classe, mas, precisamente, no
fato de se apresentar, nas suas próprias instituições, como um Estado de
'classe' (das classes dominantes que contribui para organizar
politicamente) de uma sociedade institucionalmente fixada como não-dividida-
em-classes; no fato de se apresentar como um Estado da classe burguesa,
subentendendo que todo o 'povo' faz parte dessa classe" (POULANTZAS, 1977,
p. 182).

De outra parte, o Estado Moderno ganha relativa autonomia com respeito
à esfera econômica, podendo, portanto, assimilar, ainda que parcialmente,
interesses das classes subalternas. Torna-se, pois, o locus social no qual
as classes antagônicas lutarão pela hegemonia política e ideológica.
Sirvamo-nos, neste ponto, uma vez mais de Poulantzas: "O Estado
capitalista, com direção hegemônica de classe, representa, não diretamente
os interesses econômicos das classes dominantes, mas os seus interesses
políticos: ele é o centro do poder político das classes dominantes na
medida em que é o fator de organização da sua luta política. (...) o Estado
capitalista comporta, inscrito nas suas próprias estruturas, uma certa
garantia de interesses econômicos de certas classes dominadas. Isto faz
parte da sua própria função, na medida em que essa garantia é conforme à
dominação hegemônica das classes dominantes, na relação com esse Estado,
como representativas de um interesse geral do povo. (...) A noção de
interesse geral do 'povo', noção ideológica mas que recobre um jogo
institucional do Estado capitalista, denota um fato real: esse Estado
permite, pela sua própria estrutura, as garantias de interesses econômicos
de certas classes dominadas, eventualmente contrárias aos interesses
econômicos a curto prazo das classes dominantes, mas compatíveis com os
seus interesses políticos, com a sua dominação hegemônica" (POULANTZAS,
1977, p. 185).

A igualdade fundamental por nós salientada, assentada sobre a base
dada pela propriedade privada, manifesta-se, outrossim, na sociedade
capitalista, na igualdade de todos em face da lei e no gozo dos direitos
que são iguais para todos e universais, dentre os quais se destacam a
liberdade de pensamento e de organização, a cidadania. Claro está que a
universalização de direitos e da cidadania não deve ser entendida como algo
propiciado imediata e automaticamente pelo capitalismo, pois, como sabemos,
tal universalização decorreu das lutas sociais desenvolvidas, sobretudo,
por classes e segmentos sociais subalternos. Afirmamos, sim, e isto é
crucial para o entendimento de nossas postulações, que a transformação da
força de trabalho em mercadoria e a ampla generalização desta forma – com a
correlata emergência do capitalismo – permitiram que a referida
universalização e as lutas das quais ela decorreu pudessem dar-se no âmbito
da sociedade capitalista nascente, sem necessidade, portanto, de que tal
sociedade e sua base econômica fossem destruídas; pelo contrário, na medida
em que tais lutas e suas conquistas atuaram e continuam a atuar no sentido
de integrar econômica, política e ideologicamente as camadas subalternas ao
seio social, verifica-se a afirmação e consolidação do modo de produção
capitalista, o qual se vê legitimado aos olhos daquelas camadas.4

Tenha-se presente, por outro lado, que "essa garantia de interesses
econômicos de certas classes dominadas, da parte do Estado capitalista [e
esse espaço de universalização de direitos e da cidadania, acrescentaríamos
nós – JFM/IDNC], não pode ser concebida, apressadamente, como limitação do
poder político das classes dominantes. É certo que ela é imposta ao Estado
pela luta, política e econômica das classes dominadas: isto apenas
significa, contudo, que o Estado não é um utensílio de classe, que ele é o
Estado de uma sociedade dividida em classes. A luta de classes nas
formações capitalistas implica que essa garantia, por parte do Estado, de
interesses econômicos de certas classes dominadas está inscrita, como
possibilidade, nos próprios limites que ele impõe à luta com direção
hegemônica de classe. Essa garantia visa precisamente à desorganização
política das classes dominadas, e é o meio por vezes indispensável para a
hegemonia das classes dominantes em uma formação em que a luta propriamente
política das classes dominadas é possível" (POULANTZAS, 1977, p. 185-186).

Em suma, o Estado capitalista move-se no contexto da plasticidade
característica da sociedade à qual corresponde. Este atributo, de um lado,
surge como decorrência da emergência da mercadoria força de trabalho, na
medida em que se refere a um espaço criado em meio a relações que se
estabelecem entre iguais, igualdade dada pela propriedade de mercadorias.
De outro lado, a aludida plasticidade coloca-se como o campo em que se
exercita a possibilidade da universalização da liberdade e da cidadania.
Uma última referência a Poulantzas é aqui oportuna: "por outras palavras, é
sempre possível traçar, de acordo com a conjuntura concreta, uma linha de
demarcação, abaixo da qual essa garantia de interesses econômicos de
classes dominadas por parte do Estado capitalista não só não põe
diretamente em questão a relação política de dominação de classe, mas
constitui mesmo um elemento dessa relação" (POULANTZAS, 1977, p. 186). Dita
linha, a nosso ver, pode estar a demarcar, também, o limite entre o fim da
história natural e o início da história posta conscientemente pelo homem.

Antes de avançarmos, cumpre notar que neste segundo item fixamos dois
pontos por nós reputados dos mais relevantes. Em primeiro, identificamos o
papel básico representado pelo elemento econômico no corpo global da vida
social, eis que o colocamos na base das transformações políticas que
levaram ao estabelecimento do Estado moderno, das liberdades, dos direitos
de cidadania e da igualdade formal imperantes na sociedade moderna. O
segundo dos pontos diz respeito à verificação de quão significativo é o
modo de produção capitalista no que se poderia entender como processo de
humanização das relações entre os homens. Como visto, sobre o capitalismo
assenta-se uma forma de sociabilidade que trouxe para a humanidade um
imenso avanço em termos das liberdades individuais e coletivas; enfim, é
neste modo de produção que se fundam e se fixam as liberdades – política,
de pensamento, de organização e associação – e os direitos de cidadania
como os conhecemos hoje. Tenha-se presente que o processo de humanização
das relações entre os homens, acima referido, não pode completar-se nos
quadros do modo de produção em foco uma vez que se vê ele limitado pelo
fato de o capitalismo basear-se na completa coisificação do homem no plano
econômico; neste âmbito, como visto, o homem é tomado, tão só, como força
de trabalho tornada mercadoria. A complementação de tal processo exige,
assim, a supressão da própria mercadoria força de trabalho.










A Supressão da Mercadoria Força de Trabalho e a Afirmação de uma
Sociabilidade Pós-Capitalista


Como avançado acima, a ciência econômica como a concebemos hoje é
datada, vale dizer, só se tornou possível depois da transformação da força
de trabalho em mercadoria e, acrescentamos agora, deixará de ter validade
como expressão do real quando, em decorrência da eventual superação do
capitalismo,5 a mercadoria deixar de existir como a conhecemos hoje. Os
bens deixarão, pois, de ser valores de troca e limitar-se-ão à condição de
valores para o uso. Não obstante, permanecerão problemas econômicos afetos
à alocação dos recursos e dos fatores de produção, às técnicas produtivas e
à produtividade, assim como os vinculados à distribuição dos resultados da
produção. Trata-se, pois, de uma situação na qual a vida econômica ver-se-á
absolutamente imersa (esgotar-se-á) na produção física de bens e serviços e
na distribuição dos seus resultados. Para dar conta de tais problemas
necessitar-se-á, portanto, de uma "engenharia econômica" que não se
confunde com a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a
conhecemos, nem com a economia como a praticamos nos dias correntes. A essa
nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão a produção
física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de
caráter individual e social.

Como temos repisado em outros escritos,6 tais soluções, contrariamente
ao que ocorre no âmbito do capitalismo, terão de ser formuladas
conscientemente e essa formulação, necessariamente, terá de anteceder sua
aplicação efetiva. Ademais, na medida em que estamos a tratar de "uma nova
forma de sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente no espírito e
que, portanto, terá de ser por ele sustentada (...)" (MOTTA & COSTA, 1999,
p. 25), cumpre lembrar que uma tal sociedade só emergirá se forem
obedecidas duas condições essenciais e sem as quais, cremos, é impossível
pensar-se numa sociedade "pós-capitalista" auto-sustentável. Antes do mais,
a democracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer,
absoluta e irrestritamente, o que se assenta a priori como decorrência da
necessidade da livre concordância com respeito à nova forma de
sociabilidade; a estes elementos, é claro, há de estar aliado o maior grau
possível de liberdade pessoal e coletiva. De outra parte, as vontades
individuais desenvolvidas em tal ambiência democrática devem associar-se
livremente de sorte a chegar-se à organização necessária àquela
sustentação. Liberdade e associação definem-se, pois, não só como metas
desejáveis por si, mas, e sobretudo, como elementos imanentes à assim
chamada sociabilidade "pós-capitalista" ou socialista, caso se queira.7

Caso não sejam formuladas conscientemente alternativas às soluções
derivadas do funcionamento automático do capital – e não se faça presente a
aludida ambiência democrática –, a tentativa de se construir uma sociedade
de corte socialista poderá terminar em mera acumulação ampliada de
ineficiência econômica, imposições autoritárias e dirigismo burocrático.
Descontados os horrores que o cercaram e outros fatores que o
condicionaram, não teria sido esta a experiência vivenciada pelo fracassado
socialismo real? E a aventura cubana, ainda que se defronte com o brutal
cerco imposto pelos Estados Unidos, não estaria a conhecer, por causa de
suas próprias mazelas, um fim semelhante?

Mas este desenlace melancólico da experiência socialista conduzida de
maneira puramente empírica não é o único possível. Poderão, os socialistas,
ainda, pretender "parasitar" o capitalismo, cobrando da sociedade, e
fazendo-o com incidência particularmente forte sobre o capital, um
"tributo", que chamaríamos de "taxa de garantia do direito de existir",
cuja destinação seria atender aos menos privilegiados. Não é deste feitio a
solução que tentam implementar na Europa alguns partidos de extração social-
democrata ou comunista? Como é patente, não se pode falar, neste caso, em
sociedade "pós-capitalista", pois, a "solução" aventada e os intentos
aludidos não pretendem alcançá-la e limitam-se, tão somente, a aceitar a
perpetuação de um "capitalismo não-raivoso".8

Outra possibilidade colocada no mesmo plano consubstanciar-se-ia na
geração de bolsões controlados de capitalismo que serviriam para
complementar uma "produção de tipo socialista" não muito bem definida.
Neste caso gerar-se-ia, em verdadeiros "enclaves socioeconômicos", uma
espécie de capitalismo enclausurado, "enjaulado" ou domado e manipulável de
sorte a conformar-se às necessidades políticas e econômicas de uma
sociedade "socialista" inclusiva. Seria este o caso da China dos dias
correntes? Aparentemente sim, embora os crimes comuns e de caráter político
cometidos pelos dirigentes chineses sejam tamanhos que nos causa engulho
considerá-los como homens e mulheres de esquerda. De toda sorte, para nós,
observadores externos e distantes que somos, o rumo tomado pelos dirigentes
chineses parece decorrer de dois fatores que se acham intimamente
relacionados: por um lado, da incapacidade de se gerar o número necessário
de postos de trabalho para garantir o prometido pleno emprego de sua imensa
força de trabalho; de outra parte, do receio das reações políticas da massa
de sua população caso o compromisso supracitado venha a ser descumprido.
Estaríamos em face, assim, antes de uma concessão do que de uma solução
desejada, planejada e perseguida.

Enfim, são inúmeras – teoricamente infinitas – as maneiras de se fazer
algo de modo errôneo e frustrante; aventamos aqui, pois, tão somente
algumas "experiências" aparentemente reais. Mas, e estas nos parecem
questões relevantes, em que se enraizaria este cipoal de "erros" e
malformações em que se têm perdido socialistas, comunistas e a esquerda em
geral? Por que é necessária a formulação antecipada e consciente das
soluções a serem efetivadas pelos que almejam estabelecer uma sociedade
"pós-capitalista"? Sem pretender sequer arranhar as respostas definitivas a
tais perguntas apresentamos abaixo alguns comentários suscitados por elas.

Ao proporem uma nova forma de sociabilidade, socialistas e comunistas
prenderam-se, basicamente, à questão da distribuição do produto deixando de
lado a discussão das formas a adotar para se efetuar a alocação de recursos
e fatores e para se promover a produção. Neste sentido pode-se afirmar que
as propostas das esquerdas têm-se cingido à apresentação de formas mais
equânimes de se distribuir a produção efetuada, não podendo ser vistas,
portanto, como soluções econômicas integradas e orgânicas, pois lhes falta,
justamente, uma vertente essencial, qual seja a concernente à produção
propriamente dita, a qual, no capitalismo, como tudo o mais, é automática e
imediatamente resolvida pelo funcionamento da assim chamada "lei do valor".
Na sociedade "pós-capitalista" não se dá (dará) o mesmo. Ademais, os
paradigmas empiricamente adotados pelas nações do Leste Europeu que
conheceram o socialismo real e que se encontravam calcados, sobretudo, na
experiência proporcionada pela Revolução Industrial e nas técnicas e
métodos adotados pelos países ocidentais na primeira metade do século XX
mostraram-se absolutamente insuficientes para promover um crescimento
econômico harmônico, consistente e auto-sustentável. Por outro lado, o
asfixiante e totalitário sistema político brutalmente imposto tornou o
assim chamado socialismo real absolutamente inaceitável pelas populações e
nações por ele vitimadas. Destarte, de "positivo", as aludidas sociedades
do Leste Europeu conheceram, tão só, uma política de pleno emprego que
esboroou e práticas assistencialistas que foram descontinuadas.

Pois bem, a "falha" estaria na "omissão", na falta de soluções
conscientemente formuladas aptas a oferecer uma visão integrada e orgânica
da nova economia e a indicar o caminho da construção de uma sociedade na
qual imperariam, na mais alta escala possível, a liberdade e a democracia.
Mas, e aqui enfrentamos a segunda questão acima colocada, por que tais
soluções não têm o caráter natural das que vigoram sem planejamento maior
na sociedade capitalista?

Para responder a tal pergunta é preciso partirmos de considerações
respeitantes à maneira de ser da natureza. Como sabido, a natureza não
"opera" com base em valores, pois só é movida por "fatos". Não atende a
necessidades (ou vontades), mas responde mecanicamente a forças. No plano
natural imperam, pois, tão somente, forças materiais. Nesse plano não
existem, como avançado, arranjos, ajustamentos, ou "soluções" (resultados)
em que estejam presentes valores éticos ou morais, os quais são específicos
da vida em sociedade e decorrem da ação consciente dos homens, do
movimento do espírito.

Assim, por exemplo, no plano dos objetos estudados pela física e pela
química todas as interações -- aí incluídas tanto a permanência como as
mudanças -- dão-se em decorrência da existência e atuação de forças natural
e materialmente dadas. A esfera da vida natural é dominada pela força
física e pela capacidade de adaptação regida, basicamente, por fatores
aleatórios mecanicamente "trabalhados" por forças naturais "cegas",
puramente objetivas, vale dizer, que não atuam como sujeito. Assim, na vida
natural estamos, sempre, em face de resultantes do processo de seleção, nos
defrontamos, apenas, com "sobreviventes", nunca com "criações bem-
sucedidas".

No plano social naturalmente dado também atuam forças igualmente
"cegas".9 Tomemos a remuneração do fator trabalho, questão crucial para o
pensamento de esquerda. Seja pela vertente marxista, seja pela teoria
econômica neoclássica, tal remuneração determina-se, integralmente, no
plano dos fatos: para aqueles, pelo tempo médio de trabalho socialmente
necessário;10 para os últimos, pelo valor monetário da produtividade física
marginal.11

De outra parte, o reconhecimento de que existem "necessidades" que não
seriam atendidas pelo salário e alguns bens e serviços que não podem ser
supridos pelo livre jogo das forças de mercado leva, na sociedade
capitalista, à implementação de políticas compensatórias e ao fornecimento,
sob responsabilidade do Estado, daqueles bens e serviços. A distribuição do
produto automaticamente efetuada pelas "leis de mercado" tem, pois, de ser
complementada ("corrigida", "retificada") pela ação política de caráter
redistributivo. Evidencia-se, assim, a limitação do "natural" e a
necessária emergência do "cultural" ou "antinatural" caso a sociedade
pretenda, subjetivamente (politicamente), ir além do que é dado
naturalmente.

Assim, se pensarmos uma sociedade na qual se deseje ver promovida, sem
nenhuma mediação, a distribuição da produção de acordo com as necessidades
de cada um de seus integrantes (e é isto que os comunistas alegam querer),
seremos obrigados a admitir que seus pressupostos são: 1) tal sociedade tem
de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de
produção, já que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a
produção de bens e serviços e sua distribuição; 2) essa sociedade tem de
ser "pensada", projetada, antes de existir concretamente, pois, como vimos,
a natureza é incapaz de instituí-la, de produzi-la; aliás, pelo contrário,
o que se produziu "naturalmente" foi justamente a propriedade privada sobre
os meios de produção, óbice maior à instituição da aludida sociedade
almejada pelos comunistas; 3) como visto, tal sociedade não é um produto da
natureza, mas algo antinatural, decorrente da vontade dos homens (do
espírito, da cultura); não traz em si, portanto, os elementos necessários à
sua reprodução (re-posição), pois, se o for, será "colocada" (posta) pelo
espírito e por ele terá de ser re-colocada; a ele, portanto, caberá a
função de sustentá-la. Dessa forma, tanto sua existência como sua
persistência (subsistência) derivarão da vontade dos homens, de sua tensão
em mantê-la. Não há, portanto, nenhuma razão de ordem natural para que ela
venha a existir ou permaneça existindo.

Cumpre notar por fim que, na ausência de controles automáticos, a vida
econômica de tal sociedade terá de ser gerida pela anunciada "engenharia
econômica" a qual, até o momento, nem sequer se acha esboçada.





Notas

1. Neste artigo reunimos as ideias expendidas em três trabalhos já
publicados: MOTTA & COSTA (1997a, 1997b e 1999a).

2. Ver MOTTA & COSTA (1995a e 1995b).

3. Os autores, no que tange à grande maioria das questões tratadas neste
tópico, filiam-se às teses esposadas por Nicos Poulantzas.

4. Cabe frisar que a consideração das aludidas lutas sociais, as quais
compõem todo um capítulo da história da humanidade, foge ao escopo deste
breve artigo.

5. Vale dizer, da superação da forma hodierna de sociabilidade humana:
"(...) não se trata, afirme-se uma vez mais, do fim da História, mas do fim
da história natural do homem e da emergência de condições que tornam
possível o início de uma História verdadeiramente humana, na qual se torna
possível a existência de um Homem que atuará como sujeito que o é em si,
para si e por si, tornando-se, assim, senhor autoconsciente de seu futuro.
História esta que se marcará não pela negação da natureza enquanto tal, nem
pela supressão da 'necessidade' por ela imposta, mas, sim, pela sua
superação, mediante a ação consciente do Homem" (MOTTA & COSTA, 1995, p.
23).

6. Cf. COSTA (1999), MOTTA & COSTA (1995a, 1996, 1999b) e COSTA & MOTTA
(2000).

7. Tanto o nazismo como o fascismo reais, ainda que de maneira apenas
tangencial, podem ser entendidos, também, como tentativas de
estabelecimento de sociedades que, embora essencialmente capitalistas,
traziam alguns poucos traços "pós-capitalistas". Não é preciso lembrar que
tais incursões do espírito (preferimos pensar em incursões de um pavoroso
"inconsciente" do espírito), efetuadas de modo totalitário e largamente
inconsciente redundaram, apenas, em horror próprio para servir como objeto
de estudos restritos aos campos da patologia social e da psicopatia, o que,
de resto, também caracterizou o stalinismo.

8. Como ocorre na sociedade capitalista, a única cláusula pétrea (condição
sine qua non) para a existência e subsistência da sociedade "pós-
capitalista" dirá respeito à propriedade privada sobre os meios de
produção. Enquanto no capitalismo esta "única cláusula" assegura o
irrestrito respeito a tal propriedade, na sociedade "pós-capitalista", caso
ela venha a existir, tal propriedade ver-se-á abolida e proibida.

9. Marx, no prefácio de O Capital, evidenciava o caráter "cego" (vale
dizer, necessário) das assim chamadas "leis naturais" da sociedade: "Lo que
de por sí nos interesa, aquí, no es precisamente el grado más o menos alto
de desarrollo de las contradicciones sociales que brotan de las leyes
naturales de la producción capitalista. Nos interesan más bien estas leyes
de por sí, estas tendencias, que actúan y se imponen con férrea necesidad"
(MARX, 1978, p. XIV); outrossim, observava Lukács: "La forma más pura –
puede incluso decirse que la única forma pura – de este dominio de las
leyes naturales sociales sobre la sociedad es la producción capitalista.
Pues la misión histórico-universal del proceso civilizatorio que culmina en
el capitalismo es la consecución del dominio humano sobre la naturaleza.
Estas 'leyes naturales' de la sociedad, que dominan la existencia del
hombre como fuerças 'ciegas' (incluso cuando se reconoce su 'racionalidad',
y hasta más intensamente en este caso), tienen la función de someter la
naturaleza bajo las categorías de la per-sociación, y la han realizado en
el curso de la historia" (LUKÁCS, 1975, p. 98-99); por fim, podemos ler em
Marcuse: "O método dialético de Marx reflete ainda o controle das forças
econômicas cegas sobre o desenvolvimento da sociedade. A análise dialética
da realidade social nos termos de suas contradições inerentes, e a solução
destas contradições, mostra que esta realidade é esmagada por mecanismos
objetivos que operam com a necessidade das leis (físicas) 'naturais'; só
assim pode a contradição surgir como a força última que mantém a sociedade
em movimento. (...) Quando o capitalismo é negado o processo social não
mais se sujeita ao domínio de forças cegas naturais. (..pois..) Não pode
haver nenhuma necessidade cega nas tendências que desembocam numa sociedade
livre e autoconsciente" (MARCUSE, 1978, p. 288-290).

10. "Para hacer nuestras deducciones, partíamos del supuesto de que la
fuerza del trabajo se compra e se vende por su valor. Este valor se
determina, como el de cualquier otra mercancía, por el tiempo de trabajo
necesario para su producción. Por tanto, si la producción de los medios de
vida del obrero, exige, un día com otro, 6 horas, deberá trabajar también 6
horas diarias por término medio, para producir su fuerza diaria de trabajo
o reproducir el valor obtenido com su venta" (MARX, 1978, p. 177).

11. "(...) a receita do produto marginal nos informa quanto a empresa
pagará pela contratação de uma unidade adicional de mão-de-obra. Enquanto o
RMgPL for maior do que a remuneração da mão-de-obra, a empresa deverá
contratar uma unidade adicional de mão-de-obra. Se a receita do produto
marginal for inferior à remuneração, a empresa deverá reduzir o número de
trabalhadores. Somente quando a receita do produto marginal for igual à
remuneração é que a empresa terá finalmente contratado a quantidade de mão-
de-obra capaz de maximizar seus lucros" (PINDYCK & RUBINFELD, 1994,p. 666-
667).





Referências Bibliográficas

CASTRO, Antônio Barros de. A economia política, o capitalismo e a
escravidão. In: LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de produção
e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 67-107. (Coleção
História Brasileira, 5).

COSTA, Iraci del Nero da. Algumas opiniões sobre a categoria "modo de
produção". São Paulo: FEA-NEHD/USP, 1999, mimeografado.

COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. Hegel e o fim da história:
algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista
da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Sette
Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.

LUKÁCS, Goerg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Grijalbo, 1975.
(Instrumentos, 1).

MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. (O Mundo Hoje, 28).

MARX, Carlos. El capital: crítica de la economía política. México, D.F.:
Fondo de Cultura Económica, vol. I, 1978.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início
da história. Informações FIPE. São Paulo: FIPE, n. 172, p. 20-23,
janeiro/1995a.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início
da história: um adendo. Informações FIPE. São Paulo: FIPE, n. 174, p.
21-23, março/1995b.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. Crônica sobre o
neofatalismo. Informações FIPE. São Paulo: FIPE, n. 186, p. 19-22,
março/1996.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. A emergência da mercadoria
força de trabalho: algumas implicações. Informações FIPE. São Paulo:
FIPE, n. 198, p. 21-23, março/1997a.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. A mercantilização da força
de trabalho: implicações políticas. Informações FIPE. São Paulo: FIPE,
n. 202, p. 16-18, julho/1997b.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. Da ciência econômica à
engenharia econômica. Informações FIPE. São Paulo, FIPE, n. 227, p. 24-
27, 1999a.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O pensamento de esquerda: um
pensamento em construção. Informações FIPE. São Paulo: FIPE, n. 223,
p. 24-26, abril/1999b.

PINDYCK, Robert S. & RUBNFELD, Daniel L. Microeconomia. São Paulo: Makron
Books, 1994.

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins
Fontes, 1977.








6. REVISITANDO TRÊS "MIRADAS" ESTIMULANTES DIRIGIDAS À HISTÓ-RIA DA
HUMANIDADE




Iraci del Nero da Costa



Quando contrapomos o homem aos demais seres da natureza verificamos
que ele é um ser em si, para si (tem consciência de si, de sua existência)
e, no plano social, poderá vir a ser por si, vale dizer poderá chegar a
"pôr" a vida social, a criar conscientemente formas de sociabilidade e de
vivência econômica, comportando-se, portanto, como sujeito e senhor
autoconsciente de seu futuro. Há, portanto, um processo histórico e lógico
mediante o qual o homem passa da condição de ser em si para a de ser em si
e para si e, num último momento, para a condição de ser em si, para si e
por si.

Correlatamente, quando tomamos a história da humanidade observamos o
homem desgarrando-se, destacando-se, a pouco e pouco da natureza. Podemos
adotar, pois, uma "mirada" específica e vermos a história da humanidade
como o processo de individuação do homem. Os homens deixam de ser meros
entes naturais para transformarem-se, ao final de um processo histórico e
lógico, em indivíduos cientes de sua condição e que livremente se associam
para construir, criar, consciente e deliberadamente a sociedade planejada
em que desejam viver. De um ser que se sente e se vê como uma pessoa
integrante de um grupo, passa o homem a saber-se como uma individualidade
destacada de todo o universo, individualidade que se associa livre e
conscientemente com os seus iguais.

Uma terceira "mirada" mostrar-nos-ia o homem caminhando do reino da
necessidade ao da liberdade. Neste caso ele estaria, num primeiro momento,
total e imediatamente entregue aos condicionamentos naturais. Num segundo
momento, alargaria seus graus de liberdade mediante a consciência que vai
assumindo dos processos em que se insere e mediante a consequente atuação
consciente que lhe permite definir-se como mediador entre sua própria
existência e as condições com as quais se depara. Para, num terceiro
momento, alcançar a liberdade plena, que representa a culminância do
aludido processo histórico e lógico e que se explicita na emergência
efetiva de um homem inteiramente sabedor de seus condicionamentos materiais
e, por isto mesmo, capaz de realizar sua plena liberdade na medida em que
projeta e estabelece, conscientemente, a sociedade na qual deseja viver.
Liberdade esta a qual, como queria Hegel, representa o conhecimento (e a
adequação) à necessidade, não se pondo, pois, como a realização arbitrária
de toda e qualquer volição.

As três "miradas" acima descritas definem-se, para mim, como três
processos solidários que se condicionam mutuamente (são interdependentes) e
que se entrecruzam (estão inter-relacionados).

Assim, o estabelecimento da propriedade privada embasou,
objetivamente, a emergência do conceito de indivíduo, vale dizer, a
formulação, conscientemente assumida pelos homens de que cada ser humano
distingue-se de tudo o mais, inclusive dos demais humanos. Destarte,
segundo os autores marxistas, a propriedade privada leva ao para si
(reconhecimento de si), ela é a objetivação do eu individual. Quando digo
isto é meu, digo isto não é de mais ninguém, ou seja, reconheço-me como
algo distinto e isolado de todos os outros homens, reconheço-me, pois,
como indivíduo: único em relação a todos os demais e a tudo o mais (grupo,
tribo etc. e objetos – que não são eu, mas são meus). O reconhecimento do
EU é mediado pelos objetos (propriedade) e não se dá exclusivamente de
maneira abstrata. O EU exterioriza-se (objetiva-se) na MINHA propriedade a
qual torna possível que eu me reconheça como INDIVÍDUO: único e isolado de
tudo o mais e de todos os demais.

Já a transformação da força de trabalho em mercadoria, além de
autonomizar o mundo econômico e lastrear objetivamente a igualdade de todos
perante a lei, deu sustentação à universalização da democracia, dos
direitos humanos e de cidadania.

Por seu turno, a crítica do capital e do capitalismo efetuada por Marx
instituiu as bases sobre as quais assenta-se a possibilidade de o homem
devir um ser por si, vale dizer, capaz de elaborar e instituir um modo de
relacionamento social e econômico assentado em sua consciência e por ela
sustentada.

Estas ponderações justificam, a meu juízo, a interdependência e o
inter-relacionamento aludidos acima; servem elas, ademais, para ilustrar as
ricas potencialidades analíticas encerradas nas três "miradas" que abrem
esta crônica. Aprofundar a leitura da história e das demais ciências
sociais com base em tais perspectivas pode representar, pois, o
enriquecimento das formulações necessárias a que nos tornemos senhores
autoconscientes de nosso futuro.


7. NOTA SOBRE UMA BUSCA INGLÓRIA



Iraci del Nero da Costa



A nosso ver, alguns pensadores marxistas ainda se prendem
ferrenhamente à ideia de que uma eventual mudança socioeconômica radical
dependerá, necessariamente, da liderança ideológica e da condução política
de uma classe social revolucionária.

Dadas as transformações ocorridas no seio do velho proletariado,
alguns buscam um novo "sujeito revolucionário" no seio de segmentos mais
bem preparados do ponto de vista intelectual e profissional; integrantes de
tais segmentos, aptos a chegarem a um refinamento ideológico mais
sofisticado, aglutinar-se-iam numa elite politicamente atuante a qual viria
a comandar as esperadas mudanças radicais. Já outros, procuram esse
"indivíduo universal" nos estratos menos abonados da sociedade, entre os
que "não têm nada a perder, a não ser as correntes que os agrilhoam".

De toda sorte, estejam onde estiverem, tais elementos terão de estar
em algum lugar de nossa complexa sociedade de inícios do século XXI. Tudo
se passa como se o momento tido como "objetivo" tivesse preeminência
absoluta sobre o elemento considerado de ordem "subjetiva". A nosso juízo,
a permanência de tal visão cediça, que já se mostrava limitada e
ultrapassada no passado, é muito perniciosa e impede que se "limpe o
terreno do pensamento marxista" a fim de que possamos formular novas formas
de encarar a realidade atual e de atuar sobre ela; realidade essa
fundamente marcada e alterada, tanto objetiva como subjetivamente, pela
derrocada do assim chamado "socialismo real".

Uma das mudanças significativas decorrentes da experiência histórica
acumulada no correr dos últimos cento e cinquenta anos talvez tenha sido a
de liberar uma eventual revolução social futura das amarras que, como se
supunha, a prendiam a uma dada classe social.

Segundo pensamos, o papel ativo e historicamente significativo do
proletariado culmina e se esgota com a formulação da crítica do capital
efetuada por Marx. Pode-se dizer que a classe operária desempenhou papel
fundamental para indicar à humanidade (aqui personalizada em Marx), de uma
parte, a possibilidade de se subverter a sociedade burguesa, e, de outra, a
de evidenciar a direção básica dessa mudança: a supressão da propriedade
privada sobre os meios de produção.

A contar da obra de Marx, a revolução deixa de ser uma tarefa desta ou
daquela classe e se torna um programa de mudanças que se impõe a toda a
humanidade. Tal alteração no caráter de uma eventual revolução futura não é
aleatório, pois resulta tanto de causas de ordem objetiva como de razões de
ordem subjetiva. Vejamos, inda que superficialmente, alguns desses
condicionantes.

A concepção de um descolamento da mudança revolucionária de corte
socialista com respeito à classe operária, ou a uma dada classe social,
parece-nos muito incipiente e está a demandar uma sistematização teórica de
largo fôlego; embora saibamos que não estamos pessoalmente preparados para
efetuá-la, sentimos que podemos intuir sua necessidade e cremos que
elementos teóricos embrionários de tal descolamento já se encontram
presentes no pensamento de Marx, Engels e Lukács. Assim, lê-se no
Manifesto Comunista: "Todas as classes dominantes anteriores procuraram
garantir sua posição submetendo a sociedade às suas condições de
apropriação. Os proletários só podem se apoderar das forças produtivas
sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por conseguinte,
todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de
seu para salvaguardar; eles têm que destruir todas as seguranças e todas as
garantias da propriedade privada até aqui existentes" (MARX & ENGELS, 1998,
p. 18-19).

Coube a Georg Lukács lançar luz sobre essa observação de Marx e
Engels, destarte, em Historia y consciencia de clase, encontramos, calcada
na citação acima posta, uma longa explanação sobre as tarefas de novo tipo
que se imporiam ao proletariado: "Pues las clases que en anteriores
sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de
realizar revoluciones victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una
tarea mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de su
consciencia de clase respecto de la estructura económica objetiva, o sea, a
causa de su inconsciencia respecto de su propia función en el proceso del
desarrollo social. Les bastó con imponer sus intereses inmediatos mediante
la fuerza de que disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó
siempre oculto, entregado a la 'astucia de la razón' en el proceso social
determinado. Pero como el proletariado se encuentra en la historia con la
tarea de una transformación consciente de la sociedad, tiene que producirse
en su consciencia de clase la contradicción dialéctica entre el interés
inmediato y la meta última, entre el momento singular y el todo. Pues el
momento singular del proceso, la situación concreta con sus concretas
exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad, a la
sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su estructura
económica. Y no se hace revolucionaria más que se inserta en la concepción
total del proceso, cuando se introduce con referencia al objetivo último,
remitiendo concreta y conscientemente más allá de la sociedad capitalista.
Pero eso significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de
clase del proletariado, que la relación dialéctica entre él interés
inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad queda
situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez de desarrollarse,
como ocurrió con todas las clases anteriores, más allá de la consciencia
(atribuible), como proceso puramente objetivo. La victoria revolucionaria
del proletariado no es pues, como para las demás clases anteriores, la
realización inmediata del ser socialmente dado de la clase, sino – como ya
lo vio y formuló agudamente el joven Marx – la autosuperación de la clase.
El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente modo: 'Todas
las clases anteriores que conquistaron para sí el dominio intentaron
asegurar la posición que ja havian logrado en la vida sometiendo la
sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios no pueden
conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que suprimiendo
su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo modo de
apropiación existido hasta ahora.'" (LUKÁCS, 1975, p. 77-78).

Como se vê imediatamente, o cerne da questão repousa no caráter
totalmente original das transformações a serem implementadas. Não se trata
mais da subordinação de uma ou mais classes sociais aos interesses
imediatos de um segmento social dominante, mas da própria superação das
classes sociais; não se trata de impor uma nova forma de expropriação, mas
de eliminar a possibilidade de que a exploração possa ocorrer. Este
elemento de ordem objetiva empresta um conteúdo novo à própria ideia de
revolução, tornando-a uma tarefa aberta à participação de todas as classes
e segmentos sociais, enfim de toda a parcela da Humanidade favorável à
emergência de uma sociedade mais equânime, ademais, confere um novo status
ao momento subjetivo.

Encontramo-nos, de fato, em face de uma situação limite na qual o
elemento de ordem objetiva deixa de ter um caráter transformador per se e o
elemento subjetivo assume papel determinante, pois o passo transformador
definitivo depende agora, necessariamente, da ação consciente dos homens.

Para nós, como apontado em trabalhos anteriores realizados juntamente
com José Flávio Motta, o desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e
capital conhece seu ponto culminante com a emergência da mercadoria força
de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do capitalismo, no âmbito do
qual se dá o pleno amadurecimento de tais formas. Estabelecido em espaço
geográfico considerável passou ele a operar de maneira a subordinar e
recriar, à sua feição, todo o espaço social, econômico e físico com o qual
entrava em contato. Observa-se, assim, não só a emergência da história
universal, mas, também, de uma mudança qualitativa na própria história da
humanidade; a partir de então só persiste o modo de produção capitalista –
que a tudo ilumina, como se diria em termos clássicos – tudo subordinando,
condicionando e determinando.

De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento superior
daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade natural da
humanidade; a partir de então – e na medida em que o capital industrial
traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua reposição – apenas
um movimento do espírito, da ação conscientemente, poderá conduzir à
superação das condições dadas, vale dizer, do capitalismo, o qual, caso
contrário, repor-se-á indefinidamente. O primeiro passo necessário à sua
superação estará, pois, no estabelecimento da crítica teórica das condições
dadas, estudo este que deverá fundamentar a ação consciente no sentido da
negação do status quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do
capital industrial e do capitalismo define-se como pressuposto
imprescindível à aludida superação.

A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e a
publicação de O Capital representaram o primeiro momento do referido
movimento do espírito indispensável à criação das condições subjetivas para
que a humanidade pudesse propor-se a negação do capitalismo e, portanto,
passar a empenhar-se nessa tarefa.

Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a
condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista.
Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e a universalização
do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a crítica do sistema (da
lógica de funcionamento do capital industrial) e a formulação, ainda que
num mero bosquejo, de uma nova forma de sociabilidade, a primeira a se
assentar inteiramente no espírito e que, portanto, terá de ser por ele
sustentada (isto é, terá como suporte a ação consciente de homens
livremente associados).

Como afirmado, a história natural do homem esgotou-se, chegou à sua
forma superior com a existência do modo de produção capitalista; impõe-se,
agora, sua história "cultural", uma história propriamente humana uma vez
que posta pelo "espírito" e não uma simples decorrência da acomodação do
homem à situação objetiva que, embora sendo fruto de sua ação, lhe aparece
como algo dado, como uma criação que lhe é exterior; não como um fato
social, mas como um fato natural.

Já não basta aos homens perseguirem seus interesses imediatos para dar-
se a transformação revolucionária, é preciso que eles transcendam seus
eventuais interesses "egoísticos", para usar uma linguagem própria de
Antonio Gramsci; o "político" sobrepõe-se ao "econômico", o "subjetivo"
sobrepuja o "objetivo". Quais elementos deveriam, afinal, estar presentes
no bosquejo acima referido? Sem pretendermos sequer arranhar a resposta
definitiva a esta questão, não nos furtamos a tecer os breves comentários
que se seguem com o intuito de encaminhar a discussão. Em primeiro lugar,
considerando que terá de haver livre assentimento com respeito à nova forma
de sociabilidade, é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a
democracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer,
absoluta e irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado o
maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo, tal
sociedade terá de se erigir com base na negação da propriedade privada
sobre os meios de produção, uma vez que não pode haver, por hipótese,
qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição
consoante as necessidades dos indivíduos. Em terceiro, para a gestão da
vida econômica dessa sociedade "pós-capitalista" precisar-se-á de uma
engenharia econômica que não se confunde com a(s) engenharia(s) de hoje,
nem com a administração como a conhecemos, nem com a economia como a
praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá estabelecer
as relações que vincularão a produção física com os recursos e as técnicas
disponíveis e com as demandas de caráter individual e social.

Em suma, temos, no capitalismo, um sistema "natural" integrado, auto-
regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-se
"naturalmente" delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o embrionário
pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro coerente e
articulado do que deverá vir a ser, em ideia, o sistema pelo qual almejam
os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que nos parecerá muito
mais rudimentar se tivermos presente o quanto lhe resta por avançar, pois,
por se tratar de algo "antinatural", tudo, ou quase tudo, ainda está por
ser elaborado. Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato
de que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabelecimento
e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade humana (as
questões aqui sumariadas, como avançado, são tratadas mais detidamente nos
seguintes trabalhos: COSTA & MOTTA, 2000 e COSTA & MOTTA, 2004).

Talvez seja oportuno lembrar a esta altura desta nota que o empuxo
transformador de caráter objetivo devido à ação da classe operária e do
campesinato é bastante para colocar o capitalismo em xeque, mas, na
ausência do elemento subjetivo aqui referido, o movimento revolucionário
passa a "patinar" e sua direção pode ser empolgada por grupos políticos que
conduzem o corpo social a situações em que domina o elemento repressivo ou
totalitário e nas quais podem vir a predominar aparelhos burocráticos
corruptos e/ou em que a ineficiência se mostra generalizada. Exemplos de
casos como tais encontramos na URSS, nos países do leste Europeu, na China
e em nossa tão desventurada Cuba.

Se as opiniões acima reportadas estiverem corretas é forçoso
reconhecer que a tarefa colocada ao pensamento de esquerda não é a de
encontrar uma "nova classe redentora", mas a de mobilizar consciências para
a execução de um projeto político-ideológico consistente e abrangente,
projeto este que nos cabe formular, pois ele ainda nem sequer foi esboçado
em todas as suas dimensões.





Referências Bibliográficas
LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Editorial
Grijalbo, 1975. (Instrumentos, 1).

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. In: Daniel Aarão
Reis Filho (organizador). O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio
de Janeiro: Contraponto/São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, 208
p.

COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. Hegel e o fim da história:
algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista
da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro: Editora
7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.

COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. A mercadoria força de
trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de
sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia
Política. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, número 14, jun. 2004, p.
32-47.






8. SOBRE OS AUTORES






José Flávio Motta é Doutor e Livre-Docente em Economia pela FEA-USP e é
atualmente professor associado da Faculdade de Economia Administração e
Contabilidade da Universidade de São Paulo, professor do Programa de Pós-
Graduação em Economia do Instituto de Pesquisas Econômicas da FEA-USP e do
Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP. Vincula-se, ademais, ao NEHD – Núcleo de
Estudos em História Demográfica de Professores da FEA-USP, ao HERMES & CLIO
– Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica e ao Núcleo de Apoio à
Pesquisa (NAP) BRASIL ÁFRICA.



Iraci del Nero da Costa é Mestre, Doutor e Livre-Docente em Economia pela
FEA-USP; aposentou-se como professor associado pela Faculdade de Economia
Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. Vincula-se ao
NEHD - Núcleo de História Demográfica dos Professores da FEA-USP.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.