Reforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha

June 18, 2017 | Autor: Joana Bahia | Categoria: Religion, Afro-Brazilian religions, Religious transnationalization
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3 Reforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha Joana Bahia



Novos modelos de pensamento: a (ir)racionalidade do mundo A era da industrialização é comumente associada à ideia de racionalização do mundo, entretanto muitos movimentos religiosos, correntes ocultistas e apocalípticas constituíram parte desse momento tanto na América quanto na Europa. Esses movimentos contribuíram na criação de modelos de pensamento para a compreensão das mudanças sociais e políticas da sociedade industrial. Muitos buscavam, especialmente os ocultistas, uma junção com as ciências da natureza, evidenciando que as relações seculares poderiam ser interpretadas pela religião. Atualizaram interpretações sobre a relação entre corpo e matéria, alma e espírito, doença e saúde, morte e vida, individualidade e comunidade (WEBB, 1974; LINSE, 1996 e 1998). Muitos relacionavam as ideias de energia e matéria aos modernos progressos da ciência, como as ondas magnéticas e a radioatividade, de modo que os espíritos poderiam se materializar e a própria ideia de evolução que rege a natureza reuniria mundos fragmentados. Muitos espíritas aplicavam a seu modo os métodos científicos ao campo do sobrenatural e produziram textos em que “psicologizavam as doenças” assim como os processos de cura, ao crer que os espíritos de pessoas mortas poderiam causar enfermidades (LINSE, 1996). Nesse sentido, o ocultismo moderno seria a controversa aproximação entre religião e ciência, ou seja, entre os espíritas e os cientistas alemães, como o caso do médium Henry Slade e do físico Karl Friedrich Zöllner por ocasião de sua vinda para Leipzig em 1877 (TREITEL, 2004). Muitas das sessões espíritas de Slade foram presenciadas por cientistas de renome, como Wundt e Fechner, ambos pioneiros no campo da psicologia científica e da psicologia experimental, ocupando cátedras em Leipzig em 1834 e 1875. Zöllner escreveu o primeiro vo52

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lume de Wissenschaftliche Abhandlungen em 1878, estabelecendo avanços na astrofísica, inaugurando o campo da chamada física transcendental e baseando-se nos experimentos realizados com Slade, tendo sido alvo de inúmeras críticas que tanto movimentaram o campo religioso quanto o científico (TREITEL, 2004). Os espíritas, os novos apóstolos e demais movimentos, como ocultismo, milenarismo, tendências apocalípticas, revitalização do protestantismo e cura das almas, concorrem com a plena industrialização. O período entre o século XIX e a metade do século XX é intitulado de “underground da Europa”, compreendendo esse momento como uma resultante de uma crise de valores (WEBB, 1974). Entretanto, a ideia de “fuga de uma razão”, na realidade, pode ser compreendida não como “crise de valores”, mas como uma renovação da consciência religiosa. Pensamento apocalíptico, espiritismo e a teosofia se desenvolveram como tendências supranacionais, pan-europeias e transatlânticas (tendo os dois últimos como ponto de partida os Estados Unidos), absorvendo tanto o ideário da direita quanto da esquerda (LINSE, 1996). Associações como a dos Espíritas Alemães tinham correspondentes na Dinamarca, Bélgica, Inglaterra, Rússia, França e também no Brasil e México. A exemplo de publicações, surgem a Zeitschriff für Spiritismus, em 1904, o editorial espírita Oswald Mutze, em 1902 (Leipzig), que publica Über die Psychische Kraft des Weibes, textos sobre sonambulismo, como Die Seherin von Prevost (A visionária de Prevost), de 1829, de Justinus Kerner, eventos como o 1º Congresso de Ocultistas Alemães, em 1898, em Berlim, e também um forte investimento na construção de liceus para formação educacional, que se opunham às escolas dominicais eclesiásticas (o caso dos Children’s Progressive Lyceums americanos transplantados para a Inglaterra). Biografias como as de Georg Langsdorff e Madame Blavatsky formam claramente uma “internacional ocultista”. O primeiro, médico de família alemã nascido na cidade do Rio de Janeiro, se converteu em 1859 em Ohio ao espiritismo e em 1861 retornou à Alemanha e publicou vários artigos criticando a medicina acadêmica e divulgando práticas terapêuticas alternativas, tais como formas de se vestir e de se alimentar adequados à natureza, aplicações terapêuticas de Kneipp, magnetismo curativo, homeopatia, utilização da luz solar e da cromoterapia e cura por orações espirituais. Como podemos observar, muitas ideias baseadas claramente no movimento “reforma da vida” foram reavivadas por muitos dos líderes desses movimentos. A segunda, de origem russa, forma uma ideia de irmandade teosófica que, partindo das raízes do espiritismo, reinventa um credo universal sem distinção de raça, cor e crença tanto na Europa quanto nos EUA. Muitos desses movimentos atraíam não apenas as classes abastadas, havendo grupos que buscavam aproximações com as reformas sociais, artesãos, proletários e jovens de ambos os sexos, com participação expressiva de mulheReforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha

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res. Isto é, muitos se concebiam como parte de um movimento mais amplo, que abrangia também um sentido político. Ou seja, a melhoria de uma práxis individual levaria à consequente transformação do mundo. Essas ideias, que valorizam o indivíduo como motor da transformação, são oriundas do movimento da reforma da vida (KRABBE, 1998). A primeira vez que o significado da reforma da vida apareceu foi na década de 1890 (BUCHHOLZ; LATOCHA; PECKMANN; WOLBERT, 2001),1 num momento em que o movimento já tinha se espalhado em diferentes direções. Muitas publicações referentes a estética, religiosidade, novas ideias filosóficas sobre literatura, ciência, pedagogia, assim como emancipação e as ideias de reforma social foram agrupadas em torno da chamada reforma da vida. Muitas dessas ideias se inter-relacionavam de algum modo. O significado da reforma da vida se refletiu nas concepções de arte da vida, nutrição, como e onde se vive 1

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Há vários textos acadêmicos que mostram que muitos nazistas se apropriaram de alguns aspectos da reforma da vida, entretanto não podemos reduzir um movimento tão complexo a esse episódio. Historiadores como Hugh Trevor-Roper e Laqueur são em grande parte os responsáveis pela veiculação desse tipo de interpretação. Muitos rediscutem essa questão afirmando que, embora haja certas afinidades culturais, não se pode afirmar que houvesse alianças sociopolíticas mais efetivas entre os ocultistas e o Estado. Treitel (2004, p. 26 e 210-242) cita os trabalhos de Helmut Zander (Anthoposophie in Deustchland. Theosophische Weltschaaung und gesellchaftlische Praxis 1884-1945) e de Nicholas Goodrick-Clarke sobre as raízes ocultas do nacional-socialismo, pois ambos mostram que há limites e interpretações frágeis na construção dessa relação. Conforme cita a autora (2004, p. 26): “Aiming to provide new answers to old questions, Goodrick-Clarke drew on an impressive range of novel primary sources to expose the myths, symbols and fantasies (bearing) on the development of reactionary, authoritarian, and Nazi styles of thinking. He established that the occult figured in Ariosophical thought primarily to legitimate previously conceived notions appealed to Hitler as much as Ariosophical occultism repelled him. All of this led Goodrick-Clarke to conclude, rather anticlimactically, that Hitler and most of his colleagues were not occultists and that their infamous crimes were only loosely connected with occult doctrines.” Hábitos tradicionais se intensificam junto com a organização dos movimentos de jovens nas cidades, em especial tudo o que concerne à Wanderung – caminhadas pelas montanhas, pelos prados, pelas florestas, em que se tem a oportunidade de exercitar o corpo em meio à beleza natural, tornando-o mais forte e saudável. O nazismo se apropriara desse velho habito alemão conectando-o à formação da juventude e endeusando os Wandervogel. Hitler era um naturista, admirador de Gaspar D. Friedrich, promotor dos Wandervogel, incentivador de muitos aspectos que encontramos naquele movimento. Mas muitos aspectos foram proibidos, e entre eles o nudismo conseguiu dobrá-lo. Mas toda a parte progressista, psicológica, libertária desse movimento foi banida do cotidiano e das discussões até o final da Segunda Grande Guerra. O aproveitamento de alguns de seus aspectos pelo nazismo leva à sua transformação em verdadeiro tabu na segunda metade do século XX. Por isso, a exposição Mathildenhöhe, realizada em Darmstadt, em 2001, foi preparada ao longo de anos, visando ressaltar aspectos culturais de fundamental importância para a compreensão da Alemanha e sua sobrevivência no tempo, independentemente de ideologias que fizeram uso de alguns deles. Treitel (2004, p. 7) lembra que o ocultismo alemão cresceu rapidamente, e que em 1900 reuniu grande variedade de crenças – apenas apontando algumas das várias praticas, temos teosofia, astrologia, adivinhação, pesquisa física, grafologia e cura espiritual. Na década de 1940, quando o regime nazista condenou o movimento, centenas de clubes, associações, institutos e publicações e milhares de devotos e consumidores de mercadorias e produtos ocultistas se espalharam por toda a Alemanha. Joana Bahia

(housing, circunstâncias de morar e viver) e práticas de saúde (LINSE, 1998). As ideias de “volta ao futuro” e “arte orgânica de viver” foram atributos que definiram o movimento. Como característica de todo movimento social, a reforma da vida como um todo não era organizada, contendo diferentes grupos e associações, que não concordavam entre si, possuíam diversas influências, mas se relacionavam por terem os mesmos objetivos. Muitos eram padres, médicos, ocultistas, profetas, artistas,2 escritores, intelectuais e filósofos. A exemplo temos Kneipp, sacerdote católico, defensor do naturismo, que foi um dos ideólogos da hidroterapia. Foi diretor das termas de Bad Wörishofen e criador da Terapia Kneipp, uma estratégia hidroterapêutica e dietética ainda praticada nos dias de hoje. Uma abordagem da questão como resultado da influência hindu – considerável sobre a Alemanha do século XIX – implicaria uma simplificação que impediria seu entendimento adequado na medida em que não apenas reduziria seu significado cultural e político, mas diluiria suas raízes na própria cultura alemã, bem como suas consequências sobre a mesma. Há uma ideia de crítica aos excessos da urbanização e da industrialização e seus efeitos sobre a sociedade, propondo-se um retorno à natureza, ampliando o seu sentido aos movimentos do corpo e da alma (BUCHHOLZ; LATOCHA; PECKMANN; WOLBERT, 2001, p. 71). Nesse sentido, a natureza inspira um estilo de vida e uma cultura que valorizam as práticas do antialcoolismo, vegetarianismo (coincide com o crescimento das cidades e com o aumento do consumo de álcool, do açúcar e de carne), a prática desportiva, formas de viver e vestir, práticas de nudismo, curas naturais e a ideia de trazer a natureza para a cidade, como temos nos jardins de Schreber (a chamada Gartenkolonie, prática comum até os dias de hoje). Daniel Schreber, o médico de Leipzig, propõe como solução para as camadas mais baixas da população a existência de pequenos lotes de terra no meio da cidade em que os adultos pudessem plantar verduras, frutas e as crianças brincarem na natureza. A ideia de retorno à natureza é vista como uma questão de saúde. Esses jardins atualmente não possuem a mesma característica, mas constituem parte da cultura alemã, existindo cerca de 4 milhões deles espalhados por toda a Alemanha. Em torno da ideia de um retorno à vida rural, fundaram-se colônias, entre as mais famosas a Eden, a Oranienburg e a Monte Verità, além de muitos sanatórios. A Cooperativa Vegetariana Monte Verità, fundada em 1906 pela feminista anarquista Ida Hofman, por Henry Oedenkoven, Gustav Gräser, Lotte Hattemer, Karl Gräser e Jenny Hofmann na região italiana de Ticino, nos Alpes Suíços, foi visitada por Lênin e também por personagens mais ligados a esse tipo de movimento, como Herman Hesse e Thomas Mann. Rapidamente os intelectuais europeus demonstraram interesse pelo projeto e lhe deram apoio. Pensadores 2

Sobre a participação de artistas no movimento, ver Kirchgraber (2003). Reforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha

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consagrados, como Jung, Eliade, Otto Hesse, Kropotkin, Gross, Steiner, Arp, Joyce, Rilke, Mann, Frisch, Klee, Brecht, Stefan George, Duncan e muitos outros, entre os quais vegetarianos, nudistas, teósofos, anarquistas, literatos e utopistas, passaram pelo Monte Verità. Atraídos por essa concepção de vida, mas configurando aspectos mais religiosos, místicos como o conhecido Weissenberg fundou uma cidade-jardim chamada Montanha Branca na região de Trebbin, em que reuniu cerca de 15.000 a 20.000 habitantes que poderiam viver no que considerava a Nova Jerusalém, próximos ao “Espírito Santo” (LINSEN, 1996). As doenças significavam a má influência da modernidade sobre o corpo e a alma. O homem poderia voltar à vida vegetariana, com os esportes, a exposição à luz, ao ar, com o que poderia combater as doenças. A ideia de holismo fundamental nesse movimento lembra que todas as partes estão inter-relacionadas, não havendo separação entre corpo, espírito e alma. Vitalismo significa imaginação de uma vida, forças vitais, poder de uma vida enérgica contida no próprio ser humano e que organiza as defesas contra as doenças (BUCHHOLZ; LATOCHA; PECKMANN; WOLBERT, 2001, p. 27). Como vemos, ginástica, esporte, massagens, aparelhos para novos tipos de ginástica, dança, beleza física, Wanderung (caminhada), especulações eugênicas de toda sorte, formas de cura e acesso às mesmas, formas de alimentação e medicamentos naturais seriam modos de combate a doenças. Mas trata-se também do respeito à natureza, ao corpo como natureza, e às florestas, aos rios e a tudo o que compõe o mundo no qual vive o homem e do qual ele depende. Tais preocupações, porém, conectaram-se com questões políticas face ao processo de urbanização, terminando por dar origem a diversos movimentos de reforma do solo urbano, como a planificação de cidades-jardins, impondo limites ao processo de pauperização das massas e gerando medidas capazes de incidir sobre as condições de habitação nas cidades. O corpo é concebido como algo nobre, como se fosse o próprio ser humano, sendo o nudismo algo natural, a cultura de um corpo livre se opondo à ideia de pecado. Muitos ideólogos do movimento “retiram o sexo do corpo” e pensam o corpo como algo saudável, higiênico, instrumentalizando-o (BUCHHOLZ; LATOCHA; PECKMANN; WOLBERT, 2001, p. 103-114). Muitas dessas ideias influenciaram o campo artístico, em especial a dança promovendo o debate sobre a naturalidade do movimento, como vemos na dança de Isadora Duncan.3 A reforma de hábitos, que pretendia tornar a vida cotidiana confortável e natural, possuía raízes no final do século XVIII, quando os anti-iluministas 3

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Lembramos que no final do século XIX e no início do século XX a cidade de Darmstadt foi especialmente importante para o movimento. Aí se fundou uma colônia de artistas, desenvolveu-se a arquitetura, montou-se a escola de dança moderna no Mathildenhöhe por Isadora e Elizabeth Ducan, sob a direção da última (contra o ballet altamente formalizado e mais próximo aos movimentos naturais do corpo). Joana Bahia

já protestavam não apenas contra a Revolução Francesa e as invasões napoleônicas, mas também contra a influência francesa no dia a dia – contra o espartilho, por roupas soltas, sapatos confortáveis e anatômicos. Uma das marcas alemãs da “reforma da vida” se encontra na Naturheilkunde, na homeopatia e na confrontação entre a medicina moderna e os Naturheilpraktiker – práticos que curam através de formas naturais e que sobreviveram com reconhecimento formal até os dias de hoje. Esse aspecto remete à força dos conhecimentos populares que se acumularam desde remotas épocas e se conecta com a importante questão da bruxaria e dos movimentos religiosos derivados de visionários, profetas e ocultistas (WEBB, 1974; LINSEN, 1996; TREITEL, 2004). O que pudemos ver na Alemanha foi um país em que uma parte da elite ilustrada ainda em finais do século XIX levou a sério os conhecimentos da população e os sistematizou, seja na homeopatia, seja em outras práticas que garantem a saúde do indivíduo. Não obstante serem baseados em comportamentos agnósticos, secularizados, possuíam em grande parte inspiração cristã, pois o retorno à natureza seria o modo de redenção do homem, tendo relação também com ideias socialistas de obras de vários reformistas. Nesse caso a self-reform levaria a uma reforma social mais ampla; a mudança da sociedade começaria com a mudança dos indivíduos. Nesse sentido, a reforma de si como reforma do mundo é uma das principais características do movimento new age,4 bastante difundido na Alemanha atual. Muitos dos aspectos da reforma da vida, como a ideia de holismo, vitalismo e como o próprio indivíduo, sob uma concepção que enfatiza uma “vida mais natural”, cria sua energia vital, são retomados nesse movimento. Lembramos que, não obstante haver um grande movimento dessas práticas no país, a conexão com o esoterismo não é específica da Alemanha, mas o estímulo às práticas tradicionais rurais promovido pelo romantismo, sendo reafirmado no movimento da reforma da vida, certamente contribuiu para a facilidade de sua penetração.5 O movimento teosófico e o cisma do Novo Pensamento no campo católico (em especial com ênfase na liberdade de crença e nos processos de cura espiritual), ambos movimentos de fins do século XIX (LINSEN, 1996 e 1998), 4

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Autores como Lewis e Melton (1992, p. 19) e Ferreux (2000, p. 9) afirmam a dificuldade em definir new age, movimento difuso, múltiplo, difícil de apreender e que toma o retorno à natureza, ao qualitativo, à autenticidade, ao desenvolvimento pessoal, à espiritualidade que simboliza a busca pela criação de um mundo alternativo e holístico. Não obstante se basear em práticas antigas, como a astrologia, as cartas de tarot, o sentido que passam a ter no movimento new age é outro. Isto é, não se trata de práticas divinatórias, mas recursos que promovem o autoconhecimento e que servem para “a transformação do indivíduo numa pessoa melhor”. Devemos lembrar da importância de Rudolf Steiner, filósofo, educador, artista e esoterista na divulgação dessas práticas, atribuindo a esse aspecto uma legitimação especial num país fortemente marcado por práticas rurais que resistiram às religiões “racionais” universalistas. Steiner também foi um dos idealizadores da Antroposofia e das ideias da chamada pedagogia Waldorf. Reforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha

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foram os responsáveis pelo contribuição a visão de mundo que conforma o desenvolvimento da Nova Era nos anos 70 do século XX (ALEXANDER, 1992). Muitos dos ideólogos do cisma e teósofos são apreciadores das obras do austríaco, médico e hipnotizador Franz Anton Mesmer e do suíço, filósofo e místico Emanuel Swedenborg (ALEXANDER, 1992). A ideia de uma energia mental transmitida pela mente tem base no conceito indiano de Akasa, referência comum a vários místicos e adeptos da reforma da vida em fins do século XIX. Na reforma da vida muitos tomam os conhecimentos orientais, especialmente da Índia, China e Japão, enfatizando a relação entre as práticas alimentares e as espirituais (BUCHHOLZ; LATOCHA; PECKMANN; WOLBERT, 2001, p. 195). Madame Blavatsky e Henry Steele Olcott fundaram, em 1875, a sociedade teosófica em Nova York, convocando vários líderes hindus que permanecem nos EUA, introduzindo a filosofia budista e a hindu. Posteriormente, o movimento também se desenvolve pela troca intelectual nas áreas da psicologia humanística, em especial entre o meio acadêmico americano e o alemão no período entreguerras e posteriormente com a psicologia transpessoal (que enfatiza a dimensão espiritual da experiência) (LEWIS; MELTON, 1992). Atualmente é evidente a importância dessas práticas no cotidiano alemão, permanecendo a referência às filosofias orientais e uma proximidade com práticas afro-cubanas e brasileiras. Observamos que a presença das religiões afro-brasileiras evoca uma Europa pagã, em que seus vários participantes agregam suas crenças à abertura que encontram nas religiões afro-brasileiras. New age, umbanda e candomblé: mudanças no campo religioso O bem-estar do indivíduo, expresso numa espécie de consciência corporal, está presente nas práticas contemporâneas do chamado new age. Revistas como Körper, Geist Seele (KGS). Gesundheit, Lebenshilfe und Inspiration (Corpo, espírito e alma. Saúde, autoajuda e inspiração)6 mostram essa correlação como sendo fundamental na sociedade alemã, proliferando, sob o epíteto de esotérico, gurus, profetas, tarólogos e outros tipos de mentores que garantem o ideal holístico. Temas como Vertrauen (confiar), Selbstvertrauen (autoconfiança), referidos na lógica hinduísta, são encontrados paralelamente a força dos cristais, serviço astrológico, meditação, práticas reikianas, homeopáticas e energéticas em geral e também aconselhamentos psíquicos e espirituais. Somado a essa realidade esotérica temos as religiões afro-brasileiras trazidas por cubanos e brasileiros respectivamente a partir dos anos 70 e 80 para a Alemanha (ROSSBACH DE OLMOS, 2009; LIDOLA, 2009; BAHIA, 2012). Atualmente as razões para a difusão da santeria mudaram. Nos últimos anos, 6

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Ver www.kgsberlin.de. Joana Bahia

casamentos mistos, viagens turísticas a Cuba e o crescente interesse pela música afro-cubana levaram os alemães a terem mais contato com a religião (ROSSBACH DE OLMOS, 2009, p. 484-485). Nesse sentido, as mesmas motivações também fazem parte do interesse dos alemães pelo universo da cultura e do candomblé brasileiro.7 Ao contrário das religiões afro-cubanas e brasileiras, as populações africanas e turcas são consideradas pelos alemães muito “étnicas”, sendo sinônimo de “muito islamizadas”, fato que “afasta” os alemães dessas populações (LIDOLA, 2014), pois estas não manejam nem os elementos identitários nem os momentos que podem e os que não podem ser étnicos diante da sociedade nacional.8 Não obstante serem considerados exóticos pelos alemães, os brasileiros são recebidos de um modo mais “simpático” e nada ameaçador, o mesmo não ocorrendo com turcos e africanos (BAHIA, 2014) (ver notas 7 e 8). O temor à islamização afasta a sociedade alemã dos turcos e africanos (LIDOLA, 2014). Entre as religiões presentes na Alemanha nos últimos 10 anos, destacamos os centros kardecistas, os terreiros de umbanda e candomblé, e o Santo Daime, todos fundados por brasileiros em Berlim, Hamburgo, Munique e nas demais cidades alemãs (SPLIESGART, 2011). Há também a presença da Igreja Universal do Reino de Deus e de outras denominações evangélicas, que, apesar de não serem ainda alvo de estudos por parte dos pesquisadores do país, estão presentes na documentação da “Conferência sobre as Comunidades Brasileiras no Exterior”. Não obstante haver pais e mães de santo sem terreiros e vários praticantes que ainda se encontram sem filiação a uma casa de santo (pois temos registrados até o momento dois ilês em território alemão), cabe ressaltar que as práticas religiosas estão presentes em toda a Alemanha, sendo esse um indicador da presença de praticantes do culto (BAHIA, 2012 e 2013). 7

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Lembro também que cubanos e brasileiros colaboram na manutenção e apoio ao ilê analisado neste trabalho. Há participação de sacerdotes e iniciados cubanos tanto nos eventos públicos (saída do afoxé no Karneval des Kuturen, em Berlim) quanto nos rituais realizados no candomblé brasileiro, como também circulam no campo artístico, pois entre os cubanos também há muitos artistas. E as dificuldades de adaptação tanto das religiões afro-brasileiras quanto das afro-cubanas, em especial as referentes à realização dos rituais, são bem parecidas, envolvendo a ideia de sacrifício animal. Há muitos exemplos que retirei das entrevistas realizadas em meu trabalho de campo em Berlim, iniciado em 2009. Ver também artigo no prelo “Sob o céu de Berlim: o candomblé em terras alemãs de Bahia” (2014) e ainda, sobre os vários usos em diversos momentos da identidade étnica pelos brasileiros, temos o trabalho de Lidola (2009, 2011 e 2014) sobre o sucesso das empresas de depilação à la brasileira entre as alemãs. As mesmas empresas foram montadas pelas turcas no início do fluxo migratório para a Alemanha, entretanto não tiveram aceitação como as clínicas das brasileiras. Sobre imagens dos alemães sobre o Brasil, ver Neumman (2005). Sobre relações interétnicas e o modo como os alemães percebem os estrangeiros, ver Thränhardt (1984), Steyerl e Rodriguez (2003), Egger (2005), Ha (2005), Nagl (2007), Lidola (2011). Sobre construção da nacionalidade alemã, ver Brubaker (1984). Sobre o período posterior à Queda do Muro ser considerado de maior animosidade contra os estrangeiros (principalmente contra aqueles localizados na Alemanha do Leste), ver Behrends (2003). Reforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha

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Não obstante as críticas a tarólogos, quiropráticos e outros profissionais pelos pais e mães de santo, tanto a umbanda quanto o candomblé são religiões que agregam ritos e práticas que os filhos possuíam antes de se converterem à religião. Nesse sentido, permanecem o jogo de tarot e outros modos de cuidar de si, como quiromancia e tratamentos holísticos trazidos pelos próprios praticantes, elementos bastante presentes na umbanda praticada na Alemanha, Áustria e Suíça. Em especial, temos a umbanda trazida pela austríaca Mãe Habiba de Oxum Abalô,9 responsável pela expansão desta em várias cidades europeias, a qual enfatiza aspectos da natureza, evocando claramente elementos do new age. O interesse em práticas orientais constitui parte não apenas da filosofia da religião, mas também da própria trajetória da mãe de santo, que conheceu seu pai de santo num congresso de xamanismo em Marrakesh, em 1992, no qual recebeu um convite para uma iniciação na religião no município de Cotia, em São Paulo. Por causa de seu interesse em aliar o conhecimento de tradições não europeias a seu trabalho em psicoterapia, e também pela busca de tradições que tenham diálogo com a natureza, já tinha tido acesso às coisas asiáticas, mas, segundo seu depoimento, “nada que se relacionasse com o know-how brasileiro”. Não obstante a separação do que a mãe Habiba considera trabalhos distintos, a busca espiritual de outras tradições sempre fez parte de sua rotina de congressos e encontros na área da psicoterapia (que, aliás, tem predomínio entre os adeptos suíços e alemães de seu ilê). Essa escolha espiritual não exclui outros conhecimentos ou tradições, conforme se dá nos casos da conversão às religiões pentecostais (BAHIA, 2012 e 2013). Umbanda praticada e traduzida para a língua alemã (BAHIA, 2012 e 2013) tem tido maior expansão que o candomblé, em especial a conjugação de vários fatores que favorecem esse crescimento. Destacamos a correlação entre os aspectos holísticos e as práticas corporais; a religião é praticada em duas línguas em grande parte dos rituais, ao contrário do candomblé (que acresce o yorubá), e ainda traduzida em materiais como CDs, folhetos e sites para a língua alemã, o que facilita a aproximação com a religião. Além disso, não se praticam sacrifícios animais, algo que divide muitos os alemães (em especial no candomblé), e há grande ênfase na ideia de cura espiritual. Temos um dos 9

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Responsável pela expansão da umbanda (por muitos chamada de Omolocô, pois mescla elementos da umbanda e do candomblé) nas cidades de Berlim e Landsberg, na Alemanha, Graz e Viena, na Áustria, e Trogen e Zurique, na Suíça. O terreiro Terra Sagrada é o eixo das demais giras e a base de seu trabalho espiritual, criado em 2006 e localizado em Appenzellerland, Suíça. Neste momento, tem a participação majoritária de suíços e alemães e de alguns brasileiros entre os filhos da casa, sendo a maioria do público que assiste composta de brasileiros e portugueses em razão do aumento dos fluxos migratórios de ambos os grupos para a Suíça. No caso da gira em Viena, por haver um brasileiro na coordenação, há forte presença de brasileiros no público, pois ele aciona sua rede. Muitas das declarações de Mãe Habiba, presentes no decorrer deste texto, foram concedidas durante entrevista realizada em 2011 na cidade de Berlim. Joana Bahia

princípios sincréticos da umbanda que chama a atenção pela ideia de um universalismo, conforme consta no site do templo:10 Os princípios filosóficos da Umbanda são, por natureza, universais e independem de qualquer cultura ou tradição. Entretanto, cada Templo Umbandista tem o direito de interpretá-los e praticá-los conforme os seus fundamentos. Ainda bem que é assim, pois do contrário teríamos mais uma religião estagnada em codificações dogmáticas, e não dinâmica como é a Vida.

Outro aspecto relevante e que é forte na percepção europeia é a ideia de natureza, conforme o trecho que descreve a filosofia da comunidade do Templo:11 Os elementos da natureza, suas leis e processos são peças de base que permitiram a criação do Xirê. Coerente com seus princípios cosmogônicos, o Templo Guaracy instituiu a Natureza como seu Livro Sagrado. O Xirê do Templo Guaracy reconhece nos quatro Elementos (Fogo – Terra – Água – Ar) e nas combinações de suas dezesseis variantes (Elegbara – Ogum – Oxumarê – Xangô – Obaluaiê – Oxóssi – Ossãe – Obá – Nanã – Oxum – Iemanjá – Ewá – Iansã – Tempo – Ifá – Oxalá) as forças e energias básicas responsáveis pela composição da Vida e sua dinâmica no mundo das formas. Na concepção do Templo Guaracy, tanto os Elementos como suas dezesseis qualidades são forças e energias da natureza que, por efeito da antropomorfia, transformaram-se em Orixás.

E também o modo como a cosmogonia e a ritualística não se detêm aos chamados aspectos históricos que marcam a umbanda no Brasil, podendo na sua ritualística pertencer a outras nações. Essas características de “universalismo”, “natural hibridismo ou sincretismo”, reformulação da concepção de natureza adequando-a às formas espirituais locais dos próprios filhos de santo e seus espíritos, parte de uma tradição pagã europeia, são fundamentais para pensarmos a expansão da umbanda nessa região. A possibilidade de soma ou diversificação da umbanda permite que os espíritos falem em alemão ou em português com sotaque e dá margem à recriação de entidades que tenham mais relação com as localidades e caráter próximo ao panteão pagão presente no imaginário europeu, que, diante desse movimento, se renova, usando um verbo pouco afeito ao cotidiano dos alemães e suíços: improvisieren. Mas isso não significa que não haja problemas, impasses e adaptações que ressignifiquem as realidades de origem e local (destino), pois falamos de processos que ocorrem num plano transnacional (BASCH; GLICK-SCHILLER; SZANTON BLANC, 2003). Nesse sentido, viver num plano transnacional torna os deuses ao mesmo tempo étnicos e cosmopolitas. Isto é, a ideia de transnacional evoca uma vida dupla, em que o migrante vive numa zona ambivalente (LEVITT, 2007), transitando entre ter a sua origem étnica, mas a partir de uma releitura aos moldes da nova sociedade, que por sua vez também é ressignificada. 10 11

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Ao mesmo tempo que a religião os conecta com suas origens, ela transcende as fronteiras do tempo, permitindo que seus adeptos se sintam parte da cadeia de memória conectada ao passado, ao presente e ao futuro (LEVITT, 2007). A religião é um lar imaginário em que confortavelmente nos sentimos em casa, reunindo múltiplos sentidos que conectam a sociedade de origem e a de acolhida (BASCH; GLICK-SCHILLER; SZANTON BLANC, 2003). Os laços transnacionais também criam sentidos novos, sincretismos e hibridismos no plano religioso. E também possibilidades de ler a sociedade de acolhida sob os olhos desses fluxos, transformando-a sob o olhar transgressivo da criatividade e do improviso (BAHKTIN, 1981) e da chamada dialética da hibridez (WEBNER, 1997), de modo que o Muro de Berlim se transforma em morada dos eguns (espíritos dos mortos), exus e outros espíritos, parte de uma nova paisagem imaginária e global sob os olhos dos migrantes (APPADURAI, 2004). Mãe Dalva e o muro: ressemantizações, impasses e novas questões Transformar o Muro de Berlim em local dos mortos, reino dos eguns, realizando oferendas para exu não apenas ressemantiza o muro, tornando-o um cemitério, mas evidencia que na transnacionalização das religiões afro-brasileiras o espaço urbano também é ocupado pela mãe Dalva,12 criando novos sentidos. Além-mar, pais, mães de santo e terreiros têm certa liberdade que os difere em termos de organização e performance, tendência também existente no Brasil, mostrando que cada terreiro tem suas especificidades e se adapta de acordo com a nova realidade social (CAPONE; TEISENHOFFER, 2002; CAPONE, 2004). O muro que dividiu Berlim também dividiu o reino dos vivos, que permaneceram nas suas zonas (a cidade se dividiu nos setores americano, russo, inglês e francês13), e o dos mortos, aqueles que perderam suas vidas o atravessando. O muro é um “grande cemitério”, na visão da mãe de santo entrevistada, na história da cidade, do país e por que não dizer da Europa. Adaptações são feitas com as línguas portuguesa e alemã no caso da umbanda, mas no candomblé temos também o yorubá. A questão da língua é usada também para demarcar as diferenças identitárias, pois é um sinal diacrítico (BARTH, 1998), especialmente entre brasileiros e alemães.

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Baseio-me na entrevista feita com essa mãe de santo e no filme chamado Mutter Dalva. Há matérias de cunho negativo sobre ela na imprensa alemã (no título já aparece a ideia de bruxa de Neukölln), como a exemplo: http://www.akapulko.de/dateien/Morgenpost_CasaDeOxum.pdf Ver mapa em http://www.chronik-berlin.de/blockade.htm e em http://www.berlinermaueronline. de/karten/berlinkarten_01.htm. Joana Bahia

Mas na prática dos rituais (especialmente nas festas de candomblé)14 são operadas três línguas: yorubá, alemão e português. A primeira, usada pelos brasileiros que conhecem a religião há muitos anos e que possuem cargos; a segunda é o alemão, caracterizada pelos brasileiros como a língua do controle, em especial quando dão broncas nos alemães e no público em geral quando desconhecem as práticas da religião. Em alguns momentos escrevem bilhetes em alemão para que aqueles que circulam pelo espaço em dias de rituais não cometam gafes, como é o caso do padé de exu. Para que não se toque ou se coma a farofa do orixá se escreve em alemão. Esta é também usada pelos alemães, não apenas por ser obviamente a sua língua materna, mas especialmente por aqueles que não dominam ainda os códigos da religião nem a língua portuguesa e o yorubá. O português é falado por todos em momentos variados; pelos alemães na tentativa de se apropriarem dos nomes, dos feitiços e para se acostumarem ao país de onde consideram ter vindo a religião. Mas as línguas se misturam, criando outra que é parte do português e do alemão, quando é necessária a aproximação. Muitas vezes se começa numa língua e se termina na outra. A entrada na religião, em especial o candomblé, para os alemães (especialmente para os filhos de santo da casa), é um forte processo de desracionalização, isto é, é preciso aprender a lidar com os sentidos e valores fortemente relacionados com a ideia de mistério e que não são verbalizados, mas literalmente “incorporados”, expressos na relação entre natureza e corpo. Para mitigar as dificuldades, muitos começam a escrever, a ter cadernos de anotações sobre as comidas e os feitiços, e aos poucos traduzem a religião, o que deverá gerar novos processos de ressemantização. Não obstante serem atraídos pela relação entre algo que é incorporado, ou seja, a relação construída com o orixá é corporal (BARROS; TEIXEIRA, 2000), muitos têm dificuldade em aprender um conhecimento que é passado oralmente. Como se dá essa capacidade plástica e híbrida no contexto alemão? E de que modo essas religiões aproximam os alemães que o frequentam do imaginário romântico? E de uma ideia de natureza? 14

O terreiro funciona diariamente, porém com a maior parte de seus rituais vetada ao público e nos horários em que não há funcionamento das atividades do fórum cultural. Há um calendário de festas e rituais, públicos e privados. Os rituais privados são: ebó do ano (janeiro), águas de Oxalá (janeiro), festa de Obaluaiê (agosto) e os atendimentos mensais do caboclo Ventania. A festa do caboclo é realizada somente em setembro. De acordo com as leis alemãs, as festas só podem ser realizadas de dois em dois meses, sendo possível o toque dos atabaques durante quatro horas. As festas públicas são festa para Iemanjá (fevereiro, no auge do inverno), Oxóssi e Ogum (abril), Xangô (junho, pois julho é mês de férias e muitos filhos de santo viajam nesse período), Cosme e Damião (quando o ilê se organiza melhor, é feita em setembro, como no Rio de Janeiro, ou no início de outubro) e Iansã (dezembro). Na homenagem a São Cosme e São Damião, são realizadas atividades com as crianças, não havendo toques. As festas realizadas no inverno são as que mais lotam e têm forte presença de alemães. O período com menor público (maioria de brasileiros e ligados ao ilê) são as festas de Xangô, pois são realizadas próximo ao período de férias. Reforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha

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Vimos que a umbanda se expande muito relacionada a elementos essenciais da mentalidade new age e a aspectos notoriamente ligados ao corpo e ao espírito. Mas e o candomblé? Atualmente, o candomblé, no Brasil e no mundo, se volta para uma apropriação romântica da ideia de natureza, a fim de responder às demandas do atual discurso ecológico e ambiental (MACHADO; SOBREIRA, 2008). De que modo esse discurso se aproxima de uma discussão presente, e, digamos, moderna, na mentalidade europeia sobre ambientalismo? As forças da natureza no candomblé são representadas por orixás, que são também tão imperfeitos quantos homens e mulheres mortais, especialmente a relação do corpo com a natureza, que é evocada no transe, quando o orixá que é natureza possui o corpo do filho de santo. Essa concepção de mágico, que correlaciona sagrado e profano e os interliga à natureza, se torna interessante para um imaginário, no caso alemão, que se construiu em torno das influências da chamada Lebensreformbewegung (movimento da reforma da vida). Conforme vimos, esse é um movimento crítico aos excessos do industrialismo e da urbanização e aos males por eles causados à saúde e ao corpo humano, ratificando certo retorno a uma vida natural, ampliando seu sentido aos movimentos do corpo e da alma (BUCHHOLZ; LATOCHA; PECKMANN; WOLBERT, 2001, p. 71). Essas ideias que valorizam o indivíduo como motor da transformação são oriundas do movimento da reforma da vida (KRABBE, 1998), que influenciou os movimentos new age, hippie, a formação de comunidades alternativas e várias formas de misticismo. Muitos dos aspectos da reforma da vida, como a ideia de holismo, vitalismo e sobre o indivíduo criar sua energia vital, são retomados no movimento new age. E muitas das ideias desse movimento ressurgem atualmente no discurso ecológico, na agricultura orgânica e em um modo de vida autossustentável. Entre as influências mais relevantes realizadas por esse movimento está atualmente, na Alemanha, o discurso ecológico (BUCHHOLZ; LATOCHA; PECKMANN; WOLBERT, 2001, p. 13-21), o que Castells (1999, p. 113-133) denomina “o enverdecimento do self”. Segundo o autor, o fator que unifica os movimentos ambientalistas é uma temporalidade alternativa, que pede que a sociedade e as instituições aceitem a realidade do lento processo evolutivo de nossas espécies em seu meio ambiente, sem um fim para nosso ser cosmológico, enquanto o universo se expande desde o momento e o local de sua/nossa origem comum. Além das limitações da submissão ao tempo do relógio, ainda vivenciada pela maior parte das pessoas no mundo, a disputa histórica por uma nova temporalidade ocorre entre a anulação do tempo nas redes de computação e a realização do tempo glacial na tomada de consciência de nossa dimensão cosmológica (cosmological self) (CASTELLS, 1999, p. 113-133). Por meio dessa disputa pela apropriação da ciência, do espaço e do tempo, os ecologistas induzem 64

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a criação de uma nova identidade – uma identidade biológica, uma cultura das espécies humanas como componentes da natureza. Essa identidade sociobiológica não implica negar a cultura histórica. Os ecologistas respeitam as culturas folk e toleram a autenticidade cultural de várias tradições. Mas o respeito à “tradição” do outro não significa que a mesma não seja exotizada, num misto de fascinação e repulsa, não compreendida, sujeita a mal-entendidos, adaptações, releituras e mesmo impasses que não se transpõem. Um dos grandes impasses que vemos no candomblé, e que divide os alemães que dele participam, é a ideia de sacrifício, em especial o que envolve sangue de animais. Muitos que abandonam a religião evocam os mesmos elementos ambientalistas (que inicialmente os atraem para a religião) para a não realização do sacrifício animal. Como vimos, o mesmo não ocorre na umbanda, em que há ofertas, trocas com flores, frutos, velas, mas não animais. Muitos desistem da religião nesse momento. E é nas desavenças entre o pai de santo e aqueles que desistem da religião que aparecem elementos contrastivos, marcadores de identidades, quando são acusados de pensar como “alemães” e querer um “candomblé vegetariano, que só existe na cabeça deles”. Ou também quando se indispõem por receberem ordens de um pai de santo negro (meio baiano, meio paulista), “construído” em uma concepção de família de santo que mantém laços não consanguíneos. Tais aspectos são de difícil compreensão. Apesar de não impedirem a construção de laços de afeto, os alemães não os entendem como laços de família, assim como não compreendem a relação com a ideia de autoridade e hierarquia existente na religião (BAHIA, 2012, 2013 e 2014). Há ainda as leis na Alemanha que proíbem o sacrifício animal, e há várias regras para a realização dos rituais, sendo muitos deles realizados fora do eixo urbano de Berlim. As mesmas dificuldades são descritas por Rossbach de Olmos (2009) no que se refere à santeria cubana, não apenas na busca do local para as iniciações, mas em especial quanto ao sacrifício dos chamados animais de quatro patas. Segundo a autora (2009, p. 486), the sacrifices would mean an offense against the German legal regulations of animal protection, as long as they are not protected by the legal guarantee of free religious workship. Since Santeria is not recognized religious workship. Since Santeria is not recognized as an official religion, it is not protected by this law.

Além do sacrifício, temos a dificuldade com as práticas corporais, especialmente quando não são iniciados, pois não possuem as técnicas que permitem o controle do transe. Então percebemos de que modo a corporalidade dotada de uma religião é acionada como elemento de construção identitária para os brasileiros. E para se aproximar da religião é “preciso cantar, dançar e sentir a cultura no corpo”. Para os brasileiros “é preciso que os alemães se abrasileirem”, “falem mais o porReforma da vida, migração e movimentos religiosos contemporâneos na Alemanha

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tuguês” e sejam corporalmente mais receptivos e incorporem a natureza dos orixás através das práticas corporais. É exigido deles uma certa “incorporação de uma outra cultura”, especialmente pelo pai de santo. Os espíritos também o fazem, especialmente o caboclo Ventania,15 que fala português e exige que os alemães também o façam, sendo a língua alemã imitada em tom de ironia e jocosidade para mostrar que a língua do candomblé deveria ser o português do Brasil. O candomblé ser brasileiro (baiano ou mesmo alaketu) é importante no mercado religioso transnacional, conferindo uma ideia de tradição,16 o que é interessante especialmente para construir uma identidade étnica, pura, quase monolítica, mas que obviamente não existe na prática. Isso não significa que na prática ritual não se tenha dificuldade de se incorporar uma outra língua que não a sua língua de origem, especialmente no caso dos alemães. Atraídos pela tradição, possuem uma enorme dificuldade de falar a língua da religião. Mas esse aspecto é também algo que muda, conforme descreve Mãe Habiba, pois o uso da língua portuguesa ocorreu a partir da linguagem da incorporação, sendo o corpo outro tema de peso na produção de significações nos modos de adaptação da religião à realidade europeia, já que os orixás movimentam os corpos. Por outro lado, os espíritos da umbanda que possuírem os corpos alemães possibilitarão que a língua alemã continue mais flexível do que nunca, pois, se a conversão não é uma passagem automática de um sistema de crenças a outro, é pensada como um esforço constante de reinterpretação das experiências de vida sob a lógica interna do novo sistema de crença. Como exemplo, o estudo de Halloy (2000, p. 85-86) sobre um terreiro na Bélgica, quando o autor evidencia o caso de uma divindade da floresta, de origem eslava ou galesa, que é incorporada pelo pai de santo do terreiro de candomblé de Carnières, e as tentativas de adequação das entidades do mesmo terreiro às divindades galesas e romanas. 15

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Caboclo Ventania (relacionado com Iansã – orixá dos ventos, das tempestades, guerras e trovões, uma das mulheres de Xangô). Esses são espíritos dos antigos índios que povoavam o território brasileiro, eleitos pelos escravos bantos como os verdadeiros “donos da terra”. Caboclos e orixás são tratados nos candomblés como entidades diferentes, apesar de haver uma correlação entre caboclos e caboclas com seus respectivos orixás (PRANDI, 2004, p. 126). Os espíritos da umbanda não requerem processo iniciático como no candomblé, podendo ocorrer o batismo do caboclo, ritual de confirmação. Muitos adeptos do candomblé cultuam seus espíritos e fazem festa para eles, pois eles fazem parte de sua história de vida, realizando os rituais nos moldes da umbanda em terreiros de candomblé. Iansã é o orixá de cabeça do pai de santo e também orixá que é escolhido quando se fala de Alemanha no terreiro, pois é considerado um país de guerra, e ninguém melhor do que ela para representá-lo. Em Portugal é Iemanjá, orixá associado ao passado de conquistas coloniais do país. Nesse sentido, o Brasil permaneceu um lugar que reafricanizou o candomblé (CAPONE, 2004), – considerado no plano transnacional a meca da religião, – mantendo-o mais vivo do que em muitas culturas da África ou que receberam levas de imigrantes africanos. Joana Bahia

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