Reflexos da Teoria Neoliberal e do Consenso de Washington na Constituição Brasileira de 1988

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Reflexos da Teoria Neoliberal e do Consenso de Washington na Constituição Brasileira de 1988 Déborah Barros Leal Farias RESUMO: Apesar de sua função de estabilidade jurídica, uma Constituição não está imune às transformações políticas e sociais que ocorrem com o tempo. A Carta Magna Brasileira de 1988, no que diz respeito às especificações dos papéis do Estado na Economia foi se transformando no decorrer na década de 1990 através de Emendas Constitucionais, e cada vez mais incorporando elementos vindos da teoria políticoeconômica Neoliberal e das recomendações do chamado “Consenso de Washington”, em detrimento das diretrizes keynesianas inicialmente adotadas. PALAVRAS-CHAVE: Constituição Brasileira (1988); Neoliberalismo; Consenso de Washington; Keynesianismo. ABSTRACT: Despite its functions of political stability, a Constitution is not immune to political and social transformations that occur as time passes by. The Brazilian Constitution of 1988, with regards to the State role in Economic affairs was transformed throughout the 1990’s by Constitutions Amendments, and went on to incorporate an increasing number of elements form the Neoliberal political-economic theory, as well as the so called “Washington Consensus” recommendations, pushing away the initial keynesian guidelines. KEYWORDS: Brazilian Constitution (1988); Neoliberalism; Washington Consensus; Keynesianism. SUMÁRIO: Introdução – 1. Compreendendo o significado de Neoliberalismo e “Consenso de Washington”: 1.1 O Neoliberalismo; 1. 2 O “Consenso de Washington”. 2. Constituição Federal de 1988: sua origem e suas transformações: 2.1 As Constituições Brasileiras anteriores à de1988; 2.2 A Constituição Federal do Brasil em 1988; 2.3 A Constituição Federal brasileira em 2003. 3. Neoliberalismo, Consenso de Washington e as Emendas Constitucionais. 4. Considerações Finais. Bibliografia.

Introdução No âmbito de qualquer Governo que adote um sistema constitucional, a Constituição é o documento que traça as regras básicas da estrutura econômica e do papel do Estado na economia do País. Apesar de sua função de estabilidade jurídica, uma Constituição não está imune às transformações políticas e sociais de seu tempo. Daí a existência de mecanismos como

Emendas Constitucionais para adaptar o ordenamento jurídico máximo àquilo que for tido como política ou juridicamente necessário. Além das emendas à Constituição, cabe lembrar que outras normas jurídicas infraconstitucionais, como Leis Ordinárias e Decretos, também podem exercer profundo impacto no sistema econômico e social de um país, através de regulamentações ou mudanças de determinadas regras ou realidades econômicas. O presente trabalho tem como objetivo interpretar e avaliar as mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, a partir da Constituição Federal de 1988, decorrentes das influências da teoria econômica Neoliberal e do chamado “Consenso de Washington”1. Assim, se buscará demonstrar quais elementos fundamentais do atual corolário neoliberal e do dito "Consenso" foram incorporados ao direito pátrio. Para isso, primeiramente se explicará a origem e o corolário de idéias Neoliberais, bem como o que se compreenderá neste texto por “Consenso de Washington”, já que os dois termos carregam em si vários usos coloquiais e interpretações ideológicas. Após esses esclarecimentos, será feita uma análise da Carta Magna de 1988 tendo como referência as teorias econômicas, no intuito de compreender e identificar aquelas que exerceram influencia sobre ela. Num terceiro e último momento, far-se-á a comparação das idéias basilares Neoliberais e do “Consenso” com as mudanças sofridas pela Constituição de 1988, buscando-se identificar as prováveis influências daquelas idéias no documento jurídico em questão. A base teórica para a pretendida interação entre Economia e Direito reside num meio termo entre as teorias de Karl Marx e a de Hans Kelsen. Para o economista alemão, o Direito seria uma conseqüência do modelo de produção econômica vigente, onde as leis teriam como principal propósito a manutenção do status quo socioeconômico. O Direito, para Marx, faria parte da Superestrutura determinada pela Economia, este sendo a Infraestrutura que estabeleceria as relações numa sociedade. Assim, o Direito somente refletiria as relações de poder determinadas pela Economia. Kelsen, jurista, por sua vez, 1

Neste artigo, se buscará trabalhar a visão “original” do significado da expressão, reconhecendo a impossibilidade de desconexão entre as propostas dos teóricos acadêmicos neoliberais e as “sugestões de Washington”, mas buscando não trabalhar o termo como se fosse uma ideologia ou teoria, e sem tratar o “Consenso de Washington” como sujeito. Ou seja, não serão feitas afirmações do tipo “O Consenso de Washington é responsável...”, ou “O Consenso de Washington fez reformas...”. 2

busca pregar a teoria pura do Direito, onde não caberia aos juristas analisar questões de ordem econômica ou política, mas sim aos sociólogos ou filósofos. Para ele, o Direito não deveria ser avaliado senão em função de sua própria jurisdicidade. No presente estudo, não se seguirá uma interpretação estritamente marxista, apesar de se acreditar na grande força e influência da Economia e da Política no Direito e, por conseguinte, em uma Constituição. No entanto, se partirá do princípio que o Direito não é apenas sujeito passivo dos acontecimentos externos, nem somente um reflexo das relações de poder, posto que, para o efetivo impacto das idéias Neoliberais e do “Consenso”, alterações Constitucionais tiveram que ser implementadas, mostrando a importância do Direito como a única fonte legítima para mudar as “regras do jogo” econômicas num País.

1. Compreendendo o significado de Neoliberalismo e “Consenso de Washington” 1.1 O Neoliberalismo Em 1751, o Marquês d’Argenson teria dito “para governar melhor, é preciso governar menos”, sendo talvez o primeiro autor a empregar a máxima “laissez-faire et laissez passer”, expressão mais popular do Liberalismo Econômico.2 Como se verá, parece ser justo afirmar que o entendimento do Marquês em relação ao papel do Governo tenha continuado a ser usado, dois séculos mais tarde, como pressuposto básico para o “renascimento” da teoria liberal. A teoria econômica Neoliberal é, essencialmente, uma revisão dos pressupostos econômicos descritos pelos teóricos liberais clássicos, atualizando-os para o século XX. Num sentido puramente econômico, a teoria nasce do desacordo de alguns economistas com o grande questionamento que se fez ao liberalismo econômico na década de 1930, defendendo a superioridade e efetividade dessa teoria.3 2

A frase e o autor são citados por John M. KEYNES em seu artigo “O Fim do Laissez Faire”, publicado em 1926. 3 É fundamental ressaltar que nem todos que estudam o significado do que seja “teoria Neoliberal” crêem que ela possa ser compreendida como uma corrente econômica (que ganhou espaço no plano político). Para alguns, não se poderia falar somente do contexto teórico-econômico, pois que o Neoliberalismo iria 3

A origem do Neoliberalismo remete a outubro de 1929, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, quando os Estados Unidos - já a maior economia industrial do mundo, passa a sofrer de uma crise econômica sem precedentes. Os países de economia capitalista vinham, desde os tempos do liberal escocês Adam Smith e de sua obra “fundadora” da Ciência Econômica, “Riqueza das Nações”, seguindo suas orientações, fazendo do pensamento liberal a ortodoxia econômica para todas aqueles que adotavam a chamada Economia de Mercado. Portanto, nada mais natural do que buscar na teoria Liberal a solução para os problemas decorrentes da quebra da Bolsa. De acordo com o Liberalismo clássico, o Estado deve interferir o mínimo possível na Economia de um País, sendo considerado um “mal necessário”. Tanto que as funções dos Governos deveriam ser: promover a segurança nacional, protegendo o país contra invasores estrangeiros; garantir o cumprimento dos contratos; preservar a ordem interna; e, como colocado por SMITH4, “erigir e manter as instituições e obras públicas que, embora altamente vantajosas para toda a sociedade, são de natureza tal que os lucros jamais compensariam as despesas se estas estivessem a cargo de um indivíduo ou de pequeno número de indivíduos”. Inicialmente, os governantes norte-americanos seguiram as recomendações tradicionais do Liberalismo Econômico para solucionar a crise, acreditando na premissa que o mercado tem sua própria racionale, e que o Estado não deveria interferir nos assuntos econômicos, seguindo, na prática, o conselho de “laissez-faire”. Como também se acreditava que o mercado sempre tende ao equilíbrio, esse se recuperaria por conta própria, mais cedo ou mais tarde.5 – necessariamente – além, sendo de fato uma ideologia, ou o instrumento novo de dominação do sistema capitalista. A visão de Nilson A. de SOUZA (O Colapso do Neoliberalismo, IN: AQUAVIVA (2000:286)) ilustra bem essa linha de pensamento: “O chamado Neoliberalismo não é uma teoria científica. Nem muito menos uma corrente de pensamento científico. Não chega nem mesmo a ser doutrina. É uma ideologia da oligarquia financeira que domina o mundo, na atual etapa do capitalismo”. 4 SMITH, Adam. The Wealth of Nations. Nova Iorque: Modern Library, 1937, pg. 681. IN: HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 7ª Edição. 5 “A longo todos estaremos mortos”: uma das frases mais conhecidas de J.M.Keynes contesta essa presunção de equilibro “eventual” como justificativa para a não-interferência governamental numa Economia em crise. A crítica é que as soluções devem ser buscadas para o presente, e não simplesmente esperar que a “mão invisível” viesse solucionar tudo. 4

No entanto, com a situação se agravando cada vez mais, é eleito, em 1932, como presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, que lança um programa emergencial de recuperação da economia do País logo no início de seu mandato, em 19336. O programa de F.D.R. era baseado numa forte interferência do Governo para a solução da crise que havia deixado, entre 1929 e 1933, cerca de 15 milhões de americanos desempregados, cinco mil bancos paralisados, 85 mil empresas falidas, e as produções agrícolas e industriais reduzidas à metade do que eram antes do início da quebra da Bolsa.(SANDRONI, 1999:270). Roosevelt logo inicia sua gestão com propostas de um programa de intensa atividade legislativa, chamados de os “Primeiro Cem Dias”, prontamente implementadas pelo Congresso. Foram medidas de urgência, destinadas a fazer com que o Estado agisse de forma pró-ativa, intervindo para recuperar a Economia do país. As palavras-chave das ações seriam Alívio, Recuperação e Reforma (“Relief, Recovery and Reform”).7 Os programas dos “Primeiros Cem Dias”, junto com todas as medidas por ele implementadas e estimuladas, vieram, em seu conjunto, a ficar conhecidas como a base do New Deal (significando Nova Política, ou Novo Acordo). É justo afirmar que, durante a vigência desse projeto econômico, emerge nos EUA a estrutura do Estado do Bem-Estar Social, ou Welfare State, que SANDRONI (1999:220) define da seguinte forma:

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Os norte-americanos consideraram que o presidente Herbert Hoover, que havia assumido o poder em 1929 e tentava a reeleição, pouco havia feito para tentar reverter o quadro recessivo durante seu tempo no poder, tanto que dos 531 votos do Colégio Eleitoral dos EUA, Roosevelt recebeu 472 votos, contra apenas 59 para o outro candidato. 7 Dentre essas medidas estavam: a interferência no sistema bancário do País, reestruturando-o e fechando os bancos que estavam em crise; a proibição à exportação e entesouramento do ouro, buscando recuperar as reservas nacionais e voltar a fazer o dinheiro circular na economia novamente; desvinculação do dólar ao ouro; a criação do Federal Emergency Relief Act, que se baseou na noção que o auxílio para acabar com o desemprego era um direito, ajudando os necessitados, e repassando fundos federais para os estados ajudarem a reverter a situação; implementação de um programa para dar emprego a 250.000 homens entre 18 e 25 anos, onde esse trabalhariam com projetos de reflorestamento, construção de estradas, controle de erosão e enchentes, entre outros. A eles era disponibilizado alimentação, abrigo, transporte, roupas, cuidados médicos e educação e treinamento; a criação da Agricultural Adjustment Administration (Agência de Ajustamento Agrícola), que buscou restabelecer o poder de compra dos agricultores, estabilizando os preços agrícolas; a criação do National Industrial Recovery Act (NIRA), ou Lei nacional de Recuperação Industrial, criado para equilibrar os interesses dos empresários, trabalhadores e consumidores, reduzir o desemprego, além de instituir leis de salário mínimo, regulamentação da jornada de trabalho e proteção aos sindicatos. 5

“Sistema econômico baseado na livre-empresa, mas com acentuada participação do Estado na promoção de benefícios sociais. Seu objetivo é proporcionar ao conjunto dos cidadãos padrões de vida mínimos, desenvolvendo a produção de bens e serviços sociais (...). Não se trata de uma economia estatizada; enquanto as empresas particulares ficam responsáveis pelo incremento e realização da produção, cabe ao Estado a aplicação de uma progressiva política fiscal, de modo a possibilitar a execução de programas de moradia, saúde, educação, Previdência social, seguro-desemprego e, acima de tudo, garantir uma política de pleno emprego.” Ainda na década de 1930, um outro elemento fundamental entra em cena, revolucionando a teoria econômica e questionando a percepção liberal do papel do Estado na Economia: em 1936, o lorde John Maynard Keynes publica sua mais famosa obra, “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”. Para muitos estudiosos da área, Keynes é considerado o maior economista do século XX, por combinar estudos teóricos da Economia com uma aplicabilidade prática, sendo justo afirmar que “a principal motivação da postura crítica adotada por Keynes não era simplesmente teórica, mas acima de tudo, política. O que ele tinha em vista era uma maior intervenção do Estado na geração e na canalização dos investimentos”.8 De acordo com a lógica econômica Liberal da época, ainda que a Economia de qualquer País estivesse numa situação difícil, por pior que ela parecesse, não caberia ao Estado interferir. A razão (liberal) seria de que o Mercado, por ter uma lógica própria e contar com a ajuda da “mão invisível”, no longo prazo alcançaria novamente o equilíbrio. Coincidência ou não, Keynes parecia ter um certo desapego a teorias que valorizavam o longo prazo em detrimento do momento atual. Isso fica bem claro em sua frase mais célebre e reproduzida: “A longo prazo todos nós estaremos mortos”.9 8

John Maynard Keynes: economia / organizador da coletânea Tamás Szmrecsányi. São Paulo: Ática, 1984 (pág. 18) 9 A famosa frase de Keynes está posta em sua obra A Tract on Monetary Reform: “It would follow... that an arbitrary doubling of [the money stock], since this in itself is assumed not to affect [the velocity of money or the real volume of transactions] ... must have the effect of raising [the price level] to double what it would have been otherwise. The Quantity Theory is often stated in this, or a similar, form. Now "in the long run" this is probably true. If, after the American Civil War, the American dollar had been stabilized... ten per cent below its present value ... [the money stock] and [the price level] would now be just ten per cent greater than they actually are.... But this long run is a misleading guide to current 6

Com o final da Segunda Guerra Mundial, a ortodoxia econômica dominante muda em todo o mundo em favor do intervencionismo estatal, baseado nas idéias keynesianas, na experiência do New Deal e do Welfare State norte-americano, e na própria necessidade de reconstrução econômica pós-guerra de vários Países, fazendo com que, pouco a pouco, o Liberalismo fosse posto de lado. No entanto, nem todos ficaram satisfeitos com a mudança teórica, existindo, desde os “100 dias” de Roosevelt, críticos à idéia do Estado como ator econômico e agente de políticas intervencionistas na economia10. Esses críticos, eventualmente, vieram a ficar conhecidos como “neoliberais”, por defenderem a eficiência e eficácia dos preceitos liberais clássicos, adaptando-os, porém, à realidade da virada do século XVIII-XIX para o mundo pós-Grande Depressão, e buscando a volta do mínimo envolvimento do Estado na Economia. Antes ainda do final da Segunda Guerra Mundial, em 1944, o economista austríaco (naturalizado inglês) Friedrich Hayek publica a (considerada) primeira obra acadêmica de cunho neoliberal11, “O Caminho da Servidão”, onde basicamente rejeita o intervencionismo estatal dos Países capitalistas, que vinha se desenhando desde o início dos anos 1930, questionando as idéias keynesianas e advogando a volta das idéias liberais, preocupando-se com o limite entre intervenção e controle do Estado sobre a sociedade.12 Nos anos 1950 emerge o pensamento de outro economista, dessa vez o norte-americano Milton Friedman, que viria a ser, junto com Hayek, o maior expoente neoliberal13. Principal teórico da chamada “Escola Monetarista”, Friedman vai trabalhar as questões affairs. In the long run we are all dead. Economists set themselves too easy, too useless a task if in tempestuous seasons they can only tell us that when the storm is long past the ocean is flat again.”(grifo nosso). 10 A Suprema Corte dos EUA, de forte viés conservador, rejeitou a interferência governamental em assuntos econômicos, declarando, em 1935/6, inconstitucionais várias das iniciativas de F.D.R. 11 Cabe mencionar que o próprio autor considerava o livro uma obra essencialmente política, e não tanto “econômica”. 12 Eamonn BUTLER (1983:10) descreve as idéias políticas de Hayek no “Caminho da Servidão”: “mesmo um pouco de planejamento econômico requer um maquinário coercitivo para forçar as pessoas a agirem de certa forma, de acordo com os planos traçados. Hayek diz que isso é uma receita para um governo arbitrário: ao invés de tratar as pessoas igualmente, o planejador socialista tem que tratá-las como meros instrumentos para o alcance do plano econômico. Em pouco tempo, o poder da agência de planejamento sobre a vida e a ambição de indivíduos deveria tornar-se cada vez mais completo, e o poder nela embutido acaba atraindo líderes políticos menos escrupulosos do que os dos socialistas idealistas. Assim, os socialistas moderados acabariam sendo levados para um caminho que nenhum deles desejou, mas somente o abandono de seus ideais afastaria a direção para o totalitarismo”.

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de teoria econômica que darão suporte “técnico-acadêmico” ao pensamento neoliberal, tendo como foco principal a questão da moeda. Como coloca SANDRONI (1999:409), os monetaristas consideram inútil e prejudicial a intervenção do Estado na expansão do desenvolvimento econômico, por meio de despesas de investimento (pedra basilar do pensamento keynesiano). Na verdade, deveria apenas dirigir-se cientificamente a evolução da massa de dinheiro em circulação para obter o desenvolvimento e a estabilidade econômica, já que a inflação e outros fenômenos teriam raízes puramente monetárias. De acordo com esse pensamento, a inflação seria o principal problema de qualquer economia, e causa básica de outros problemas econômicos, especialmente do desemprego. No entanto, do final da Segunda Guerra até pelo menos a metade da década de 1970, de uma forma geral, o pensamento keynesiano, baseado no intervencionismo do Estado na economia, foi predominante na maioria dos países capitalistas. Nesse intervalo de tempo, as idéias neoliberais já se desenvolviam no plano acadêmico, mas poucas foram as oportunidades de inserção no plano político14. A teoria Neoliberal passa a ter impacto real na formulação de políticas e na forma de gerenciamento governamental no final da década de 70 e o início da década seguinte, com a subida de Margareth Thatcher ao poder na Inglaterra, e de Ronald Reagan nos Estados Unidos, que passam a utilizar os pensamentos de Hayek e Friedman como bases teóricas para ações políticas. A partir de então, tem início nesses dois Países um processo de revisão da estrutura estatal baseada no Welfare State e no pensamento macroeconômico keynesiano que, posteriormente, se estenderia a outros Países, e faria com que, na década de 90, o pensamento neoliberal se tornasse a “nova ortodoxia” de política econômica e organização estatal a ser seguida por todos os Países.15 Como se verá, o Brasil não 13

Além dos dois, cabe menção a outros teóricos neoliberais, como Popper, Lipman e Von Mises. Apesar da ortodoxia keynesiana, alguns países da América Latina, como o Brasil (dos militares e, principalmente, de Delfim Neto) e o Chile (de Augusto Pinochet), já mantinham no Governo economistas que seguiam a lógica de preocupação monetarista desde o início da década de 70. 15 Vários analistas acreditam que a intenção de dogma, ou “pensamento único”, que se vislumbrou dar à nova prática política esteve visível desde o início, ilustrada com a famosa frase da Sra. Thatcher, ao afirmar “There is no alternative” (não há alternativa). Ao que parece, a frase virou tão habitual da 14

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passou incólume à mudança de paradigma do papel do Estado na Economia. O retorno da máxima do Marquês d’Argenson, promovido em maior parte pelos governos de Thatcher e Reagan, serviu para apoiar ações no sentido da desregulamentação de mercados, que se traduziram, na prática, em privatizações, quebras de monopólios, fim da crença na obrigação estatal de busca do pleno emprego, redução do poder de sindicatos e reformulação das leis trabalhistas, entre outras medidas. 1. 2 O “Consenso de Washington” O termo “Consenso de Washington” foi cunhado pelo economista John WILLIAMSON (1999) no início dos anos 90. Ele mais tarde afirmou que não tinha a intenção de criar na expressão um sinônimo para Neoliberalismo ou “Fundamentalismo de Mercado”, ou muito menos imaginou que o termo fosse carregar tanto peso ideológico. Segundo Williamson, a origem imediata do termo veio de uma tentativa de resumir quais das iniciativas de políticas públicas, emanadas de Washington durante os anos de ideologia conservadora, haviam sido incluídas no mainstream intelectual pós-Ronald Reagan. Para ele, seria basicamente o “menor denominador comum” das reformas que “Washington” concordava serem necessárias para a América Latina (nos idos de 1989), daí o nome “Consenso de Washington”. Assim, se vê que o “Consenso de Washington” nasce de uma maneira “informal”, situada cronológica e geograficamente. Informal por que não se originou de uma discussão entre agentes econômicos, buscando o que seria “ideal” para um País alcançar sucesso, ou muito menos de um conjunto de acadêmicos propondo as melhores políticas públicas – até por que “menor denominador comum” está a léguas de distancia de “ideal” ou “melhor”. Situada em temos de tempo e espaço por que se fala de uma visão para a América Latina, na virada da década 1980-1990. Entretanto, como o próprio autor do termo é forçado a reconhecer, o fato de haver resposta da primeira ministra para os críticos de suas medidas “pró-mercado”, que ficou conhecida também pelo acrônimo “TINA”. 9

“inventado” a expressão não lhe deu o direito de propriedade do uso e significado do termo, daí por que tantas interpretações diversas do que o “Consenso” representa hoje em dia. No documento que deu origem à expressão, o autor argumenta que, de acordo com seu ponto de vista, o conjunto de reformas políticas que a maior parte das instituições sediadas em Washington acreditavam que seriam boas para os países latino-americanos poderia ser resumido em dez propostas: 1) Disciplina Fiscal; 2) Redirecionamento nas prioridades nos gastos públicos, para setores que ofereçam alto retorno econômico e potencial para melhorar a distribuição de renda, como saúde e educação básica, e infra-estrutura; 3) Reforma fiscal; 4) Liberalização das taxas de juros; 5) Taxa de câmbio competitiva; 6) Liberalização do comércio; 7) Abertura para a entrada de Investimento Estrangeiro Direto (Foreign Direct Investment); 8) Privatização; 9) Desregulamentação 10) Garantia dos direitos de Propriedade Intelectual. Avaliando-se as propostas como um todo, fica visível a implementação da idéia de “menos Governo”, ou pelo menos, um menor campo para sua atuação no campo econômico. Fica evidente a busca pela otimização das receitas e das despesas governamentais (itens 1 a 3), bem como preocupação com as monetárias (itens 4 e 5). Também existe uma clara tendência para a crença nas benesses do mercado competitivo em todos os setores possíveis (itens 6 a 9) - com exceção do que for relativo à propriedade intelectual (item 10).

Como se verá posteriormente, a década de 90 trouxe grandes discussões quanto ao papel do Estado estabelecido pela Constituição Federal brasileira promulgada em 1988. No

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que ela trata de questões da Ordem Econômica, percebe-se a incorporação de idéias de origem neoliberal, e, de forma ainda mais clara, a tendência à absorção dos itens 6 a 9 do Consenso de Washington, ou seja, aqueles que lidam diretamente com questões de competitividade.

2. Constituição Federal de 1988: sua origem e suas transformações Num sentido restrito, a definição de Constituição seria “um conjunto de preceitos jurídicos, geralmente reunidos em um código, que discrimina os órgãos do poder público, fixa-lhes a competência, declara a forma de governo, proclama e assegura os direitos individuais”.16 2.1 As Constituições Brasileiras anteriores a 1988 No que diz respeito às Constituições brasileiras, todas elas adotaram o Capitalismo como sistema de produção, explicitado através do dispositivo de proteção à propriedade privada. No entanto, quanto ao limite do poder do Capital, da intervenção do Estado na Economia, da existência de empresas estatais, entre outras nuances do equilíbrio da interação Economia x Direito, cada Constituição retratou de forma única a realidade de sua época. As Constituições do século XIX são extremamente influenciadas pelas idéias do liberalismo econômico clássico, onde se compreende como função do Governo a nãointerferência na Economia, interferindo apenas o estritamente necessário. As Cartas de 1824 e 1891 garantem o direito de propriedade em sua plenitude17, além de afirmarem que nenhum gênero de trabalho, cultura, indústria ou comércio pode ser proibido.18 Não havia quaisquer menções a Salário Mínimo, Saúde, Educação, competência do Estado na área econômica, intervenção estatal na Economia, sindicatos ou condições de trabalho. Essa ausência é bastante significativa, especialmente na primeira constituição republicana. Afinal, o país já vivia o início de uma realidade burguesa e industrial no 16

AZAMBUJA, Darcy. Introdução à Ciência Política. São Paulo: Globo, 2001 (página 169) Art. 179, item 22 (CF 1824) e Art.72, §17 (CF 1891) 18 Art. 179, item 24 (CF 1824) e Art. 72 §24 (CF 1891) 17

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limiar do século XX. O silêncio da lei dizia que não cabia ao Estado, mas sim aos agentes econômicos, ou seja, indivíduos e empresas, determinar suas regras de interação.19 As constituições posteriores a essas seriam bastante diferentes, a modificarem totalmente a compreensão do papel não só do Estado, mas das próprias funções e garantias constitucionais na seara econômica. A primeira CF a exibir essa mudança foi a promulgada em 1934, tornando-se a percussora da introdução do Título tratando da Ordem Econômica e Social. A transformação retratada no texto constitucional resultou do impacto de uma série de fatores, essencialmente internacionais, que levaram à decadência da ortodoxia liberal clássica, como: a Revolução Russa (1917) e a Constituição Alemã de Weimar (1919)20; o final da 1ª Guerra Mundial, com a prevalência dos chamados “ideais democráticos”; além da Grande Depressão, cujas conseqüências já foram abordadas. Assim, com a Carta de 1934, institucionalizam-se inúmeras garantias sociais, além de uma diferente concepção do relacionamento entre o Estado e a Economia que, de forma geral, têm se mantido até a presente Constituição. Dentre esses valores sedimentados na realidade constitucional brasileira, encontrou-se sempre presente – apesar de em diferentes graus, a aceitação de que cabe ao Estado um papel ativo e responsável pela orientação da Economia do País, e não a aceitação de sua presença meramente passiva. No entanto, como se verá, essa rejeição constitucional de mais de cinco décadas ao laissez-faire passa a questionada, de maneira constante e visível, na década seguinte à promulgação da CF 1988. 2.2 A Constituição Federal do Brasil em 1988

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A legislação brasileira sob a égide da Constituição de 1891 vai passar a adotar uma preocupação social somente nos anos 20, sobretudo na área trabalhista. 20 POLETTI (2001:16): “A Constituição de Weimar institucionalizara a social-democracia, procurando conciliar a liberdade individual com a necessidade de um Estado, cuja função não ficaria restrita à produção de normas jurídicas, mas estenderia a sua atuação de maneira que se transformasse num Estado não meramente de direito, mas também um Estado político e administrativo. A Revolução soviética, por sua vez, impusera a presença organizada da massa de trabalhadores no poder, através de um partido disciplinado e coeso na sua doutrina ideológica, o qual, tomando posse da máquina estatal, seria fiel aos desígnios de planejamento total em matéria de Economia e aos de vivenciar, a seu favor os defeitos que apontava no mesmo Estado, quando em poder da burguesia e dócil às determinações da estrutura capitalista de produção”. 12

A chamada “Constituição Cidadã” nasce refletindo a realidade brasileira do retorno da primazia de anseios democráticos, suprimidos pelo regime ditatorial que governou o País por duas décadas. São inúmeras as novidades introduzidas no texto constitucional, tanto no que diz respeito aos chamados “novos” temas, quanto às garantias individuais. O Título VII desta Constituição ficou reservado para a Ordem Econômica e Financeira, abrangendo os artigos de 170 a 192 (vide anexo). No plano teórico, a Constituição nasce rodeada de inúmeras discordâncias no que diz respeito ao papel que o Estado deve ter na Economia brasileira. As divergências quanto ao texto constitucional foram grandes21, provavelmente deixando muito poucos satisfeitos de forma plena. HORTA (1995: 296) explica os antagonismos presentes nas discussões e no texto final das questões econômicas da CF 1988 da seguinte forma: “Intervencionismo e liberalismo se alternam na formulação dos princípios e essa relação alternativa, que poderá conduzir ao primado de um ou outro, exprime o clima de ambigüidade e duplo sentido que percorre as cláusulas da Ordem Econômica e Financeira. Liberalismo, intervencionismo e dirigismo econômico refletem as correntes que se debateram na Assembléia Nacional Constituinte e as maiorias eventualmente vitoriosas imprimiram no texto da Constituição e a concepção heteróclita da Ordem Econômica”. Assim, é justo afirmar que a Constituição Cidadã, na sua origem, e no que tange o relacionamento Estado x Economia, apresenta a continuidade do intervencionismo estatal22 baseado no Estado do Bem-Estar social e nos preceitos keynesianos, assim como a ascensão das influências da Teoria Neoliberal, que, apesar de presente, não chegou a ser a corrente predominante à época da constituinte.23 HORTA (idem), mais uma vez, coloca muito bem a realidade dessa “disputa” de 21

Elaborado por Eros Roberto Grau, uma coletânea de idéias que retrata bem a miríade de opiniões é: “A Ordem Econômica e Social na Constituinte: o debate na imprensa”, IN: Processo Constituinte: a ordem Econômica e Social. São Paulo: FUNDAP, 1987 (págs. 119-133). 22 É importante lembrar que o intervencionismo presente na Constituição de 1988 não é apenas baseado na teoria de Keynes, já que muitos defenderam uma abordagem nacionalista, uma razão de cunho essencialmente político, diverso da intervenção fundada no keynesianismo, cujos pressupostos originaram-se em princípios da Teoria Econômica. 23 Dentre os que advogavam essa postura mais neoliberal que a Constituição nascente deveria ter estavam, notadamente, a Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) e o político Roberto Campos. 13

correntes ao avaliar os artigos da Constituição: "A Constituição contém a regra de sabor liberal (art.173), mas, de outro lado, reduzindo consideravelmente o alcance da regra da intervenção excepcional, ressalva a subsistência dos casos previstos da Constituição, que são numerosos. (...). A Constituição autoriza o planejamento de atividades econômicas pelo Estado (art. 174) e prevê a lei federal de diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado (art. 174 § 1o). A Constituição abrandou a opção pelo planejamento estatal, que geralmente conduz às experiências autoritárias da direção central da economia pelo Estado, forma que atravessa notável declínio, fazendo a distinção entre planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (art.174)". 2.3 A Constituição Federal brasileira em 2003 Apesar da corrente Neoliberal não ter sido a predominante em 1988, aos poucos foi ganhando mais terreno no cenário político nacional. Cada vez mais se falava da necessidade de sair do modelo do Estado Intervencionista e trilhar pela “nova ortodoxia” de modelo de atuação político-econômico Neoliberal. Isso se justifica nas discussões políticas que pareciam pleitear, de forma explícita ou velada, a volta de um grau maior de laissez-faire. As presidências de Fernando Collor de Mello e de José Sarney mostraram passos neste caminho, mas é com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) que o cenário constitucional se transforma efetivamente, tanto que, em 1995, são aprovadas quatro Emendas Constitucionais (n.ºs 6 a 9) com impacto direto no ordenamento jurídico que regulamenta a Ordem Econômica brasileira.24 A Emenda Constitucional nº 6 institui grandes mudanças no conceito e na direção de atuação do papel do Estado na Economia, de duas formas. Primeiro, redefine o conceito de “Empresa Brasileira” contido no artigo 170, estabelecendo que empresa brasileira 24

Apesar da aprovação de Emendas Constitucionais estarem a cargo do Congresso Nacional, foi o Poder Executivo quem efetivamente patrocinou a mudança da estrutura do Estado brasileiro, como será visto no texto em documentos oficiais assinados pela Presidência da República. 14

passa a ser aquela instalada no País, independentemente da origem do capital. Em segundo lugar, a Emenda “quebra” do monopólio do petróleo, colocando que a União pode contratar, com empresas privadas, a realização de atividades de pesquisa e lavra de petróleo e gás natural. A posição da Presidência da República a respeito dessas mudanças encontra-se na Mensagem do Presidente endereçada ao Congresso Nacional (1996): Com efeito, a eliminação do tratamento diferenciado entre empresas brasileiras e empresas brasileiras de capital nacional, já aprovada pelo Congresso, extingue o tratamento preferencial às empresas nacionais nas aquisições do Governo e abre à participação de empresas estrangeiras os setores de mineração e de energia. (...). Com o decisivo apoio do Congresso Nacional, foi possível aprovar a eliminação desse monopólio [de petróleo], o que permitirá a contratação de empresas privadas para a realização de atividades em todos os segmentos do setor de petróleo. Ao lado do Estado, a participação da iniciativa privada contribuirá para ampliar os investimentos e aumentar os ganhos neste setor. A Emenda seguinte acabou com a reserva de mercado para as empresas nacionais no que tange a navegação interior e de cabotagem, e a de nº 8 acaba com outro monopólio: o das telecomunicações, permitindo à União, mediante concessão, contratar empresas privadas para explorar serviços telefônicos, telegráficos e de comunicações. Para a Presidência (idem): (...) Igualmente relevante é a abertura do setor de telecomunicações à iniciativa privada. Pelo texto antes vigente, a exploração de serviços de telecomunicações era um monopólio da União, que poderia ser exercido tão somente por empresas estatais. Com a emenda aprovada, compete também à União autorizar, conceder ou permitir a exploração dos serviços de telecomunicações. Abre-se, agora, o debate sobre o novo modelo setorial de regulação que possibilitará a entrada de capital privado nessas atividades e a total reestruturação do setor, mantendo-se nas mãos do Estado o poder concedente, regulamentador e fiscalizador.

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Por fim, a Emenda Constitucional de nº 9 flexibiliza o monopólio estatal de gás canalizado, permitindo a participação de empresas privadas nos serviços de distribuição. De forma breve, privatizar significa tirar um mercado do controle público (estatal) e passá-lo para o universo privado. Em 1996, o Estado brasileiro passa a “diminuir” em decorrência da quebra dos monopólios, ocorrendo a privatização de uma série de mercados. Na Mensagem Presidencial para o Congresso no ano de 1997, o Governo explica a situação da seguinte forma: O processo de privatização é importante para a redução do "custo Brasil" e a superação de deficiências de infra-estrutura que poderiam limitar severamente o crescimento da Economia. (...). A privatização é também um instrumento importante de política fiscal, na medida em que permite reduzir o estoque da dívida e a pressão dos juros respectivos sobre o gasto público. (...). Menos visível, mas igualmente fundamental, é o fortalecimento da função reguladora do Estado, especialmente ali onde sua participação como produtor direto de bens e serviços está sendo reduzida. O saneamento das instituições financeiras federais está devolvendo ao Governo — e ao País — outro poderoso instrumento de política econômica. Todas elas estão com mais recursos para aplicar, e com prioridades claras para aplicar melhor. As mudanças “econômicas” na Constituição seguiram, notadamente com a aprovação da Emenda 19/98, que mudou as regras de contratação para a Administração Pública25. O objetivo governamental foi “(...) propiciar condições legais para a reversão das características de burocratização, centralização e rigidez ainda marcantes na administração pública brasileira”.

3. Neoliberalismo, Consenso de Washington e as Emendas Constitucionais. Não é difícil encontrar uma correlação entre a Teoria Neoliberal, as propostas do Consenso de Washington e as mudanças ocorridas na Constituição brasileira na década 25

A EC n.º 33/2001 também incidiu sobre a disposição da Ordem Econômica, modificando a redação do art.177, ao incluir o §4º, alterando as aspectos tributários, notadamente da cobrança de ICMS. 16

de 90. As transformações constitucionais, implementadas através de Emendas, parecem refletir a Teoria Neoliberal em, pelo menos, três aspectos: rejeição ao Estado Intervencionista; crença na eficiência do mercado, e busca da liberdade para a circulação dos meios de produção (capital e trabalho). Como conseqüência das reformas, o Estado brasileiro deixaria de ser proprietário de empresas produtivas e passaria a ter um papel mais regulador e fiscalizador.26 Certo ou não – já que as opiniões divergem radicalmente – a eficiência e o sucesso do mercado, através da liberalização, estariam justificados na nova realidade mundial. A crescente velocidade dos mercados internacionais “globalizados” demandaria atuações rápidas, e a interferência estatal dificultaria essas respostas imediatas. Daí, para alguns, mais uma razão para se acreditar na necessidade de modificar o papel do Estado na economia. Quanto ao Consenso de Washington e as Emendas Constitucionais à Constituição de 198827, fica claro a absorção das seguintes propostas daquilo descrito por John Williamson: 1. Liberalização do comércio: aqui estão contidas as mudanças no sentido de quebra de monopólios, como expresso nas mudanças advindas de várias aprovações de modificação à Constituição promulgada em 1988: − EC n.º 6, que “quebrou” o monopólio estatal do petróleo. − EC n.º 7 acabou com a reserva de mercado da navegação interior e cabotagem, abrindo-o para empresas “de fora”. Originalmente, o texto dizia, no art. 178, §3º “A navegação de cabotagem e a interior são privativas de embarcações nacionais, salvo caso de necessidade pública, segundo dispuser a lei”. Com a mudança, o tema é tratado da seguinte forma: “Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na 26

Presidência da República - Governo Fernando Henrique Cardoso. Os Rumos para 1996 A vinculação das Emendas Constitucionais com as idéias do Consenso de Washington não pretende ser exaustiva.

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cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras”.(art. 178, § único). − EC n.º 8, que acabou a restrição do mercado privado para as telecomunicações; − EC n.º 9, que permitiu a participação privada na distribuição de gás.

2. Abertura para a entrada de Investimento Estrangeiro Direto (Foreign Direct Investment): a Emenda n.º 6 parece ter sido direcionada exatamente neste sentindo. Se antes a Constituição tinha como um de seus princípios da Ordem Econômica um “tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.”, com a mudança o texto passa para “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País” (grifo nosso). Ou seja, não mais importa a origem do capital, o que facilita a entrada de recursos externos na Economia nacional, aumentando a liberalização da circulação de capital.

3. Privatização: a Emenda n.º 8 privatizou o sistema de telecomunicações, atribuindo ao Estado apenas a função de conceder, regulamentar e fiscalizar a atuação privada; O Estado não mais se caracteriza como fornecedor do serviço em si, deixando de ser um Agente Econômico provedor, para tornar-se uma instituição que apenas “orienta” o mercado privado. Ao privatizar, adota-se a postura de crítica à estrutura keynesiana de inserção direta do Estado na Economia, e, mais uma vez, a crença de superioridade da atuação do mercado (em detrimento da atuação pública) numa Economia de base capitalista. 4. Desregulamentação: a menor intervenção do Estado nas relações econômicas está visível em todas as Emendas, já que todas elas incidem sobre a idéia de “less is more”, ou seja, quanto menos “interferência” estatal, melhor. Daí a idéia do Estado regulamentar menos estar intimamente ligada à noção de flexibilização. A Emenda de n.º 19 foi aquela que efetivamente absorveu esses princípios, ao alterar as normas da Administração Pública no que diz respeito às regras trabalhistas para os servidores públicos. A justificativa governamental seria a de que o mercado de trabalho vinculado ao setor público deveria ter tratamento paralelo com o do mercado de trabalho privado.

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4. Considerações Finais O escritor francês Vitor Hugo tem uma conhecida frase que diz “On resiste a l'invasion des armees; on ne resiste pas a l'invasion des idees”.28 Ou seja, é possível resistir a uma invasão armada, mas não a uma invasão de idéias. Assim, o que começou com a experiência chilena29 em 1975 de aplicação prática das idéias neoliberais, e passou a ter impacto mundial com Thatcher e Reagan na década posterior, alcançou a Constituição brasileira na metade dos anos 90. O fato é que o Direito, tanto no sentido abstrato (princípios), quanto no sentido concreto (estrutura jurídica), não está alheio ao que ocorre ao seu redor, já que todo ordenamento jurídico é feito por pessoas que vivenciam um determinado contexto histórico, e aplicam sua percepção da realidade para o âmbito jurídico. Marcus AQUAVIVA (2000:76) faz referência a um material de Charles A. Beard, dizendo que este “realizou uma interpretação econômica da Constituição dos EUA, demonstrando os interesses econômicos inerentes a toda Constituição, afirmando ‘ser inteiramente falso o conceito de que a Constituição é uma peça de interpretação abstrata, na qual não se reflete nenhum interesse de grupo e não se reconhece nenhum antagonismo econômico (...)’”. O autor ainda cita o brasileiro Pinto Ferreira, este afirmando “ser evidente a atuação da realidade social (econômica e cultural) sobre os textos constitucionais, sendo o ideal de Constituição condicionado historicamente, mediante a pressão de fatores socioculturais e espirituais, como também da infra-estrutura econômica das sociedades”. (2000:76-7). Portanto, o que se pode tirar do estudo proposto é que a base teórica a alimentar a discussão sobre qual seja a função ideal do Estado no âmbito econômico não advém primariamente do universo jurídico, mas sim de posições políticas e econômicas. 28

Histoire d'un Crime, La Chute, X. Em 1956, foi firmado um acordo de cooperação acadêmica entre a Universidade Católica do Chile e a Universidade de Chicago (“lar” de Milton Friedman), cujos objetivos eram, entre outros, o incentivo às pesquisas sobre o papel do setor privado no crescimento nacional. Após o golpe militar de 1973, os frutos

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Por fim, quanto às mudanças constitucionais ocorridas advindas do universo de idéias Neoliberais, sejam elas boas ou más, não há garantias que sejam permanentes. Nada impede que novos ventos tragam outros questionamentos quanto à estrutura estatal presente e proponham diferentes transformações. Afinal, “nenhuma idéia é tão antiquada que não tenha sido um dia moderna. Nenhuma idéia é tão moderna que não venha a ser um dia considerada antiquada”.30

Bibliografia − AQUAVIVA, Marcus Cláudio. Teoria Geral do Estado. SP: Saraiva, 2000. − BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. − BUTLER, Eamonn. Hayek. Grã Bretanha: Billing and Sons Ltd, 1983. − Constituições Federais Brasileiras de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. − FIORI, José Luís. 60 Lições dos 90 – Uma década de Neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2001. − GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2000, 5ª edição. − HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. − John Maynard Keynes: economia / organizador (da coletânea Tamás Szmrecsányi). São Paulo: Ática, 1984. − Mensagem do Presidente da República para o Congresso Nacional 1996. Brasília: 1996. − Mensagem do Presidente da República para o Congresso Nacional 1997. Brasília: 1997. − Presidência da República - Governo Fernando Henrique Cardoso. Os Rumos para 1996. Brasília: 1996. do intercâmbio começariam a ser observados no plano econômico, através de privatizações, redução dos gastos fiscais, abertura ao mercado exterior, entre outras medidas preconizadas pela teoria neoliberal. 30 “No idea is so antiquated that it was not once modern. No idea is so modern that it will not someday be antiquated” – Ellen Glasgow, escritora norte-americana (1936).

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− POLETTI, Ronaldo. Constituições Brasileiras: 1934. Brasília: Senado Federal e MCT, 2001. − SANDRONI, Paulo. Novíssimo Dicionário de Economia. Best Seller: São Paulo, 1999. − WILLIAMSON, John. "What Washington Means by Policy Reform", IN J. Williamson, ed., Latin American Adjustment: How Much Has Happened?. Washington: Institute for International Economics, 1990. − _______________. “What Should The Bank Think About The Washington Consensus?” - Paper preparado como apoio ao World Development Report 2000. Washington: Banco Mundial, 1999.

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