Reforma-CPP-novembro-2016.docx

May 26, 2017 | Autor: Fauzi Hassan Choukr | Categoria: Processo Penal, Criminal Procedural Law
Share Embed


Descrição do Produto

A REFUNDAÇÃO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO:
Para além o discurso reformista


Fauzi Hassan Choukr
Sumário:

O lento caminhar do processo penal brasileiro
Para além do discurso reformista: a necessária refundação do processo penal brasileiro




O lento caminhar do processo penal brasileiro


Nascido sob o manto da Carta de 1937 com declarados fins políticos e obviamente distante do marco constitucional-convencional contemporâneo, o CPP "em vigor" significou a superação dos Códigos processuais penais estaduais, fenômeno que teve seu nascedouro com a Constituição de 1891.

Observados a partir de um ponto de vista retrospectivo, tais leis não foram suficientes para consolidar uma cultura Republicana. Nada obstante, a doutrina dominante do processo penal preferiu criticar o tema apenas a partir de uma ótica positivista, enfatizando que "essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.".

Fragmentação que, na verdade, demonstrava muito mais a ausência de uma harmonia cultural mesmo no âmbito do direito positivo, pois Estados como São Paulo, Mato Grosso, Pará, Alagoas e Goiás jamais abandonaram o Código Imperial.

A pulverização cultural num momento de reestruturação dos valores fundantes do Estado brasileiro claramente demonstrava que os ideais republicanos apenas estiveram presentes formalmente naquela quadra de nossa História, e não foram suficientes para evitar os reflexos autoritários já existentes e os que ainda estavam por vir. Por isso, pode-se afirmar que o processo penal não foi um instrumento legal que tenha causado preocupação quando das violências iniciais do Estado Novo (assim como não o seria ao longo do século que se seguiria) e a unificação promovida tornou apenas mais dócil a administração desse aparato legal.

Porém, quando da reconstitucionalização após o mais recente período de exceção militar, teria sido necessária a adaptação da legislação frente à Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais assinados pelo Brasil e, de maneira um tanto mais ampla, pela observância, nos limites da margem nacional de apreciação, das decisões dos tribunais internacionais, notadamente a Corte Interamericana de Direitos do Homem.

No entanto, no direito brasileiro houve a opção técnico-política pelas reformas segmentadas, cujas supostas virtudes são sobejamente suplantadas por suas deficiências estruturais e seus resultados sempre insuficientes quer do ponto de vista teórico, quer do prático.

Assim, o Projeto de Lei oriundo do Senado da República configura a única tentativa em 25 anos de reformar por completo o Código de Processo Penal e a primeira com esse perfil desde a reconstitucionalizão de 1988.

Olhado sob a ótica comparada, o Brasil se coloca tardiamente na rota das reformas globais empreendidas pela imensa maioria dos países latino-americanos que reconstruíram suas bases politico-jurídicas no estado de direito, bem como em relação a alguns países paradigmáticos para a cultura processual brasileira, como Itália e Portugal.

Tais países, diferentemente da realidade brasileira, com maior ou menor velocidade, refundaram sua estrutura processual e buscaram dar, assim, vida prática – e não meramente retórica - à clássica concepção de ser o processo penal o aclamado 'sismógrafo da constituição'.


Para além do discurso reformista: a necessária refundação do processo penal brasileiro


A oportunidade histórica que se abre com o PLS 156/2009 (atual PL 8045/2010) na Câmara dos Deputados) impõe que se considere o atual momento como o da construção de um novo paradigma processual penal e sua cultura e não a reforma da (des)ordem anterior.

Trata-se, assim, de romper com a mera constatação de "crise" do funcionamento da Justiça penal, mas, sim, de buscar-se um novo léxico que oriente a reconstrução do marco politico-institucional pois, como já tivemos a oportunidade de salientar em texto pretérito,

Cabe aqui uma palavra sobre o reiterado emprego do vocábulo crise – observável em todos os ramos da vida nacional... Cuida-se muito dele quando se fala em economia, saúde, educação e, por certo, justiça. No sentido usado, crise lembra muito o sentido que lhe dá a medicina, algo, sobretudo, orgânico. Nesse caminho, o corpo "poder judiciário", composto por órgãos que "administram a justiça", apresenta-se num momento de disfunção, levando a um colapso do sistema. Crise nesse sentido é algo puramente do presente, originada pela falha de algum componente estrutural, mas que, solucionada, recolocará o organismo dentro de seu funcionamento "normal". É com base nesse raciocínio que funcionam as críticas e pretensas soluções para a "crise do sistema penal". Mas a falácia dessa proposta é notória, sobretudo quando se indaga qual foi o momento em que a justiça criminal funcionou a contento, sendo, por assim dizer, "responsiva" aos reclames do corpo social que deveria regular, às liberdades individuais que deveria proteger e aos condenados que deveria reeducar.

Assim, este momento se apresenta, também no Brasil, como se passou no cenário comparado, como o momento de fundação.

Há, pois, de ser construído um novo espaço político, jurídico e de saber com outros fundamentos de legitimação: a construção democrática no campo da política e a dimensão dos direitos fundamentais no campo jurídico e, nessas bases, também uma nova Academia.

E, nesse sentido, é importante frisar que não houve, no século XX, mesmo com a unificação legislativa da era Vargas, um momento semelhante de fundação se tomarmos como condicionante desse marco político-institucional o modelo democrático. Está-se, ao nosso ver, diante de um momento institucional mais próximo àquele vivenciado quando da criação do Código de "Processo Criminal", no Império, em 1832.

Tomado sob esse prisma, os trabalhos considerados como reformistas e que encaramos como fundacionais podem – e devem- ser aprofundados com vistas a enfrentar as bases que geraram o atual CPP, rompendo definitivamente com aquilo que vimos denominando como estado de denegação substancial da Justiça penal, contexto no qual o processo penal não cumpre nem sua missão social nem sua tarefa jurídica servindo, apenas, de exercício simbólico do poder estatal que, na literatura convencional se denomina de jus puniendi, locução que, em si mesma, é absolutamente incompatível com a complexidade política e técnica do processo penal contemporâneo.

Assim, a proposta política que teve seu início no Senado pode, e deve, ser encaminhada no atual estágio do processo legislativo de modo a não se contentar com alterações superficiais que, ao lado de boas concepções técnicas (como, v.g., o juiz de garantias na fase investigativa), venham a significar alicerces de continuísmos.

Sem uma intransigente alteração na espinha dorsal da investigação criminal, da opção definitiva da oralidade como método no processo, da funcionalidade legítima das cautelares, do exercício das vias impugnativas típicas de forma racional corre-se o risco de perder-se uma oportunidade que passará para a História como o momento de uma "nova" legislação que, no entanto, terá vindo para que tudo tivesse permanecido como estava.



Pós Doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla La Mancha. Promotor de Justiça no Estado de São Paulo.
Para uma demonstração dessa diferença, veja-se LOSSO, Tiago Bahia. Estado Novo – discurso, instituições e práticas administrativas . Campinas, SP : [s. n.], 2006.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, Campinas: Bookseller, 1998, p. 104
Outros, por sua vez, criaram suas próprias legislações, como o pioneiro Rio Grande do Sul, pela Lei nº 24, de 15 de agosto de 1898, e, depois (por ordem alfabética), Amazonas (Lei nº 920, de 1ª de outubro de 1917), Bahia (Lei nº 1.119, de 21 de agosto de 1915), Maranhão (Lei nº 507, de 22 de março de 1908), Minas Gerais (Decreto nº 7.259, de 14 de junho de 1926, ad referendum da Assembleia), Paraná (Lei nº 1.916, de 23 de fevereiro de 1920), Pernambuco (Lei nº 1.750, de 04 de junho de 1925), Rio de Janeiro (Lei nº 1.137, de 20 de dezembro de 1912) e Santa Catarina (Lei nº 1.526, de 14 de novembro de 1925).

Sobre a observância de forma vinculante das decisões das cortes internacionais ao direito interno, CARVALHO RAMOS, André de. Direitos Humanos em Juízo. 1ed. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001. v. 1. 573 p.
Dotti, René Ariel. A reforma do código penal (história, notas e documentos) RBCCRIM 24/179. Disponível em www.revistasrtonline.com.br
CHOUKR, Fauzi Hassan. -- A ordem constitucional e o processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo. v.2. n.8. p.57-68. out./dez. 1994; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro Porto Alegre: Revista de Estudos Criminais. Vol 1 (2001), pgs. 26-51; PRADO, Geraldo Sistema acusatório : a conformidade constitucional das leis processuais penais. RJ: Lumen Juris, 2006, 4ª Ed.
Criada na forma do Requerimento nº 227, de 2008, aditado pelos Requerimentos nº (s) 751 e 794, de 2008, e pelos Atos do Presidente nº (s) 11, 17 e 18, de 2008.
PASSOS, Edilenice . "CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: NOTÍCIA HISTÓRICA SOBRE AS COMISSÕES ANTERIORES". Senado Federal - Secretaria de Informação e Documentação; Brasília, 2008.
Para uma análise critica dos projetos reformistas, inclusive quanto à importância nesse processo dos integrantes das carreiras jurídicas, bem como a critica à posição brasileira, consulte-se LANGER, Máximo. REVOLUCIÓN EN EL PROCESO PENAL LATINOAMERICANO: DIFUSIÓN DE IDEAS LEGALES. Comparative Law, v. 55, p. 617, 2007.
Por todos, ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p.10.
CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. RJ: Lúmen Júris, 2007, 3 ed.
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial – origens do federalismo no Brasil. RJ: Editora Globo, 2005, p. 93.
Como se dá, ainda no campo da investigação criminal, com o modelo investigativo como um todo, cuja forma de construção teórica e de operacionalização prática não se alterarão apenas porque previsto o sobredito juiz de garantias ou mesmo um marco mais bem definido da condição jurídica da pessoa suspeita, ponto também saudável no Projeto.
O que significa, por si só, um novo processo penal, uma nova cultura operacional e, sem dúvida, uma nova construção do saber institucionalizado.





Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.