Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

July 3, 2017 | Autor: Dijaci Oliveira | Categoria: Sociology, Ethnic and Racial Studies
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Sociologia e Educação em Direitos Humanos

CONSELHO EDITORIAL PDH/UFG Fundação de Apoio à Pesquisa na UFG (FUNAPE) Cláudio Rodrigues Leles Diretor Executivo Programa de Direitos Humanos – UFG Conselho Editorial Vilma Machado (UFG), presidente Alex Ratts (UFG) Arnaldo Bastos Santos Neto (UFG) Arthur Trindade Maranhão Costa (UnB) Eduardo Bittar (USP) Enrique Leff (UNAM – México) José Querino Tavares Neto (UFG) Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (UFPB) Luiz Mello de Almeida Neto (UFG) Magno Luiz Medeiros da Silva (UFG) Manoel de Souza e Silva (UFG) Maria Luisa Eschenhagen (Universidad Externado – Colômbia) Miriam Pillar Grossi (UFSC) Paulo César Carbonari (IFIBE e MNDH) Regina Sueli de Sousa (UCG)

Dijaci David de Oliveira Revalino Antonio de Freitas Tania Ludmila D. Tosta (organizadores)

Sociologia e Educação em Direitos Humanos

Sumário

7 Apresentação 9 Introdução 15

Parte I: Multiculturalismo e Direitos Humanos

17

Por uma sociologia histórica dos direitos humanos  obson dos Santos R

33

Multiculturalismo e políticas da diferença  Wivian Weller

49

Parte II: Temas de Educação em Direitos Humanos

51

Violência doméstica e práticas educativas  Márcia Cristina Lazarini

67

Juventude e violência: do conhecimento empírico às representações sociais  Dalva Borges de Souza

83

O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade  Revalino Antonio de Freitas

95

Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário Tania Ludmila Dias Tosta

113

Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior  Dijaci David de Oliveira

155

Governança democrática, informação e direitos humanos  eloisa Dias Bezerra H Vladimyr Lombardo Jorge Uianã Cordeiro Cruvinel Borges

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Sobre os/as autores/as

Apresentação

Sociologia e educação em direitos humanos é um livro que se propõe a entrar em um importante ponto do debate sobre a sociologia no ensino médio, sobretudo, nos temas curriculares dessa disciplina. A tarefa não é fácil. Com a entrada da Sociologia como disciplina obrigatória, observou-se uma carência de material que subsidiasse os profissionais da educação média. Como resultado, muitos profissionais levaram para as salas de aula textos dos autores clássicos e contemporâneos. Acreditavam que a simples transposição dos textos utilizados nos cursos de educação superior seria suficiente para dar um salto de qualidade sobre a reflexão, assim como dar conta dos seus desafios como docentes. Não foi o que aconteceu, nem é o que acontece. O diálogo no ensino médio requer uma comunicação distinta daquela utilizada no ensino superior. Com razão, o corpo discente não viu quase nenhuma relação entre o conteúdo dado, os autores estudados e toda a parafernália de conceitos e teorias próprias das ciências sociais. Os textos, muito interessantes para os docentes, tinham quase nenhum atrativo ou compreensão para os discentes.

Os fatos evidenciaram o óbvio. As novas disciplinas (Sociologia e Filosofia) precisam conhecer mais do universo do ensino médio e de como as disciplinas que já possuem alguma tradição como a História e a Geografia, por exemplo, têm construído sua abordagem, sua inserção e seus materiais didáticos e paradidáticos. Todavia, isso requer muito mais amadurecimento. Assim é que se propõe nesta obra um conjunto de temas para reflexão e discussão no âmbito da disciplina de Sociologia. Nele há contribuições de temas que acreditamos sejam importantes para a reflexão dos direitos humanos, pela sociologia, no ensino médio. É nosso dever deixar claro que este livro não tem a pretensão de servir como guia para o debate em sala de aula. Seu objetivo ainda é subsidiar os docentes sobre temas nas várias áreas das ciências sociais. Foi com esse propósito que convidamos vários autores e autoras para que refletissem, segundo suas áreas de conhecimentos, sobre os problemas da sociedade contemporânea sob a perspectiva dos direitos humanos. Foi o que fizeram. Os esforços dos(as) vários(as) pesquisadores(as) serão recompensados se este livro puder contribuir de alguma forma para que os docentes reflitam mais sobre os conteúdos utilizados em sala de aula. Dijaci David de Oliveira

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Dijaci David de O. Revalino

Introdução

Este trabalho nasceu da necessidade de pensar possibilidades para a inserção da sociologia no ensino médio e relacioná-la à abordagem da educação em direitos humanos (EDH). Sendo assim, esse debate também se insere no campo das reflexões sobre a construção do currículo de sociologia no ensino médio. Todavia, nosso objetivo aqui não é estabelecer uma lista de práticas ou temas, mas de convidar cientistas sociais para refletir sobre temas da educação em direitos humanos pela perspectiva da sociologia. Este será um primeiro passo para pensarmos o debate mais profundo sobre a construção do currículo desta disciplina no ensino médio. EDH não é uma sigla a mais no processo educativo. Trata-se de uma consistente preocupação em assegurar que cada uma das pessoas que passe pelas escolas possa compartilhar, compreender e reconhecer o sentido de uma vida pautada pela convivência pacífica e de respeito mútuo. Assim, por EDH compreendemos, sobretudo, as construções históricas e filosóficas que desembocam no pensamento humanista, na construção da perspectiva dos direitos humanos e na busca por assegurar os fundamentos de uma sociedade democrática e de respeito à cidadania.

Para dar conta desse desafio buscou-se a contribuição de pesquisadores e pesquisadoras para que problematizassem a inserção da Sociologia no ensino médio e refletissem sobre as várias experiências nesse âmbito: seus desafios, significados e expectativas que giram em torno da presença dessa disciplina na educação regular. Este livro está estruturado em duas partes. Na primeira parte, denominada Multiculturalismo e Direitos Humanos, encontramos dois textos. Iniciamos com “Por uma sociologia histórica dos direitos humanos”, de Robson dos Santos, que traz como preocupação a necessidade da reflexão histórica e sociológica dos direitos humanos como passo importante para se compreender a ideia de direitos humanos, seus paradoxos e os sentidos sociais que eles assumem em cada contexto. O autor destaca os direitos humanos como uma das utopias mais intensas da modernidade ocidental. A pluralidade de significados, sentidos e interpretações sobre os direitos humanos nos leva a indagar como pode ser possível tal utopia. O autor aponta que uma característica importante dos direitos humanos está no fato de possuir uma história que incorporou diversas orientações em busca de uma sociedade mais justa. Assim, de acordo com Santos, para que possamos compreender adequadamente os direitos humanos, devemos olhar para esse movimento histórico que desembocou no que chamamos atualmente de direitos humanos. Em seguida, com “Multiculturalismo e políticas da diferença”, Wivian Weller procura recuperar alguns conceitos fundamentais para a discussão dos direitos humanos como multiculturalismo, hibridismo, reconhecimento e redistribuição. Para a autora, a compreensão adequada desses conceitos é importante para que se possa pensar uma educação pautada na não discriminação, assim como também é condição necessária para a ampliação da lógica da não repressão. Weller traz ainda as contribuições de autores que buscam refletir as políticas voltadas para o reconhecimento das diferenças e que destacam que tais práticas políticas devem promover a ruptura dos essencialismos e binarismos muitas vezes presentes nos debates educacionais. [ 12 13 ]

Dijaci David de O. Revalino | Antonio de Freitas | Tania Ludmila D. Tosta

Sociologia e educação em direitos humanos

A segunda parte do livro –Temas de Educação em Direitos Humanos – é composta de cinco textos que analisam diferentes questões pertinentes à EDH. No primeiro, “Violência doméstica e práticas educativas”, Márcia Cristina Lazarini apresenta a proposta de analisar e problematizar algumas questões relativas às violências praticadas contra crianças e jovens, tendo como preocupação abranger as reformas políticas e jurídicas voltadas para o enfrentamento de tais problemas pontuando o envolvimento dos Conselhos Tutelares e da política participativa implementada principalmente nos anos 2000, com a retração do Estado. Busca ainda enfatizar a importância das relações existentes entre punir e educar, perante a sociedade de controle envolvida pelos meios de comunicação a partir da família e da escola. O texto “Juventude e violência: do conhecimento empírico às representações sociais” traz as reflexões de pesquisa de Dalva Borges de Souza. Para realizar este trabalho, ela parte de diversas pesquisas realizadas sobre violência urbana no Estado de Goiás. Conforme a autora, é preciso superar o desconforto de associar juventude à violência e à segurança pública. Isto porque a juventude está cercada de mitos, em especial, a ideia de esperança, futuro e de mudança social. Todavia, a juventude acabou por se configurar como um problema de segurança pública. Para resolver esse problema, temos de retomar o debate acerca da exclusão social de grande parte dos jovens no Brasil. Em “O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade”, Revalino Antonio de Freitas discute o trabalho como dimensão fundamental na vida social e a necessidade de resgatar o direito ao trabalho como um direito humano. Historicamente, a luta por melhores condições de vida se articulou com a luta pelo direito ao trabalho no sentido de garantir bem-estar social e o direito de cidadania aos trabalhadores. Nesse sentido, o acesso para participar da base material da sociedade na qual se encontra integrado deve ser universal e não depender do tipo de atividade econômica desenvolvida pelo trabalhador. O autor aponta que a reconfiguração no mundo do trabalho tem provocado uma Introdução

crescente insegurança social, dividindo a classe trabalhadora e ameaçando seus direitos e bem-estar. Cita a presença do trabalho análogo à escravidão na contemporaneidade como exemplo mais significativo da negação do direito ao trabalho. Ainda com referência ao mundo do trabalho, Tania Ludmila Dias Tosta apresenta, no texto “Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário”, uma caracterização do perfil dos trabalhadores precarizados do Distrito Federal, apontando que algumas categorias são mais representativas entre os indivíduos que não possuem direitos nem garantias em seu trabalho. Mulheres e negros, categorias tradicionalmente discriminadas no mercado de trabalho, assumem posição de destaque no crescimento de contratações precárias. As diferenças em relação à escolaridade também chamam a atenção. Apesar da tendência à vinculação do trabalho precário a baixos níveis de escolaridade, o crescimento da precarização revelou-se mais expressivo entre os trabalhadores com ensino médio e superior. Assim, profissionais altamente escolarizados passam também a conviver com a instabilidade de uma relação de trabalho em que não há proteção nem garantias. Em “Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas para o ensino superior”, Dijaci David de Oliveira aborda o tema das relações raciais investigando os discursos contrários à aplicação de políticas afirmativas na universidade. Para realizar o trabalho, tomou como referência a discussão da mídia sobre a adoção de cotas para o ingresso no vestibular da Universidade de Brasília. Conforme o autor, a análise dos diversos tipos de argumentação demonstra que devemos ampliar o debate sobre os significados tanto das políticas universalistas quanto das políticas individualistas, assim como da possibilidade de coexistência de ambas como forma de expressão de direitos. Nesse sentido, as políticas focais podem contribuir para que as políticas universalistas sejam, de fato, universais e não apenas reprodutoras das desigualdades. [ 14 15 ]

Dijaci David de O. Revalino | Antonio de Freitas | Tania Ludmila D. Tosta

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Por fim, temos uma contribuição coletiva de Heloisa Dias Bezerra, Vladimyr Lombardo Jorge e Uianã Borges, com o texto “Governança democrática, informação e direitos humanos”. De acordo com os autores, a criação da internet aumentou a possibilidade de divulgação de informações, mas também ampliou as formas de controle dos agentes estatais. Uma evidência está na participação de cidadãos e de organizações não governamentais para obter apoio, ao redor do mundo, às suas causas. Para os autores, a efetiva defesa dos direitos humanos continua sendo uma questão primordial. Nessa perspectiva, procuram discutir a relevância política da internet diante das limitações da democracia representativa e das frustrações que esta causa, em especial no caso da proteção dos direitos humanos. A diversidade de temas presentes neste livro tem como fundamento ampliar a reflexão sobre temas de EDH que possam ser abordados pelos docentes de sociologia no ensino médio. Todos os autores e autoras estão conscientes de que o debate da relação entre EDH e a sociologia no ensino médio está apenas começando. Assim é que esperamos que os textos aqui apresentados possam contribuir para que novas questões sejam levantadas e que delas surjam outros trabalhos dispostos a dar continuidade ao processo de integração da perspectiva de EDH no processo educativo. Dijaci David de Oliveira Revalino Antonio de Freitas Tania Ludmila Dias Tosta (Organizadores)

Introdução

Parte I: Multiculturalismo e Direitos Humanos

Por uma sociologia histórica dos direitos humanos Robson dos Santos

Os direitos humanos constituem uma das utopias mais intensas da modernidade ocidental e caracterizam suas principais instituições políticas e sociais. Defini-los, porém, não constitui tarefa simples. Eles abrangem uma pluralidade de significados, sentidos e interpretações que são expressivas das posições dos agentes sociais e das mutações políticas sofridas pela ideia de direitos humanos ao longo da história. O único consenso entre seus defensores e promotores é a noção de universalidade. Por universalidade, entende-se a proposição de que todas as pessoas, independentemente de sua condição etnicorracial, econômica, social, de gênero, criminal, são sujeitas e detentoras dos direitos humanos. É tal princípio que garante a “unidade na diversidade” dos direitos humanos. É evidente que a caracterização contemporânea dos direitos humanos incorpora uma série de conceitos e de reivindicações, mas mantém, sobretudo, a expectativa e a concepção de que é possível a construção de uma sociedade que defina e garanta condições igualitárias de convivência social e de distribuição dos bens acumulados pelo ser humano a todos os indivíduos, considerando que os sujeitos devem

ser universalmente detentores de direitos essenciais, indispensáveis à convivência social. Por isso, os direitos humanos são fundamentais e inalienáveis, pois eles comportam os pressupostos necessários para que todos e todas possam ter uma vida digna. Eles expressam um marco ético-político que serve de crítica e orientação (real e simbólica) em relação às diferentes práticas sociais (jurídica, econômica, educativa etc.) na luta nunca acabada por uma ordem social mais justa e livre, conforme sintetiza Magendzo (1994). É comum a referência aos direitos humanos a partir de suas violações. As prisões de Guantánamo, Abu Ghraib, os cárceres brasileiros, os abusos de poder e as violências policiais, as desigualdades sociais e a concentração de renda, preconceitos e agressões de cunho religioso, a ausência de liberdades civis e políticas, entre outros fatos, constituem rotineiramente a forma pela qual o conceito de direitos humanos é evocado pelos meios de comunicação de um modo geral. Principal marco internacional contemporâneo dos direitos humanos, a Declaração Universal de 1948 foi tecida justamente após os horrores das duas guerras mundiais, dos regimes totalitários, das tentativas de genocídio, da violência absurda das bombas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, enfim, após graves desrespeitos aos direitos humanos. Mas será que é a partir de suas violações, isto é, justamente por sua ausência, que os direitos humanos podem ser definidos? Somente ao serem negados é que eles são exigidos? Constantemente, a crítica conservadora aos direitos humanos caracteriza-os como um conjunto de privilégios oferecidos aos criminosos e demais transgressores dos códigos de conduta legitimados. Setores da mídia e agentes políticos encampam e reproduzem o discurso de que os direitos humanos ignoram as vítimas e se abstêm de pensar o conjunto bom da sociedade. Os defensores são enquadrados como apologetas de uma sociedade desprovida de instrumentos punitivos e de instituições capazes de ensinar a convivência social aos “indivíduos delinquentes”. Para tal compreensão, a convivência se faz pela violên[ 20 21 ]

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cia, isto é, somente métodos rígidos de controle, violentos, duros, à altura dos atos praticados por criminosos são eficientes na construção de corpos dóceis e relações sociais harmônicas. A ordem só é possível, para a visão conservadora, a partir da violência ou de práticas antidemocráticas, visto que as leis são consideradas insuficientes, “coniventes” com os atos criminosos. Para se compreender a ideia de direitos humanos, bem como os paradoxos que a acompanham e os sentidos sociais que ela assume em cada contexto, é necessário realizarmos uma pequena reconstrução histórica de sua trajetória. Daí emerge o duplo objetivo deste texto: resgatar os processos sociais de formação dos direitos humanos e ao mesmo tempo esboçar algumas reflexões sobre a necessidade de analisar sua formação à luz de uma sociologia histórica (Miskolci; Skocpol, 2004). Não se trata aqui de pretender a formulação de uma metodologia, mas apenas “importar” algumas proposições interpretativas da sociologia para a compreensão da formação histórica dos direitos humanos, dispondo de um exercício de imaginação sociológica. O primeiro fruto dessa imaginação – e a primeira lição da ciência social que a corporifica – é a idéia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino situando-se dentro de seu período, de que ele só pode conhecer suas próprias chances na vida tornando-se consciente daquelas de todos os indivíduos em suas circunstâncias. Sob muitos aspectos, é uma lição terrível; mas também, sob muitos aspectos, uma lição magnífica. Não conhecemos os limites das capacidades do homem para esforço supremo ou degradação voluntária, para agonia ou júbilo, para a brutalidade prazerosa ou a doçura da razão. Mas em nosso tempo descobrimos que os limites das “natureza humana” são assustadoramente amplos. (Mills, 2009, p. 84).

As histórias dos direitos humanos são feitas por agentes concretos, localizados em espaços sociais, políticos e econômicos determinados. Tal condição situacional da prática define as feições centrais dos Por uma sociologia histórica dos direitos humanos

DH. Para a reflexão sociológica, isto conflui na necessidade de compreender não apenas o caráter descritivo dos conceitos, mas as forças que o forjaram, os sentidos práticos compartilhados pelos sujeitos nos processos de construção das relações sociais. Direitos humanos e modernidade

A concepção moderna dos direitos humanos tem profunda imbricação com as transformações socioculturais e filosóficas advindas do Iluminismo europeu, movimento intelectual e cultural que ganha força e projeção, principalmente a partir dos séculos XVII e XVIII. O Iluminismo subverte os fundamentos da dominação ao propor, entre outros, o império da razão sobre a fé, a centralidade do ser humano nas explicações filosóficas. É sob esse prisma que floresce grande parte dos fundamentos conceituais dos direitos humanos. É evidente que tal processo não deixa de ter conexões com o campo social. A principal delas consiste em ressaltar a ideia de igualdade, política e civil, entre os seres humanos. A desigualdade, que era naturalizada e institucionalizada durante séculos de dominação feudal e monárquica, é gradualmente substituída pela busca da igualdade, mesmo que de maneira restrita e formal. O Iluminismo é a conversão discursiva de uma nova configuração sócio-histórica, que se caracteriza pela emergência da sociedade burguesa e pela alteração profunda nas relações sociais, de produção, de poder etc. Nesse contexto, a Revolução Francesa de 1789 constitui um acontecimento histórico profundamente simbólico das lutas sociais em prol de uma sociedade menos desigual. Liberdade, igualdade e fraternidade, seus lemas célebres, influenciaram e foram influenciados, em certa medida, pelos fundamentos da noção original dos direitos humanos. Um dos principais “produtos” da Revolução foi a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa, em 26 de agosto de 1789. Ela é um

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marco relevante na construção de uma noção de igualdade, principalmente civil e política. Aqui os interesses burgueses eram alçados à categoria de universais. A Declaração buscava compor uma nova conformação para as instituições e os marcos regulatórios de uma sociedade pós-feudal. É relevante, inclusive, notar como o conceito de civilização, que delimita novas formas de ser e agir aos indivíduos, mais adequadas aos novos tempos, ganha projeção nesse período.1 O que ele parece indicar é o desejo de estabelecer as pontes necessárias entre as novas instituições da modernidade e sua necessária subjetivação, isto é, sua incorporação, como bem descreve o conceito de habitus (Elias, 1994a, b; Bourdieu, 2007). É evidente, porém, que as construções conceituais e políticas que irrompem com as revoluções burguesas assumem sentidos diversos ao longo das dinâmicas históricas. A necessidade inicial de garantir e construir o consenso em relação às liberdades de mercado (Polanyi, 1980) permite a captação de contradições no seio do discurso das liberdades e igualdades entre os homens. A nova sociedade capitalista que se configura impede que os consensos se solidifiquem e as contradições sejam evitadas. Os direitos humanos representam uma das esferas desses processos. É sob a ótica da contradição que devem ser analisados e não como se expressassem apenas produtos ideológicos de certos grupos sociais voltados para a fabricação de uma aceitação da dominação. Sua sociogênese indica claramente tal processo. No século XIX, duas das principais correntes do campo político, os liberais e socialistas, de formas opostas, concentram suas reivindicações por direitos baseados sobretudo na noção de igualdade. Se para os liberais ela concentrava-se (e concentra-se) na esfera dos direitos

1 Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo, e muito mais (Elias, 1994). Por uma sociologia histórica dos direitos humanos

civis e políticos, para os socialistas a igualdade não deixaria de ser uma quimera, enquanto não fosse possível a igualdade social e econômica. Ainda no século XIX, a formação dos grandes centros urbano-industriais da Europa se assentou sobre a exploração da mão de obra operária, sobretudo servindo-se das grandes massas provenientes dos campos (Hobsbawm, 1981). Nesse contexto, a defesa dos direitos humanos também se articulava às lutas dos trabalhadores que reivindicavam inicialmente condições mais dignas ao exercício de suas funções, para minimizar mesmo as formas brutais de exploração que o capital inaugurava nas fábricas, monumentos estes da modernidade burguesa. O amadurecimento das organizações operárias e de suas lutas ampliou o conteúdo das reivindicações, que passaram, então, a se opor a qualquer forma de exploração e objetivar, consequentemente, uma sociedade verdadeiramente livre e igualitária. Os direitos humanos incorporam essas dimensões na luta por justiça social. Em alguns casos, porém, explicitavam seus limites, pois se tornavam limitados perante as lutas mais radicais antissistêmicas, como esperavam os movimentos anarquistas, socialistas e comunistas. É possível afirmar que, em alguns setores da esquerda, até recentemente, os direitos humanos eram considerados apenas um mecanismo paliativo e mesmo conivente com o sistema capitalista e suas violências, ao serem incapazes de efetivar a igualdade social, ou ao menos torná-la requisito central para qualquer transformação. Karl Marx, em A questão judaica, texto de 1844, já apontava os limites da busca pela emancipação social somente a partir da luta por direitos civis e políticos, isto é, pela igualdade formal. Porém, nos países do chamado socialismo real constatou-se a ausência de uma preocupação em garantir o mínimo de direitos civis e políticos, como o sufrágio universal, o pluralismo de partidos, a liberdade de imprensa, o que compromete e limita, por sua vez, as conquistas da igualdade social. Tal debate indica a impossibilidade de pensar os direitos humanos como uma realização parcial, independente do sistema político. [ 24 25 ]

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A moderna concepção dos direitos humanos não se mantém estática. Ao contrário, como tentamos argumentar aqui, eles são extremamente atrelados às condições históricas, razão por que sua conceituação encontra-se em permanente processo de incorporação de significados, numa complexa dinâmica entre a teoria e a prática. Os séculos XVII, XVIII e XIX ofereceram grande parte dos conteúdos e dos paradigmas com os quais os direitos humanos foram pensados e debatidos no século XX, considerados para alguns autores, como Norberto Bobbio, a era dos direitos. Em tal contexto, a Declaração Universal de 1948 constitui uma das referências mais importantes em termos de pactuação internacional sobre os direitos humanos. Ela buscou reafirmar o compromisso político e social, entre determinados Estados nacionais, de que garantiriam, em seus territórios e na relação com os demais, a promoção e a defesa dos direitos humanos como valores fundamentais da democracia. É evidente que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não constitui um documento desprovido de vínculos com as condições sociais que a produziram e com as disputas de poder global de então. No contexto de emergência da Guerra Fria, isto é, de conflitos entre o comunismo e capitalismo, o conteúdo do artigo XVII da Declaração denota a opção por uma das formas de organização socioeconômica, no caso a capitalista: “1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros; 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”. Isso não indica, porém, que a Declaração seja apenas um acordo entre os Estados capitalistas de então. Pelo contrário, sugere em seus diversos parágrafos uma incorporação, por parte desses Estados, dos modelos de desenvolvimento social assumido pelos países socialistas e cada vez mais necessários diante das formas de desigualdade produzidas pelos países assentados sobre a economia de mercado, como indica o fortalecimento do chamado Estado de bem-estar social. É constante a percepção de que, após a Declaração de 1948, os direitos humanos passaram a ser desrespeitados com uma frequência Por uma sociologia histórica dos direitos humanos

ainda maior. Contudo, é importante ressaltar que ela oferece um parâmetro mínimo de julgamento, um indicador de monitoramento das violações e de controle social dos atos estatais. Após a Declaração, seguiram-se diversos acordos e tratados internacionais que buscavam englobar os múltiplos conteúdos e formas dos direitos humanos. Tais acordos foram incorporados de maneiras variadas pelos países signatários, pois o grau de promoção e garantia dos direitos humanos nos contextos nacionais depende obviamente do jogo de forças sociais, da capacidade de pressão, mobilização da sociedade e de suas organizações, enfim, da solidez sociocultural e institucional da democracia em cada país. A política que predominou durante a Guerra Fria deixou sua marca na historicidade dos direitos humanos. Desde a Declaração Universal, eles apresentam uma separação que compromete profundamente uma das suas principais características, a indivisibilidade, isto é, a impossibilidade de realizá-los parcialmente. De um lado, estão os direitos civis e políticos, cuja característica central é a “exigibilidade imediata”,2 e que predominaram na Declaração de 1948 como bandeira prioritária dos países capitalistas de regime liberal-democrático. O outro “conjunto” de direitos humanos, os econômicos, sociais e culturais, bandeira priorizada pelo bloco dos países socialistas, está presente de forma restrita na Declaração Universal de 1948. Foram incorporados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966 a partir do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Tais direitos foram enquadrados em outro status jurídico, com a fórmula política da realização progressiva, permitindo assim que sua aplicação não fosse considerada e adotada de forma imediata, supondo que tais direitos requerem transformações sociais prévias. Isso

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Por “exigibilidade imediata” compreendem-se os direitos que podem ser exigidos em um tribunal, isto é, os direitos que os Estados têm a obrigação jurídica de efetivar.

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permitiu, desde então, posturas incongruentes, que postergam sine die sua aplicação. Diante disso, os governos da maioria dos países adotam políticas seletivas, dando prioridade e promovendo alguns direitos e postergando a realização dos outros para um futuro nunca definido. Tal situação explicita o caráter histórico dos direitos humanos, evidenciando sua dinâmica com os conflitos de poder e os vínculos sociais e políticos a partir dos quais eles são construídos. Indica ainda os limites inerentes às democracias capitalistas de construírem condições de igualdade social. Para fins didáticos e não em oposição ao seu princípio estrutural de indivisibilidade – isto é, da impossibilidade de serem realizados plenamente a partir de uma única dimensão –, os direitos humanos são subdivididos historicamente por analistas e militantes em gerações, que denotam as etapas histórico-sociais da sua construção, sempre em processo de incorporação de novas dimensões e de complexização. A primeira geração engloba os direitos civis e políticos e se articula às ideias liberais da democracia consolidadas no século XIX. Aqui fica evidente a marca inicial dos direitos humanos, que surgem em conexão com as instituições políticas da democracia burguesa, que visava, entre outros, superar as heranças do Estado absolutista. A segunda relaciona-se aos direitos econômicos e sociais e se atrela ao mundo do trabalho. Por isso, se vincula às lutas dos trabalhadores, ressaltando sempre o ideal da igualdade, e expressa a defesa de um Estado de bem-estar social que ganha força nas décadas posteriores à Segunda Guerra. Nesse momento, inúmeros conflitos estão em jogo e denotam as necessidades e os engajamentos na construção de uma sociedade mais justa. Nesse contexto, a busca pela igualdade social passa a ter uma centralidade fundamental na definição dos direitos humanos. A terceira geração se refere ao direito de autodeterminação dos povos e inclui o direito ao desenvolvimento, à preservação do meio ambiente e ao usufruto dos bens comuns da humanidade, incorporando as preocupações que ganham espaço no conjunto dos movimentos Por uma sociologia histórica dos direitos humanos

sociais e de muitos Estados nas últimas décadas do século XX e início do XXI. A incorporação de tais dimensões aos direitos humanos, longe de dividi-los, sugere a amplitude que eles ganham ao longo do processo social. Sua realização exige cada vez mais transformações globais e estruturais. No entanto, não deixa de ter conexões com as lutas por libertação nacional na África e na Ásia, com a necessidade de superação do imperialismo e afirmação das identidades e nacionalidades subalternizadas pelo colonialismo. Os desafios contemporâneos que os direitos humanos colocam ao campo de análise possuem obviamente aspectos variados. A reflexão sociológica depara-se com indagações fundamentais. Como pensar a noção de universalidade, que caracteriza os direitos humanos, perante um contexto teórico e metodológico que sugere a fragmentação social e a dissolução de qualquer sujeito ou conceito universal? A diversidade, as diferenças, a alteridade, os regionalismos sociais e culturais dissolvem o fundamento universal dos direitos humanos, ou exigem a ressignificação do conceito? Se cada organização e/ou sistema de relações culturais possui características intrínsecas e legítimas, como ficam as reivindicações e os julgamentos do que são violações aos direitos humanos diante do relativismo sociocultural? Num contexto de globalização neoliberal, de aprofundamento de todas as formas de exclusão e da imposição dos interesses econômicos pelo poder das armas, como distinguir no discurso da liberdade civil e política uma verdadeira defesa dos direitos humanos, ou uma mera apropriação dos ideais com fins econômicos e imperialistas? Estas são algumas das indagações com as quais se depara a reflexão sociológica sobre os direitos humanos, seja no contexto nacional ou internacional, ou local e global como preferem alguns. Enfrentá-las exige que a Sociologia mobilize seus instrumentais analíticos de forma a superar as narrativas essencialistas e naturalizantes com as quais se defrontam a teoria e a prática dos direitos humanos. É preciso localizar os direitos humanos no interior das forças sociais, dos interesses políti[ 28 29 ]

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cos e econômicos que eles confrontam ou reproduzem. A mobilização de uma imaginação sociológica é central para a o entendimento das possibilidades concretas e dos sentidos atribuídos pelos agentes nas esferas de luta e promoção pelos DH. O acúmulo de referenciais teóricos e metodológicos da sociologia permite o desenvolvimento de novas interpretações, isto é, de uma sociologia dos direitos humanos. Os direitos humanos no Brasil: veredas da modernidade periférica

Cabem ainda algumas pequenas observações sobre a formação e a situação dos direitos humanos no Brasil. É importante destacar que as peculiaridades de nossa condição social impedem a importação imediata de modelos explicativos. Cabe pensar nossa situação à luz das condições periféricas e paradoxais pelas quais a modernidade e suas instituições se disseminaram no país (Souza, 2005). A construção da cidadania no Brasil esteve constantemente atrelada aos projetos e interesses das elites socioeconômicas e políticas, raramente vinculando-se a um projeto coletivo com ampla participação social e inclusão. Daí o caráter problemático de nossa democracia. Dessa forma, os direitos, de um modo geral, sempre foram pensados como concessões paternalistas ofertadas pelos grupos dominantes ao restante da população. A cidadania plena é condição indispensável para a realização dos direitos humanos, pois opera como uma espécie de alicerce social no qual eles se constroem e se reproduzem. Tal condição não se constata no Brasil. Os defensores dos direitos humanos deparam-se, nesse cenário, com um árduo caminho para incorporá-los à vida política, cultural e social do país, inclusive enfrentando verdadeiras violências físicas e simbólicas, o que não pode ser ignorado na reflexão sobre os DH. É relativamente comum pensar a luta por direitos sociais e liberdade no Brasil, sob a ótica dos direitos humanos, como algo recente. Eles adquiriram como referência para as mobilizações políticas uma relevância destacada nos últimos quarenta anos. A ditadura militar que Por uma sociologia histórica dos direitos humanos

conduziu o país em 1964 ao autoritarismo e à centralização do poder, a partir de um conjunto de práticas repressivas, impôs um retrocesso à construção da democracia e dos direitos humanos, justamente no momento em que os movimentos populares e sindicais, do campo e da cidade, estavam exigindo uma distribuição justa dos bens produzidos pelo trabalho e uma maior participação social na decisão dos rumos adotados pelo País. Porém, foi na resistência à ditadura – que impôs como novidade ao país a prisão e a tortura de grupos intelectuais e de classe média e não apenas dos tradicionais segmentos alvos da repressão e da violência, como pobres e analfabetos, entre outros – e durante a redemocratização formal do Brasil que diversos grupos religiosos, organizações políticas e movimentos sociais contribuíram com a produção de um conjunto de experiências fundamentais para as lutas subsequentes em prol dos direitos humanos, principalmente no campo educacional e cultural. Aqui cabe ressalvar que o fim do Estado ditatorial militar não implica o desaparecimento das violências estatais. Basta acompanhar os dados sobre violência policial para perceber que subsiste um conjunto de práticas repressivas, violentas e autoritárias. Uma da diferenças em relação à ditadura é que agora o Estado se contenta em perseguir, torturar e exterminar seus alvos tradicionais: homens jovens, pobres e, em sua maioria, pretos e pardos. As discussões sobre violência no Brasil, feitas pelas ciências sociais, documentam bem esse fenômeno (Zaluar, 2004, 2006). A Constituição Federal de 1988 contou com destacada participação social e incorpora diversas bandeiras tradicionais dos direitos humanos, principalmente no campo das liberdades civis e políticas. Contudo, no que se refere à dimensão social e econômica, mesmo que significando um avanço em relação ao passado, possui muitas limitações que não podem deixar de ser pensadas como uma manutenção do status quo, marcando a divisão social que caracteriza o país e a imposição dos interesses dominantes. É justamente nessa dimensão que resi[ 30 31 ]

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dem os principais obstáculos à construção e incorporação dos direitos humanos na vida social brasileira. O quadro aprofundado de desigualdade opera como um impeditivo estrutural para a consolidação dos direitos humanos, visto que impossibilita para a maioria da população o acesso aos meios e aos conteúdos sociais, culturais e políticos indispensáveis a uma convivência democrática. No entanto, atualmente os direitos humanos no Brasil assumiram uma projeção relativamente destacada, principalmente de maneira formal e teórica. No campo da sociedade civil, diversos movimentos se articulam e se mobilizam para pressionar os poderes públicos e a sociedade na defesa e promoção dos direitos humanos, principalmente no que diz respeito à questão rural, às relações étnico-raciais, de gênero, diversidade sexual, pessoas vivendo com o vírus HIV, à questão socioambiental, entre outras. Porém, é importante para a análise refletir se as fragmentações de tais movimentos, por vezes necessárias politicamente, não conduzem a uma essencialização e à ilusão de autonomia absoluta de cada reivindicação, desvinculando sua luta de transformações sociais amplas. Para o fortalecimento de uma unidade entre tais mobilizações, talvez os direitos humanos constituam princípios de unidade indispensáveis. No campo estatal, algumas ações foram realizadas na última década no intuito de garantir a defesa e a promoção de uma cultura dos direitos humanos, o que sugere uma incorporação das pressões e movimentos da sociedade. Foram elaborados dois Programas de Direitos Humanos (1998; 2002) e um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003, revisto e publicado novamente em 2006), com ampla participação social; e no âmbito do governo federal existe uma Secretaria de Direitos Humanos, com status de ministério, responsável pela construção de políticas públicas na área. É evidente que tais movimentos e instituições não significam a hegemonia dos direitos humanos no Brasil. O país é cenário de profundos níveis de desigualdades sociais, regionais, raciais, de gênero, que Por uma sociologia histórica dos direitos humanos

oferecem o conteúdo para a violência cotidiana, a exclusão da maioria da população aos mecanismos elementares da dignidade de vida, a constituição de uma cidadania frágil e irrealizada, a concentração das oportunidades e a permanência das relações autoritárias de poder e dominação. Diante de tal contexto, qualquer luta por direitos humanos parece reduzida e insuficiente, mas abrir mão deles implica o abandono de qualquer pretensão à construção de uma sociedade mais igualitária e democrática, um permanente desafio para a reflexão sociológica. Nesse sentido, os direitos humanos constituem uma referência fundamental para a ação e a análise. Em relação a esta, particularmente, parece ser fundamental a contribuição da sociologia. Um vasto campo de análise se conformou à luz dos direitos humanos. Cabe, ainda, um direcionamento maior do instrumental analítico da sociologia para a compreensão histórica dos DH e de suas (im)possibilidades na modernidade periférica.

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Por uma sociologia histórica dos direitos humanos

Multiculturalismo e políticas da diferença 

Wivian Weller

Para uma sociedade ser democrática, todas as crianças devem ser educadas de modo não repressivo. Em outras palavras, a Educação deve ser não discriminatória, com base na raça, etnia, religião, classe, gênero ou quaisquer outras características que não se relacionam com a educabilidade. A não discriminação amplia a lógica da não repressão. Muitas sociedades discriminam, reprimem e excluem grupos inteiros de crianças [e jovens] de uma educação que conduza à liberdade de pensamento necessária para uma cidadania igualitária. Amy Gutmann

O debate sobre multiculturalismo e políticas da diferença tem ocupado nos últimos anos um espaço ascendente e importante, tanto na academia como no campo político-jurídico e no âmbito dos movimentos sociais (Scherer-Warren et al., 2000; Fleury, 2006; Moreira; Candau, 2008). Mas, de acordo com Stuart Hall (2003), a proliferação do termo multiculturalismo não contribuiu para estabilizar ou esclarecer seu

significado, e assim como outros termos correlatos – raça, etnicidade, identidade, diáspora –, só é possível utilizá-lo sob “rasura”. O autor também faz uma distinção entre as denominações multicultural e multiculturalismo, como se lê: Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. [...] Multiculturalismo é um termo substantivo, que se refere às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e de multiplicidade gerado pelas sociedades multiculturais. (Hall, 2003, p. 52).

O ismo (de multiculturalismo) tende a converter o multiculturalismo em uma doutrina filosófica, reduzindo-o a uma singularidade formal e fixando-a numa condição petrificada. No entanto, o multiculturalismo não é algo novo e tampouco representa uma doutrina específica ou um estado de coisas já alcançado. O termo multiculturalismo descreve uma série de processos e estratégias sempre inacabados, e assim como existem distintas sociedades multiculturais, também podemos constatar distintos multiculturalismos e distintas correntes teóricas discutindo os distintos multiculturalismos. Duarte e Smith (1999, p. 3) apontam ainda uma distinção entre condição multicultural e multiculturalismo: A expressão condição multicultural descreve a presença demográfica de diferentes grupos étnicos dentro de uma população, relacionando fatores adjacentes às experiências históricas de grupos específicos, crenças culturais, valores e status social dentro da sociedade geral. Por contraste, a expressão multiculturalismo tem a ver com a forma como um indivíduo interpreta ou vê o mundo e percebe o seu lugar nele – sendo o mundo esse lugar caracterizado pela condição multicultural. Completando, o multiculturalismo tem a ver [ 36 37 ]

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com a forma como um [indivíduo] avalia esse sentido de espaço para si próprio e para o outro e com o que se propõe a fazer em resposta à condição multicultural.1

Segundo Duarte e Smith (1999), o multiculturalismo pode ser visto como uma proposta ou um conjunto de estratégias políticas em resposta à condição multicultural. Para eles, essas estratégias políticas ou “posições multiculturais” estão fundamentadas em dois princípios básicos a serem adotados pelos multiculturalistas, ou seja: 1. Na rejeição ou contestação dos Estados Nacionais como um melting pot cultural. Segundo os autores, os multiculturalistas norte-americanos compreendem os EUA como uma democracia com diferentes línguas, grupos étnicos e uma diversidade de estilos de vida, tradições e valores. Consequentemente, os multiculturalistas rejeitam o ideal de um EUA como um “caldeirão” no qual essas diversidades são assimiladas em uma cultural comum. 2. No papel oposicionista assumido pelos multiculturalistas em relação ao assimilacionismo cultural, que tem sido a força política dominante nos EUA. Nesse papel os multiculturalistas questionam e, muitas vezes, rejeitam tais ideias e instituições que descartaram ou exerceram repressão sobre o pluralismo, uma das características centrais da condição multicultural.

1 The phrase multicultural condition describes the demographic presence of different ethnic groups within a population along with related factors surrounding particular groups’ historical experiences, cultural beliefs, values, and social status within society at large. By contrast, the phrase multiculturalism denotes a response to this condition. in other words, multiculturalism has to do with how an individual interprets or sees the world and perceives his/her place in it – the world being a place characterized by the “multicultural condition”. In addition, multiculturalism has to do with how one evaluates this sense of place, for oneself and for others, and what one proposes to do in response to the multicultural condition. Multiculturalismo e políticas da diferença

Outro termo que vem ganhando espaço no debate sobre multiculturalismo e políticas da diferença diz respeito à noção de hibridismo.2 Os estudos pós-coloniais,3 assim como ações políticas de diferentes movimentos, têm apontado para a necessidade de compreensão do hibridismo e da ambivalência, que constituem as identidades e relações nas sociedades multiculturais. A ideia de hibridismo de Homi Bhabha (2001) torna transparente o fato de que a natureza humana por si só já está constituída por identidades híbridas, por identidades que estão num contínuo trânsito, cruzando-se com várias culturas, gerando ambivalências, entre lugares e espaços liminares. Tal concepção vai além do conceito de diversidade cultural e propõe a importância do reconhecimento das diferenças culturais. Reconhecer as diferenças culturais significa ir além do reconheci-

2 Diz Costa (2002, p. 41): “Ao revelar o traço híbrido de toda construção cultural, Bhabha busca desmontar a possibilidade de um lugar de enunciação homogêneo e sem misturas: qualquer lugar da enunciação é, de saída, um lugar cingido, heterogêneo – a pretensão de homogeneidade é, portanto, arbitrariamente hierarquizadora. Assim, a hibridicidade torna-se também a condição do observador que percebe o mundo de um lugar do contexto espacial e simbólico da comunidade imaginada... A condição híbrida seria ainda a marca característica da perspectiva cosmopolita contemporânea, em oposição ao cosmopolita do advento da modernidade”. 3 Segundo Bronfen, Marius e Steffen (1997), o “pós” do pós-colonial não significa algo que veio “depois”, no sentido linear e cronológico. O pós é muito mais uma reconfiguaração de todo o campo em que está inserido o discurso colonial, ou seja, de uma abordagem que colocava as diferenças internas e externas entre colonizador e colonizado como central, para uma abordagem que reconhece as inúmeras diferenças internas dentro da própria nação, por ex. as diferenças entre “centro e periferia”, “cultura dominante e subcultura”, etc. A partir dessa perspectiva, fica claro que essas outras diferenças – principalmente as diferenças que dizem respeito ao global e o local – sempre estiveram sobrepostas às diferenças entre distintas nações e entre primeiro e terceiro mundo. Central no discurso póscolonial é o abandono da “síndrome do colonialismo”, que acaba reproduzindo e dando continuidade às estruturas coloniais. O pós-colonial pretende transformar essas estruturas para que elas passem a ser algo novo. [ 38 39 ]

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mento do racismo e das sociedades pluriétnicas que caracterizam grande parte dos estados nacionais contemporâneos: Defendendo a utilização do conceito de “diferença cultural”, Bhabha chama a atenção para um problema que se faz presente em praticamente todos os campos das chamadas ciências humanas, mas que seria uma espécie de “território perdido” nos debates críticos contemporâneos. Sua proposta é “pensar o limite da cultura como um problema da enunciação da diferença cultural”, o que significa ir além do reconhecimento e do acolhimento das diversidades, da crítica aos racismos e discriminações de todas as ordens, de exclusões e inclusões, individuais e grupais. Se a cultura é um problema na medida em que “há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças e nações”, deve ser teorizada justamente aí. (Fischer, 19994).

De acordo com Bhabha (2001, p. 227), não podemos compreender a diferença cultural “como um jogo livre de polaridades e pluralidades no tempo homogêneo e vazio da comunidade nacional”. A diferença cultural deve ser vista sobretudo como uma forma de intervenção e negociação: A analítica da diferença cultural intervém para transformar o cenário de articulação – não simplesmente para expor a lógica da discriminação política. Ela altera a posição de enunciação e as relações de interpelação em seu interior; não somente aquilo que é falado, mas de onde é falado, não simplesmente a lógica da articulação, mas o topos da enunciação. O objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva da posição de significação da minoria, que resiste à totalização. (Bhabha, 2001, p. 228; grifo da autora).

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Não paginado. Multiculturalismo e políticas da diferença

Nessa perspectiva, o multiculturalismo vem se configurando como um campo de estudos interdisciplinar e transversal, que tem tematizado e teorizado sobre a complexidade dos processos de elaboração de significados nas relações intergrupais e intersubjetivas, constitutivos de campos identitários em termos de raça/etnia, gênero, classe social, gerações, orientação sexual, religião/crença, pertencimento regional, entre outras. A educação multicultural representa uma importante ferramenta, pois é “somente através do processo de dissemiNação – de significado, tempo, povos, fronteiras culturais e tradições históricas – que a alteridade radical da cultura nacional criará novas formas de viver e escrever5” (Bhabha, 2001, p. 234). Multiculturalismo e políticas da diferença: exercendo a liberdade de ser e de ser reconhecido nessa nova forma de ser

Situada nesse contexto marcado por políticas excludentes e discriminatórias, violência, perda de identidade, pluralismo cultural, etnocentrismo, problemas sociais e políticos, entre outros, a prática educacional também está revestida de artimanhas que – mesmo sem querer – acabam reproduzindo ou contribuindo para a manutenção das desigualdades. Portanto, o trabalho político e educacional deve estar direcionado para uma “prática libertadora, não no sentido de restaurar alguma suposta natureza ou identidade perdida, alienada ou mascarada, mas no sentido de liberarmo-nos daquilo que somos para exercer a liberdade de ser de alguma outra forma” (Kohan, 2003, p. 90). Partindo da premissa de que a libertação daquilo que somos ou daquilo a que estamos apegados é fundamental para que possamos exercer a liberdade de ser de outra forma e, ao mesmo tempo, de ser-

5 Essa nova forma de viver e recriar a cultura nacional também pressupõe uma revisão da literatura comumente utilizada em sala de aula, responsável, em grande parte, pela proliferação de esteriótipos em relação a migrantes de origem turca na Alemanha ou em relação aos negros e indígenas no Brasil. Sobre este tema, cf. Weller, 1995. [ 40 41 ]

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mos reconhecidos nessa nova forma de ser, o aporte de alguns filósofos contemporâneos tem contribuído para o reconhecimento desse novo ser e de suas especificidades de gênero, raça/etnia, de classe, de pertencimento geracional, religioso, regional, dentre outras. Para tanto, faremos uma breve menção aos aportes do filosófo Charles Taylor e da filósofa e cientista política Nancy Fraser para a prática educacional, enfatizando a importância do reconhecimento das diferenças bem como das políticas redistributivas, como condições necessárias para o desenvolvimento de sociedades mais democráticas e igualitárias. Reconhecimento e redistribuição: as contribuições de Taylor e Fraser

Os autores há pouco citados vêm discutindo e colocando “a política do reconhecimento”6 como um tema central para uma teoria crítica das sociedades contemporâneas. Existe uma relação entre os trabalhos desses autores, mas também é possível observar divergências ou diferentes propostas de construção das políticas de reconhecimento. Para Charles Taylor (2000, p. 241), “a política do reconhecimento” surge como uma exigência de vários setores “em favor de grupos minoritários ou ‘subalternos’, em algumas modalidades de feminismo e naquilo que se chama política do multiculturalismo”. O autor parte do princípio de que nossas identidades são constituídas, em parte, pelo reconhecimento, ou seja, existe um forte vínculo entre identidade e reconhecimento. Indivíduos ou grupos que vivem a experiência do não reconhecimento ou do reconhecimento inadequado (reconhecimento errôneo) podem sofrer danos decorrentes dos estigmas e das hostilizações sofridas, desenvolvendo, assim, “identidades deterioradas”, como Goffman (1988) preferiu denominar. Para Taylor, o reconhecimento

6 Título de um famoso ensaio de Taylor que recebeu comentários de vários autores, dentre os quais: K. Anthony Appiah, Jürgen Habermas, Steven C. Rockefeller, Michael Walzer e Susan Wolf (Taylor, 1998). Multiculturalismo e políticas da diferença

adequado não é uma cortesia, mas uma necessidade vital, uma vez que nossa identidade está vinculada à experiência do reconhecimento que se dá na relação com o outro: “Definimos nossa identidade sempre em diálogo com as coisas que nossos outros significativos desejam ver em nós – e por vezes em luta contra essas coisas” (Taylor, 2004, p. 246). Negar o reconhecimento dessas identidades seria uma forma de opressão, como já apontado pelo feminismo, movimento negro, assim como pelos teóricos do multiculturalismo. De acordo com Nascimento (2005, p. 122-123), Taylor defende um liberalismo “mais tolerante” e não procedimental para sociedades multiculturais, a partir do qual seja possível não somente reconhecer a sobrevivência cultural como meta legítima, mas também reconhecer o “igual valor de diferentes culturas”. Ou seja, não se trata apenas de reconhecer o direito de certas comunidades culturais de sobreviverem, mas reconhecer o igual valor das diversas culturas existentes.

Taylor vislumbra a possibilidade de “igual respeito às diferentes culturas” a partir do processo de “fusão de horizontes” dos indivíduos (conceito utilizado por Taylor em alusão a Gadamer; cf. Taylor, 2004, p. 270). A “fusão de horizontes” pressupõe não somente o estudo de diferentes culturas, valores e crenças, mas, sobretudo, o estabelecimento de relações recíprocas entre indivíduos de diferentes culturas: A “fusão de horizontes” ou comparação entre culturas implica ainda um processo de “aquisição de novas linguagens, e isso só é possível através da transformação de meu juízo inicial em relação à outra cultura, que eu só posso ter na medida em que entro em contato com ela” (Mattos, 2004, p. 150). Para Taylor (2004, p. 269), o campo da educação (no sentido amplo) deve ser o principal locus desse debate e de implementação de políticas de reconhecimento. As universidades e escolas devem alterar seus currículos e abrir espaços para que “mulheres e pessoas [ 42 43 ]

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de raças e culturas não europeias” tenham maior visibilidade e sejam incluídas nos currículos e livros didáticos. O autor destaca que é preciso mudar as imagens distorcidas construídas sobre esses grupos e fornecer elementos de identificação positiva. Além das críticas dirigidas a Taylor e ao seu “liberalismo tolerante” (Mattos, 2004; Nascimento, 2005), especialistas no campo educacional criticam a tese tayloriana que reduz o problema a uma questão de não reconhecimento ou reconhecimento inadequado das mulheres, negros, indígenas, migrantes, homosexuais, entre outros: Com sua filosofia do reconhecimento, Taylor sugere que existe uma verdade sobre a categoria que só necessita ser reconhecida, à medida que as vendas do preconceito comecem a cair de nossos olhos. Taylor não discorda das categorias, ao menos não diretamente. Ao denunciar “o aprisionamento de uma pessoa em um modo de ser falso, distorcido e limitado”, direciona nossa energia moral e política no sentido de liberar o modo de ser verdadeiro, preciso e ilimitado de uma pessoa. Meu receio é que isso seja de pouca valia para nos dissuadir da crença de que, se não fosse por essa tradição de reconhecimento inadequado, enxergaríamos a natureza (verdadeira) uns dos outros e compreenderíamos exatamente as qualidades que hoje estão encobertas pelas forças sociais. (Willinsky, 2002, p. 36-37).

Para Willinsky (2002, p. 36), não estaríamos enfrentando um problema de não reconhecimento ou de reconhecimento inadequado de determinadas categorias, grupos ou indivíduos nas sociedades contemporâneas, mas, sobretudo, um processo de mudança do significado e significância das categorias: “Aqueles que ocupavam o poder sentiram-se compelidos a redefinir o status político das mulheres, por exemplo, depois de terem sido persuadidos pelas sufragistas de que recusar o direito de voto às mulheres constituía prática democrática inaceitável”. Ao invés de afirmar que as mulheres foram erroneamente reconhecidas, o autor destaca a necessidade de analisarmos as formas pelas quais “os homens constituíram, pelos poderes de que foram inMulticulturalismo e políticas da diferença

vestidos pelo Estado, o status legal da categoria mulher”. Desde Platão aos filósofos modernos como Nietzsche, Schopenhauer, Hume e Descartes, buscou-se sempre destacar a deficiência ou inferioridade7 como elementos constitutivos da categoria mulher: Dizer que eles consideravam as mulheres de forma errada é considerar as divisões como determinadas e fixas, ainda que terrivelmente mal interpretadas. Com isso, perde-se de vista o fato de que a própria categoria é em grande parte construída pelo homem. A categoria é constituída por aqueles que ocupam o poder, segundo sua própria imagem da mulher e que tiveram de ser convencidos a mudar o significado da categoria. (Willinsky, 2002, p. 36).

Nesse sentido, o autor pondera que o trabalho político e educacional a ser realizado deve se voltar para a análise das formas “como as categorias pelas quais conhecemos e nomeamos uns aos outros foram formadas” e como essas mesmas categorias ainda continuam sendo utilizadas como “forma de diferenciar a distribuição de poder” nas sociedades em que vivemos, mesma aquelas consideradas democráticas e multiculturais. O autor pondera que as políticas de reconhecimento no campo educacional devem passar necessariamente por uma análise crítica dos conceitos construídos ao longo do século XX, das políticas migratórias e de “assimilação” dos imigrantes, ou ainda, da construção da nação brasileira com base no mito da “democracia racial”:

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Em seu livro sobre Los filósofos y sus vidas, Schäfferstein apresenta o seguinte quadro: “De vinte e dois ilustres filósofos, apenas oito se casaram. Nietsche aconselhava-nos a levar chicotes quando fôssemos com elas; Schopenhauer colocou os pensamentos femininos em relação inversa com o comprimento de seus cabelos; Hume consideravaas oportunas naquelas reuniões em que as conversas descambam para o frívolo, e Descartes dizia, é fácil supor que, com tanta malícia, queria escrever de modo tão claro que até as mulheres compreendessem. Nenhum dos citados, certamente, manteve uma relação estável com uma mulher. Os filósofos, em geral, quando falaram sobre a mulher ou sobre a guerra, brilharam. Ou, para ser sinceros, “caíram no ridículo” (Sábata, 2002 apud Rosa, 2006, p. 14-15).

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Uma educação voltada para a política do reconhecimento faria muito melhor concentrando-se na ciência da raça que surgiu no século passado e que continua no presente século. Deveria examinar as políticas de imigração e o tratamento dado pela mídia às mulheres. Deveria deter-se sobre as leis, em Quebec, referentes a idiomas que restringem o uso do inglês nos avisos públicos. Deveria considerar como a idéia de nação se alinha com raça, e como a cultura passou a servir de mediadora entre os dois termos, ao dividir o mundo entre nós. (Willinsky, 2002, p. 38-39).

Nancy Fraser também vem discutindo as políticas de reconhecimento, enfatizando a integração entre reconhecimento e redistribuição como condição necessária para a compreensão das dimensões sociocultural e político-econômica das desigualdades sociais. Em um de seus artigos mais conhecidos – “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista” –, a autora destaca: Demandas por “reconhecimento das diferenças” alimentam a luta de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, raça, gênero e sexualidade. Nesses conflitos “pós-socialistas”, identidades grupais substituem interesses de classe como principal incentivo para mobilização política. (Fraser, 2001, p. 245).

Fraser sugere aos intelectuais uma nova tarefa, ou seja, o desenvolvimento de uma teoria crítica do reconhecimento, “uma teoria que identifique e defenda apenas versões da política cultural da diferença que possa ser coerentemente combinada com a política social de igualdade” (p. 246). Nesse sentido, a autora propõe um conceito de justiça no qual a dimensão do reconhecimento e da distribuição está igualmente integrada, uma vez que nenhuma dessas políticas é suficiente: Ao formular esse projeto, assumo o fato de a justiça requerer hoje tanto reconhecimento como redistribuição. Proponho-me a examinar a relação entre ambos. Em parte, isso significa descobrir como conceitualizar reconhecimento cultural e igualdade social de forma Multiculturalismo e políticas da diferença

que ambos se sustentem e não enfraqueçam um ao outro... Também significa teorizar sobre os modos pelos quais desvantagem econômica e desrespeito cultural estão entrelaçados e apoiando um ao outro. (Fraser, 2001, p. 246).

Segundo Fraser, uma concepção bidimensional ou bifocal de justiça deve englobar tanto as preocupações tradicionais da justiça distributiva, resultantes das injustiças socioeconômicas (entre outras: a pobreza, a exploração, a desigualdade e os diferenciais de classe), como as preocupações recentes levantadas pela filosofia do reconhecimento (entre outras: o desrespeito, o imperialismo cultural e a hierarquia de status), compreendidas como injustiças culturais ou simbólicas. Trata-se de uma distinção analítica, uma vez que injustiças culturais ou simbólicas e injustiças socioeconômicas estão interligadas nas práticas cotidianas. No entanto, os “remédios” para a minimização dessas injustiças são distintos: a reparação de injustiças socioeconômicas exige medidas que envolvam redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, instiguem a tomada de decisões democráticas e a transformação das estruturas econômicas básicas, ao passo que as injustiças culturais requerem outros tipos de “remédios” associados a uma mudança cultural ou simbólica, entre outras: Reavaliação positiva de identidades desrespeitadas e dos produtos culturais de grupos marginalizados. Poderia também envolver reconhecimento e valorização positiva da identidade cultural. Ainda mais radicalmente, poderia envolver a transformação geral dos padrões societais de representação, interpretação e comunicação, a fim de alterar todas as percepções de individualidade. (Fraser, 2001, p. 252).

Em um outro artigo disponível em língua portuguesa, intitulado “Políticas feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero”, Fraser afirma que as políticas de reconhecimento só serão bem-sucedidas se vierem acompanhadas de políticas redistributivas. Portanto, as políticas requerem uma visão bi[ 46 47 ]

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focal que olhe simultaneamente pelas duas lentes de forma a garantir tanto o reconhecimento como a distribuição. Trata-se, portanto, de uma concepção feminista alternativa de reconhecimento, o que não significa somente uma política de identidade como defendida por Taylor, mas uma “política que busca vencer a subordinação por meio do estabelecimento das mulheres [migrantes, negros, entre outros] como membros plenos da sociedade, capazes de participar lado a lado com os homens, sendo seus pares” (Fraser, 2002, p. 71). Em outras palavras, as lutas que integram redistribuição e reconhecimento “almejam a desinstitucionalização dos padrões androcêntricos de valor cultural que impedem a paridade de gêneros e a substituição desses padrões por outros que dêem suporte a essa paridade” (p. 72). O feminismo não está sozinho na luta pelo reconhecimento, mas ele vem desenvolvendo um importante papel que reflete uma modificação mais profunda na gramática dos discursos das demandas políticas. Considerações finais

Para finalizar, retornaremos à citação inicial de Amy Gutmann, que defende a necessidade de uma educação pautada na não discriminação como condição necessária para a ampliação da lógica da não repressão, que por sua vez amplia a possibilidade de liberarmo-nos daquilo que somos para exercer a liberdade de ser de alguma outra forma: Para uma sociedade ser democrática, todas as crianças devem ser educadas de modo não-repressivo. Em outras palavras, a Educação deve ser não-discriminatória, com base na raça, etnia, religião, classe, gênero ou quaisquer outras características que não se relacionam com a educabilidade. A não-discriminação amplia a lógica da não-repressão. Muitas sociedades ... discriminam, reprimem e excluem grupos inteiros de crianças [e jovens] de uma educação que conduza à liberdade de pensamento necessária para uma cidadania igualitária. (Amy Gutmann apud Isham et al., 2003, p. 117). Multiculturalismo e políticas da diferença

Nesse sentido, as políticas voltadas para o reconhecimento das diferenças devem promover a ruptura dos essencialismos e binarismos muitas vezes presentes nos debates educacionais, pela análise crítica e criativa das relações entre sujeitos diferentes, criando condições para compreender as especificidades e conflitualidades dessas relações e elaborando formas emancipatórias de relação social que favoreçam a superação dos processos de sujeição e exploração que têm marcado nossa história. Devem assumir ainda uma discussão que contemple o hibridismo – no sentido elaborado por Bhabha – como principal componente de nossas identidades. Deve contemplar ainda uma ideia de nação que compreenda as diferenças como partes integrantes dos estados nacionais contemporâneos, ou seja, tanto do centro como da periferia: Se o multiculturalismo dificultou a questão da identidade, isso, a meu ver, só tende a torná-la melhor, pois a incerteza sobre quem é canadense [ou brasileiro] significa adotar uma postura muito menos assertiva em relação a quem é de fato canadense [ou brasileiro]. Este é o momento de se reconhecer que a nação é constituída por tudo que contém, e não somente por aqueles situados em um centro ou origem imaginários; a nação é uma organização política do espaço, e não uma qualidade de caráter que só precisa ser adequadamente reconhecida. (Willinsky, 2002, p. 45; grifo nosso).

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Wivian Weller

Sociologia e educação em direitos humanos

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Parte II: Temas de Educação em Direitos Humanos

Violência doméstica e práticas educativas  Márcia Cristina Lazzari

A história acontece no instante da vida de cada um, livre das pacificações, idealizações e contemplações transcendentais produzidas pela ciência da história. As forças lutam por liberdade, resistem ao poder, realizam sua juventude pela recusa à acomodação no passado e a uma utopia consoladora no futuro. A atuação no presente inventa uma vida desembaraçada de regras fixas, constantes e imutáveis ao se apartar da naturalização da obediência e da conservação de costumes da sociedade como se fossem componentes de um bem maior a ser eternamente preservado. Edson Passetti

Ideias

A sociedade disciplinar investiu diretamente na localização e docilização dos corpos, impondo regras voltadas à organização e distribuição espacial de cada um e para um feixe de manifestações previsíveis, extraindo a obediência e solidificando as instituições que se dedicavam à educação e formação das crianças e jovens. A escola e a família, presentes na vida das crianças, ensinavam-lhes a obedecer sob a rubrica do acesso ao conhecimento e à boa educação. No

entanto, na sociedade de controle, a escola e a família passaram a conviver com outras instâncias de poder desdobradas pelas diversas organizações criadas para subsidiar a ambas, demarcando um entrelaçamento entre elas que deslocou os papéis dos pais e professores compondo um fluxo diferenciado: um investimento direcionado ao resgate dos direitos das crianças e jovens, que muitas vezes parece estar descolado dos corpos e das situações concretas vivenciadas pelas crianças e jovens. Ainda assim, as práticas repressivas e violentas contra crianças e jovens continuam permeadas por uma moral autoritária, punitiva e preconceituosa; punições exercitadas como prevenção de desvios e de comportamentos indesejáveis são recorrentes no modelo educacional que associa a educação ao castigo e que, ao mesmo tempo, cultiva o individualismo. A violência praticada dentro de casa, correntemente utilizada como recurso para o processo educativo, continua fazendo mais vítimas, tendo como mote a justificativa da boa educação. Mesmo em tempos mais democráticos, após a abertura, repleta de leis que trouxeram um novo olhar as crianças e jovens, a violência doméstica, as negligências de várias ordens e também a utilização da mão de obra infantil, a prostituição infanto-juvenil, a desnutrição e a fome estão cada vez mais presentes nas famílias, nas escolas, nas ruas e nas instituições de modo geral. Suspeitas

As crianças e os jovens passaram a ser entendidos como alguém que necessita de direitos, mas continuam sendo vistos como pessoas em formação, desprovidas de vontades e saberes próprios. Segundo Passetti (1999), se instaurou um tipo de filantropia que vem investindo acentuadamente em direção ao estabelecimento de uma ordem capaz de pacificar e neutralizar os efeitos negativos que afetam as crianças, ignorando cada uma delas, um fluxo de nova filantropia. [ 54 55 ]

Márcia Cristina Lazzari

Sociologia e educação em direitos humanos

Três pontos redimensionam a relação caridade–crueldade no final do século XX no Brasil, e que chamamos por nova filantropia: a contenção de programas sociais de Estado com parcerias não-governamentais; a ação jurídico-policial do encarceramento de infratores como medida de prevenção geral contra violências levando à proliferação de prisões e a diversificação das penas como medidas sócio-educativas; e a disseminação da ação contra violentadores de crianças e adolescentes. (Passetti, 1999, p. 367).

Adentramos o século XXI e vivenciamos a concretização das parcerias, primeira questão abordada pelo autor, que acarretou a transformação das práticas de enfrentamento, contenção e controle das violências, seja no caso de jovens infratores, seja em relação às crianças e jovens violentados. A democratização dos programas e projetos subsidiados pelo governo e a proliferação de organizações não governamentais revelam, de um lado, a ampliação do quadro de pessoas envolvidas com os problemas relativos às crianças e jovens e de outro lado o cumprimento da prerrogativa do Estado, que considera como fator fundamental garantir a participação da chamada sociedade civil, seja por meio dos conselhos em nível municipal e/ou estadual, seja por meio de instituições e organizações que, por vezes, provêm do próprio movimento de defesa dos direitos das crianças e jovens. O fato é que atualmente o Estado promove a descentralização administrativa dos atendimentos aos casos de violências com a justificativa de envolver a sociedade e as comunidades onde se encontram inseridas as vítimas. No entanto, esse processo de democratização enfrenta grandes dificuldades e não têm conseguido efetivamente a diminuição ou retração das violências desferidas contra crianças e jovens. Os dados referentes aos casos que envolvem violência doméstica têm se perpetuado não só no Brasil como no mundo todo, inclusive apresentando um crescimento em determinadas modalidades de agressões, como pedofilia, prostituição infantil, homicídios, estupro, dentre outras. Violência doméstica e práticas educativas 

Estima-se que 133 a 275 milhões de crianças em todo o mundo testemunham violência doméstica anualmente. A freqüente exposição de crianças, a violência em seus lares, geralmente briga entre pais ou entre uma mãe e seu parceiro, podem afetar severamente o bem-estar e o desenvolvimento pessoal de uma criança e sua interação social. (Unicef, 2006, p. 15).

A participação da chamada sociedade civil não garante, por si só, o esperado controle social.1 Presenciamos a ascensão dos Conselhos Tutelares, por exemplo, cujo número de equívocos e transtornos vem fazendo história. As dificuldades de atuação vão desde a falta de estrutura física e material até o pouco esclarecimento de parte dos conselheiros sobre como lidar com os casos de violência que aparecem diariamente. Os Conselhos são considerados fóruns democráticos, frutos da descentralização administrativa, mas não realizam uma resposta à descentralização do poder estatal, nem designam espaços que investem na autonomia e espontaneidade dos cidadãos. Eles funcionam, inversamente, como locais onde a moral se firma e fortalece, podendo incluir a nova estrutura administrativa da educação, saúde, assistência social, pois o espaço do município está relacionado ao espaço econômico e humano, onde o social e o estatal se misturam. Muitas vezes o Conselho Tutelar acaba transformando-se num dispositivo silenciador, pelo qual as violências cometidas contra as crianças ficam circunscritas àquelas divulgadas pela mídia, pois ao que tudo indica o CT atende e resolve as demandas registradas pelos denunciantes.

1 A ênfase no controle social advém da possibilidade de o órgão ser constituído por representantes da chamada sociedade civil. A paridade deve ser assegurada funcionando como mecanismo de garantia da participação e controle popular, conforme consta no ECA. [ 56 57 ]

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Em pesquisa2 realizada no Conselho Tutelar de São Miguel Paulista, localizado na zona leste da cidade de São Paulo, constatou-se que cerca de 90% dos atendimentos referentes às diversas demandas diziam respeito aos pedidos de encaminhamentos para outras políticas sociais (escola, creche, hospital, cartório, solicitação de guarda/tutela etc.); as comunicações referentes à violência doméstica aparecem dentre as ocorrências pouco significativas, perfazendo apenas 7% do material analisado; o baixo percentual de casos de violência doméstica se repete em relação às correspondências da escola ao CT. De certa forma, as carências socioeconômicas superam os episódios de violência doméstica, tendo em vista o deficiente enfoque dado aos casos de violências contra crianças e jovens, tanto em relação à denúncia como também em relação aos desdobramentos referentes às ocorrências. A mídia de modo geral corrobora nesta questão, tendo em vista a ênfase em casos isolados, saciando o desejo de punição e denúncia, individualizando e recortando os episódios violentos envolvendo crianças e jovens. O desenvolvimento do capitalismo expandiu a formação da moral e da subjetivação coletiva por meio da mídia, entendida em sua amplitude, englobando os diversos meios de comunicação. Cada vez mais presentes na atualidade, os meios de comunicação encontram-se inseridos no cotidiano de todos, pobres e ricos, dentro e fora das grandes capitais. No sistema de comunicação atual variam as abordagens, mas certamente todas elas estão às voltas com a conquista do consumidor; ele é o alvo. E, assim, as pessoas passaram a conectar-se com uma moral individualista propagada pela corrida aos bens de consumo, inspirada pelos

2 Pesquisa realizada em 2005, no Conselho Tutelar de São Miguel Paulista, onde foram lidos e copiados 103 atendimentos oferecidos pelo CT, sendo 49 deles emitidos especificamente por escolas públicas e os outros 54 referentes às diversas demandas atendidas pelo CT. Foram cadastrados 4.163 atendimentos de abril de 2002 a agosto de 2005, segundo a contagem efetuada pela recepção do Conselho (Lazzari, 2008). Violência doméstica e práticas educativas 

empresários, o que resulta num cidadão produtivo, apolítico, previsível, participativo, endividado e quase sempre sob controle. O investimento no problema da violência doméstica encontra-se delimitado pelas perspectivas sociais e por interesses difundidos pela moral propagada pela mídia e pelo Estado, os quais reforçam valores e comportamentos fundados na obediência às leis, nos chamados bons costumes e na caça aos culpados, evidenciando maior importância na punição dos violentadores do que na proteção dos violentados ou mesmo na prevenção das violências. Embora o cidadão do século XXI pareça mais livre e autônomo, principalmente do ponto de vista da comunicabilidade (cada vez mais aperfeiçoada pela tecnologia), ele encontra-se mais dedicado à obediência e à docilidade, presentes na sociedade disciplinar, e convive com a versatilidade e dedicação, fazendo aparecer cidadãos plenamente adaptados e adaptáveis às perspectivas de mercado. É um novo jeito de lidar com a inclusão, permeada por uma subjetividade mais global que qualifica e reconhece aqueles que respondem às demandas do mercado, dedicação à empresa, preservação da imagem, respeito às leis, enfim, os que obedecem e seguem os desígnios da maioria. Essa autoridade sobre si mesmo se afirma como autonomia de um cidadão reclamante, que aparentemente consegue compreender quais são seus direitos e como reivindicá-los de maneira adequada através de telefones úteis, fóruns municipais, conselhos em diversos níveis, fazendo funcionar uma rede de serviços criados para prestar atendimentos diversos, de forma que todos passam a ser ouvidos e futuramente atendidos. Realidade muito diferente daquela em que os insatisfeitos faziam greves, piquetes, passeatas, movimentos estudantis etc. A participação, as opiniões e reclamações trouxeram consigo as sínteses pelos slogans publicitários: não faltam programas de rádio e televisão também instituindo fóruns interativos que apelam à participação do público como meio de contemplar as muitas opiniões e reivindicações, exercícios de minorias de direitos. [ 58 59 ]

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Nessa perspectiva é importante abarcar a discussão que Deleuze e Guattari (1997) fazem sobre a subjetivação coletiva, que se dá por conta do processo de nacionalização, operando diretamente sobre o sujeito que pertence não só ao Estado, mas à Nação, entendida como espaço social que reinventa diferentes identidades compartilhadas de forma intermitente. Segundo ele, o próprio capitalismo fez surgir a “empresa mundial de subjetivação”. Essa operação de subjetivação constitui-se em duas formas de sujeição: a maquínica que transformou o homem em peças constituintes da máquina e a sujeição social que envolveu o homem no desenvolvimento tecnológico, máquinas cibernéticas e a informática (ninguém vive sem computador, celular, agenda eletrônica, pager, GPS etc.). Presenciamos, assim, a passagem do modelo de cidadão obediente e útil para o cidadão autônomo, individualista, consumidor e reclamante, agindo poucas vezes sob coação, mas atravessado por práticas violentas. Isso ocorre nas relações educativas domésticas praticadas por pais, mães e responsáveis, como possibilidade de contenção dos abusos desobedientes. Ocorre também como bandeira de reivindicação dos conselheiros, pais, mães, professores, jornalistas, trabalhadores sociais dentre tantos outros que, ao se depararem com crianças e jovens indóceis e/ou violentos, reclamam por punições e prisões. Ou ainda quando elas aparecem como carências econômicas, que atravessam e perpassam o cotidiano da população de baixa renda despojada de recursos mínimos para viver e que busca atendimentos diversos para suas carências, incluindo os Conselhos Tutelares. Incidências

Como parte desse processo de cidadania autônoma e individualista aparece a figura da criança e do jovem – os “mal-educados”, os chamados “sem limite”. É comum considerar crianças e jovens sem limites como aqueles que estão exageradamente envoltos em mais direitos do que obrigações. Pode-se observar que isto implica um duplo Violência doméstica e práticas educativas 

sentido: de um lado, aquele que mascara e procura ignorar a existência da violência como dispositivo de educação, pressupondo que não se violentam mais as crianças na sociedade de direitos, embora a incidência de violências contras crianças seja frequente, ainda que pouco veiculada pela mídia, principalmente quando se trata de violência doméstica familiar; e de outro lado, aquele que considera a violência e/ou ameaça métodos educativos eficazes comprovados inclusive em outros tempos. Esse duplo sentido acaba por acionar o discurso da tolerância zero que emergiu fortemente no Brasil após a democratização política revitalizada pela incidência da chamada violência urbana, esta sim, destacada pela mídia nos últimos anos, estimulando a prática da violência contra os sujeitos considerados perigosos. Mas é preciso pontuar algumas questões relevantes para a devida problematização das práticas violentas contra crianças e jovens. As escolas, por exemplo, perderam pelo menos dois instrumentos relevantes para a eficácia da disciplina: a ameaça de reprovação e a iminência da prova como dispositivos utilizados para obter o almejado “bom comportamento”. Somado a isto convém ressaltar que a família atravessa um processo em que se estabelecem novas relações amorosas e, portanto, novas convivências dentro de uma mesma casa. Pai, mãe e filhos não são as únicas formações familiares recorrentes. Hoje, elas são substituídas por uma variedade de pessoas com vínculos e graus de parentescos variados, vivendo sob o mesmo teto, reproduzindo as responsabilidades e relações estabelecidas antes e introduzindo tantas outras, que passaram a ser exercidas pelo irmão mais velho, pelo padrasto ou madrasta, pela avó ou avô etc. Tais redimensionamentos incorporam outros, cuja irrupção deu-se em décadas passadas e que dizem respeito à entrada da mulher no mercado de trabalho e a uma nova relação com sua prole. Novas práticas foram adotadas para lidar com a ausência da mulher em [ 60 61 ]

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casa durante seu horário de trabalho e, embora as soluções encontradas pelas famílias sejam diferenciadas, grande parte delas vivencia situações muito parecidas. Essas transformações estão presentes em todas as formações familiares; todavia, ainda recai sobre aquelas provenientes de classes sociais mais baixas a condição de “desestruturadas” nas avaliações dos programas sociais, bem como das instituições sociais que lidam com crianças e jovens cujos comportamentos são considerados inadequados. A família, por meio do direito familiar, exerce, sobre a criança e/ ou jovem, certas práticas educativas calcadas em ações mais ou menos violentas, o que de certo modo é tolerado pelo Estado, legitimando um modelo educativo baseado na repressão, inclusive física. Ele realiza o jogo de interesses que, de um lado, reconstrói a autoridade no interior da família para sua própria preservação, e de outro, institui o espetáculo das punições quando as violências praticadas especificamente por pais, mães e/ou responsáveis transbordam para o âmbito público e aí passam a ser entendidas como abuso de autoridade, nomeadas como maus-tratos e não como violências. O problema é que o enfrentamento da violência doméstica se dilui e enfraquece, tendo em vista a reinvenção das práticas violentas dentro da família, justificadas agora pela intolerância aos jovens rebeldes e crianças sem limites, considerados como crias do excesso de liberdade. Mas se sabe que ato violento é qualquer ato praticado por qualquer pessoa que venha a submeter crianças e jovens à vontade de outrem, desconsiderando-os como “gente”. Qualquer formato dessa ação, pelo constrangimento, ameaça, agressão física, psicológica ou sexual, denota uma violência e deve ser entendida como tal, não para satisfazer o sistema de vingança imposto pela penalização, mas para enfatizar o respeito à individualidade das crianças e jovens e reafirmar a importância do investimento em novas sociabilidades a partir de outras ações educativas baseadas no respeito mútuo e no diálogo entre crianças, jovens e adultos. Violência doméstica e práticas educativas 

Definitivamente, a violência, qualquer que seja ela, deve ser afastada das práticas educativas não só no âmbito da família, mas na vida em sociedade como um todo. No caso da educação de crianças e jovens, o objetivo da punição quase sempre está relacionado com a prática da obediência à lei, aos pais, aos professores, às autoridades hierárquicas superiores e aos aparatos normalizados como um todo. Assim, a punição empregada para fins educativos não pressupõe necessariamente uma relação de culpa ou inocência; ela deve estabelecer um comportamento voltado para a prevenção geral. Cabe ressaltar que a punição estabelece uma relação particular com a prevenção que leva à obediência e ao chamado bom comportamento, que corroborarão para uma suposta vida adulta saudável. A escola e a família produzem relações de poder que atravessam e são atravessadas pelo Estado, e o CT, por sua vez, que deveria representar uma ruptura com a sociabilidade autoritária, acaba representando o Estado e a vontade do Estado através da chamada “sociedade civil organizada”. Podemos perceber isso no trecho que segue, extraído de uma comunicação enviada pela escola ao CT de São Miguel Paulista sobre problemas enfrentados com um aluno matriculado na 5ª série (atual 6° ano) do ensino fundamental I: 26/09/02 – Menino de 5ª série – Encaminhamos cópias dos relatórios de comportamento e atitudes do aluno F.: mãe do aluno é ameaçada pelo aluno, não se interessa em estudar, alega vir à escola por imposição da mãe, não gosta de estudar coisa nenhuma, nem aprender nada, diz que gosta de andar pela rua, jogar pebolim, seus amigos pagam (são trouxas). Diz que é muito nervoso, relata conhecer bandidos para socorrê-lo. Tem horror a ficar preso, conta que quando era pequeno a mãe o deixava trancado em casa e ele ficava desesperado. Diz ter raiva porque alguns alunos mexem com ele na escola. Diz saber muita coisa em relação ao sexo. Afirma que jamais terá filhos, filhos é só prejuízo,

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só despreza as mulheres, exploram os homens pedindo pensão e não confiam em ninguém e o irmão é a única pessoa que ele gosta e afirma que seu irmão é pior do que ele. A mãe afirma ter perdido o controle sobre ele. No relatório diz que houve mudança no comportamento, mas em 22/08 na entrega do kit material queria ir embora e foi retido na sala. Xingou o padre Anchieta de desgraçado, o agente escolar o ouviu dizer “ainda mato este aluno”. Estava tremendo e foi falar com a coordenadora, queria ir embora. O que ele quer é não estudar é ficar na rua. Não quer aprender nada, porém vai ficar muito rico... mesmo sem trabalhar. (Extraído do acervo de comunicações das escolas ao Conselho Tutelar de São Miguel Paulista).

A escola encaminha casos considerados insolúveis, no plano da instituição, que revelam o distanciamento dela em relação aos alunos. A família se considera muitas vezes incapaz de lidar com seus filhos e os CTs passaram a receber os insuportáveis, funcionando como interlocutores dos desvios e dos problemas disciplinares apresentados pelas crianças e jovens. O ciclo das práticas educativas punitivas certamente não se rompeu, mas se redimensionou. Inserções

A ênfase no acesso à educação remonta ao processo histórico que privilegiou a escola e a educação como propulsores dos direitos humanos. Desde então outras ações foram sendo incorporadas a este processo de instrumentalização da educação que se pretende para revolucionar valores, reiterando a transformação de educadores e educandos. Obedecer é a condição essencial do educando para obter uma boa educação, por meio da prática do assujeitamento aos costumes e regras, idealizados pelos adultos e, de forma diluída, aos modismos impostos socialmente. Sob a ingerência do Estado, a família acaba por interiorizar esse discurso educacional voltado para a formação de cidaViolência doméstica e práticas educativas 

dãos, colocando em evidência a ascensão social, o enriquecimento e a valorização das realizações pessoais de cada um. O Conselho Tutelar faz coro com as famílias e as escolas, mesmo porque os conselheiros são moradores do município e compartilham as distribuições segmentares que determinam claramente o trajeto educativo das crianças em busca do sucesso na idade adulta. Dessa forma, as relações que se estabelecem entre a escola e a família, atravessadas pela presença do Conselho Tutelar, são resultado de um mesmo feixe de interesses e atitudes que se confirmam na relação de punição e educação tendo como fim a obediência. A discussão acerca da punição e justiça foi retomada com os estudos de Godwin (2004, p. 13) em 1793 que, ao analisar as relações entre o crime e a punição, afirma: “A única medida da justiça é a utilidade”. É assim que ele vai definir o ato de punir como aquele acompanhado da intenção de corrigir e esta será sua medida. A partir dessa ação punitiva, almeja-se atingir um fim benéfico naquele que é punido, daí, então, essa ação punitiva passa a ser considerada como justa. O único significado da palavra punição que pode ser suposto como compatível com os princípios do presente texto é o da dor inflingida a uma pessoa culpada de ações maléficas passadas para o fim de prevenção de males futuros. (Godwin, 2004, p. 16).

A punição, no entanto, não se esgota. Não há uma quantidade de castigos ou ações semelhantes que devem ser aplicados. Por isso, a utilização desse dispositivo está impregnada da relação punição e educação e se reproduz simultaneamente em várias instituições. As práticas punitivas, ora utilizadas violentamente contra crianças e jovens, ora travestidas em defesa, insinuam uma crise, principalmente quando observamos algumas falas das principais instituições que objetivam a educação das crianças e jovens como a escola e a família. Tanto uma como a outra registram, de alguma forma, a insatisfação relativa à desobediência dos jovens. [ 64 65 ]

Márcia Cristina Lazzari

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Segue mais um trecho de uma comunicação enviada pela escola ao CT de São Miguel Paulista: 24/05/05 – menino 13 anos – 6ª série fundamental-EE – Informamos que D. passou pelo conselho da escola, que decidiu a transferência para outra UE – os motivos que conduziram este desfecho foram: falta de respeito com os colegas e professores, palavrões, brigas em sala, desinteresse pelas atividades escolares, excesso de faltas, a família não atende as convocações da escola, o aluno mandou a professora de português tomar no cu em alto e bom-tom. Segundo a mãe, em casa também dá trabalho. A mesma diz que a escola deve encaminhá-lo para a FEBEM, ou seja, transfere toda a responsabilidade e se exime de qualquer colaboração ou parceria. Ela não sabe o que fazer, o filho não obedece e faz o que quer. 25/02/05 – menino 1ª série – R. está sendo advertido por ter jogado uma garrafinha de plástico dentro da bacia do banheiro e deverá ficar sem recreio segunda-feira. (Extraído das comunicações das escolas ao Conselho Tutelar de São Miguel Paulista).

Desde a “abertura democrática” de 1988, experimentamos novos dispositivos democráticos como o ECA, LDB, LOAS3 e a municipalização, que resultaram nas práticas de inclusão e inserção social, principalmente em relação aos pobres. Para os alunos malcomportados e para os filhos insuportáveis, o Conselho Tutelar passou a ser, de certa maneira, um novo dispositivo de ameaça e até mesmo um corretivo utilizado por pais, mães, diretores, professores e outros mais. É uma relação inusitada que se realiza a partir da existência do Conselho Tutelar, vindo a ser uma instituição marcada por uma nova tecnologia de poder e que imprime à sociedade uma autoridade jurídica, sem ser jurisdicional e pedagógica, sem ser escola. A existência do Conselho Tutelar compôs um espaço voltado

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Lei n. 8.742, de 7 de setembro de 1993, que define a assistência social ao cidadão. Violência doméstica e práticas educativas 

para a punição e disciplinarização das crianças e jovens que infringem os limites determinados pela escola e pela família, tornando-se comum a ameaça de encaminhar o desobediente ao Conselho, por parte de pais e professores, como antigamente se fazia em relação ao Juizado de Menores. Assim, percebe-se que o Conselho Tutelar acabou, de certa maneira, tornando-se um tipo de poder distinto da escola, pois ele não deve educar, nem punir, nem sentenciar, mas proteger no sentido mais amplo da palavra. E essa função emblemática tornou-se a defesa das crianças e jovens, uma justificativa política para produzir um novo espaço institucional voltado talvez mais para o controle que para a defesa. O Conselho Tutelar consolidou seu poder político, interagindo com a família e a escola, juízes e instituições públicas, alunos e professores/diretores de escola, instituições públicas e família etc. Vivenciamos uma série de investimentos que são claramente voltados não somente para a docilização dos corpos, mas também para levar cada um de nós a fazer a sua parte, atuando e cobrando os direitos e expondo as insatisfações aos fóruns democráticos dentro e fora do Estado. É nesse sentido que Passetti (2007) afirma que as minorias são capturadas pela democracia participativa, formando-se grupos e mais grupos, os quais, por meio da participação direta ou indireta nos projetos sociais e a partir de uma infinidade de técnicas de inclusão social, acabam não se revelando mais como resistências ativas, mas, ao contrário, tornando-se parte constitutiva do governo do Estado e do governo da vida. O Conselho Tutelar funciona como desdobramento da política municipal, desenvolvendo uma ação política local, espelhado no princípio de cidadania e baseando-se nos direitos instaurados coletivamente. Ele busca respostas legais aos conflitos trazidos diariamente, porém não reverencia a individualidade de cada criança ou jovem. A prática de violências contra as crianças e jovens é um problema que assume proporções incalculáveis pelo mundo todo e a falta de es[ 66 67 ]

Márcia Cristina Lazzari

Sociologia e educação em direitos humanos

paço para denunciar as violências pode gerar muitas consequências, as quais variam de acordo com a natureza e a gravidade de cada caso. No universo de suas casas, crianças e jovens estão expostos às violências diretamente relacionadas a exercício educativo que visa extrair, daqueles que são submetidos aos esforços disciplinares, atitudes disciplinadas. A violência toma seus corpos. É preciso deslocar o foco, distribuir olhares mais atentos aos verdadeiros suplícios, investindo naquilo que pode resgatar possibilidades de vida, saúde e liberdade. A sensibilização de professores e profissionais da educação deve coroar o processo de invenção de enfrentamentos cotidianos a essas práticas violentas desferidas contra crianças e jovens, e tal investimento deve difundir informações sobre maneiras de lidar com casos já detectados, seu fluxo de notificação, bem como promover a articulação de todos os envolvidos na quebra de uma educação punitiva e violenta.

Violência doméstica e práticas educativas 

Referências BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1990. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Calafa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Tradução de Lígia M. Ponde Vassalo. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1990. GODWIN, W. Crime e punição. Tradução de Maria Abramo Caldeira Brant. VERVE, Nu-Sol/PUC-SP, n. 5, p. 11-81, 2004. LAZZARI, M. C. Os anéis da serpente: dispositivos de controle e tecnologias da proteção. 2008. Tese. (Doutorado em Política: Ciências Sociais) – PPG-Ciências Sociais, PUC-SP, São Paulo, 2008. PASSETTI, E. Violentados: crianças, adolescentes e justiça. São Paulo: Imaginário, 1996. PASSETTI, E. Crianças carentes e políticas públicas. In: DEL PRIORI, M. (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. PASSETTI, E. Poder e anarquia: apontamentos libertários sobre o atual conservadorismo. VERVE, Nu-Sol/PUC-SP, n. 12, p. 11-43, 2007. ROUDINESCO, E. A família em desordem. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. SCHEINVAR, E.; ALGEBAILE, E. (Orgs.). Conselhos participativos e escola. Rio de Janeiro: DP & A, 2005. TÓTORA, S. Democracia e sociedade de controle. VERVE, Nu-Sol/PUC-SP, n. 10, p. 237-261, 2006. UNICEF. Situação da infância brasileira: crianças de até 6 anos. O direito à sobrevivência e ao desenvolvimento. Brasília: UNICEF-Brasil, 2005.

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Márcia Cristina Lazzari

Juventude e violência: do conhecimento empírico às representações sociais Dalva Borges de Souza

Discutir juventude associada à violência e à segurança pública certamente causa desconforto a quem pertence a uma geração que absorveu determinados mitos acerca da juventude – alguns deles construídos pela teoria sociológica – que associaram juventude à ideia de esperança e a conceberam como portadora do futuro, como agente de mudança social. Nosso pensamento acerca da juventude é hoje paradoxal. Estabeleceram-se na nossa sociedade, de um lado, o culto à juventude, promovido pela indústria cultural, e, de outro, a criminalização da juventude. Todos querem ser jovens, mas, ao mesmo tempo, o jovem é aquele que tem de ser evitado, pois é visto como portador de comportamentos desviantes. A juventude acabou por se configurar como um problema de segurança pública. Mas, se tomarmos os dados empíricos acerca da violência urbana na sociedade brasileira isso faz algum sentido e de fato causa preo-

cupação. Entretanto, o alarde em torno do problema faz com que se esqueçam as causas do envolvimento dos jovens com a violência, seja como vítimas, que é o mais frequente, seja como autores. Deixamos de discutir a exclusão social de grande parte dos jovens no Brasil, a precarização da sua vida, a sua dificuldade para encontrar empregos dignos e a péssima qualidade da escola que temos. Some-se a isso a quase total ausência de políticas culturais voltadas para a juventude. Este texto utilizou-se de diversas pesquisas realizadas pela autora sobre violência urbana no Estado de Goiás – e que, inevitavelmente, tiveram a atenção dirigida para a situação da juventude – e procurou refletir tanto sobre as informações empíricas coletadas como sobre as representações que são construídas sobre juventude e violência. Jovens e violência: as vítimas

Há uma modalidade gravíssima de violência que são os homicídios contra os jovens. Informações sobre mortalidade por homicídios do DATASUS para 2005 mostram que, em Goiânia, 66% das vítimas de homicídio estavam na faixa etária de 15 a 29 anos. Dados mais recentes indicam que tivemos aqui, no Estado de Goiás, uma média de vitimização juvenil (mortes por homicídio na faixa etária de 15 a 24 anos), calculada para os anos de 2002 a 2006, da ordem de 23,7 por 100.000 habitantes, ligeiramente abaixo da média do Brasil. Entretanto, em algumas cidades goianas, como Aparecida de Goiânia, na Região Metropolitana de Goiânia, a taxa ficou em 43,1% e na capital, em 41,0%, quase o dobro da média. Taxas ainda mais altas são apresentadas por Rio Verde, no sudoeste goiano, de 51,6%, e em algumas cidades do Entorno Goiano do Distrito Federal as taxas atingem percentuais impressionantes: Valparaíso, 48,4%; Novo Gama, 46,4%; Águas Lindas, 45,5%; Formosa, 45,2%; Luziânia, 42,2%.1

1

Mapa da Violência, 2008.

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Dalva Borges de Souza

Sociologia e educação em direitos humanos

Durante o ano de 2007, 181 jovens com até 30 anos foram assassinados em Goiânia, 57% do total de vítimas de homicídio. Nos primeiros seis meses de 2008, 220 já haviam morrido, entre eles, 131 jovens, mantendo-se o mesmo percentual.2 Para não ficar apenas nos dados secundários, é possível complementar essas informações com pesquisa realizada3 em inquéritos policiais nas delegacias de Aparecida de Goiânia que comprovam a incidência de homicídios entre a população jovem, conforme pode ser visto pelas Tabelas 1 e 2. Foram examinados 380 inquéritos policiais concluídos da Delegacia de Homicídios de Aparecida de Goiânia referentes a homicídio doloso, latrocínio e tentativa de homicídio ocorridos entre 2005 e 2008. Aparecida de Goiânia é uma cidade da Região Metropolitana de Goiânia, conurbada à capital e tem a segunda maior população do Estado de Goiás. Tabela 1 – Vítimas de homicídios por faixa etária em Aparecida de Goiânia no período de 2005 a 2008 Faixa etária

Absoluto

Percentual

0 - 14

9

2,4

15 - 24

134

35,3

25 - 29

54

14,2

30 - 34

51

13,4

35 - 50

70

18,4

51 anos ou mais

18

4,7

Não informado

44

11,6

Total

380

100,0

Fonte: Inquéritos Policiais – Delegacia de Homicídios de Aparecida de Goiânia.

2

Fonte: Delegacia Estadual de Homicídios.

3

Pesquisa Violência Urbana no Estado de Goiás, financiamento FINEP. Juventude e violência

Jovens e violência: os agentes

Quando se procuram, nos mesmos inquéritos policiais, informações sobre o perfil dos agentes de homicídios, verifica-se que ele é semelhante aos das vítimas: 53% dos agentes tinham menos de 30 anos e, desses, quase 30% estavam na faixa etária de 19 a 29 anos. Tabela 2 – Agentes de homicídios por faixa etária em Aparecida de Goiânia no período de 2005 a 2008 Absoluto

Percentual

Menos de 18

Faixa etária

38

10,0

15 - 24

104

27,4

25 - 29

59

15,6

30 - 34

44

11,6

35 - 50

53

14,0

51 anos ou mais

10

2,6

Não informado Total

71

18,7

380

100,0

Fonte: Inquéritos Policiais – Delegacia de Homicídios de Aparecida de Goiânia.

De outro lado, comprovando o envolvimento de jovens com a criminalidade, em outra etapa da mesma pesquisa4 foi examinada uma amostra de 231 prontuários de presos no Sistema Prisional Goiano. Trata-se de casos de homicídio doloso, tentativa de homicídio e latrocínio, ocorridos entre 24 de janeiro de 1994 e 20 de setembro de 2006. A quase totalidade dos presos nos prontuários examinados é do sexo masculino e a grande maioria, quase 85%, tem menos de 30 anos, como registram as pesquisas sobre homicídios em geral. Compondo o perfil, 62,8% são pardos, 22,9% brancos e 6,5% pretos. Quanto à escolaridade, a maior parte tem o ensino fundamental incompleto (48,1%), seguida dos que apenas leem e escrevem (27,3%). Esses dados indicam não somente a

4

Pesquisa Violência Urbana no Estado de Goiás, com financiamento da FINEP.

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Dalva Borges de Souza

Sociologia e educação em direitos humanos

juvenilização do imprisionamento, como também, se considerarmos escolaridade como proxy de renda, que os presos são, em sua maioria, pobres. Tabela 3 – Perfil dos presos por homicídio no Complexo Prisional Odenir Guimarães por crimes cometidos entre 1994 e 2006 Absoluto

Percentual

18 - 24

Faixa etária

125

54,1

25 - 29

71

30,7

30 - 34

16

6,9

35 - 39

11

4,8

40 - 49

5

2,2

50 - 59

1

0,4

Não informado

2

0,9

231

100

Total

Fonte: Prontuários dos presos por homicídio no Complexo Prisional Odenir Guimarães por crimes cometidos entre 1994 e 2005.

A sociologia brasileira tem apresentado algumas interpretações para esse quadro. Uma delas é a presença cada vez mais acentuada do tráfico de drogas nas cidades em geral, e não somente nas grandes metrópoles, atraindo os jovens, quer como consumidores, quer como pequenos traficantes. Outra interpretação é a da construção de uma identidade masculina violenta (Zaluar, 1994), baseada no conceito de ethos guerreiro (Elias, 1993). Essas interpretações foram corroboradas pelas narrativas dos inquéritos policiais examinados em Aparecida de Goiânia, como no caso de conflitos interpessoais nos quais a afirmação da virilidade se fazia com o uso da violência letal e também nos homicídios decorrentes de disputas entre galeras de torcidas organizadas. A teoria da desorganização social tem ainda validade para explicar o fenômeno da violência urbana. Aparecida de Goiânia registrou uma taxa média geométrica de crescimento populacional, entre 1991 e 2000, de 7,3%. Já no período de 2000-2007, houve desaceleração, mas a taxa permaneceu alta (5,06%). Trata-se de uma cidade que se insere no quadro

Juventude e violência

de crescimento populacional das periferias metropolitanas. Atraiu população migrante ou para ela foram deslocados contingentes populacionais excedentes da capital, sem que condições de moradia digna, emprego, educação, saúde fossem proporcionados pelo Estado. Só nos últimos anos é que a cidade experimentou um crescimento significativo de empreendimentos econômicos e consequente geração de empregos. Na base desses fatores que explicam a violência estão a exclusão e a vulnerabilidade social dos jovens. Outro fator importante é que a segregação socioespacial contribui para realimentar a violência. Jovens de estratos sociais diferentes e representações da violência

Uma outra pesquisa realizada em Goiânia5 revela que a escola pública para os jovens pobres é vista mais como um local para o encontro com os amigos, um espaço de sociabilidade – o que de fato ela é –, mas quase nunca é ressaltada a sua função educativa, ou mesmo instrucional. Se verificarmos as condições físicas dos edifícios escolares, percebemos que os equipamentos, existentes, não apresentam condições de funcionamento. Além disso, a maioria dos professores é contratada em regime temporário, sem a qualificação adequada, pois sequer foram selecionados. Logo, não é difícil compreender tal situação. Já é assente que a modernidade desligou o jovem das instituições tradicionais de socialização, como a família e a Igreja. E a escola, provável substituta moderna dessas instituições, não consegue cumprir o seu papel. A sua impotência é de tal ordem que os seus responsáveis chamam hoje a polícia para dentro da escola, como ocorreu em episódio recente em Goiânia.6

5

Imagens Cruzadas: Juventude e Representações Sociais. Pesquisa realizada em 2005.

6 No dia 30 de março de 2009, após um furto em uma escola pública de Goiânia, estudantes foram obrigados a ficar nus na sala de aula para uma revista policial realizada pelo Batalhão Escolar que foi chamado pela Direção da Escola (O Popular, 30 mar. 2009). [ 74 75 ]

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Sociologia e educação em direitos humanos

Mas, ainda como espaço de sociabilidade, a escola é também segregadora. Até os anos de 1960, os espaços de conhecimento, de convivência social e de reconhecimento eram mais amplos e jovens de classes sociais diferentes frequentavam a mesma escola pública, participavam do movimento estudantil, e os ambientes de lazer eram igualmente partilhados, sem que isso significasse igualdade social. O crescimento das cidades no Brasil foi acompanhado pela violência urbana e o sentimento de insegurança tem resultado no fechamento daqueles espaços de convivência. Diversas barreiras se interpõem entre jovens de uma mesma geração e reforçam o mesmo fenômeno da violência, da exclusão social, da exclusão moral, do preconceito e da insegurança. O fenômeno do fim do espaço público perpassa as preocupações de várias linhas de pesquisa nas ciências sociais hoje, particularmente os estudos sobre democracia, as pesquisas sobre violência e a sociologia urbana. Paradoxalmente no Brasil, acompanhando o processo de democratização política, houve essa separação social e física entre estratos sociais diferentes de jovens. Considerando que é na fase do final da adolescência, quando experimentam, pela primeira vez, o espaço público que os jovens formam algumas das suas percepções mais duradouras (Cavalli, 2004), é importante compreender como eles representam o outro, o diferente. Vale dizer, isso traz consequências perversas na conformação da sociedade, especialmente no que se refere à qualidade da democracia. Georg Simmel (1964a) considera que toda interação entre os homens é uma forma de sociação. Inclusive, e principalmente, o conflito, pois se trata de uma forma elementar de sociação e que produz o jeito de vida metropolitana. Veja-se como ele explica: “Toda a organização interna da interação urbana é baseada em uma complexa hierarquia de simpatias, indiferenças, e aversões tanto do tipo mais efêmero como do mais duradouro” (Simmel, 1964a, p. 20).7

7

Tradução da autora. Juventude e violência

Ainda que muitas das reflexões de Simmel8 sobre as formas sociais conservem-se importantes para pensar o mundo contemporâneo, há, a partir do final do século XX, outros elementos com os quais temos de lidar. Não se trata mais aqui da atitude blasé do homem metropolitano, descrita por Simmel (1964b), das atitudes de reserva, de aversão, de estranhamento, e repulsa em relação a todos com quem mantemos contato na vida da grande cidade. As transformações do mundo contemporâneo, com o processo de globalização e suas consequências, criaram outro tipo de vida mental. Wieviorka (1997) considera que o fim da centralidade do trabalho e do movimento operário levou ao fim dos conflitos de classe e o seu lugar foi preenchido por uma não relação entre atores, pela exclusão social, pela ausência de relação conflitual, que instauram uma violência difusa, fruto da raiva e de frustrações. Para esse autor é necessário elaborar um novo paradigma da violência, visto que, na sociedade contemporânea, surge uma nova forma de violência, derivada do caos, e que não pode ser compreendida a partir dos modelos anteriormente utilizados pela sociologia, que a interpretavam como derivada de conflitos, crises ou anomia. Se admitirmos, com Wieviorka, que predomina a ausência de relações entre jovens de classes sociais diferentes no Brasil, poderíamos, no limite, contrariando Simmel, pensar no fim da sociação na metrópole entre indivíduos de uma mesma geração. Em alguns aspectos, a realidade de Goiânia aproxima-se daquela de São Paulo, descrita por Caldeira (2000), e de várias outras cidades do Brasil no que toca à formação de amplas periferias habitadas pelas camadas pobres da população, separadas pelos espaços segregados voluntariamente pelos ricos e pela classe média. Haveria aqui uma polarização entre classe média e as duas outras hierarquias sociais, as camadas da elite e a proletária ou subproletária.

8

Veja-se a conferência A Metrópole e a Vida Mental, de 1903.

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Sociologia e educação em direitos humanos

Vem da década de 1990 a instalação, em Goiânia, de vários condomínios horizontais fechados, fazendo da cidade uma das principais do país com esse tipo de habitação. O medo e a insegurança, se não são os determinantes dessa opção, aparecem como tal nos discursos dos moradores. Essa nova forma de configuração do espaço urbano, certamente, contribuirá para criar uma nova vida mental, afetando toda uma geração. Nesse processo, podem-se formar unidades distintas de geração dentro de uma mesma geração como realidade (Mannheim, 1982), quando as reações intelectuais e sociais a um estímulo histórico são diferentes. Embora Mannheim estabeleça a distinção, ele se mantém na perspectiva relacional e adverte que essas unidades distintas de geração só existem em relação uma a outra, ou seja, “juntas, elas constituem uma geração ‘real’ precisamente por estarem orientadas umas em relação às outras, mesmo se apenas no sentido de se combaterem entre elas” (p. 89). Ao considerar que os dados mentais tanto podem unir como diferenciar socialmente, Mannheim dá uma indicação para a pesquisa empírica, recomendando que se busquem perceber as unidades que compõem uma geração a partir dos diversos sentidos que são atribuídos a uma ideia. Assim, aquilo que o autor denomina tendências formativas e atitudes integradoras fundamentais estabelece a inter-relação entre indivíduos espacialmente distantes, ainda que o surgimento das atitudes integradoras se dê nos grupos concretos para depois se desligarem deles e influenciarem indivíduos situados em espaços mais amplos se esses mesmos indivíduos, a partir da sua situação de geração, se identificam com aquelas atitudes. Seria o mesmo efeito da ideologia para a classe. Embora a situação só potencialmente permita isso quando há uma aceleração no ritmo da mudança social, forma-se um novo estilo de geração, que Mannheim chama de enteléquia de geração, a partir de experiências de grupo cruciais. Juventude e violência

Arrisca-se aqui a afirmar que há hoje no Brasil um fator que pode ser considerado como “experiência crucial de grupo” nos termos de Mannheim. Trata-se da violência urbana desencadeada pelo processo de modernização acelerado e pela introdução do tráfico de drogas nas grandes cidades que resulta em violência concreta e em sensação de insegurança em adultos e jovens, modificando as relações sociais. É necessário compreender de que forma isso afeta as representações sociais dos jovens de uma mesma geração e se favorece a formação de diferentes unidades de geração. Na pesquisa foi realizado um survey com jovens de escolas de bairros habitados pela elite goianiense e com jovens de escolas públicas da periferia de Goiânia, para perceber as imagens cruzadas que são estabelecidas por eles, ou seja, como percebem o outro e se essa percepção está marcada pela representação da violência urbana. A investigação foi também realizada nos espaços de lazer desses jovens. Um longo questionário contemplava dados objetivos como renda, religião, ocupação dos pais, moradia, lazer, estudo, divertimentos, formas de sociabilidade, sexualidade, mecanismos de apropriação de bens culturais, mecanismos de distinção, relação com os adultos. Após o tratamento dos dados colhidos nos questionários, utilizando o software SPSS, algumas entrevistas foram também realizadas para complementar a representação que um grupo constrói em relação ao outro. Os jovens considerados na amostra, elaborada a partir de dados do IBGE, foram aqueles que, nos anos de 2005 e 2006, período de realização do survey, tinham 15, 16 e 17 anos. Foram aplicados 381 questionários, amostra representativa dessa população. Dispensou-se a interminável discussão sobre o que é juventude hoje para a delimitação da faixa etária. A opção por essa idade, de 15 a 17 anos, foi feita considerando que essa é uma idade importante para a elaboração de visões de mundo. Nesta pesquisa, cada um dos entrevistados foi classificado em um dos tipos: elite (jovens cujos pais são dirigentes do setor público e do setor privado, grandes empregadores, pequenos empregadores, profis[ 78 79 ]

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Sociologia e educação em direitos humanos

sionais autônomos de nível superior, profissionais empregados de nível superior, profissionais estatutários de nível superior e professores de nível superior); médio (filhos de pessoas que têm ocupações de escritório, ocupações técnicas e trabalhadores do comércio, ocupações de supervisão, técnicas, artísticas, ocupações médias da saúde e educação, de segurança pública, justiça e correios) e popular (trabalhadores do setor secundário, operários da construção civil, domésticos, catadores e ambulantes). Essa estratificação foi complementada por outro documento da Prefeitura de Goiânia, o mapa da exclusão social, assim como pelas próprias informações do questionário sobre renda, local de moradia, tipo da habitação, número de cômodos, número de banheiros, ocupação dos pais, número de carros. Distribuídos os jovens na tipologia, e definindo assim a hierarquia como elite, médio e popular, foi verificada a significância e se estabeleceram correlações entre hierarquia social e as demais variáveis da pesquisa. Os resultados, como esperado, demonstraram, de um lado, a enorme distância existente entre os três tipos em termos de separação socioespacial e, de outro, aproximações na visão de mundo. Quando perguntados onde escolhem os amigos, verificou-se que em torno de 80% dos três tipos escolhem os amigos na escola. É compreensível que a escola seja, nessa faixa etária, o principal local de sociabilidade. Há de se considerar, entretanto, que a própria escola é segregadora, na medida em que não é possível o acesso de jovens de classes pertencentes ao segmento inferior às escolas da elite e, só muito raramente, aos jovens da pequena-burguesia (tipo médio). Parece haver um enclausuramento mesmo dos jovens da elite na escola. O bairro é o segundo local de sociabilidade, mas aparece como variável expressiva apenas para os jovens do tipo médio, com 25,4%. Os motivos da escolha do local que frequentam também revelam a separação. Escolhem o local que frequentam pelo ambiente e pelas pessoas que o frequentam: 65,4% da elite, 82,2% do tipo médio e 62,2% do tipo popular. Da mesma forma, os ambientes que Juventude e violência

frequentam são vistos pelos jovens como restritos ao mesmo grupo social que o seu, por 43% da elite, e em menor proporção pelos demais. As barreiras impostas nos ambientes dos jovens da elite não são as mesmas que as dos demais tipos. Como escolhem o local que frequentam pelo ambiente e pelas pessoas que o frequentam e pela indicação dos amigos, esses ambientes serão imediatamente restritos. A separação socioespacial entre os grupos foi confirmada. Solicitados a caracterizar os amigos, as respostas também indicam a separação. Os amigos são vistos pelos jovens como do mesmo nível social e cultural que o seu para 56,3% da elite, 32,7% do tipo médio e 47,3% do tipo popular. Com tal separação, não há mesmo de haver convivência entre os tipos. Apenas a variável “pessoas que têm as mesmas ideias” poderia indicar alguma escolha a partir de uma seleção mais reflexiva e menos segmentada. Entretanto, ela é quase uniforme entre os grupos, girando em torno de 20% apenas, enquanto que as outras variáveis que indicam escolhas possíveis dentro da mesma classe social, a partir dos capitais cultural, social e simbólico, mostram haver uma separação rígida nos três tipos com base nos indicadores que os distinguem dos outros grupos. No que se refere à violência, na média, 33% dos entrevistados afirmaram que já foram vítimas de assaltos ou furtos. Quando perguntados sobre o que têm mais medo, 10% declararam temer a violência, segunda resposta mais frequente. Sobre as medidas tomadas pela família para evitar a violência, percebe-se a grande diferença de opções entre os tipos, dos quais registro aqui as ocorrências maiores. No tipo elite, 20% não frequentam a periferia ou locais onde habitam pessoas de baixa condição social, em proporção menor, mudaram-se de local de residência, mantêm uma arma em casa e não saem à noite. Isso se repete nos demais tipos, embora a reclusão seja maior na elite e no tipo médio. Já para manter a segurança, há uma enorme diferença também entre os tipos, o que decorre dos recursos econômicos disponíveis. A [ 80 81 ]

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elite concentra a maior parte dos equipamentos que agregam tecnologia ou altos custos, como guardas, firmas de vigilância privada, câmeras de vídeo, cercas elétricas, sirenes e alarmes, enquanto que os tipos médio e popular recorrem mais a muros altos e a cães. Sobre as causas da violência, pode-se afirmar que há muita semelhança nas opiniões. Atribuem a violência às desigualdades sociais 83,6% da elite, 65,3% do tipo médio, e 48% do tipo popular. Os que mais sofrem com as desigualdades sociais são os que, em menor percentual, designam essa causa. Essa é uma resposta que, todavia, parece ser padrão na sociedade brasileira. Já aqueles que naturalizam a violência, atribuindo-a a deformidades de caráter dos que a praticam, são 3,6% do tipo elite, 11% do médio e 16% do tipo popular. O interessante foi verificar que 17,4% dos sujeitos do tipo popular atribuem a causa da violência ao preconceito, à falta de respeito pelo outro, resposta que aparece em índices mínimos nos tipos que lhe são hierarquicamente superiores. Sobre as soluções para o problema da violência, as sugestões acompanham o diagnóstico: soluções estruturais são apresentadas por 76,4% da elite, 51,4% do tipo médio e 42,8% do tipo popular. Maior rigor punitivo foi apresentado como solução por 13% do tipo superior, 32% do tipo médio e 33% do tipo popular. Interessante é que, dada a tradição brasileira de selecionar os mais pobres para punir, os jovens das classes populares são os que mais invocam leis mais rigorosas, mais encarceramento, maior presença e maior rigor da polícia. Embora apontem para problemas estruturais no diagnóstico e para soluções estruturais, não há identificação com o outro. O questionário contemplou algumas questões que permitiram medir o preconceito, principalmente com relação à condição social e à localização no espaço urbano. Perguntados se consideram que os pobres são mais propensos a cometer crimes e infrações, são mal-educados e grosseiros, se são violentos, 50% concordaram com as afirmações. Já em resposta à afirmação de que há muitos “malas” – expressão utilizada por eles nas entrevistas – na periferia da cidade, 92,3% concordaram. Várias outras questões dessa Juventude e violência

ordem foram colocadas e as respostas mantêm o mesmo padrão, ou seja, reforçam a segregação socioespacial, a visão do outro, pobre, habitante da periferia como o portador da violência urbana. O questionário contemplou também questões que permitiram perceber as representações elaboradas sobre os jovens que se localizam no topo da hierarquia social. Em torno de 80% concordam que os jovens da elite são fúteis e preconceituosos, e que só querem curtir a vida e cuidar da aparência. É possível concluir que a percepção da violência urbana está profundamente relacionada à segregação socioespacial na cidade de Goiânia. Há grande semelhança nas respostas de jovens de classes sociais diferentes e, portanto, nos termos de Mannheim, a violência urbana provoca experiências conjuntivas que unificam visões de mundo entre os jovens de uma mesma geração. De um lado, há imagens construídas por cada tipo que rejeita o outro, mas, por outro lado, pode-se afirmar que, em relação ao problema da violência urbana, as representações são semelhantes. Se os jovens das classes populares representaram da mesma forma que aqueles dos demais tipos a si próprios, além de compartilharem a mesma visão de mundo, pode ser também que atribuíam a um outro, ainda mais distante deles em termos de hierarquia social, a condição de moradores da periferia também mais distante e, portanto, violento. Juventude e violência nas representações da violência urbana dos adultos

Se entre jovens de estratos sociais diferentes as representações se entrecruzam, os adultos constroem uma representação da violência urbana associada aos jovens. No survey de vitimização9 realizado em treze cidades dos Estado de Goiás, a redução da maioridade penal foi considerada medi-

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Pesquisa Violência Urbana no Estado de Goiás.

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Sociologia e educação em direitos humanos

da fundamental para aumentar a segurança. Os índices variaram de 79,9% a 89,2%. Os jovens, como agentes criminais por excelência, no discurso dos adultos, estão no núcleo do sentimento de insegurança. Integram esse processo social de criminalização as demandas por mais repressão e intensificação da punição, a partir da crença, muitas vezes infundada, na impunidade. A deslegitimação das instituições responsáveis pelo controle da ordem pública leva à busca de soluções individuais para manter a segurança, e a sua outra face é a manifestação pública por mais e mais punição, que se expressa na aprovação de penas mais rigorosas. Essas representações produzem um efeito desestruturador nas relações sociais, ao incitar práticas que restringem a sociabilidade, criminalizam o diferente e geram desejos de vingança. Trata-se de um efeito bumerangue, pois, se a insegurança leva ao esvaziamento do espaço público, as soluções individuais não resolvem o problema e aumentam a segregação, o medo e mesmo a violência. Considerações finais

É possível afirmar, a partir dos dados empíricos, que a violência tem se tornado cada vez mais um problema dos jovens, tanto como autores e, principalmente, como vítimas. Quando tomamos a construção social da violência, o jovem está também no seu núcleo de representação, o que indica que a orientação das práticas sociais continuará produzindo a sua incriminação (Misse, 2008). Diante desse quadro, é necessário propor uma nova abordagem da segurança pública, que não seja apenas repressiva, que não tenha uma preocupação exclusiva de punir e sim de alargar os espaços de convivência social. Uma política que seja preventiva e voltada principalmente para os jovens, as principais vítimas.

Juventude e violência

Referências CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Cidades de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000. CAVALLI, Alessandro. Generations and value orientations. Social Compass, v. 51, n. 2, p. 155-168, 2004. ELIAS, Norbert. Os alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MANNHEIM, Karl. O problema das gerações. In: _____. Karl Mannheim: sociologia. São Paulo: Ática, 1982. p. 67-100. (Grandes Cientistas Sociais). MISSE, Michel. Acusados & acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008. O POPULAR. Goiânia, 30 mar. 2009. SIMMEL, Georg. Conflict & the Web of group-affiliations. New York: The Free Press, 1964a. SIMMEL, Georg. The metropolis and mental life. In: WOLLF, Kurt H. The sociology of Georg Simmel.  New York: Free Press, 1964b. p. 404-424. WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. Tempo Social, São Paulo, USP, v. 9, n. 1, maio 1997. ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan/Ed. UFRJ, 1994.

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Dalva Borges de Souza

O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade  Revalino Antonio de Freitas

O trabalho ocupa uma dimensão fundamental na vida social. Sua existência resulta das ações realizadas pelos seres sociais. São eles, nas atividades cotidianas para suprirem seus carecimentos, que produzem os meios capazes de assegurar a própria existência e, por conseguinte, o sentido de suas vidas. Para garantir que tais carecimentos pudessem ser saciados, os seres sociais, desde a mais tenra idade da humanidade, precisaram se contrapor à natureza, em seu estado primitivo, transformando-a, a partir da intermediação do trabalho. Mas a humanização da natureza não se dá de forma unilateral. O trabalho proporciona ao ser social uma apreensão da natureza que lhe permite desenvolver a si mesmo. Modificando a natureza, modifica a si mesmo. Apreendendo a natureza em suas múltiplas possibilidades, adquire conhecimento sobre si e suas múltiplas possibilidades. Ao se defrontar com a natureza, o ser social aciona suas próprias forças naturais visando se apropriar dos recursos da natureza. Seu corpo age de forma a humanizar aquilo que a natureza, em estado bruto, lhe disponibiliza e, consequentemente, ao assim proceder, modifica não somente a natureza em si, mas também sua própria natureza (Marx, 1980). Dessa

forma, o trabalho é constitutivo do ser social, impregna-lhe a vida, flui por seu corpo, é a energia vital que impulsiona suas ações visando à efetivação do que primeiro ele pensou, planejou, projetou, constituiu como arquétipo para, em seguida, adquirir materialidade. Essa positividade do trabalho, adquirida como criador de valores-de-uso, é imprescindível à existência do ser social e o direito ao trabalho lhe é inerente, pois é o ato de trabalhar que lhe dá o estatuto ontológico, lhe é constitutivo do ser que se humaniza em relação imediata com a natureza. Porém, se esta condição está dada pela possibilidade de se relacionar com a natureza visando à satisfação de seus carecimentos, na medida em que sua relação com a natureza visa interesses outros, que promovem o trabalho à condição de criador de valores-de-troca, então o que se observa é a destituição do trabalho de sua potencialidade humanizadora, constitutiva do ser social, para se transformar em algo que lhe é estranho. Torna-se, assim, um atributo eivado de negatividade. De todas as sociedades, a sociedade produtora de mercadorias é a síntese desse processo de estranhamento do ser social em relação ao trabalho que realiza. Ela elevou à enésima potência o estranhamento e a alienação do ser social em relação ao que ele produz. O produtor deixa de ser senhor do seu produto. A objetivação presente no trabalho cede lugar à alienação, posto que o produtor já não é proprietário daquilo que adquiriu materialidade pelo seu ato criador. O objeto produzido pelo ser social já não tem significado, sentido, derivado daquele que o produziu, mas sim por algo externo ao processo de criação, que se erige como um poder autônomo em relação ao trabalhador (Marx, 2004). O trabalho, portanto, é destituído de sua potencialidade criadora para se constituir em mero meio de garantir a subsistência diante da exploração do capital. E, como tal, deixa de ser um direito necessário ao ser social para se tornar uma obrigação, uma atividade opressora que lhe despoja de suas potencialidades criadoras para convertê-lo em um ser servil aos interesses de enriquecimento material de outrem. [ 86 87 ]

Revalino Antonio de Freitas

Sociologia e educação em direitos humanos

A sociedade que tudo reifica, reifica também o trabalho e, por conseguinte, aquele que nela está encarregado de produzir a riqueza reificada. O ser social, nas entranhas dessa sociedade, está condenado a ser mero executor de objetos estranhos a si, mercadorias que estão acima de seus carecimentos vitais, de seus desejos e aspirações. Mero autômato, o ser social engendra, no plano coletivo, ações capazes de romper com esse estado de miserabilidade material e espiritual em que se encontra. E, para que isto aconteça, necessário se faz resgatar o trabalho à sua condição primeva, qual seja, a de direito, essência vital a partir da qual se constitui o ser social. Ao longo dos dois últimos séculos, os trabalhadores se viram forçados a uma dupla luta na defesa de seus interesses. De um lado, a luta em prol de melhorar as condições materiais de vida, posto que submetidos a uma degradação e miserabilidade tal que, para garantir a reprodução imposta pelo capital, necessário se fez lutar em defesa de uma situação social capaz de proteger a força de trabalho da fúria destruidora e mesquinha contida na racionalidade do próprio capital. Assim, aos trabalhadores tem sido dada a responsabilidade de garantir que a força de trabalho se preserve em condições apropriadas para garantir não só sua sobrevivência, mas também a ampliação e reprodução do capital. Por isso, toda luta social em defesa de melhores condições de vida tem-se constituído em uma luta em defesa do ser social, mas também uma luta em defesa da manutenção da força de trabalho nele contida. De outro lado, a luta em defesa do direito ao trabalho. Uma luta para assegurar ao trabalhador que ele possa obter, com sua própria força de trabalho, as condições materiais de vida necessárias à sua reprodução. Essas duas lutas, portanto, se articulam, se desenvolvem concomitantemente, de tal modo que uma separação entre ambas tornaria inviável a existência de uma e de outra. A resistência dos trabalhadores à exploração social e, por extensão, na defesa do direito ao trabalho, se intensificou na medida em que a sociedade produtora de mercadorias foi se consolidando e afirmando seu O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade 

domínio sobre a vida social. Como observa Dolléans (1957), ao analisar o ápice de desenvolvimento da sociedade industrial, o trabalho constituía a armadura de existência dos trabalhadores. Se a vida social não se restringia a ele, era sobre ele que ela estava ancorada, adquiria sentido, pertencimento. E, portanto, lutar por ele como um direito social era lutar pelo reconhecimento da existência do próprio trabalhador. A luta por esse reconhecimento foi gradativamente se ampliando, deixando de se ater tão somente ao confronto vis-à-vis com o capital, para se inserir no campo institucional, a partir de uma perspectiva centrada no campo da normatividade. Assim, na medida em que as lutas sociais avançavam no sentido de garantir bem-estar social e o direito de cidadania aos trabalhadores, de igual modo, a luta pelo reconhecimento do trabalho como um direito social também adquiria um sentido mais amplo, envolvendo não só as instituições representativas dos trabalhadores, mas também instituições com representação multissocial, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E, neste caso em particular, o reconhecimento do direito ao trabalho tem se dado a partir da normatividade. Essa normatividade, por sua vez, expressa o modo como as relações sociais se estruturam assegurando garantias institucionais (Telles, 1994), resultantes das ações coletivas na defesa de direitos. O direito ao trabalho se inscreve, então, na condição de um direito humano, ao qual todo ser social deve possuir. Ele significa, antes de mais nada, o acesso a participar da base material da sociedade na qual se encontra integrado. Sendo assim, de fazer jus aos bens sociais, materiais e espirituais decorrentes dos acúmulos produzidos por essa sociedade. Muito embora na sociedade assalariada tal condição seja assegurada por um estatuto social que lhe é peculiar, o salário, o fato é que o acesso a esse direito deve ser extensivo a todos aqueles que se encontram inscritos nessa sociedade. A luta pela extensão dessa condição tem se constituído em uma luta fundamental na sociedade contemporânea. [ 88 89 ]

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Assegurar que esse direito seja universal, independente do tipo de atividade econômica desenvolvida por cada trabalhador, é cada vez mais uma necessidade diante das contradições vivenciadas pela sociedade produtora de mercadorias em seu atual estágio. Com efeito, a reconfiguração constatada nos últimos decênios no mundo do trabalho tem provocado uma insegurança social que atinge a todos os trabalhadores, indistintamente, sejam assalariados ou não. E, por conta disso, as condições de miserabilidade na classe trabalhadora têm aumentado vertiginosamente. Essa reconfiguração tem se constituído a partir das novas tecnologias informacionais, agrupando os trabalhadores distintivamente com base na concentração e especialização da atividade produtiva, com graves consequências para o futuro da própria classe trabalhadora e, por extensão, dos seus direitos e proteção social, notadamente no campo do direito ao trabalho. Isso tem levado à constituição de um núcleo de trabalhadores “permanentes”, cada vez mais instável (Gorz, 1995), ao mesmo tempo em que outro núcleo de trabalhadores temporários, precários e em tempo parcial se amplia constantemente. As investigações e o amplo debate acadêmico evidenciam essa clivagem, não obstante as divergências teóricas que possam estabelecer distinções entre as causas e consequências do fenômeno. Assim, para Freyssinet (2004), constata-se uma “inelutável erosão” do modelo rígido, levando a dois tipos de empregos. De um lado, aquele ancorado na seguridade e constituído sobre uma formação realizada ao longo da vida, envolvendo qualificações que são reconhecidas e transferíveis com a mobilidade profissional e inclui a manutenção dos direitos sociais. De outro lado, um mercado de trabalho concorrencial, ancorado na flexibilidade dos salários e na precariedade dos empregos. Os riscos, segundo Freyssinet, se encontram na possibilidade de que, diante do acirramento da competitividade, as empresas preservem os empregos para os trabalhadores dotados de O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade 

competências, enquanto o segundo grupo se submete à política da concorrência mais geral, apresentada como solução para resolver o problema do desemprego.1 Por sua vez, Vakaloulis (1993) aprofunda essa divisão, definindo um “núcleo duro”, constituído por um grupo de trabalhadores estáveis, qualificados, bem remunerados e com perspectivas de ascensão profissional, com direitos sociais assegurados. Já a “periferia” se subdivide entre os assalariados a tempo pleno e os flutuantes do tempo parcial. Os primeiros enfrentam a competitividade de um mercado que joga com a oferta abundante de excedentes para atividades que exige qualificação restrita. Os segundos se encontram submetidos a um pseudoassalariamento e à precariedade do emprego, portando um estatuto jurídico inferior às normas legais que regem o sistema de proteção social.2 Por fim, a massa crescente de “excluídos”, constituída por jovens em busca do primeiro emprego, trabalhadores idosos ou com qualificação mínima. Expostos à vulnerabilidade, se pauperizam cada vez mais, formando uma “pobreza da crise”, incapaz de ser absorvida pelo mercado e totalmente desprovida de direitos sociais.

1 Essa cisão não significa, necessariamente, garantia para aqueles que se encontram protegidos, sob o manto do emprego. É uma proteção apenas aparente: “um grande desemprego desestabiliza todos os assalariados, fazendo pesar uma concorrência da ‘crise’, que os divide em ‘estratos’. Os funcionários públicos ou os trabalhadores com estatuto são mais protegidos que os outros. Mas não totalmente. Basta pensar nas ‘desnacionalizações’ de empresas públicas operadas pelo governo conservador inglês, que sugerem certas idéias a todos os dirigentes de países com um forte setor público. A massa dos desempregados pode atingir uma quantidade crítica, tornando frágeis os estatutos assalariados até então ‘protegidos’” (Brunhoff, 1991, p. 93). 2 Como observa Beynon (1997), esses trabalhadores – por ele denominados de “hifenizados” – em tempo parcial, temporários, de emprego casual, ou, ainda, por conta própria, se constituíram na principal fonte de emprego no Reino Unido, nos anos 1980 e 1990. Na França, analisando dados oficiais, Germe (1982) afirma que eles irromperam no mercado de trabalho, de forma mais efetiva, já nos anos 1970 e, desde então, têm apresentado tendência contínua de crescimento. [ 90 91 ]

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O crescimento do número de trabalhadores em situação de precariedade e, mais além, de vulnerabilidade, tem levado à constituição de uma “pobreza laboriosa”, assim definida por Concialdi (2004) ou, mais grave ainda, pela distinção que Castel (1998) faz deles, os supranumerários.3 Essa situação de vulnerabilidade social significa uma regressão nos padrões de vida nas sociedades industrializadas.4 Enquanto isso, nas sociedades intermediárias, de industrialização mais recente, essa situação se agrava diante da fragilidade dos sistemas de proteção social vigentes, dos baixos salários e da intensa busca da competitividade no mercado internacional. A pobreza laboriosa – ou os supranumerários – são em número muito superior. A mundialização do capital produz, em escala planetária, uma massa incessante de despossuídos, de “refugos humanos”, na contundente definição de Bauman (2005), resíduos do progresso do mundo industrial e da superfluidade do humano para o capital. As consequências desse processo são mais nefastas para os trabalhadores, se observado o que isso provoca na estrutura social, como enfatiza Gorz (1981). Na medida em que se estabelece uma cisão no interior da classe trabalhadora, opõem-se, de um lado, uma massa cada vez maior de trabalhadores permanentemente desempregados e, de outro, uma “aristocracia de trabalhadores protegidos”. E, entre os

3 Eis a descrição que deles faz Castel (1998, p. 530): “ocupam, na estrutura social atual, uma posição homóloga à do quarto mundo no apogeu da sociedade industrial: não estão ligados aos circuitos de trocas produtivas, perderam o trem da modernização e permanecem na plataforma com muita pouca bagagem. Desde então, podem ser o objeto de atenções e suscitar inquietação, porque criam problema. Porém, o problema é o próprio fato de sua existência. Dificilmente podem ser considerados pelo que são, pois sua qualificação é negativa – inutilidade, não-forças sociais – e em geral são conscientes disso”. 4 Segundo Concialdi (2004), a situação dos casais inseridos na “pobreza laboriosa”, analisada a partir da partilha da renda, é próxima àquela constatada há cerca de meio século. Comparados os níveis de vida, a situação é inferior àquela observada nos anos sessenta. O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade 

dois, como a amortecer essa divisão, há um contingente de trabalhadores precários, submetidos a um trabalho degradado, desqualificado e sem maiores perspectivas sociais. As mudanças na base tecnológica do processo de trabalho têm desnorteado o processo em si, provocando alterações no mundo do trabalho, promovendo o ressurgimento de práticas de trabalho pretéritas e desenvolvendo outras que têm agudizado as condições materiais de vida dos trabalhadores e provocado uma instabilidade geral no que diz respeito ao direito ao trabalho. Entre essas novas (velhas) práticas, se sobressai o trabalho análogo à escravidão, que sintetiza, em sua essência, a negação do direito ao trabalho. Nos últimos decênios, a ocorrência de trabalho análogo à escravidão tem aumentado substancialmente. Estimativas oficiais internacionais registram a existência de 12,3 milhões de trabalhadores nessa condição atualmente (OIT, 2005). Em inúmeros países, essa prática tem se generalizado, com a escravidão por dívida, descendência, trabalho doméstico, dentre outras formas (Sharma, 2008), envolvendo homens, mulheres e crianças.5 A OIT considera que, não obstante certas diferenças entre as formas “tradicionais” e “modernas” de escravidão,6 não deixa de haver elementos comuns entre elas, existindo mesmo uma conexão entre ambas, nos países dependentes. De certo modo, no caso último, isto pode ser observado nos países latino-americanos, particularmente o Brasil. 5 No caso do trabalho infantil, a Anti-Slavery International (ASI) tem se preocupado com a disseminação decorrente de “dívida: mendicância forçada; trabalho doméstico; trabalho de criança para uso nas piores formas de trabalho infantil, como, por exemplo, sua utilização como jóqueis no Oriente Médio” (Sharma, 2008, p. 42). 6 De acordo com a OIT, as formas “tradicionais” se fundamentam em crenças, costumes ou estruturas produtivas, muitas vezes legadas pelo colonialismo, para disseminar a escravidão. Por sua vez, as formas “modernas” se encontram vinculadas à “globalização e as recentes tendências migratórias” (OIT, 2005). [ 92 93 ]

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No caso brasileiro, o trabalho análogo à escravidão tem um precedente a ser considerado. A ideologia do trabalho vigente desde o período colonial jamais deixou de advogar o trabalho como uma obrigação. Por conta disso, não só a sociedade se mostra omissa quanto a essas questões como até as autoridades tratam de amenizar os efeitos perversos dessas práticas de trabalho.7 Diante disso, o direito ao trabalho sempre foi uma falácia. Ao longo do tempo, o espírito e os interesses da Casa Grande foram transplantados para as cidades, sem se ausentar dos latifúndios. Assim, é recorrente o registro de trabalho forçado, tanto no campo quanto nas cidades. Nos últimos anos, a partir da pressão de determinadas instituições sociais (com a notável participação da Comissão Pastoral da Terra (CPT)), conjugadas com uma sensível mudança das políticas governamentais quanto a esse tipo de trabalho, constata-se uma maior visibilidade do fenômeno, o que tem provocado uma certa reação, com desdobramentos sociais e normativos.8 De todo modo, as condições para a erradicação do trabalho análogo à escravidão no Brasil ainda têm um longo caminho pela frente. As dificuldades vão desde a impunidade dos transgressores até aquelas decorrentes de uma possível integração social dos trabalhadores vitimados por esse tipo de trabalho (Villela, 2008). Não se pode desconsiderar a forte pressão, particularmente, do latifúndio, mas extensiva a amplos

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Não deixa de ser ilustrativo dessa visão, a respeito do trabalho, a resposta dada pelo embaixador do Brasil, no Reino Unido, a uma carta da ASI com recomendações para erradicar o trabalho escravo. Isto em 1994. Na oportunidade, em dado momento de sua resposta, o embaixador brasileiro afirma: “finalmente, recordaria a importância da utilização dos termos com precisão ao tratar essas questões. No Brasil, a maioria dos casos não se enquadra na categoria de escravidão, conforme definida na Convenção 29 da OIT” (Sutton, 1994, p. 153).

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O fato mais significativo, do ponto de vista normativo, foi a aprovação da Lei nº. 10.803, em dezembro de 2003. Esta lei altera o Código Penal e tipifica o trabalho em condição análoga à de escravidão, estabelecendo penas de reclusão e multas. O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade 

setores do capital, aí envolvido o agronegócio, e das bancadas parlamentares, sobretudo aquelas compostas por ruralistas (Esterci; Figueira, 2008). De certa forma, descortinam-se possibilidades, ainda que tímidas, de uma nova visão acerca dessa prática compulsória de trabalho. No plano estrutural, ainda, não se pode esquecer que esse tipo de trabalho tem uma forte conexão com os fluxos migratórios. Os trabalhadores migrantes encontram-se sujeitos a toda sorte de exploração. O atual estágio de mundialização do capital tem levado um número cada vez maior de trabalhadores a uma situação de vulnerabilidade, cujo desdobramento passa pelo tráfico de pessoas e o trabalho análogo à escravidão. Se, no passado, os Estados nacionais estabeleciam políticas migratórias que, de certa forma, disciplinavam o fluxo de trabalhadores, no presente o que se constata é a ausência de políticas migratórias capazes de oferecer algum tipo de garantia aos migrantes. As políticas migratórias atuais, no plano internacional, se caracterizam pela repressão e restrição, com o objetivo de conter a circulação de trabalhadores, além do recrudescimento de manifestações xenófobas. Esse quadro sombrio não pode ser caracterizado como os subterrâneos do mundo do trabalho. Seja nas sociedades industriais avançadas, seja nas sociedades dependentes da África, Ásia e América Latina, a situação desses trabalhadores fica cada vez mais visível. As condições em que se manifestam tais fenômenos, conjugados com a naturalização em curso das políticas neoliberais, têm aprofundado essa tragédia humana, com graves consequências para o estatuto social do trabalho e dos trabalhadores. Pobreza laboriosa, supranumerários, refugos humanos. Qualquer que seja a denominação que se conceda a esses seres sociais, o que se constata é que eles se encontram em uma situação de vulnerabilidade social de tal magnitude que a própria concepção de direito ao trabalho, duramente construída mediante lutas sociais levadas a termo nos dois últimos séculos, torna-se secundária diante da luta pela simples sobrevivência diante da barbárie promovida pelo capital. [ 94 95 ]

Revalino Antonio de Freitas

Sociologia e educação em direitos humanos

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Revalino Antonio de Freitas

Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário  Tania Ludmila Dias Tosta

Uma nova configuração das relações de trabalho

As mudanças no mundo do trabalho das últimas décadas, em um cenário de crise e aumento da competitividade mundial, levaram a uma nova configuração do trabalho e perda dos direitos dos trabalhadores. O sistema de regulação social constituído pelo Estado para proteger o cidadão da assimetria das relações de trabalho sofreu uma desestruturação com a proliferação de novas formas de contrato sem as garantias do emprego regulamentado. A partir dos anos 1970, houve uma reestruturação do capital visando recuperar seu padrão de acumulação por meio de uma reorganização política e econômica com a desregulamentação dos direitos e ampliação da flexibilização das relações de trabalho (Antunes, 1999). O mercado passou a determinar a relação de emprego, ajustando as formas de contratação e de remuneração dos trabalhadores de modo a reduzir seus custos e aumentar o lucro. Observa-se um aumento da insegurança para os trabalhadores, com o deslocamento dos riscos do capital para o trabalho. Com base em da-

dos da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Standing (1997) constata que na maioria dos países industrializados cerca de um terço da força de trabalho estava inserido no mercado de trabalho de forma precária em 1993. Assim, pode-se verificar um aumento da regulação pelo mercado, já que a maior parte desses trabalhadores não tem a mesma proteção dos empregados assalariados regulares (Standing, 1997). Esse processo apresenta algumas particularidades no Brasil. Diferentemente dos países centrais em que se constituiu a cidadania salarial vinculando trabalho, direitos e proteção social (Castel, 1998), o Brasil não chegou a completar a integração social pela relação assalariada, já que cerca de metade da população não tem acesso aos direitos derivados da relação de trabalho. Há traços históricos de flexibilidade que podem ser apontados pela facilidade de demitir, como a não formalização do vínculo e a fragilidade da fiscalização (Krein, 2007). Nesse sentido, o novo tipo de flexibilização que se estabelece no Brasil a partir da década de 1990 amplia ainda mais a liberdade do mercado em definir a forma de contratação da força de trabalho, intensificando a precarização. Com isto, além dos tradicionais trabalhadores informais, cresce o número de contratações flexíveis – sem o vínculo e os direitos do emprego regulamentado – entre indivíduos que anteriormente tinham a garantia de uma melhor inserção. As novas formas de trabalho podem ser explicadas com base na ideia de flexibilização, como processo que visa alterar a regulamentação do mercado de trabalho, buscando reduzir a proteção às relações de trabalho e a garantia de direitos dos trabalhadores (Holzmann; Piccinini, 2006). Esse processo pode ser vinculado à nova fase de mundialização e financeirização do capitalismo, em que a liberdade do mercado se impõe como valor absoluto, determinando a flexibilização dos processos de trabalho, do mercado de trabalho, das leis trabalhistas e dos sindicatos, definindo o caráter da reestruturação

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produtiva mais recente, especialmente no que se refere à estratégia das empresas na adoção dos novos padrões de gestão do trabalho. (Druck, 2007, p. 15).

A despeito das várias facetas da flexibilização do trabalho, a ênfase aqui recai sobre a flexibilização da regulamentação dos contratos. Esta pode ser compreendida como alternativa à relação de emprego padrão criada com o objetivo de diminuir os custos e barreiras quanto à contratação e demissão da força de trabalho (Krein, 2007). A precarização é definida por Galeazzi (2006) como as diferentes inserções atípicas que se multiplicaram a partir da reestruturação produtiva e que se caracterizam pela redução de direitos, além de condições de trabalho inferiores ao padrão assalariado. Com a degradação das condições de trabalho ocorrida nos anos 1990, houve uma grande disseminação do uso do conceito de precarização, suscitando observações críticas por parte de alguns autores (Freitas, 2000; Druck, 2007; Leite, 2008). Em análise sobre os conceitos de flexibilização e de precarização do trabalho, Druck (2007) identifica alguns pontos em comum na produção acadêmica recente no Brasil e na França. Para a autora, o debate sobre a precarização do trabalho pode ser relacionado aos resultados da flexibilização e resume-se principalmente à ideia de perda de direitos e degradação das condições de saúde e trabalho. Outras noções também são citadas, como informalização do trabalho, fragmentação dos trabalhadores, aumento do individualismo, fragilização e crise dos sindicatos. Partindo de tais noções, o presente estudo busca circunscrever melhor o conceito de precarização, associando-o à condição em que estão presentes outras variáveis, principalmente a insegurança no trabalho. Entende-se o trabalho precário, portanto, com base em um conjunto de dimensões elaboradas por Rodgers (1989), como incerteza na continuidade do trabalho, falta de controle do processo de trabalho, ausência de proteção social e baixa remuneração. Entretanto, devem ser considerados diferentes graus de vulnerabilida-

Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

de possíveis entre o trabalhador seguro e o precário. A concepção é aprofundada por Vosko (2006), que parte de uma visão multidimensional, refletindo as diferenças de contextos e posições, e associa o emprego precário a benefícios sociais limitados, insegurança no trabalho, baixos rendimentos e riscos para a saúde. A pesquisadora canadense percebe o trabalho precário ainda com foco na interação entre relações sociais e as condições políticas e econômicas. A identificação da nova configuração das relações de trabalho como uma questão social vem da percepção de que haveria uma proliferação de modalidades de inserção, afetando diferentes setores e grupos de trabalhadores, com maior precarização do trabalho. É nesse sentido que se procura discutir a possibilidade de constituição de um novo perfil de indivíduos atingidos pela precarização do trabalho, analisando a incidência de formas de contratação de trabalhadores de acordo com variáveis como gênero, raça e escolaridade. Precarização do trabalho no Brasil

O mercado de trabalho no Brasil apresenta dois movimentos diferentes nos últimos anos. Há um período inicial de grande perda de empregos em meados dos anos 1990, com o aprofundamento da inserção do país no comércio internacional e a intensificação da reestruturação produtiva, gerando altos níveis de informalização e diminuição da renda média do trabalhador. A partir de 2003, há um período de melhora dos indicadores do mercado de trabalho, tendo em vista uma conjuntura mais favorável, com investimentos em políticas de estímulo ao emprego e renda e maior fiscalização do trabalho pelos órgãos governamentais. No final de 2008, esboçou-se uma nova retração decorrente da crise financeira mundial, no entanto o mercado de trabalho brasileiro se recuperou e os empregos voltaram a crescer. O primeiro momento se configurou como uma verdadeira crise do emprego. Os anos 1990 ficaram marcados como um tempo sombrio, não apenas pela redução da quantidade, mas também da qualida[ 100 101 ]

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de das ocupações (Dieese, 2001). Foi a partir daí que se intensificaram a precarização das relações de trabalho e a flexibilização das contratações com a reestruturação do mercado de trabalho. O aumento da flexibilização traz consequências para além da simples mudança da forma de contratar. Em regra, a diminuição do assalariamento denota uma deterioração da qualidade dos postos de trabalho e uma maior dificuldade de vislumbrar uma perspectiva de longo prazo para o trabalhador. A insegurança é o resultado de uma relação de trabalho sem as garantias que foram construídas com a sociedade salarial. Utilizando dados da pesquisa de emprego e desemprego do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as formas de inserção no mercado de trabalho que não seguem o padrão de emprego assalariado registrado podem ser abarcadas pelas categorias de trabalhadores vulneráveis e contratações flexibilizadas ou fora da modalidade padrão.1 Os trabalhadores em situação de vulnerabilidade englobam os trabalhadores domésticos, os assalariados sem carteira do setor privado, os autônomos para o público e os trabalhadores não remunerados, enquanto os contratados flexibilizados seriam os assalariados sem registro do setor público e privado, os terceirizados e os autônomos contratados para a empresa.2

1 As duas categorias são utilizadas pelo Dieese para indicar situações diferentes, mas foram reunidas aqui para representar duas possibilidades de trabalho precário. É preciso ressaltar que os assalariados sem carteira assinada do setor privado estão presentes nas duas situações. 2 O autônomo para o público é a pessoa que explora seu próprio negócio, sozinho ou com sócio, ou ainda com a ajuda de trabalhadores familiares e, eventualmente, tem algum ajudante remunerado em períodos de maior volume de trabalho. O indivíduo classificado nessa categoria presta os seus serviços diretamente ao consumidor, sem ser o intermediário de uma empresa ou pessoa, tendo autonomia para organizar seu próprio trabalho e, portanto, para determinar sua jornada de trabalho. Já o autônomo para empresa é o indivíduo que trabalha por conta própria sempre para determinada empresa, sem estar sob o controle direto da empresa, tendo, portanto, liberdade para organizar seu próprio trabalho. Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

O uso de tais categorias permite quantificar os trabalhadores que não têm acesso à proteção social do emprego regulamentado. Cada uma representa um aspecto do trabalho precário. Enquanto os trabalhadores em situação de vulnerabilidade estão próximos da noção mais tradicional de informalidade, os contratados fora da modalidade padrão vinculam-se à ideia das novas formas de trabalho criadas com o processo de flexibilização a partir das mudanças estruturais no trabalho. Segundo pesquisa do Dieese, as regiões metropolitanas que apresentaram maior intensificação de contratações fora da modalidade padrão até o fim dos anos 1990 foram São Paulo e Porto Alegre.3 Em São Paulo, região com grande concentração de indústrias, a contratação flexibilizada passou de 20,9% do total de postos gerados pelas empresas em 1989 para 33,1% em 1999. O percentual na região de Porto Alegre passa de 17,8% em 1993 a 24,8% em 1999. Já no Distrito Federal os números vão de 22,2% de contratações flexibilizadas em 1992 a 26,4% em 1999 (Dieese, 2001). Depois do período de retração do mercado de trabalho do Brasil, a partir de 2003-2004 há uma forte expansão de novas ocupações, sendo uma grande parte composta por empregos formais. No entanto, ainda há um grande percentual de contratações flexibilizadas, conforme pode ser visto na Tabela 1. Confrontando os dados das contratações flexibilizadas em 2006 com os de 1999, observa-se que a única região que apresenta um aumento significativo é o Distrito Federal, que passa de 26,4% para 31% de flexibilizados. São Paulo sofre um acréscimo ínfimo (de 33,1% para 33,7%) e as demais contam uma redução desse tipo de contrato no ano de 2006, apesar de todas terem passado por um aumento dessa modalidade de contratação ao longo do período de 1999 a 2004.

3 Considerando-se as regiões metropolitanas participantes da pesquisa de emprego e desemprego realizada pelo Dieese: Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. [ 102 103 ]

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Tabela 1 – Evolução das contratações flexibilizadas: regiões metropolitanas e Distrito Federal (em %) 1999

2004

2006

Distrito Federal

Região metropolitana

26,4

31

31

Belo Horizonte

27,2

28,7

25,4

Porto Alegre

24,8

26,4

24,7

Recife

35,8

37,4

35,4

Salvador

35,4

35,6

33,9

São Paulo

33,1

35,6

33,7

Fonte: Tosta (2008)

Flexibilização e vulnerabilidade no Distrito Federal

Seguindo a tendência do Brasil, o mercado de trabalho do Distrito Federal também foi marcado por período recente de elevação do desemprego e da flexibilização na contratação da mão de obra. A região em que se localiza a capital do país se singulariza por apresentar uma realidade específica, com uma economia predominantemente baseada no setor de serviços e na administração pública. Decorre dessa realidade uma série de características próprias na configuração do trabalho da região, que são ao mesmo tempo bastante ilustrativas do quadro geral do país. É uma região que apresenta os mais altos rendimentos e o maior grau de desigualdade social do país, além de elevado nível de proteção social e o mais expressivo aumento de contratados flexibilizados entre as regiões pesquisadas pelo Dieese. Pela posição de destaque quanto ao crescimento dos postos de trabalho de contratação flexibilizada, é importante detalhar a evolução das diversas formas de contratação no Distrito Federal a partir de 1992 (Tabela 2). Segundo os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego do Distrito Federal (PED-DF), realizada pelo Dieese, os postos de contratação padrão diminuíram de 77,8% para 69% do total de postos de trabalho gerados por empresas em 2006. Dentro dessa categoria, o dado mais expressivo é da queda do percentual de assalariados com carteira do setor Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

público, que despencaram de 15,1% em 1992 para 4,4% em 2006. Estes números podem ser explicados pela política de redução do tamanho do funcionalismo público empreendida nos anos 1990 em nome de uma reforma do Estado (Nogueira, 2006). Ao se observar os percentuais do final da década de 1990, percebe-se que os servidores estatutários também sofreram um significativo decréscimo – de 33,5% para 25,1% em 2006. Enquanto isso, os postos de trabalho de assalariados registrados do setor privado foram os únicos que aumentaram em relação ao total de postos gerados dentro da contratação padrão, como pode ser visto na Tabela 2. Tabela 2 – Evolução da distribuição dos postos de trabalho gerados por empresas, segundo formas de contratação – Distrito Federal, 1992–2006 (em %) 1992

1999

2006

Contratação padrão

Formas de contratação

77,8

73,6

69

Com carteira – privado

33,8

34,4

39,5

Com carteira – público

15,1

5,7

4,4

Estatutário

28,8

33,5

25,1

Contratação flexibilizada

22,2

26,4

31

Sem carteira – privada

10,6

11,2

10,8

Sem carteira – público

1,1

3,5

3,4

Assalariados terceirizados

6

8,1

12

Autônomos para empresa

4,5

3,5

4,8

Total de postos de trabalho

100,0

100,0

100,0

Fonte: Tosta (2008)

Em relação aos contratados fora da modalidade padrão, a situação se inverte. De 22,2% dos postos em 1992 passou-se a 31% em 2006. Aqui os números mais expressivos são dos terceirizados, que, de 6%, aumentam para 12% do total de postos. Os assalariados sem carteira do setor público também subiram de cerca de 1% para 3,4%. Contrariamente ao que ocorreu nas outras regiões, os empregados sem registro do setor privado tiveram um crescimento mais discreto no Distrito Federal em relação ao total de postos gerados, passando de 10,6% para 12% em 1998 e depois [ 104 105 ]

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diminuindo para 10,8% em 2006. Já os autônomos para uma empresa oscilaram para baixo ao longo dos anos e estabilizaram-se em 2006, também com um percentual pouco acima do de 1992 (4,8% versus 4,5%). Com esses dados, constata-se que a grande novidade do mercado de trabalho do Distrito Federal está na forte ampliação das contratações flexibilizadas, confirmando o aumento da precarização do trabalho também na região conhecida pelo alto nível de empregos públicos. É provável que grande parte dos postos eliminados entre estatutários e assalariados com carteira assinada no setor público tenha dado lugar para os terceirizados e assalariados sem carteira, que passam a realizar o mesmo trabalho sem as garantias de quem tem um emprego protegido e acesso aos direitos trabalhistas. Assim, o Distrito Federal se destaca pelo crescimento de contratações flexibilizadas. Enquanto os ocupados em geral subiram 60% e os trabalhadores registrados diminuíram sua participação no total de ocupados de 1992 a 2006, os trabalhadores flexibilizados dessa região aumentaram 135%. Os contratados terceirizados e os assalariados sem registro aparecem como os maiores responsáveis pelo avanço da precarização na região. Com base na proposta de analisar a precarização do trabalho dentro da realidade específica do mercado de trabalho do Distrito Federal, optou-se por usar as categorias de trabalhadores em situação de vulnerabilidade e dos contratados flexibilizados para caracterizar empiricamente o perfil dos trabalhadores precarizados dessa região. Assim, valendo-se de dados levantados pela Pesquisa de Emprego e Desemprego do Distrito Federal (PED-DF), foi possível definir quem são esses trabalhadores e quais as transformações pelas quais passaram ao longo do período de 1992 a 2006. 4

4 Conforme pesquisa realizada a partir das estimativas da Pesquisa de Emprego e Desemprego do Distrito Federal (PED-DF) com dados de 1992 a 2006 para a tese de doutorado Antigas e novas formas de precarização do trabalho: o avanço da flexibilização entre profissionais de alta escolaridade. Para mais detalhes, ver Tosta (2008). Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

Gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário

Uma análise do perfil dos trabalhadores é importante para uma melhor compreensão da precarização do trabalho. Dessa forma, um cruzamento dos atributos pessoais desses trabalhadores aponta para uma caracterização da situação do trabalho no Distrito Federal. Homens e mulheres, brancos e negros, analfabetos e graduados sofrem com o trabalho precário, que se apresenta de forma cada vez mais generalizada na sociedade. Observa-se, porém, que algumas categorias são mais representativas entre os indivíduos que não possuem garantias em seu trabalho. E algumas categorias estão assumindo uma posição nova, modificando significativamente o cenário do trabalho precário da região. Constatou-se que a precarização do trabalho atingiu a população de forma diferenciada de acordo com o sexo e a cor. Confirmando a interação apontada por Vosko (2006) entre trabalho precário e relações raciais e de gênero, mulheres e negros estão em lugar “privilegiado” em termos do aumento de contratações flexibilizadas. Categorias tradicionalmente discriminadas no mercado de trabalho, trabalhadores negros e trabalhadoras do sexo feminino lograram atingir uma posição notável em termos de crescimento das contratações, à custa de seus direitos e de uma possibilidade de planejamento a longo prazo. Os estudos sobre relações raciais e de gênero são fundamentais para compreender as desigualdades que se configuram não apenas no ambiente do trabalho, mas atravessam a sociedade. O debate sobre os conceitos de gênero e raça permitiu desnaturalizar as diferenças e desvelar relações de dominação e opressão construídas socialmente. Gênero e raça podem ser considerados dois importantes eixos estruturantes da desigualdade no Brasil. Ao focalizar mais especificamente as relações de trabalho, as desigualdades se manifestam no alto índice de desemprego, na menor formalização do emprego, nas diferenças salariais, na segregação ocupacional e nas barreiras à ascensão profissional não só [ 106 107 ]

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para mulheres, como indica Cappellin (2004), mas também para trabalhadores negros (Dieese, 2006; Osório, 2006; Pinheiro et al., 2008). Ao analisar a relação entre trabalho e gênero nos últimos anos, Bruschini (2007, p. 561) conclui que, mesmo apresentando progressos como o aumento do percentual de trabalhadoras do sexo feminino e a ocupação de postos em profissões de prestígio, “a inserção das mulheres no mercado de trabalho brasileiro tem sido caracterizada através do tempo pela marca da precariedade”. Baseando-se em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2005, a autora aponta que 33% da força de trabalho feminina (o maior contingente de trabalhadoras) se inseria em um grupo de ocupações extremamente precárias: de empregadas domésticas, de trabalhadoras não remuneradas e das mulheres que trabalham para o próprio consumo e o consumo familiar, principalmente no setor agrícola. Pesquisas que tratam do cruzamento entre indicadores de cor/raça no mercado de trabalho brasileiro chegam a resultados semelhantes. Isto pode ser visto, por exemplo, em Retrato das desigualdades de gênero e raça, trabalho realizado em parceria entre o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) (Pinheiro et al., 2008). As desigualdades podem ser encontradas desde o acesso à educação e saúde, até a ocupação e renda. Ao comparar homens brancos e homens negros, dados nacionais do IBGE de 2007 mostram que a situação do trabalho sem carteira apresenta-se mais frequente entre os negros que os brancos (23,4% contra 16,3%). A pesquisa indica que a maior vulnerabilidade pode ser encontrada entre as mulheres negras, que apresentam as mais altas proporções de trabalho precário e menores índices de renda. Também estão na pior posição em termos de taxa de desocupação: em 2007 apresentaram uma taxa de desemprego de 12,4%, comparada às taxas para as mulheres brancas (9,4%), para os homens negros (6,7%) e para os homens brancos (5,5% ) (Pinheiro et al., 2008, p. 25). Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

Retornando à pesquisa sobre o mercado de trabalho do Distrito Federal (Tosta, 2008), os dados confirmam as estatísticas nacionais a respeito da desigualdade de raça e gênero. Conforme visto a seguir, mulheres e negros estão em posição de destaque entre as categorias de trabalhadores precarizados (Tabela 3). Tabela 3 – Estimativa de categorias de trabalhadores segundo sexo e cor – Distrito Federal (1992 e 2006) Vulneráveis

Contratação flexibilizada

1992

2006

1992

Masculino

82.425

128.381

Feminino

109.168 185.415

Negro

88.559

2006

Contratação padrão

Ocupados

1992

2006

1992

2006

62.293 123.287

204.454

286.285

351.221

532.937

31.541

97.835

129.223

206.203 269.190

478.011

222.472

41.810

145.484

117.752

309.566

241.510

660.313

Não negro 103.035

91.774

52.024

75.638

215.925

182.922

378.901

350.635

Total

314.246

93.834

221.122

333.677

492.488

620.411

1.010.948

191.593

Fonte: Tosta (2008)

Em relação ao sexo, apesar de haver maior número de homens ocupados, a quantidade de mulheres com trabalho vulnerável é maior no Distrito Federal, tanto em 1992 como em 2006. Isso pode ser explicado pela grande representatividade das trabalhadoras domésticas entre as mulheres em situação de vulnerabilidade. Ao contabilizar o percentual de cada categoria em relação aos ocupados, percebe-se que 38,8% das mulheres ocupadas são trabalhadoras vulneráveis e 43,1% são contratadas dentro da modalidade padrão. Enquanto isso, apenas 24,1% dos homens ocupados são vulneráveis e 53,7% têm contrato padrão. Em relação aos contratados flexibilizados, 23,1% dos homens ocupados são contratados fora da modalidade padrão e 20,5% das mulheres ocupadas estão na mesma situação. Analisando a variação de 1992 a 2006, houve uma ampliação de 77,6% no total de mulheres ocupadas, com um aumento um pouco menor de vulneráveis e um pouco maior de não vulneráveis. Con[ 108 109 ]

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siderando o tipo de contratação, entre as contratadas flexibilizadas há um aumento de 210,2%, quase três vezes mais que o aumento de ocupadas, enquanto as contratadas dentro da modalidade padrão apresentam um crescimento menor que o das ocupadas (59,6%). A evolução dos números do sexo masculino revela-se um pouco mais discreta. O aumento dos homens ocupados foi de 51,7%, com uma elevação um pouco maior entre os vulneráveis e ligeiramente menor entre os não vulneráveis. Quanto à contratação, repete-se um acréscimo maior entre os flexibilizados (97,9%) e menor entre os trabalhadores de modalidade padrão (40%). É interessante notar o significativo aumento do contingente de negros em todas as categorias indicadas de 1992 a 2006, dos vulneráveis aos ocupados em geral. Enquanto os negros ocupados aumentam em 173,4%, há um crescimento um pouco menor entre os vulneráveis e contratados na modalidade padrão e um pouco maior entre os não vulneráveis. Porém, entre os negros contratados à margem da modalidade padrão, ocorre um forte aumento de 248%. Já os não negros sofrem uma queda em todas as categorias, com exceção dos contratados flexibilizados, que aumentam em 45,4%. Os não negros ocupados diminuem 7,5%. O decréscimo é maior entre os vulneráveis e os contratados na modalidade padrão e um pouco menor entre os não vulneráveis. Apesar do número maior de negros até mesmo entre os trabalhadores não vulneráveis em 2006, ao se verificar os percentuais de cada categoria em relação aos ocupados, percebe-se maior proporção de trabalhadores não negros entre as categorias de trabalhadores mais protegidos e menos vulneráveis. Entre os ocupados não negros, 52,2% são contratados segundo a modalidade padrão e 26,2% são vulneráveis. Já entre os ocupados negros, 46,9% têm contrato padrão e 33,7% são vulneráveis. Por outro lado, o percentual de contratados fora da modalidade padrão é quase igual em relação ao número de ocupados de cada segmento: 22% dos negros e 21,6% dos não negros. Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

Os dados relativos a sexo e cor confirmam, portanto, a forte desigualdade de gênero e raça no mercado de trabalho do Distrito Federal. Enquanto há um aumento considerável de indivíduos trabalhando sem vínculo empregatício, mulheres e negros destacam-se pelo grande crescimento de contratos precarizados entre os anos pesquisados. A caracterização dos trabalhadores precários no Distrito Federal guarda ainda um dado inesperado: o grau de escolaridade. Apesar da tendência a vincular o trabalho precário a baixos níveis de escolaridade, o crescimento de posições precarizadas entre 1992 e 2006 revelou-se mais expressivo entre os trabalhadores com ensino médio e, principalmente, entre os que têm ensino superior. Segundo as estimativas da PED-DF, se os níveis de escolaridade dos contratados flexibilizados forem contabilizados de forma desagregada, a maior proporção tem ensino médio (cerca de 95 mil pessoas) em 2006. Contudo, a soma dos contratados analfabetos com os que cursaram o fundamental incompleto e o completo ultrapassa esse número (chegando a 103.082 indivíduos). Entretanto, a questão fundamental a ser enfatizada é que o grau de crescimento dos flexibilizados ao longo dos anos pesquisados é bem maior entre os detentores de maior escolaridade. Enquanto os ocupados de ambos os graus de escolaridade aumentaram pouco mais de duas vezes de 1992 a 2006, os contratados de nível superior aumentaram quase sete vezes de 1992 para 2006. Em seguida, os de nível médio cresceram quase seis vezes (Tosta, 2008). Assim, os dados identificam uma grande ampliação da precarização entre profissionais de alta escolaridade. Ainda que tenha havido um importante aumento da escolaridade dos trabalhadores, muitas vezes estimulado pelo discurso de maiores possibilidades de conseguir um emprego, a elevação das pessoas com nível superior em posições precárias foi maior que a do total de ocupados com esta escolaridade. Mesmo buscando maior qualificação e constante aperfeiçoamento, profissionais altamente escolarizados passam também a conviver com a instabilidade de uma relação de trabalho em que não há proteção nem garantias. [ 110 111 ]

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Considerações finais

Para finalizar, é possível apontar o perfil geral de trabalhadores vulneráveis e flexíveis no Distrito Federal. Mesmo com os dados apontando a extensão do trabalho precário para uma grande variedade de ocupados da região, há aqueles que são mais representativos de cada uma das categorias. A pesquisa permitiu a apreensão dos atributos que estariam relacionados às categorias de trabalhadores vulneráveis e de contratados flexibilizados no ano de 2006. Em suma, o perfil do vulnerável típico da região seria o de uma mulher, negra, adulta, chefe de família, com ensino fundamental incompleto, trabalhadora doméstica sem registro, com rendimento de R$ 378,81. Já o perfil do flexibilizado é um pouco diferente: seria do sexo masculino, negro, adulto, com escolaridade média, terceirizado da administração pública, com rendimento de R$ 754,39 (Tosta, 2008). Nota-se que enquanto a trabalhadora vulnerável acumula uma série de características como sexo, cor e escolaridade que se articulam e contribuem para torná-la mais vulnerável, o contratado flexível apresenta características mais próximas à maior parte dos ocupados da região. Apesar da menor vulnerabilidade da segunda categoria, pressupõe-se que isto revele um novo perfil de precarização do trabalho de indivíduos com atributos pessoais que, em outros tempos, lhes garantiam uma melhor inserção no mercado de trabalho.

Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

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Tania Ludmila Dias Tosta

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Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 

Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior  Dijaci David de Oliveira

O incrível é crível Mas o possível É impossível. Millôr

No Brasil, de acordo com dados coletados no último Exame Nacional de Cursos (Provão), somente 3,6% dos formandos se declararam negros. A maioria se considera branca (72,1%), enquanto 20,4% se define pardo ou mulato. Do total de universitários da raça negra, 4,5% estudam em instituições públicas. Correio Braziliense, 27/4/2004.

Introdução

Ao longo da história do Brasil são visíveis pelos menos dois processos distintos com referência à interação com o negro: o branqueamento e a miscigenação. Ambos foram frutos de longos debates entre os precursores do pensamento social brasileiro. As políticas e a ideologia do branqueamento tinham como pressuposto a construção de

uma nação majoritariamente branca como desejavam Nina Rodrigues (Skidmore, 1976), Sílvio Romero (Skidmore, 1976; Aguiar, 2000a, b), Oliveira Vianna (Sodré, 1965; Skidmore, 1976) entre outros. Por essa matriz, a população negra era atrasada, não evoluída e representava uma séria ameaça para o futuro do Brasil como afirmava um dos pais das teorias racistas do século XIX, o Conde de Gobineau (Raeders, 1988, 1997). Uma das soluções para a constituição de uma nação desenvolvida seria, então, por meio de uma política migratória, ampliar a presença de brancos no Brasil. Quanto aos negros, conforme o pensamento de Gobineau, o tempo se encarregaria de eliminá-los (Raeders, 1997).1 Hoje, em pleno século XXI, o debate sobre o status social do negro no Brasil não apenas incomoda muita gente como ainda permanece sub-representado na esfera social. Podemos perceber o incômodo do debate sobre o status do negro por meio da recepção da proposta de adoção de cotas raciais para o ensino superior público no Brasil. A aplicação de programas de cotas para negros (pretos e pardos) nos vestibulares das universidades públicas brasileiras tem produzido vários debates no Brasil sobre esse tipo de política pública específica. As reações, como costumam dizer os jornalistas de plantão, são “enfáticas” e “apaixonadas”. Por trás dessas características inúmeros argumentos foram e ainda são apontados tanto para justificar quanto para atacar as proposições de inclusão dos negros no ensino público superior brasileiro, por meio de políticas de ação afirmativa. Neste texto nos debruçaremos sobre a diversidade dos discursos que argumentam dificuldades de implementação de cotas para negros nos vestibulares das universidades públicas brasileiras. Como se perceberá mais adiante, tais argumentos estão mais preocupados em elimi-

1 Gobineau chegou ao contrassenso de vaticinar que o último mestiço brasileiro desapareceria – escrevendo em 1873 – em aproximadamente 270 anos, ou seja, algo como 2143. Fez isto em um artigo em que apontava o Brasil como uma nação próspera para o migrante europeu branco (Raeders, 1997). [ 116 117 ]

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nar a adoção prática das cotas do que compreender sua lógica como política pública necessária à eliminação de desigualdades raciais, de gênero, sociais, entre outras. Visamos especificamente construir uma breve tipologia dos argumentos contra e/ou que apresentam dificuldades de várias ordens à aplicação das cotas para os negros terem acesso ao ensino público superior brasileiro. A classificação dos discursos contra as cotas feita neste trabalho não pretende ser exaustiva. Com certeza essa tipologia que construímos aqui pode ser ampliada. Contudo, construímos nossa tipologia tendo como referência os discursos e/ou falas mais frequentes nas matérias jornalísticas, nos artigos, entrevistas, entre outros, de intelectuais, autoridades públicas e cidadãos comuns. Os argumentos/falas expostos aqui foram tipificados com base em diversas matérias, reportagens e artigos publicados no jornal Correio Braziliense, no primeiro semestre de 2004. Tais matérias cobrem, em geral, a adoção do programa de cotas para negros no vestibular, implementado pela Universidade de Brasília (UnB) no ano de 2003. O debate refere-se, portanto, já ao primeiro processo seletivo utilizando-se do sistema de cotas. Construindo uma tipologia dos argumentos contra as cotas

Os artigos, matérias jornalísticas ou opiniões de cidadãos contra a implantação de cotas para negros em instituições de ensino superior apresentam vários argumentos que são interdependentes e que necessitam uns dos outros para sustentar uma oposição a esse tipo de política. Dentre as linhas de argumentação, podemos indicar pelo menos cinco campos, que assim classificamos: a) campo sociojurídico; b) campo sociorracial/sociabilidade; c) campo sociopolítico; d) campo socioeconômico; e) campo socioeducacional. Esses campos também apresentam alguns desdobramentos, podendo apresentar uma ou mais sublinhas de argumentação. Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

Sabemos que ao proceder a uma classificação podemos ser arbitrários. Primeiro, porque é difícil estabelecer fronteiras mais ou menos nítidas entre os diversos argumentos contidos numa fala, matéria jornalística e/ou artigo de cada indivíduo contrário às cotas para os negros. Como afirmamos, há vários argumentos interligados e interdependentes em uma opinião ou pensamento reflexivo de um indivíduo não favorável às cotas. Contudo, pode-se ver no conteúdo das falas que os indivíduos tendem a enfatizar ou fundamentar sua posição em uma esfera, mesmo que citem argumentos relativos a outras esferas de nossa classificação (a jurídico-legal, a racial, a política, a econômica e a educacional). Além disso, qualquer classificação é, em certo sentido, arbitrária, pois pode haver vários outros tipos de classificação, dependendo do critério adotado. Contudo, a nossa classificação apresenta um fim instrutivo de mostrar qual é, em última instância, o fundamento mais enfatizado em um determinado discurso de oposição à política de ação afirmativa de cotas para os negros nas universidades públicas, além de indicar possíveis contra-argumentações a esses discursos, dentro de cada classificação tipológica que construímos. Essa tipologia pode facilitar a compreensão da retórica contrária às cotas. Sabendo o principal fundamento político-filosófico que está sendo utilizado contra as cotas, podemos desconstruir a retórica antiações afirmativas. Tal maneira de agir, classificando os discursos e tipificando-os idealmente, não significa a renúncia da utilização conjunta de outros argumentos que justificam e defendem políticas de ação afirmativa para os negros. Argumentos de várias esferas podem e devem ser usados interligados, até porque também são interdependentes, para a sustentação de uma política de ação afirmativa. Campo sociojurídico

Caracterizamos como “campo sociojurídico” aquele no qual as falas e argumentos se contrapõem às cotas baseando-se na sua suposta ilegalidade e/ou inconstitucionalidade, por meio de fundamentos [ 118 119 ]

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jurídico-legais. Os argumentos contrários às cotas se fundamentam na esfera jurídica, no direito formal e na neutralidade do Estado. A análise das falas deste campo nos aponta, em geral, para três linhas de raciocínio: o argumento da legalidade ou ilegalidade das cotas; o princípio da isonomia; o discurso da autonomia universitária. A argumentação jurídico-formal parte do pressuposto de que todos os cidadãos brasileiros são iguais perante a lei e, portanto, não pode haver tratamento formal diferenciado. Assim, segundo o fundamento jurídico, uma política pública de cotas que reservasse vagas no vestibular para um determinado grupo racial estaria teoricamente ferindo os princípios legais presentes na Constituição Brasileira. Assim se expressa a seguinte fala: Este negócio de cotas para negros nas universidades públicas, além de ilegal e inconstitucional, é um desrespeito aos próprios negros. Temos que ressaltar a importância dos negros na construção de nosso país e as injustiças de que sempre foram alvos, mas a reserva de cotas é discriminatória. O problema que tem de ser enfrentando é garantir ensino público de qualidade. Aí sim, todos terão as mesmas oportunidades e serão iguais na hora de uma prova. O resto é demagogia e racismo! (Rocha, leitor, Correio Braziliense, 22 de março de 2004).

O pressuposto da legalidade/ilegalidade está nitidamente expresso nas seguintes palavras e/ou expressões: “ilegal”, “inconstitucional”, e “reservas de cotas é discriminatória”. A argumentação se baseia no princípio de que a Constituição brasileira veda a possibilidade de diferenciação e discriminação. Devemos nos perguntar qual é a discriminação vedada em nossa Constituição. A interpretação de proibição de discriminação entre os cidadãos brasileiros na Constituição Federal diz respeito à ideia da discriminação negativa, ou seja, aquela que se refere às práticas de tratamentos injustos aos cidadãos brasileiros, aquela que produz desigualdades na distribuição dos bônus e ônus sociais, econômicos, culturais, Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

políticos, entre outros. Portanto, são proibidos os tratamentos desiguais que levam à segregação de indivíduos ou grupos sociais. Se, por um lado, está vedada a prática da discriminação negativa, por outro, reconhece-se a oportunidade da “discriminação positiva” como mecanismos necessários para reparar distorções socioeconômicas. Portanto, a discriminação positiva (Silvério, 2001) é aceita e até induzida pela nossa Constituição, diante da desigualdade estrutural presente na sociedade, visto que os constituintes de 1988 sabiam que, para alcançarmos uma igualdade formal, faz-se necessário reparar primeiro o problema da desigualdade substantiva. Para que haja a igualdade formal, ou melhor, para que esta não reproduza a desigualdade substantiva, é necessário que a lei trate de forma desigual os desiguais e de forma igual os iguais. A segunda linha argumentativa contrária às cotas do campo sociojurídico é referente ao princípio da isonomia. Ela é complementar ao pressuposto da legalidade/ilegalidade das cotas. Assim são expressos tais argumentos: A possibilidade de que o sistema de cotas acirre a disputa na UnB preocupa candidatos pelo sistema convencional. A vestibulanda Vanessa Meireles da Silva, 20 anos, tentará uma vaga no curso de arquitetura. Ela considera injusta a cota. ‘‘Todos temos a mesma capacidade. Também existe estudante branco sem acesso a educação de qualidade. Desse jeito, os negros sofrerão preconceito no futuro, na faculdade, e a gente é prejudicado agora’’. (Meira, jornalista, Correio Braziliense, 14 abr. de 2004).

O pressuposto da isonomia – de que todos são iguais e devem ser tratados igualmente perante a lei – está contido nos seguintes trechos: “todos temos a mesma capacidade”; “e a gente é prejudicado agora”. Assim sendo, todos devem concorrer em condições semelhantes sem vaga reservada e/ou garantida previamente para nenhum grupo racial. Esse argumento parte da premissa genérica de que no Brasil consolidou-se uma república democrática de direito e de fato. Esta se ma[ 120 121 ]

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terializaria conforme emanam suas leis e normas segundo o princípio racional-legal (Weber, 1982). Supondo os pressupostos anteriores como justos, os processos seletivos eliminariam as discrepâncias subjetivas que poderiam favorecer um ou outro indivíduo ou grupo racial. Porém, como já tivemos a oportunidade de ver anteriormente, é no mínimo duvidoso concluir que existe isonomia em um país marcado pela acentuada desigualdade social, como o Brasil, tão extensamente discutida por vários intelectuais brasileiros (Demo, 1998, 2000, 2003; Hahner, 1993; Singer, 1998), e profundamente marcado pela desigualdade racial também amplamente afirmada vários outros cientistas sociais (Silva; Hasenbalg, 1992; Hasenbalg, 1979, 1993, 1997; Guimarães, 1997). Ainda no campo sociojurídico, podemos observar a argumentação da autonomia universitária. Este é um discurso que se consolidou no campo acadêmico e que vem de uma longa tradição da escola alemã com a criação da Universidade de Berlim em 1810 (Bayer, 1996). Vejamos a fala seguinte: A medida provisória proposta em janeiro pelo MEC [Ministério da Educação], ampliando a autonomia às universidades, e considerada inconstitucional pela Casa Civil, será editada com o patrocínio do atual ministro [da educação]. A tendência é ampliar o percentual de vagas, privilegiando não apenas cidadãos negros, mas também beneficiários do programa Universidade Para Todos. Encerra-se a discussão do programa, busca-se maior simpatia da sociedade, perplexa com as cotas raciais, e tenta-se uma solução legal para os graves problemas gerados pelos dois vestibulares da UERJ-UENF e os anunciados pela UnB. De volta ao começo: pode? (Oliveira, leitor, Correio Braziliense, 20 mar. 2004).

A preocupação com o pressuposto da autonomia está presente no seguinte trecho: “A medida provisória proposta em janeiro pelo [Ministério da Educação] MEC, ampliando a autonomia às universidades [...]”. Embora afirme que a medida provisória amplie a autonomia, nas entrelinhas devemos entender que, para o autor, contrariamente, ela reduz a autonomia. Isto fica expresso quando diz que a primeira havia sido Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

considerada inconstitucional e que a segunda implicaria (apesar da sua dimensão) uma “volta ao começo”. Ou seja, a decisão sobre as políticas afirmativas seria exógena, o que contraria o princípio da autonomia. Contudo, trata-se de um erro grosseiro acreditar que as cotas representam uma agressão à autonomia universitária. O discurso da autonomia está, portanto, ancorado na ideia de que as políticas públicas de promoção de cotas raciais são necessariamente intervencionistas. Todavia, o processo decisório, no caso da UnB, ocorre por meio de consulta aos conselhos e à comunidade acadêmica. Ou seja, não corresponde aos fatos alentados pelo leitor. Sendo assim, como se pode observar, suas críticas não se reportam à defesa da autonomia, já que ela não está em questão, mas se afirma, mais uma vez, na crença de que os negros não devam ter acesso à universidade. Campo sociorracial/sociabilidade

O segundo campo, o sociorracial, aponta para o pressuposto do entendimento de que todos os brasileiros, em qualquer processo seletivo, possuem as mesmas condições sociais de concorrência. Mas o que leva a esse tipo de especulação? Existem várias premissas. Muitos autores já se debruçaram sobre elas, seja para defender, seja para denunciá-las (argumentando, no primeiro caso, sobre como se constituiu uma nação miscigenada; e no segundo caso, sobre a falsa crença de que vivemos em uma sociedade pautada por uma democracia racial). Assim, podemos elencar: a aproximação das raças pelo processo de miscigenação (Freyre, 2000); o pressuposto da democracia racial (Guimarães, 2002); a visibilidade do moreno (Rodrigues, 1995); a longa negação do Estado sobre a existência do racismo (Oliveira et al., 1998). O discurso anticotas, alicerçando-se em tais pressupostos, constrói os seguintes argumentos: 1º. que as cotas não seriam procedimentos adequados, pois todos possuem uma “gota de sangue negro”; 2º. que, assim sendo, não é possível definir quem é negro no brasil; 3º. que as cotas não são justas, pois os pardos não sofrem a discriminação por serem mais claros. [ 122 123 ]

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A ideia de que todos possuem uma gota de sangue negra é uma afirmação “clássica” do senso comum, mas também, de forma ascendente, de matrizes explicativas de base biológica. Por meio do processo de miscigenação, supostamente, havíamos reduzido as distâncias entre brancos e negros: “a miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala” (Freyre apud Quintas, 2005, p. 91). Seguindo esse raciocínio, a miscigenação também tornou todos iguais a partir da afirmação de que, em algum momento histórico, antepassados de cores distintas mantiveram algum tipo de relação, deixando inscrita em seus descendentes sua marca hereditária. Portanto, não seria possível afirmar que determinados indivíduos sejam pretos, pardos e mesmo brancos, mas que a totalidade ou pelo menos a maioria seja composta por miscigenados. Vejamos algumas falas: Para eles [muitos pesquisadores – especialmente do Departamento de Biologia], o código genético da maior parte dos brasileiros carrega herança negra. Os criadores do projeto [José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segatto] rebatem o argumento. Dizem que no Brasil o preconceito está ligado à aparência e não ao DNA. Na semana passada, Homero Dewes, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRS], publicou um artigo no Jornal da Ciência, publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Dewes sugere que novas formas de seleção sejam criadas ao se levar em conta a raça e a renda dos candidatos. Entre eles, a investigação minuciosa da riqueza familiar e a análise laboratorial do genoma do vestibulando. ‘‘Foto só não basta, com freqüência as aparências enganam’’. (Nunes, jornalista, Correio Braziliense, 12 abr. 2004).

Como vimos, a ideia da herança negra está bem delineada nas seguintes afirmativas: “o código genético da maior parte dos brasileiros carrega herança negra”. O autor ainda complementa sobre a possibilidade de “análise laboratorial do genoma do vestibulando”. Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

O fundamento da argumentação da “gota de sangue” nos aponta para uma reafirmação do paradigma da democracia racial. Se esta possibilidade é verdadeira, então, todos se veem, são e devem ser vistos como iguais. Não cabe, portanto, medidas de reconhecimento da pertença racial, uma vez que somos misturados. Tal leitura está bem expressa na seguinte afirmação: [Gilberto Gil, Ministro da Cultura] Acho que é uma boa maneira de corrigir as desigualdades. Estou confiante no sucesso do programa de cotas. Sabemos que há dificuldades de implantação do sistema, porque o Brasil é um país muito misturado. É difícil saber quem é negro ou branco. Mas acredito que os obstáculos serão superados rapidamente. Se tem alunos brancos se inscrevendo como negros para fazer a prova e prejudicar o programa, eles têm que refletir. Eles é que sabem. (Borges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004).

A afirmação dada pelo Ministro da Cultura (Gilberto Gil) – ainda que ele tenha se expressado publicamente favorável ao programa – aponta para um tipo de leitura que nos transporta para o imaginário da mistura racial produtora de igualdade: “o Brasil é um país muito misturado. É difícil saber quem é negro ou branco”. Este pressuposto é um dos pilares do imaginário de que negros e brancos são tratados com igualdade, já que não saberíamos quem é quem. Por meio desse mito é que se edificam as supostas relações amistosas entre grupos raciais distintos no Brasil, enquanto que, em outros países – como nos Estados Unidos –, brancos e negros estariam em “pé de guerra”. Embora o mito da democracia racial tenha sido objeto de diversos estudos pelos mais variados intelectuais e ainda que tenham denunciado os efeitos perversos deste mito, ele ainda é fortemente presente na sociedade brasileira. Segundo Guimarães (2002, p. 168), “morta a democracia racial” – já que fora objeto de reflexão e de desconstrução –, “ela continua viva enquanto mito, seja no sentido de falsa ideologia, seja no sentido de ideal que orienta a ação concreta dos atores sociais, [ 124 125 ]

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seja como chave interpretativa da cultura”. As falas seguintes são emblemáticas ao naturalizarem a mistura racial produtora de igualdade e, ao mesmo tempo, negarem o conflito racial: Nesse negócio de cota para negros na universidade, está aparecendo coisa do arco-da-velha. Daqui a pouco, matrícula, só com DNA. Se não fosse demagogia, na Bahia, onde a maioria é negra, dariam cota para branco. Certo seriam cotas reservadas para alunos do ensino médio da rede pública, seja verde, seja amarelo. (Cunha, colunista, Correio Braziliense, 16 abr. 2004).

A ideia de que não é possível definirmos quem é negro no nosso cotidiano se inscreve na seguinte afirmativa: “daqui a pouco, matrícula, só com DNA”. Por meio dessa fala, as cotas são absurdas, por produzirem discriminação e, mais que isso, reconstruírem a distinção entre os grupos raciais. Embora não haja a afirmação textual, podemos ler o pressuposto da impossibilidade na palavra-chave utilizada para negar as políticas afirmativas: “DNA”. Todos sabemos que a análise genética ou de DNA é um recurso para “ver” o que não seria possível a olho nu. Portanto, como os olhos não veem o DNA, as falas remetem para a ideia de que não é possível definirmos quem é branco ou negro no Brasil. Oliveira et al. (1998) destacaram, no entanto, uma clara distinção de corte racial no Brasil, comprovada por meio de diversas estatísticas, sobretudo as de segurança pública. Segundo dados apresentados pelos autores, a polícia mata três vezes mais negros que brancos. Será isto apenas obra do acaso? Aliado aos pressupostos anteriores – da miscigenação e da democracia racial –, há um terceiro componente, que é o que podemos chamar de “visibilidade do moreno”. Esta linha de raciocínio parte da premissa de que os pardos são menos discriminados que os pretos. Trata-se de leitura que tem sido acentuada por Rodrigues (1995), ao se debruçar sobre os dados levantados pela agência de pesquisas DataFolha. Segundo o autor, “os brasileiros rejeitaram espetacularmente o termo Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

pardo. Apenas 6% dos entrevistados se auto-atribuíram a cor parda em respostas espontâneas” (Rodrigues, 1995, p. 36). Mais adiante afirma: o termo “moreno” enraizou-se de forma altamente positiva na cultura brasileira. É raro ver alguém que não queira bronzear-se no verão para ficar moreno. Mesmo os que não querem ficar morenos tendem a admirar as pessoas que são dessa cor. (Rodrigues, 1995, p. 37).

Tais afirmações sustentam o pressuposto de que os pardos ou morenos não seriam discriminados, mas, ao contrário, vistos positivamente. Por esta premissa, não se justifica o acesso diferenciado para os pardos, uma vez que, por serem mais claros, não sofreriam ou seriam menos discriminados. Mas até que ponto existe essa suposta positividade? Tal situação pode ser presenciada nas entrelinhas da seguinte fala: Ex-aluna de escolas particulares, Fernanda contou ainda com o reforço do cursinho pré-vestibular Galois. Para ser fotografada, a candidata prendeu os cabelos lisos, mas garantiu ter ascendência negra. ‘‘Não avalio as pessoas pela cor. Nunca havia pensado de que raça eu seria. Mas minha avó é negra e também me considero negra’’, justificou. ‘‘Sei que minha foto pode ser reprovada pela comissão, mas tudo bem. Eu quero tentar’’, disse. (Meira, jornalista, Correio Braziliense, 17 abr. 2004).

Como pudemos observar, embora afro-descendente, a aluna imagina que por ser mais clara (ou parda) não seria vista como negra. Assim podemos ler nos trechos seguintes: “Para ser fotografada, a candidata prendeu os cabelos lisos, mas garantiu ter ascendência negra”. No trecho anterior, a fala evidencia que a aluna não apenas demonstra receio como procura indicar a condição racial por meio da reafirmação de seus antepassados. Ela sente a necessidade de “garantir” sua ascendência, já que, para ela, não existem evidências de que pertença ao segmento social dos negros. Consciente ou inconscientemente, ela acaba também por afirmar que, ao longo do processo de miscigenação, e com o clareamento da cor, ela não seria vista mais como negra. [ 126 127 ]

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Assim, também devemos questionar o significado da positividade do “moreno” e quais seus fundamentos: se é em oposição ao preto, se é uma identidade alternativa ou, ainda, se uma busca de identificação com o branco. Embora a aluna tenha traços “negros” como ela afirma, ou seja, seria morena, ela não demonstra o orgulho da morenidade. Campo sociopolítico

Caracterizamos de campo sociopolítico aquele no qual as falas e/ou argumentos nos remetem a cenários sociorraciais negativos. Ou melhor, a um cenário de possíveis conflitos entre negros e brancos, quebrando a suposta harmonia racial brasileira. Neste campo, as falas buscam demonstrar que as políticas públicas de ação afirmativa, como a de cotas, vão aumentar o preconceito e a discriminação racial contra os negros, e entre os próprios negros, mais do que incluí-los no ensino superior. Em última instância, os argumentos contrários às cotas tendem a enfatizar o aumento da discriminação racial contra os afro-brasileiros. Além disso, incluem-se, também, neste campo, argumentos que afirmam que as cotas são um paliativo contra a exclusão dos negros da universidade pública. Portanto, elas tendem ao fracasso. São falas aparentemente preocupadas com a discriminação que os negros podem sofrer, com o seu destino social e a sua suposta defesa no interior das universidades públicas. Em geral, essas falas refletem as proposições políticas, produzem uma análise e proferem um julgamento. Em síntese, tais discursos indicam que: 1º. as políticas de cotas apenas reforçam a discriminação contra os negros; 2º. a aplicação das cotas soaria como uma discriminação ao contrário, ou seja, uma discriminação dos negros contra eles mesmos ou ainda contra os brancos e; 3º. as cotas são apenas um paliativo. O primeiro pressuposto afirma que as políticas de cotas e, consequentemente, de ação afirmativa – visto que a primeira é um tipo de implementação técnica da segunda (Gomes, 2001) –, ao invés de produzirem a inclusão dos negros no ensino superior público, reforçariam a discriminação contra os negros. Isto se daria pelo fato de que os neReflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

gros não ingressariam na universidade pelo suposto mérito individual,2 mas pelo “privilégio racial” das cotas. Os brancos ficariam descontentes com esse “privilégio racial” adquirido pelos negros e discriminariam mais ainda os negros cotistas. Além disso, as cotas supostamente atestariam a incapacidade dos negros de competir em igualdade com os brancos, entre outras argumentações. Longe da fila, cuidadosamente preenchendo o formulário de inscrição, estava a estudante Suzane Sousa Ferreira, de 17 anos, assumidamente negra, aluna de uma escola pública na cidade em que mora. Dois ônibus levaram a adolescente do Novo Gama (GO) até a UnB. Concorrendo a uma vaga no curso de Ciência da Computação, ela chegou decidida: ‘‘Não vou me submeter ao sistema de cotas. Sei da minha capacidade. Não quero favor. Acho que reservar vagas para negros é acentuar mais o preconceito, é como se quisessem confirmar que somos incapazes. Não quero isso pra mim’’. (Abreu, jornalista, Correio Braziliense, 13 abr. 2004).

Por meio dessa fala fica evidente o entendimento de que as políticas afirmativas de cotas raciais para negros seriam mais produtoras de discriminação que de solução para o status social dos negros. Ao produzir esse tipo de argumentação, seus atores afirmam que tais programas políticos não correspondem aos anseios sociais, assim, elas deveriam ser eliminadas, por promoverem maior segregação entre os segmentos raciais e pelo pressuposto de que ocorrerá uma institucionalização do preconceito: “Acho que reservar vagas para negros é acentuar mais o preconceito, é como se quisesse confirmar que somos incapazes”. A fala e seu ator também nos permitem inferir sobre um entendimento a respeito dos paradigmas que deveriam nortear a formulação de políticas públicas. Por meio da fala, podemos compreender pelo menos duas leituras: primeiro, é que a raça não interfere na produção

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Sobre a discussão de mérito individual, ver Santos (2003).

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da desigualdade; segundo, é que as políticas de cotas se assemelham às políticas clientelistas: “Não quero favor”. Pode-se até compreender que uma escola deficiente em qualidade de ensino contribua para ampliar ou perpetuar preconceitos, entretanto, não são apenas as escolas com esta deficiência que propagam o racismo, mas todo o sistema educacional. A Lei 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da temática de “História e cultura afro-brasileira”, é uma prova de que todo o sistema de ensino brasileiro – da rede de ensino público a privada – tem sido eurocêntrica e racista até a presente data (Brasil, Seppir/MEC, 2004; Santos, 2005). As escolas públicas, teoricamente menos qualificadas, atendem à maior parcela dos estudantes de ensino básico da sociedade brasileira, mas as escolas supostamente eficientes, as privadas, que atendem às classes médias e altas, também são produtoras e reprodutoras de discriminação racial. Ou seja, a pertença racial dos alunos condiciona fortemente a sua posição e/ou destino social. Isto é o que leva alguns autores a chamarem a atenção para o fato de que devemos pensar toda a estrutura educacional do país quanto à discriminação racial brasileira (Cavalheiro, 2000; Menezes; Sanchez, 2000; Silva, 2000; Gonçalves; Silva, 2001; Romão, 2001; Santos, 2001). Com referência ao primeiro problema, é importante identificar as políticas de reconhecimento como uma das dimensões da superação da desigualdade. O reconhecimento tem sido visto como um instrumento necessário para a superação ou redução de desigualdades, sobretudo pela percepção de que determinados grupos, ainda que incluídos no plano econômico, continuam, no plano social ou da sociabilidade, sendo sistematicamente discriminados em função da sua cor/raça e sexo, como os negros e as mulheres (Fraser, 2001, 2002). Em relação à suposta política clientelista de cotas para negros, é importante compreender as várias possibilidades das políticas públicas e a dimensão de seus objetivos. Não se faz uma política pública pensando na situação deste ou daquele indivíduo, mas desta ou daquela população. As políticas clientelistas têm por princípio a manutenção Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

da dependência, enquanto as políticas de ação afirmativa objetivam a autonomia de agrupamentos sociais, bem como a superação da discriminação racial, entre outras (Gomes, 2001). Diferentemente do entendimento comum, tal política de discriminação positiva não objetiva inverter a estrutura de dominação racial historicamente existente no Brasil, favorecendo o grupo racial negro em detrimento do grupo racial branco. O que se busca com a discriminação positiva é a igualdade real. Essa não pode ser apenas formal, tem de ser também substantiva. Por fim, se a proposição de qualquer política de cotas aos grupos socialmente segregados representa um tipo de discriminação, este é um caso típico de discriminação positiva estabelecida na Constituição brasileira. Deve-se destacar que tal tipo de prática se insere em um modelo de ação político-jurídica que objetiva reduzir ou eliminar discriminações negativas socialmente construídas que a neutralidade do Estado não desconstrói. Para superar as discriminações negativas, aquelas que segregam ou reforçam injustiças contra as inadvertidamente chamadas minorias, conforme expressão de Mello (2001), é que se estabelece o que se denominou “discriminação positiva” ou “discriminação benigna” (Van den Berghe, 2000). O segundo pressuposto do campo sociopolítico aponta para a ideia de que tais práticas políticas – de cotas para negros – criariam uma discriminação ao contrário. Entende-se aqui que, ao invés da histórica discriminação contra negros, teríamos, com as cotas, uma discriminação contra brancos ou mesmo dos negros contra eles mesmos. Fernanda do Amaral Graça, 20, não conseguiu uma vaga nos cursos de Biologia e de Medicina Veterinária da única universidade pública de Brasília. Este ano, ela resolveu fazer o vestibular para Química. Acredita que com o sistema de cotas terá mais chances, apesar de considerar o método preconceituoso. ‘‘Optei por ele porque estou desesperada. Mas parece que a gente [os negros] foi rebaixado’’, diz a garota, que mora com um tio na 411 Norte. (Alves, jornalista, Correio Braziliense, 26 maio 2004). [ 130 131 ]

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Gostaria de inicialmente recuperar um trecho citado anteriormente, em que o jornalista Ari Cunha afirma: “Se não fosse demagogia, na Bahia, onde a maioria é negra, dariam cota para branco” (Correio Braziliense, 16 abr. 2004). O jornalista se utiliza do discurso irônico como forma de indicar um suposto processo de inversão do preconceito racial. Ou seja, um preconceito contra os brancos. O discurso da inversão do preconceito também está sub-repticiamente presente nas falas que afirmam que o certo é dar cotas para pobres, pois existem muitos brancos pobres que também não possuem condições. Não temos dúvidas de que os brancos pobres não possuem as mesmas condições que os brancos ricos. Porém é importante destacar que uma política de cotas raciais não é um impedimento para criação de políticas em benefício dos pobres. Também é importante destacar as tentativas sutis de transformar o discurso favorável às cotas raciais como um discurso discriminatório contra os brancos pobres, portanto, uma discriminação ao contrário. A fala anterior reforça a ideia do discurso da discriminação do negro contra ele próprio. Ao se autodiscriminarem, os negros criam uma ruptura com sua própria identidade. Eles negariam o outro semelhante, ou seja, o próprio negro. “Apesar de considerar o método preconceituoso, ‘optei por ele [sistema de cotas] porque estou desesperada. Mas parece que a gente [os negros] foi rebaixado’”. A afirmação indica que, ao aceitarem o processo (se inscrever no vestibular) das cotas, os negros se colocam como inferiores, noutras palavras, não se reconhecem como sujeitos historicamente discriminados e que não tiveram e ainda não possuem as condições sociopolíticas de concorrerem de forma equânime no mundo social. Assim, aceitar o sistema de cotas equivale a se colocarem numa posição de inferioridade e, portanto, de autodiscriminação. A sustentação desses discursos baseia-se na consciência discursiva (Giddens, 1991) brasileira de que todos são iguais racialmente. Ou seja, na consciência discursiva brasileira negros e brancos vivem em harReflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

monia racial no nosso país. Não havendo hierarquia, nem dominação racial, a seleção deve ocorrer por meio do sistema de vestibular, em que, supostamente, prevalece a hierarquia do mérito individual. Entretanto, tais discursos, impregnados de pressupostos que sustentam a ideologia da democracia racial brasileira, não fazem uma análise histórica da condição dos negros no Brasil e não contextualizam as suas condições sociais de existência. Tais discursos estão desconectados da consciência prática (Giddens, 1991) dos brasileiros, do racismo no cotidiano, que pode ser diagnosticado por meio das estatísticas oficiais e não oficiais que incluem o quesito cor/raça (Brasil, IBGE, 1990; Instituto Sindical, 1999; Brasil, Ipea, 2003). Aceitar ações afirmativas para negros pode ser um perigo, porque pode conectar a nossa consciência prática à nossa consciência discursa, causando conflitos até entre os próprios indivíduos que negam discursivamente o racismo, mas que o praticam diariamente. Todavia, aqui já não é a percepção de “ser discriminado”, mas perceber sua “condição de sujeito historicamente discriminado”, ou seja, ter consciência de sua identidade. O terceiro pressuposto do campo sociopolítico compreende as políticas de cotas como formas paliativas que não solucionam os problemas raciais no Brasil. Partindo dessa premissa, negam as possibilidades das cotas como uma forma legítima de questionamento do pressuposto da democracia racial e de uma possível proposta de política pública entre tantas outras que podem estar articuladas para a eliminação do racismo brasileiro. O que democratiza o acesso ao ensino superior é ensino público de qualidade a partir do primeiro ano escolar. Isso vale para qualquer país. Na melhor das hipóteses, a idéia do governo de reservar metade das vagas em faculdades e universidades federais para alunos que tenham cursado todo o ensino médio em escola pública, além de negros e índios, pode funcionar como paliativo. Ainda assim, deve-se cuidar para que não termine por comprometer o nível acadêmico de instituições nacionais de excelência. (Correio Braziliense, Editorial, 15 maio 2004).

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A palavra “paliativo” pode ser lida como uma demonstração de que muitas pessoas são contra as cotas para a inclusão dos negros nas universidades porque acreditam que elas não resolvem o problema da exclusão dos negros do ensino superior público. Ou seja, ao que parece essas pessoas são contra as cotas porque constituem uma proposta que não resolve a questão. Antes de o movimento negro apresentar propostas de ações afirmativas para negros ingressarem no ensino superior público, por meio dos seus intelectuais orgânicos e do apoio dos intelectuais antirracistas, não se cogitava nenhuma outra proposta de inclusão dos negros na universidade pública. Agora, muitos querem fazer a “verdadeira” justiça; são contra as cotas porque acham que elas são apenas um paliativo diante das necessidades dos negros. Não se propôs nada anteriormente e quando surge uma proposta possível e necessária, entre outras, para a inclusão dos negros no ensino superior público, manifestam-se contra ela, porque ela não soluciona o problema. Parece um ou tudo ou nada, um ame-o (o ensino superior) como ele está ou deixe-o. Os proponentes de ações afirmativas, como cotas, para os negros têm consciência de que elas não são a panaceia para os negros no que tange à sua histórica exclusão do ensino superior público. As ações afirmativas são um meio, não o único, urgente e necessário para incluir e/ ou mitigar a ausência dos negros do ensino de qualidade as universidades públicas brasileiras. Ao que parece, a exigência do máximo, ou melhor, da solução do problema, é em realidade uma proposta de negação de qualquer inclusão urgente dos negros no ensino superior, visto que no “tudo ou nada” não há negociação, acordos, e não se fazem mudanças sociais sem negociação ou acordos entre as partes interessadas. Campo socioeconômico

O campo socioeconômico é um dos que apresenta o maior número de referências de argumentos contra as políticas de cotas. As bases argumentativas contra as cotas para os negros são fundamentadas principalmente no condicionamento econômico do destino social dos Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

indivíduos. Reconhece-se que os negros estão excluídos do ensino público superior, mas sustenta-se que essa exclusão é consequência da pobreza a que eles estão submetidos e não do racismo contra os negros. Essas bases argumentativas podem ser sistematizadas em duas linhas de raciocínio: 1º. o problema está nas condições de pobreza predominantes no país; 2º. o sistema de cotas deveria ser para os oriundos da escola pública. No primeiro caso temos o que chamaremos de argumentos de base econômica. Para uma parcela daqueles que discursam contra as cotas o problema da ausência dos negros no ensino superior deve ser resolvido por meio de políticas de combate à pobreza. Assim, proclamam: Imaginem um jovem de cor preta, rico como alguns milhares existentes no Brasil, chegando às portas da universidade federal para concorrer a uma das vagas disponíveis. Estaciona seu belo carro e se apresenta: descontraído, saudável e bem vestido. O nosso personagem, que não é nenhuma ficção, tem bons motivos para a confiança que transpira, ao contrário da maioria insegura. Além dos estudos nas melhores escolas particulares, já tem assegurado um precioso apartheid: concorrência especial qualificada pela cor, ainda que em detrimento da maioria dos candidatos, inclusive aos seus pares bem mais pobres advindos de escolas públicas. Ora, qualquer competição é firmada no princípio das oportunidades iguais, cláusula precípua para que o aferimento dos vitoriosos se comprove por méritos próprios. (Soares, leitor, Correio Braziliense, 31 mar. 2004).

A base argumentativa das falas anteriores parte do pressuposto de que a solução do problema da exclusão dos negros do ensino público superior é determinada ou fortemente condicionada pela renda (ou classe social) do vestibulando. A exclusão dos negros do ensino superior público tenderia a cair ou sumir na medida em que os negros melhorem suas condições econômicas. A suposta prova disto estaria na segunda citação, em que se busca demonstrar que negros ricos, “como alguns milhares existentes no Brasil”, têm vaga [ 134 135 ]

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garantida na universidade. Se for verdade, por um lado, que existem milhares de jovens negros ricos, como afirma o autor da citação, por outro, não é verdade que existem milhares de jovens negros nas universidades públicas. Uma comprovação disso pode ser encontrada nas estatísticas do antigo provão. Conforme dados do Inep (2002), dentre os estudantes que participaram do sistema de avaliação do ensino superior, o “Provão”de 2001 revela que, quanto à descendência étnica, a maioria dos graduandos de todas as áreas [dentre os 20 cursos avaliados] considerou-se branca. As áreas com maior incidência dos que se declararam brancos foram Odontologia (84,9%) e Administração (82,4%); as áreas de Letras (68,6%) e Física (69,4%) apresentaram os menores percentuais. (Inep, 2002).

Já na avaliação do ano seguinte, o Inep avaliou 24 cursos de ensino superior. Dentre os cursos que indicaram percentuais de participação de brancos acima de 80%, destacam-se: Administração, 81,6%; Arquitetura, 84,5%; Direito, 83,1%; Engenharia Civil, 81%; Engenharia Mecânica, 81,8%; Engenharia Química, 81,7%; Farmácia, 83,5%; Jornalismo, 81,1%; Medicina, 80,6%; Medicina Veterinária, 85,6%; Odontologia, 85%; e Psicologia, 82,4%. Os cursos que apresentaram os menores percentuais foram: História, 60%, e Matemática, 64,4% (Brasil, Inep, 2002). Portanto, além de os dados do Inep indicarem que a maioria esmagadora dos concluintes do ensino superior seja de brancos, deve-se acrescentar ainda que, conforme dados do IBGE (Censo 2000), os brancos representam 53,7%, enquanto que os negros somavam 75 milhoes de pessoas, ou seja, 44,6%. Portanto, temos uma evidente demonstração da desigualdade de acesso entre brancos e negros ao ensino superior. Com base nos argumentos econômicos, podemos inferir que o preconceito e a discriminação no Brasil recaem sobre os pobres, independente do seu grupo racial de pertença. Ou seja, a discriminação é Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

determinada pela classe social. Consequentemente, o negro é discriminado não porque é negro, mas porque é pobre. É a sua condição de classe que condiciona fortemente o seu destino social. A cor/raça não tem peso no seu destino social. Essas inferências nos levariam a concluir que não existe racismo, já que a discriminação contra os negros é de classe, ou seja, de base econômica. Assim, os negros ricos não seriam discriminados racialmente e brancos pobres e negros pobres concorreriam em pé de igualdade na sociedade. Consequentemente, viveríamos em uma democracia racial. Então para que cotas raciais? Entretanto, os fatos denunciam a existência de racismo no Brasil. Tais episódios são reconhecidos e divulgados não só pelos intelectuais antirracistas, mas pelo governo brasileiro também (Cardoso, 1997). Não resta dúvida, numa sociedade de classes e rigidamente hierarquizada, de que os negros pobres são discriminados por serem pobres. Mas também não resta dúvida de que, numa sociedade racista como a brasileira, os negros são discriminados por serem negros e não apenas por serem pobres. Negros (pretos), por exemplo, são muito mais revistados (48%) que brancos (34%) ou mesmo pardos (46%) (FSP, 1997 apud Oliveira et al., 1998). Portanto, os argumentos estritamente de base econômica são insuficientes para explicar a exclusão dos negros do ensino público superior brasileiro. A segunda linha de argumentos de corte socioeconômico, da mesma forma que o discurso de ordem estritamente econômico, aceita em parte o princípio das cotas, desde que elas sejam direcionadas para os “desfavorecidos, os pobres, os classicamente excluídos”. Assim, os argumentos de ordem econômica apontam os pobres como os potenciais e legítimos beneficiários de uma política afirmativa de cotas de inclusão no ensino superior público, especialmente aqueles que estudaram em escolas públicas. Portanto, o critério para ser beneficiado por uma política de ação afirmativa seria de classe, associado ao estudo em escola pública, visto que no Brasil de hoje a maioria dos alunos das escolas públicas brasileiras é oriunda de famílias de baixa renda. [ 136 137 ]

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Mas a discussão sobre o sistema de reserva de vagas está longe do fim. O debate agora é em torno de cotas para alunos de escolas públicas. ‘‘Se for para dar prioridade, por que não oferecer aos alunos de escola pública?’’, questiona a professora de genética humana Maiana Zatz, do Departamento de Biologia da Universidade de São Paulo (USP). (Meira, jornalista, Correio Braziliense, 18 abr. 2004).

Esta citação afirma que são os pobres, independentemente de sua cor/raça, que devem ser beneficiados pelas cotas nos vestibulares das universidades públicas. A premissa é de que negros e brancos pobres estão regularmente presentes no ensino público e de que ambos possuem as mesmas dificuldades de acessar o ensino superior. De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as diferenças entre brancos e negros nos níveis médios e superiores, tanto de acesso quanto de sucesso, permanecem muito grandes e os indicadores não apresentam trajetórias convergentes (Brasil, Ipea, 2003). Ainda segundo os dados do Ipea (Brasil, 2003), o percentual de negros que não frequentam a escola é muito alto. No ano de 2001, por exemplo, havia 4% de cidadãos negros em idade de 7 a 13 anos não frequentando a escola, contra 2% das pessoas brancas. Na idade de 14 a 17 anos, o percentual dos cidadãos negros salta para 19%, contra 13% dos brancos. Já os dados sobre analfabetismo entre negros e brancos revelam uma forte disparidade: enquanto temos um percentual de 2% de brancos analfabetos na idade de 15 a 24 anos, os negros apresentam um percentual de 6,2%, ou seja, mais que o triplo. Entre as pessoas de 25 anos ou mais, com pelo menos oito anos de estudo (o suficiente para concluir o ensino fundamental), 45,6% são brancas enquanto somente 27,9% são negras. Entretanto, ao elevarmos para onze anos de estudo (o suficiente para concluir o ensino médio e, portanto, aspirar ao ensino superior), o percentual de brancos cai para 14% e o de negros é reduzido drasticamente para apenas 3,8% (Brasil, Ipea, 2003). Assim, mesmo que as cotas sejam indicadas, prioritariamente, para o ensino público como um procedimento mais demoReflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

crático segundo o argumento fundamentado na exclusão econômica, ainda veremos os negros alijados do acesso ao ensino superior, visto que, entre os classicamente excluídos, os negros são os mais afetados. Campo socioeducacional

O campo socioeducacional é caracterizado por argumentos que tendem a enfatizar fortemente a ausência de ensino público de boa qualidade como o fator determinante da exclusão dos negros do ensino público superior brasileiro. Em última instância, para este campo, bastaria melhorar a qualidade da escola pública que os negros seriam incluídos nas universidades públicas brasileiras. Esse argumento é o que predomina. Ele é recorrente e aparece interligado com os outros campos das tipologias que construímos. Ancora-se no pressuposto de que o acesso aos cursos de nível superior se dá por meio do mérito individual e que este não pode ser quebrado. Por meio do princípio do mérito, todos serão avaliados e todos aqueles que ultrapassarem a linha de corte serão aprovados. Assim, todos aqueles que não passam no vestibular supostamente não possuem qualidades para ingressar no ensino. Diante do quadro atual em que muitos ficam de fora do ensino superior público, caberia ao Estado tão somente ampliar os investimentos nos ensinos público fundamental e médio, de forma que os futuros vestibulandos, sejam negros, brancos, ricos ou pobres, possam concorrer em pé de igualdade. Assim apontam os discursos: 1º. a ausência do negro no ensino superior é decorrência, sobretudo, da deficiência do ensino fundamental e médio; 3º. o fundamento do mérito deve ser preservado, acima de tudo. No primeiro caso – deficiência do ensino fundamental –, muitos daqueles que se professam contra a prática das cotas indicam dois campos de possibilidades para ampliar o acesso dos negros ao ensino superior: estabelecimento de uma política de universalização do ensino fundamental e médio; melhora da qualidade do ensino público. Vejamos alguns desses discursos: [ 138 139 ]

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É pouco. Muito pouco. A política de cotas tem o mérito de oferecer novo paradigma às classes desprivilegiadas. O estudante pobre, ao ver-se representado nas universidades de prestígio, pode sonhar ascender àquele patamar. E empenhar-se para chegar lá. É importante, porém, não esquecer um pormenor de extrema importância. O governo precisa cuidar da base. É o ensino fundamental e médio que responde pela qualidade do profissional. Enquanto a escola pública for incapaz de alfabetizar as massas, ensinar meninos e meninas a fazer as quatro operações, incluir os jovens no mundo digital, o país continuará a aumentar o estoque dos excluídos. (Correio Braziliense, Editorial, 29 mar. 2004).

Por meio da leitura da fala anterior podemos observar que o discurso transparece de forma pouco convincente em relação às políticas afirmativas. Não se aceita a política de cotas para os negros, mas elas são aceitas para as “classes desprivilegiadas”. Em um dos trechos significativos podemos ler: É o ensino fundamental e médio que responde pela qualidade do profissional. Enquanto a escola pública for incapaz de alfabetizar as massas, ensinar meninos e meninas a fazer as quatro operações, incluir os jovens no mundo digital, o país continuará a aumentar o estoque dos excluídos.

Temos, assim, uma reafirmação de que a exclusão dos negros do ensino público superior não tem nada a ver com a discriminação racial, mas com problemas referentes à ausência de qualidade e universalidade do ensino público básico. Entende-se que o problema da ausência dos negros no ensino superior deve ser resolvido por meio do melhoramento da qualidade do ensino fundamental e médio. Assim, igualando-se as oportunidades educacionais, o restante acontecerá. Ou melhor, os negros, bem como os pobres em geral, terão acesso ao ensino público de terceiro grau. O argumento da deficiência dos ensinos fundamental e médio é recorrente. Não são poucos os autores que indicam esta falha na educação Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

brasileira. A proposta de melhora da qualidade do ensino básico é consensual também para os intelectuais e militantes antirracistas que propõem uma política de cotas. Mas há uma diferença importante: aqueles que propõem uma qualificação dos ensinos fundamental e médio excluem as políticas de cotas para negros. A dinâmica de um país complexo como o Brasil não pode se prender a esta ou aquela proposição política para inserção social, mas buscar uma multiplicidade de políticas. Assim, compreendemos que a política de cotas deve ser uma entre várias outras políticas de ação afirmativa para os negros no ensino público superior brasileiro. De modo algum ela implica a subtração de políticas de investimento na qualificação dos ensinos público fundamental e médio. A visão excludente das políticas de cotas em favor de uma qualificação do ensino fundamental parte de falsas premissas, desenvolve falsas inferências e chega a conclusões também falsas: a) de que a situação dos negros no Brasil atualmente é razoavelmente confortável (suficiente para que possam esperar as “boas novas” das políticas de universalização do ensino fundamental); b) que o problema é estritamente de formação escolar (portanto descarta a hipótese de existência do racismo interferindo na vida dos estudantes negros); c) consequentemente, que não existe racismo nas escolas públicas e privadas brasileiras; d) que inexiste (salvo a precariedade escolar) distinção entre negros pobres e brancos pobres e entre estes e os ricos diante de um processo seletivo para o ensino superior; e) que a história das políticas públicas educacionais aponta para um processo de universalização, portanto, caminha para a inclusão de todos sem distinção. Nessa perspectiva é que se afirma, como fez um leitor em carta ao jornal: Este negócio de cotas para negros nas universidades públicas, além de ilegal e inconstitucional, é um desrespeito aos próprios negros. Temos que ressaltar a importância dos negros na construção de nosso país e as injustiças de que sempre foram alvos, mas a reserva de cotas é discriminatória. O problema que tem de ser enfrentando é garantir ensi[ 140 141 ]

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no público de qualidade. Aí sim, todos terão as mesmas oportunidades e serão iguais na hora de uma prova. O resto é demagogia e racismo! (Rocha, Correio Braziliense, leitor, 22 mar. 2004).

É evidente que por trás desses discursos opera um convincente processo ideológico, ou seja, de que vivemos em uma sociedade racialmente democrática. Assim, torna-se necessário muito esforço intelectual para reconhecer que tais premissas são falsas. Para comprovar a falsidade dessas afirmações é necessário trabalhar com diversos exemplos e referências de pesquisa. As inferências neste campo objetivando construir um discurso contra as cotas ainda são pouco consistentes, todavia, o discurso ideológico é muito poderoso. Somente com a negação do racismo é que se pode afirmar que os negros alcançarão o ensino superior, bastando, para tanto, uma intervenção no ensino básico. Albernaz, Ferreira e Franco (2002), em análise da base de dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB – de 1999, além do nível socioeconômico, perceberam a existência de três outras variáveis que exerciam efeitos estatisticamente significativos sobre o desempenho estudantil: a) histórico escolar; b) gênero e, c) raça. Nas palavras dos autores: Este efeito negativo da cor sobre o rendimento escolar, mesmo após o controle pelo nível sócio-econômico, constitui um resultado altamente preocupante para aqueles interessados em reduzir a desigualdade de oportunidades no Brasil. O negro brasileiro parece não só ter menos chance de estar na escola, mas, além disso, os que chegam à escola, e aí logram permanecer, parecem ter um desempenho pior do que seus colegas brancos, mesmo controlando pelo nível sócio-econômico. (Albernaz; Ferreira; Franco, 2002, p. 14).

A pesquisa de Albernaz, Ferreira e Franco (2002) demonstra que os discursos que indicam que os negros terão mais chances com a melhoria ou universalização da educação básica é um mito. Isto porque a marca do racismo e da desigualdade não desaparece com a entrada Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

na escola. Ela permanece por toda a vida dos indivíduos. O racismo e a desigualdade constituída a partir dele devem, assim, ser enfrentados questionando o racismo e não fazendo de conta de que ele não existe. No que diz respeito ao segundo item do campo socioeducacional (crença de que basta melhorar e universalizar a educação básica), temos a defesa sistemática de destacados membros da chamada elite intelectual brasileira. Assim se expressam: [Paulo Alcântara Gomes, presidente do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras] Não sou contra, nem a favor. Primeiro, devemos pensar na raiz do problema. Os processos de admissão são realizados com base no mérito. É preciso melhorar o ensino fundamental e o médio para que todos tenham as mesmas oportunidades de concorrência. A partir do momento que há qualidade no ensino básico, é possível identificar onde estão os bolsões que não foram atendidos e implementar políticas para atendê-los. Uma quantidade enorme de jovens não tem acesso à universidade, independentemente de raça ou condição social. (Borges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004). [José Goldemberg, secretário do Meio Ambiente de São Paulo, ex-reitor da Universidade de São Paulo – USP e ex-ministro da Educação] Sou radicalmente contra. O vestibular é um concurso público e, como tal, seleciona por mérito. O maior problema é a pobreza que atinge a sociedade brasileira e, em especial, os negros. Eles não têm oportunidade de competir em igualdade de condições com os outros. Adotar cotas, pura e simplesmente, é uma medida certeira para degradar o nível das universidades públicas – porque serão aceitos alunos menos qualificados –, que não vai resolver séculos de discriminação econômica e até racial. Ao contrário, o racismo será oficializado. (Borges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004).

A ideia de mérito está claramente evidenciada nas frases seguintes: “Os processos de admissão são realizados com base no mérito”; “O vestibular é um concurso público e, como tal, seleciona por mérito”; “Adotar cotas, pura e simplesmente, é uma medida certeira para degradar o nível das universidades públicas”; “porque serão aceitos alunos menos [ 142 143 ]

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qualificados”. Assim, segundo as falas dos entrevistados, a qualidade do ensino superior cairá com a implantação das cotas, pois na seleção para o ensino superior deve prevalecer o princípio da meritocracia, em que todos os indivíduos devem vencer pelas suas próprias capacidades. Se inicialmente a lógica meritocrática transparece como uma defesa da igualdade, seu fundamento, no entanto, é marcado pela distinção. Ou seja, os indivíduos são vistos como portadores de diferenciadas capacidades e que serão reveladas por meio de uma seleção. Aqueles que possuem mais mérito para a função em disputa serão recrutados. E isto é não só legítimo como legal para os que são contrários às cotas raciais. Todavia, não se deve esquecer que o mérito calcula apenas as condições instantâneas dos indivíduos em um determinado momento. Parte-se do pressuposto de que todos possuem as mesmas condições. Entretanto, para que haja igualdade, de fato, todos deveriam ter o mesmo padrão social e de acesso aos benefícios sociais ao longo da vida. Evidentemente, isto não existe nos processos seletivos que envolvem negros e brancos no Brasil. O racismo condiciona o desempenho de negros (negativamente) e de brancos (positivamente) nos processos seletivos. Além disso, para vários analistas que se debruçaram sobre a formação nacional, no Brasil não se implantou uma estrutura burocrática que, em última instância, sempre se pautou pela seleção íntegra, do seu corpo por meio do mérito. O que prevaleceu foi uma variante do modelo tradicional, o patrimonialista (Faoro, 1979; Buarque de Holanda, 1994). Tal modelo põe em xeque não apenas o discurso de que no Brasil prevalece a seleção baseada nos princípios racional-legais, como também a existência de oportunidades e tratamento semelhantes para todos. É preciso, por fim, desconstruir a ideia de mérito. Embora não com o objetivo explícito de desconstrução deste pressuposto, o Programa de Avaliação Seriada (PAS), desenvolvido pela Universidade de Brasília, surgiu a partir de inúmeros questionamentos sobre a real eficácia do sistema de vestibular. De acordo com as linhas norteadoras do PAS, o vestibular tradicional direciona os estudantes para a prática da “decoração” e não da Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

construção de um conhecimento em si. Tem-se, portanto, uma ação reflexiva e prática que questiona o fato de que o vestibular, de fato, seleciona os “melhores”. Questiona-se, assim, o mérito. A experiência do PAS, sem dúvida, surge como uma experiência mais democrática de acesso, mas não faz, todavia, justiça aos negros, porque as práticas racistas não permitem que eles cheguem em maior número ao final da educação básica. Conclusões

Apontamos, ao longo do texto, inúmeras falas contrárias à implantação de um sistema de cotas. Tentamos demonstrar como elas podem se enquadrar em quatro grandes campos discursivos. Talvez fosse adequado, todavia, destacar ainda um último campo para as falas que não foram representadas neste texto. Referimo-nos às falas favoráveis às cotas. Elas poderiam se situar no que chamamos de campo simbólico. Negar as cotas possui muito mais significado, o que não nos permite vê-las como simples argumentações cotidianas. Mas defender a implementação das cotas também tem significados e que também precisam ser explícitos. Há certamente, e esta é a aposta de todos os defensores das cotas raciais, de se constituir e consolidar um forte valor simbólico que seja capaz de romper com as precárias condições sociais dos negros no Brasil e no mundo. Uma boa representação das falas ausentes pode ser lida nas palavras de Marco Aurélio de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ao afirmar que o Estado deve tomar iniciativas que garantam tratamento igualitário aos brasileiros, para saldar dívidas históricas com as, impropriamente chamadas, minorias. Um ônus que é de toda a sociedade. A igualdade é um direito previsto na Constituição. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar as mesmas oportunidades. A correção das desigualdades é possível. Por isso, a postura dos legisladores deve ser, sobretudo, afirmativa. Acho que as cotas são o primeiro passo nesse caminho. É necessário aumentar o acesso à educação. (Borges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004). [ 144 145 ]

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Pelas palavras do ministro e ex-presidente do STF, Marco Aurélio de Mello, o Estado não apenas pode como deve produzir mecanismos que “garantam tratamento igualitário aos brasileiros”. Tal prática torna-se necessária, sobretudo, quando percebemos que as políticas públicas até o momento têm se mostrado incapazes de sanar as disparidades entre os mais variados segmentos sociais, especialmente entre negros e brancos. Só para termos um parâmetro da desigualdade, segundo os dados do Ipea, com relação à distribuição de renda, a maior parte dos negros está concentrada nas faixas mais pobres. Ou seja, se pegarmos os 10% mais pobres do país, veremos que 70% deles são negros. Contrariamente, se pegarmos os 10% mais ricos, verificaremos que 90% deles são brancos (Ipea, 2003). Diante desses números, podemos afirmar seguramente que a pobreza no Brasil tem uma cor/raça predominante, a negra, e que os ricos são majoritariamente brancos. Se um dos maiores receios dos anticotas é que sua implementação constituiria uma sociedade racializada, os dados do IPEA demonstram claramente, que ela, há muito tempo, está racializada. Analisando os microdados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) de 1999, Jaccoud e Beghim (2002) constataram que a renda per capita dos braços equivale a R$ 352,00. Bem acima da média nacional, que é de R$ 257,00, e muito mais alta que a renda per capita dos negros (pretos e pardos), R$ 156,00 por mês ( Jaccoud; Beghim, 2002, p. 21). Na mesma pesquisa da PNAD, tomando os dados sobre educação, se verifica que a taxa de analfabetismo entre os brancos é de 8%, ao passo que a dos negros chega a 20%. Finalmente, ainda trabalhando os dados da PNAD, as autoras demonstram que a taxa de matrículas líquidas no ensino fundamental nas séries iniciais (1ª. a 4ª.) para brancos é de 98%, enquanto que, para negros, é de 95%; já nas últimas séries (5ª. a 8ª.), as matrículas de brancos caem para 75%, enquanto que as dos negros descem para 50%. Os dados são mais drásticos à medida que sobem para o ensino médio. Nele, as taxas de matrículas Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

líquidas dos brancos correspondem a 45%, mas as dos negros representam apenas 22% ( Jaccoud; Beghim, 2002). Como pudemos observar nos dados de Jaccoud e Beghim (2002), existe uma distância significativa entre o acesso de negros e de brancos nos distintos estágios da educação básica. Que dirá no ensino superior! Contudo, se reconhecermos a educação como um dos poucos mecanismos legais de acesso a uma qualidade de vida melhor, então devemos concluir que essa disparidade de acesso tem sido um dos pilares da desigualdade. Assim, em primeiro lugar, o que se percebe ao longo da exposição das várias falas publicadas pelo Correio Braziliense contra as cotas para negros (ainda que subliminarmente presente nas entrelinhas) é que perpassa na sociedade uma forte tendência a não aceitar, sobretudo, por aqueles mais escolarizados, a partilha do universo intelectual. Para muitos dos indivíduos escolarizados, construir uma carreira alicerçada em uma formação de ensino superior foi um caminho para se diferenciar. Logo, abrir a universidade para negros será como torná-lo igual a muitos a que ele não gostaria de se igualar. Em segundo lugar, a sociedade ainda está fortemente assentada sobre o paradigma da ideologia da democracia racial brasileira, segundo a qual negros e brancos vivem em harmonia e têm as mesmas oportunidades e tratamentos. O que os diferencia e os torna desiguais nas disputas por bônus sociais é a sua renda ou classe social e não a diferença de cor/raça. Portanto, qualquer prática de política de cotas apenas tenderia a distorcer as relações supostamente de equilíbrio e igualdade já estabelecidas entre negros e brancos no Brasil. Consequentemente, quando se observa algum entendimento sobre as distinções entre os dois grupos raciais – brancos e negros –, há, em geral, um indicativo para a fuga do debate sobre a questão racial brasileira, recaindo-se imediatamente no plano da desigualdade econômica. Aqui algumas falas reconhecem que os negros compõem uma parcela representativa dos pobres, porém reafirmam o [ 146 147 ]

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pressuposto da democracia racial, ao indicarem que as cotas para negros seriam injustas para com os brancos pobres. Pode-se constatar que existe uma expressiva resistência em reconhecer o efeito do racismo na constituição das relações sociais. Entende-se claramente o discurso contra a pobreza e sobre a escola pública, mas “magicamente” a sociedade brasileira, marcada por uma forte disparidade entre negros e brancos, em função do racismo contra os negros, não deve nada à estrutura racial construída desde a fundação da ordem escravocrata brasileira. Ou seja, acabam por sugerir que esqueçamos o corte racial, pois a raça em si não produz uma distinção real nas condições sociais. Berger (1998) afirmava: “o passado nos governa”. Nesta afirmação ele se refere aos valores que guardamos como herança de nossos antepassados. De acordo com os dados do Ipea (2003), as condições econômicas também se perpetuam: As desigualdades raciais observadas no Brasil de hoje nada mais são que o resultado das brutais desvantagens originais geradas pelo regime escravista, transmitidas através das gerações, reforçadas pela ação de discriminações e preconceitos racistas, que também foram forjados no passado, mas que continuam vivos e atuantes.

Ao que parece, existe um forte receio da sociedade, da intelectualidade e das autoridades em debater a questão racial no Brasil. O “bolo” das riquezas não deve ser repartido. Para tanto, se difundiu a tese de que o brasileiro tem uma alma cordial. Da mesma forma, não se deve repartir o “bolo” cultural. Assim, cria-se e difunde-se a ideologia da democracia racial. É preciso, portanto, construir um novo paradigma de relações sociais que permita aos diferentes segmentos da sociedade a possibilidade não apenas de ascensão social, mas de reconhecimento de sua identidade (Fraser, 2001, 2003; Hall, 2003). Finalmente, há um argumento sistematicamente presente nos debates sobre o tema das cotas que tem marcado a vida política e intelectual brasileira: a de produzir seu próprio conhecimento e não apliReflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

car a velha fórmula da “importação de ideias”. Assim se argumenta: 1. que as cotas representam uma cópia imperfeita das chamadas “políticas compensatórias”, invenção já descartada nos EUA; 2. que vivemos numa democracia racial, já que não presenciamos os distúrbios ou a violência física contra os negros como nos Estados Unidos, por exemplo; 3. que a política de cotas não deve ser aplicada, pois no Brasil todos são tratados com igualdade. As linhas gerais desse tipo de raciocínio estão muito bem representadas no discurso de Fernando Henrique Cardoso, na abertura ao seminário internacional Multiculturalismo e Racismo. Tal seminário foi realizado no Palácio do Planalto em Brasília no ano de 1996 e, segundo o então presidente da República: Nós, no Brasil, de fato convivemos com a discriminação e convivemos com o preconceito, mas as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá, o que significa que a discriminação e o preconceito que aqui temos não são iguais aos de outras formações culturais. Portanto, nas soluções para esses problemas não devemos simplesmente imitar. Temos de ter criatividade, temos de ver de que maneira a nossa ambigüidade, essas características não cartesianas do Brasil – que dificultam tanto em tantos aspectos – também podem ajudar em outros aspectos. Devemos, pois, buscar soluções que não sejam pura e simplesmente a repetição ou a cópia de soluções imaginadas para situações em que também há discriminação e preconceito, mas em contexto diferente do nosso. É melhor, portanto, buscarmos uma solução mais imaginativa. (Cardoso, 1996, p. 14-15).

A experiência nos mostrou o equívoco da frase de Roberto Campos ao afirmar que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Possuímos valores distintos, necessidades diferenciadas, portanto, deveríamos procurar nossas próprias soluções. Isto é verdade, porém, apenas em parte. As boas experiências devem servir de modelo para todos. O que devemos negar são os modelos rígidos que não permitem adaptações, que são impermeáveis às nossas necessidades. Para [ 148 149 ]

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finalizar, deve-se deixar claro que o discurso de Fernando Henrique, diferente do que se costuma anunciar como defensor da inserção do negro nas estruturas sociais, apenas denota uma preocupação com os modelos a serem apresentados. Conforme podemos perceber em seu discurso, longe está sua vontade de oferecer as possibilidades de inserção do negro segundo os parâmetros utilizados pelos Estados Unidos, ou seja, por meio de uma política de ação afirmativa e pela implantação das cotas para negros.

Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

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Sociologia e educação em direitos humanos

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Governança democrática, informação e direitos humanos1  Heloisa Dias Bezerra Vladimyr Lombardo Jorge Uianã Cordeiro Cruvinel Borges

Introdução

A criação da internet e a difusão do seu acesso aumentaram a possibilidade de divulgação de informações, ampliaram as formas de controle dos agentes estatais e criaram expectativas quanto à expansão da participação política dos cidadãos. Mas, se por um lado a participação política dos cidadãos no processo decisório de seus respectivos países ainda continua muito aquém das expectativas despertadas, por outro, estes e organizações não governamentais têm se valido sistematicamente dessa importante ferramenta para obter apoio ao redor do mundo às suas causas e mobilizar a opinião pública internacional com o intuito de pressionar os governos a respeitar os direitos de grupos minoritários ou fragilizados.

1

Este texto é fruto do projeto de pesquisa Democracia e Boa Governança Via Websites dos Governos Estaduais, financiado pelo CNPq. Versões preliminares deste paper foram apresentadas no IPSA’s 21st World Congress of Political Science, Santiago do Chile, 2009, e no XIV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, Rio de Janeiro, 2009.

Neste início de século XXI, o reconhecimento e, sobretudo, a efetivação defesa dos direitos humanos continuam sendo uma questão primordial e que mobiliza chefes de Estado, organizações internacionais multilaterais e organizações não governamentais. Nosso objetivo, neste texto, é discutir a relevância política da internet diante das limitações da democracia representativa e das frustrações que esta causa, em particular as relacionadas à proteção dos direitos humanos. Daremos uma atenção especial ao caso do Brasil, que, embora viva uma democracia estável há mais de vinte anos, ainda não conseguiu tornar efetivos vários dos direitos que integram os direitos humanos, inclusive os direitos civis para as pessoas de baixa renda. Democracia representativa, limites e perspectivas

Embora a realização periódica de eleições livres e limpas seja um requisito necessário para haver democracia, esse critério é insuficiente e muitos cientistas políticos utilizam outros, além das eleições, para identificar um país democrático. Mas, ainda que ampliem sua definição de democracia, excluem uma variedade de questões. Mainwaring et al. (2001), por exemplo, não consideram que os direitos sociais sejam uma responsabilidade pública (accountability) e as “falhas do estado de direito” sejam requisitos necessários à definição de democracia. Considera-se o respeito aos direitos civis, que são parte da noção de direitos humanos,2 relevante para fins de classificação dos regimes políticos apenas se a violação destes vier a alterar significativamente o resultado de um pleito. Apesar dessas exclusões, nos países que estão se redemocratizando a população tende a gerar expectativas otimistas com relação à sua situação socioeconômica e a forma como os governos tratarão suas privações (de justiça, de saúde etc.). Todavia, as democracias têm limitações e, à medida que essas expec-

2 Os outros direitos que compõem a noção de direitos humanos são: direitos políticos, direitos sociais, direitos culturais, direitos econômicos e direitos ambientais. [ 156 157 ]

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Sociologia e educação em direitos humanos

tativas não se realizam ou não se concretizam completamente, podem gerar frustrações e apatia em relação aos valores democráticos. Para os latino-americanos, a redemocratização de seus respectivos países não se resumia apenas ao fim do regime autoritário, mas significava também desenvolvimento econômico acompanhado de redistribuição de renda, igualdade social, redução das assimetrias entre as regiões e supressão das carências. A incapacidade de os governos eleitos democraticamente promoverem tais melhorias gerou frustrações que se refletiram na percepção que os cidadãos têm de suas instituições políticas.3 À medida que esses governos não apenas demonstraram ser incapazes de responder satisfatoriamente a essas demandas, mas também adotavam políticas econômicas que as agravavam ainda mais, as instituições democráticas liberais entravam em crise, o que levou ao aumento da instabilidade política em vários países da região.4 O Brasil foi uma das exceções, pois nenhuma das crises políticas ou econômicas enfrentadas pelo país representou uma ameaça à sobrevivência do regime. O que nos permite dizer que, desde os anos 1980, o Brasil vive a sua mais longa e estável experiência democrática. Mas, apesar da estabilidade, os brasileiros compartilham com os demais latino-americanos uma enorme desconfiança com relação às suas instituições políticas, sendo isso um dos sintomas da crise que se abateu sobre as instituições políticas da região.5 Menos otimista, José Murilo de Carvalho avalia as limitações da democracia representativa como uma séria ameaça à sua própria existência.

3 Ver Power; Jamison, 2005. 4 É irônico que, após a terceira onda democrática, que foi mais abrangente do que as anteriores (1828-1926 e 1943-1962), as instituições políticas democráticas tenham entrado em crise em muitos países da América Latina (Huntington, 1993, 1994). 5 Além do aumento da desconfiança, outros sintomas apontados pela literatura são: o desaparecimento ou o enfraquecimento dos partidos políticos tradicionais em alguns países e alguns dos itens das reformas políticas que quase todos os países da região promoveram entre 1984 e 2007. Governança democrática, informação e direitos humanos

[...] a estabilidade democrática não pode ser ainda considerada fora de perigo. A democracia política não resolveu os problemas econômicos mais sérios, como a desigualdade e o desemprego. Continuam os problemas da área social, sobretudo na educação, nos serviços de saúde e saneamento, e houve agravamento da situação dos direitos civis no que se refere à segurança individual. Finalmente, as rápidas transformações da economia internacional contribuíram para pôr em xeque a própria noção tradicional de direitos que nos guiou desde a independência. (Carvalho, 2004, p. 199).

As limitações da democracia representativa na área social e as frustrações com relação ao desempenho de suas instituições têm estimulado não somente a crítica a esse tipo de democracia, mas também a valorização de um modelo que estimule a participação direta dos cidadãos. Se não propõem a eliminação completa da democracia representativa, tais limitações estimulam seus críticos à esquerda a proporem a democracia deliberativa ou participativa em nível local ou operando conjuntamente com a democracia representativa (Santos; Avritzer, 2005). Para terem mais controle sobre seus representantes ou decidirem sobre algum assunto (em uma eleição, um plebiscito, um referendo ou veto legislativo), os cidadãos individualmente ou as instituições da sociedade civil (ONGs, sindicatos etc.) necessitam de mais informação além daquela disponível nos órgãos de imprensa tradicionais ( jornal, rádio e televisão). Mesmo nas democracias representativas, que não exige uma cidadania ativa, a oposição e os jornalistas, para que possam desempenhar efetivamente seu papel de “cão de guarda da democracia”, precisam que as instituições públicas disponibilizem suas informações. Se há algo importante a fazer em termos de consolidação democrática, é reforçar a organização da sociedade para dar embasamento social ao político, isto é, para democratizar o poder. A organização da sociedade não precisa e não deve ser feita contra o Estado em si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado. (Carvalho, 2004, p. 227).

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Podemos completar a frase de Carvalho acrescentando: o Estado que suprime vidas e talentos por ausentar-se de cumprir suas funções constitucionais ou adotar políticas públicas ineficientes. Além disso, conforme apontado por Robert Dahl (1997), um dos indicadores do aprofundamento da democracia é a responsividade dos governos, ou seja, a capacidade do Estado de ouvir as demandas da sociedade e transformá-las em políticas públicas efetivas. Participação política, portanto, deve ser compreendida como um dos requisitos para que se possa efetivar a responsividade necessária à democratização do Estado. Informação, TICs e controles democráticos

A distância entre representantes e representados e os custos da informação política são apontados como entraves da participação ativa dos cidadãos na vida política. Supõe-se que constituiriam uma ameaça constante à estabilidade da democracia, quer seja nos países de democracia consolidada, quer nos países que ainda encontram-se em vias de consolidar-se. Com a emergência das novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs), tais como internet, celular e outras, especialistas retomam o debate sobre novas perspectivas para a democracia, tomando como parâmetros certas questões sobre o modo como incidirão sobre o ambiente político democrático. De acordo com Silva (2005), a maioria dos pesquisadores admite a potencialidade comunicativa das TICs, havendo, contudo, divergências quanto ao “tipo” e à “intensidade” de repercussão. Na falta de termos melhores, estes pesquisadores podem ser dispostos em três grupos: “otimistas”, “moderados” e “pessimistas”, afirmando que não são todos os analistas que veem as consequências das TICs de forma positiva. Bezerra (2008, p. 2) reclassificou os pesquisadores a partir de uma perspectiva da teoria política, que é a que adotamos neste trabalho e em nossa pesquisa: [...] os denominei por “cyberotimistas rousseanianos” e “cyberpessimistas schumpeterianos”. Os primeiros estão relacionados à percepção de

Governança democrática, informação e direitos humanos

que as novas TICs constituem um surpreendente caminho para novos padrões de interação em ambientes democráticos, avanços que supostamente poderiam ser observados tanto na postura de políticos e burocratas, quanto nos próprios cidadãos, fazendo coro, assim, aos ideais do deliberacionismo ou do participativismo. Por seu turno, os “cyberpessimistas schumpeterianos” não acreditam nessa possibilidade incremental das TICs no que tange à participação política, seja pela inexistência de interesse por parte daqueles que estão à frente dos poderes públicos, seja pela apatia quase inerente aos indivíduos, diariamente acossados pelas necessidades e prazeres da vida cotidiana. Dentro dessa perspectiva, a participação política está intimamente relacionada ao modo como os indivíduos percebem o mundo público, ou seja, a política e os governantes, como coisas alheias ao leque de questões com as quais precisam de fato interagir e que, basicamente, dizem respeito ao mundo privado.

A classificação referida reflete o debate atual entre diferentes modelos de democracia: democracia representativa, originada a partir do aumento gradual do corpo eleitoral obtido com adoção do sufrágio universal; democracia participativa; democracia semidireta. Se a primeira reduz a participação política ao ato de escolher os representantes em eleições livres e honestas, a segunda amplia a participação pelo uso de institutos que permitem aos cidadãos interferir diretamente no processo deliberativo. Os defensores deste segundo modelo creem que seu uso é capaz de aproximar as políticas públicas dos reais interesses dos cidadãos. Qualquer que seja o modelo de democracia adotado, as TICs constituem recursos fundamentais tanto para a gestão pública quanto para a aproximação estado–sociedade. Podem permitir o acesso rápido e fácil a informações necessárias a organizações não governamentais, partidos de oposição e jornalistas interessados em fiscalizar o poder público ou aos próprios cidadãos quando convocados a deliberarem diretamente a respeito de uma questão. Para Malina (1999), Schmidtke (1998) e Coleman (1999), as TICs seriam marcadas por uma natureza ambígua e o seu uso para fins políticos benéficos depende, sobretudo, do modo de apropriação social; já [ 160 161 ]

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Dean (2001), Buchstein (1997) e Wolton (2001) veem mais seus efeitos negativos do que suas consequências positivas ou ambiguidades (apud Silva, 2005). Quanto à divergência que os analistas têm sobre a intensidade de repercussão, os otimistas sustentam predominantemente a ideia de que o uso em larga escala das TICs seria capaz de transformar de modo significativo as relações sociais e políticas, estando esta visão bastante afinada com a ideia de uma “revolução digital” ou o surgimento de uma “sociedade da informação” (Silva, 2005). Os moderados restringem essas transformações a um rearranjo do sistema democrático liberal, admitindo repercussões importantes, mas não tão significativas a ponto de se afinarem com a ideia de uma “revolução” (Silva, 2005). Além dessas diferentes perspectivas sobre a potencialidade política das TICs, há também diferentes retóricas que disputam o modelo de democracia no ciberespaço. Silva indica três segmentos predominantes: individualista-liberal, comunitarista e deliberacionista, que se diferenciam quanto aos seus respectivos entendimentos de legitimidade democrática. Para os individualistas, a democracia obtém legitimidade quando fornece expressão aos interesses individuais; para os comunitaristas, um modelo democrático é legitimado por realçar o espírito e valores comunais; já os deliberacionistas entendem que um modelo democrático é legitimado por sua facilitação do discurso racional na esfera pública (Dahlberg apud Silva, 2005). Tendo em vista que o debate sobre o emprego político das TICs no sistema democrático contemporâneo apresenta uma variação de visões sobre as promessas e o modo de existência de uma democracia mediada por artefatos tecnológicos, Silva (2005) observa que o termo “democracia digital” refere-se a experiências distintas, ainda que democráticas. Para ele, esta variação de sentido pode ser pensada a partir da percepção da existência de cinco graus não excludentes de participação democrática da sociedade civil nos processos de produção de decisão política sugeridos por Gomes (2004). Governança democrática, informação e direitos humanos

Esses cinco graus de democracia digital variam entre um polo de baixíssima participação (primeiro grau), no qual o cidadão se limita a receber informações ou usufruir de serviços que o governo disponibiliza, e outro (quinto grau), nos qual os cidadãos substituem os seus representantes políticos na produção da decisão (Silva, 2005). Embora, em princípio, um grau de democracia digital não exclua ou inclua necessariamente o outro, um projeto pode ocupar uma posição intermediária entre dois graus, estando mais propenso para um, sob um aspecto, e para outro, sob outro aspecto. Silva (2005, p. 457) ressalta ainda: A percepção de algum desses graus na implementação da democracia digital leva em conta um olhar cuidadoso: a existência de elementos de determinados graus não significa que exista, de fato, uma democracia digital. Significa que existem indícios “graduantes (e não determinantes) de um ideal democrático mediado por tecnologias da comunicação e informação.

Na pesquisa que dá origem a este texto tomamos como premissa a centralidade do conceito de boa governança, o qual, de acordo com a literatura especializada, é um indicativo ótimo da democratização das relações entre representantes e representados e do esforço dos poderes executivos quanto ao empoderamento da sociedade civil. Considera-se que isto ocorre, principalmente, pela disponibilização de informações adequadas e suficientes para habilitar os cidadãos nas demandas políticas e prestar atenção no desempenho dos políticos. As TICs, portanto, podem tornar tanto mais democrático o importante debate sobre direitos humanos quanto tornar mais eficiente o controle da sociedade civil das políticas públicas relacionadas a este tema. Isso é possível, à medida que os governos satisfaçam a duas exigências: (1) permitam que indivíduos, grupos e outras instituições (órgãos de imprensa, partidos políticos, ONGs etc.) tenham acesso às informações suficientes e necessárias para que estes possam exercer controle horizontal ou vertical sobre os agentes estatais e (2) ofereçam [ 162 163 ]

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mecanismos que permitam aos indivíduos, grupos e outras instituições interagir direta ou indiretamente e expressar suas preferências perante ações e políticas públicas desenvolvidas e em desenvolvimento. Talvez, dessa forma, os governos, qualquer que seja o seu matiz ideológico, tornar-se-iam menos propensos a violar os direitos básicos dos cidadãos. Em vez de o Estado controlar o cidadão, este é quem controla o Estado ou, ao menos, à moda republicana, constrói mecanismos de salvaguarda contra quaisquer ameaças oriundas do Estado. A ideia dos controles democráticos que tomou corpo nos textos federalistas pode ser tanto do tipo horizontal, entre as próprias instituições dos três poderes constituídos, ou do tipo vertical, qual seja, da sociedade para o Estado. Parte da literatura sobre internet e política aponta o aprofundamento da accountability política como uma forma de empoderamento de indivíduos e grupos e, consequentemente, de fortalecimento dos controles democráticos. Democracia digital no Brasil e alhures

O Brasil tem dimensões continentais e, desde 1889, é uma república federativa, com unidades bastante diferentes, seja em termos de localização quanto de acesso a bens e riqueza. Há, portanto, fortes assimetrias entre as unidades da federação. A existência de tais assimetrias suscita a seguinte pergunta: investimentos em convergência digital resultarão em superior accountability política e responsividade governamental e, consequentemente, a concretização de alguns dos requisitos político-administrativos fundamentais para a prática da boa governança? Cremos que a resposta a essa pergunta é negativa, ou seja, a de que não há uma relação inequívoca entre investimento em convergência digital e a realização qualitativamente superior da accountability política e da responsividade.6 6 Hipótese que estamos testando na pesquisa Democracia e Boa Governança Via Websites dos Governos Estaduais. Governança democrática, informação e direitos humanos

Os dados da Pesquisa TIC Domicílios e Usuários, realizada anualmente pelo Cetic/Centro de Estudo das TICs, mostra que o acesso à internet domiciliar ainda não é uma realidade para indivíduos de baixa renda: Tabela 1 – Proporção de domicílios com acesso à internet (%)* 2006

2007

2008

14,49

17

20

Sudeste

18,74

22

26

Nordeste

5,54

7

9

*Sobre o total de domicílios

Total/Brasil Regiões do país

Sul

Classe social

16,90

21

23

Norte

6,15

5

9

Centro-Oeste

13,05

16

23

A

81,49

82

93

B

51,22

50

59

C

12,10

16

17

DE

1,61

2

1

Fonte: www.cetic.br

Esta pesquisa revela, ainda, que nos últimos anos mais de 80% da população das classes DE nunca havia acessado a internet. Tabela 2 – Proporção de indivíduos que nunca acessou a internet (%)* *Sobre o total da população com 10 anos ou mais

2006

2007

2008

Total/Brasil Regiões do país

Classe social

[ 164 165 ]

66,68

59

57

Sudeste

63,11

57

53

Nordeste

77,59

67

65

Sul

63,81

54

57

Norte

74,46

68

64

Centro-Oeste

61,06

55

50

A

4,92

6

10

B

27,71

27

24

C

61,15

53

54

DE

87,77

83

81

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Considerando que o acesso à informação é um dos direitos fundamentais dos indivíduos, essa assimetria informacional demonstra que a mudança de postura dos atores políticos é tão ou mais relevante que o simples investimento financeiro. Portanto, retomando o argumento sobre a hipótese da pesquisa, não se trata de uma abordagem pessimista, mas de uma perspectiva teórica que considera como fundamental reengenharia, no perfil do Estado, um movimento de renovação das estruturas em direção à transformação do papel do Estado e da relação deste com a sociedade. Por isso consideramos fundamental analisar as TICs e o comportamento dos atores políticos vis-à-vis alguns dos mais significativos dilemas da teoria e da práxis política democrática. Desde os anos 1980, o Brasil vive sua mais longa e estável experiência democrática. Pesquisas de opinião pública, contudo, mostram que, apesar desse saldo positivo, a desconfiança política é demasiadamente elevada no País. Por isso, políticos e sociedade civil discutem o que fazer para reverter essa situação: o que fazer para tornar a res publica mais acessível ao homem comum? Como minimizar o mau uso dos recursos públicos e dificultar a apropriação desses recursos por indivíduos ou grupos privados (patrimonialismo)? Como permitir que os cidadãos comuns exerçam um controle mais efetivo sobre os seus representantes? ( Jorge, 2009). Devemos acrescentar, ainda: como impedir que o Estado seja uma ameaça à vida e às liberdades dos cidadãos? Apesar dos avanços introduzidos pela Constituição de 1988, ainda há muito que fazer no que tange aos direitos sociais e, sobretudo, aos direitos civis. Carvalho (2004, p. 210) constata que, “dos direitos que compõem a cidadania, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências em termos de seu conhecimento, extensão e garantia”. Mais adiante ele completa: “A falta de garantia dos direitos civis se verifica, sobretudo, no que se refere à segurança individual, à integridade física, ao acesso à justiça” (Carvalho, 2004, p. 211). Mais de vinte anos após a promulgação da Constituição de 1988, a violência policial continua a ser uma das principais causas da violação dos direitos Governança democrática, informação e direitos humanos

humanos no Brasil. As forças policiais cometem sistematicamente abusos, sobretudo contra pessoas de baixa renda, especialmente negros e jovens. As prisões, de um modo geral, apresentam condições subumanas. Fora dos centros urbanos, é frequente a violência (ameaças de morte, assassinatos, torturas) contra trabalhadores rurais e povos indígenas, perpetrada tanto por agentes públicos quanto por particulares. Mudanças institucionais têm sido propostas com o intuito de fortalecer a representatividade das instituições e o controle sobre seus membros, fortalecendo as tradições democrática, republicana e liberal. Paralelamente, transitam no Congresso Nacional propostas de mudança da legislação em vigor visando aumentar a participação política dos cidadãos e o controle destes sobre seus representantes no Legislativo e no Executivo7 ( Jorge, 2009). Mas, apesar dessas propostas visando intensificar a participação direta dos cidadãos brasileiros, não devemos vê-las como parte da proposta de reforma política. Nossos reformadores partem da premissa de que é preciso fortalecer a democracia representativa e que, para isso, é necessário que se mantenham reduzida a participação dos cidadãos e ociosos os institutos da democracia semidireta ou participativa ( Jorge, 2009).

7 Apesar de haver muita resistência à participação direta dos cidadãos brasileiros, há, no Congresso Nacional, propostas que ampliam ainda mais a participação popular. O Projeto de Lei 4.718/2004, da Comissão de Legislação Participativa, regulamenta o uso dos institutos (plebiscito, referendo e iniciativa popular) estabelecidos pelo artigo 14 da Constituição Federal. Com intuito de introduzir o recall (revogabilidade) e o veto popular na Constituição Federal brasileira, foram apresentadas as Propostas de Emenda Constitucional (PEC) nº 80 e nº 82. A primeira, do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-CE), propõe alterações no artigo 14 da Constituição: a inserção de dois incisos que, se aceitos, introduzirão, no Brasil, o direito de revogação (recall) e o veto popular. A segunda foi apresentada em 2003, pelo senador Jefferson Peres (PDTAM). Essa emenda propõe mudanças nos artigos 28, 29, 32, 55 e 82 da Constituição, com o intuito de “prever o plebiscito de confirmação de mandato dos representantes do povo eleitos em pleito majoritário”. Em 2005, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) apresentou a PEC nº 73, que altera dispositivos dos artigos 14 e 49 da Constituição Federal e acrescenta o artigo 14-A à Constituição ( Jorge, 2009). [ 166 167 ]

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O baixo estímulo à participação política também é percebido nos sítios dos governos das capitais brasileiras na internet. Silva (2005) constatou que, no Brasil, nos sítios dos governos das capitais brasileiras, a disponibilidade de informação e a prestação de serviços públicos ao cidadão são formas de participação que estão em vias de consolidação e, ainda assim, possuem um caráter predominantemente informativo: os elementos de prestação de serviços aparecem em quantidade menor e são direcionados predominantemente para a relação entre a Secretaria de Fazenda e o contribuinte. Além disso, verificou também que quase metade dos governos das cidades analisadas “não tem preocupação em manter um canal eficiente de comunicação direta com o cidadão solicitante” (Silva, 2005, p. 459-460). Silva (2005, p. 463) conclui que os sítios dos governos estaduais oferecem pouca transparência, pouca accountability e praticamente nenhuma permeabilidade à opinião pública por parte de um Estado que potencialmente empregaria as TICs (especificamente da internet) para melhorar a participação do cidadão nos negócios públicos.

Já os meios que permitiriam ao cidadão ter uma participação efetiva sobre o processo de definição das políticas públicas estão completamente ausentes nos portais dos governos das capitais brasileiras. Embora, segundo Silva (2005, p. 464), haja informações sobre processos de deliberação através do chamado Orçamento Participativo em alguns sítios, “não há referências sobre a utilização das TICs ou da internet como meio de comunicação para viabilizar a participação neste mecanismo deliberacionista”. As conclusões de Silva com relação aos graus de participação política oferecidos pelos governos estaduais corroboram, portanto, a nossa constatação de que as propostas de reforma política no Brasil visam somente fortalecer as instituições clássicas da democracia representativa (partidos políticos, Poder Legislativo etc.), mantendo reduzida a partiGovernança democrática, informação e direitos humanos

cipação dos cidadãos aos períodos eleitorais. Além disso, não oferecem informações que permitam à imprensa e às ONGs fiscalizarem suas ações, seja nas áreas que envolvem a proteção dos direitos humanos seja em qualquer outra área.8 Braga (2006, 2007) tem uma percepção otimista quanto ao futuro das TICs não apenas no Brasil como em toda América do Sul. Ele constatou que o Legislativo nacional brasileiro, Congresso Nacional, encontra-se entre os com alto grau de informatização [...] assim como os sites das casas legislativas unicamerais do Peru e da Venezuela, que colocam uma gama relativamente ampla de recursos à disposição do pesquisador e do cidadão comum sobre várias dimensões de seu processo decisório. (Braga, 2007, p. 32).

Embora tenha verificado que vários websites sul-americanos apresentam deficiências na disponibilização de informações sobre o processo legislativo e de governo à sociedade civil, situação esta que ele atribui ao baixo grau de institucionalização das democracias parlamentares de alguns países, conclui que os legislativos nacionais desta região [...] apresentam níveis razoavelmente elevados de informatização, propiciando ao pesquisador e ao cidadão médio inúmeros recursos para o conhecimento de seu processo legislativo e de governo. Nota-se, assim, um significativo esforço no sentido dos órgãos parlamentares de vários países disponibilizarem informações para os cidadãos e ao pesquisador, processo que consideramos ser simultâneo ao de consolidação das democracias parlamentares nessa região, o que nos leva a antever um cenário futuro bastante diverso daqueles que prevêem um espraiamento de “democracias delegativas” pelo continente. Ao con-

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A internet também é utilizada frequentemente como veículo para realizar campanhas visando arregimentar apoio à causa da defesa dos direitos de homossexuais, mulheres, minorias étnicas, pessoas pobres entre outros grupos.

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trário, o que se percebe é uma busca consistente de maior transparência do funcionamento dos órgãos parlamentares e do comportamento dos políticos sulamericanos, e as TICs são um instrumento auxiliar de fundamental importância nesse processo. (Braga, 2007, p. 32-33).

No entanto, Braga não vê nas TICs um meio de introduzir um novo modelo de democracia, a democracia semidireta ou participativa, o que exigiria outros recursos além daqueles oferecidos atualmente.9 Pelo contrário, entende como um modo de aperfeiçoar a democracia representativa, pois vê a superação das deficiências websites sul-americanos como “uma importante dimensão do esforço para a institucionalização e o aperfeiçoamento da democracia parlamentar no continente sul-americano” (Braga, 2007, p. 33). De qualquer forma, comparando os trabalhos de Silva e de Braga, parece-nos que, no Brasil, o Legislativo tornou-se mais aberto à participação dos cidadãos do que o Executivo. Isto facilita o acompanhamento dos debates e decisões sobre questões relacionadas à política de direitos humanos, mas não permite o acompanhamento das políticas públicas decorrentes. Considerações finais

Com a emergência das TICs os especialistas retomaram o debate sobre novas perspectivas para a democracia. O debate se dá em torno do tipo e da intensidade de repercussão da tecnologia no comportamento dos atores, ou vice-versa. Há os “otimistas” ou, como preferimos chamá-los, os “cyberotimistas rousseanianos”, que

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A democracia participativa não significa, necessariamente, a eliminação completa da representação política. Ela pode ser concebida, segundo Santos e Avritzer, de duas formas, sendo que a democracia representativa em nível nacional pode coexistir com a democracia participativa em nível local ou admite-se que os institutos da democracia direta podem substituir parte do processo de representação e deliberação da democracia liberal (Santos; Avritzer, 2005, p. 75-76). Governança democrática, informação e direitos humanos

acreditam que as novas TICs abrem caminho para a superação das limitações da democracia representativa, efetivando o que, até então, eram apenas ideais deliberacionistas ou participativistas. Já os “cyberpessimistas schumpeterianos” são mais realistas com relação ao uso e às consequências das novas TICs pelos governos, uma vez que não endossam a avaliação de que esta trará mudanças significativas no que tange à participação política. Como argumentos, esse debate é um desdobramento de outro mais antigo sobre democracia representativa e uma variante sua, a democracia participativa. Observamos ainda as divergências entre os teóricos no que se refere à própria legitimidade da democracia. Os individualistas creem que esta decorre do espaço que é concedido para os indivíduos expressarem seus interesses individuais; para os comunitaristas, ela decorre da possibilidade de realçar o espírito e valores comunais; os deliberacionistas, por fim, afirmam que a democracia se origina da facilitação do discurso racional na esfera pública. Qualquer que seja o modelo de democracia, as TICs podem se tornar um recurso fundamental para cidadãos comuns, ONGs, partidos políticos, órgãos de imprensa e outras instituições estatais, porque fornecem o acesso rápido e fácil às informações antes armazenadas em velhos arquivos. Por exemplo, accountability política tem sido indicada como uma das principais ferramentas de democratização da atividade política, especialmente governamental. Acredita-se que a disponibilização de dados, especialmente se for conduzida pelas instituições, pode incrementar a esfera pública e consequentemente a capacidade de avaliação retrospectiva por parte de indivíduos e grupos. Acredita-se que o simples fato de disponibilizar informação garante mais qualidade à democracia, o que indicaria pouca relevância para os apelos deliberacionistas. Um aspecto do debate é a redução de accountability à transparência financeira, já que se trata de um elemento significativo para o [ 170 171 ]

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combate à corrupção e para a própria democratização das relações políticas. A pergunta que permanece é se realizando uma boa prestação de contas o governante está realizando plenamente o que se espera da accountability política. Esta questão remete a um segundo conjunto de problemas: como realizar accountability política sem enveredar pela propaganda direcionada para a persuasão político-eleitoral de interesse do grupo que está no poder? O terceiro conjunto de problemas diz respeito ao formato da prestação de contas políticas, posto que eventuais parâmetros para avaliação retrospectiva certamente teriam como entrave velhos dilemas da democracia representativa: os eleitores podem cobrar promessas de campanha ou o representante tem o direito e o dever de ampliar sua atuação em favor, também, das minorias derrotadas, ou seja, indivíduos e grupos que apoiaram e/ou votaram ou votaram em candidatos derrotados? (Manin et al., 2006). O que seria informação relevante? O que poderia ser indicado como accountability política de qualidade? Concluindo, conforme apontou Bezerra (2008), ainda são muito tênues os limites entre prestação de contas com fins informativos e propaganda política, com fins meramente de persuasão eleitoral. Uma questão que nos parece significativa é correlacionar três dimensões do fazer político numa democracia representativa: informação técnico-administrativa (ou racional legal, nos termos weberianos), responsividade (Dahl, 1997) e accountability no que tange ao processo de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas relativas a aspectos da cidadania e dos direitos humanos. Neste caso, por questões de método, poderíamos separar os aspectos meramente informativos dos episódios deliberacionistas, localizando o processo decisório pura e simplesmente no âmbito da representação eleita, mas atribuindo significativa importância ao compartilhamento de informações durante o período de formulação, implementação e avaliação dessas políticas, com a possibilidade de um comportamento responsivo dos agentes políticos. Governança democrática, informação e direitos humanos

Ganha relevância o conjunto de informações disponibilizadas cotidianamente pelas instituições governamentais acompanhado de mecanismos de interação, o que, preliminarmente, nos parece um bom indicativo da ressonância da esfera pública e/ou da sociedade civil organizada junto aos poderes constituídos, considerando que, por suposto, na democracia representativa os cidadãos esperam contar com o trabalho dos representantes legitimamente eleitos para buscar soluções adequadas aos problemas que surgirem durante seus mandatos e que a participação da sociedade fica bem resolvida quando circunscrita aos processos eleitorais e eventuais consultas temáticas por meio de referendos e plebiscitos. Os teóricos da democracia deliberativa ou da ampliação da participação dos cidadãos nos processos decisórios acreditam que os limites do modelo representativo engessam a criatividade e as preferências dos indivíduos. Mas, se de fato responsividade é um indicador de democracia, é relevante que os órgãos públicos criem mecanismos para o cidadão expressar suas preferências. A grande questão é se de fato há representantes interessados em formular políticas de acordo com preferências manifestadas via mecanismos abertos de consulta popular e se os ativistas do século XXI, principalmente a grande maioria que acessa a internet, se interessam por participar de processos decisórios encapsulados pelas amarras do Estado e dos interesses dos atores políticos institucionalizados, incluindo aqueles oriundos dos movimentos sociais organizados.

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Sobre os/as autores/as

Dalva Borges de Souza Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), professora do Curso de Especialização em Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Dijaci David de Oliveira Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e professor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Heloisa Dias Bezerra Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). É professora da Faculdade Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Márcia Cristina Lazzari Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é consultora do Ministério do De-

senvolvimento Social (MDS) para enfrentamento de violências contra crianças e jovens. Revalino Antonio de Freitas Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). É professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Robson dos Santos Robson dos Santos. Sociólogo. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Campus de Marília). Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tania Ludmila Dias Tosta Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Associada ao Núcleo de Estudos sobre o Trabalho da Universidade Federal de Goiás (UFG). Uianã Cordeiro Cruvinel Borges Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais com bolsa do CNPq. Vladimyr Lombardo Jorge Doutor em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2003). Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Wivian Weller Doutora em Sociologia pela Universidade Livre de Berlim. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Coordena o grupo de pesquisa Educação e Políticas Públicas: Gênero, Raça/ Etnia e Juventude (GERAJU).

© Dijaci David de Oliveira, Revalino Antonio de Freitas, Tania Ludmila Dias Tosta, 2010 Direitos reservados para esta edição: os autores, Ministério da Educação. Revisão Sueli Dunck Estagiária Isis Carmo Pereira do Nascimento Projeto gráfico da coleção e capa Alanna Oliva Editoração eletrônica Alanna Oliva Dados internacionais de catalogação-na-publicação (CIP) (Henrique Bezerra de Araújo) S678

Sociologia e educação em direitos humanos / organizadores, Dijaci David de Oliveira, Revalino Antonio de Freitas, Tânia Ludmila Dias Tosta. - Goiânia : UFG/FUNAPE, 2010. 176 p. – (Educação em Direitos Humanos; 3) ISBN: 978-85-87191-70-0



1. Sociologia – Ensino Médio. 2. Direitos Humanos - Sociologia. 3. Licenciatura – Ciências Sociais. I.Título. CDU 37.015.4

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