Reflexos de uma sociedade: a indumentária como difusor cultural na sociedade francesa pré-revolucionária (1774 - 1789)

May 30, 2017 | Autor: Lucas Santos Rosa | Categoria: French History, French Revolution, Marie Antoinette, Attire, Fashion, Rose Bertin
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

LUCAS SANTOS ROSA

REFLEXOS DE UMA SOCIEDADE: A INDUMENTÁRIA COMO DIFUSOR CULTURAL NA SOCIEDADE FRANCESA PRÉ-REVOLUCIONÁRIA (1774 – 1789)

CURITIBA 2016

LUCAS SANTOS ROSA

REFLEXOS DE UMA SOCIEDADE: A INDUMENTÁRIA COMO DIFUSOR CULTURAL NA SOCIEDADE FRANCESA PRÉ REVOLUCIONÁRIA (1774 – 1789)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado em História. Orientadora: Prof.ª. Dr.ª Maria Cecília Barreto Amorim Pilla

CURITIBA 2016

Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central

Rosa, Lucas Santos R788r

Reflexos de uma sociedade : a indumentária como difusor cultural na

2016

sociedade francesa pré revolucionária (1774 – 1789) / Lucas Santos Rosa. -- 2016. 76 f. : il. ; 30 cm

TCC (História) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2016. Bibliografia: f. 74-76

1. Vestuário. – França. 2. Maria Antonieta. Rainha, consorte de Luis XVI, Rei da França, 1755-1793 - Trajes. 4. Moda - História. I. Pilla, Maria Cecília Barreto Amorim. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Escola de Educação e Humanidades. III. Título.

CDD 20. ed. – 391.009

LUCAS SANTOS ROSA

REFLEXOS DE UMA SOCIEDADE: A INDUMENTÁRIA COMO DIFUSOR CULTURAL NA SOCIEDADE FRANCESA PRÉ-REVOLUCIONÁRIA (1774 – 1789)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado em História.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________ Maria Cecília Barreto Amorim Pilla Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________ Daniele Rocha Saucedo Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Cidade, ____ de ________ de 2016.

Dedico este trabalho ao meu avô, José Rosa, que ao longo de minha vida sempre serviu como uma inspiração para mim.

AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente à minha mãe, Semíramis Santos Rosa, que sempre me incentivou em meus estudos e me apoiou ao longo desta jornada, assim como em minha própria vida, servindo como um porto-seguro para mim.

Também agradeço à minha orientadora, Maria Cecília Barreto Amorim Pilla, que me auxiliou durante a pesquisa e proporcionou o melhor desenvolvimento desta, além de propiciar meu crescimento como pesquisador.

Agradeço também pelo apoio de minha família, em especial à minha tia Thaís Santos Rosa.

Agradeço aos meus colegas de curso, Marina Kool Artioli Beneciuti, Giovanna Alves dos Santos, Larissa de Freitas, Marcelo Cardoso Amato, Fabio Bogdan e Jonathan Felipe Espigiorin de Oliveira, que durante estes três anos e meio propiciaram lembranças e momentos que ficarão em minha memória por muito tempo.

Também agradeço aos amigos de fora, estando perto ou longe, Mariana, Amanda, Pamela, Jennifer, Andressa e Allan, que demonstraram algum interesse ao longo desta parte de minha vida e continuaram ao meu lado.

E por último, mas definitivamente não menos importante, José Guilherme Pamplona por ter continuado me apoiando e lido esta pesquisa a cada alteração que eu fazia, mostrando seu apoio diversas vezes mesmo em períodos de estresse e nervosismo.

RESUMO O trabalho tem como objetivo analisar a indumentária francesa no período do reinado de Luís XVI e Maria Antonieta, procurando estabelecer uma relação entre o vestuário e a cultura do momento na França, buscando mostrar como a indumentária servia como formador e difusor cultural na sociedade francesa, utilizando das figuras de Maria Antonieta e sua marchande de modes, Rose Bertin, para mostrar como a indumentária era uma área de atuação ativa por parte da soberana para impor a si mesma perante seus súditos. A monografia, portanto, apresenta uma análise da sociedade do período da França no século XVIII e como esta se portava perante as mudanças constantes no ramo indumentário. Buscou realizar-se um breve paralelo da indumentária com os desastres financeiros na França, mesmo que em pouca escala, assim como as manobras sem sucesso de Maria Antonieta para contornar o ódio da população perante ela e a eventual quebra financeira do Estado.

Palavras-Chave: França. Maria Antonieta. Indumentária. Moda. Rose Bertin.

ABSTRACT The paper has as focus to analise french attire during the reign of Louis XVI and Marie Antoinette, trying to stablish an relation between the garments and the culture of France at the time, trying to show how the apparel served as trainer and cultural diffuser in French society, using of figures as Marie Antoinette and her marchande de modes, Rose Bertin, to show how attire was an active occupation area by the Queen to impose itself towards her subjects. The monograph, therefore, presentes an analysis of the French society at the time during XVIII century and how the society carried herself before the constant changes on the sartorial branch. It was looked for to do a brief parallel of the attire with the financial disasters on France, even on smaller scale, as with the unsuccessfull manouvers of Marie Antoinette to contour the population hate towards her and the eventual financial collapse of State.

Keywords: France. Marie Antoinette. Attire. Fashion. Rose Bertin.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9 2. FRANÇA: ANTECEDENTES POLÍTICOS E SOCIAIS........................................... 12 2.1 ATUAÇÃO DE LUÍS XVI DURANTE SEU REINADO............................................... 23 2.2 PARIS E A SOCIEDADE FRANCESA.......................................................................... 35 3. A INDUMENTÁRIA NA FRANÇA (1774 – 1789)......................................................... 43 3.1 ROSE BERTIN, A “MINISTRA DA MODA”................................................................. 53 3.2 ANÁLISE DA INDUMENTÁRIA COMO FORMADORA CULTURAL...................... 60 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................. 74 FONTES PRIMÁRIAS.......................................................................................................... 76

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1. INTRODUÇÃO

Esta monografia tem como objetivo realizar uma análise da indumentária e como esta poderia ser considerada uma formadora cultural dentro da sociedade francesa prérevolucionária ao longo do reinado de Luís XVI e Maria Antonieta. O tema foi escolhido, a princípio, por afinidade. A história do vestuário e o vestuário dentro da História cultural material são áreas de abordagem interessantes e que proporcionam estudos variados. Neste sentido, foi procurado realizar a abordagem da indumentária com um recorte espacial e temporal do qual também houvesse afinidade. O recorte temporal desta monografia se passa no período entre os anos de 1774 e 1789, ao longo do reinado de Luís XVI e Maria Antonieta, analisando a conjuntura histórica desde o momento da morte de Luís XV, antecessor do monarca até a Queda da Bastilha, não aprofundando na Revolução para não abordar muitos tópicos e abordá-los de forma rasa. No entanto, para analisar corretamente o sistema político em que Luís XVI estava inserido, foi necessário estender o recorte para a compreensão do contexto histórico do momento, analisando-o desde a ascensão de Henrique IV (1572), como fundador da Dinastia Bourbon da França. O recorte espacial é no caso a nação francesa, tendo como pontos específicos sua capital, Paris, e o Palácio de Versalhes, onde a corte residia desde o reinado de Luís XIV (1643). Alguns pontos específicos do recorte espacial se dão em Lyon por conta de ser um território de grandes indústrias têxteis, mas o foco permanece na capital e na corte francesa, procurando estabelecer uma relação entre um e outro. No entanto, este período destaca-se por sua grande variedade de tendências na indumentária através de dois ícones, a rainha consorte Maria Antonieta e sua marchande de modes, Rose Bertin. Sabendo dos aspectos de uma sociedade hierárquica com suas posições enraizadas, a indumentária destaca-se para a análise da própria questão social e cultural na sociedade francesa do final do século XVIII. “A roupa, signo de adesão, de solidariedade, de hierarquia, de exclusão, é um dos códigos de leitura social”. (ROCHE, 2007, p. 47). A problemática a ser tratada nesta monografia consiste em tentar descobrir se a moda na França de Maria Antonieta pode ter sido um elemento caracterizador de classe. Grande parte das referências são de origem estrangeira, em inglês. Por este motivo, seguirão no corpo do trabalho as traduções das citações utilizadas, enquanto as citações

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originais estarão presentes na nota de rodapé. As fontes primárias utilizadas são todas do Museu Digital de Kyoto, no Japão. Consistem em três vestidos da corte que são datados de acordo com o recorte temporal, podendo estabelecer uma relação de um com o outro e os avanços e mudanças nas tendências da moda da época. Como apoio, também foi utilizado a Gazette des atour de la Reine Marie-Antoinette pour l’année, datado de 1782, preservado e digitalizado pelo Ministério da Cultura Francês. A tipologia da fonte é fonte material da qual está digitalizada. Para realizar a pesquisa buscou-se notar o contexto em que estava envolvida a indumentária e de que forma esta estava inserida na sociedade. Além disto, também foi feita uma análise de como o individualismo aos poucos tentava emergir numa sociedade estagnada e centralizadora da qual ocorria a padronização de comportamentos. Para a fundamentação teórica metodológica serão utilizados alguns teóricos, sendo principalmente o historiador Peter Burke, o filósofo Gilles Lipovetsky e o historiador sociocultural Daniel Roche. Peter Burke auxilia com seu trabalho sobre conceito de História Cultural, enquanto Gilles Lipovetsky realiza um apanhado sobre a necessidade do luxo na sociedade e o destino da moda nas sociedades. Daniel Roche, por sua vez, auxilia no interesse da história da indumentária por si só, trazendo os dados especialmente do século XVII e XVIII de como o vestuário era tratado pela população. Para o contexto histórico a análise se dará a partir do historiador Perry Anderson para caracterizar o Estado Absolutista, o historiador Peter Burke com uma análise do reinado de Luís XIV, a biógrafa Antonia Fraser através da biografia de Maria Antonieta, assim como a biografia da soberana realizada pelo biógrafo Stefan Zweig. Outras biografias serão utilizadas, como a de Rose Bertin, estilista da rainha, escrita por Émile Langlade e a biografia de Luís XVI, por Bernard Vincent. A caracterização da sociedade da época e da própria capital francesa se dão a partir do historiador Daniel Roche que contextualiza o povo parisiense da época em uma de suas obras, o sociólogo Norbert Elias com as obras sobre a sociedade de corte e a obra do historiador Colin Jones sobre Paris. Por fim, a caracterização da História da moda se dará a partir de autores como François Boucher e Carl Köhler, ambos contextualizando de forma mais ampla a história da moda, e Caroline Weber, que aborda especificamente o período estudado fazendo uma relação da rainha Maria Antonieta com a moda.

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A divisão da monografia segue sendo no primeiro capítulo o contexto histórico e os antecedentes do reinado de Luís XVI e Maria Antonieta, o próprio reinado de Luís XVI e suas ações ao longo deste, e a caracterização da sociedade francesa através da observação de Paris como a grande capital da moda e da informação do momento. No segundo capítulo, serão tratados o que define a história da indumentária e sua contextualização para com o momento estudado, a vida de Rose Bertin e como esta influenciou a moda do período ao lado de Maria Antonieta, e por fim, a análise das fontes históricas selecionadas.

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2. FRANÇA: ANTECEDENTES POLÍTICOS E SOCIAIS

O recorte temporal do presente trabalho situa-se entre os anos de 1774, com a ascensão de Luís XVI, até o estopim da Revolução Francesa em 1789. Este período ´período é marcado pela decadência da sociedade do Antigo Regime Uma das estratégias do Estado Absolutista do Antigo Regime de manter as classes baixas e a pequena burguesia controlada através de medidas das quais o soberano utilizaria seus poderes absolutos para realizar tal feito. Apesar das aparentes mudanças em características e organizações na economia, política e no campo militar, o absolutismo permanecia como um regime político de soberania e controle. “Era um Estado fundamentado na supremacia social da aristocracia e confinado aos imperativos da propriedade fundiária”. (ANDERSON, 1974, p. 41) Sendo assim, era um sistema no qual a nobreza tinha o controle das demais classes para bem próprio. Anderson (1974, p.18) caracteriza este sistema político absolutista como “a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada”. Pois este novo sistema de governo surge como uma forma de refúgio para uma nobreza que estava ficando cercada por parte de uma burguesia em ascensão que desejava aumentar seu poder político. Nesse sistema o controle do governo era feito por um único soberano ao invés dos diversos senhores feudais de outrora. A funcionalidade do governo absolutista era a de assegurar a estabilidade e permanência da nobreza como classe dominante, controlando as demais e reprimindo as tentativas de ascensão que estas tentavam realizar. “O resultado foi um aparelho reforçado de poder real, cuja função política permanente era a repressão das massas camponesas e plebeias na base da hierarquia social”. (ANDERSON, 1974, p. 19) A ascensão do sistema absolutista foi propiciada pelo desejo comum dos nobres para o controle da classe burguesa que estava em ascensão, retirando seus poderes políticos, mas assegurando sua estabilidade econômica: Assim, quando os Estados absolutistas se constituíram no Ocidente, a sua estrutura foi fundamentalmente determinada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato, após a dissolução da servidão; mas ela foi secundariamente sobredeterminada pela ascensão de uma burguesia urbana que, depois de uma série de avanços técnicos e comerciais, evoluía agora em direção às manufaturas pré-industriais numa escala considerável. (ANDERSON, 1974, p. 22)

O ressurgimento e difusão das ideias do direito romano também contribuiu para o fortalecimento do absolutismo. As monarquias podiam utilizar do direito romano ao seu

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dispor e tinham base neste algumas de suas características, como o modelo de centralização do poder: Os Estados absolutistas ocidentais fundamentavam seus novos objetivos em precedentes clássicos: o direito romano era a mais poderosa arma intelectual disponível para o seu programa característico e integração territorial e centralismo administrativo. (ANDERSON, 1974, p. 27)

Com o ressurgimento de um direito clássico, agora adaptado aos novos contextos dos séculos XVII e XVIII, a classe letrada em ascensão desde o Renascimento, como profissões de magistrados em tribunais que se tornaram necessárias para a manutenção do Estado e auxílio à classe nobiliárquica, a ponto da influência da classe letrada na figura da nobreza togada ter grande representatividade no Parlamento de Paris. Junto aos letrados, a antiga nobreza feudal encontra a sua própria forma de ascensão dentro do Estado Absolutista. A aquisição de cargos acabou por difundir-se também entre os nobres, e posteriormente os burgueses, que adquiriam cargos pagando uma determinada quantia ao Estado. Henrique IV utilizou deste meio para aumentar a receita do Estado através da paulette1, e a aquisição de cargos continuou como um meio de oferecer a mobilidade social para a classe burguesa que até então encontrava-se estagnada na hierarquia da época. Além disso, a influência dos grandes proprietários de terra acabou encontrando uma concorrência na nova nobreza togada. “[...] o investimento constituía uma utilização racional do capital e também ‘oferecia um importante canal e mobilidade social e pessoal administrativo para o Estado e uma importante fonte de receitas para a Coroa’”. (ROGER, 2016, p. 83) A partir do reinado de Luís XIV, algumas características particulares ao absolutismo francês já estavam estabelecidas. As ameaças dos parlaments2 já não existiam, os impostos para a manutenção do aparelho estatal já estavam sendo utilizados e, em grande medida a antiga autonomia que os municípios possuíam não mais existia: Os estados provinciais não mais podiam discutir e regatear os impostos: a monarquia impôs exigências fiscais precisas, que eles se viram compelidos a aceitar. A autonomia municipal das bonnes villes foi restringida, enquanto as prefeituras eram subordinadas e instalavam-se nelas guarnições militares. (ANDERSON, 1974, p. 99)

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Taxa que autorizava os titulares de cargos a legar ou até mesmo vendes suas posições. Foi implementada em 1604. (Adaptado de ROGER, 2016, p. 83) 2 Eram os tribunais mais altos em suas determinadas regiões, sendo os órgãos competentes para registrar os decretos governamentais. (Adaptado de ROGER, 2016, p. 96)

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Com Luís XIV, um verdadeiro culto de adoração à autoridade real foi instaurado. O monarca é o exemplo idealizado de um autocrata. Não apenas pelo ponto de vista político e econômico, mas pelo fato dele estar representado em grande parte dos espaços públicos. Haviam representações em diversos locais, não apenas em praças, mas em medalhas comemorativas das quais as mais diversas conquistas eram celebradas. “Medalhas e monumentos eram

reproduzidos em gravuras. Abundavam as

representações de

representações do rei e de seus feitos”. (BURKE, 2009, p. 28) Deve ser lembrado também do próprio título pelo qual Luís XIV é lembrado até hoje. A alegoria ao deus Apolo, o deus Sol, não só reafirmava a posição do soberano de forma central diante o reino, como também enaltecia seu poder e grandeza perante os demais. A representação desta grandeza também deve ser lembrada quando passou a ser realizada a comparação de Luís XIV com heróis do passado. Suas conquistas e seus feitos eram enaltecidos e colocados ao mesmo nível de grandes personalidades de outrora:

A imagem do rei era associada aos heróis do passado. Ele foi proclamado um novo Alexandre, um novo Augusto, um novo Carlos Magno, um novo Clóvis, um novo Constantino, um novo Justiniano, um novo são Luís, um novo Salomão, um novo Teodósio. (BURKE, 2009, p.47)

A representação real através da arte era tão importante que o rei chegou a financiar artistas e a criar academias especificamente para estas atividades, dando grande importância para estas ao longo de seu reinado. “As academias eram corporações de artistas e escritores que em sua maioria trabalhavam para o rei. Atuavam também como patrocinadores, encomendando obras que haveriam de glorificar Luís”. (BURKE, 2009, p.63) O cenário principal para a corte neste período, sendo o Palácio de Versalhes, também era marcado por representações da autoridade real. “O Rei Sol havia concebido seu incrível palácio acima de tudo como um lugar em que seus cortesãos poderiam ficar constantemente sob sua vigilância – e ele, por sua vez, sob o olhar extasiado deles”. (WEBER, 2008, p. 50) Não somente pelo soberano habitar aquele espaço, mas o palácio servia como um templo para a morada do rei, a ponto da Grande Galerie ser dedicada exclusivamente para representações de feitos históricos ao longo do reinado do monarca. “[...] Este último, em especial, poderia ser visto como uma exposição permanente de imagens do rei. Ali se via Luís por toda parte, até no teto”. (BURKE, 2009, p. 29)

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Ainda relacionado à Versalhes e ao próprio Luís XIV, encontram-se os diversos rituais cerimoniais do dia-a-dia, como os do lever e do coucher, sendo estes o do levantar e do deitar, respectivamente. Qualquer cerimonial representava um privilégio e honra para o membro da corte que pudesse participar ativamente ou apenas na figura de um observador. Quanto maior seu privilégio com a autoridade real, maior a significância do ato realizado durante um cerimonial, numa verdadeira escala hierárquica dentro da corte. “Era uma honra ser autorizado a ver o rei comer, honra ainda maior receber uma palavra sua durante a refeição, honra suprema ser convidado a servi-lo ou a comer com ele”. (BURKE, 2009, p. 99) Os rituais, portanto, representavam muito mais do que o simples ato de uma refeição em meio a um cerimonial. Numa sociedade de privilégios agregados a todo ato realizado pelo soberano, até mesmo o local em que o nobre se sentava, se é que podia se sentar, já revelava seu nível dentro desta hierarquia em Versalhes. “O direito de se sentar num sofá ou banco (tabouret) na presença real significava muito mais que o mero conforto físico do nobre em questão”.3 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 74) No entanto, o governo absolutista passa por crises ao longo da segunda metade do reinado de Luís XIV. As crises de fome, como a de 1693, a morte do Delfim no ano de 1711, e a Revogação do Êdito de Nantes – que obrigou 200 mil franceses à deixarem a França, incluindo alguns membros das diversas academias de arte instituídas pelo monarca – mostraram a decadência da figura real, assim como a inabilidade dos sucessores de seus ministros de manterem um aparelho estatal como o que havia sido moldado pelo próprio Luís XIV. Junto destas crises, a representação do monarca como o Sol e comparações aos grandes heróis da antiguidade acabaram por declinar, assim como os grandes feitos comemorativos também cessaram, diminuindo os números de medalhas impressas e representações artísticas. Deve ser lembrado, também, que o absolutismo tinha uma característica significativa de seu tempo, como no estabelecimento de exércitos permanentes, o que é tratado por Anderson como uma máquina de guerra. Eles tinham o desejo de ampliar territorialmente seus domínios e sua influência. “Os Estados absolutistas refletiam esta racionalidade arcaica na sua mais íntima estrutura. Eram máquinas construídas predominantemente para o campo de batalha”. (ANDERSON, 1974, p. 32) “The right to sit on a sofá or a stool (tabouret) in the royal presence meant far more than the mere physical of the noble concerned. 3

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A habilidade de possuir um exército fixo e em larga escala era uma característica deste sistema de governo. Não era aconselhável armar os camponeses e fazer com que estes conciliassem o trabalho e treinamento sem a possibilidade de haver revoltas com seus senhores. Além disto, financiar um exército era algo dispendioso. A taille royale4 surge como um dos primeiros impostos permanentes e possui o propósito de cobrir ao menos parte destas despesas. Apesar de haver restringido os poderes da alta nobreza em seus domínios territoriais, fazendo-os residir em Versalhes, o absolutismo francês conseguiu, com êxito, garantir os interesses da nobreza. Mesmo assim, a aristocracia nunca ficou completamente satisfeita com as políticas absolutistas: O absolutismo na França nunca alcançaria confiança e aceitação inquestionáveis por parte da aristocracia em que se baseava. [...] A plenitude do poder real, mesmo quando exercido com brandura, alimentava reservas dos senhores diante dele. (ANDERSON, 1974, p 107)

O que pode ser interpretado é o fato de que mesmo subjugados à vontade do rei, os súditos deste ainda mantinham certa cautela, e as ações realizadas pelo autocrata acabavam promovendo certa revolta e insatisfação pessoal da aristocracia, que pouco a pouco foi se agravando com os reinados posteriores incapazes de manterem a sociedade sob seu controle absoluto. As longas guerras, que como já visto tinham um custo para o Estado, acabaram resultando no aumento de impostos e criação de novos cargos para poder tentar assegurar a estabilidade estatal ao longo da década de 1680: Para financiar o esforço de guerra, criou-se uma cascata de novos cargos à venda, leiloaram-se títulos, multiplicaram-se os empréstimos forçados e as rendas públicas, manipularam-se os valores monetários e, pela primeira vez, foi lançado um imposto de ‘capitação’ ao qual nem a própria nobreza escapou. (ANDERSON, 1974, p. 104)

Entre estas grandes guerras que devem ser ressaltadas, encontram-se a Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648), da qual o conflito inicial ocorreu com a independência do reino da Boêmia perante o Sacro Império. Em resposta, a Suécia e Dinamarca entraram na guerra contra os Habsburgo, iniciando um conflito religioso, visto que os três reinos eram protestantes. A França agiu inicialmente como financiadora dos reinos protestantes, mas após

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Principal imposto direto da França sob a terra, aplicado quase exclusivamente no Terceiro Estado. (Adaptado de ROGER, 2016, p. 116)

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a morte do rei da Suécia, Gustavo II Adolfo, a França entrou pessoalmente no conflito. Como consequência, deve ser destacado o Tratado de Vestfália5. Este evento também deve ser lembrado como a ascensão da hegemonia francesa na Europa, assim como o domínio da Alsácia e Lorena por parte da França, antigos territórios germânicos. A primeira guerra em que pode ser notado o poder e atuação de um monarca absolutista francês foi a Guerra da Devolução, em 1665, que ocorreu após a morte de Filipe IV, fazendo com que Luís XIV considerasse sua esposa como legitima herdeira dos Países Baixos Espanhóis. O rei atuou pessoalmente nas frentes de batalha realizando um feito único até então: ele levou consigo a própria corte. Isso já demonstrava por si só certa necessidade do monarca em reassegurar sua influência perante a corte assim como mostrar seu domínio perante seus súditos. “Rompendo com a tradição, levou sua corte consigo para o campo de batalha, incluindo a rainha e duas amantes reais”. (BURKE, 2009, p. 84) Também é importante ressaltar dentro desta própria guerra, a teatralidade e a ambição de Luís XIV em mostrar para todos seus feitos na guerra. Não só pelo ato de liderar algumas frentes de batalha, mas pelo fato de ter levado pintores e artistas para poder realizar pinturas, tapeçarias e medalhas em comemoração. Ele era o centro de tudo e queria reafirmar-se como tal inclusive no campo de batalha: A apresentação do rei como fazendo tudo por si mesmo é digna de nota. [...] Este padrão seria seguido nos relatos de vitórias posteriores. Poderíamos explica-lo igualmente bem pelas convenções do panegírico como pela relutância do rei em repartir sua glória. (BURKE, 2009, p.86)

Essa guerra deve ser lembrada por mostrar a habilidade de um monarca em seus anos de glória reafirmando seu poder e a aplicabilidade de seu sistema de governo. No entanto, com o passar dos anos, outras guerras acabam ocorrendo, e entre essas, o destaque deve vir para a Guerra de Sucessão Espanhola (1702 – 1713). A Guerra de Sucessão Espanhola ocorreu a partir do testamento de Carlos II, da Espanha. Este havia deixado seu reino para o neto de Luís XIV. Temendo que o reino francês viesse a se tornar ainda maior ao longo do tempo e acabar dominando a Espanha ao longo da hereditariedade de seus governantes, a Áustria e Inglaterra entraram na última guerra contra o

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Uma de suas principais condições foi a da independência religiosa dos príncipes alemães dos estados germânicos perante os Sacro-Imperadores, que tiveram seu poder e domínio reduzidos. Além disto, ele também serviu para diminuir as chances de uma unificação germânica a longo prazo.

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Rei Sol. Àquela altura, Luís XIV não tinha mais condições de liderar campos de batalha, aos seus 64 anos quando a guerra teve início, o monarca já se encontrava com a saúde debilitada e o reino francês se encontrava com problemas financeiros. Essa característica relacionada à idade tem como reafirmação o modo do tratamento do rei perante seus súditos e vice-versa. Outrora com diversas referências divinas e heroicas agora assume a posição paternal. “Luís é apresentado não como uma figura distante, mas como o pai de seu povo, unicamente interessado no ‘repouso’ deste”. (BURKE, 2009, p. 124) A guerra da Sucessão Espanhola findou-se como um desastre para grande parte dos envolvidos. O neto de Luís XIV ascendeu ao trono sob condições da França jamais anexar a Espanha a seu território, mantendo sua independência e gerando o ramo Bourbon espanhol. Nações como a Prússia e Holanda tiveram grandes perdas econômicas, e agora a Inglaterra e a França eram as grandes potências mundiais. A característica militar e o aumento de uma demanda de impostos para manter a economia francesa é recorrente no decorrer do reinado de Luís XIV e seus sucessores. Após a morte de Luís XIV, o Estado francês se encontrava repleto de dívidas, e os governos posteriores não obtiveram muito sucesso em ajustar o controle financeiro: Luís XIV deixara um Estado totalmente afundado em dívidas; a Regência as reduzira à metade com o recurso às moratórias, mas os custos da política externa, a partir da Guerra da Sucessão da Áustria, aliados à extravagância da corte, mantiveram o erário em déficit veloz e cada vez mais profundo. (ANDERSON, 1974, p. 108)

Desta forma, o que pode ser notado é que as ambições do aparelho estatal e uma monarquia inflada pela arrogância6 e luxos pessoais acabam se tornando uma característica marcante do sistema político absolutista. Além disto, ao longo do século XVIII, a ascensão da classe burguesa e sua maior influência no Estado acaba se tornando um ponto de conflito para o absolutismo francês. “[...] o século XVIII presenciaria à regressão da influência não-nobre no aparelho de Estado e a dominação coletiva de uma alta aristocracia cada vez mais unificada”. (ANDERSON, 1974. P. 106) Isto representava um desejo dos burgueses envolvendo seus próprios interesses, e logo a monarquia absolutista mostrou-se incapaz de atendê-los ao mesmo tempo que assegurava os direitos da classe aristocrática. O vínculo intrínseco das relações entre o Estado e a nobreza,

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Entretanto, a restauração da paz por dez anos, na década de 1680, apenas acentuou a arrogância do absolutismo Bourbon. (ANDERSON, 1974, p. 103)

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assim como a ascensão burguesa que tinha suas próprias ambições que não eram garantidas pelo Estado, acabaram por ser um dos aspectos que auxiliaram a queda do absolutismo francês. Com a morte de Luís XIV em 1715, Filipe, duque de Orleans assume a regência durante a menor idade do futuro Luís XV, bisneto do antigo monarca. Luís XV é coroado apenas em 1722. Ao longo de seu reinado, ele destitui o poder do primeiro ministro, governando realmente como um rei absolutista. Ainda assim, cargos políticos de ministros específicos continuaram a existir. Seu envolvimento político com o antigo inimigo da França, isto é, a casa Habsburgo, antecede a Guerra dos Sete Anos. Com a ascensão do ministro Choiseul, um casamento entre os ramos Bourbon e Habsburgo parecia ser uma das melhores soluções para consolidar uma aliança criada entre os dois países no ano de 1756: Pelo Tratado de Versalhes, assinado em 1 de maio de 1756, a Áustria juntou-se com seu tradicional inimigo, a França, num pacto defensivo contra a Prússia. Se algum dos países fosse atacado, o outro viria em sua ajuda com um exército específico de 24 mil homens.7 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 10)

Assim, o casamento favorecia a proximidade entre estes países, mesmo com os sentimentos negativos em relação à Áustria por parte de diversos membros da corte, como o Delfim e sua esposa, além de algumas filhas o próprio Luís XV. Estes possuíam medo que uma aliança e um possível casamento entre descendentes das duas casas levasse a uma tentativa de dominação austríaca na França. Ainda no mesmo ano, a Guerra dos Sete Anos teve seu início. Agora aliados, França e Áustria guerrearam contra as potências da Inglaterra e Prússia. Outros reinos, como a Rússia, Espanha e Suécia também estavam aliados aos franceses. Os motivos para a guerra eram diversos e alguns exclusivos para determinadas nações. A França disputava com a Inglaterra pelo comércio ultramarino enquanto a Áustria procurava reconquistar a província da Silésia, agora em posse prussiana. As consequências desta guerra foram devastadoras para ambos os lados. A França perdeu suas colônias ultramarinas, assim como o direito de estabelecer novas colônias na região da Índia. A Silésia, objetivo tanto prussiano quanto austríaco ficou devastada por

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By the Treaty of Versailles, signed on 1 May 1756, Austria joined with her traditional enemy France in a defensive pact against Prussia. If either country was attacked, the other would come to its aid with an army specified to be 24,000 strong.

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tornar-se um campo de guerra, e a economia francesa entrou em declínio. O fim da guerra é celebrado com a Paz de Paris, em 1763. Apesar dos efeitos desastrosos da Guerra dos Sete Anos, a aliança franco-austríaca ainda perdurava, e era de intenção de ambos os governantes que ela fosse consolidada: [...] no período subsequente Maria Teresa procurou estreitar ainda mais os laços entre sua nação e a de Luís XV. Fiel ao moto8 de sua família, a imperatriz decidiu oferecer sua filha mais nova como noiva para o herdeiro convenientemente solteiro de seu aliado Bourbon. (WEBER, 2008, p. 20)

Maria Antonieta foi levada para Versalhes em 1770. A filha mais nova de Maria Teresa, imperatriz da Áustria, carregava consigo o fardo de ser uma estrangeira numa corte francesa com opiniões contra seu casamento e sua própria ascendência. Os rituais cerimoniais e a rotina diária da família real foi algo que se perpetuou no sistema absolutista mesmo após a morte de Luís XIV. Ainda durante o reinado de Luís XV, Maria Antonieta viu-se em meio a uma sociedade ditada pela etiqueta e formalidade. Em meio ao ritual do lever, a Delfina debochou do sistema, dizendo “Isso é loucura! Isso é ridículo!”.9 (Tradução livre do autor) (CAMPAN, I, p. 95 apud FRASER, 2002, p. 75) Não somente desta forma, sua rotina diária como uma personalidade pública e continuamente sob os olhares da corte passou a ser algo que a jovem Delfina sempre deixou claro nas cartas para sua mãe, mostrando como sua rotina envolvia continuamente sua vida pública e o espaço particular do qual estava habituada na corte austríaca não mais existia. “Eu aplico meu blush e lavo minhas mãos na frente de todo o mundo. Então os cavalheiros saem e as damas permanecem e eu sou vestida na frente delas”.10 (Tradução livre do autor) (ARNETH & GEFFROY, I, p. 118 – 120 apud FRASER, 2002, p. 75) Mesmo após o casamento, o Delfim e a Delfina da França não consumaram o ato matrimonial. Isso levava a uma descrença e uma atemorização por parte de Maria Teresa, que acreditava que a culpa da não-consumação do casamento era inteiramente de sua filha, que não sabia como instigar o marido. Ainda assim, o novo casal real acabava passando uma imagem ao olhar público que era favorável a corte. Sua ingenuidade e juventude contrabalançavam com os efeitos da “Bella gerant alii, tu Austria felix nube.” “Que outras nações façam guerra; tu, feliz Áustria, alcanças teus fins pelo casamento” (Retirado de WEBER, 2008, p. 19) 9 ‘This is maddening! This is ridiculous!’. 10 ‘I put on my rouge and wash my hands in front of the whole world. Then the gentlemen leave and the ladies remain and I am dressed in front of them’. 8

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imoralidade da qual o rei era visto ao lado de suas amantes, sendo a do momento Madame du Barry. A futilidade era uma das características da corte, que se encontrava em decadência moral com uma amante com influência no reino, o que fazia com que o ódio à figura da amante real imperasse e desse a Versalhes a aparência de uma corte regada de luxúria e outros desencantos. “Os dois tinham o ar gracioso de um par real cuja inocência ao olhar público contrastava favoravelmente com a reputação corrupta do rei, suas ninfetas e agora sua indisciplinada amante”.11 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 82) O ódio pela figura da amante real não era exclusivo do povo. A própria Delfina e outros membros da corte não gostavam desta. Coloca-se Maria Antonieta como uma figura que, em teoria, estava à altura de diminuir os poderes da favorita do rei. “Maria Antonieta representava, assim, uma ameaça para a própria Madame du Barry e para o grupo cujo progresso social na corte ia de par com a posição inigualável ali ocupada pela favorita”. (WEBER, 2008, P. 29) A fraqueza de Luís XV por du Barry era questionada constantemente, e sua influência no cenário político foi provada quando Choiseul foi afastado de seu cargo. Ele havia declarado abertamente uma guerra contra a favorita do rei, e junto disto também havia perdido grande parte de sua influência para com o monarca. O Ministro, responsável pela aliança franco-austríaca e por eventos como a Guerra dos Sete Anos, agora encontrava-se afastado: Mesmo com todas as enérgicas reformas no exército e na marinha por Choiseul, tão necessárias por conta da Guerra dos Sete Anos, ele não foi hábil de resolver o problema das finanças do país, que haviam sido severamente filtradas por este conflito. Além disso, Luís XV, encontrando um meio de encurtar as atividades do Parlamento de Paris, encontrou seu Ministro do Exterior aliando-se com este por medidas como a supressão dos jesuítas. 12 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 89)

Assim, o poder da favorita do rei é reafirmado. O afastamento de Choiseul, um dos poucos aliados de Maria Antonieta na corte é motivo de Maria Teresa coagir a filha a ao menos trocar palavras com Madame du Barry. Além disto, o novo ministro que sucedeu Choiseul era um dos membros do círculo de confiança de du Barry, o Duque d’Aiguillon. Posteriormente, o Parlamento de Paris – do qual Choiseul serviu como aliado – foi dissolvido,

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The two of them had the air of gracious royal pair whose innocence in the public eye contrasted favourably with the debacuhed reputation of the King, his nymphets and now his wanton mistress. 12 For all Choiseul’s energetic reforms of the army and navy, so necessary following the Seven Years’s War, he had not been able to solve the problem of the country’s finances, which had been severely strained by that conflict. Furthermore Louis XV, looking for a way to curtail the activities of the Parlament de Paris, found his Foreign Minister siding with it over such measures as the supression of the Jesuits.

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e outro foi formado em seu lugar por ordens de Luís XV. Apesar dos protestos de alguns príncipes e membros da aristocracia, o rei preferiu ignorá-los e os baniu da corte. Em 1772, o reino da Polônia entrou em uma guerra civil, da qual os reinos da Áustria, Prússia e Rússia acabaram por dominar grande parte do território polonês. A França, como aliada da Polônia – a antiga rainha, esposa de Luís XV era polonesa – acabou ficando sem reação para com a atitude de seus aliados austríacos. Apesar do receio da Imperatriz Maria Teresa para com o que poderia acontecer com a aliança franco-austríaca, nada ocorreu. “Como esperado, a aliança provou ser impregnável simplesmente porque Luís XV não tinha intenções de quebra-la. Ele tinha poucos motivos para resgatar a Polônia por conta de uma força poderosa e unida do outro lado”.13 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 100) Ao que parecia, tanto o interesse de Luís XV quanto de Maria Teresa não eram possíveis de serem quebrados quanto com sua aliança. Nem a invasão da Polônia, nem a nãoconsumação do casamento de Maria Antonieta e Luís Augusto pareciam abalar as relações diplomáticas entre seus países. No entanto, em 1774, a saúde de Luís XV começou a declinar. O rei contraiu varíola, e junto disso o reinado de du Barry foi findado. Para que a absolvição dos pecados fosse feita, a favorita precisava ser enviada para longe, e isso foi algo que as filhas do monarca incentivaram. “Por suas filhas devotas, elas estavam compreensivelmente determinadas que seu bem-estar espiritual deveria tomar precedência e que a favorita deveria ser banida”.14 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 115) Luís XV morre no começo de maio de 1774. Seu governo foi incapaz de ter alguma eficácia no controle financeiro, apenas aumentando as dívidas principalmente com a Guerra dos Sete Anos. “Os cofres da nação estavam deploravelmente esvaziados e grande parte do povo subalimentado. Seu soberano – outrora chamado de ‘Luís o Bem-Amado’ – perdera nos últimos tempos o apelido juntamente com o respeito dos súditos”. (WEBER, 2008, p. 29) O monarca foi capaz de alterar a imagem da corte implantada por Luís XIV. Apesar de conservar os rituais e os aspectos políticos de um governo absolutista, a imoralidade e frivolidade da corte, assim como a vida particular inserida na vida pública acabaram por fazer o governo francês ser visto com maus olhos por parte de sua população.

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As it happened, the aliance proved to be impregnable simply because Louis XV had no intention of breaking it. He had little means to rescue Poland in the face of a United and powerful force on the other side. 14 As for his devout daughters, they were understandably determined that his spiritual welfare should now take precedence and that the favourite should be banished.

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2.1 ATUAÇÃO DE LUÍS XVI DURANTE SEU REINADO

Após a morte de Luís XV, seu neto o sucede em 1774. É preciso recordar que Luís XV agora não gozava de boa popularidade entre seus súditos. Sua memória e o luto generalizado não foram tão comoventes como o de seu predecessor, e grande parte da população estava mais curiosa e com maior expectativa sobre o reinado de seu herdeiro. Ou seja, Luís XVI aparentemente possuía certa popularidade em seu reino, ainda sustentada pelos mesmos aspectos anteriores da jovialidade e pureza que representavam o novo casal de monarcas: Não havia dúvida de que o novo reino era imensamente popular em seu início. Não apenas a indiferença generalizada sentida pela memória do falecido rei, mas também as vívidas expectativas entretidas por seu sucessor contribuíram para isso. A ascensão ao trono de um ‘príncipe jovem e virtuoso’ era esperada para liderar uma ‘regeneração’.15 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 121)

Talvez com essa própria declaração já pode ser entendido o motivo da afeição e da popularidade dos monarcas decaírem ao longo dos anos. O povo esperava uma mudança. Não política, já que a imagem pública de Luís XVI aparentemente lhes era agradável. Mas os costumes e aparência de uma corte fútil e vulgar eram esperados a caírem no esquecimento. Isso não significava o fim da sociedade absolutista, apenas uma reformulação desta. A imagem decadente criada por Luís XV ao lado de suas amantes não era agradável, e não se esperava que fosse perpetuada por Luís XVI e sua consorte. Luís XVI sempre possuiu certa preocupação com a sociedade em que governava, assim como tinha interesse em sua população e nos assuntos políticos. No entanto, é preciso lembrar que ele não havia sido bem preparado para assumir o trono, assim como é especulado sobre seu avô, Luíx XV. Acredita-se que Luís XVI não possuía a ambição e determinação de um monarca, além da falta de dominância e atitude. Por esse motivo, a escolha para os ministros de seu gabinete era de extrema importância. Estes o auxiliariam a manter o país sob controle em assuntos que lhe faltavam o devido conhecimento: Louis XVI era um jovem homem honrado e consciente, mas mesmo aqueles que o desejavam bem referiam a sua indecisão, e a necessidade para uma natureza mais forte para dominá-lo, uma relíquia sem dúvidas da falta de confiança inculcada em 15

There was no doubt that the new reign was immensely popular at its oustet. Not only the general indifference felt for the memory of the late King, but also the vivid expectations entertained for his successor contributed to this. The accession to the throne of a ‘young virtuous prince’ was expecte to lead to a ‘regenaration’.

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sua infância não-amada. Além disso, não há evidências de que ele havia sido preparado por seu avô para ser ‘o mestre’. 16 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 124)

Nesse mesmo aspecto podemos encontrar a característica da passividade do rei, que durante o período revolucionário é especulado que este era manipulado por sua mulher, Maria Antonieta. Essa alegação já se dá desde o momento do isolamento de du Barry, no entanto, esse isolamento foi realizado pelo próprio rei sob a influência das Mesdames Tantes17. A influência das Mesdames acabou sendo mascarada pela própria imagem da rainha consorte, que com os anos foi tida como vilã na corte pelo olhar público. No entanto, desde o início do reinado de Luís XVI, Maria Antonieta já se queixava da falta de apoio do marido em suas opiniões, que normalmente pendiam favoravelmente não só ao reino da França, mas a Áustria. “Em suma, o rei preferia o conselho de suas tias francesas aos de sua esposa austríaca”.18 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 125) Sob essa influência encontra-se o surgimento do Conde de Maurepas no cargo de Primeiro Ministro. Nesse primeiro apontamento já se vê que a rainha não possuía influência, já que ela favorecia o retorno do Conde de Choiseul. Outro cargo que acabou sendo mudado foi o de Ministro do Exterior, agora sendo exercido pelo Conde de Vergennes. Ambos os conselheiros viam a aliança franco-austríaca com olhos neutros. Apesar de a favorecerem em alguns pontos, preferiam manter uma atitude defensiva, temendo o espírito de expansão de José II já que Maria Teresa estava sucumbindo ao declínio de sua saúde. Não somente pela própria expansão de José II, mas a influência que Maria Antonieta poderia vir a exercer acabou sendo diminuída cada vez mais por conta de seu parentesco com o Imperador. Qualquer conselho que procurasse dar ao seu marido acabava sendo ignorado e substituído pelos de seus ministros, que convergiam para a mesma visão de Luís XVI quanto a sua esposa e família. “Em sua suspeita pela Áustria, Maurepas e Vergennes encontraram uma identidade conveniente com a visão de seu soberano. Os três homens olhavam cautelosamente a rainha Habsburgo”.19 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 126)

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Louis XVI was na honourable and conscientious young man, but even those who wished him well referred to his indecisiveness the need for a stronger nature to dominate him, a relic no doubt of the lack of confidence inculcated during his unloved childhood. Furthermore there is no evidence that he had been prepared by his grandfather to be ‘the master’. 17 [...] as três filhas solteironas de Luís XV, Adelaide, Vitória e Sofia. Conhecidas coletivamente como ‘Mesdames’ (o nome convencional para as filhas do rei) ou “as Tias” (dada sua relação com o herdeiro do trono). (WEBER, 2008, p. 29) 18 In short, the King preferred the advice of his French aunts to that of his Austrian wife. 19 “In their suspicion of Austria, Maurepas and Vergennes found a conveniente identity of view with their sovereign. And all three men looked warily on the Habsburg Queen.” (FRASER, 2002, p. 126)

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Maria Antonieta, aconselhada por seus parentes a ter uma influência sob seu marido, não foi capaz de notar que as rainhas francesas, em sua maioria, não exerciam grande papel político. A influência e o domínio sob a figura masculina costumava ser exercida pela amante real. E no reinado anterior, isto havia sido ainda mais evidente sob a figura de Pompadour e du Barry. Maria Lesczinska, a rainha consorte anterior pouco havia feito na política. E este era o modelo de uma rainha que os franceses estavam desejando com a suposta reorganização política no reinado de Luís XVI: Maria Lesczinska, treinada por seu pai para ser intensamente grata por sua posição, fez apenas uma pequena aventura no cenário político aproximadamente cinquenta anos antes, e após isso retrocedeu para uma vida formal, devota e isolada. Ela era, no entanto, vista – pelos franceses – como um modelo de rainha. 20 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 127)

Ainda assim, Maria Antonieta mostra-se incapaz de fazer isso, mantendo uma imagem pública da suntuosidade da corte aos olhos públicos. “Em vez de expurgar o ‘Seminário da Devassidão’ de Du Barry, ela o reconstituíra a seu próprio estilo extravagante”. (WEBER, 2008, p. 149) Procurando desfazer da imagem de uma corte lasciva como a de Luís XV, o novo governante não demorou a se preocupar com novas medidas de saúde, sendo estas as vacinas, assim como reconstruir a imagem moral da nação e da própria corte. "Logo de início, Luís XVI, que já gozava de uma boa imagem junto à opinião pública marcava um ponto importante. Preocupado com a saúde física da família real, o novo soberano estava da mesma forma preocupado com a saúde moral do país e da corte”. (VINCENT, 2011, p. 71) Entre tais medidas, pode ser encontrado o envio de Madame du Barry para um exílio num convento por alguns anos. A reforma em seu gabinete ministerial também é outro ponto que acaba trazendo pontos positivos e negativos em longo prazo, sendo que as diversas crises que estavam cada vez mais próximas faziam a inexperiência do monarca ser refletida em suas ações. O Ministro Turgot, que havia tomado o posto de Controlador Geral das Finanças em 1774, realizou diversas reformas que são aos poucos denominadas como uma revolução fiscal. Apesar do pouco apoio da classe aristocrática, o sistema econômico francês finalmente parecia ser capaz de possuir certo equilíbrio após anos. “Turgot tinha a intenção de reformar o 20

Maria Lesczinska, trained by her father to be intensely grateful for her position, had made one little venture at a political action nearly fifty years earlier, and had thereafter subsided into a formal, pious, secluded life. She was, however, seen – by the French – as a model of a queen.

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sistema tributário, com medidas que envolviam a redução dos privilégios fiscais da nobreza. Eles também tentou estabelecer um mercado livre de grãos”.21 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 134) O setor econômico francês possuía características similares à época medieval, e adaptar as características à modernidade seria uma das primeiras medidas do Ministro: A corveia seria, nos planos do controlador-geral, substituída por um imposto que caberia a todos os proprietários de bens imóveis: tratava-se de abolir (moderadamente) os privilégios e de submeter à taxação os membros da nobreza e do clero nas mesmas condições as que estavam submetidos os demais cidadãos. (VINCENT, 2011, p. 90)

Em primeira instância, o que pode ser visto é que o descontentamento com as reformas aparece especialmente nas classes altas. Os magistrados, proprietários e clérigos agora viamse ameaçados por tais reformas que davam a autonomia à população, que até então era controlada e dependia destes. Já a população em geral agradecia ao rei. "Os camponeses não paravam de agradecer a esse rei tão preocupado com a exploração que eles sofriam havia tantos séculos”. (VINCENT, 2011, p. 91) Apesar do apoio da classe baixa, o sistema implantado pelo controlador das finanças logo entrou em colapso. Em 1774, uma colheita desastrosa acabou quebrando completamente o sistema do mercado livre de grãos que o ministro havia tentado impor. “Infelizmente, a colheita desastrosa em 1774 agravou a dificuldade causada por um sistema que já havia sido mal recebido desde o começo”.22 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 134) Essa escassez acabou gerando uma crise no setor econômico, que levou a rumores de que o alto preço do pão era mantido por lucro. Estes motivos acabaram se transformando em revoltas populares contra o governo autocrata vigente, sendo denominada a Guerra das Farinhas. "Entre maio e junho de 1775, correm os rumores de que a fome ronda as esquinas. Os preços decolam. Tanto em Paris quanto em Versalhes, e em algumas cidades do interior, as padarias são pilhadas”. (VINCENT, 2011, p. 81) A coroação de Luís XVI ocorre em 1775, na cidade de Reims. Apesar da sugestão do ministro Turgot de que esta ocorresse em Paris com uma cerimônia simples, devido aos manifestos, os demais conselheiros insistiram numa localidade mais distante da capital. A

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Turgot intended to reform the tax system, with measures that involved reducing the fiscal privileges of the nobility. He also tried to establish a free market in grain. 22 Unfortunately a disastrous harvest in 1774 compounded the hardship caused by a system that was ill received in the first place.

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partir de sua coroação, o reinado do último rei do Antigo Regime francês já é descrito como algo pomposo e extravagante: A magnificência da coroação real, que chamou a atenção da multidão quando passou por Paris nas semanas que antecederam a cerimônia, foi igualada pela ostentação dos festivais na própria cidade de Reims e pela exuberância do momento em que, na culminação da coroação, as grandes portas da catedral foram abertas e a população foi permitida a saudar o rei.23 (Tradução livre do autor) (BAKER, 1978, p. 279)

A coroação destacou-se pelo gasto dispendioso para que o evento ocorresse, coisa comum numa coroação de antecessores do monarca. Por mais que Luís XVI tivesse políticas para a contenção de despesas, sabendo da situação financeira e econômica de sua nação, o momento de sua coroação pode ser considerado um gasto "justificável", visto que este representava a autoridade real perante a nação francesa. A felicidade e contentamento público durante a coroação não difere do que se passou em 1773, quando Luís XVI - ainda Delfim da França - realizou sua primeira visita oficial em Paris, junto de Maria Antonieta. O respeito e a apreciação pelo casal era algo presente naquele momento na capital: [...] tudo se passara numa atmosfera de respeito ao mesmo tempo digna e calorosa, sendo que os espectadores não poupavam ao casal principesco seus aplausos e vivas. [...] Eles tinham, juntos e logo de início, conquistado o coração de Paris, o que, dado o clima político que reinava então na capital, representava um feito significativo. (VINCENT, 2011, p. 65)

Com o relato de 1773 mencionando que ambos tinham a apreciação do povo parisiense, não é espantoso relacionar a coroação de Luís XVI como um evento de grande representatividade e impacto para a sociedade que agora reverenciava seu novo soberano do qual pareciam apreciar. Apesar da crise relacionada a falta de pão para o povo, a coroação pode ser vista como um manifesto de felicidade e suposta aprovação e comoção generalizada com a figura de seus novos soberanos, inclusive sendo um dos assuntos de Maria Antonieta para sua mãe numa de suas cartas: As cerimônias da Igreja [foram] interrompidas no momento da coroação pelas mais tocantes aclamações. Não pude evitar, minhas lágrimas correram sem eu querer, e 23

The magnificence of the coronation regalia, which drew crowds when exhibited in Paris in the weeks preceding the ceremony, was matched by the ostentatiousness of the festivities in the city of Rheims itself and by the emotional exuberance of the moment when, at the culmination of the coronation service, the great doors of the cathedral were opened and the populace was admitted to hail its king.

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fui felicitada [...]. É algo surpreendente e ao mesmo tempo muito bom ser tão bem recebida. (Correspondence secrète entre Marie-Thérèse et le cte de MercyArgenteau apud VINCENT, 2011, p. 88.)

A Guerra das Farinhas não havia parado no momento da coroação, por isso é importante destacar a felicidade popular e dos soberanos neste distinto momento, assim como em demais relatos. A França encontrava-se definitivamente sob um novo governo, com um povo ansioso por novas mudanças e aparentemente certa afeição por seus monarcas. “Segundo, como Maria Antonieta falou para sua mãe depois, ela foi afetada pelas ‘mais tocantes aclamações’ por parte do povo e a evidente devoção mostrada para os dois; isto apesar da falta de pão, que continuou”.24 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 135) No entanto, nenhuma das decisões de Luís XVI é considerada tão impactante para a economia e declínio da monarquia absolutista na França como sua ajuda à Revolução Americana. Sabendo que Luís XVI considerava a política externa algo de uso exclusivo da figura real, ele acabou ignorando os conselhos do ministro Turgot, que não apoiava a participação francesa no conflito. No entanto, o monarca tinha o apoio do Conde de Vergennes, que provavelmente havia o instigado a levar a França para essa guerra. “Essa intervenção na América era o invento de Vergennes, que via em termos da tradicional hostilidade francesa para com a Inglaterra: o que machuca a Inglaterra (isto é, uma revolta americana) ajudava a França”.25 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 152) A França, com a ajuda da Espanha, na figura de Carlos III, acabou fazendo uma aliança contra a Inglaterra em apoio à Revolução Americana em 1778. No entanto, no ano de 1779, a Espanha estava relutante em participar efetivamente da guerra, pois sua vulnerabilidade era consideravelmente maior do que a dos franceses. “Os espanhóis, que haviam finalmente se aliado com a França em abril do ano anterior, continuarem parceiros relutantes, pois suas colônias os tornavam mais vulneráveis no Novo Mundo do que a França”.26 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 171) Após algum tempo, outras nações se aliaram às potências continentais contra a Inglaterra e seu domínio marítimo:

Second, as Marie Antoinette told her mother afterwards, she was affected by “the most touching acclamations” on the parto f the people and the evidente devotion shown to them both; this despite the shortage of bread, which continued. 25 This intervention in America was the brainchild of Vergennes, who viewed it in terms of traditional French hostility to England: what hurt England (that is, na American revolt) helped France. 26 The Spaniards, who had finally allied themselves with France the previous April, remained reluctant partners, given that their colonies made them more vlnerable in the New World than France. 24

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Paralelamente, os esforços da diplomacia levaram a outro resultado importante: a assinatura em 9 de março de 1780, de uma declaração de "neutralidade armada", aliando, além da França e da Espanha, as principais potências europeias (Rússia, Dinamarca, Áustria, Prússia, Portugal, Reino das Duas Sicílias) contra a Inglaterra e seus ataques permanentes à liberdade marítima. (VINCENT, 2011, p. 117)

Após o fim da Revolução Americana em 1783, que resultou na vitória das Treze Colônias com o auxílio francês, os danos financeiros e sociais para a França tornaram-se ainda maiores. Apesar de também enfraquecida, a Inglaterra acabou conseguindo recuperar-se de forma mais acelerada que a própria França. “O fato era que o gasto hediondo em enviar milhares de tropas francesas e navios para lutar no Novo Mundo mergulhou o governo ainda mais na fútil espiral do déficit, assim como Turgot havia previsto”.27 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 152) Por sua vez, a França agora enfrentava os resultados de suas ações na política externa diretamente no seu sistema governamental: O fato de que a vitória das ideias e valores novos que deixando de ser teóricos profundamente, os alicerces (VINCENT, 2011, p. 127)

ex-colônias americanas marcou o triunfo prático de já estavam latentes na nossa sociedade, mas que, ou apenas pensados, abalariam ainda mais, e seculares, para não dizer medievais, da monarquia.

Desta forma, a convivência com um sistema político novo que contradizia, em grande parte, o sistema vigente na França do período, acabou por estimular as revoltas e anseios de uma população descontente com as diversas crises e a vida aparentemente suntuosa que ainda se mantinha na corte e nas casas dos membros das classes mais abastadas nos centros urbanos. O desejo por mudança e por uma maior igualdade acaba florescendo, sendo que quem indiretamente havia auxiliado nessa mudança de governo no continente americano agora era visto como o vilão e mantenedor de um regime atrasado em sua própria nação. Além disso, os escândalos da corte passaram a tomar conta do cenário público, fazendo a figura do rei e de sua consorte caírem em descrédito. Entre estes eventos, o mais notável é o famoso Caso do Colar em 1785. Para a análise deste, é necessário entender que a suposta imagem frívola da rainha foi desenvolvida e colocada sob olhar público, aumentando o ódio que a população passava a sentir por sua soberana. O evento teve uma série de conflitos e todas as personagens envolvidas possuíam fragmentos da história da qual fazia com que estes agissem por impulso de forma que 27

The fact was that the hideous expense of despatching thousands of French troops and ships to fight in the New World plunged the government still further into the giddy spiral of deficit, just as Turgot had predicted.

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achassem que fosse lhes beneficiar. Boehmer, o joalheiro da corte tentou vender para Maria Antonieta um colar composto por 647 diamantes num valor próximo de dois milhões de francos. Uma carta recebida pela rainha sugeria que novamente lhe propunham a venda do colar: Madame, nós estamos no ápice da felicidade em ousar pensarmos que as últimas preparações que foram propostas para nós e que nos sujeitamos com zelo e respeito, são uma nova prova de nossa submissão e devoção para as ordens de Vossa Majestade. Nós temos grande satisfação em pensarmos que o mais belo conjunto de diamantes no mundo estará à serviço da maior e melhor das rainhas. 28 (Tradução livre do autor) (HAYNIN, p. 196 apud FRASER, 2002, p. 227)

Maria Antonieta preferiu queimar a carta e não realizar mais negócios com Boehmer, e instruiu seus súditos para que contassem que ela não gostava mais de diamantes, numa forma de evitar tal história do suposto colar continuar a se propagar. Na análise desta carta a figura do cardeal de Rohan aparece. Ele não havia tido contato com a rainha desde seu casamento com Luís XVI, quando este ainda era Delfim da França. Rohan tinha o interesse de agradar a rainha, acreditando que esta queria o colar, mas não tinha o dinheiro para adquiri-lo, e fazendo este favor a ela conseguiria o prestígio na corte e sua aprovação. “Ele estava sob a impressão que adiantando a grande quantia de dinheiro requerida, ele iria assegurar seu desejo de ganhar o favor da rainha”.29 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 229) No desenrolar desta história, a figura de Boehmer acaba relatando que o cardeal de Rohan havia adiantado o dinheiro por ordens da própria rainha, e sob este argumento o Caso do Colar, de fato, se inicia. Boehmer possuía não apenas a palavra de Rohan a seu favor, mas também tinha cartas com a assinatura da própria rainha. É importante ressaltar que o cardeal era um inimigo político de grande parte do séquito de ministros e protegidos de Maria Antonieta. Especialmente Breteuil, Ministro da Casa Real, viu nas cartas forjadas e na atitude do cardeal uma chance de acabar com seu inimigo, o mesmo pensamento era partilhado por Conde Mercy d’Argenteau e por Vermond, leitor real e protegido de Maria Antonieta. “Os três pensaram na pequena vantagem de destruírem Rohan

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Madame, we are at the summit of happiness to dare to think that the latest arrangements which have been proposed to us and to which we have submitted with zeal and respect, are a new proof o four submission and devotion to the orders of Your Majesty. We have real satisfaction in the thought that the most beautiful set of Diamonds in the world will be at the service of the greatest and best of Queens. 29 Second, he was under the impression that by advancing the large sum of money required, he would secure his heart’s desire of gaining the Queen’s favour.

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ao invés da proteção da reputação da rainha”.30 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 231) Apenas durante o início do julgamento do cardeal de Rohan, descobre-se a presença de mais uma pessoa no Caso do Colar. O cardeal alegou que havia recebido o bilhete através de uma mulher chamada Condessa de Lamotte Valois. A carta entregue por esta condessa tinha um ponto importante que Luís XVI notou assim que a leu. Ela não havia sido escrita, se quer assinada, por sua esposa. A assinatura estava como “Maria Antonieta da França”, coisa que quebrava as regras da corte e da etiqueta, pois as rainhas apenas assinavam com seus nomes batismais. “Respirando a etiqueta real desde o nascimento, o rei simplesmente não conseguia entender como um cortesão, e acima de todos um Rohan, um membro de uma família tão perspicaz aos detalhes de status poderia cometer tal erro”.31 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 232) O erro do Cardeal Rohan é tido como um equívoco em decorrência da ansiedade e impulsividade da chance de possuir um privilégio dentro a sociedade de corte e do séquito de sua soberana. “O cardeal era parte de um sistema que fazia o privilégio real tão essencial que as pessoas recorriam às mais desesperadas medidas para o adquirir”.32 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 233) A figura da rainha, no entanto, não foi isolada do evento. Num dos encontros que o cardeal relatou, ele havia dito que encontrou com a rainha pessoalmente, mas esta usava um véu. No entanto, esta era Nicole d’Oliva, uma prostituta contratada pela Condessa de Lamotte. A imprensa passou a denunciar o evento como uma conspiração política executada pela própria Maria Antonieta, e que esta fazia de tudo para apenas enganar o rei e livrar-se de seu adversário político, no caso o Cardeal de Rohan. “Fersen declarou para o rei sueco no começo de setembro de 1785 que todos acreditavam que a rainha havia enganado o rei.”33 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 241) O julgamento serviu para piorar a opinião pública da rainha. O Parlamento de Paris, responsável pelo julgamento, declarou Rohan inocente, fazendo com que ele realizasse uma

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All three of them thought of the narrow advantage of destroying Rohan, rather than the protection of the Queen’s reputation. 31 Breathing royal etiquete since birth, the King simply could not understand how a courtier, and above all a Rohan, a member of a family so keen on the details of status, could make such a mistake.” 32 The Cardinal was part of a system that made the royal favour so essential that people resorted to desperate measures to acquire it. 33 As Fersen reported to the Swedish King as early September 1785, everybody believed that the Queen had fooled the King.

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doação para os pobres e pedisse o perdão real. Ele foi banido da corte, mas isso não serviu para sua condenação: O Parlamento acreditou em sua boa-fé. Quanto ao pressuposto na parte do cardeal de que a figura velada no Bosque de Venus era a rainha murmurando convidativamente em sua direção, era uma implicação de legitima suposição. Esta foi a denúncia mais prejudicial ao modo de vida da rainha, como havia sido intencional. 34 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 243)

Não se deve pensar apenas pela condenação do modo de vida de Maria Antonieta, mas analisar o cenário como um todo. O Parlamento de Paris condenou a rainha indiretamente não só por suas atitudes, seu modo de vida, mas pelo fato de considerar convincente o fato do cardeal deixar-se ser enganado por uma prostituta com um véu em seu rosto e presumir que esta era sua soberana. Este ataque direto à figura real era algo muito mais intrínseco do que uma pequena confusão de quem era realmente quem. Tal evento, envolvendo personalidades de diversas camadas sociais, acabou servindo para criar uma imagem frívola da rainha, e esta recorrendo ao seu marido, tornou a situação ainda mais constrangedora quando o evento passou a conhecimento público: Nessa comédia de lógica invertida, em que o 'culpado' foi inocentado e as 'vítimas' foram declaradas culpadas e expostas à condenação pública, o grande perdedor além de Maria Antonieta e, com ela, o rei - foi o próprio sistema monárquico, ridicularizado e humilhado. (VINCENT, 2011, p. 146)

A humilhação se concretiza pelo fato de Luís XVI julgar o evento sem pensar no embate político que este poderia gerar. Como exemplo, ao declarar um processo público contra o cardeal Rohan, do qual a imprensa – agora começando a ser tomada por novos ideais e ser um dos maiores difusores de ideologias influenciadas pelo movimento Iluminista – deleitou-se com o evento. Outro evento, também passado no ano de 1785, envolve a legitimidade de Luís Carlos, segundo filho de Luís XVI e Maria Antonieta, do qual era alegado que sua paternidade pertencia ao Conde Fersen, suposto amante da rainha. Tais boatos tomaram tanta comoção pública que a própria rainha se vê humilhada em sua visita para Paris após o nascimento de seu filho:

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The Parlament had believed in his good faith. As to that fatal assumption on the part of the Cardinal that the veiled figure in the Grove of Venus was the Queen murmuring in his direction, it was by implication a legitimate assumption. It was the most damning denunciation of the Queen’s way of life, as it was intended to be.

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Uma vez recuperada do parto, a rainha, observando a tradição, foi visitar os parisienses, esperando que eles lhe reservassem uma acolhida tão calorosa quanto a do nascimento de seu primeiro filho. No entanto, conta Fersen ela 'foi recebida muito friamente, não houve uma única aclamação, mas um perfeito silêncio.' (VINCENT, 2011, p. 142)

Luís XVI ainda acreditava no poder da monarquia, e um de seus grandes projetos foi o de uma expedição pela França para conhecer e lidar diretamente com o povo, onde sentiu a suposta afeição à monarquia e apreciação que o povo ainda sentia pelo monarca. Ele viajou a bordo de navios e comeu ao lado dos demais marinheiros. Os relatos da apreciação popular quanto ao seu soberano comprovam este entendimento de prestígio popular por parte do monarca. “Após sua partida de Harcourt, era dito que o povo, muito impressionado por sua bondade, havia beijado os lençóis deixados na cama real”.35 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 244) Nesse momento já se percebe a notável diferença entre os sentimentos afáveis das visitas em Paris no ano de 1773 e durante a coroação, em lado oposto ao choque de Maria Antonieta com a sociedade parisiense em 1785 - o maior centro urbano francês - e a viagem de Luís XVI em 1786 para o interior, que ainda parecia simpático a ele. Logo, a ideia de que os centros urbanos tinham uma representatividade tão significativa quanto a própria corte e agora testemunhavam os escândalos desta, assim como o acesso facilitado a ideias iluministas, acaba sendo comprovada quando a rainha se vê nesta situação da qual nota-se que não exerce mais tanto controle sob a população e já não goza de tanta apreciação popular. Ainda em 1786, o Controlador Geral das Finanças, Calonne, apresenta um novo modelo econômico que serviria para melhorar as finanças nacionais, que estavam novamente prestes a entrar em colapso: A tentativa de Calonne de tentar combater o caos nascente na França, que não era apenas financeiro, mas também administrativo, sugeria modos em que a tributação seria mais uniforme e extensa. Por exemplo, o imposto sob uma terra seria pago por todos seus donos sem exceção – até mesmo a Igreja – apenas os pobres seriam protegidos contra cargos adicionais. 36 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 247)

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After his departure from Harcourt, the people, much impressed by his goodness, were said to have kissed the sheets left behind on the royal bed. 36 Calonne’s bold attempt to combat the rising chaos in France, which was not only financial but administrative, suggested ways in which taxation would be far more uniformly and fairly spread. For example, a land tax was to be payable by all landowners without exception – even the church – only the poor being protected against yet further burdens.

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O que o controlador procurava fazer para “compensar” esta nova tributação era criar novas assembleias provinciais de forma que os nobres que agora estariam fazendo parte da tributação poderiam desempenhar um papel político, ainda que moderado. Isso estimulou a convocação da Assembleia dos Notáveis, em 1787. No entanto, o plano não foi bem aceito pelas camadas sociais, como já era esperado. “Os representantes das classes privilegiadas estavam dispostos a aceitar reduções em seus privilégios fiscais, mas apenas em troca do aumento de suas funções no governo e da descentralização administrativa”. (PRICE, 2016, p. 127) No entanto, a crise não conseguiu ser resolvida com essas medidas. Após a morte de Vergennes, Etienne de Brienne ocupou seu cargo. Em 1788, tanto Brienne quanto Luís XVI acreditavam que o melhor a se fazer naquele momento era realizar a convocação dos Estados Gerais, que não se reuniam desde 1614. “A intenção de Brienne, resumidamente, era de enfraquecer o poder dos nobres e fortalecer o dos comuns – isto é, a burguesia – o Terceiro Estado sendo visto como um aliado real”.37 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 262) No ano de 1789, ao mesmo passo em que os Estados Gerais se reuniam, o descontentamento pela figura real também se agravava. Além disso, Luís José, Delfim da França, acabou perecendo e morreu com apenas sete anos de idade. Pouco após a morte do Delfim, no dia 17 de junho de 1789, o Terceiro Estado se auto intitulou Assembleia Nacional, com a intenção de criar uma nova Constituição para a França. Alguns dias depois, numa das quadras de tênis em Versalhes, o Terceiro Estado fez seu juramento, que realmente findava o poder absoluto real. “Este juramento ignorava os poderes teóricos do monarca e, por isso, era um bruto ato de rebeldia.”38 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 262) Com isso, pode se notar que agora o rei estava realmente sendo desafiado. O povo queria ter uma voz e não ser subjugado pelo poder absoluto que não era bem empregado desde o reinado de Luís XIV. O próprio monarca precisava aprender como agir para evitar uma revolução, mas ela já estava ocorrendo sob seus próprios olhos a partir da figura do Terceiro Estado.

Brienne’s intention, in short, was to weaken the power of the nobility by strengthening that of the commoners – that is, the bourgeoisie – the Third Estate being seen as the royal ally. 38 This oath ignored the theoretical powers of the monarch and, as such, was a gross act of defiance. 37

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2.2 PARIS E A SOCIEDADE FRANCESA

Paris, no período do reinado de Luís XVI era uma cidade em contínua reconstrução. Haviam grandes transformações, tanto econômicas quanto sociais, que deixavam ainda mais explícito o contraste entre a nobreza e o campesinato francês. É importante perceber que a capital francesa é associada diretamente com o crescimento urbano nas cidades francesas graças à prosperidade comercial que ocorreu nas primeiras décadas do século XVIII: O surto comercial naturalmente estimulava a urbanização; houve uma onda de novas construções nas cidades e, pelo final do século, as cidades provinciais da França ainda suplantavam as da Inglaterra em número e tamanho. (ANDERSON, 1974, p. 109)

Paris agora era uma cidade grande. A capital do reino não era frequentada por seus próprios monarcas. Luís XV e XVI pouco faziam para terem uma sensação de proximidade com a capital, mantendo-se afastados desta por motivos que variavam desde o temor de Paris possuir a mesma tendência de megalópoles de tempos antigos e acabar sendo sufocada por seu próprio tamanho, assim como a própria condição dos subúrbios que pouco a pouco chegavam mais perto do centro da cidade: Ele [Luís XV] mandou abrir uma estrada especialmente para não ser obrigado a atravessar a capital ao viajar de Saint-Denis a Versalhes. Dessa forma, ele nunca passava a noite em Paris, não fazia entrées reais, evitava ir à missa na catedral de Notre-Dame ou na Sainte-Chapelle e raramente dava o ar de sua graça no Louvre. Luís XVI nada fez para reverter essa tendência. (JONES, 2013, p. 198)

Nesse próprio tópico já é possível notar que a falta de proximidade do monarca para com seus súditos começava a mostrar o declínio do grande cerimonial tão bem orquestrado e realizado por Luís XIV. Paris, numa figura de uma capital sem rei agora estava apta a receber influências de outros ideais e outras pessoas. Era o espaço propício para a nobreza, agora sutilmente distante do monarca em Versalhes, e para a burguesia orquestrarem a sua própria influência na cidade. É importante ressaltar que esse distanciamento do monarca não implicava numa falta de relações com a cidade. Paris ainda representava uma parcela significativa dos tributos gerados pelo Estado. A ressignificação de uma figura real autoritária e temerosa foi feita pelos governantes, de modo que o distanciamento fosse justificável:

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A propaganda real enfatizava que o rei deveria ser visto como afável – apesar de um tanto distante – símbolo paterno, ansioso por assegurar o bem-estar dos súditos e por inspirar amor, espeito e gratidão em vez de medo ou espanto. Assim, os reis podiam se dissociar fisicamente de Paris; mas a monarquia não renunciava ao direito duradouro de moldar Paris à imagem e semelhança de sua dinastia. (JONES, 2013, p. 205)

Em Paris, os aspectos contrastantes entre as classes sociais era algo notório, com mudanças que serviam para adequar os novos habitantes à cidade e reforçar o domínio das classes altas. No aspecto da urbanização estas mudanças ficam ainda mais evidentes: Dois urbanismos complementares, e por vezes contraditórios, impõem uma morfologia nova da extensão social. De um lado, a monarquia e seus agentes desenvolvem – em decorrência do contínuo fortalecimento dos papéis de Paris como capital – uma edilidade da magnificência e da decoração, controlada, triunfal. De outro, um urbanismo selvagem e livre, aberto às iniciativas dos particulares e às investidas dos especuladores, contribui para desfigurar a fisionomia dos bairros antigos e construir novos conjuntos imobiliários. (ROCHE, 2004, p.63)

Uma forma de observar este aspecto é o fato de Paris voltar a representar uma centralidade de poder. A nobreza voltara a residir na cidade, utilizando o Palácio de Versalhes apenas em certas ocasiões. O controle minunciosamente orquestrado por Luís XIV perante a corte já não possuía tanta eficácia nos reinados de seus sucessores. Luís XIV assegurou seu poder possuindo o controle da nobreza residindo em seu próprio teto e utilizando do sistema de privilégios, fazendo com que a cultura das aparências passasse a ter uma relação maior na nobreza. Tanto Luís XV quanto Luís XVI falharam em manterem a eficácia neste controle nobiliárquico em Versalhes, vendo seus súditos retornarem à capital. “Luís XV e Luís XVI não foram capazes de evitar a migração precipitada dos cortesão aristocráticos que formavam a plateia das cerimônias absolutistas do rei em Veralhes em direção a Paris”. (JONES, 2013, p. 208) A própria nobreza, mesmo no período de Luís XIV não deixou de possuir propriedades em Paris, como forma de provar sua influência e status perante a sociedade mesmo residindo junto ao rei e ficando à mercê de sua vontade: O traço marcante no modo de habitação desses indivíduos é o fato de que todos, ou pelo menos uma parte significativa deles, possuíam ao mesmo tempo um alojamento na casa do rei, no palácio de Versailles, e uma habitação, ou seja, um hôtel na cidade de Paris. (ELIAS, 2001, p. 67)

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Levando em consideração que após a ascensão de Luís XVI, a figura do hôtel passou a ser a moradia oficial de grande parte dos nobres ao invés de Versalhes, Paris tomava uma nova forma de representatividade. Agora envolvendo ambos os polos sociais – além de haver recebido uma grande onda de migrantes do campo em busca de melhores condições de vida, já que a agricultura francesa passava por uma crise de produção – tornou-se um local propício para a reafirmação de status e de poder que outrora estavam totalmente nas mãos do rei e sua figura autocrata em Versalhes: A nobreza exprime nos novos palacetes seu gosto do fausto e seu senso do poder, um novo modo da apropriação espacial em terrenos novos e arejados, parcialmente desperdiçados, um senso do isolamento em relação ao hábitat antigo. As aristocracias remodelam os subúrbios do Oeste, onde se constrói uma cidade que petrifica a renda senhorial, a assistência do Estado, o lucro das finanças. (ROCHE, 2004, p. 65)

Tal mudança da centralidade do poder e a criação de uma "independência" da figura real mostra as tentativas de desprender o controle que estava diretamente nas mãos do rei absolutista e distribuí-la para a nobreza, que voltava a tentar se reafirmar sem necessariamente recorrer ao sistema de privilégios, que com Luís XVI já havia entrado em decadência. Deve-se lembrar que como símbolo, a sociedade de corte tinha como uma de suas características a aparência externa. A partir do momento em que o conceito de civilité39 foi elaborado e difundido por Erasmo, ele passou a refletir diretamente na sociedade aristocrática europeia. “Traduzem a unidade da Europa e simultaneamente, a nova formação social que lhe fornece a espinha dorsal, a sociedade de corte. A situação, a autoimagem e as características dessa sociedade encontram expressão no conceito de civilité”. (ELIAS, 2011, p. 65) Logo, a etiqueta afirma-se como um dos aspectos necessários para a distinção entre aquele que faz parte da corte e aquele que não faz. Sendo desenvolvido e aplicado principalmente em crianças, a abordagem da civilité, faz com que desde tenra idade, a criança tenha conhecimento e noção do que é correto e como se portar em sociedade. A etiqueta, utilizada pela sociedade de corte torna-se uma de suas grandes bases de apoio, justificando as regras sociais e gerando uma admiração até mesmo de outras nações do modelo vigente francês: Do topo à base, a ordem curial determina os comportamentos segundo a posição de cada indivíduo numa hierarquia rigorosa, e a etiqueta tem por função regulamentar O livro de Erasmo trata de um assunto muito simples: o comportamento de pessoas em sociedade – e acima de tudo, embora não exclusivamente, ‘do decoro corporal externo’. (ELIAS, 2011, p. 66) 39

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no detalhe essa disciplina inigualitária porém imposta igualmente a todos. Da base ao topo, é a sociedade inteira que contempla o espetáculo da corte, modelo exposto à admiração e à imitação. (REVEL, 2009, p. 197)

Desta forma, a etiqueta, além de tornar-se um padronizador de comportamentos, também serviu como algo necessário para obter algum tipo de reconhecimento da figura real, e de outros membros na corte. “A corte faz da aparência sua regra social. O respeito à etiqueta, à vestimenta, à palavra, à apresentação do corpo obedece a essa mesma exigência de um reconhecimento coletivo”. (REVEL, 2009, p. 198) A relação pessoal com o seu soberano era algo necessário e que traria benefícios àqueles que soubessem como utilizá-la. A invasão no espaço particular tinha uma relação de troca mútua para com o rei: A nobreza perdeu então todo o poder político e a vida pessoal; ganhou as graças de um amo onipresente que sabe tudo sobre a intimidade das famílias, da qual se faz o guardião; é a ele, com efeito, que no decorrer de uma audiência secreta uma dama nobre confia sua honra, comprometida por uma gravidez inoportuna; e cabe ao soberano protege-la mandando o marido para o exército. (CASTAN, 2009, p. 416)

As regras de convivência, o decoro, a elegância, o modo de se portar perante os outros, e os modos de agir de uma pessoa tomam conta da mentalidade aristocrática francesa, deixando o espaço particular em segundo plano. Sabendo da difusão existente e da influência para os que convivem em relação indireta com membros da corte, a sociedade absolutista usa de seus atributos ao seu favor, moldando os setores de poder aquisitivo abaixo do seu e adequando-os para a sociedade em que viviam: Na sociedade absolutista, os modelos da perfeição aristocrática são propostos como ideais aos grupos que aspiram a reproduzi-los: à nobreza de condição ou fortuna medianas, aos provincianos, às elites que uniram seu destino ao da monarquia. (REVEL, 2009, p. 198)

Com este caráter dominador, a sociedade de corte conseguiu utilizar seus ideais em sua sociedade, atingindo a todos que aspiravam fazer parte de seu círculo social. No entanto, o próprio conceito de civilité passa a ser desacreditado pouco a pouco no decorrer do século XVIII, sendo utilizado principalmente por famílias burguesas do período. “No fim do século XVIII, a norma civil aparece, portanto, como um formalismo obsoleto e desacreditado”. (REVEL, 2011, p. 203)

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Uma das causas da queda da influência da civilité na sociedade aristocrática é o fato dela ser acessível a todos, em especial à burguesia. Não havia distinção de quem poderia ou não ler e fazer uso destas regras por mais que fossem voltadas à aristocracia. “[...] alguns começam a distanciar-se de um código que revela demasiado acessível e pode submergir os privilégios da elite”. (REVEL, 2011, p. 203) Com isto, o que pode ser notado é que a aristocracia procurava por algo que os distanciasse das demais classes. O acesso aos mesmos materiais e regras de comportamento incomodavam a elite, principalmente por conta das regras de civilidade serem de fácil acesso da burguesia. “‘Somente entre os pequenos-burgueses empregam-se ainda essas cerimônias fastidiosas e essas maneiras inúteis e eternas que ainda passam por civilidades e que fastigam ao extremo as pessoas habituadas ao trato social’”. (REVEL, 2011, p.202 – 203) Desta forma, a cidade passou a representar um espaço de oposição de classes sociais. Enquanto a nobreza tinha seu próprio espaço em grandes palacetes, a classe do campesinato se reduzia às pequenas residências. Os assalariados vivam próximos ao centro, enquanto em algumas regiões periféricas parisienses os novos migrantes passavam a residir, em busca de uma vida melhor. Sabe-se que por essa coexistência entre as camadas sociais na mesma cidade, um intermédio cultural e político acaba ocorrendo. Além disso, os opostos ficam cada vez mais evidentes, deixando explícita a diferença de costumes entre as classes e suas tentativas de domínio: A coexistência das classes tem, se não virtudes políticas, pelo menos os seus ensinamentos no domínio da civilização dos costumes e, mais simplesmente ainda, suas implicações para a cultura material. Paris é, às vésperas da Revolução, a cidade das hierarquias sutis e dos intermediários culturais, ainda que as transformações dos anos 1770 – 1789 tenham visto recrudescer as dificuldades, e portanto os antagonismos, o que favorece as comoções populares e sua mobilização política. (ROCHE, 2004, p. 66)

Ou seja, a sociedade parisiense, agora estava ciente do que se passava e possuindo certa comunicação de forma piramidal, visto que os meios de comunicação eram de grande forma dominada pela burguesia, que conseguia as informações através de nobres e cortesãos que se reuniam na Árvore da Cracóvia. “Como um poderoso imã, a árvore atraía nouvellistes de bouche, ou boateiros, que espalhavam de boca em boca informações sobre os eventos correntes. Eles alegavam saber, de fontes privadas, o que realmente estava acontecendo nos corredores do poder”. (DARNTON, 2005, p. 42)

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A ascensão da imprensa também é um fato notável a ser considerado na sociedade francesa ao longo do final do Antigo Regime. E junto da análise da imprensa, estão os cafés. Estes serviam para reunir a burguesia e a classe média em ambientes de discussões, promovendo a transmissão oral de notícias e opiniões próprias, fossem estas contra ou a favor a monarquia. Vale lembrar que os filósofos membros dos salões iluministas também eram frequentadores assíduos de cafés, o que pode ter facilitado para a propagação de suas próprias ideias. “Os cafés também formavam um fórum de discussão e debate especialmente popular entre as pessoas da classe média”. (JONES, 2013, p. 212) Os ataques feitos à monarquia impulsionados pelos ideais vindos do movimento iluminista mostram como a imprensa, dominada pela classe burguesa, se sentia quanto ao regime, agora não mais satisfeita com boatos e histórias do cotidiano da corte, eles queriam ter notícias reais sobre a política em si, mesmo que por tradição estas não fossem publicadas. “A política era atribuição do rei, le secret du roi, uma ideia derivada de uma visão do fim da Idade Média e do Renascimento, que tratava a ciência de governar como arcana imperii, uma arte restrita aos soberanos e seus conselheiros”. (DARNTON, 2005, p. 46) Por esse motivo, deve-se a analisar a imprensa clandestina. Os folhetins que circulavam sem a permissão real e que traziam algumas notícias e opiniões próprias sobre o governo. “Como o próprio d’Eprémesnil, a Gazette de Leyde fez muito para expor a fraqueza da antiga ordem e colocar a revolução em movimento”.40 (Tradução livre do autor) (CENSER, 1987, p. 77) Para entender a imprensa e a Gazette de Leyde, é necessário entender por inteiro a situação da mídia impressa no momento na França. É importante mostrar, no início, as tentativas de controle do Estado perante os jornais, mas os meios de circulação passaram a ser tão intensos que o Estado não conseguiu controlar a publicação destes. “Na prática, no entanto, o governo nunca teve sucesso em impor completamente o controle sobre o fluxo de notícias, e de fato, isso foi conivente para minar seu próprio monopólio sobre isto”.41 (Tradução livre do autor) (CENSER, 1987, p. 77) O governo, por não conseguir controlar completamente a circulação de jornais na imprensa, acaba notando um crescimento de uma imprensa clandestina e autônoma, sem

Like d’Eprémesnil himself, the Gazette de Leyde had done much to expose the weakness of the old order and set the revolution in motion. 41 “In practice, however, the government had never succeeded in imposing complete control over the flow of News, and in fact it actively connived in undermining its own legal monopoly over it. 40

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incentivo ou figura do Estado, e nesse cenário que surge a Gazette de Leyde. Esta, fazia uso de matérias que contradiziam a autoridade real, propagando estes ideais pela nação: Mais restrita que os panfletos genuinamente clandestinos que circulavam pela França, a Gazette de Leyde, porém conveio com informações ricas e supostamente ilegais aos leitores tanto dentro quanto fora do reino. Diferente dos panfletos, e ajustando a si mesma para mudanças imprevistas, alterando a visão dos leitores da vida política francesa calmamente e imperceptivelmente. 42 (Tradução livre do autor) (CENSER, 1987, p. 78)

Sendo assim, pode notar que a atuação da “imprensa marrom”, que atinge seu ápice em panfletos e jornais durante a década de 1780, foi um dos grandes fomentadores e disseminadores das ideologias em grandes cidades, como na própria capital francesa. Deve-se lembrar que Paris, por ser capital do reino possuía grande influência neste aspecto da disseminação de ideias: Paris tornou-se a capital não oficial do Iluminismo europeu, o movimento de ideias que salientava a importância do aperfeiçoamento racional da humanidade. As instituições culturais da cidade floresceram de modo a despertar a inveja do resto da Europa, que passou a tentar imitá-la. (JONES, 2014, p. 199)

Portanto, o aspecto de propagação de ideias a ponto de alcançar as massas junto da imprensa acabou fazendo com que Paris se tornasse ainda mais importante no fato da difusão de informações. Somando esses fatores à pouca proximidade da figura real como já foi mostrado, tornaram Paris a principal cidade para o início de uma revolução. O Caso do Colar foi muito utilizado pela imprensa em publicações contra a monarquia e a figura da rainha, em notícias sensacionalistas que acabavam sendo disseminadas por toda a cidade sem terem sua publicação contida: Estes julgamentos sumários, em teoria direcionados para a corte, eram impressos antecipadamente e lidos avidamente. [...] Eles propiciavam uma excelente oportunidade de disseminar histórias sensacionalistas e escandalosas sem a possibilidade de contradição.43 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 241)

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More restrained than the genuinely clandestine pamphlet press that circulated inside France itself, the Gazette de Leyde nevertheless conveyed a wealth of supposedly illegal information to readers both inside and outside the kingdom. Unlike the pamphlets, it arrived promptly and predictably, covering events as they happened and adjusting itself to unanticipated changes, shaping its readers views of French political life steadily and imperceptibly. 43 These trial briefs, in theory addressed to the courts, were printed in advance and read avidly. [...] They Provided an excelente opportunity to disseminate sensational and scandalous stories without the possibility of contradiction.

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As notícias acumulavam-se junto da própria opinião pública de seu soberano e agiam como meios de estimular o repúdio pelo sistema vigente. O sistema de comunicação, portanto, foi uma das maiores armas utilizadas para difundir ideais e opiniões e agir contra um sistema político já defasado e em crise.

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3. A INDUMENTÁRIA NA FRANÇA (1774 – 1789)

Para se realizar uma análise da indumentária é preciso entender o que ela representava para a sociedade da época. É necessário lembrar da própria sociedade de corte e da relação da centralidade da figura do soberano, pois ele é quem deveria ser a inspiração de todos não importava qual fosse o assunto. Por isso a questão da aparência externa, e em especial da indumentária, constitui um dos tópicos que devem ser analisados para caracterizar a figura do monarca e da nobreza perante a população da época. A indumentária, portanto, representava não somente uma vestimenta, ela traz em si um significado. Ela funcionava para esta sociedade como um elemento de distinção, de diferenciação de classe e assim orientava usos e costumes para aqueles que desejavam pertencimento e/ou manutenção de seu status, proporcionava assim um espetáculo das aparências. Toda e qualquer ação tinha um impacto perante a sociedade. Assim diz Roche (2007, p. 19), “É que a moda açula aqueles que se preocupam com a aparência; frívola e volátil, ela sempre estimulou o comércio e encarnou a mudança”. No aspecto da sociedade de corte, das frivolidades e do efêmero, podemos notar que o luxo faz parte da vida em sociedade. O luxo adentra as características do vestuário e seus caprichos, e ali se instala como prevê Lipovetsky (2005, p. 40). “[...] o luxo indumentário alia-se ao capricho estético, à busca do efeito, ao hiperbolismo lúdico”. Neste mesmo aspecto, se faz importante a figura do marchande de modes¸ entre outras palavras, o mercador das modas. “Na realidade, assumem a função de verdadeiras artistas criadoras de modas, enfeitando ao seu capricho as roupas fornecidas por alfaiates e costureiras e complementando-as com toucas, babados e depois capuzes e mantilhas”. (BOUCHER, 2012, p. 287) Ou seja, o comerciante de artigos de vestuário, que ia além da figura de uma mera costureira, mas a pessoa que dava os toques finais nas peças. A possibilidade das marchandes, em sua maioria mulheres terem seu sucesso foi justamente por certa emancipação que houve por parte dos alfaiates e das costureiras. Weber (2008, p. 118), nos esclarece, “Nas três últimas décadas do século XVIII, marchandes de modes, mulheres negociantes de modas, haviam começado a emergir como uma força relevante na indústria francesa de roupas, em resposta a uma mudança de paradigma no mercado parisiense do vestuário”.

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Entre as figuras mais notáveis dos marchandes e estilistas da época, se encontra Rose Bertin, personagem próxima da rainha Maria Antonieta e que será analisada posteriormente junto de sua influência para a moda ao lado de sua soberana. Os marchandes precisam ter sua figura destacada por um motivo que permitiu que este setor tivesse sua ascensão: A feminização do luxo44. Isto surge justamente no século XVIII, proporcionando um gasto maior do público feminino em suas vestes. Tal característica proporcionou à classe dos marchandes de terem um sucesso quase garantido: Desde essa época [século XVIII], os caprichos, as extravagâncias, os refinamentos tornaram-se mais característicos do feminino que do masculino. Então é o triunfo das vendedoras de moda, essas ‘artistas’ da ornamentação da toalete cujas faturas exorbitantes dirigem-se a uma rica clientela feminina. (LIPOVETSKY, 2005, p. 69)

Maria Antonieta por si só utilizou da representação criada em torno de si através da moda para enaltecer a si própria e criar uma imagem pessoal, ditando em ao menos algum aspecto dentro da corte. Um feito notável deste domínio como líder da moda se encontra nos vários bailes sediados pela soberana ao longo do início de seu reinado: Ao mesmo tempo, por fazerem uso tão eficiente do vestuário para ostentar sua invejável proeminência, as festas da rainha estabeleciam-na também como líder no domínio da moda – uma mulher que, como Maria Teresa outrora recomendara que fizesse, era a única a ‘dar o tom em Versalhes’. (WEBER, 2008, P. 117)

Como já visto, o gasto exorbitante da rainha passou a fazer parte do cotidiano da corte. O povo não esperava por isso no reinado de seu novo soberano, procurando esquecer da imagem das amantes reais que gastavam quantias exorbitantes, desejando uma rainha reclusa e simples, que gastasse com sabedoria. No entanto, ao utilizar da indumentária para destacarse na sociedade, Maria Antonieta não exerceu o cargo de rainha como a população esperava que esta fizesse: Agora era a rainha que, com sua coleção de roupas ostentosas de valor inestimável, eclipsava todas as outras nobres em Versalhes; era ela que dominava e deslumbrava a corte. E como uma favorita real, seus caprichos pareciam incapazes de evocar a desaprovação do rei, por mais dinheiro que custassem. (WEBER, 2008. P. 115)

Não só líder e rainha da moda45, Maria Antonieta agora acabava despertando o desejo da imitação e do consumo em seus súditos. Ela conseguiu fazer com que todos desejassem ter

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Termo dado por Lipovetsky (2005). Termo dado por Weber (2008).

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o mesmo vestido, penteado, ou o que quer que fosse para se tornarem parecidos com ela. Diferente de suas predecessoras, Maria Antonieta exerceu uma influência na moda que até então não havia ocorrido em tamanha proporção. “Todos imediatamente queriam vestir as mesmas coisas que a rainha, suas penas, suas grinaldas de flores, que encantadoramente convinha com sua beleza, nessa altura em todo seu esplendor”.46 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 37) Deve ser lembrado da influência que eventos cotidianos refletiam na moda, mesmo que indiretamente. Os nomes de novos vestidos, chapéus, ou penteados eram muitas vezes referentes a batalhas, eventos ou personalidades da época que haviam realizado algum feito relevante, e por consequência acabavam entrando em voga. Isto inspirava os estilistas, que batizavam algum acessório ou item do vestuário em suas homenagens. Assim diz Langlade (1913, p. 28) “Rose Bertin, sempre estava informada dos grandes e pequenos eventos, sempre em procura de novas ideias e novas criações, assim como nomes para batizá-los”.47 (Tradução livre do autor) Não somente a influência do cotidiano refletia na moda, mas a própria tradição implicava diretamente na indumentária. Durante o início do reinado de Maria Antonieta, era necessário possuir o conhecimento das regras de etiqueta e de vestuário, para então saber o que era apropriado para se trajar: Na corte francesa tudo era feito de acordo com a tradição: ‘certa coisa era vestida no inverno, outro tipo no verão. A moda era encarregada de fixar certas cores em certas estações, como o ouro para os dias gelados, e o prata para dias de chuva. Qualquer um aparecendo na galeria de Versalhes vestindo algo fora da estação era visto como uma pessoa sem senso de estilo desacostumada com os modos da sociedade’. 48 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 40)

Assim, a moda padronizava comportamentos, distinguia as pessoas e, ao mesmo tempo que separava as classes que tinham condições para adquirir peças novas, padronizava as condições do vestuário nacional. Uma das formas de notar a padronização em cortes de vestido e tecidos junto das tentativas de distinção entre classes se dá no início da década de 1770, quando o desejo pelo o 46

Each one immediately wished to wear the same things as the Queen, her feathers, her garlands of flowers, which charmingly became her beauty, then in all its splendour. 47 Rose Bertin was always au courant of big and little events, always in search of new ideas and new creations, and names by which to baptize the later. 48 In the French Court everything was done according to tradition: ‘a certain stuff was worn in winter, another kind in summer. Fashion was carried to the extent of fixing certain colours for certain seasons, such as gold for frosty days, and silver for the dog-days. Anyone appearing in the gallery at Versailles attired in na unseasonable manner was looked upon as a person of bad style unused to the ways of society’.

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que era considerado elegante começou a ser desejado pelos criados. Estes, que não tinham a mesma noção dos padrões do que era ou não utilizável em certa ocasião, agora desejavam o mesmo que seus senhores: Vemos os efeitos da maior ou menos proximidade dos criados com seus senhores ao cabo de uma tendência que Rétif de La Bretonne e Louis Sébastien Mercier situaram nos anos 1770, quando as mulheres da classe trabalhadora e os criados domésticos começaram a ansiar pelo ‘bom gosto’ e a prestar atenção nos próprios trajes, e quando as coquetes começaram a desejar os vestidos graciosos da moda. (ROCHE, 2007, p. 121)

Desta forma, percebe-se que a influência do vestuário está em processo de transformação no século XVIII, segue os novos ares que irão inspirar os desejos pela igualdade. Ela se espalhava para a nação, especialmente na capital parisiense, onde os diversos estilistas faziam todo o esforço possível para satisfazer os gostos insaciáveis e incansáveis de uma nobreza marcada pela frivolidade, que por sua vez influenciava uma população ansiosa para copiar seus senhores num jogo de imitação sem fim. Para Roche (2007, p. 121), “o que antes estivera confinado ao estreito círculo da alta nobreza ou da burguesia abastada tornara-se um fenômeno generalizado, donde o baralhamento social das condições e posições”. A moda do vestuário em conexão com os aspectos socioculturais do momento também proporcionou novos desejos, ampliando a possibilidade de cores que até então eram utilizadas nos tecidos. O veludo aos poucos foi substituído pela seda e cetim, que por sua vez acabaram sendo substituídos pela musselina e pelo linho. Por sua vez, a indústria francesa tirou proveito do ramo indumentário através da seda produzida em Lyon. No entanto, com o passar do tempo, os desejos dos consumidores começaram a ser mais extravagantes, condizendo com os de sua soberana, procurando sempre pelo inédito: A fábrica de sedas de Lyon afirmou sua supremacia em toda Europa. As inovações técnicas e a arte e seus desenhistas tornaram-se famosas. A arte do bordado encontrou-se no século XVIII em condições excepcionais. [...] A seda mesclava seus gamas de cores com o ouro, a prata, elementos metálicos, lantejoulas, passamanarias, plumas e incrustações. (LIMA, 2012, p. 8)

O impacto da moda e a necessidade de manter-se atualizado neste assunto é visto em 1775, ano da coroação de Luís XVI. Em certa ocasião, Maria Antonieta escolheu um tecido de cor similar ao castanho, que logo ficou apelidado de “cor de pulga” por Luís XVI. Apesar do “descaso” do rei, o impacto da escolha de um tecido nesta cor castanho rosado foi tão

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grande que todos se apressaram para seguir a mais nova tendência do vestuário. “Homens e mulheres pediram roupas cores de pulga, e aqueles que não compraram tecidos ou tafetás novos mandaram seus antigos para os tintureiros”.49 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 60) É importante notar nesse aspecto da influência da soberana em uma certa noção de que tudo o que ela fazia acabava sendo imitado. Ela estava no centro da corte, e agora no centro do mundo da moda. Ela ditava o que seria usado e o que deixaria de ser usado. Zweig (1953, p. 96) caracteriza este momento de influência de Maria Antonieta com certo sarcasmo, mas que se aplica perfeitamente para a situação encontrada. “Tudo o que dizia era declarado criterioso; tudo o que fazia tornava-se lei; o que desejava, ordem. Se um dia manifestava um capricho, já no dia seguinte era moda; fazia uma tolice, e imediatamente toda a corte a imitava com entusiasmo”. O vestuário passou a representar uma importância ainda maior para os setores comercial e econômico francês que, em 1776, Luís XVI criou uma corporação separando os marchandes de modes dos demais comerciantes, assim como outras seis guildas com o mesmo propósito de separação de categorias. “O Édito de fevereiro foi seguido por um novo em agosto de 1776, que reestabeleceu numa nova base as seis guildas mercadoras e as quarenta e quatro corporações de artes e comércio. Os estilistas e comerciantes de penas eram o n.º 18”.50 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 67) O gasto não só em tecidos para vestidos, mas em extravagâncias de um modo geral, como em acessórios, eram o que mais preenchiam as despesas da jovem rainha desde o início de seu reinado, caracterizando-a como uma difusora de grande influência na moda ao longo de seu reinado: Contas eram enviadas para quatro novos pares de sapatos por semana, três jardas de fitas diariamente para amarrar o roupão real (isto é, fita nova em folha) e duas jardas novas de tafetá verde para cobrir a cesta em que o leque real e as luvas eram carregadas. E estes eram apenas os itens menores. 51 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 150)

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Men and women ordered puce-coloured clothes, and those who did not buy new cloth or taffetas sent their old clothes to the dyers. 50 The edict of February was followed by a fresh edict in August, 1776, which re-established on a new basis the six merchant guilds and the forty-four corporations of arts and trades. The fashion-makers and dealers in feathers were No. 18. 51 Bills were sent in for four new pairs of shoes a week, three yards of ribbon daily to tie the royal peignoir (that is, brand-new ribbon) and two brand-new yards of green taffeta daily to cover the basket in which the royal fan and gloves were carried. And these were only minor items.

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A influência da moda para a vida de Maria Antonieta era tanta que ao acordar ela recebia de sua Chefe do Vestuário um livro que continha todos os tecidos que ela possuía em seu guarda-roupa para que ela escolhesse qual deles ela usaria no dia. Um destes livros está preservado até hoje e corresponde ao ano de 1782. “O livro do guarda-roupas da rainha lhe era apresentado diariamente por sua Chefe do Vestuário junto com uma almofada de alfinetes; Maria Antonieta furava o livro com um alfinete para indicar suas escolhas”.52 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 175) No entanto, o período denominado por Langlade (1913, p. 106) como “era das excentricidades”53 chegou ao fim conforme Maria Antonieta envelheceu. Assim que deu à luz pela primeira vez, seu gosto se tornou mais simples e recatado. “É dito que conforme a mulher deu lugar para a mãe seu gosto tornou-se mais simples”.54 (Tradução livre do autor) O centro dessa época de simplicidade é o Petit Trianon, palácio dado à Maria Antonieta por Luís XVI ainda no ano de 1774, e que posteriormente tornou-se um refúgio para a soberana. Neste, os cerimoniais de prestígio e da tradicional sociedade de corte não tinham espaço, dando lugar à uma vida mais aconchegante e confortável para a soberana e seus convidados. Mas o mais importante disso é o que passou a representar o Petit Trianon, sua influência no vestuário francês a partir da figura da soberana. Um desses trajes mais famosos é o levita, ou lévite, que apesar de não ser realmente um vestido da corte, ele passou a ser utilizado frequentemente durante ocasiões informais: Eliminando não só os paniers e a cauda dos trajes de corte, mas também o espartilho de barbatanas de baleia, a levita acentuava a cintura com uma simples echarpe frouxamente amarrada usada como cinto, característica que a rainha achava especialmente atraente quando estava grávida de Maria Teresa. [...] Mas a informalidade das levitas, que em 1782 constituíam mais de dois terços dos vestidos em seu guarda-roupa, parece tê-la atraído esteticamente também. (WEBER, 2008, p. 168 – 169)

Desta forma, o traje levita foi utilizado primeiramente para auxiliar a soberana durante a sua primeira gravidez, mas o gosto estético de Maria Antonieta agora pendia para a informalidade, e possivelmente por este mesmo motivo a forma visual que o levita se moldava ao corpo atraiu a jovem rainha.

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The Wardrobe Book of the Queen was presented to her daily by her Mistress of the Robes together with a pincushion; Marie Antoinette would prick the book with a pin to indicate her choices. 53 The era of eccentricities. 54 It has been said that as the woman gave place to the mother her taste became more simple.

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Posteriormente, é notável a estética da simplicidade na própria paleta de cores. As cores passam a ter um tom mais suave, próximo à tons pasteis que faziam com que o antigo hábito de cores fortes para o vestuário da aristocracia, junto do ruge pesado, se tornassem coisa do passado. Isso representava não apenas uma mudança na estética, mas também uma contínua quebra de tradições e convenções por parte de Maria Antonieta: Essas mudanças de cor e padrão estavam longe de ser insignificantes, pois mais uma vez revelavam a disposição da rainha para se desvencilhar dos ornamentos e costumes da elegância real tradicional e jogar o jogo da moda segundo regras próprias e anticonvencionais. (WEBER, 2008, p. 170)

Ou seja, a soberana agora quebrava paradigmas e definições do vestuário que até então serviam para distinguir quem fazia parte de cada camada social. A diminuição do uso da seda e a ascensão de tecidos como a musselina, gaze e linho fizeram com que o período simples fosse regado de modelos menos justos ao corpo e facilmente modeláveis a quem o vestia, representando inclusive uma maior liberdade para o corpo feminino. Um outro tipo de modelo criado neste período foi o gaulle, que era feito de musselina e colocado por cima do corpo, de forma que fosse drapejado, possuindo uma queda graciosa, modelado o corpo. A simplicidade passava a reinar contra os trajes formais da corte. “Acima de tudo, porém, o aspecto e o ar desse traje correspondiam perfeitamente ao aspecto e ao ar despojados do Trianon da rainha, onde a pureza neoclássica e a simplicidade pastoral se misturavam em toda parte, se sobrepondo à elegância exagerada de Versalhes”. (WEBER, 2008, p. 171) Além dos avanços de uma moda menos sofisticada, é preciso lembrar de um fator importante: as fábricas de seda de Lyon. Como já visto, Lyon era o setor que impulsionava o comércio interno e externo de tecidos na França, fazendo com que o dinheiro circulasse e a economia – já em dificuldades – fluísse. A partir do momento que a musselina e o linho, importados da Grã-Bretanha e da Bélgica – dominada pela Áustria naquele momento – começaram a ter seu uso disseminado, as fábricas de seda perderam grande parte de seus consumidores. Com isso, as novas tendências da indumentária trouxeram para a nação prejuízos para os cofres públicos com a importação de tecidos, assim como para as rendas privadas com o prejuízo gerado pelo gasto das famílias nas tentativas de acompanhar estas novas tendências. “De fato, a corte propiciava aos fabricantes franceses de seda grande parte de seus negócios.

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Desconsiderando mais esse costume em sua busca de liberdade e elegância, a rainha obtinha muitas musselinas e linhos da Grã-Bretanha”. (WEBER, 2008, p. 178) A crise nessa área vem por um motivo simples movido por questões complexas. A nobreza, que se via influenciada pelas tendências de indumentária propostas por sua rainha, acabava impulsionando o comércio – fosse este externo, ou interno – e com isto, contribuía para a crise financeira do país, deixando de comprar tecidos como a seda para seguirem a nova moda. Para uma melhor compreensão é necessário lembrar da relação hierárquica e das tendências de cópia. Quando um nobre utilizava algo, o cortesão o copiaria e assim por diante, diminuindo cada vez mais o consumo da seda e do cetim nacionais: As atitudes dos nobres parisienses em relação ao vestuário eram bastante uniformes. Elas estimulavam o comércio e a moda e davam o tom para os outros grupos sociais, incentivando mecanismos de imitação que eram adotados de acordo com os recursos disponíveis. (ROCHE, 2007, p. 122)

Com a crise econômica, também veio a crise social. Maria Antonieta ao utilizar tecidos de preços mais acessíveis quebrou padrões instituídos há gerações e a antiga distinção social a partir do vestuário, como já visto anteriormente, cai drasticamente de forma que não seja possível identificar quem pertencia a qual classe: Por tradição, uma dama da corte podia ser imediatamente reconhecida pelos paniers, o espartilho e os pesados tecidos de seda que estruturavam seu vestido. Abolindo esses elementos, a gaulle da moda e seus acessórios (o fichu e o avental de linho ou musselina e o chapéu de palha) despiam as aristocratas dos principais atributos que as identificavam. (WEBER, 2008, p. 181)

Este era um problema que Maria Antonieta não parecia se importar, e muito menos Rose Bertin. No entanto, para as classes aristocráticas mais antigas e tradicionais, o rompimento das tradições acabava trazendo a possibilidade à uma mera camponesa vestir-se com os mesmos tecidos que uma dama da corte, implicando numa falta de reconhecimento da identidade de classe. Um aspecto importante para este momento foi a questão de que se acreditava que os trajes deste momento eram transgressores da moralidade e da tradição francesa. Dizia-se que estes estimulavam o que era chamado de “vício alemão”, no caso o lesbianismo, e seus modelos estimulavam o adultério. “Alguns observadores notavam que o corte frouxo dos vestidos como a levita e a gaulle dava um acesso mais fácil aos seios e aos genitais das mulheres, permitindo-lhes assim vestir-se depressa depois de encontros clandestinos”. (WEBER, 2008, p. 174)

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O que deve ser visto como ponto importante na tendência da moda simples de Maria Antonieta é o fato dos tecidos que eram utilizados por classes mais baixas agora tinham seu preço elevado pela alta demanda e por tornarem-se um tecido nobre. Isso afetava a economia em todos os setores da sociedade francesa, e os gastos hediondos começavam a ameaçar até mesmo as famílias mais prestigiadas que passavam a declarar falência. “O custo de se vestir tinha, de fato, se tornado tão excessivo que causou o que começou a ser chamado como krachs nas melhores famílias e entre mercadores cujo crédito aparentava ser o mais sólido” 55 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 145) Isto levou, por consequência, famílias à beira da falência ao mesmo tempo em que estilistas e costureiras também caíam numa decadência monetária em busca de se manter em voga, ignorando os custos e as consequências destes gastos. Enquanto os marchande de modes deveriam estar lucrando com as tendências de moda que alternavam constantemente, acabavam ficando empobrecidos por seus clientes que não possuíam condições de pagar por seus investimentos no vestuário. No entanto, a moda do gaulle e da vida simples acabou quando a rainha completou seus trinta anos em 1785. Esta passou a julgar a si própria velha demais para usar plumas e flores, e passou a vestir-se de forma mais conservadora, fazendo com que os trajes leves e soltos saíssem de moda. “Maria Antonieta exigiu que as damas de Versalhes fizessem o mesmo e ‘abdicassem, como ela própria, de plumas, flores e até do cor-de-rosa’ se tivessem 30 anos ou mais”. (WEBER, 2008, p. 194) Desta forma, o robe à la française, o tradicional traje de corte por anos, acabou voltando. Ainda assim, alega-se que esta medida tomada pela rainha foi mais por sua própria vaidade do que pela falta de aceitação popular de seus trajes campesinos. Sua figura havia aumentado nos últimos anos graças aos nascimentos de seus filhos, e a frágil beleza que esta possuía quando começou seu reinado, já estava se esvaindo. Apesar de tudo, a partir do ano de 1787, Maria Antonieta aparentou começar a entender a situação financeira da que a França passava. Ao invés de pedir novos vestidos para sua estilista, começou a realizar reparos em seus vestidos antigos. Nesse período é possível ser feita uma comparação com a Condessa du Barry, que ainda mantinha seu padrão de vida como no período em que era a favorita do rei, demonstrando que a soberana agora conformava-se com a posição de rainha e abandonava as frivolidades vistas como 55

The cost of dress had, indeed, become so excessive that it caused what has since been called krachs in the best-known families and among merchants whose credit appeared to be most solid.

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características de uma amante real. “A condessa continuava gastando e se vestindo tão luxuosamente como o fizera durante o reinado de Luís XV, ao passo que Maria Antonieta, que permanecera o único amor da vida de Luís XVI, renunciava para sempre a seu glamour de amante”. (WEBER, 2008, p. 207) Desta forma, ao mesmo tempo que os gastos indumentários da corte passavam a ser reduzidos graças à figura da soberana que não aparecia mais como um ícone inovador na moda, o ódio popular continuava enraizado na personagem de Maria Antonieta. No entanto, isto não representou um período de estagnação da moda, mas sim da transferência de um ícone de modas para outro. Maria Antonieta era pouco a pouco retirada de sua posição, enquanto estava passava para o primeiro periódico de moda francês, Le Cabinet des Modes: Ainda assim, talvez a tenha melindrado constatar que, exatamente no momento que era forçada a abandonar a preocupação com a elegância, as modas francesas continuavam a florescer sem ela, alimentadas em boa parte pela aparição, em 1785, da primeira revista de moda importante da nação, Le Cabinet des Modes. (WEBER, 2008, p. 209 – 210)

Neste impacto inicial da decadência da figura da rainha, o importante a analisar no periódico é o fato de que ele importava diretamente peças do guarda-roupa e tendências criadas pela soberana. No entanto, o meio de comunicação era diferente. Os consumidores da revista não estavam imitando a rainha, que agora caía em descrédito, mas estavam imitando e seguindo as tendências e sugestões do periódico. Ou seja, o centro das atenções havia sido alterado apenas pelo meio de comunicação. Maria Antonieta continuava ditando a moda sem realmente ditá-la. Ela tinha o domínio desta, mas apenas como uma espectadora que poderia ver as peças de seu vestuário sendo citadas na revista de moda constantemente e seguidas por seus súditos sem que estes realmente achassem que estavam seguindo as tendências da própria soberana. “De fato, como observou o cronista aristocrático Félix e Montjoie, ‘ao mesmo tempo em que criticavam a rainha por seus trajes, as pessoas continuavam a imitá-la freneticamente’”. (WEBER, 2008, p. 211) Os eventos que se sucederam durante o reinado de Luís XVI e Maria Antonieta continuaram a criar tendências de moda, cada vez mais relacionados à uma revolução iminente e com caráter mais democrático, enaltecendo eventos como a Queda da Bastilha. Estes sim marcaram como o fim da influência da então denominada rainha da moda e de seu séquito pessoal, assim como o final da influência do Antigo Regime.

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3.1 ROSE BERTIN, A “MINISTRA DA MODA”

Para a análise da figura das marchandes de modes, a personagem mais propícia é também a mais próxima de Maria Antonieta e responsável por algumas das inovações do vestuário ao longo de seu reinado. No caso, a estilista de maior influência na corte durante o reinado de Luís XVI, Rose Bertin. Nascida Marie-Jeanne Bertin, entre os anos de 1744 e 1747 numa família simples, a jovem marchande recebeu uma educação modesta, mas sempre cresceu com ambição, utilizando de todos os meios necessários para crescer socialmente e alcançar seu sucesso: A natureza havia sido gentil para ela; ela era linda, e ela sabia disto – mulheres nunca são inconscientes de tais coisas, e sempre estão preparadas para lucrar com isto – mas Marie-Jeanne também era dotada com uma grande quantia de inteligência, o que a permitiu fazer seu caminho na vida. 56 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 12)

No início da década de 1760, Rose começou trabalhando como costureira para Mlle. Pagelle, em sua loja chamada Trait Galant, localizada em Paris. No entanto, o principal acontecimento que a colocou no círculo da aristocracia, ainda que indiretamente, ocorreu quando esta foi até o Hôtel de Conti, visitar a Princesa de Conti que desejava ver os dois vestidos de casamento de suas filhas, enquanto Rose ainda trabalhava como costureira para Mlle. Pagelle. Ao chegar na residência dos Conti, por não conhecer a princesa, Rose Bertin acabou confundindo-a com uma camareira e não realizou nenhum tratamento referente à etiqueta quando estava na presença de alguém com um status superior, e assim que descobriu seu erro pediu por perdão. Porém, a Princesa de Conti não se sentiu ofendida. “Mas a Princesa lhe disse que ela não tinha cometido nenhuma quebra de etiqueta em ter agido naturalmente, especialmente por ela ser ignorante da identidade de sua interlocutora. Ela assegurou à estilista de sua boa vontade e sua proteção para o futuro”.57 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 15)

Nature had been kind to her; she was beautiful, and she knew it – women are never unconscious of such things, and are Always ready to profit by it – but Marie-Jeanne was also endowed with a great deal of intelligence, which enabled her to make her way in life. 57 But the Princess told her that she had committed no breach of etiquete in having been natural, especially as she was ignorant of the identity of her interlocutress. She assured the milliner of her good-will and protection for the future. 56

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Posteriormente, a lista de damas da corte que tinham Rose Bertin como preferida aumentou. A Duquesa de Chartres entrou em sua vida através de um contato da própria Princesa de Conti, que recomendou a jovem para fazer seu enxoval. Além de ter se tornado sua protegida, sua nova loja foi financiada por esta. “Não somente a Duquesa proveu os fundos para o comércio de Rose, mas ela também a recomendou para uma clientela em voga”.58 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 18 – 19) Uma das pessoas mais influentes desta clientela e próxima do círculo pessoal da então Delfina da França era a jovem viúva Princesa de Lamballe. Esta era descrita como uma mulher jovem e de bom coração. Sua proximidade com Maria Antonieta pode ser relacionada por sua ascendência germânica no meio de uma corte francesa. “Sua aparência era doce e sentimental, como um anjo pintado por Greuze; sua natureza era quase morbidamente delicada. Ela tinha uma estirpe melancólica geralmente tida como originária de seu lado germânico”.59 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 66) Vale lembrar que neste momento, Luís XV ainda reinava. Rose Bertin foi introduzida para o círculo de Maria Antonieta no ano de 1772, quando esta ainda era apenas Delfina da França. A estilista se estabeleceu na Rue Saint-Honoré, no ano de 1773, graças a ajuda de sua cliente, a Duquesa de Chartres. No entanto, a importância de Rose cresce a partir de 1774, quando Luís XVI sucedeu seu avô. É importante ressaltar neste momento o aspecto de criação de uma merchande de modes. A criação do modelo por si só era da cliente que ditava o que queria para a costureira, o marchande não tinha o direito “autoral” perante o que fazia, este direito era de seu cliente. O marchande muitas vezes apenas colocava detalhes finais e acessórios nas peças, finalizando o processo de criação de um traje. Rose Bertin é um exemplo notório da quebra deste padrão. Ela criava as peças, Maria Antonieta servia como “meio de comunicação” utilizando os mais novos trajes, e as damas da corte procuravam seguir a tendência lançada. “A idade moderna do luxo vê triunfar o costureiro liberto de sua antiga subordinação à cliente e afirma seu novo poder de dirigir a moda”. (LIPOVETSKY, 2005, p. 43) Junto de Rose Bertin, uma figura tão excêntrica quanto esta ascendeu na corte pouco tempo antes da estilista. Léonard, um celebrado cabeleireiro surgiu na corte e ficou famoso pelos penteados inusitados que passou a criar para a rainha ao longo de seu reinado. Sua Not only had the Duchess provided the funds for Rose’s business, but she also recommended her to a fashionable clientèle. 59 Her appearance was sweetly soulful, like an angel painted by Greuze; her nature was almost morbidly sensitive. She had a strain of melancholy generally held to come from her German side. 58

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influência na corte era tanta que seu salão em Paris ficava lotado durante toda a semana, fazendo com que o renomado cabeleireiro estivesse à disposição da soberana apenas aos domingos. “Um animado e bem humorado gascão, com uma inteligência afiada – e o temperamento de uma estrela – sua chegada triunfal como um cabeleireiro foi descrita por Madame de Genlis: ‘Leonard chegou, ele chegou e ele era rei’”.60 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 149) Uma das criações mais famosas de Rose Bertin ao lado do cabeleireiro Léonard, foi o pouf aux sentiments, ainda no ano de 1774: O pouf era construído sobre uma armação feita de arame, tecido, gaze, crina de cavalo, cabelo falso, e os cabelos da próprios mulher que o usava, eriçados acima da testa. Após empoar profusamente todo o edifício, seu arquiteto instalava entre os seus meandros uma rebuscada natureza-morta em miniatura destinada ou a expressar um sentimento (pouf au sentiment) ou a comemorar uma circunstância (pouf à la circonstance) significativa para a cliente. (WEBER, 2008, p. 120)

A influência do pouf chegou para a Rainha através da Duquesa de Chartres, uma das primeiras clientes de Rose Bertin a adotar o penteado, ainda no ano de 1774. O gosto da soberana para um penteado como aquele foi imediato. “[...] de fato é quase impossível imaginar um adereço mais apropriado para sua campanha por maior prestígio público”. (WEBER, 2008, p. 121) O pouf, por ser um penteado tão chamativo, acabou servindo para a soberana como forma de reafirmar-se politicamente, celebrando determinados eventos, como a inoculação do rei contra a varíola no denominado pouf à l’inoculation: O rei havia sido vacinado em 18 de junho de 1774. [...] A operação no rei deu à Mlle. Bertin uma nova ideia; o pouf à l’inoculation celebrava a ocasião. Era representado por um Sol nascente, uma oliveira carregada de frutos, em torno da qual uma serpente era torcida, segurando uma clave com uma flor enrolada. 61 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 35 – 36)

Com o tempo, o penteado foi copiado por diversas mulheres da nobreza que fizeram o mesmo no topo de suas cabeças. Mas o penteado que mais destacou-se como estrondoso e extravagante, chegando aos limites do exagero foi com a utilização de penas de avestruz. A tendência veio da própria A lively, good-humoured Gascon, with a sharp wit – and a star’s temperamento – his triumphal arrival as a coiffeur was described by Madame de Genlis: ‘Leonard came, he came and he was king’. 61 The King had been vaccinated on June 18, 1774. [...] The operation on the King gave Mlle. Bertin a new idea; the pouf à l’inoculation celebrated the occasion. It represented a rising sun, and na olive-tree laden with fruit, round which a serpente was twisted, holding a flower-wreathed club. 60

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rainha, que não demorou para entediar-se com a moda que ela própria havia lançado. No entanto, o penteado ficou na moda por muitos anos, com seu ápice entre os anos de 1776 e 1780. “Logo, os poufs rivalizavam com altíssimas plumas de avestruz e pavão – que por sua vez tinham até 90 centímetros de comprimento e eram sempre terrivelmente caras – como o acessório para cabelo preferido”. (WEBER, 2008, p. 123) É necessário perceber a influência da própria Rose Bertin perante a corte neste momento. Ela tinha audições privadas com a rainha, algo que era uma quebra do sistema da sociedade de corte. Além disso, a estilista semanalmente passava horas em seu gabinete criando novos modelos de vestidos e acessórios graças à confiança que gozava de sua soberana: Rose Bertin continuou a apreciar da confiança da rinha, e trabalhou em seus aposentos as vezes por duas ou três horas seguidas. E a confiança de Maria Antonieta era uma propaganda melhor do que as bonecas vestidas nas novas modas que ela mandava para cidades estrangeiras. 62 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 87)

Essa influência deve ser percebida não apenas como um grau de proximidade pessoal da soberana – da qual os membros da corte ainda estavam sujeitos ao prestígio desta para conseguir ficarem próximos – mas também representava certa acessibilidade num “atalho” através da estilista. Rose Bertin viu nisso uma vantagem para si própria e passou a considerarse importante: Especulando sobre a influência que ela [Rose Bertin] possuía com a rainha, frequentemente pessoas se dirigiam à estilista para implorá-la a coloca-los no lugar de prestígio desejado perante a rainha; e ela aceitava de bom grado, muito feliz, na realidade, de ser considerada importante. 63 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 97)

No entanto, esta atenção recebida teve dois lados. Apesar de favorecer a estilista e dar a ela um maior renome perante a alta sociedade parisiense, a arrogância também a acompanhou, e não só a ela, mas também ao próprio cabeleireiro da rainha, Léonard. “Como estava sobrecarregada por trabalhar para a rainha, Rose Bertin era necessariamente obrigada à

Rose Bertin continued to enjoy the Queen’s confidence, and worked in her rooms sometimes for two or three hours at a strech. And Marie-Antoinette’s confidence was a better advertisement for her than the dolls dressed in the newest fashions which she sent out to foreign cities. 63 Speculating on the influence which she had with the Queen, it often happened that people addressed the milliner to beg her top lace the favour desired before the Queen; and she agreed willingly, very happy, in reality, to be thought important. 62

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negligenciar as vezes outros clientes, e sua arrogância quando censurada causou para ela a perda de mais do que um cliente”.64 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 114) Nesse aspecto de uma mudança comportamental e arrogância do funcionário real pode ser feito um paralelo com o que Damatta (1997, p. 190) se refere como identificação social vertical. “Isto é, com o subordinado tomando a projeção social de seu chefe, patrão ou empregador, como uma capa de sua própria posição”. Essa característica proposta por Damatta é presente em Rose Bertin, visto que em sua loja, numa placa identificando o estabelecimento, a marchande de modes utilizava de sua proximidade da rainha como uma característica que lhe permitia segregar clientes que não desejasse atender: Entretanto, reinventando-se a si mesma como – para usar a expressão que se lia na tabuleta pendurada acima da vitrine de sua loja – ‘Marchande de modes para a rainha’, ela parecia julgar que esse título lhe permitia rejeitar qualquer freguês que lhe parecesse indigno de sua atenção. (WEBER, 2008, p. 140)

Como já dito, Léonard também tinha a tendência de utilizar de sua posição para poder evitar trabalhos com qualquer cliente que não desejasse ser empregado: À semelhança de Bertin, parece que esses sinais de consideração aristocrática o levaram a tratar outros clientes como se estivessem abaixo de si; consta que uma vez gritou para o lacaio da mulher de um rico banqueiro: ‘Diga à sua ama que Léonard não suja suas mãos com as cabeças da classe média!’ (WEBER, 2008, p. 140)

Com isso, nota-se que a teoria de Damatta pode ser aplicada no pequeno séquito de Maria Antonieta. Tanto Léonard quanto Rose Bertin agora tinham seu ego inflado e temperamento próprio condizente com a posição de quem eles serviam. Por este motivo, já se consideravam superiores aos demais, podendo trata-los da forma que desejassem. O ódio do povo francês, portanto, estava indiretamente vinculado também ao séquito particular da soberana. Mas por que Rose Bertin é denominada como “Ministra da Moda”? Esse apelido vem da própria população graças ao conhecimento de que a estilista tinha reuniões privadas com a rainha, como se Maria Antonieta também possuísse um gabinete privado, assim como o rei tinha com seus próprios ministros. “No início de 1780, o público a havia apelidado zombeteiramente de ‘Ministra da Moda’ e ‘Ministra das Quinquilharias’ de Maria Antonieta”. (WEBER, 2008, p. 141) 64

Overwhelmed as she was by work for the Queen, Rose was necessarily compelled to neglect sometimes other clientes, and her arrogance when reproached caused her to lose more than the customer.

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Como já visto, com as tendências de tecidos mais leves e simples, a indústria francesa entrou em crise, com demissões em massa sendo estas mais um fator contra a rainha e Rose Bertin, que passaram a ser ainda mais odiadas pela população. “Em casa, em contraposição, a marchande e sua ama eram insultadas por ‘desferir um golpe fatal’ na indústria da seda, responsável por milhares de empregos fabris em cidades como Lyon”. (WEBER, 2008, p. 178) O ódio por Rose Bertin fica ainda mais intenso com o passar dos anos. Não apenas pelos gastos exagerados das damas da corte em tecidos e em trajes que entravam e saíam da moda com tanta facilidade que continuamente novos vestidos ou acessórios tinham de ser feitos para seguirem as novas tendências, mas também pela arrogância e falta de carisma que esta possuía com o povo. Em 1783, Mlle. Picot, outra marchande de modes, passou a receber mais clientes, sendo vista como uma ameaça por Bertin. No entanto, por mais que o cenário do vestuário não fosse mais dominado exclusivamente por ela, agora com seu estabelecimento instalado na Rue de Richelieu, a modista ainda conseguia garantir a si própria o destaque pela proximidade com a soberana. “Mlle. Picot roubou alguns de seus clientes; ainda assim, a rainha ainda a patrocinava, e empregar a modista de Vossa Majestade era a coisa certa a se fazer”.65 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 171) No decorrer da segunda metade da década de 1780, enquanto grandes famílias viam suas finanças arruinadas e modistas declaravam falência pela falta de pagamento de seus clientes, Rose Bertin encontrava-se numa situação tão calamitosa quanto seus companheiros de profissão. A situação da estilista era tão grave que no ano de 1787 começou-se a espalhar um rumor de que ela havia declarado falência. Este rumor foi tão bem recebido por clientes insatisfeitos e pessoas das quais não nutriam simpatia pela modista que um relato da Baronesa Oberkirch – uma das damas da corte das quais não gostava de Rose Bertin e considerava que esta utilizava de sua posição próxima da rainha para achar-se superior a outras damas da corte – mostra esta antipatia generalizada para com a modista: ‘Mlle. Bertin, tão soberba, arrogante e até mesmo insolente, que colaborou com Vossa Majestade; Mlle. Bertin, que encabeçava suas contas em grandes dígitos: Fornecedora de Modas para a Rainha – Mlle. Bertin acabou de falir. E é verdade que isto não é uma falência plebeia: é a falência de uma grande dama – dois

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Mlle. Picot had robbed her of some of her customers; yet the Queen still patronized her, and it was still the correct thing to employ Her Majesty’s modiste

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milhões! Isso é alguma coisa para uma comerciante de panos’.66 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 174)

O tom do relato da Baronesa já mostra a antipatia para com a modista, mas também é preciso recorrer ao contexto histórico do período. 1787 coincidia com a convocação da Assembleia dos Notáveis, assim como o crescimento da antipatia pela própria Maria Antonieta, maior apoiadora de Rose Bertin, que agora via-se afetada pelo desastroso Caso do Colar. O rumor teve um impacto tão grande que Rose Bertin teve uma reunião com a rainha cancelada e sua presença diante dela lhe foi negada. Ela via os efeitos de sua reputação como uma mulher arrogante e que se julgava acima dos outros pouco a pouco recaírem sobre ela. Agora a estilista perdia continuamente o apoio e a popularidade com sua principal patrocinadora e cliente, Maria Antonieta. “‘Vossa Majestade não a veria, e ela teve seu acesso aos apartamentos reais negado, o que foi o último toque para sua ruína’”.67 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 176) No entanto, tal rumor acaba tendo sua origem atribuída à própria modista, que de alguma forma conseguiu convencer Maria Antonieta que tal boato teve origem por algum dos inimigos políticos da própria soberana, como forma de enfraquece-la. A motivação para este rumor é dada como uma tentativa de Bertin de conseguir chamar atenção para si mesma num mercado concorrido e para que seus clientes pagassem suas dívidas. “[...] [o boato] foi originado pela própria Rose, e que ela habilmente espalhou o relato como forma de atrair a atenção pública e recuperar o montante devido à ela pela corte”.68 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 177) A persuasão de Rose Bertin sobre Maria Antonieta parece ter dado certo, já que esta continuou realizando compras com a estilista, visto que o momento para um boato como aquele surgir como tentativa dos opositores de Maria Antonieta de diminuírem ainda mais sua reputação após o Caso do Colar não poderia ser mais propício. “Bertin não demorou muito, porém, para convencer Maria Antonieta de que espíritos maliciosos haviam lançado os boatos sobre a bancarrota no intuito de desacreditar as duas”. (WEBER, 2008, p. 206) ‘Mlle. Bertin, so haughty, arrogant, and even insolente, who collaborated with Her Majesty; Mlle. Bertin, who headed her bills in large type: Supplier of Fashions to the Queen – Mlle. Bertin has just gone bankrupt. It is true that this is no plebeian bankruptcy: it is the bankruptcy of a great lady – two millions! That is something for a dealer in chiffons’. 67 ‘Her Majesty would not see her, and she was refused admittance to the royal apartments, which puts the last touch to her downfall’. 68 [...]it was originated by Rose herself, and that she skilfully spread the report in order to draw the public attention and recover the sums due to her from the Court. 66

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Para a vida da soberana e de sua própria estilista, os eventos que se seguiram, como a morte da filha mais nova de Maria Antonieta, Marie-Sophie e do próprio Delfim, acabaram afetando o estilo de vida da rainha e os avanços na moda através da figura da soberana de forma direta. “O reinado de rufos e futilidade estava no fim, e a estrela de Mlle. Bertin estava em declínio. Ela era uma vítima das circunstâncias, como muitos outros”.69 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 184 – 185) Rose Bertin vê sua situação piorar definitivamente com a Queda da Bastilha e a Revolução Francesa. Seus clientes começaram a sair de Paris e aos poucos da nação. O modo de vida mudou drasticamente, e ela finalmente teve tempo para ver todas as dívidas que seus clientes, outrora residentes de Versalhes e membros da alta aristocracia francesa, deixaram para trás quando emigraram para fora do país. “Muitas grandes damas de nacionalidade estrangeira já haviam deixado Paris; se por prudência ou covardia, a nobreza francesa não demorou em seguir seu exemplo”.70 (Tradução livre do autor) (LANGLADE, 1913, p. 195) Apesar de manter alguns clientes em território nacional, e principalmente em outros países, Rose Bertin jamais foi capaz de se recuperar do golpe que a Revolução Francesa trouxe. Especialmente após a morte de algumas de suas clientes, como a Princesa de Lamballe em 1792, a Condessa du Barry em 1793 e sua principal patrocinadora, a rainha Maria Antonieta em 16 de outubro de 1793. A estilista viveu seus últimos dias no vilarejo de Épinay-sur-Seine, próximo de Paris, morrendo no ano de 1813 trabalhando para algumas damas de cortes estrangeiras. Bertin jamais foi capaz de ter todas suas dívidas pagas e de reviver outro ápice em sua carreira como marchande de modes desde a Revolução.

3.2 ANÁLISE DA INDUMENTÁRIA COMO FORMADORA CULTURAL

Analisando os diversos aspectos referentes à moda e ao próprio contexto histórico da época, pode-se notar certa influência do sistema em que se vivia no período para com o ramo da indumentária. “Assim, na sociedade francesa do Antigo Regime, percebemos dois discursos simultâneos. O da economia estacionária, em que cada um ocupa seu lugar e devia consumir de acordo com sua posição social, e na qual a roupa revela o status”. (ROCHE, 2007, p. 22) 69

The reign of frills and futility was at na end, and the star of Mlle. Bertin was on the wane. She was a victim of circumstances, like many others. 70 Many great ladies of foreign nationality had already left Paris; whether out of prudence or cowardice, the French nobility were not long in following their example.

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Logo, havia uma busca por status. Não havia uma oportunidade igual para todos em ascender na sociedade de privilégios do século XVIII. Os nobres ainda ditavam a moda. Os poderosos ainda mandavam enquanto os demais copiavam como podiam, ainda que a cópia nunca fosse perfeita. A distinção permanecia, ainda que em pequenos detalhes. Esse desejo de distinção de classes se vê presente intensamente no Antigo Regime francês. “[...] os profissionais, os exegetas da moda exaltavam o desejo dos privilegiados, verdadeiros ou falsos, de se distinguirem dos simples mortais. As roupas se transformavam em armas na batalha das aparências”. (ROCHE, 2007, p.22) A complexidade do vestuário na Idade Moderna vai além do simples corte de um vestido, das características nos pequenos detalhes, das tabelas de cores e tecidos. Todos estes elementos precisam ser vistos como questões determinantes para a estrutura de classes do período. Roche (2007, p. 47) assim nos diz que, “para uma história da cultura indumentária da Idade Moderna, precisamos traçar a evolução das cores, dos contatos e do status dos tecidos”. No entanto, é necessário entender o motivo de analisar-se um vestido de corte. O motivo do luxo ser analisado e por que ele revela tantos aspectos de uma sociedade regada aos privilégios e frivolidades. Primeiramente, deve-se entender porque a escolha de um traje da nobreza. A abundância das fontes e conservação de trajes desta classe é maior e de mais fácil acesso que os das demais classes. É interessante ressaltar que o período de arte da época centrava-se na estética do Rococó. No vestuário, o luxo representava, por consequência, uma característica de classe e do belo. “Pois se a moda espetaculariza a posição social, põe igualmente em cena o corpo de maneira enfática, jogando com suas formas, reduzindo-as ou ampliando-as por vezes até a extravagância”. (LIPOVETSKY, 2005, p. 39) É importante ressaltar que a análise da fonte primária se dá num mesmo tipo de vestido, no caso, o robe a la française. Primeiramente, é preciso compreender a forma deste corte de traje da corte: O vestido à francesa deriva do robe volante, mas tem duplos plissados redondos que distribuem a amplitude nas costas. A blusa é justa na frente e, o mais das vezes, aberta sobre o corpete rígido, dissimulado por uma pièce d’estomac triangular exuberante ou escondida por uma escada de fitas. O vestido abre-se numa anágua frequentemente do mesmo tecido, guarnecido dos mesmos adornos, flores e ornamentos variados. (BOUCHER, 2012, p. 265)

Esta escolha deu-se por diversos motivos. É importante lembrar que a moda tem mudanças ao longo dos anos, mas são em pequenos detalhes. O estudo minucioso faz-se

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necessário para poder notar as diferenças entre um ano e outro de uma peça de roupa que, a primeira instância, parece igual: A moda muda incessantemente, mas nem tudo nela muda. As modificações rápidas dizem respeito sobretudo aos ornamentos e aos acessórios, às sutilezas dos enfeites e das amplitudes, enquanto a estrutura do vestuário e as formas gerais são muito mais estáveis. (LIPOVETSKY, 2009, p. 33)

Esta característica é reafirmada por Köhler, que realça a importância do vestuário do século XVIII sob o reinado de Luís XVI em características não de diferenças no vestuário em geral, mas em pequenos detalhes deste. “Sob Luís XVI, a moda avançou rumo ao que pareciam novas tendências, mas as mudanças deram-se mais nos ornamentos do que nos cortes”. (KÖHLER, 2009, p. 403) Quanto ao próprio modelo do vestido, no caso o robe à la française, é importante lembrar que ele seguiu esta tendência de pequenas mudanças ao longo do tempo e era o vestido mais utilizado pela corte francesa, que é o objeto principal de estudo. Os outros trajes, como o gaulle e o levité, não eram considerados trajes oficiais da corte, por este motivo o robe à la française é a escolha mais apropriada para a análise: [...] o vestido à francesa manteve o mesmo corte durante várias décadas a partir da metade do século XVIII. São os adornos e as bugigangas, as cores, as fitas e as rendas, os detalhes de forma, as nuanças de amplidão e de comprimento que não cessaram de ser renovados. (LIPOVETSKY, 2009, p. 34)

O vestuário analisado nesta monografia – preservado de provavelmente algum membro da burguesia ou da própria nobreza – mesmo sendo um traje aristocrático tem sua relevância de estudo. Ele mostra o vestuário de uma determinada classe, num determinado espaço de tempo e sua finalidade. “Eles [os trajes] permitem avivar a realidade seca das fontes arquivistícas, refletir sobre as formas, o uso dos tecidos, a ornamentação, a variedade de cortes, a utilização de bordados e botões”. (ROCHE, 2007, p. 24) E esta mudança sutil é clara nas nuances dos três vestidos do mesmo modelo analisados. Apesar da diferença entre suas produções – cerca de dez anos – as diferenças gerais são mínimas, as principais se dão nos detalhes. Ainda assim, o vestido datado entre 1770 e 1775 apresenta características de cores mais fortes e sóbrias, um penteado baixo, com uma pequena pena o adornando, condiz com o período estipulado deste vestido, visto que a influência da indústria têxtil e das cores suaves criadas para agradar o desejo da classe

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aristocrática dá-se a partir de 1775, enquanto o pouf também tem seu ápice a partir do ano de 1774. O vestido é feito de seda de Lyon azul, segundo a descrição do museu, com alguns detalhes em outros tecidos não mencionados em sua fonte. Além disto, também possui combinações de linhas e flores junto de cores sóbrias, que mostram a mudança significativa nos pequenos detalhes em que o vestuário francês estava passando no período. Por este motivo, o vestido inicial da análise remete a elementos estruturais do vestuário já mencionados e estudados, podendo ser observado na Figura 1: Figura 1 – Dress (Robe à la française) c. 1770 – 1775.

Fonte:

Dress

(Robe

à

la

française)

c.

1770



1775.

Disponível

em:

Acesso em: 04 mar. 2016.

Ou seja, estes dois aspectos, tanto na cor do vestido quanto no próprio penteado, que são de notável distinção já podem ser vistos no segundo modelo analisado. As cores mais claras e sem grande estamparia, um penteado mais alto – possivelmente um pouf – com um adorno mais requintado e pequenas curvas na costura como um detalhe parecido com a

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sinuosidade do movimento do Rococó, já podem ser notados quando observado o vestido contido na Figura 2:

Figura 2 – Dress (Robe à la française). 1775.

Fonte:

Dress

(Robe

à

la

française.)

1775.

Disponível

em:

Acesso em: 04 mar. 2016.

Além disto, ele também apresenta características das características de um robe à la française do momento: As mangas justas, das quais longos engageantes de renda pendiam até os antebraços, chegavam pelo menos até o meio do braço e tinham diversos tipos de adornos nas extremidades. As extremidades dianteiras da saia – que às vezes era forrada – tinham um enfeite igual ao das mangas. [...] A mesma diversidade encontrava-se nos tipos de enfeite, dos quais os mais comuns eram os volants, ou babados, e sobretudo os suaves pregueados (em platitude), presos à saia em linhas retas ou em curvas maiores ou menores. (KÖHLER, 2009, p. 448)

E por fim, o último modelo, o mais extravagante de todos exibe um verdadeiro pouf, com uma caravela no topo deste, um colar de joias, cores claras e delicadas com diferença de tons próximos da costura onde um trabalho ainda mais delicado e assimétrico foi feito. Estes

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elementos exibem a real tendência da extravagância da moda neste período, lembrando do típico estilo do Rococó em manter as formas de “s”. “Como o minueto, a linha em forma de ‘s’ é uma das características definitivas do Rococó”.71 (Tradução livre do autor) (KODA, 2006, p. 61) É importante ressaltar que o terceiro vestido pode ser uma representação do vestido do qual Maria Antonieta utilizou para comemorar a vitória da fragata francesa La Belle Poule durante a Revolução Americana, no ano de 1778. Ao menos o penteado, claramente um pouf, segue a descrição tida do penteado utilizado pela monarca para celebrar tal evento. “Maria Antonieta prestou homenagem ao conflito com o mais ostentoso pouf que exibira até então: uma enorme réplica e La Belle Poule, inteiramente aparelhada, navegando num mar de cabelo”. (WEBER, 2008, p. 141). Tal representação pode ser vista também numa ilustração da qual uma dama da corte anônima utiliza este modelo de penteado, denominado Coiffeure à l’Indépendance ow le Triomphe de la liberté, que segue na Figura 3:

Figura 3 – Coiffeure à l’Indépendance ow le Triomphe de la liberté. ca. 1778.

Fonte: CAMPBELL, Kimberly Chrisman. Fashion Victims: Dress at the court of Louis XVI and MarieAntoinette. New Heaven: Yale University Press, 2015. p. 162. 71

Like the minuet, the S-line is one of the Rococo’s defining features.

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Por sua vez, é possível fazer uma relação de todos estes detalhes mencionados do vestido e da própria representação de Maria Antonieta com a última peça analisada nesta monografia, inserida na Figura 4:

Figura 4 – Dress (Robe à la française). c. 1780.

Fonte:

Dress

(Robe

à

la

française)

c.

1780.

Disponível

em:

Acesso em: 04 mar. 2016.

Os detalhes nos três vestidos permitem notar uma tendência importante do traje de corte com as alterações instituídas por Maria Antonieta. Eles não têm grande volume na parte frontal ou traseira do vestido. As saias possuem apenas seu comprimento lateral. Esta mudança foi instituída logo que a rainha subiu ao trono ao remodelar o clássico modelo das anquinhas. “Maria Antonieta deu-lhes, porém, uma forma que nunca antes haviam tido: estendiam-se apenas para os lados; na frente e nas costas eram o mais reto possíveis”. (KÖHLER, 2009, p. 441) Não é possível esquecer que todos os três vestidos também apresentam o mesmo material de tecido. Os três são feitos de seda e o último tem a característica dos bordados em suas costuras, característica importante do movimento do Rococó e da ascensão do trabalho

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manual artístico na França do século XVIII, agora protegida pelas guildas dos marchandes de modes. O trabalho manual começou a ser mais valorizado e os detalhes sempre tinham algum elemento para distinguir os membros de uma determinada classe, o que deve ser levado em questão na análise deste vestido. Deve-se ter em mente que um robe à la française do momento com suas anquinhas laterais era considerado um traje de corte. Isso não quer dizer que seu uso exclusivo dava-se nela, mas que sua finalidade principal era a de ser usado em ocasiões que envolviam um ambiente mais formalizado. “Esse tipo de anquinhas foi aos poucos ganhando aceitação geral e permaneceu como traje palaciano até a época da Revolução Francesa. Para uso cotidiano, começou a diminuir de tamanho por volta de 1780, saindo quase que totalmente de moda em 1785”. (KÖHLER, 2009, p. 445) Maria Antonieta é uma figura que deve ser analisada pelo motivo de não apenas ser o ícone dentro deste momento para a moda francesa, mas pela sua influência. Ela passava a ditar as regras, junto de Rose Bertin, do que era ou não moda para o momento. O que estava em voga e o que não estava. Seu livro do guarda-roupas nada mais representa que sua necessidade diária de se apresentar perante a corte como alguém que ditava a moda, que seria observada para poder ser copiada pelos demais. O livro do guarda-roupas tem uma importância tão grande como fonte histórica para a questão da cultura material que sua preservação pelos arquivos nacionais franceses é digna de análise. O livro possui diversos tecidos e nuances de cores, além de anotações a mão que podem ou não serem da própria rainha. “Cada roupa é categorizada e acompanhada por uma pequena amostra de material. Existem amostras para os vestidos de corte em vários tons de rosa, em um tecido sombreado cinza listrado e em um tecido aveludado listrado turquesa planejado para a Páscoa”.72 (Tradução livre do autor) (FRASER, 2002, p. 175) Mas por que é importante ressaltar a figura dos estilistas e da sociedade parisiense no sentido econômico da indumentária? A produção e alteração constante em pequenos detalhes do que era ou não em voga no período acabava proporcionando o aumento do comércio e um lucro maior para os estilistas enquanto também representava um gasto ainda maior para famílias de todas as classes sociais numa época em que uma necessidade básica, como a alimentação não era algo rentável ou de fácil acesso.

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Each outfit is categorized and accompanied by a tiny swatch of material. There are samples for the court dresses in various shades of pink, in shadowy grey-striped tissue and in the self-striped turquoise velvet intended for Easter.

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Os nobres acabavam estimulando o comércio, sua influência consequentemente fazia com que outros membros de classes mais baixas procurassem se igualar a estes, que acabavam estimulando a indústria do vestuário francês. “As atitudes dos nobres parisienses em relação ao vestuário eram bastante uniformes. Elas estimulavam o comércio e a moda e davam o tom para os outros grupos sociais, incentivando mecanismos de imitação que eram adotados de acordo com os recursos disponíveis”. (ROCHE, 2007, p. 122) Não só pelo comércio, a moda também ressaltava a influência da corte francesa e de Paris como capital da moda, influenciando diversas outras cortes e culturas estrangeiras: [...]Além disso, havia a importância da moda como um produto de exportação para a França. Essa prática não resultava apenas em poder financeiro, mas também simbólico. Juntamente com os cortes de vestuário, vendia-se também o modelo sociocultural da corte francesa para o mundo, como uma afirmação política. (LIMA, 2012, p. 7)

Neste mesmo aspecto do comércio deve ser lembrado dos tecidos leves e soltos dos vestidos no decorrer do período de uma menor suntuosidade nos trajes de tecidos como o linho e a musselina. Não apenas a questão do modelo cultural francês é de destaque nessa época, mas também o fato de que a moda agora passava a representar uma construção de uma identidade. Ela não mais representava apenas uma necessidade de “fazer parte”, ela implicava também nos menores detalhes de uma expressão pessoal do indivíduo que a utilizava: Ainda que se possa afirmar que a moda começou por volta de 1350, seria mais correto dizer que no sentido moderno – com mudanças rápidas e um desafio constante ao indivíduo para se manter em dia com o seu tempo – ela só se tornou uma força real no século XVIII. (SVENDEN, 2010, p. 24 – 25)

Talvez por esse motivo o pouf conseguiu ter tantas adeptas na sociedade nobre francesa. Não somente era a necessidade de estar em dia com o que estava ou não na moda, e com isso possuir a sensação de fazer parte de um determinado grupo dos que acompanhavam a moda. Ele significava um motivo diferente para cada usuária deste penteado, assim como alguns simples detalhes num robe à la française poderiam ser uma manifestação pessoal de identidade própria. “Primeiro grande dispositivo a produzir social e regularmente a personalidade aparente, a moda estetizou e individualizou a vaidade humana, conseguiu fazer do superficial um instrumento de salvação, uma finalidade da existência”. (LIPOVETSKY, 2009, p. 43)

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Por este motivo deve-se lembrar da questão dos detalhes nos vestidos. Eles representavam por si só um pequeno toque de individualidade. Do “fazer-se notar” dentro da corte: A moda estava nos detalhes. Geralmente, um vestido feminino mal era visto embaixo da abundância de penas, fitas, pendões, renda, flores artificiais e outros ornamentos dos quais ele era adornado. E nenhum conjunto estava completo sem um acessório para cabelo, leque, luvas e joias. Estes enfeites e acessórios eram comumente ainda mais caros que os tecidos dos quais eles eram costurados. 73 (Tradução livre do autor) (CAMPBELL, 2015, p. 52)

A característica individualista relacionada com o advento da moda é reafirmada por Lipovestky, que também argumenta em favor das tendências de moda relacionadas com o aparecimento da diferenciação em meio à detalhes na estética: Se a moda não existiu sempre, é que exigia como condição de aparecimento uma certa liberação da individualidade, a depreciação do anonimato, a preocupação com a personalidade, o reconhecimento do “direito” de valorizar-se, de fazer-se notar, de singularizar-se. (LIPOVESTKY, 2005, p. 41)

Desta forma, a moda e suas características como conhecida pelo mundo contemporâneo tem sua origem neste momento, conferindo a característica da individualidade de quem veste tal traje dentro da sociedade de corte. É notável ressaltar que a moda colide com a quebra de algumas tradições. Ao mesmo tempo em que ela quebra barreiras, ela se mantém na hierarquização já habituada pela sociedade. “[...] a moda progride no espaço onde as tradições regridem. Sua dinâmica feita de imitação e diferenciação esclarece particularmente dois aspectos importantes da vida social”. (GODART, 2010, p. 35) Esta questão da moda quebrando a tradição pode ser reafirmada quando analisado o vestuário da vida simples de Maria Antonieta. Como já visto, este era tido como modelos transgressores que despiam a aristocracia de seus espaços determinados na sociedade e estimulavam atividades clandestinas como o adultério. A tradição viu-se num confronto direto com a moda neste período. A tradição pode ser colocada ao lado da distinção. Na sociedade francesa, como já dito anteriormente, a indumentária também servia para a distinção de classes. Com a apropriação de tendências indumentárias de camadas inferiores pela nobreza, a distinção é posta em pauta. Fashion was in the details. Often, a woman’s wogn was barely visible under the profusion of feathers, ribbons, tassels, lace, artificial flowers, and other ornaments with which it was adorned. And no ensemble was complete without a headdress, fan, gloves, and jewels. These trimmings and accessories were often even more expensive than the textiles onto which they were sewn. 73

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Ela é ameaçada, e os signos de uma soberania nobilitária acabam correndo o risco de desaparecer. “O processo de imitação começa a se manifestar e ameaça atenuar ou mesmo abolir as diferenças, a menos que os privilegiados e os meios ameaçados defendam suas posições e, de uma maneira mais ou menos visível, os símbolos de sua superioridade”. (ROCHE, 2007, p. 55 – 56) Portanto, a moda consistia num processo de distinção do qual corria de encontro à imitação pelas classes mais baixas. A difusão cultural já estava presente apenas no ato de se vestir.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso lembrar do fato de estar sendo posto em análise apenas figuras da estética feminina. Em nenhum momento o vestuário masculino foi colocado em análise, não acontecendo nem mesmo em segundo plano. A divisão entre gêneros sugere que há uma cultura especificamente feminina, mas Burke (2008, p.41), a contextualiza como “pensar em termos de culturas ou ‘subculturas’ femininas mais ou menos autônomas ou demarcadas. Serão mais autônomas sempre que as mulheres forem mais segregadas dos homens”. Por este motivo podemos analisar a sociedade francesa em específico no gênero feminino. Ao fazer isto, consegue-se observar justamente o período em questão. As protagonistas da moda são todas mulheres. Maria Antonieta e Rose Bertin se destacam por seus próprios motivos, e o próprio contexto de marchande de modes é dominado por mulheres. A independência do gênero feminino vem desde a termologia da feminização do luxo, em que a mulher se desvincula e assume o papel de protagonista da indumentária. Continuando no esclarecimento, por que estudar a nobreza? Estando com o conhecimento do denominado jogo de imitação pressuposto pelas camadas sociais, em que a cada advento de uma nova moda as demais classes a propagavam da forma que podiam e conforme os recursos que possuíam acesso, formando este esquema piramidal, a facilidade de acesso à fontes se dá ao topo, na própria aristocracia. A preservação de trajes também coincide com os desta classe. A facilidade em acesso de materiais provenientes de classes abastadas é, logicamente, muito maior do que das classes baixas, que pouca coisa se encontra preservada. “Em sua, o acesso histórico direto é até certo ponto socialmente comprometido, pois predominam os trajes aristocráticos e as belas vestimentas, sendo raras as roupas comuns”. (ROCHE, 2007, P. 24) A escolha de trajes de corte se adequa para o propósito de mostrar o conceito de imitação numa escala piramidal da qual os nobres impunham seus gostos e os demais procuravam copiá-lo, e principalmente para analisar a problemática, abordando a indumentária como um elemento de classe. “Mas a história do traje nobiliário está inextricavelmente ligada a seu papel como meio de demonstrar distinção, num sistema de consumo fundado no exibicionismo da ‘sociedade cortesã’”. (ROCHE, 2007, p. 40) Com esta mesma lógica é possível entender o motivo do estudo do mesmo corte de vestido que consistia num traje de corte. Além da facilidade de acesso, ele permite

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compreender as pequenas mudanças tratadas por teóricos ao longo do processo de evolução dos trajes no período específico estudado, no que Roche (2007, p. 128), define como “uma sucessão de modas”. Por este motivo, é importante perceber que a sucessão de modas provocada por o que entrava e saia do que era considerado moda, acabava afetando diretamente na economia, como já tratado. Estes gastos exagerados por grande parte das classes abastadas refletiam na renda privada e por consequência afetavam a própria renda pública de um Estado já endividado. Esses gastos absurdos eram justificáveis, no entanto, quando se lembra do contexto em que viviam. E a indumentária representava para os outros um estilo a ser acompanhado, independente se beirava ao exagero, ou até mesmo o ultrapassava:

Comandada pela lógica da teatralidade, a moda é um sistema inseparável do excesso, da desmedida, do exagero. O destino da moda é ser inexoravelmente arrebatada pela escalada de acréscimos, de exagerações de volume, de amplificação de forma, fazendo pouco do ridículo. (LIPOVESTKY, 2009, p. 40)

Por este motivo do domínio da aristocracia na hierarquia de quem comandava e difundia a indumentária para as classes inferiores, nota-se a necessidade de comparação e imitação. Não é a intenção entrar no julgamento do ostentativo ou do luxuoso. A intenção difere de questionar se a sociedade seguia por um rumo certo ou não. Não cabe ao historiador julgar os costumes de uma determinada sociedade, mas sim analisa-los. Para tal feito, é necessário compreender que a sociedade francesa do período vivia num ideal de que quem estava numa posição social elevada utilizaria do luxo para reafirmar sua posição, poupar era algo que não se via com bons olhos. “[...] e o supérfluo – portanto o luxo – era legítimo quando afirmava um nível de consumo ditado pela posição social”. (ROCHE, 2007, p. 41) A imitação surge para poder lidar com as ambições de classes inferiores em se assemelharem aos seus superiores, que em contrapartida faziam dos mínimos detalhes o suficiente para darem pequenos toques de sua individualidade e personalidade própria. “Mais fundamentalmente, é em razão do desejo dos indivíduos de assemelhar-se àqueles que são considerados superiores, aqueles que brilham pelo prestígio e pela posição, que os decretos da moda conseguem propagar-se”. (LIPOVETSKY, 2009, p. 43 – 44)

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Portanto, a indumentária surge como um formador cultural característico de uma classe a partir dos próprios movimentos e anseios sociais de classes inferiores que procuravam se igualar. A propagação direta feita a partir da figura de Maria Antonieta em direção dos nobres procurando reafirmar-se como sua superiora e ícone no setor do vestuário provam que a vestimenta tinha um valor significativo que era mais profundo e enraizado em características hierárquicas de posições inferiores buscando igualar-se aos seus superiores.

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