REFORMISMO ILUSTRADO E POLÍTICA COLONIAL: NEGOCIAÇÕES E RESISTÊNCIA NA CAPITANIA DO RIO NEGRO (1751-1798)

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História

REFORMISMO ILUSTRADO E POLÍTICA COLONIAL: NEGOCIAÇÕES E RESISTÊNCIA NA CAPITANIA DO RIO NEGRO (1751-1798)

André Augusto da Fonseca

2016

REFORMISMO ILUSTRADO E POLÍTICA COLONIAL: NEGOCIAÇÕES E RESISTÊNCIA NA CAPITANIA DO RIO NEGRO (1751-1798)

André Augusto da Fonseca

Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social. Linha de pesquisa: Sociedade e Política Orientador: Prof. Doutor Antônio Carlos Jucá de Sampaio

RIO DE JANEIRO 2016

FOLHA DE APROVAÇÃO

Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social.

Aprovada por: ____________________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio - Presidente ____________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Guedes Ferreira (UFRRJ) ____________________________________________________________ Profª. Drª Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF) ____________________________________________________________ Profª. Drª. Patrícia Maria Melo Sampaio (UFAM) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Ronald José Raminelli (UFF)

A todos os homens e mulheres que em algum momento se dedicaram à construção do conhecimento histórico, ampliando nossos horizontes e proporcionando, apesar de tudo, um sentimento de comunhão humana universal.

Agradecimentos

O grande número de dívidas acumuladas pelo apoio generoso e desinteressado de tantas pessoas sempre leva a eventuais esquecimentos. Não posso, contudo, deixar de manifestar minha gratidão por tantos préstimos e tanto apoio que tive para realizar este trabalho. Registro com afeto algumas destas pessoas – como não estamos mais no Antigo Regime, sei que não haverá conflitos de precedência. Minha companheira Kezia, por tanto amor e dedicação incondicionais e que, a vários títulos, é praticamente uma coautora deste trabalho. Minha família, pelo apoio em todas as horas. Antônio Carlos Jucá de Sampaio, o grande Jucá, por sua ilimitada confiança em mim (que espero não ter se revelado exagerada), pela precisão das valiosas orientações, sempre nos momentos mais necessários. Ângela Domingues (CHAM/IICT – Lisboa), notável conhecedora da história de nossa Amazônia, por suas extraordinárias generosidade, hospitalidade e disposição ao diálogo. Maria Luiza Fernandes (UFRR), que indicou tantas referências de fontes impressas, e também pelo apoio e leituras críticas (e carinhosas). O Colegiado do Curso de História da Universidade Estadual de Roraima, formado por um grupo pequeno, mas tão unido - professores Maria José dos Santos, Lucas “Jabora” Avelar, Raimunda Gomes, Giseli Deprá, Manoel Lobo, Amarildo, Eduardo – pelo companheirismo e confiança com que me foi concedida a autorização para o afastamento das atividades docentes, a fim de realizar esta pesquisa. Incluo nesse reconhecimento a professora Adriana Iop Belintani, pelo entusiasmado apoio pessoal e institucional à minha pesquisa. A Universidade Estadual de Roraima, por permitir meu afastamento em condições excepcionais, por dois anos, para a realização desta pesquisa. Paulo Teodoro de Matos (CHAM; Universidade Nova de Lisboa), pelas lições, pela amizade, pela contribuição para meu amadurecimento como pesquisador Antônio Otaviano Vieira Junior (RUMA - UFPA) e Dysson Teles Alves (UFAM), pelos ensinamentos e pela generosidade com que compartilhou documentos valiosos. Toda a equipe da CAPES, orgulho do serviço público brasileiro, pelo apoio material inestimável para esta pesquisa.

RESUMO

Este trabalho examina as condições de implementação das reformas pombalinas no Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do século XVIII e as transformações e continuidades verificadas nas relações de trabalho, identidades étnicas e mobilidade social, procurando identificar algumas das estratégias dos índios para conquistar espaços de autonomia e segurança na sociedade que então estava a se formar. A pesquisa utilizou documentos da época, como correspondência de agentes régios, relatos de viagem, censos, relatórios oficiais etc. Foi possível analisar algumas trajetórias individuais e coletivas. As alianças entre índios e brancos foram redefinidas no contexto estudado, assim como a identidade étnica de muitos indivíduos e grupos. A distinção entre “índios aldeados” e “índios moradores” somouse, no período, a outros sistemas de hierarquias que organizavam aquela sociedade. O setor econômico ligado à exportação continuou articulado a um vasto setor de economia natural com práticas tradicionais, mas com novos papeis oferecidos aos índios.

Palavras-chave: Amazônia – História Colonial; políticas indigenistas; povos indígenas; políticas indígenas

ABSTRACT

Enlightened Reformism and colonial policy : negotiation and resistance in Rio Negro Captaincy (1751-1798) André Augusto da Fonseca

Orientador: Prof. Doutor Antônio Carlos Jucá de Sampaio

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em História Social.

This paper examines the conditions of implementation of the Pombaline reforms in the State of the Grand-Para and Maranhao in the second half of the eighteenth century and the changes and continuities verified in labor relations, ethnic identity and social mobility, trying to identify some of the strategies of the Indians to achieve spaces of autonomy and security in colonial society. This research used contemporary documents as royal agents communication, travel reports, censuses, official reports etc. It made possible to analyze some individual and collective trajectories. The alliances between Indians and whites were redefined in these context, as well as the ethnic identity of many individuals and groups. The distinction between "settled Indians" (índios aldeados) and "Indian residents" (índios moradores) was added to the period, the other hierarchies systems that organized society. The economic export sector continued to articulate a vast natural economy sector with traditional practices, but with new roles offered to Indians.

Keywords: Amazon - Colonial History; indigenist policies; Indian people; indigenous policies.

Rio de Janeiro 2016

Sumário Lista de Ilustrações ................................................................................................... 11 Lista de Tabelas ........................................................................................................ 12 Abreviaturas .............................................................................................................. 13 Introdução ................................................................................................................. 14 1 Administrar os tapuios no ocaso da Monarquia Corporativa .................................. 21 1.1 A regulação do trabalho indígena no norte da América Portuguesa ................ 30 1.1.1 A questão do trabalho indígena e o poder temporal dos missionários ...... 31 1.1.2 Primeira metade do século XVIII: apogeu dos resgates e descimentos.... 47 1.2 Razão de Estado e Reformas no Estado do Grão-Pará e Maranhão .............. 58 1.2.1 Vassalos livres, mas tutelados .................................................................. 64 1.2.2 Mendonça Furtado e a reorganização da força de trabalho ...................... 67 1.3 As Leis de Liberdade de 1755 e o Diretório dos Índios .................................. 103 1.3.1 A “Lei sobre os casamentos com as Índias” ............................................ 107 1.3.2 A “Lei para restituir aos Índios do Maranhão a Liberdade de suas pessoas e bens” ............................................................................................................. 112 1.3.3 A “Lei para os índios serem governados por seus nacionais” ................. 115 1.3.4 A criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão..................... 123 1.3.5 O “Diretório dos Índios” ........................................................................... 126 2 Rio Negro e Pará: demografia e economia .......................................................... 137 2.1 Contagem da população: das primeiras tentativas à sistematização ............. 145 2.2 Produção, circulação e exportação ................................................................ 180

3 O Cotidiano das povoações: adaptação, resistência e alianças........................... 198 3.1 A reorganização das fronteiras étnicas .......................................................... 198 3.2 Trabalho e comércio ...................................................................................... 221 3.3 Forjando a elite dirigente do Rio Negro: casamentos de brancos com índias 264 3.4 A participação na defesa ................................................................................ 287 3.5 Índios no governo da República ..................................................................... 290 Considerações Finais .............................................................................................. 294 Referências ............................................................................................................. 300

Lista de Ilustrações

Figura 1: Distribuição média da população nas capitanias do Pará e Rio Negro, 1775-1779

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Figura 2: Capitania do Pará na segunda metade do século XVIII

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Figura 3: Capitania de São José do Rio Negro na segunda metade do século XVIII

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Figura 4: Formas de incorporação e estatutos jurídicos dos índios no Grão-Pará até 1755

36

Figura 5: saldos anuais dos movimentos migratórios (1774 a 1779, Pará e Rio Negro)

156

Figura 6 Modelo para a tabulação dos dados populacionais de cada freguesia (povoações de brancos)

161

Figura 7: População total das capitanias do Pará e Rio Negro, 1773-1797

169

Figura 8: populações apenas de "índios aldeados" nas duas capitanias, 1762-1797

169

Figura 9: taxa de mortalidade (por mil): índios aldeados e pessoas livres não aldeadas (Pará e Rio Negro)

174

Figura 10: taxa de natalidade (por mil): índios aldeados e pessoas livres não aldeadas (Pará e Rio Negro)

175

Figura 11: Os 3 grupos da população do Pará e Rio Negro, 1773-1785

177

Figura 12: Pirâmide Etária produzida por ALMEIDA (1990, p. 172)

179

Figura 13: Reconstrução hipotética da pirâmide etária dos aldeados da Capitania do Rio Negro, 1774

180

Figura 14: gráfico da produção para consumo interno e exportação - Rio Negro, 1785

184

Lista de Tabelas

Tabela 1: Relação das pessoas que habitam as freguesias da capitania do Pará em 1765

148

Tabela 2: Mapa Geral dos índios da capitania do Rio Negro em 1762, pelo ouvidor Lourenço Pereira da Costa

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Tabela 3: Populações totais do Pará e do Rio Negro

172

Tabela 4: População somente de "índios Aldeados" nas duas capitanias

172

Tabela 5: Cálculo das taxas de mortalidade e natalidade (capitanias do Pará e Rio Negro) –

176

Tabela 6: produção de gêneros de consumo e de exportação - Rio Negro

182

Tabela 7: Mapa das plantações de toda a capitania de S. José do Rio Negro, no anno de 1775, calculado em visita das povoações

194

Tabela 8: Mappa dos gêneros da colheita dos moradores índios e brancos, das povoações da Cap. de S. José do Rio Negro; anno de 1775

195

Tabela 9: Produção de gêneros exportáveis - Rio Negro, 1764

223

Tabela 10: Rezumo dos Mappas das Contas da Thezouraria Geral do Commercio dos Índios - Despesas 1772

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Tabela 11: Cálculo de algumas despesas da Capitania do Rio Negro

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Abreviaturas

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro CGPM – Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro LGA – língua geral amazônica

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Introdução

Este trabalho examina as condições de implementação e alguns dos efeitos concretos, no Estado do Grão-Pará e Maranhão1, das chamadas reformas pombalinas – particularmente, as Leis das Liberdades de 1755 e o Diretório de 1757. Esse ciclo de reformas2 foi considerado como “uma das dimensões mais inovadoras do reinado” de D. José (MONTEIRO, 2008, p. 227). O Estado setentrional da América Portuguesa apresentava algumas características que o diferenciavam significativamente do Estado do Brasil. No Estado do Grão-Pará, as condições objetivas conspiravam contra o estabelecimento de uma economia de plantation: “dificuldade de penetração, doenças tropicais, solos na maioria pobres...” (CARDOSO, 1984, p. 94). Pequenas partes do imenso território se mostrariam adequadas para a agricultura do tipo desejado pelos europeus. A Amazônia mostra, até hoje, um mosaico de paisagens e diferentes ecossistemas. Na bacia do Rio Negro, observa-se uma pobreza generalizada de nutrientes (oligotrofia). Possui formações naturais de terra firme, igapós (florestas inundadas) e

“O Estado do Maranhão foi instituído em 1621 como unidade administrativa separada do Estado do Brasil, diretamente ligada a Lisboa, em plena vigência da União Ibérica. Instalado em 1626, compreendia as capitanias reais do Ceará, Maranhão, Grão-Pará, Gurupá e as capitanias hereditárias de Caeté, Cametá, Marajó, Tapuitapera, Cabo Norte e Xingu. Extinto por um curto espaço de tempo em 1652, foi restabelecido em 1654 com a denominação de Estado do Maranhão e Grão Pará” (SAMPAIO, 2011, p. 42). Em 1751, o Estado passaria a ser chamado de Estado do Grão-Pará e Maranhão, passando o governador a residir permanentemente em Belém e sendo nomeado um governador subalterno a ele em São Luís do Maranhão (Instruções Régias, Públicas eE Secretas para Francisco Xavier De Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado do Grão-Pará E Maranhão, IN MENDONÇA, 2005, p. 67-68, vol. I). Isso atestava o peso geopolítico atribuído por Sebastião José de Carvalho e Melo à bacia do Amazonas, em um momento em que se preparava a demarcação dos limites entre os domínios espanhóis e portugueses na América, estabelecidos pelo Tratado de Madri. Quatro anos depois, seria criada a capitania subalterna do Rio Negro. Em 1771, Rio Negro e Pará formariam um estado em separado. 2 Completado pela Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará e pela expulsão dos jesuítas em 1759, que não serão objeto desta pesquisa. 1

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campinarana, esta última também conhecida como catinga do Rio Negro, um tipo de vegetação peculiar à região. [...] seus solos são extremamente ácidos, arenosos e lixiviados [...] (RICARDO e ANTONGIOVANNI, MARINA, 2008, p. 12).

Como mostra o mapa da Figura 1, a maior parte da sociedade colonial das duas grandes capitanias na segunda metade do século XVIII concentrou-se junto ao litoral atlântico e próximo de um número reduzido de núcleos nos grandes rios, em áreas de várzea, junto aos grandes lagos na foz dos afluentes do Amazonas (de maneira a garantir a facilidade de acesso à pescaria). As monoculturas de exportação concentravam-se nas áreas entre Bragança, Belém e Cametá. As expedições de coleta das drogas do sertão (cacau, cravo, salsa, copaíba etc.) tinham como alvos desde as ilhas próximas a Gurupá até os rios mais distantes como Madeira, Solimões, Negro e Branco, passando pelo Tapajós, Xingu e vários outros. Até 1755, os núcleos urbanos com autogoverno (câmaras) no Pará limitavam-se a Belém, Cametá, Vigia e Caeté do Souza (Bragança). Todos os demais núcleos eram algumas dezenas de aldeamentos missionários espalhados desde a vizinhança da capital e das vilas até os confins ocidentais, nos rios Negro e Solimões. Com as reformas ocorridas no período pombalino, praticamente todos os aldeamentos foram convertidos em vilas e lugares sob administração laica, e novos núcleos foram fundados. Os mapas das figuras 1, 2 e 3 oferecem uma representação dessa nova rede urbana tal como se apresentaria no final do século XVIII. Quase todos os núcleos estavam à beira de rios navegáveis, situados abaixo das cachoeiras que na maioria dos rios ofereciam restrições às comunicações. A vasta rede hidrográfica navegável favorecia as comunicações, mas ao mesmo tempo era o limite da colonização, que “seguiu a orientação dos cursos d’água estreitamente, ficando vazias as enormes extensões de matas entre os rios” (CARDOSO, 1984, p. 94).

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Dilema persistente para a Coroa, pelo menos até a consolidação das fronteiras coloniais na Amazônia, a relação entre índios e não índios foi objeto permanente da legislação local e metropolitana. A mão-de-obra indígena era tão essencial para a economia regional quanto a sua cooperação política o era para as finalidades estratégicas, fiscais e militares da monarquia. Era necessário que os próprios índios – transformados em súditos católicos, portadores de valores culturais europeus – fossem os povoadores dos domínios portugueses, principalmente para legitimar as novas fronteiras estabelecidas nos tratados entre Portugal e Espanha a partir de 1750. Porém, quanto mais a Coroa protegia os índios, maior era o descontentamento dos colonos do Maranhão e Grão-Pará, dificultando a obtenção de força de trabalho para o modelo de economia colonial que se tentava implantar. Quanto mais condescendia com os colonos, afrouxando tácita ou formalmente a proteção aos índios, mais se acelerava o despovoamento da região, multiplicando-se as mortes em epidemias, por excesso de trabalho ou pelo desmantelamento do sistema de produção de alimentos nas comunidades em virtude das requisições de homens para o serviço real ou de particulares – que por sua vez motivavam o deslocamento de comunidades inteiras, o movimento de fuga e abandono dos aldeamentos ou “deserções” individuais ou coletivas, fartamente documentadas nos relatórios oficiais do período 3. Mesmo com todos os incentivos à migração de “casais das ilhas” (portugueses dos arquipélagos dos Açores e da Madeira), a coroa jamais pôde prescindir dos povos nativos como povoadores e como força de trabalho, como se depreende dos censos coloniais (capítulo 2 deste trabalho), da correspondência dos governadores

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Somente no Rio Negro, onze povoações estavam convertidas em ruínas abandonadas no século XIX (LEONARDI, 1999, p. 22). No total da capitania, existiam mais de 30 estabelecimentos no final do século XVIII.

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conservada em diferentes arquivos (parte dela transcrita em MENDONÇA, 2005; MELLO E PÓVOAS, 1983; REIS, 2006) e dos diferentes relatos de viagem de autoridades civis, militares e eclesiásticas (SAMPAIO, 1825; FERREIRA, 2007). Uma vasta quantidade de fontes pode ser tanto uma bênção quanto um grande problema, pois reforça a tentação de investir em múltiplas frentes de investigação. Procurei não cair no erro de interpretação que consistiria em ler a realidade da época exclusivamente pelas formulações legais e jurídicas, evitando também o anedótico dos “casos” e personagens pitorescos. Meu esforço foi no sentido de articular o macro e o micro, procurando interpretar as transformações históricas interrogando os grandes quadros proporcionados pela legislação, pelos dados gerais da demografia e das exportações e as trajetórias de índios, brancos e mestiços, seus encontros e desencontros. No capítulo I, tratei de compreender, à luz dos paradigmas jurisdicionalista (monarquia corporativa) e político (da Razão de Estado), as transformações que as fontes indicavam nas relações de trabalho entre índios e brancos no Estado do Maranhão e Grão-Pará, procurando delinear algumas continuidades e rupturas nessas relações até a formulação e implementação das reformas de 1755-1759. No Capítulo II, também com essa perspectiva teórico-metodológica, procurei interpretar os dados materiais sobre a demografia e a produção da região. No capítulo III, por fim, reconstituí algumas trajetórias individuais que lançam alguma luz sobre como as reformas aconteceram na prática das povoações, principalmente da capitania do Rio Negro. Tais reformas, em alguns aspectos, acabaram contribuindo para uma reorganização das fronteiras étnicas e abriram espaços para novas redes de alianças e variadas formas de adaptação e resistência.

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Figura 1: Distribuição média da população 1775-1779 capitanias do Pará e Rio Negro (adapt. de ROLLER, 2010).

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Figura 2: Capitania do Pará na segunda metade do século XVIII (adaptado de ROLLER, 2010)

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Figura 3: Capitania de São José do Rio Negro na segunda metade do século XVIII (adaptado de ROLLER, 2010)

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1 Administrar os tapuios no ocaso da Monarquia Corporativa

O termo monarquia corporativa tem sido usado como sinônimo de Estado moderno, chamando a atenção para o pluralismo jurídico que a caracteriza. Um pluralismo, tanto no sistema jurídico quanto nas razões e formas pelas quais foi se constituindo o império colonial, impedia na prática uma centralização real. “Estilos” locais de decisão em tribunais, costumes locais e privilégios (iura própria) prevaleciam sobre regras gerais em todo o direito comum europeu da época. Além disso, o princípio de que uma lei posterior revogava uma lei anterior “[...] não era estritamente observado, porque direitos adquiridos à sombra da lei anterior deveriam ser respeitados mesmo após a sua revogação”. Compreende-se, assim, a dificuldade de implementação de novas políticas gerais, pois nem mesmo o rei poderia atropelar direitos enraizados, sob pena de suas decisões serem anuladas por um tribunal comum. Essa característica pode ter sido, ao menos inicialmente, uma vantagem adaptativa para os ibéricos lidarem com um mundo complexo, heterogêneo e em mutação, como aquele dos impérios que eles conquistaram (HESPANHA, 2010, p. 58-59). Ela também lança alguma luz sobre as dificuldades e resistências encontradas pelos agentes régios que tentavam colocar em prática as novas políticas econômicas e sociais a partir de meados do século XVIII no Estado do Grão-Pará, como veremos mais adiante. Dado que, no início da chamada idade moderna, a teoria corporativa da Segunda Escolástica definia a justiça como primeira atribuição do rei, a área por excelência do governo, compreende-se a importância dos tribunais e conselhos como

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órgãos de governo, “normalmente dominados por juristas” e “com competências bem estabelecidas”. Ao rei competiam também decisões de livre consciência em matéria de graça, a atribuição de um bem, de uma mercê que não era juridicamente devida, uma liberalidade régia que reforçava a legitimidade de seu poder. Assim se conformava o paradigma jurisdicionalista de legitimação do poder real. Na esfera econômica, pressuposta a ausência de interesses contrapostos no seio da comunidade, inexistia a dicotomia de interesses que exigisse o exercício da justiça, o que abria caminho para decisões baseadas na oportunidade (e não na justiça) (SUBTIL, 1992, p. 157-158). Assim podemos compreender como foi possível, mais tarde, surgir e desenvolver-se uma tendência regalista, isto é, de abertura para a tomada de decisões de conveniência política que de algum modo rompiam com a tradição. A trajetória da monarquia portuguesa, no século e meio que se seguiu à Restauração, teve naturalmente continuidades e mudanças. Se nos anos imediatamente posteriores a 1640 o “príncipe novo” da dinastia dos Bragança precisou transigir muito mais com os poderes corporativos, mais para o fim do século XVII houve um curto experimento de governo de um “valido” (o conde de Castelo Melhor), que enfrentou a repulsa dos tradicionalistas defensores da monarquia corporativa e das antigas hierarquias. Na primeira metade do século XVIII, D. João V, não tendo necessitado convocar as Cortes nem uma vez, criou um sistema ministerial mitigado (as secretarias de Estado – 1736) e deixou de convocar o Conselho de Estado, o que levaria D. Luís da Cunha a considerar o governo português “despótico como o espanhol”. Isso significava um “inequívoco declínio do governo dos conselhos e tribunais”, no qual a Aristocracia sofria uma perda relativa de espaço, mas eram raras ainda as políticas sistemáticas levadas a cabo pela Coroa – as relações externas, a

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política ultramarina, as mercês; no mais, a resolução de questões pontuais impostas pela conjuntura (MONTEIRO, 2008, p. 37-46) Como Jack Greene resumiu, a literatura mais recente tem apontado que em toda a Europa “o primeiro Estado Moderno, sempre limitado em seus recursos fiscais, administrativos e coercivos, foi caracterizado por sistemas de governança indireta e por soberanias fragmentadas”. Na construção de Estado, a autoridade não fluiu do centro para a periferia, mas foi sendo estabelecida por “uma série constante de negociações e barganhas recíprocas” (GREENE, 2010, p. 111). Disso decorre a necessidade incontornável de compreender as dinâmicas internas de formação das sociedades coloniais. A literatura recente tem evitado a dicotomia ou divisão estanque entre colonizador e colonizado, dado que ambos teriam como referência o denominador comum da religião e da soberania portuguesa. Em um enfoque mais relacional, tem-se interpretado o poder da coroa como resultado “da combinação circunstancial dos recursos e estratégias mobilizados pelos diferentes atores – sendo a coroa um deles – que atuavam nos vários atos desse complexo enredo governativo” (GOUVÊA, 2010, p. 157-166). De forma semelhante ao que ocorria no Velho Mundo, Uma vez constituída a sociedade colonial e suas elites, estas se valeram de diferentes estratégias – como de uma política de alianças, do sistema de mercês e da luta pelos cargos concelhios – no sentido de garantir a sua posição no topo da hierarquia econômica e administrativa da colônia. E assim ter instrumentos para negociar com a coroa. Afinal, a concessão de mercês – como terras, ofícios e privilégios no comércio – era monopolizada, em última instância, pelo rei, fenômeno que diz respeito ao estabelecimento de relações de vassalagem e de lealdade (FRAGOSO, GOUVÊA, M. DE F. S. e BICALHO, M. F. B., 2000).

Os estudos de Fragoso (1993; 1998), Jucá de Sampaio (2003), entre outros, baseados em rico e variado material empírico, mostraram que as atividades

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econômicas e a acumulação de terras, escravos e outros recursos em busca de status, por vias mercantis ou não4, reforçavam a legitimação da ordem social hierárquica típica de Antigo Regime, a unir as elites de cá e de além-oceano. Além disso, o sistema de mercês, configurando uma economia política de privilégios, reforçava continuamente os laços de dependência entre os súditos portugueses (nobres ou não) que prestavam serviços em todos os quadrantes do Império e a coroa, que tinha o poder de distribuir ou confirmar favores, isenções e rendas – amiúde associados a cargos administrativos (RUSSEL-WOOD, 1998). Redes de reciprocidade e clientela uniam parceiros comerciais, procuradores e agentes régios do Reino e das Conquistas (FRAGOSO, GOUVÊA, M. DE F. S. e BICALHO, M. F. B., 2000, p. 75-74). Mais ainda, a “economia política de privilégios”, unindo de um lado uma nobreza que não possuía em geral propriedades que lhe garantissem autonomia econômica e, de outro, uma monarquia com recursos materiais e humanos limitados, era forjada por cadeias de negociação e redes pessoais e institucionais de poder que, interligadas, viabilizavam o acesso a cargos e a um estatuto político – como o ser cidadão –, hierarquizando tanto os homens quanto os serviços em espirais de poder que garantiam coesão e governabilidade ao Império (p. 79).

Uma ideia de cidadania (bem distinta daquela que conhecemos após a Revolução Francesa) concretamente se difundia por todo o Império Português e contribuía para cimentar a monarquia pluricontinental. Nessa sociedade de antigo regime, cidadãos eram aqueles que tinham exercido cargos camarários e seus descendentes. Eram aqueles que participavam da governança da comunidade, ou

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Ou seja, pela via política da acumulação de rendas, privilégios e monopólios comerciais associados à chamada “economia do bem comum”, que esbatia os limites entre a atividade econômica e o governo da república (FRAGOSO, GOUVÊA, M. DE F. S. e BICALHO, M. F. B., 2000); ou pela conquista e “guerra justa”, fonte de escravos e terras; ambas as vias eram apanágio de uma “nobreza da terra” nas conquistas, reafirmando uma hierarquia social excludente (SAMPAIO, 2003).

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seja, os responsáveis pela res publica e que, por isso, gozavam de todos os privilégios e liberdades que outrora cabiam aos infanções e ricos-homens (BICALHO, 2001). As barreiras que limitavam o acesso a esse círculo podiam ser, às vezes, insensíveis aos maiores esforços de plebeus que tentavam ingressar nele. Na primeira metade do século XVIII, ao descrever Paulo da Silva Nunes – notório adversário dos jesuítas e incansável militante dos interesses dos moradores do Pará em usar o trabalho indígena – o padre Jacinto de Carvalho, S.J., explicou que os camaristas de São Luís e Belém hesitaram por vários anos nomeá-lo seu procurador em Lisboa porquanto tinha sido barbeiro de Christovão da Costa Freire, e por desinquieto, mal visto delle, e posto que se casasse com uma filha de um cidadão pobre, elle nunca tinha entrado no número dos cidadãos, nem servido na câmara, e quando nesta côrte se não podia sustentar, e tratar nobremente, julgavão por grande desdouro seu, ter tal homem por procurador nesta corte. 5

Tanto os cidadãos quanto os plebeus desprezados por eles (como Paulo da Silva Nunes) ou vassalos indígenas podiam ser ouvidos pelos agentes régios em todos os níveis e peticionar ao próprio monarca, o que significava criticar ou tentar modificar certos aspectos do sistema político ao mesmo tempo em que se legitimava esse mesmo sistema. Sem embargo, como lembra Hespanha, isso não significa diluir

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Papel que o Padre Jacintho de Carvalho, Visitador Geral das Missões do Maranhão, apresentou a El-Rei para se juntar aos dous requerimentos do procurador Paulo da Silva Nunes. Datada do Colégio de Santo Antão, 16 de dezembro de 1729 (MORAIS, 1858-1863, p. 322). Em requerimento analisado pelo Conselho ultramarino em 1738, Paulo da Silva alegava ter lutado (como simples soldado) na Guerra de Sucessão Espanhola, passando em seguida ao Estado do Maranhão e Grão-Pará, onde dizia ter servido como secretário do governador, capitão de infantaria dos privilegiados de Belém, capitão mor das Vilas de Vigia e Icatu e superintendente das fortificações, tendo explorado os limites do Estado viajando por mais de mil léguas. No entanto, como já estava na corte às suas custas fazia 14 anos, representando os cidadãos de Belém e alertando a monarquia sobre as formas de aumentála temporal e espiritualmente, encontrava-se “em tal extremo de pobreza, que não tem o que vestir descentemente, nem com que se alimentar, em termos de pedir de porta em porta uma esmola como mendigo”. AVISO do [secretário de estado da Marinha e Ultramar], António Guedes Pereira para o [conselheiro do Conselho Ultramarino], José de Carvalho e Abreu, para que se consulte sobre o requerimento do procurador dos Povos do Maranhão e Pará, Paulo da Silva Nunes, no qual solicita vestuário e alimentação. Anexo: requerimento. AHU_CU_013, Cx. 21, D. 1942.

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a realidade da violência colonial e reeditar a propaganda do “colonialismo doce” do lusotropicalismo de Gilberto Freyre, apropriado pela ditadura de Salazar no século XX. A fraqueza do Estado a que Hespanha se refere se verifica mais diante dos núcleos locais de poder dos brancos nas colônias, e menos diante dos grupos nativos nãoeuropeus. De qualquer forma, “importa sempre reter que a experiência colonial era, por sua natureza, muito violenta e que mesmo a negociação era sempre prosseguida ‘sob a sombra e a ameaça do Leviatã’” (HESPANHA, 2010, p. 48). Dessa forma, vemos um único reino (Portugal), com uma aristocracia peculiar, dono de uma miríade de conquistas heterogêneas em suas origens, populações e estatutos – um mundo no qual comerciantes, oficiais, aristocratas e corporações (concelhos, corpos de ordenanças, irmandades, tribunais) utilizam intensamente diversas formas de comunicação política e “conferem aderência e significado às diversas áreas vinculadas entre si e ao reino no interior dessa monarquia” (FRAGOSO, 2010, p. 18). Essa

é

a

realidade

que

vem

sendo

denominada

de

Monarquia

pluricontinental, relação dialética entre coroa e ultramar com acentuada e estrutural dependência da primeira em relação aos recursos oriundos dos domínios ultramarinos. Tais recursos ultramarinos a dispensavam de exercer grande pressão tributária internamente (MONTEIRO, 2003, p. 24), ao mesmo tempo em que, reciprocamente, era respaldada “por grupos locais espalhados pelo império que igualmente dependiam do reconhecimento e do aval institucional da coroa para manter suas posições sociais diante das sociedades em que viviam”. Nos séculos XVI e XVII, ressalvadas algumas flutuações conjunturais, “A exemplo de outras arquiteturas políticas da Europa Moderna, a portuguesa era polissinodal e corporativa;

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portanto, existiam concorrência e negociação entre seus poderes” (FRAGOSO J. L., 2010, p. 19; GOUVÊA, 2010, p. 185). Todavia, diferentemente do modelo da Monarquia Compósita proposto por John Elliot para o poder Habsburgo, que controlava Castela e outros tantos reinos europeus, além das conquistas ultramarinas (ELLIOTT, 2010), “[...] a ideia de monarquia pluricontinental tende a sublinhar tais pactos das nobrezas da terra ou entre os que ocupavam cargos honrosos da república (município) e a Coroa” (FRAGOSO, 2012, p. 18). Em todas as partes do império, encontra-se a prática tradicional da prestação de serviços excepcionais dos “homens bons” das colônias ao rei – na defesa, na conquista e na produção de conhecimento sobre o Império, nas doações extraordinárias para o esforço de guerra ou no atendimento de solicitações da coroa em constantes agruras financeiras – em troca de mercês reais que concediam ou confirmavam privilégios, postos administrativos civis e militares e rendas. Para uma melhor compreensão do funcionamento dessa monarquia, a ênfase recai sobre as redes, conjuntos relacionais dotados de conexões constantes e recorrentes, com “capacidade de influir, de intervir, de desenvolver estratégias, de alterar o ritmo e o rumo dos acontecimentos em razão de um dado objetivo ou interesse” (GOUVÊA, 2010, p. 167-168). É um conceito-ferramenta útil para interpretar e dar sentido às ações dos sujeitos históricos, tanto europeus como indígenas, como veremos nos capítulos a seguir. No lugar de um Estado moderno, absolutista, centralizado, submetendo de forma unilateral e homogênea vastos domínios coloniais, o que vemos é uma descentralização sistêmica em função das longas distâncias que separavam as distintas partes dos domínios portugueses, das lutas das Câmaras, da necessidade

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de governadores e vice-reis tomarem decisões urgentes (RUSSEL-WOOD, 1998). São constitutivos do período, portanto, a ausência de um projeto colonial unificado, um estatuto colonial sem unidade, um pluralismo jurídico que autorizava governadores e vice-reis a criarem direito ou dispensarem o direito existente nas urgências da época (HESPANHA, 2001, p. 174-175). Marcas estruturais dos sistemas políticos de Antigo Regime na Europa e nas colônias, a falta de uniformidade, o conflito de jurisdição, a justaposição institucional, a negociação dos vínculos políticos e a ineficiência administrativa

não

eram

prerrogativas

apenas

dos

domínios

portugueses

(HESPANHA, 2010, p.51-53; GREENE, 2010). Por outro lado, não se podem negar as singularidades de Portugal nesse desenvolvimento, com uma certa autonomia em determinados momentos dos corpos municipais do Reino e uma autonomia senhorial e regional quase inexistente, em um quadro de relativa homogeneidade institucional (dentro do Reino) e ausência de rebeliões internas com acentuado cunho regional, étnico ou religioso (MONTEIRO, 2003). Aliás, também as Câmaras tinham seu poder delegado pela Coroa. Ainda assim, governar a municipalidade significou um amplo e extenso leque de possibilidades para recrutamento de clientes para formar suas casas ou bandos e, ao mesmo tempo, molestar e, eventualmente, dominar grupos oponentes. Externamente, a nobreza das câmaras administrava um conjunto de matérias muito significativo, tais como o acesso ao status de vizinho – um tipo de ‘cidadania local’ que os capacitava a exercer direitos e reivindicar graças e vantagens – ou a definição dos termos de todas as negociações políticas com o poder régio e seus servidores (HESPANHA, 2010, p. 71).

Servir nas câmaras, ao mesmo tempo em que significava preito de lealdade ao rei, era ter acesso à nobreza política, estado intermediário entre a nobreza antiga de sangue e o povo mecânico (BICALHO, 2001). No capítulo 3, veremos como as Câmaras representavam, apesar das circunstâncias peculiares da região, uma forma

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importante de ascensão social para índios e brancos nas vilas de maioria indígena. Bem entendido, eram imensas as diferenças de prestígio social entre as câmaras de vilas pequenas e pobres e as câmaras de capitais importantes. Embora a Câmara de Barcelos tivesse sido galardoada com os privilégios dos cidadãos de Belém – ou seja, os mesmos privilégios dos cidadãos da cidade do Porto (FERREIRA, 2007, p. 243) – , certamente ser um oficial camarário em uma grande cidade do Reino ou da América era muito diferente de sê-lo em uma pequena vila como Silves ou Moura. Em matéria de nobrezas, “tudo pende da reputação, & comum estimação dos povos”, como ensinava Antonio de Villasboas e Sampayo (1676, p. 144). Por isso, Os Vereadores só acquirem nobreza, quando são eleytos nas Cidades, & Villas notáveis, & em que sométe costumam servir os nobres. [...] Nas Villas, & lugares pequenos, em que os plebeos, & mecânicos entrão em semelhantes officios, nenhúa nobreza alcançaõ [...]” (VILLASBOAS E SAMPAYO, 1676, p. 144-145).6

As relações entre oficiais camarários das vilas de menor importância e os governadores e demais agentes régios e eclesiásticos serão muito variáveis. A partir de Mendonça Furtado, os governadores parecem ter tido um poder político e militar bastante efetivo no Estado. Além disso, devido às grandes distâncias entre os territórios ultramarinos e a metrópole, “apesar do estilo altamente detalhado das cláusulas regimentais e da obrigação de, para certos casos, consultarem o rei ou o Conselho Ultramarino, os vice-reis e governadores gozavam, de fato, de uma grande autonomia”, constando sempre nos seus regimentos, inclusive, uma cláusula

6

No próprio Reino, as elites locais que já tinham prestígio resistiam a participar das câmaras em concelhos de dimensões muito reduzidas. Não apenas era duvidoso que participar em pequenas câmaras “rústicas” acrescentasse prestígio social como também ser camarista em um município sem rendas podia ser “ruinoso para juízes ordinários, vereadores e procuradores, que, conforme muitas vezes se queixavam, tinham de pagar dos seus próprios bolsos parte das terças devidas à coroa” (MONTEIRO, 1993, p. 326).

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que os autorizava a desobedecer às instruções régias, sempre que avaliassem ser do interesse do serviço real (HESPANHA, 2001, p. 174-175). Essa autorização para criar direito ou suspender o direito existente era característica de um mundo diferente daquele dos direitos estabilizados dos reinos europeus, um mundo em mudança e com poucas referências para os atores sociais, “em que a justiça tinha que ser criada, ex novo, pela vontade do príncipe, tirando partido da oportunidade e das mutáveis circunstâncias dos tempos” (p. 175). Para tornar a coisa mais complexa, embora governadores de capitanias e donatários devessem prestar contas e obediência ao governador-geral do Estado, “simultaneamente, eles deviam obediência aos secretários de Estado em Lisboa. Esta dupla sujeição criava um espaço de incerteza hierárquica sobre o qual os governadores locais podiam criar um espaço de poder autônomo efetivo” (pp. 177-178). Operando dentro dessa margem de autonomia, Francisco Xavier de Mendonça Furtado iria alterar significativamente o alcance das Leis de liberdade dos Índios de 1755, como veremos no final deste capítulo.

1.1 A regulação do trabalho indígena no norte da América Portuguesa

A inteligibilidade dos processos históricos no norte da América Portuguesa depende da compreensão das relações de trabalho nessa sociedade, que envolviam quase sempre indivíduos e grupos ameríndios. Uma longa tradição historiográfica7 ataca mais ou menos apaixonadamente as Reformas Pombalinas e sua intervenção

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A começar, naturalmente, pelos jesuítas do final do século XVIII, os maiores prejudicados pelas reformas, como os padres João Daniel (2004a) e Anselmo Eckart (1987 [1779]), passando por Capistrano de Abreu (1998) até pesquisadores contemporâneos como Moreira Neto (1988).

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mais concreta nas relações de trabalho (o chamado Diretório dos Índios) como responsáveis pela degradação mais profunda das condições de vida dos índios como grupo da sociedade colonial do Grão-Pará. Seguindo as evidências deixadas pelas fontes da época, entretanto, esta seção discutirá o quanto essas reformas – independentemente do grau de seu êxito em suas múltiplas frentes – representaram uma inflexão substancial na história da relação entre ameríndios e brancos na região: tendo sido sempre sujeitos históricos ativos, os indivíduos e grupos nativos passam a ser oficialmente reconhecidos como tais pela Coroa, igualados juridicamente aos demais vassalos da monarquia. Do ponto de vista dos ameríndios integrantes da sociedade colonial, essa nova realidade não podia deixar de oferecer novas e interessantes oportunidades para proteger ou aumentar sua autonomia e para preservar direitos, valores e tradições próprias. Somente depois das Leis de Liberdade de 1755 é que índios (não todos) são sistematicamente tratados na documentação como “moradores” ou “adjuntos”, em condição de igualdade jurídica com “moradores” brancos, o que não era trivial. Esta seção concentra-se nas mudanças e permanências na legislação indigenista da Coroa.

1.1.1 A questão do trabalho indígena e o poder temporal dos missionários

Como se trata de assunto de grande complexidade, pode ser útil começar classificando esquematicamente as formas de acesso dos “moradores” ao trabalho indígena e os diferentes estatutos jurídicos desses trabalhadores. Ao longo do primeiro século e meio de colonização, os índios eram divididos entre escravos e “forros”; após 1755, todo tipo de cativeiro indígena é banido e, formalmente, todos os

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índios seriam livres – alguns deles proprietários, a maioria pequenos lavradores sujeitos a alguma forma de trabalho compulsório, mas assalariado. Certamente, diversas fontes do final do século XVIII e início do XIX continuaram mencionando casos de escravização aberta ou velada de índios, o que indica uma resistência estrutural às Leis de liberdade. É o caso do Cônego André Fernandes de Souza que, em um memorial dos anos 1820 dirigido ao imperador, denuncia a violação generalizada da vedação do cativeiro indígena por parte dos últimos governadores coloniais da capitania do Rio Negro (SOUSA, 1848, p. 490). Antes de 1755, as formas de acesso ao trabalhador índio eram, em geral, o descimento, o resgate e a guerra justa, que serão tratados com maior aprofundamento a seguir. Pode-se antecipar, resumidamente, que o descimento incorporava à sociedade colonial grupos mais ou menos grandes de ameríndios, sob a liderança de um principal que negociava as condições da adesão de seu grupo com as autoridades régias ou com os missionários. Os grupos “descidos” ou “reduzidos”, por definição, convertiam-se à fé católica e, durante todo o período colonial, eram considerados livres e não podiam legalmente ser escravizados. Sujeitavam-se, no entanto, a formas mais ou menos duras de trabalho compulsório assalariado, “repartidos” de diferentes maneiras entre o serviço dos particulares, o serviço para os missionários e o serviço real. Com raras exceções, o descimento era voluntário – ainda que premido por situações de extrema adversidade, como guerras com outras etnias nativas, epidemias, desorganização do sistema produtivo, fome etc. Ainda que precisando contornar muitos escrúpulos jurídicos e morais, o rei chegou a autorizar, uma vez, “descimentos forçados”: atendendo à conveniência de terem as capitanias do Estado “os Índios que lhe são necessários para a cultura das Fazendas, e[...] sobre tudo tiral-os da barbaridade em que vivem, comendo-se huns aos outros [...], e também que a falta de Índios com que se achavão

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esses povos tinha sido acauza da pobreza em que estavão os moradores, e da mesma forma a Fazenda Real por consistir nos Dizimos o seu rendimento, [...] por resolução de desasete de Fevereiro deste prezente anno tomada em consulta do meu Conselho Ultramarino [...] o descimento dos Índios pode ser de dois modos; o primeiro indo os Missionarios ao Sertão (posto que com guarda de soldados para sua segurança) persuadir aos Índios as conveniências que lhe resultão, e os perigos de que ficão livres, reduzindo-se a viverem nas Aldeas com trato publico e próprio de homens racionais, e eles então voluntariamente quiserem descer para se Aldearem, nenhum escruplo pode haver na matéria, sendo depois tratados nas Aldeas não como escravos, mas como livres [...], e outro de os descer contra sua vontade presedendo ameaços, ou obrigando-os por força a que desção, he aonde pode haver o escruplo, por que [...] estes homens são livres e ezentos da minha jurisdição, que os não pode obrigar a sahirem das suas terras para tomarem hum modo de vida de que eles não se agradão, ou que se não he rigoroso o captiveiro, em certo modo oparece, porque ofende a liberdade. Comtudo se estes Índios [...] são como os outros Tapuias bravos, que andão nus, não reconhecem Rey, nem Governador, não vivem com forma, e modo de Republica, atropellão as leis da natureza, não fazem diferença de May e filha para satisfação de sua lasciva, comem-se huns aos outros, sendo esta gula acauza injustíssima das suas guerras, e ainda fora delas, os excita afrecharem os meninos inocentes: sou servido que se possão obrigar por força, e medo a que desção do Sertão para as Aldeas, se o não quiserem fazer por vontade por ser assim comforme a opinião dos Doutores [...]”. O rei ressalvava que essa coação deveria ser moderada de modo a não haver mortes nos Índios (a não ser em legítima defesa) e que se, depois de Aldeados, se “aperseverarem na pulitica, e desistirem da sua fereza”, deveriam receber salários, sustento e vestido, não ficando cativos – Carta Régia de 9 de março de 1718, grifos meus (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 153-154).

Distinto dos descimentos, o resgate seria a compra de índios prisioneiros de outros índios, que teriam dessa forma o corpo e a alma salvos (do sacrifício antropofágico e do inferno, respectivamente) pelo colono, que teria como retribuição o trabalho do resgatado, por tempo determinado ou por toda a vida. As Guerras Justas, ofensivas ou defensivas, vinham de longa tradição jurídica e prática dos cristãos ibéricos; deveriam ser referendadas e autorizadas expressamente pelo rei (quando ofensivas) ou pelo governador ou por uma junta (quando defensivas). Já no século XIV, na Península Ibérica do tempo da “Reconquista” contra os “mouros”, conceituava-se guerra justa aquela que atendia a 3 requisitos – uma grave injustiça

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precedente; guerra conduzida “com intenções puras” e declarada por autoridade competente (OLIVEIRA, 2014, p. 185). Aliás, de maneira condizente com essa origem, as Guerras Justas não podiam ser vistas apenas como forma de obtenção de trabalhadores, pois visavam “fundamentalmente a produzir efeitos na dimensão territorial, acompanhando um processo de conquista” (OLIVEIRA, 2014, p. 192). Os dois aspectos são indissociáveis. A origem dos repartimientos (mais tarde chamados de encomiendas), que Colombo inaugurara nas Antilhas remontava às guerras medievais da Reconquista, quando a coroa repartia gentes e terras conquistadas como recompensas aos combatentes cristãos (MACLEOD, 1990, p. 150). Na América Portuguesa, de forma geral, os prisioneiros feitos nessas guerras justas eram legalmente escravizados, até 1755, momento de estabilização das conquistas na Amazônia ocidental. Formalmente, autorizava-se a escravização de povos nativos inimigos e de prisioneiros de guerra, mas não a de povos indígenas amigos ou pacíficos. Isso não impedia que moradores e governadores burlassem a legislação, evidentemente. Somente em três ocasiões toda e qualquer forma de escravização indígena foi vedada legalmente: ineficazmente em 1609 e 1680, e de forma mais efetiva e duradoura em 1755. A lei de 1680 reafirmava a validade da de 1609, e a de 1755 suscitava a validade da de 1680, revogando todos os diplomas legais que abriam brechas para o cativeiro indígena. Elas eliminaram, ao menos formalmente, todas as possibilidades legais de escravização de índios em qualquer hipótese. As duas primeiras foram inspiradas pelos jesuítas, a terceira contra eles, já que articularia a liberdade (proibição da escravização) com o fim do poder temporal dos missionários sobre os índios. Não deveria nos surpreender, contudo, que em cada uma dessas ocasiões tenham sido

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criadas formas de se escravizar formal ou sub-repticiamente os índios. De acordo com a Lei de 30 de julho de 1609, [...] para se atalharem os grandes excessos que poderá haver, se o cativeiro em algum caso se permitir, e para de todo se cerrar a porta a isto, declaram-se todos os gentios daquelas partes do Brasil livres, conforme a Direito e seu nascimento natural, assim os que já forem, batizados e reduzidos à nossa Santa Fé Católica, como os que ainda viverem como gentios conforme os seus ritos e cerimônias; os quais todos serão tratados e havidos por pessoas livres, como são; e não serão constrangidos a serviço, nem a coisa alguma, contra a sua livre vontade; e as pessoas que deles se servirem nas suas fazendas lhes pagarão seu trabalho, assim e da maneira que são obrigados a pagar a todas as mais pessoas livres, de que se servem; podendo outrossim os ditos gentios com liberdade e segurança possuir sua fazenda e propriedade, morar e comerciar com os moradores das capitanias(MALHEIRO, 1976, pp. 177-178; grifos meus).

A mesma lei confirmava os jesuítas como protetores dos índios, encarregados de definir, junto com o governador, sobre os aldeamentos, entrega de índios para o serviço real e para servir aos moradores; nenhuma autoridade teria sobre os índios mais poder que sobre as demais pessoas livres. Deveria ser nomeado um curador dos Índios e, de forma radical, anulava-se em função dos muitos abusos passados o cativeiro de todos os que foram ilegalmente escravizados, sendo declarados nulos os títulos e sentenças em contrário. A argumentação da Lei de 1680 para proibir totalmente o cativeiro indígena é quase idêntica à de 1609 (CARVALHO, 1983, p. 91). No entanto, não passou despercebido aos moradores do Estado que um alvará de 12 de fevereiro de 1682 atenuava essa liberdade dos índios em benefício dos assentistas da nova Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, autorizando a estes últimos “fazer no sertão as entradas que quisessem, e ter na capitania até cem casais de índios a seu serviço” (MALHEIRO, 1976, p. 193). De forma simplificada, Bessa Freire (2011, p. 75) propõe o seguinte esquema de entrada e destino dos ameríndios no sistema colonial:

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Figura 4: formas de incorporação e estatutos jurídicos dos índios no Grão-Pará até 1755 (Freire, 2011)

Leila Perrone-Moisés critica o simplismo (recorrente em grande parte da historiografia) que consiste em interpretar a caudalosa legislação indigenista colonial8 como “hipócrita” ou “mero reflexo de pressões políticas exercidas junto à Coroa pelos dois grandes grupos de atores na questão indígena colonial: jesuítas e colonizadores

8

João Francisco Lisboa enumera os seguintes textos legais emitidos pela Coroa sobre esse único tema: “20 de março de 1570, 22 de agosto de 1587, 11 de novembro de 1595, 26 de julho de 1596, 5 de julho de 1605, 7 de março e 30 de julho de 1609, 10 de setembro de 1611, 15 de março de 1624, 8 de junho de 1625, 10 e 12 de novembro de 1647, 5 e 29 de setembro de 1648, 12 de setembro e 21 de outubro de 1652, 17 de outubro de 1653, 9 e 14 de abril de 1655, 12 de julho de 1656, 12 de setembro e 18 de outubro de 1663, 29 de abril de 1667, 21 de novembro de 1673, 23 de janeiro de 1671, 31 de março e 1º de abril de 1680, 2 de setembro de 1684, 21 de dezembro de 1686 (são duas as disposições desta data: uma carta régia e o famoso Regimento das Missões), 24 ou 28 de abril de 1688, 6 e 17 de janeiro de 1691, 19 de fevereiro e 15 de março de 1696, 15 de janeiro de 1698, 11 de janeiro, 1 e 3 de fevereiro de 1701, 21 e 22 de abril de 1702, 3 de fevereiro de 1703, 6 de dezembro de 1705, 5 de julho de 1715, 9 de março de 1718, 12 de outubro de 1719, 12 de outubro de 1727, 13 de agosto de 1745, 13 de outubro de 1751, 4 de abril, 6 e 7 de junho de 1755, 3 de maio de 1757, 8 de maio e 17 de agosto 1758, 11 de maio de 1774, 12 de maio de 1797, 18 de agosto de 1803, 13 de maio e 2 de dezembro de 1808, e 28 de julho de 1809” (LISBOA, 1865, p. 274-275).

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(chamados, na época, moradores)”, oscilando entre um e outro polo (1992, p. 115116). Embora as pressões econômicas em torno do trabalho indígena sejam inegáveis, deveria ser do mesmo modo patente que o sistema jurídico é um dos fundamentos das ações dos homens. As ideias nele contidas são muito mais do que mera retórica destinada a permitir a realização da vontade de um ou outro grupo político. Nos momentos críticos, em que as leis são discutidas, colonos e jesuítas recorrem a princípios comuns, pertencentes a uma mesma tradição jurídica (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 116).

Com efeito, deveríamos prestar mais atenção aos fundamentos teológicojurídicos da conquista, que não são dissociados das motivações políticas e econômicas da Coroa. É convincente a proposição de Perrone-Moisés: a profusa legislação emitida pela Coroa a respeito do tratamento dos índios não é tão confusa e contraditória9 como poderia parecer em retrospecto: Havia, no Brasil colonial, índios aldeados e aliados dos portugueses, e índios inimigos espalhados pelos ‘sertões’. À diferença irredutível entre ‘índios amigos’ e ‘gentio bravo’ corresponde um corte na legislação e política indigenistas que, encaradas sob esse prisma, já não aparecem como uma linha tortuosa crivada de contradições, e sim duas, com oscilações menos fundamentais. Nesse sentido, pode-se seguir uma linha de política indigenista que se aplica aos índios aldeados e aliados e uma outra, relativa aos inimigos, cujos princípios se mantêm ao longo da colonização. Nas grandes leis de liberdade, a distinção entre aliados e inimigos é anulada e as duas políticas se sobrepõem. [...] Aos índios aldeados e aliados, é garantida a liberdade ao longo de toda a colonização. Afirma-se, desde o início, que, livres, são senhores de suas terras nas aldeias, passíveis de serem requisitados para trabalharem para os moradores mediante pagamento de salário e devem ser muito bem tratados. Deles dependem reconhecidamente o sustento e defesa da colônia. Se não se alteram os princípios básicos, vão-se modificando, por outro lado, as políticas efetivas destinadas a garanti-los: quem administra as aldeias, como serão regulamentados o seu trabalho e seus salários, quem e como lhes administrará a justiça (PERRONE-MOISÉS, 1992,

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Pelo menos desde o século XIX, historiadores e juristas como Varnhagen (1959, p. 333), Lisboa (1865) e Malheiro (1976), acusam a legislação indigenista colonial de hesitante ou contraditória quanto ao cativeiro dos povos nativos.

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p. 117).10

Para usar as palavras de João Pacheco de Oliveira, não podemos interpretar os conflitos coloniais como uma antecipação das lutas ideológicas dos séculos XIX e XX, entre proteção e extermínio. “A legislação colonial portuguesa sobre a escravidão dos índios está assentada sobre certas premissas básicas, mas se atualiza no tempo, possibilitando variações e disputas” conforme as conjunturas concretas (OLIVEIRA, 2014, p. 184-185). Via de regra, as coroas ibéricas não deram respaldo formal à escravização de nações ameríndias pacíficas ou aliadas. Sem embargo, antes que ficasse clara a divisão entre amigos e inimigos, a escravização de ameríndios pelos europeus ocorre desde muito cedo. Uma capitulação dos Reis Católicos, concedida a Rodrigo de Bastidas em 5 de junho de 1500, autorizava a negociar escravos “que em nuestros Reinos sean habidos e reputados por esclavos”, reservado um quarto do lucro para a coroa espanhola (LOBO, 1962, p. 116). A Nau Bretoa, em 1511, a despeito de determinações expressas de seu regimento para que não levasse habitantes da terra do Brasil para a Europa, levou para Portugal mais de 30 índios escravizados (VARNHAGEN, 1959, p. 90). Uma Carta Régia de 1532 a Martim Afonso de Souza facultava aos colonos cativarem os gentios e mesmo vendê-los a Lisboa com isenção da sisa (MALHEIRO, 1976, p. 169).

10

Luiz Felipe de Alencastro (O Trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, 2000) também sugere uma linha diretriz permanente na legislação indigenista ibérica, embora em outra chave interpretativa: para ele, desde as Leyes Nuevas de Carlos V (1542-43) e a legislação dedicada à América Portuguesa, influenciada pelas doutrinas jurídicas espanholas, as coroas ibéricas procuraram impedir que o “excedente colonial” fosse consumido nas próprias colônias, direcionando o comércio para o fluxo atlântico – dessa forma, segundo Alencastro, tornam-se inteligíveis as normas de ambos os impérios para enquadrar as relações de trabalho entre ameríndios e europeus e para organizar o tráfico atlântico de africanos escravizados (pp. 12 e ss.).

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Mas desde cedo, igualmente, são baixadas normas contra a escravização do gentio americano. Um breve do Papa Paulo III de 28 de maio de 1537 declarou que os indígenas do Peru não podiam ser reduzidos a cativeiro, sob pena de excomunhão dos escravizadores; uma bula de Urbano VIII (22 de abril de 1639) estendeu essa norma ao Brasil (MALHEIRO, 1976, p. 159-160). Uma política de promoção de casamentos entre colonos e índias começou a ser praticada por Duarte Coelho na capitania hereditária de Pernambuco, no século XVI (MALHEIRO, 1976, p. 160-161). Na América Espanhola, depois de décadas de turbulência e guerras civis, logrou-se impor o conceito de que as encomiendas pertenciam à Coroa, e de que essa concessão referia-se a rendas, não a uma vassalagem dos índios ao encomendero. O sistema entrou em decadência com a radical redução populacional e, no final do século XVI, algumas encomiendas ficaram vagas ou abandonadas e os índios sobreviventes reverteram à coroa espanhola. Para alguns espanhóis que perceberam a hora de diversificar seus investimentos, entretanto, o sistema foi a base de grandes fortunas e contribuiu para a formação de uma elite local. Em regiões isoladas, o sistema perdurou por todo o período colonial, inclusive usando os índios como força de trabalho, mas nas áreas centrais (como México, Peru, Quito etc.) foi substituído por outras formas de trabalho compulsório (MACLEOD, 1990, p. 151-153). Nessas áreas, o recrutamento laboral tinha origem pré-colombiana (mita, coatequil). A forma geral de trabalho compulsório remunerado era o repartimiento, imposto sobre uma porcentagem da população indígena masculina válida, compelida a trabalhar em determinados projetos ou em lugares mais ou menos distantes. Formalmente, o repartimiento destinava-se apenas a projetos de grande interesse público, como obras públicas ou projetos agrícolas ou industriais importantes, sendo vedado em algumas atividades extremamente insalubres e perigosas (p. 154). Algumas dessas

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características são familiares aos que estudam a história da América Portuguesa, mas uma diferença substancial salta aos olhos: nos Estados do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará inexistiam instituições pré-conquista de organização de trabalho compulsório em massa. O Regimento do primeiro governador geral do Estado do Brasil, Tomé de Souza (17 de dezembro de 1548), exemplifica algumas constantes da política indigenista colonial portuguesa. Define o tratamento destinado a povos nativos amigos e inimigos: os primeiros deveriam ser bem tratados, castigando-se os portugueses que os maltratassem, pois “o principal fim por que se manda povoar o Brasil é a redução do gentio à fé católica [...] e convém atraí-los à paz para o fim da propagação da fé, e aumento da povoação e comércio”. Propagação da fé, aumento da povoação e comércio seriam objetivos perseguidos do primeiro ao último século da colonização da América Portuguesa, como veremos adiante. O regimento de Tomé de Sousa proibiu ainda que se atacasse o gentio, ainda que rebelado, sem licença do governador ou dos capitães, lembrando que era costume saltear e roubar os gentios de paz por diversos modos, atraindoos enganosamente, e indo depois vendê-los, até aos próprios inimigos, donde resultava levantarem-se eles e fazerem guerra aos Cristãos, sendo esta a principal causa das desordens que tinha havido (MALHEIRO, p. 165).

Aos índios que se mostrassem inimigos, determinava o regimento que o governador lhes destruísse as aldeias e povoações, matando e cativando “e fazendo executar nas próprias aldeias alguns Chefes que pudesse aprisionar enquanto negociasse as pazes” (MALHEIRO, 1976, p. 165). Determinava-se ainda que todos os moradores que tivessem casa, embarcação ou plantação deveriam ter armas e proibia-se a venda de qualquer arma ao “gentio”. Para Pacheco de Oliveira, esse regimento já delineava as características da “guerra justa” (OLIVEIRA, 2014, p. 183).

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Uma Carta Régia de 1557 legalizaria o cativeiro de um povo específico em guerra com os portugueses, os Caetés. Provavelmente em 1566, Mem de Sá receberia uma Carta Régia, baseada em assento da Mesa de Consciência e Ordens, advertindo ser o rei informado de que “nessas partes [do Brasil] se fazem cativeiros injustos, e correm os resgates com título de extrema necessidade, [...] intercedendo força, manhas, enganos, com que os induzem facilmente a se venderem, por ser gente bárbara e ignorante [...].” Lembrando outra vez que “o principal e primeiro intento” da conquista era “o aumento e conservação da nossa Santa Fé Católica e conversão do gentio delas”, e que era necessário haver gente para cultivar a terra, deveria o governador proteger os índios de qualquer vexação e defendê-los do esbulho de suas terras, “para que com isto se animem a receber o sacramento do batismo, e se veja que se pretende mais sua salvação que sua fazenda”11, permitindo que “alguns portugueses de boa vida e exemplo vivam nas aldeias entre os que se convertem”. As missões dos jesuítas tornavam-se expressamente abrigo de índios ilegitimamente escravizados que ali buscassem refúgio, só podendo ser restituídos ao proprietário que “provasse a legitimidade da posse e da servidão”. O ouvidor deveria fazer correição periodicamente nessas missões e aldeias, administrando justiça, e um curador dos índios seria nomeado. Proibia-se o expediente de casar índias com escravos e invalidavam-se os resgates com índios sem consentimento das autoridades (VARNHAGEN, 1959, p. 334-335). Duas Juntas discutiram a escravidão indígena em 1566 e 1574 e estabeleceram um princípio basilar para a América Portuguesa, que a particularizaria

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Grifos meus.

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em relação aos vizinhos espanhóis: embora os nativos que vivessem em aldeias jesuítas não pudessem ser, obviamente, escravizados, sendo “forros” os que tinham sido ilegitimamente cativados, os jesuítas comprometiam-se a fornecer trabalho temporário remunerado dos índios de suas missões para os moradores. Recomendava-se, ainda, a criação do cargo de procurador de índios (OLIVEIRA, 2014, p. 188). Esse princípio da “repartição” dos índios, tutelados e sujeitos a trabalho compulsório apesar de livres, caracterizaria a condição indígena em todo o período colonial e mais além. A lei de 20 de março de 1570 sacramentaria pela primeira vez a deliberação da Junta de 1566, permitindo o cativeiro puro e simples apenas em dois casos: no dos gentios “tomados em guerra justa”, com autoridade e licença do rei ou do governador, e daqueles “que costumam saltear os Portugueses e a outros gentios para os comerem”, tendo os que os cativarem a obrigação de registrar os cativos no prazo de dois meses nos livros das Provedorias (MALHEIRO, 1976, p. 173). Três anos depois, uma Carta Régia restabelece os “resgates”, que não deveriam ser totalmente impedidos, “pela necessidade que as fazendas deles têm, nem se permitam resgates manifestamente injustos, e a devassidão que até agora nisso houve” (p. 174). Em 1611, nova lei legitimava o cativeiro dos índios aprisionados em guerra justa e também o resgate de nativos prisioneiros de outros índios para serem devorados (índios à corda). Em 1615 os franceses eram expulsos do Maranhão e começava a colonização portuguesa do Pará. As duas colônias, juntamente com o Ceará, formariam o Estado do Maranhão em 1621. Uma provisão de 1653 ampliaria os casos de guerra justa, incluindo o gentio que impedisse a pregação do Evangelho, ou que deixasse de defender vidas e fazendas dos vassalos do rei, ou impedisse o comércio, ou se

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negasse ao real serviço ou pagamento de tributos. Tão elástica definição de guerra justa seria, às instâncias do padre Antônio Vieira, atalhada pela lei de 1655 (MALHEIRO, 1976, p. 187-188), que por sua vez restringia o cativeiro lícito a quatro situações: quando fossem tomados em justa guerra, que os portugueses lhe movessem [...]; ou quando impedissem a pregação evangélica; ou quando estivessem presos à corda para serem comidos; ou quando fossem rendidos por outros índios, e os houvesse, tomado em guerra justa, examinando-se a justiça dela [...] (citado na lei de 1º de abril de 1680 sobre a Liberdade dos Índios do Estado do Maranhão – reproduzida em CARVALHO, 1983, p. 90).

Jacinto de Carvalho, Visitador Geral da Província do Maranhão da Companhia de Jesus, em sua resposta ao procurador das Câmaras de Belém e São Luís, datada de 16 de dezembro de 1729, oferece a sua versão de como funcionavam as guerras justas: Propõe o governador que tal e tal nação matou tantos Portuguezes, que é nossa inimiga, e que tem commettido estas e aquellas injurias; manda devassar pelo ouvidor geral, tirão-se testemunhas, e depois entrão os prelados a votar, e sendo os seus votos de que justamente se lhes pode fazer guerra, despede о governador um cabo com soldados, e Índios das aldêas, a fazer a dita guerra; os que menos padecem nesta guerra são os culpados; porque estes como se temem, fogem ordinariamente para o centro dos matos, e de tal sorte se escondem, que são muito poucos os que se podem captivar: mas porque dos Indios captivos destas tropas, se hão de tirar os gastos que fazem, e além disso, joia para o cabo e officiaes da mesma tropa, para o general, para o capitao-mór, para o ouvidor, as nações mais próximas, que como innocentes não temião tal raio, são as que pagão os gastos, e as que servem de joias, porque as trazem captivas, as repartem, e as vendem como escravas legitimas. Isto fez о capitäo-mor João de Barros Guerra, indo fazer guerra aos Torazes, que captivou mais de duas mil pessoas das nações circumvizinhas. O mesmo fez o capitao Diogo Pinto da Gaia, indo por cabo de urna tropa de guerra que mandou Bernardo Pereira de Berredo, indo em pessoa a fazer guerra aos barbados, que por não poder captivar um só, antes ser obrigado com a tropa a fugir vergonhosamente; tendo por desdouro apparecer no Maranhâo sein presa alguma, captivou urna aldea de Indios de nação Gajajara, que nunca offendeu a Portuguezes, depois de os pobres Indios receberem a tropa na sua aldêa, e a sustentarem três dias com farinhas e о mais que tinhão (MORAIS, 1858-1863, p. 327-328).

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A lei de 1680 (que restaurou a de 160912) foi abertamente desafiada pelas pressões dos moradores de São Luís do Maranhão e Belém do Pará, em um quadro de crescente rebeldia que passaria por duas expulsões dos jesuítas e pelo envio de procuradores dos descontentes a Lisboa13 no mesmo ano de 1680, culminando com a revolta de Beckman no Maranhão (1684). Em setembro de 1684, uma provisão autoriza o descimento privado de índios por moradores que teriam acesso exclusivo à sua força de trabalho por toda a vida desses índios “forros”, mediante pagamento de salário (CHAMBOULEYRON e BOMBARDI, 2011, p. 605). Não obstante, o ponto de vista dos missionários seria em parte vitorioso após a dura repressão da Coroa à revolta antijesuítica de 1684: o Regimento das Missões de 1686, colocando os aldeamentos missionários sob o controle espiritual e temporal14 dos religiosos, também deixava em suas mãos o controle de quase toda a mão de obra formalmente livre do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Sob uma série de cláusulas de proteção do trabalho livre e assalariado dos aldeados, chamados de “forros” (como o pagamento mínimo, o tempo máximo de trabalho fora da povoação de origem etc.), o Regimento estabelecia uma repartição dessa força de trabalho em duas partes – o trabalho na própria comunidade e o trabalho para particulares (isto é,

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Na introdução à lei, o então Príncipe Regente D. Pedro lamentava o descumprimento das leis de 1570, 1587, 1595, 1652, 1653 e 1655. A lei de 1/4/1680 estabelecia que, em caso de guerras justas, ofensivas ou defensivas, os índios aprisionados deveriam ser tratados da mesma forma que os prisioneiros nas guerras da Europa e ser encaminhados às aldeias de índios livres e católicos (CARVALHO, 1983, p. 90-92). 13 Os procuradores dos moradores do Maranhão conseguiram mesmo uma lei em setembro de 1684, restabelecendo as “administrações particulares” de índios, autorizando os descimentos por particulares (que repartiriam entre si os índios descidos e usando seu trabalho mediante salário). Essa lei, no entanto, nunca foi executada por causa da rebelião que estalou no mesmo ano no Maranhão (MALHEIRO, 1976, p. 194-195). 14 “[§1] Os Padres da Companhia terão o governo, naõ só espiritual, que antes tinhaõ, mas o politico, & temporal das aldeas de sua administração, & o mesmo teraõ os Padres de Santo Antonio, nas que lhes pertence administrar; com declaraçaõ, que neste governo observaraõ as minhas Leys, & Ordens, que se não acharem por esta, & por outras reformadas, tanto em os fazerem servir no que ellas dispoem, como em os ter promptos para acodirem á deffensa do Estado, & justa guerra dos Certoens, quando para ella sejão necessários” (MATTOS, 2012) .

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para os moradores) e para a Coroa (o Serviço Real). Os missionários teriam aldeias exclusivas para atender às necessidades de sua ordem (uma no Pará e outra no Maranhão), além de 25 índios para cada residência missionária. Essa foi uma solução de compromisso ditada pelas circunstâncias, pois as missões jesuíticas nos domínios espanhóis vizinhos (Maynas e Moxos) não tinham a obrigação de oferecer trabalhadores aos moradores, aspecto lembrado insistentemente pelo padre João Daniel: "São muito populosas estas missões castelhanas, por não terem as pensões das portuguesas na repartição dos índios aos brancos, e ausências de suas casas" (DANIEL, 2004a, p. 400). Observava o jesuíta, de seu cárcere em Portugal, o paradoxo de que no Grão Pará, enquanto gentio pagão, o índio era isento do trabalho compulsório, e ser praticado, aldeado e tornado cristão era o mesmo que obrigar-se a servir aos brancos – o que não ocorreria, segundo ele, nas missões do lado espanhol: Não assim nos domínios espanhóis, porque não entram lá brancos europeus que obriguem e perturbem os índios católicos a seus serviços; e muito menos se obrigam, ou se mandam sair das suas missões para remarem as canoas dos brancos, e os servirem a maior parte do ano (DANIEL, 2004b, p. 57-58).

Mesmo com essas concessões dos missionários, as resistências eram fortes. Representantes das Câmaras de São Luís e Belém continuariam, por décadas, questionando o poder temporal dos missionários e reivindicando a “administração” particular dos índios aldeados. O governador Gomes Freire alegava que faltavam braços para as lavouras do Estado e, em ofício de 13 de outubro de 1685, esgrimia argumentos exemplares dos lugares-comuns dos defensores do cativeiro indígena: Resgatar Índios, que vivem em contínuas guerras, comendo-se uns aos outros, por não haver quem lhes compre os prisioneiros que neste desamparo perdem a vida e a salvação. Grande barbaridade é deixá-los perecer por este modo, quando as razões para permitir-se o cativeiro dos negros da Guiné não são tão justificadas [...]. Poder-se-á comprar cada escravo por quatro ou cinco mil réis, a troco de ferramentas, velórios, e outras bagatelas; e vendendo-se depois por trinta, não só lucrará S. M. um grande avanço, como ficarão os moradores remediados para beneficiarem os seus engenhos desmantelados; o que com índios forros

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jamais poderão conseguir, porque, além de os não haver, sabida cousa é que o trabalho nas suas fábricas só escravos podem suportar. [...] Além de que é de recear que, não podendo os Índios fazer conosco o comércio, busquem para ele os estrangeiros confinantes (apud MALHEIRO, 1976, p. 199; grifos meus).

A extensão da influência de Gomes Freire pode ser medida pelo fato do prólogo do famoso Regimento das Missões de 1686 mencionar expressamente que a elaboração desse documento foi baseada nas informações prestadas ao rei por esse governador, “com tanto zelo, & verdade, como dele confiey sempre”15. Essa influência reforça um aspecto já indicado por Farage (1991, p. 32-33), Arenz (2010) e Mattos (2012, p. 114): o Regimento de 1686 foi uma solução de compromisso que expressava a correlação de forças entre os moradores, os jesuítas e as demais ordens missionárias, os interesses da Coroa, a diocese do Maranhão e os índios. Mesmo assim, em poucos anos dois alvarás ainda modificariam novamente a política indigenista da Coroa. O alvará de 24 de abril de 1688 determinou que os resgates seriam feitos pelos prelados das Missões e à custa da Real Fazenda (MALHEIRO, 1976, p. 198), pagando-se 3$000 de direitos por cabeça de índio. Outro alvará, de 4 dias depois, restabelece os resgates e cativeiros. Em 1691, um perdão geral anistiaria os autores de cativeiros ilegais, patenteando a incapacidade da Coroa de fazer cumprir a legislação de proteção aos ameríndios. Finalmente, uma Carta Régia de 13 de maio de 1721 determinava ao governador do Estado do Maranhão e Grão Pará que se realizassem, “infalivelmente”, tropas de resgates todos os anos, na forma das reais ordens (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 181). Comandantes das fortalezas tinham interesse direto nessas expedições e

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Regimento, & Leys sobre as Missoens do Estado do Maranhaõ, & Pará, & sobre a liberdade dos Indios. - Impresso por ordem de El-Rey nosso Senhor. Lisboa Occidental: na Officina de Antonio Manescal, impressor do Santo Officio, & livreiro de Sua Magestade, 1724, p. 2.

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participavam dos lucros. Ainda em 1786, ao passar pela fortaleza da Barra do Rio Negro (origem da futura Manaus), o naturalista Rodrigues Ferreira atestava que a memória do tempo dos arraiais das tropas de resgate estava viva entre moradores (alguns deles descendentes dos traficantes), e que aquele posto tinha sido um dos mais lucrativos: “Consta que, durante a barbária do monopólio das almas, quando ele fazia o objeto a que se encaminhavam os abusos introduzidos pelas tropas dos resgates, sempre aquela foi uma das comandâncias pingues, para os que a ambicionavam e impetravam” (FERREIRA, 2007, p. 379). A época a que Ferreira se referia, de fato, tinha sido a da intensificação e expansão das expedições de resgate – uma pressão sobre as populações nativas que coincidiu, pelo menos em parte, com uma conjuntura excepcional de alta internacional do cacau entre 1730 e 1735, quando esse produto correspondia a 90% da exportação total do porto de Belém (ALDEN, 1976, p. 120). A demanda por trabalhadores intensificara-se no período, de uma forma que frequentemente era estimulada pelos agentes régios.

1.1.2 Primeira metade do século XVIII: apogeu dos resgates e descimentos

As tropas de resgate tinham poder de polícia no sertão, tendo o seu comandante ordens para prender cabos que estivessem a “fazer peças” sem alvará real e confiscar suas canoas, bem como instruir processo e punir pequenos delitos de integrantes da tropa. Os comandantes dessas tropas podiam requisitar e mesmo tirar à força índios remadores das aldeias missionárias. Ao montar o arraial no rio Negro, fariam tantos “resgates” quanto permitisse o Tesouro dos Resgates, fundo aberto pela fazenda real com essa finalidade. Particulares podiam ser autorizados a acompanhar

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a tropa e fazer resgates em seu próprio nome e com seus recursos, se provassem ter canoas e mantimentos suficientes para alimentar os índios escravizados na longa viagem de volta a Belém, “sem o menor perigo de que possão perecer na viagem por falta de mantimentos, ou por virem tão juntos e amontoados na canoa, que hajão de abater, ou morrer por essa causa”. As tropas de resgate eram incumbidas também de entrar em contato com outras nações e fazer “novos descimentos”, às custas da fazenda real (Regimento que levou o Capitão-mor Jozé Miguel Ayres, cabo da tropa de resgates dessa cidade de Belém do Gram Pará, 31, dezembro, 1738 – in Boletim de Pesquisa da CEDEAM, UFAM, v. 5, n.9, jul.dez. 1986, p. 65-71). Havia significativa diferença entre a violência intrínseca dos resgates, de um lado, e as longas negociações e “práticas”16 exigidas para a realização de um descimento, por outro. Há muitas evidências de que os índios conheciam e conseguiam explorar as possibilidades que a negociação do descimento abria, principalmente a diferença entre ser um escravo e ser um “índio livre, vassalo de sua Majestade Fidelíssima”, ainda que com todos os constrangimentos implicados nessa liberdade relativa. João Acuti, liderança Cahicahi, já conhecendo as práticas de portugueses contra índios aldeados de outras etnias, procurou balizar os limites de sua vassalagem: Certifico eu o Padre João Tavares da Companhia de Jesus, que assistindo eu [...] ao ajuste de pazes, que com os Portugueses fazia o principal da nação Cahicahi João Acuti, Tapuya já ladino, e que fallava bem portuguez, e lingua geral, na presença do ouvidor e capitão-mor, propoz este ao dito principal, que se havia aldear, e ter missionario que havia de ser amigo dos brancos e ajudar na guerra, contra seus inimigos. A tudo respondeu o dito principal que sim (estava tabelião presente). E desandou o dito principal repentinamente, e prorrompeu nestas palavras — Escreve lá (as disse em portuguez) Cahicahi não

“Prática” podia significar diálogo; “praticar” tinha, como uma de suas acepções, o sentido de conversar, “praticar com alguém” (BLUTEAU, 1716). 16

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há de remar canoa; Cahicahi não ha de carregar páo: escreve. E se isentou de ser obrigado a servir; e o dizia com coragem porque já tinha andado na campanha, por tempo de dous annos, e estado no Maranhão muitos mezes, e visto o tratamento dos Indios. O referido juro in verbo sacerdotis. [...] Animdyba, 23 de Julho de 1739 (MORAIS, 1858-1863, p. 378).

Pragmaticamente, o Padre João Daniel explicava poucos anos depois que a negociação dos descimentos, para ser bem-sucedida, não podia ser baseada nos “motivos da outra vida”: Que há um só Deus a quem todos havemos de adorar, e guardar os seus divinos preceitos; que há céu e bem-aventurança para os bons cristãos e inferno para os mais, e semelhantes motivos; nada disto lhes propõem logo ao princípio, mas só interesses temporais, de que nas missões não serão acometidos dos seus contrários, com quem ordinariamente andam em guerras; de que nas missões têm machados, fouces e mais instrumentos de ferro para fazerem as suas roças; e outros semelhantes motivos temporais (DANIEL, 2004b, p. 58).

O ajuste do descimento, portanto, só se concretizava quando se mostrava materialmente vantajoso para as lideranças indígenas. Quando, depois de muitos presentes e negociações, “finalmente se resolvam a sair dos seus matos, e descer para alguma missão, se ajusta primeiro o descimento” de um ano para o outro, para que roças sejam feitas no novo lugar a ser povoado e para que pudessem colher o que tinham plantado na aldeia de origem (DANIEL, 2004b, p. 61). Para evitar fugas, “procuram os missionários descê-los para bem longe das suas terras”, a 15 dias ou a um mês de viagem (p. 62). Para convencer o gentio, os índios bravos, “a melhor indústria de que usam alguns missionários” era fazerem-se acompanhar por crianças ou adultos da mesma nação, afeiçoados aos missionários, “bem nutridos, regalados e vestidos”. Vendo-os assim bem tratados, os gentios da mesma nação poderiam ser mais facilmente convencidos. Mas, confessava o padre, acontecia às vezes dos índios aldeados que levavam consigo fazerem bem o contrário, “dizendo-lhes a

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pensão que têm nas missões de servirem aos brancos, os castigos com que são tratados, e outras práticas com que totalmente os esfriam” (DANIEL, 2004b, p. 62-63). Índios já descidos não raramente procuravam fazer valer seus direitos contra abusos, fossem de missionários, fossem de moradores ou militares, requerendo às vezes diretamente ao rei, como fizeram em 1728 os índios Pedro, Inês e Germano naturaes dos Sertões do rio das Amazonas, em que eles me expozerão que voluntariamente decerão das suas terras como livres e ezentos detodo o captiveiro e que não devião por este respeito ser subjetos a ninguém, nem ser reputados como captivos e que muitas vezes ainda que semelhantes se achem isentos forros os Conventos desse Estado os passão para as suas fazendas sem atenção a serem livres com grande prejuízo de sua liberdade [...] (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 227).17

Mas, se os descimentos eram contratos (escritos ou não) que geravam de imediato vassalos reconhecidos como livres e sujeitos possuidores de direitos, doravante integrados à república, os resgates eram contratos entre os cabos das tropas e lideranças indígenas independentes ou intermediários brancos ou mestiços (cunhamenas, dos quais falaremos mais tarde) que permaneciam fora da sociedade colonial. Nos resgates, porém, os índios trazidos para as vilas, cidades e plantações eram inicialmente objetos – e não os sujeitos – da negociação. Amiúde, porém, quando sobreviviam à dureza da viagem do resgate e dos primeiros tempos de trabalho forçado, recorreram às autoridades para discutir judicialmente a legalidade de seu cativeiro.

David Sweet relata outro caso, o da Índia Francisca (“resgatada” do Rio Negro), que movimenta uma rede de pessoas livres pobres e escravas como testemunhas em um processo por sua liberdade em Belém, também na primeira metade do século XVIII. Vencendo em primeira instância, Francisca teve seu pedido indeferido quando sua “proprietária” (por sua vez mobilizando como testemunhas pessoas mais “respeitáveis”, mas que não tinham conhecimento direto algum do caso) recorreu à Junta das Missões (SWEET, 1981). 17

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A polissemia do termo resgate é plena de significado: “resgatar” é “recobrar, por preço, o que o inimigo tem levado”. Pode-se resgatar prisioneiros ou cativos, escravos ou um parente. Mas também se podem resgatar mercadorias: comprallas a quem he injusto possuidor delas, ou a quem já as tem comprado a outrem; & assim dizemos, Resgatar ouro dos Mouros, & Resgatar Malagueta, [...] ou porque os Mouros comprão os ditos gêneros no sertão, & nos los vendem a nós [...]; ou por ventura, porque os julgamos injustos possuidores destes, & outros tesouros da natureza (BLUTEAU, 1716, p. 279, vol. VII).

O comércio não era, portanto, completamente separado da ação militar. As “guerras justas” e as “tropas de resgate”, continuaram sendo (até meados do século XVIII) portas abertas para prover os moradores de índios escravizados, legalmente ou não. Como já dizia a malograda lei de 1609, o fato de se permitir o cativeiro licitamente em alguns casos restritos acabava sempre abrindo brechas para abusos e excessos. Como se sabe, no modo tradicional de se fazer a guerra, os povos nativos das terras baixas da América do Sul faziam uns poucos prisioneiros. Isso torna pouco plausível que uma única tropa de resgate conseguisse de fato encontrar 600 ou 700 prisioneiros “à corda” (isto é, destinados ao sacrifício ritual), disponíveis para negociação nas aldeias de povos indígenas independentes. O que acontecia, mais verossimilmente, era a formação de um comércio de escravos mais ou menos estável em aldeias independentes que se especializavam nessa atividade e faziam alianças com os cabos das expedições18. Em ofício de 18 de março de 1728 ao governador do Maranhão, Bernardo Pereira Berredo, o próprio rei D. João V comenta com

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De maneira análoga ao que acontecia nos postos comerciais-militares dos holandeses próximos ao Rio Branco, onde traficantes recebiam expedições de índios do tronco Karib que traziam prisioneiros de outras etnias para trocar regularmente por manufaturados dos Países Baixos, ou mesmo entravam na bacia do Rio Branco para procurar ativamente esse comércio (FARAGE, 1991, p. 18; FERREIRA, 2007ª [1787], p. 50).

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naturalidade que se resgatavam habitualmente “escravos do Gentio da Terra, que os maiorais das aldeias costumam vender às tropas de resgates” (CARVALHO, 1984, p. 32). Além disso, “muitas expedições autorizadas como “descimentos, campanhas que visaram persuadir os índios a se deslocarem para um aldeamento, tornaram-se ‘resgates’” (ARENZ, 2010, p. 41). Mesmo quando os resgates eram feitos dentro das regras, havia vícios na repartição dos índios resgatados. Segundo uma instrução régia de 24 de julho de 1730, esses índios, na ausência do governador, vinham sendo repartidos “por pessoas tão pobres que não tem com que pagá-los”, sem se exigir fiador, o que dava azo a que particulares pedissem índios apenas para especular, tornando a vende-los. Assim, determinava que os índios resgatados fossem repartidos somente aos moradores que tivessem lavouras (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 248). Eram tão generalizadas as dúvidas sobre a legalidade do cativeiro de muitos índios em posse de moradores que em 13 de abril de 1734 o rei ordenou que, em caso de incerteza sobre o direito à liberdade, ficavam os índios como “escravos de condição”, pelo prazo de cinco anos, lavrando-se o registro em livro específico: Os Índios em que há dúvida no seu captiveiro se dem de condição para servirem como escravos somente cinco anos ficando no fim deles livres, e para se saber quantos estão com estas condições, [...] sou servido ordenar se matriculem em hum Livro que será entregue ao Procurador dos Índios para que cheia a sua condição os procure libertar, por que sou enformado que sem ambargo das ditas minhas ordens continuão os Índios na escravidão por mais tempo o que está determinado e ainda seus filhos [...] (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 258-259).

Conhece-se, de fato, um “Livro que há de servir para o registro das Canoas que se despacharem para o sertão ao cacao, e às pessas, e das que voltarem com

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escravos, e nelle hão de assinar termo os cabos das mesmas canoas” (MEIRA, 1994), aberto em 1739 e encerrado em 1755. Nele registravam-se as canoas e os cabos que subiam o rio para o sertão, principalmente ao Negro e ao Japurá (uma vez que a guerra contra os Manao tinha eliminado o principal obstáculo para os traficantes portugueses na região poucos anos antes), apresentando licença para fazer resgates e folha corrida. Em 1739, por exemplo, seis moradores apresentaram esses documentos, autorizados a resgatar junto à tropa de Miguel Aires estacionada no Rio Negro um total superior a 165 índios (MEIRA, 1994, p. 22). No mesmo livro são comuns também “termos” que assinam moradores que tinham em seu poder índios cujo cativeiro era de legitimidade duvidosa. Ordinariamente, eram “peças do gentio da terra” que eram trazidas do sertão sem registro, ficando o morador que as apresentava no direito de usar de seu trabalho “de condição”, isto é, “com a obrigação de as doutrinar, e estando instruídas nos Mistérios da Fé, fazer batizallas, e dentro de um anno se obrigará a dar conta do estado em que se achão as ditas pessas” (Termo de 20/12/1739, pp. 23-24). Não poderia vender essas “peças” a pessoa alguma, e se algumas delas morressem, deveria se prestar contas à secretaria do governo do Estado, com certidão do pároco. Amiúde alegavase “não haver língua” (intérprete) para se examinar e interrogar devidamente os índios resgatados e assim determinar a legalidade do cativeiro. O termo assinado pelo morador validava seu poder sobre o índio assim resgatado, que “quando já instruído na Lingua” permitiria o exame de sua escravidão ou liberdade (Termo de 5/4/1740, p. 2619). Na verdade, esse documento mostra na prática como a distinção entre livres e

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Nesse termo, uma das certidões apresentadas é do famoso padre Achiles Maria Avogadri, ou Avogadre, que seria mais tarde acusado por Mendonça Furtado de fornecer certidões assinadas em branco para legitimar cativeiros ilegais.

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cativos não era tão rígida, pois muitas vezes essas condições confluíam, como apontou João Pacheco de Oliveira (OLIVEIRA, 2014, p. 191). Muitos termos oferecem indícios da alta mortalidade de índios resgatados na viagem do sertão a Belém: o soldado Helias Caetano, da tropa de resgates de Miguel Aires, declarou em 31/8/1740 ter saído do Rio Negro com 44 peças, “havendo-lhe fugido seis e morrido cinco” (p. 26). João Pinheiro Maciel chegou a Belém em 5/9/1740 e no mesmo dia declarou ter saído do rio Negro com 14 peças, tendo chegado a Belém com apenas 6. No mesmo dia, José Machado registrou ter saído do rio Negro com 43 peças, chegando a Belém com apenas 14, pagando direitos de oito e ficando com as outras seis em seu poder para apresenta-las quando solicitado, para o exame da legalidade do cativeiro. Em 7/9/1740, Miguel Roiz Meyra declarou ter saído do rio Negro com 12 peças, chegando a Belém com apenas 6. O termo de 16/11/1740 registra que tendo “Amaro Paes baixado do Rio Negro com quarenta e huma pessas”, tinha chegado à cidade de Belém “com vinte e huma, dizendolhe fugirão e morrerão as que faltão” (MEIRA, 1994, p. 37). Não eram raras as perdas superiores a 50%, portanto20. Em todos esses casos, as “peças” que eram apresentadas sem registro ficavam como “índios de condição” (às vezes pelo prazo expresso de cinco anos), de posse dos moradores que os declaravam. Não localizei, porém, documentos sobre o que aconteceu a esses “índios de condição” após vencer o prazo da posse “em condição”.

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David Sweet compara o sofrimento e a letalidade da escravização e do transporte das pessoas escravizadas na Amazônia Ocidental, nas primeiras décadas do século XVIII, ao da Middle Passage, a travessia das pessoas escravizadas da África para a América: “Canoe captains in the oficial trade complained that they often lost a third ou a half of a shipment of slaves during the several weeks’ journey from the Negro to Pará. [... These horrors [...] were comparable to those of the Atlantic ‘middle passage’ of Africans to America, but the slaves of Amazonia were considerably less able to resist them” (SWEET, 1981, p. 284).

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No máximo, alguns termos assinalam a obrigação do declarante em entregar os índios a uma determinada aldeia de índios cristãos após o prazo de cinco anos de “condição” (termos de 2/12/1745 e 6/12/1745; pp. 142-143). Embora esses registros não sejam sistemáticos e exaustivos, são indícios do pesado impacto das tropas de resgate nos sertões dos rios Branco, Negro Japurá e seus afluentes, que deve ser somado ao preço cobrado pelas epidemias e guerras justas que despovoaram enormes extensões da Amazônia.21 Segundo o Padre José Lopes denunciara ao rei em 1729, apenas um quinto dos escravizados chegava vivo a Belém (FARAGE, 1991). O Livro das Canoas registra centenas de “índios de condição” como esses já mencionados, de mais de 68 etnias, oriundos do Javari, do rio Negro e de seus afluentes. Em grande parte, os índios são registrados nominalmente e recebem uma descrição física, atribuindo-se-lhes por vezes a etnia. Os registros até agora mencionados tratavam de regularizar a posse de índios que eram, quase sempre, “boçais”, isto é, recém-resgatados; havia alguns poucos registros de mamelucos e índios “ladinos”.22 Tais termos, análogos àqueles usados para classificar escravos africanos, assim como o termo “negros” para designar os índios, são indícios da tendência dos moradores a assimilar os índios aos negros, como trabalhadores passíveis de escravização. À medida em que se aproxima do final da década de 1740, entretanto, o Livro das Canoas passa a registrar com mais

Analogamente, em São Paulo a mortalidade dos planteis de índios cativos – tratados como descartáveis – era muito elevada. Epidemias constantes de varíola e sarampo dizimavam os planteis e levavam a novas expedições de apresamento (MONTEIRO, 1994, p. 156-157). 22 Segundo John Monteiro, também em São Paulo era fundamental a diferença de valorização “entre os índios recém-introduzidos [pelos apresadores na Vila de São Paulo] e aqueles nascidos no povoado (crioulos) ou plenamente adaptados ao regime (ladinos)” (MONTEIRO, 1994, p. 156). 21

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frequência a entrega de índios “ladinos” em condição e a frisar o caráter de “forros” desses índios, que deveriam receber salários. Isso leva a algumas situações curiosas pois, já estando alguns deles instruídos na fé católica, batizados e mesmo casados legitimamente, obrigam-se os oficiais da secretaria a declarar solenemente que são “livres e isentos de todo cativeiro”, a quem se deveria pagar o “salário na forma do estilo”. Aos vinte e cinco dias do mez de julho de 1749, por ordem do Il.mo e Ex.mo. Sr. Francisco Pedro de Mendonça Gorjão Governador e Cappitam General do Estado forão concedidos a Domingos Pereira Lima oito pessas do Gentio da Terra, a saber Ventura cazado dom Jeronima e [duas filhas] Claudia e Inez e Manoel Francisco e sua mulher Angella/ [sic] Joanna, para o servirem por tempo de trez anos somentes, dandolhe bom tratamento e pagandolhe o seu sellario como he de estilo, e constando do contrario lhe serão logo tirados do seu poder para viverem em outro domisilio que as ditas pessas escolherem por serem livres de sua natureza [...] (MEIRA, 1994, p. 170).

Não era incomum que os moradores apresentassem índios confessando que eram forros e livres de todo cativeiro, devendo por isso pagar-lhes o salário devido. Mas muito mais comuns são os casos em que se registra a dúvida sobre a legalidade do cativeiro: [documento 228] Aos quatorze dias do mez de fevereiro de mil sete centos quarenta e oito nesta Secretaria de Estado aparecerão Francisco da Costa Pinto, José da Sylva de Menezes, o Juiz Ordinário Manoel Correa de oliveira e Ignacio José Pestana; e por ordem do Ex.mo Sr. Governador e Capitão General lhes intimei a resolução da Junta de Missoens de 13 do corrente mez, para que as pessas que se acham em seu poder, nelle se conservassem como em depozito, visto serem feitas no Rio Japurâ em rezão de se esperar resolução de Sua Magestade para se decidir se são ou Não escravas [...] (MEIRA, 1994, p. 166)

Em 1747 o rei D. João V proibira novas tropas de resgate e mandou recolher a que ainda se encontrava no sertão, declarando nulas as licenças que a Junta das

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Missões tinha dado para os cativeiros resultantes dessas tropas.23 Como consequência, uma significativa mudança reflete-se no Livro das Canoas, a partir de maio daquele ano: mesmo sendo registrados como “peças”, são peças que devem ser reconhecidas como pessoas livres e manifestar livremente sua vontade de contratar a venda de seus serviços. Um termo típico desse período é o seguinte: [documento 223] Ao primeiro dia do mez de dezembro de mil sete centos e quarenta e sete apareceo nesta Secretaria o Ajudante de Infantaria desta Praça Antonio Coelho da Sylva, e apresentou trez pessas do Gentio da Terra a saber um mocetão, e duas índias, as quaes pessas lhe havião dado em dotte no casamento que contrahio com Bernarda da Sylva com [corroídas 3 linhas] cujo Requerimento deferio o Ex.mo Sr. Governador e Capitão General, que se averiguasse a vontade das ditas pessas, para conforme a ella se deferir na forma da ley; e sendo ouvidas as ditas pessas, publicamente disseram que por sua livre vontade querião servir ao sito Ajudante e sua mulher (MEIRA, 1994, p. 163).

Não eram escravos, mas tampouco livres no mesmo sentido que os portugueses eram livres. Eram peças que puderam ser dadas como parte de um dote de casamento, como móveis24 ou outros presentes. Helias (índio Baniwa), 18 anos; Lourença (índia Manau), 30 anos; Maria Matilde, 20 anos, com seu filho Thadeu eram “peças”, ainda que forros: deviam receber salário e poderiam, em tese, escolher outro morador a quem servir. Mesmo índios crioulos, cafuzos e mamelucos25 eram registrados no Livro das Canoas como livres e forros, servindo por sua vontade, mediante salário, aos moradores que assinavam os termos. Mas é significativo de sua

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As Instruções Régias e Secretas, passadas em maio de 1751 a Mendonça Furtado, mencionam uma Ordem do Conselho Ultramarino de 21/3/1747, confirmada por resolução de 13/7/1748. Os índios irregularmente escravizados por essas tropas de resgates deveriam ter sido imediatamente colocados em liberdade. Nota-se, ainda, que a tropa de resgate andava pelo sertão afora havia anos, “contra a forma da lei” (MENDONÇA, 2005, p. 69). 24 “Peça, geralmente se toma por qualquer móvel de casa, ou outra obra artificial. Vid. Móvel. Vid. Obra. Boa Peça de prata, ou de ouro” (BLUTEAU, 1716). 25 Índios e mestiços já nascidos nas fazendas, vilas e cidades, não apenas índios recém resgatados no sertão do rio Negro, portanto.

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condição que essa liberdade tenha de ser registrada em um livro especial, ao contrário da liberdade de criados brancos, por exemplo, que não era posta em dúvida. Também é significativo que o mesmo Livro das Canoas tenha sido utilizado para registrar a entrega de mulatos e negros escravos fugidos de Caiena26 a moradores como fiéis depositários. Índios boçais, índios ladinos, índios crioulos, mamelucos, cafuzos livres, negros e mulatos escravos passavam a aparecer sempre como “servidores”; os “moradores” eram os que assinavam os termos de responsabilidade por aqueles. A partir de 1749 (depois da proibição dos resgates, portanto), praticamente todos os termos são de moradores que se apresentavam para registrar como livres os índios que os serviam, comprometendo-se a tratar os índios e a pagar-lhes salários. O sistema dos resgates e das formas de cativeiro indígena (com ou sem título legal), portanto, dava mostras de esgotamento em meados do século XVIII. A Coroa estava prestes a reavaliar e reformular significativamente as relações com as populações nativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão.

1.2 Razão de Estado e Reformas no Estado do Grão-Pará e Maranhão

A entronização de D. José I foi o epítome de uma mudança geracional na elite dirigente portuguesa. Em um curto espaço de tempo, haviam morrido não apenas o rei D. João V como a maioria de seus ministros e conselheiros (MONTEIRO, 2008). O juramento de D. José I (e também o de sua sucessora, D. Maria I) mantinha a tradição da monarquia corporativa:

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Livro das Canoas, documentos 371 e 372, entre outros (MEIRA, 1994, p. 234).

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Juro e prometo com a graça de Deus vos reger, e governar bem, e diretamente, e vos administrar justiça, quanto a fraqueza humana permite e de vos guardar vossos costumes, privilégios, graças, mercês, liberdades, e franquezas, que pelos Reis meus Predecessores vos foram dados, outorgados e confirmados (MONTEIRO, 2008, p. 74 - grifos meus).

O ideal tradicional do bom governo era “administrar justiça”, mantendo os privilégios e franquezas (i.e., as prerrogativas das corporações) e conservando “as coisas em seus lugares”. Nesse paradigma jurisdicionalista, não cabia ao governo mudar o status quo. Mas, como vimos, desde o reinado anterior (e até mesmo antes dele), algumas tensões e transformações estavam acontecendo na monarquia corporativa e polissinodal. Desde o século XVI “uma nova geração de politólogos [...] começa a falar de ‘razão de Estado’ e de ‘soberania’, isto é, de razões e poderes próprios da República, essencialmente distintos das razões e dos poderes dos privados” (SUBTIL, 1992, p. 159). De uma era da “administração passiva”, do paradigma jurisdicionalista, gradualmente transita-se para uma era de “administração ativa”, a do paradigma político de legitimação do poder, inspirado nos cameralistas alemães e na teoria do Estado de polícia francês. “Agora, o governo legitima-se planejando reformas e levando-as a cabo, mesmo contra os interesses estabelecidos” (SUBTIL, 1992, p. 160). A imediata convocação, por D. José, de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, para seu secretariado, seguindo a sugestão de Luís da Cunha (CUNHA, 1976 [1749], p. 27), deu início a um período que foi intensa e apaixonadamente estudado pelas historiografias portuguesa e brasileira. Há que se ter alguma cautela, entretanto, para evitar uma apreciação apressada do caráter

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“iluminista” ou “ilustrado” do ministério de Carvalho e Melo.27 Embora se saiba que houve várias ‘Ilustrações’, com características próprias em cada país europeu, não se pode superestimar o seu alcance ou assumir-se que, em toda parte, tenha representado uma ruptura decisiva em termos políticos e culturais. Em primeiro lugar, a existência de um certo número de pessoas que examinavam criticamente a situação política, econômica, social e cultural de Portugal não levou à formação de uma corrente autônoma, radicada na ‘esfera pública’. Ao invés, muitos dos seus mentores caracterizavam-se pela sua proximidade do poder, o qual procuravam influenciar. Uma vez que a dinastia de Bragança se caracterizou, como se tem insistido, por um certo isolamento cultural, não é de estranhar que muitas vezes as inovações nessas áreas viessem de quem tinha passado pelo estrangeiro. Daí [...] o discutido conceito de ‘estrangeirado’ (MONTEIRO, 2008, p. 60).

Os portugueses influenciados pela cultura das Luzes eram pouco numerosos, desunidos e nunca foram chamados de “ilustrados” na época. Além disso, muitas de suas ideias tinham sido colhidas no arbitrismo seiscentista e nas críticas ilustradas de pensadores de outros sobre a realidade ibérica (MONTEIRO, 2008, p. 60-61). Desde o século XVII, os chamados tacitistas defendiam uma concepção de Razão de Estado como arte de garantir o repouso e a felicidade dos povos, mesmo à custa de infringir o direito tradicional, “em vista de um bem maior, a conservação ou o crescimento do Estado” (SENELLART, 2006, p. 290). O chamado período pombalino, embora sem um plano delineado a priori, resultou em uma prática política na qual a coroa procurou centralizar em si o poder, esvaziando centros concorrentes de poder

27

Por essa razão, o monumental trabalho de Francisco Falcon sobre A Época Pombalina, já falava nos limites políticos da Ilustração, de uma Ilustração “em termos”, um “compromisso tácito entre forças contraditórias”; Pombal, para Falcon, teria uma retórica ilustrada, “adaptada na prática às injunções e possibilidades reais da estrutura social e da conjuntura política”. Ele próprio, Carvalho e Melo, não se reconheceria nos moldes do despotismo esclarecido, como se depreende de seus escritos. Seu modelo era mais o dos ministros franceses do século XVII, como se vê também no seu fiscalismo, nas políticas de fomento à manufatura, no exclusivo colonial etc. (FALCON, 1982, p. 361-372)

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pela “retirada de competências às instituições periféricas”. Essa prática apoiava-se em uma “crença na capacidade da lei para modelar o mundo social”, com influência de modelos seiscentistas, mas usando as ferramentas conceituais e técnicas disponíveis no momento (meados do século XVIII). Somente a posteriori se emprestou alguma coerência doutrinária às práticas pombalinas (MONTEIRO, 2008, p. 126127)28. Multiplicavam-se as “providências” e estas partiam de um “ministério”, isto é, de um governo. Legislava-se profusamente para modificar a realidade existente – eis aí as novidades (pp. 208-210). Àquela altura, tanto em Portugal quanto em outras partes da Europa, passavase gradativamente de uma abordagem pragmática da administração do império (que favorecia a diversidade) para uma abordagem mais programática (HESPANHA, 2010, p. 73-74) e dinâmica, caracterizada pelo princípio da discricionariedade e pelo primado do juízo de oportunidade. A política, a utilidade, a razão de Estado e o arbitrium tenderam a reduzir sua costumeira subordinação à jurisprudência e à ratio típicas do paradigma jurisdicionalista (HESPANHA, 1994, p. 284-285). Mesmo nesse movimento, contudo, os juristas (ou parte deles) tiveram papel essencial, sendo chamados a ajustar o aparato legal e administrativo para responder às urgências do país após o terremoto de 1755 – ou seja, a entrar na política (SUBTIL, 2007). Se no século XVII o conceito de Coroa podia corresponder a um agregado de órgãos e interesses, que não tinha como agir tal como um governo centralizado e unívoco (CARDIM, 2002), o reinado de Dom José I consolidaria a forma ministerial de governo no lugar do paradigma corporativo que vigia até então, “progressivamente

2828

Os leitores de Kenneth Maxwell estão certamente familiarizados com essa interpretação (MAXWELL, 1996).

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suplantado por uma concepção ‘individualista’ no exercício da política” (BICALHO, 2010, p. 365). Seelaender chama a nossa atenção para o fato de que no século XVIII a “polícia” deixa de ser uma atividade marginal do poder real tornando um “conceitosíntese da gestão interna do Estado”. Não mais vinculada somente à manutenção do que se considerava a boa e natural ordem social, agora estava comprometida com a mudança. Torna-se agora um meio pelo qual o príncipe, “dirigindo, moldando e instrumentalizando seus súditos, multiplicava estes e suas riquezas, expandindo as fontes últimas do poderio político-militar da Coroa” (SEELAENDER, 2008, p. 78). O tradicional Conselho de Estado tinha já cedido terreno a um novo modelo mais político de servidor, no reinado de Dom João V. O cargo de Secretário de Estado, livremente disponível pelo monarca e considerado pouco digno pela aristocracia do reino (CARDIM, 2002, p. 51), teria seu prestígio promovido por Dom José. A agilidade nas decisões parecia necessária em um mundo marcado por transformações aceleradas e pela competição cada vez mais intensa entre as potências, A “polícia”, ou uma república “bem policiada”, passava a ser entendida como um ideal a ser perseguido ativamente, sendo legítimo modificar a realidade a fim de

promover efetivamente o aumento populacional, o enriquecimento dos súditos, o progresso cultural, a colonização de regiões abandonadas, a maior integração de indígenas e “cristãos-novos” na sociedade, o surgimento de novas companhias e manufaturas, o disciplinar das camadas populares e o aprimoramento das condições de limpeza e segurança da capital (SEELAENDER, 2008, p. 78).

É inegável que houve uma permanente tensão entre a política programática de modernização a partir do alto – da qual Pombal é exemplo paradigmático na Europa – e a persistência das redes clientelares, de parentesco e da economia do dom ou das mercês, modos de sociabilidade e de estabelecimento de hierarquias com os quais ora o reformismo se confrontava ora tinha que transigir ou usar como meio para atingir seus fins.

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As formulações legais do Estado pombalino eram justificadas como uma aplicação da lei natural, um sistema secularizado que era uma construção lógica na qual a razão, mais do que a fé ou o costume, definia a justiça ou a injustiça. [...] Ainda assim, na prática, os construtores manifestos do Estado foram respaldados pelas redes não-explícitas das relações pessoais, do clientelismo e do interesse próprio. Esse interesse próprio era visto claramente por Pombal como um meio de fortalecer os objetivos do Estado tanto na política econômica como na administração. Ainda assim, para funcionar, isso requeria uma visão que colocasse o interesse do Estado acima dos interesses privados (MAXWELL, 1996, p. 116-117).

De forma bastante convencional, seria Sebastião José que dirigiria, por exemplo, o engrandecimento da “casa”, dos bens familiares. Como primogênito, era de se esperar que sua direção da casa e das decisões políticas fossem acatadas pelos irmãos – o que parece ter acontecido. Suas irmãs foram dedicadas à Igreja. Francisco Xavier de Mendonça Furtado, mais jovem, seguiria carreira militar, sendo indicado para governar o Estado do Grão Pará e Maranhão (1751-1759) e ocupando em seguida o cargo de Secretário de Estado da Marinha e Ultramar. Dos mais novos, José Joaquim morreu jovem, em combate nas Índias; Diogo de Carvalho tornou-se frei e foi estudar filosofia na Itália; Paulo Antônio de Carvalho e Mendonça presidiria o Conselho da Inquisição e o Senado da Câmara de Lisboa29. Nem ele nem Mendonça Furtado chegaram a se casar (MAXWELL, 1996, p. 2-3). As reformas que seriam gradualmente realizadas no Estado do Maranhão e Grão-Pará trariam, tipicamente, as marcas tanto do pragmatismo e das tradições portuguesas, quanto de uma nova orientação programática, baseada na lógica, na razão e em uma suposta lei natural. Em ambas as margens do Atlântico, as práticas governamentais concretas, mais uma vez, foram configurando um novo tipo de Estado (SENELLART, 2006).

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Seria nomeado Cardeal pelo Papa em 1770, mas a notícia chegou a Lisboa depois de seu falecimento.

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1.2.1 Vassalos livres, mas tutelados

A correspondência entre Mendonça Furtado e Sebastião José de Carvalho Melo mostra que as reformas foram amadurecidas durante alguns anos. Em 1751, no início do governo de Mendonça Furtado, ambos estavam ainda tateando o terreno, sob o influxo de várias circunstâncias: A) das determinações do rei D. José no sentido de tornar efetiva a liberdade dos índios, conforme as Instruções Públicas e Secretas30 confiadas a Furtado; B) da constatação de que as relações de trabalho no norte da América Portuguesa eram insustentáveis sob qualquer ponto de vista, tendo levado à resistência ativa e passiva dos povos nativos e a um desastre demográfico com graves consequências fiscais, militares e políticas; C) da avaliação de que o Estado do Grão Pará e Maranhão encontrava-se estagnado economicamente e financeiramente insolvente e D) da intensa e ainda recente polêmica travada em Lisboa entre Paulo da Silva Nunes (procurador das Câmaras de São Luís e Belém) e o provincial da Companhia de Jesus, em torno do poder temporal dos missionários nas aldeias e do enorme poder econômico atribuído a eles. Gradualmente, seria nesse sentido que os instrumentos legais se orientariam para encontrar uma efetividade que as leis de 1609 e 1680 nunca tiveram: o assalto ao poder temporal dos missionários. Em uma representação datada provavelmente de 1729, o procurador das Câmaras de Belém e São Luís requeria que os ditos missionários, nem os seus prelados, usem mais da

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Instruções Régias, Públicas E Secretas Para Francisco Xavier De Mendonça Furtado, CapitãoGeneral Do Estado Do Grão-Pará E Maranhão, 31 de maio de 1751 (In MENDONÇA, 2005, pp. 68-69, vol. I).

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jurisdicção, que tem dos Índios, quanto ao temporal, e que fiquem só com a espiritual que tinhão d'antes, e que ensinem aos Índios das missões a língua portugueza, como também aos moradores, aos que têm livres ou escravos, pelos bens temporais, que resultão aos Índios, e ás republicas daquelle Estado, de a saberem dentro em cinco anos; que os governadores e capitães-generaes, ponhão nas aldêas das missões cabos portuguezes, brancos casados, e bem procedidos, para que estejão nas mesmas aldêas, com seus filhos, e mulheres, e assistão aos Índios nas suas doenças [...].31

Apesar do pedido ter sido indeferido, duas dessas ideias teriam eco vinte e dois anos mais tarde nas preocupações registradas na correspondência entre Mendonça Furtado e Sebastião José de Carvalho e Melo: eliminar o poder temporal dos missionários e impor o uso da língua portuguesa entre a população aldeada. O requerimento de Paulo da Silva Nunes teve repercussão significativa nos anos que se seguiram a 1729. O rei D. João V enviou o desembargador Francisco Duarte dos Santos ao Estado do Maranhão e Grão Pará, “para se informar do governo temporal dos índios e queixas contra os missionários”. O parecer do enviado do rei foi desfavorável às pretensões das Câmaras, pois Ainda que a falta de escravos e operarios neste Estado fosse tamanha como os suplicantes segurão, e a sua pobreza maior do que intentão persuadir, não seria bastante toda a força desta necessidade, e miseria a fazer quebrantar a regra do direito natural, e das gentes, e que seria um acordo que excedería os limites da crueldade se se outorgasse a estes moradores poderem remir os seus apertos, e fundar as suas vantagens na oppressão e ruína dos Tapuyas.32

A representação de Paulo da Silva Nunes tampouco ficaria sem resposta por parte dos jesuítas. Jacinto de Carvalho, visitador geral das missões da Companhia de Jesus no Maranhão, contestou circunstanciadamente aos requerimentos do

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Representação dos Moradores do Estado do Maranhão, assinada por Paulo da Silva Nunes (MORAIS, 1858-1863, p. 299). 32 Cópia da Informação e Parecer do Desembargador Francisco Duarte dos Santos, que sua Majestade mandou ao Maranhão em 1734, para se informar do governo temporal dos índios e queixas contra os missionários (MORAIS, 1858-1863, p. 126).

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procurador das câmaras no mesmo ano de 1729. Ainda em 1755, o jesuíta Bento da Fonseca procurava defender o poder temporal dos missionários sobre os índios (MORAIS, 1858-1863, p. 122).33. O padre alegava que desde 1637, sob Felipe IV, os jesuítas do Maranhão tinham jurisdição e governo temporal sobre os índios do Estado (p. 123), confirmados por sucessivas leis, provisões e regimentos até 1663, quando foi determinado que as aldeias seriam governadas pelos seus principais, sem que os missionários tivessem poder temporal. Mas a partir de 1680 a legislação consagraria o poder temporal dos missionários novamente (até 1755). Nas palavras de Bento da Fonseca, esse poder temporal consistiria simplesmente no seguinte: é só serem os missionários tutores, defensores e curadores dos Índios[...]. O pastor não só apascenta as ovelhas, mas também é próprio do seu offício livrá-las dos lobos. O Padre Vieira, varão apostólico que procurou este chamado governo temporal, não aspirava á dignidades. Bem notorio é quantas se Ihe offerecerão e quanto fugio dellas, e bem se vê que não procurou esta jurisdicção pela honra e ambição de governar Tapuyas e só sim pelos converter e reduzir, e remover os impedimentos de sua conversão. [...] O Padre José da Costa, missionário dos Índios do Perú, diz que seria digno de riso, o missionário que quizesse evangelizar aos índios como às nações políticas. [...] os Indios Americanos são bárbaros e brutos sobre toda a barbaridade, e brutalidade que se tem descoberto no mundo. Os meios que tem mostrado a experiência para os converter, são, primeiro cuidar o missionário em reduzí-los de féras em homens, e depois de convertidos em homens, é que se podem fazer christãos.34

Seguindo o raciocínio de Bento da Fonseca, o poder temporal era pré-requisito para o exercício do poder espiritual, naquelas circunstâncias. Para conseguir a conversão, era necessário na América ter o poder temporal, tanto para trazer os índios à vida política, tirando-os dos matos, quanto para protegê-los da violência dos

Notícia do governo temporal dos índios do Maranhão das leis e razões porque os reis о commetterão aos missionários, e em que consiste о dito governo chamado temporal, que exercitãо os missionários sobre os índios (MORAIS, 1858-1863, p. 122). 34 “Notícia do governo temporal dos índios do Maranhão das leis e razões porque os reis о commetterão aos missionários, e em que consiste о dito governo chamado temporal, que exercitãо os missionários sobre os índios” (MORAIS, 1858-1863, pp. 148-153). 33

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brancos. Sendo tão “bárbaros e brutos”, sem “capacidade nem talento para se governarem”, precisavam de tutores – os missionários. Esse poder temporal (desnecessário quando os catecúmenos são “gente política”), diz Fonseca, é apenas de tutoria, curadoria e proteção, sem jurisdição, pois não subtrai os índios à jurisdição dos magistrados para serem julgados e castigados, nem à do governador para irem à guerra ou trabalharem nas fortificações (MORAIS, 1858-1863, pp. 153-157). Como veremos adiante, a noção de que os índios seriam incapazes de se governar, carecendo de tutela, seria mantida por Mendonça Furtado e levaria a algumas aporias na regulamentação da legislação reformista pós-1755. Ironicamente, uma argumentação muito semelhante à do jesuíta Bento da Fonseca seria usada por Mendonça Furtado para mitigar as Leis de Liberdade, criando a figura do diretor de índios, uma nova espécie de tutor laico que supervisionaria o autogoverno dos índios nas aldeias transformadas em vilas e lugares, “em quanto se conservão na barbara, e incivil rusticidade, em que até agora forão educados” (FURTADO, 1758, § 92). A diferença em relação a Bento da Fonseca, naturalmente, era de que Furtado responsabilizava os próprios missionários – principalmente os jesuítas – pela conservação dos índios nessa “rusticidade”. Cumpria, portanto, remover essa barreira à transformação dos índios da Amazônia em “gente política”.

1.2.2 Mendonça Furtado e a reorganização da força de trabalho

A centralidade do trabalho indígena para a colonização do Grão-Pará estava, naturalmente, patenteada nas fontes do período. As Instruções Públicas e Secretas que Mendonça Furtado levava consigo, ao assumir o governo do Estado do Grão-

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Pará, manifestavam que a sorte do Estado dependia inteiramente dos “negócios pertencentes à conquista e liberdade dos índios”. As Instruções admitiam que houve ao longo dos séculos de colonização algumas nuances e recuos parciais, mas reafirmavam que a Coroa mantivera o compromisso com a liberdade dos Índios a todo o tempo: 3º – Tendo-se permitido o cativarem-se índios, foi preciso reprimir-se o excesso com que se usava daquela permissão, mandando-se publicar várias leis, pelos senhores reis meus predecessores. 4º – Mostrou a experiência que não bastavam as providências dadas nestas leis, e se proibiu geralmente o cativeiro dos índios, por outra do primeiro de abril de 1680; e, passando o espaço de oito anos, fui servido atender às representações em que se ponderavam os inconvenientes que havia na dita liberdade e fui servido permitir, em alguns casos, o cativeiro, pelo alvará em forma de lei de 28 de abril de 1688. [...] 6º – Para conter estes desordenados procedimentos e evitar tão considerável dano, sou servido declarar que nenhum destes índios possa ser escravo, por nenhum princípio ou pretexto, para o que hei por revogadas todas as leis, resoluções e provisões que até agora subsistiam, e quero que só valha esta minha resolução que fui servido tomar no decreto de 28 do corrente, que baixou ao Conselho Ultramarino para que todos os moradores do Estado cuidem em fabricar as suas terras como se usa no Brasil, ou pelo serviço dos mesmos índios, pagando a estes os seus jornais e tratando-os com humanidade, sem ser, como até agora se praticou, com injusto, violento e bárbaro rigor. 7º – Para que os moradores daquele Estado observem inteira e religiosamente esta minha resolução, os persuadireis a que se sirvam de escravos negros, e que, servindo-se de índios, os tratem com caridade e de forma que não experimentem os efeitos da escravidão, mas, sim, que convenham com eles nos preços de seus jornais; e podereis facilitá-los a este modo de cultivar as terras na ocasião presente, em que a epidemia, que matou tantos índios os anos passados, dá ocasião a mudarem de método e facilitar-se a prática que acima vos aponto, com a qual os índios possam gozar da sua liberdade nos poucos que restam daquele contágio.35

Formalmente, não era ainda uma política indigenista inovadora. Desde Vieira e da legislação por ele inspirada, como vimos, buscava-se substituir o trabalho indígena forçado pelo trabalho escravo de africanos. Mas, assim como no século XVII, essa

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Instruções Régias, Públicas E Secretas Para Francisco Xavier De Mendonça Furtado, CapitãoGeneral Do Estado Do Grão-Pará E Maranhão, 31 de maio de 1751 (In MENDONÇA, 2005, pp. 68-69, vol. I).

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idealizada substituição – que permitiria absorver as populações nativas como povoadores e súditos portugueses – continuava tropeçando no alto custo dos escravos africanos que chegavam ao porto de Belém. O trabalho indígena continuava sendo imprescindível, mesmo com os povoadores brancos que naquele momento se enviavam do Reino e das Ilhas do Atlântico para povoar o Grão-Pará36. Conforme as mesmas Instruções Públicas e Secretas, o governador deveria estabelecer em junta os jornais e salários a serem pagos aos operários índios, “atendendo à pobreza e miséria dos moradores” brancos. Recomendava-se especial observância à repartição dos índios, ou seja, ao seu trabalho compulsório para os moradores, ainda que remunerado. Igualmente, ordenava-se que os índios aprendessem ofícios, como se praticava nas missões castelhanas.37 A historiadora Patricia Seed compara as relações entre europeus e povos nativos da América nos impérios coloniais ibéricos, de um lado, e nos domínios ingleses, de outro. Nestes últimos, segundo a autora, o ativo mais valioso era a terra, já que os europeus transmigrados para aquela parte da América respondiam pela força de trabalho com suas próprias famílias. Dessa forma, a política predominante nas colônias inglesas do norte da América foi a expulsão dos índios, para a apropriação da terra pelos europeus. Na América Portuguesa, pelo contrário, o ativo de maior valor era a força de trabalho e não a terra, de modo que os europeus não expulsaram sistematicamente os índios, mas, pelo contrário, buscaram ativa e permanentemente a atração de comunidades indígenas para fixar aldeamentos de povos aliados junto às povoações coloniais (SEED, 2001). As Instruções Públicas e

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As Instruções Públicas e Secretas mencionavam os povoadores (ilhéus e do reino) que deveriam fundar novos estabelecimentos e trabalhar com as próprias mãos na agricultura, sem cair na ociosidade (parágrafo 12). 37 §§ 15º e 16º das Instruções Públicas e Secretas (MENDONÇA, 2005, p. 72, vol. I).

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Secretas insistiam, aliás, na necessidade de “descer e atrair voluntariamente” quantos mais índios fossem necessários ao Estado (§ 8º). Realmente, em carta de 21 de novembro de 1751, Mendonça Furtado afirma que sem os índios “se não pode fazer coisa alguma, por serem os únicos trabalhadores que há nesta terra” (MENDONÇA, 2005, p. 123). Para o governador, o “ódio mortal e irreconciliável” dos moradores para com as Religiões (as ordens regulares missionárias) devia-se ao fato de que os regulares (missionários) eram no Grão-Pará “senhores dos índios, e por consequência senhores de tudo” (p. 124). Como neste Estado não é rico o que tem muitas terras, senão aquele que tem maior quantidade de índios, tanto para a cultura como para a extração de drogas dos sertões, entram todos estes padres, com o pretexto das missões, não só a fazerem descimentos, como eles lhes reclamam, não conforme as ordens de S. Maj. mas, a maior parte das vezes, por meios violentos, indignos, e até faltando à fé que deveram ter com os miseráveis índios com quem contratam; porque a maior parte das vezes sucede trazerem amarrados, não só os Principais, umas até as suas mesmas famílias, com quem estão contratando para os descimentos [...].38

Na década de 1750, no limiar de uma reformulação significativa da regulamentação das relações de trabalho entre brancos e índios no norte da América Portuguesa, o missionário jesuíta João Daniel e o governador do Estado Mendonça Furtado, em campos diametralmente opostos, fizeram seus balanços das expedições de resgate. Apesar do antagonismo político (Daniel escrevia em uma masmorra pombalina, depois da derrota de sua ordem no embate com Mendonça Furtado e Carvalho e Melo), as conclusões de ambos sobre os resgates convergem entre si e

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Carta de Mendonça Furtado ao seu irmão, Sebastião José de Carvalho e Melo, de 21 de novembro de 1751 (MENDONÇA, 2005, p. 125).

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também com o que dizia a esse respeito o Discurso Encomiástico39, panegírico em homenagem a Mendonça Furtado redigido por um antigo funcionário do governo do Grão-Pará – com exceção do estilo mais pomposo e, é claro, do viés antijesuítico de praxe ao tempo do consulado pombalino: convencionaram em Lisboa um detestável arbítrio, que foi o das entradas no sertão com umas caravanas, a que chamaram tropas de resgate; compostas de um capitão, oficiais subalternos, soldados, julgador das escravidões, que era sempre, pela lei, missionário jesuíta, com seu escrivão secular, tudo nomeado pelo governo; mas sempre à satisfação dos padres interessados. Composto assim este corpo monstruoso, porque de duas cabeças, missionário e cabo; se embarcava com fazendas proporcionadas ao gosto dos índios pagãos que governavam as nações de maior força; e se lhes presenteavam a fazer negócio, resgatando de seu poder a troco de gêneros de inferior qualidade aqueles gentios [...]. E na verdade, que naquela conquista este gênero de negociação pelo dolo e abuso com que se fazia não era outra coisa mais que uma abominável rede de iniqüidades com que a infernal astúcia armava a toda a qualidade de almas, tanto eclesiásticas como seculares, que de umas e outras fazia muito copioso lanço para o transporte da sua formidável barca. [...].que de tantos milhões de índios, adquiridos nas Tropas do Resgate, não haveria um só que merecesse a fatalidade de ser marcado com o ferro da escravidão, por não ser nenhum cativo, com a formalidade da lei que o permitia; porque todos, com bárbara impiedade, eram colhidos com traição, amarrados com violência e julgados com iniqüidade, como sempre havia sucedido e modernamente fora praticado por aqueles dois apóstatas do cristianismo, Braga e Portilho e outros seus sequazes, com escândalo total do nome católico (MENDONÇA, 2005, p. 422; 429-430, vol. III).

Braga e Portilho são dois personagens de quem se falará mais à frente neste trabalho. José Gonçalves da Fonseca, autor desse Discurso Encomiástico, certamente falava com conhecimento de causa. Secretário do Governo do Estado desde pelo menos 173740, no ano seguinte já oficiava diretamente ao Secretário de

“Discurso encomiástico em que, para melhor inteligência do seu contexto, se dá princípio pela situação dos estados do Grão-Pará, com notícia abreviada das suas povoações; e se descreve o sistema do seu governo antigo, que de presente foi abolido e reformado”, escrito em 1759 por José Gonçalves da Fonseca, “Secretário que foi daqueles Estados cinco triênios, e ultimamente na mesma Conquista por ordem do soberano, Comissário da exploração do grande rio da Madeira, até às Minas do Mato Grosso” (MENDONÇA, 2005, p. 416, vol. III). 40 REQUERIMENTO de José Gonçalves da Fonseca para o rei [D. João V], solicitando a sua admissão ao concurso de secretário do Governo do Estado do Maranhão e Pará, pois está atualmente a ocupar o referido cargo. Anexo: provisão. AHU_CU_013, Cx. 20, D. 1868. A admiração de Fonseca por Mendonça Furtado não parecia encontrar total reciprocidade. O juízo que dele fazia o Capitão General não era dos mais lisonjeiros: “José Gonçalves da Fonseca, que foi Secretário do Governador João de 39

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Marinha do Reino sobre esses abusos do cativeiro ilegal 41. Durante quase dez anos, na qualidade de secretário de Estado, Fonseca lavrara muitos dos termos de registro das “peças” trazidas pelos cabos das canoas na volta das expedições ao Sertão 42, quando se formalizava o estatuto jurídico desses gentios. Como veremos adiante, esses homens, mulheres e crianças trazidos à força dos rios Negro, Japurá, Branco e respectivos afluentes, integrantes de dezenas de etnias diferentes, amiúde trazidos sem o devido exame a respeito da legitimidade do cativeiro, eram confiados “em condição” aos seus captores, que se comprometiam a pagar-lhes salário e doutrinálos, como vimos anteriormente. Além disso, em razão de seu ofício, José Gonçalves da Fonseca secretariou reuniões da Junta das Missões pelo menos em uma ocasião, em 1741 43. Não era apenas um homem de gabinete, pois conhecia de perto a realidade dos sertões, como vemos em seu relato da viagem de Belém ao Mato Grosso por uma rota então perigosa e inóspita, a Navegação feita da cidade do Gram-Pará até a boca do Rio da Madeira pela escolta que por este Rio subio às Minas do Mato-Grosso no anno de 1749 (FONSECA, 1826 [1749]). Já naquela época manifestava uma forte antipatia em relação aos jesuítas: ao passar pela fortaleza do Tapajós (hoje, Santarém), Fonseca

Abreu, é homem que podia ser de préstimo porque tem uma grande habilidade e juízo: porém, é sumamente orgulhoso, inquieto, e em cujas informações se não pode fazer a mais leve confiança, porque será rara a vez que fale uma verdade; além do que, é aleivoso, e a terra em que ele assistir é impossível que se conserve em sossego” (carta de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, de 21 de janeiro de 1752, in MENDONÇA, 2005, p. 265). 41 OFÍCIO do [secretário do Governo do Estado do Maranhão], José Gonçalves da Fonseca, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar, António Guedes Pereira] sobre as irregularidades praticadas pelo capitão Manuel Caetano no resgate dos escravos e nas relações com os padres das Missões e com os índios da capitania do Pará. AHU_CU_013, Cx. 21, D. 1966. 42 Livro que há de servir para o registro das Canoas que se despacharem para o sertão ao cacao, e às pessas, e das que voltarem com escravos (1739-1755) (MEIRA, 1994, p. 21-168). 43 ASSENTO (cópia) do secretário do Governo do Estado do Maranhão e do Pará, José Gonçalves da Fonseca, que se tomou em Junta de Missões e na qual se propôs um requerimento do vice provincial da Companhia de Jesus, padre José de Sousa [...]. AHU_CU_013, Cx. 24, D. 2270.

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comentava a inutilidade da guarnição para vigiar a passagem de canoas pelo Amazonas, pois várias ilhas a separavam do curso principal do rio; a fortificação “só podia ser conveniente para conter em respeito os Padres missionários das aldeas que há no Tapajós, que são cinco domesticas administradas por Padres da Companhia de Jesus” (FONSECA, 1826 [1749], p. 13). O Discurso Encomiástico em homenagem a Furtado expressava o grau de sua adesão às mudanças implementadas pelo irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo. Segundo Mendonça Furtado, os resgates permitidos pela lei de 1688 e pelo Regimento das Missões de 1686 eram concretizados da seguinte maneira: faziam de modo ordinário cabo a um celerado, e lhe davam por seu segundo cabo a outro de igual procedimento, e se fazia um escrivão da tropa de igual consciência, indo à testa destes homens para julgar as liberdades ou escravidões, um padre chamado missionário, que quase sempre era da Companhia, que com um poder absoluto e decisivo, julgava estas importantes matérias. A estes oficiais seguiam alguns soldados, mas mui poucos, e o resto era um tropel de quantos homens indignos e de vida licenciosa havia por este Estado, e toda a comitiva se ia estabelecer44 em um destes rios povoados pelos gentios, e dali se expediam uns poucos daqueles homens, os quais seguiam dois meios para conseguirem o fim de fazerem muitos escravos. O primeiro: o de irem tentar os Principais com aguardente, velórios45 e ferramentas, os quais até às vezes lhe metiam em casa, por força, para que fizessem guerra aos seus vizinhos com quem estavam vivendo em boa paz, e lhes amarrassem, em conseqüência, as famílias para andarem em troca daquelas bagatelas que tinham recolhido e se não traziam as que os tais homens entendiam que eram bastantes, amarravam os mesmos Principais, seus vassalos e famílias e vinham juntamente com os outros escravos para baixo. [...] A maior parte das vezes, estes mesmos homens seguiam o iníquo meio: antes de apresentarem os escravos para serem examinados, de ou açoitarem a um destes cruelmente, ou de matarem a outro na presença dos camaradas, e de lhes dizerem que, se não respondessem ao missionário como lhes ensinavam, lhes haviam de fazer o mesmo que tinham feito ao outro. Assim atemorizados vinham a exame e eram julgados cativos, não ignorando os examinadores que havia semelhantes procedimentos. Porém, como naqueles juízes não havia algum que deixasse de ter um grandíssimo interesse naquelas escravidões, porque até o mesmo missionário fazia um grande número de cativos para a sua Religião, se não era por paixão

Estabeleciam-se nos chamados “arraiais” (acampamentos das tropas), principalmente no Rio Negro (DANIEL, 2004a, p. 311), e com frequência em missões carmelitas daquele rio. 45 Velórios, bolórios ou avelórios: variantes de um termo derivado “do árabe al-ballEr, ‘cristal’, do grego béryllos, ‘berilo’. Substantivo masculino plural. 1.Contas de vidro; miçangas, vidrilhos. 2. Ninharias, bagatelas” (FERREIRA, 2004). 44

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particular, raras vezes deixavam de ser julgados escravos toda aquela quantidade de índios, que na verdade eram livres [...].46

Dessa forma, segundo o governador e Capitão-General do Estado, despovoavam-se os sertões, cujos índios buscavam refúgio nas nações confinantes (i.e., nas terras de Espanha, França e Holanda). Afirmava ele, inclusive, que tinham chegado a sua presença papéis em branco assinados pelo padre da Companhia de Jesus, Aquiles Maria Avogadri, prontos para serem utilizados como certificados da legitimidade do cativeiro, ao alvitre dos cabos de canoa (MENDONÇA, 2005, p. 372, vol. I). Por outro lado, o padre jesuíta João Daniel, já na prisão em Portugal, depois de passar mais de uma década na Amazônia, descrevia a operação da tropa de resgates de forma quase idêntica à de Mendonça Furtado, com a diferença de defender a honra e a integridade dos integrantes de sua Ordem. Para João Daniel, seu correligionário Antônio Vieira tinha sido o grande incentivador dos resgates, que inicialmente atendiam à preocupação piedosa de livrar da morte os corpos e do inferno as almas dos infelizes prisioneiros das guerras entre as nações nativas, que aguardavam “à corda” pelo sacrifício para serem devorados por seus captores. Diga-se de passagem, João Daniel estende a quase todos os povos ameríndios o hábito da antropofagia, e a descreve como se fizesse parte da dieta local do gentio. Os resgates se faziam à custa da Fazenda Real e dos mais particulares interessados, pois importavam nos provimentos de viveres e “não poucos de bolórios, ferramenta, sal, panos e outras drogas das mais estimadas e apetecidas dos índios”. Os “resgatados” eram vendidos

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Carta de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho, de 10 de novembro de 1752 (MENDONÇA, 2005, p. 371-373, vol. I).

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em praça pública em Belém, pagando-se taxas ao Tesouro “assim para as despesas da tropa, e para se ressarcirem os gastos, que pelas missões se faziam com os novos descimentos a diligências dos missionários, como também para a ereção de novas missões” (DANIEL, 2004a, p. 311-312). Ele detalha melhor o exame que o missionário da tropa de resgate fazia para saber se o cativeiro era lícito. Esse examinador inquiria dos índios o como foram apanhados dos seus inimigos: se em guerra, que tivessem entre si, ou se por assalto inopinado. Se os brancos os induziram a fazer aquela guerra, ou qual fora a causa dela. Se estavam, ou não nos currais para serem comidos dos seus contrários, ou se os brancos os tinham apanhado à força, ou por prática. Se os seus mesmos principais e régulos os tinham entregado aos brancos por troco de algumas drogas [...]. E conforme o depoimento, e rigoroso exame, ponderadas as razões pró e contra, lhe passava o missionário um bilhete, ou registro, em que secundum allegata, et probata o declarava por forro, ou cativo; e juntamente se assignava o cabo da tropa, e com este registro se entregava o índio (DANIEL, 2004a, p. 312).

Daniel não se detém, claro, nos problemas colocados pela infinidade de idiomas da Amazônia, em sua maioria ignorados pelos padres, por mais que tivessem a ajuda de “línguas” ou intérpretes, nem reflete sobre o que os índios “examinados” poderiam pensar da prática cultural da escrita usada pelos europeus nessa situação. Quer fossem julgados legitimamente escravos pelo examinador por estarem à corda para serem comidos, quer fossem declarados livres por terem sido aprisionados em guerra injusta, os índios eram entregues aos moradores para trabalhar – como escravos por tempo determinado ou por toda a vida no primeiro caso, ou como índios “de condição” por tempo determinado e com um salário, no segundo caso (SOMMER, 2005, p. 414). Mas João Daniel registra, analogamente a Mendonça Furtado, os abusos que se fizeram nessas tropas de resgates: os portugueses induziam “aos régulos a darem assaltos uns aos outros” ou “a venderem os seus vassalos”; as tropas de resgates

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atuavam para além dos limites dos distritos designados; “praticavam aos pobres índios, e os instruíam nas respostas” que deveriam dar no exame, sob ameaças de morte (pp. 312-313). Os padres da Companhia, dizia, negavam-se a dar cobertura a tais violências, mas então os pobres índios eram remetidos “a outra Religião” (i.e., a outra ordem missionária), que os declarava como escravos. Estes, e muitos outros tiranos insultos motivaram a total proibição da tropa de resgates no ano de 1750, depois de terem saído, só do rio Negro perto de 3 milhões de índios escravos, como consta dos registros [...]. Basta dizer que havia particulares que tinham já para cima de mil escravos [...], além de muitos que se repartiam e distribuíam para a comarca do Maranhão, e de lá talvez comprados pelos mineiros se distribuíam por todo o Brasil, e Minas. [...] foram inumeráveis os índios que por violência dos moradores se fizeram escravos, os quais com o pretexto, e pela ocasião de irem ao sertão às colheitas do cacau, e mais riquezas, [...] iam amarrar peças, ou índios. E porquanto não podiam na torna-viagem passar as fortalezas, [...] umas vezes subornavam os comandantes para os deixarem passar em paz, outras passavam furtivamente pela outra banda do rio, e de noute, sem serem sentidos [...]” (DANIEL, 2004a, p. 314).

O número de 3 milhões de índios escravizados é provavelmente exagerado, mesmo que se refira a todo o período entre 1615 e 1750. Resgates (compras ou simples “amarrações de índios) passaram a ser proibidos, mas os descimentos (voluntários e coletivos) foram incentivados e fundamentais até o final do século XVIII. Falaremos dos descimentos mais adiante como um dos aspectos mais decisivos para a demografia de grande parte do Grão-Pará e para as relações entre lideranças indígenas e agentes régios. Além de considerar os resgates ilícitos, imorais, anticristãos e contrários à razão de Estado, Sebastião José de Carvalho e Melo reputava-os muito inferiores às necessidades da economia do Estado, como lembraria a seu irmão, Mendonça Furtado: segundo os dados oficiais de que ele dispunha, em 35 anos (de 1688 a 1723) os resgates não tinham repartido mais que 405 índios no Maranhão. Desta vez, o

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número é provavelmente muito subestimado47, pois exclui os índios escravizados que entravam ilegalmente em Belém, como apontou corretamente João Daniel. Para Carvalho e Melo, nas novas povoações dever-se-ia proceder com os índios da mesma forma como se procedia com os povoadores açorianos: distribuir terras e ferramentas e “sustentá-los no primeiro ano enquanto não derem frutos as terras que se houverem repartido”. Eles serviriam por algum tempo para depois também serem servidos, como ocorrera entre os diferentes povos da Europa.48 Nádia Farage (1991) chama a atenção para o fato de que o parágrafo 27 das Instruções Públicas e Secretas que ditavam as linhas mestras do governo de Mendonça Furtado já determinava, em 1751, que se procurasse povoar todas as terras possíveis tanto com índios quanto com os povoadores (subentendia-se, com os ilhéus açorianos que já estavam em Belém naquele momento): Recomendo-vos muito que procureis atentamente os meios de segurar o Estado, como também os de fazer florescer o comércio, para se conseguir o primeiro fim, além do que fica dito a respeito de se aldearem os índios, especialmente nos limites das Capitanias e tereis o cuidado quanto for possível, que se povoem todas as terras possíveis, introduzindo-se novos povoadores.49

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Nádia Farage (1991) sublinha a extrema raridade de documentos que registrem o total de índios trazidos pelas expedições de resgate, o que pode ter sido intencional – a despeito da exigência regimental de que o cabo da tropa de resgates mantivesse um livro de registro de todos os resgates (Regimento que levou o Capitão-mor Jozé Miguel Ayres, cabo da tropa de resgates dessa cidade de Belém do Gram Pará, 31, dezembro, 1738 – in Boletim de Pesquisa da CEDEAM, UFAM, v. 5, n.9, jul.dez. 1986, p. 67). Portanto, como demonstraram Farage e também Marcia Mello (MELLO, 2009, p. 288-303), as tropas de resgate oficiais eram principalmente uma forma de legitimar os resgates particulares que eram autorizados paralelamente a ela: somente de 1722 a 1728, segundo um levantamento oficial realizado a pedido do ex-governador João da Maia da Gama, foram registrados 3.296 índios resgatados, dos quais 3023 eram índios resgatados por particulares que acompanhavam essas tropas oficiais, rendendo mais de 11 contos de réis à fazenda dos resgates (certidão passada pelo Escrivão dos Contos da Capitania do Pará, Alexandre Camillo de Azevedo, em Belém, a 24/9/1729. IN: MORAIS, 1858-1863, pp. 296-297). 48 Carta de 13 de maio de 1753 (MENDONÇA, 2005, p. 492-494, vol. I). 49 Instruções Régias, Públicas E Secretas Para Francisco Xavier De Mendonça Furtado, CapitãoGeneral Do Estado Do Grão-Pará E Maranhão, 31 de maio de 1751 (In MENDONÇA, 2005, pp. 68-69, vol. I).

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Não há razão para duvidar que o ministro Carvalho e Melo e seu irmão Mendonça Furtado, sob as ordens de Dom José I, assim como muitos agentes régios atuando no Estado do Grão-Pará e Maranhão, estivessem genuinamente comprometidos com a eliminação de todas as formas de escravização dos ameríndios. Mas não necessariamente teriam todos as mesmas ideias sobre como se atingir esses objetivos. Sabia-se que havia abusos e cativeiros ilegais mas, pragmaticamente, admitia-se também que era impossível simplesmente retirar os trabalhadores índios da posse dos moradores brancos – o que paralisaria completamente a economia daquelas conquistas e poderia provocar desordens semelhantes aos motins antijesuíticos do século anterior. Dessa forma, Mendonça Furtado e Sebastião José de Carvalho e Melo elegem a firmeza, a prudência e a discrição como linhas de conduta, em sua correspondência, sempre que se referem à questão do trabalho indígena. Ao chegar a Belém e tomar posse do governo, em setembro de 1751, Mendonça Furtado disse não ter encontrado “mais que pobreza, miséria e confusão” naquele Estado: as fortalezas todas arruinadas, oficiais militares “estropiados, velhos e ignorantes”, soldados sem disciplina, o erário e as rendas reais extintos, ausência de corporações de oficiais mecânicos, estando os únicos artesões presos às ordens religiosas.50 As rendas da alfândega de São Luís, explicava ele, tinham sido arrematadas por aproximadamente 5 contos e meio; as de Belém, por 3 contos e meio.51 Segundo as pessoas experientes então consultadas pelo governador, as

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Carta de Mendonça Furtado ao Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino, Pedro da Mota e Silva, de 2 de dezembro de 1751 (MENDONÇA, 2005, p. 140, vol. I). 51 Portanto a arrecadação das duas alfândegas do Estado, somada ao dízimo, não chegava a 15 contos de réis em 1751. A título de comparação, uma única propriedade de um alto funcionário real em Portugal, a Quinta de Pintéus, do desembargador Gonçalo José da Silveira Preto (do Conselho

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rendas da primeira tendiam a crescer, dado o dinamismo do comércio com os estabelecimentos no sertão, que alcançavam São Félix e Natividade 52 e Moxa e Pastos Bons53, mas as rendas da alfândega de Belém, pelo contrário, tendiam a cair, pois quase todos os estabelecimentos no sertão do Pará eram aldeamentos missionários, cujos produtos exportados não pagavam direitos. A arrematação dos dízimos, no mesmo ano, mal ultrapassara os 5 contos54. Em 1753, o governador conseguiria elevar o valor da arrematação dos dízimos da capitania do Pará para 13 contos por dois anos55, seguindo a estratégia de dividir a arrematação por freguesias, como tinham aconselhado os práticos da terra56. Mesmo assim, as dificuldades financeiras eram tão graves que em outubro daquele ano o governador informava ao Secretário de Estado Corte-Real estarem os ordenados dos “filhos da folha” atrasados em nove meses, um valor que importava em 13 contos de réis 57, fora as outras despesas do Estado. Depois de começar a reorganizar o governo, de examinar a situação da defesa militar e das finanças e de tomar algumas medidas mais urgentes em São Luís e Belém, o governador do Estado explicava em carta ao rei D. José que, tendo examinado os regimentos então em vigor que tratavam dos índios, concluíra que o

Ultramarino), era avaliada em 80.000 cruzados (32 contos de réis) em 1773 (http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=3167; acesso em 12/1/2016). 52 Atualmente, estado do Tocantins. 53 Hoje, estado do Piauí. 54 Carta de Mendonça Furtado a Gonçalo José da Silveira Preto, de 4 de dezembro de 1751 (MENDONÇA, 2005, p. 146-147, vol. I). 55 1753, Novembro, 20, Pará. OFÍCIO do governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Diogo de Mendonça Corte Real, enviando os nomes dos contratadores que aumentaram o valor dos dízimos por freguesias naquela capitania. Anexo: ofício (2ª via) e termos de arrematação. AHU_CU_013, Cx. 35, D. 3290. 56 Carta de 9 de janeiro de 1752 a Diogo de Mendonça Corte-Real (MENDONÇA, 2005, p. 253, vol. I). 57 Carta de Mendonça Furtado ao Secretário de Estado Mendonça Corte-Real, 25/10/1753 (Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará, tomo I, 1902, p. 68-71).

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procurador de índios58 deveria ser independente tanto dos leigos quanto dos missionários. Esse cargo representava sem dúvida uma função chave, como defensor das liberdades dos índios. Por essa razão, explicava o governador, o Procurador merecia sem dúvida toda deferência, atenção e respeito dos magistrados, lugar destacado nas Juntas de Missões. O ordenado de 200$000 por ano não era alto para uma função que, se bem executada, seria “sumamente odioso, não só com os Seculares, mas também com as mesmas Religiões”. O problema, rematava, era encontrar recursos para pagá-lo. Assim, finalizava a carta sugerindo que parecia conveniente que sendo os Índios vassalos de V. Maj., e tendo gasto com eles tantas quantias em descimentos e mais despesas a seu favor, hajam de reconhecer a sua obrigação de vassalagem, pagando-lhe um limitadíssimo Tributo, o qual pode ser o de trabalharem cada índio dois [...] dias só, no ano, para V. Maj., e reduzido este trabalho à meia pataca, paga em dinheiro, ou nas drogas do sertão59.

Portanto, embora já fossem considerados vassalos do rei de Portugal havia muito, os índios não pagavam tributos. Mendonça Furtado propõe um tributo anual de 160 réis por ano para cada índio (lembremo-nos de que a remuneração mínima para os índios equivalia a 200 réis por mês e que a moeda tinha sido introduzida no Estado há menos de dois anos). Em uma longa carta de 21 de novembro de 1751, Mendonça Furtado organiza para seu irmão as ideias que tinha consolidado sobre o Estado do Maranhão e GrãoPará. Os vastíssimos sertões eram “povoados de inumeráveis gentios de diversas

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De acordo com o Regimento das Missões de 1686, em seus parágrafos 2º e 3º, deveria haver um Procurador dos Índios em São Luís e outro em Belém; o Superior dos Jesuítas em cada capitania indicava dois nomes, dos quais o governador indicava um e comunicava a escolha ao próprio rei. Ainda segundo o Regimento, o procurador em São Luís teria 4 índios a seu serviço, e o de Belém, 6 (REGIMENTO, & Leys sobre as Missoens do Estado do Maranhaõ, & Parà, & sobre a liberdade dos Indios. - Impresso por ordem de El-Rey nosso Senhor., 1724). 59 Carta de 25 de abril de 1751 (MENDONÇA, 2005, p. 101-102, vol. I).

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nações, que, à exceção de alguns que vivem de corso, que são mui poucos, são de gênio dócil, fáceis de persuadir e sumamente hábeis para todas as artes que lhes quiserem ensinar”; grandes tesouros estavam ainda incógnitos nessas vastas conquistas e infinitas almas estavam se perdendo nessas lonjuras. Ainda assim, o Estado encontrava-se na mais completa ruína e “não só se não tem convertido o gentio da terra, mas que, contrariamente, muitos cristãos têm não só tomado os costumes dos gentios, mas ainda têm seguido os seus,” entrando nessa conta muitos eclesiásticos (MENDONÇA, 2005, p. 110). Se era tão fácil converter e associar os povos nativos ao Império, o que estava acontecendo de errado? Já nessa carta datada do primeiro ano de seu governo, o capitão-general atribuía as dificuldades do Estado do Maranhão e Grão-Pará a dois fatores principais e associados entre si: o ensino da Língua Geral (“gíria inventada para confusão e total separação dos homens e em notório prejuízo da sociedade humana”, segundo Mendonça Furtado) e o poder temporal dos missionários sobre as populações indígenas aldeadas. Segundo o raciocínio do governador e capitão-general, as extensas prerrogativas de poderes espirituais e temporais haviam sido “extorquidas” ao rei após as “alterações do Maranhão” em 1684, que chegaram ao ponto de expulsar os jesuítas. Informando mal ao monarca, a Companhia de Jesus teria obtido essas prerrogativas no Regimento das Missões de 1686 e ainda delas vinha abusando desde então, não vindo as reais ordens a surtir outro efeito que não dar-se às Religiões, com título corado, a soberania e governo despótico que elas muitos anos tinham arrogado a si, e ficarem os povos gemendo debaixo do peso em que os tem posto a ambição e orgulho dos regulares, que, principiando em geral virtude e zelo da religião, têm acabado no abominável vício da avareza, ficando assim não só em guerra civil com os povos, mas até as mesmas Religiões entre si, umas com as outras [...] (MENDONÇA, 2005, p. 112).

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A atitude antijesuítica de Sebastião José de Carvalho e Melo e seus colaboradores é sobejamente conhecida, mas ainda assim é necessário compreender os argumentos assestados por Mendonça Furtado nessa extensa carta. Ignorando os padres as ordens régias para que a língua falada nos aldeamentos fosse o português (e nas críticas desta carta ele não faz muita distinção entre inacianos, capuchinhos, mercedários ou carmelitas), e proibindo-se que qualquer branco ou mameluco ficasse nas aldeias mais que de passagem, garantia-se (sempre segundo Mendonça Furtado) que “nem justiça, nem rei” fossem aí conhecidos. Nos aldeamentos, para escândalo do governador, a conversão era extremamente superficial: “passados os primeiros anos em que vão os rapazes à doutrina, em pegando no remo já não cuidam em missa, confissão ou outro algum sinal de católico; o ponto está em que conduzam os gêneros pertencentes aos Regulares” (pp. 112-113). Para adicionar um pouco de heresia às acusações, afirmava o governador que os regulares “tem chegado ao precipício de [...] admitirem a pluralidade dos s pela falta que nela [na língua geral] há de vocábulos”. Explicava ele que “Tupana” seria Deus “na tal gíria”; Açu é grande e Mirim é pequeno, “e são os ditos índios educados para explicarem Deus dizendo Tupana Açu = Deus grande; e os santos, suas imagens e verônicas Tupana Mirim = Deus pequeno” (p. 113). À justificativa dos missionários (de que o Papa Alexandre VII tivesse determinado que os missionários usassem a língua do país aonde fossem pregar o Evangelho), retorquia Mendonça Furtado que a Língua Geral não era nem a língua da maioria dos povos convertidos no Grão-Pará nem dos missionários, mas uma língua inventada. Essa era uma meia verdade. As línguas do tronco Tupi na bacia amazônica (que serviram de base para a padronização da Língua Geral Amazônica – LGA), ao contrário do litoral do Estado do Brasil, eram de fato minoritárias. Esse fato reforça a

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tese de Andrea Daher de que os principais fatores para a adoção da LGA, de base Tupi, não foram demográficos ou pragmáticos, como uma leitura anacrônica faria supor, mas de ordem teológica – o dom das línguas como carisma e sinal de vocação missionária, a necessidade de reescrever a língua e não utilizar simplesmente uma língua já existente mas “sem polícia”, pois era necessário torna-la uma língua apta à conversão e, claro, o princípio missionário jesuítico da acomodatio (DAHER, 2012, p. 71-83). Estima-se que, no século XVI, de 718 grupos linguísticos conhecidos na Amazônia Brasileira, 130 eram do grupo tupi (FREIRE, 2011, p. 51). Sendo o tronco linguístico mais numeroso (ainda que não majoritário) e mais conhecido dos portugueses que ali chegaram no século XVII, o tupi é que serviu de base para a língua franca da colonização no Estado do Maranhão e Grão-Pará. “Na documentação histórica do período colonial, a expressão língua geral tem sentido mais amplo, designando línguas usadas em vastas extensões territoriais ou, no caso do Brasil, línguas aparentadas da família tupi-guarani”, entre as quais podem ser incluídas a Língua Geral Paulista (LGP) e a Língua Geral Amazônica (LGA). As forças portuguesas que assumem o controle de São Luís e fundam Belém, na segunda década do século XVII, são compostas, em sua maioria, por soldados, lavradores e índios que já eram bilíngues, pois falavam uma língua de base tupi; por outro lado, “o primeiro povo com quem se defrontaram – o Tupinambá – era também de origem tupi”. Esse idioma era falado desde o litoral do atual Pará até a foz do rio Tocantins, pela margem direita do Amazonas (FREIRE, 2011, p. 58-59). A grande maioria dos povos que os missionários iam gradualmente convertendo, “descendo” e “reduzindo” no Maranhão e no Pará contavam-se entre aqueles que os portugueses (tendo aprendido algo do etnocentrismo tupi do litoral do

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Estado do Brasil) chamavam genericamente de tapuias, ou seja, não-tupis. Ao padronizar na Amazônia o tupi para as finalidades catequéticas, criando o que chamamos de LGA (Língua Geral Amazônica) os jesuítas se valeram dos trabalhos já iniciados no Brasil e prosseguiram com o método ali seguido de tupinização dos grupos tapuia. À medida em que novos contingentes de povos indígenas descidos eram incorporados continuamente às missões (seguidamente açoitadas por mortíferas epidemias de varíola), a LGA foi se transformando como qualquer língua viva, originando duas variantes: a LGA escrita nos textos padronizados dos missionários e a LGA falada por brancos e tapuia não-falantes nativos do tupi (BARROS, 2003). Em outras palavras, se a Língua Geral era, realmente, imposta a grupos não-falantes do tupi, depois de 200 anos de uso no Brasil e 100 anos no Maranhão e Grão-Pará ela já era uma língua viva, falada cotidianamente pela maioria da população dos domínios portugueses naquelas partes da América. Mendonça Furtado assimilava, um tanto retoricamente, os índios livres aldeados aos que se encontravam “em cativeiros particulares” nas cidades e plantações, como se fossem todos escravos, com a diferença de que “estes, em recorrendo às justiças, logo são julgados livres e ficam em sua plena liberdade; pelo contrário os aldeanos, em falando de liberdade, são pela mesma justiça metidos no duro julgo de cativeiro perpétuo a que estão condenados”60. Dessa forma, diz o governador, a “aparente liberdade que sempre clamam as Religiões é o mais rigoroso cativeiro que se pode imaginar”. O morador, mesmo que portando uma portaria do governador, conforme as leis vigentes, e ainda que se ajustando em uma aldeia com

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Carta de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, datada de 21/11/1751 (MENDONÇA, 2005, p. 114).

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“um índio seu conhecido”, disposto a acompanhar o morador ao sertão, não pode contratar livremente, pois seria impedido de fazê-lo pelo missionário da aldeia, sob ameaça de ser metido no tronco e açoitado, “não se livrando deste vil castigo nem ainda os mesmos Principais, como infinitas vezes tem sucedido” (p. 115). Outras formas dos regulares coarctarem a liberdade dos índios aldeados, abusando do poder temporal, de acordo com Mendonça Furtado, seriam o “degredo” para as fazendas dos padres e os casamentos forçados com escravas das ordens religiosas, destinados a reputar índios livres como escravos, junto com sua descendência. Todos esses castigos, alegava, eram infligidos “sem ordem ou forma de proceder” nem apelação ou recurso para tribunal algum”. Tampouco entrava o ouvidor em correição nas povoações (p. 117). Em suma, na ótica de Mendonça Furtado, os missionários tinham na prática um “poder absoluto” porque não prestavam contas a ninguém, a não ser ao superior de sua ordem. Arrematava, ironicamente, que os padres tinham criado um novo modo de governar uma república tão grande “sem mais leis ou polícia que o arbítrio de uns poucos padres, que o mais douto não sabe uma questão de teologia” (pp. 117-118). Apesar da hipérbole de Furtado, os padres missionários não poderiam, a rigor, conhecer das causas criminais nem cíveis nos aldeamentos. Nessa mesma carta, Mendonça Furtado apresenta alguns exemplos concretos de abusos. Um índio chamado Manuel, da aldeia de Uricuru (Melgaço), requeria licença para morar na cidade (Belém), em consideração a relevantes serviços que alegava e por ser um homem que já passava dos 60 anos (fora do limite de idade de sujeição ao trabalho compulsório, portanto), “e que desejava viver a seu gosto”. O prior do colégio dos Jesuítas, Padre Júlio Pereira, ficara furioso com a petição e dissera que o índio era um “magaço e que pertencia àquela aldeia, e deveria ir para nela servir a S. M.”. Mendonça Furtado anotava essa reação como prova da “avareza”

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dos regulares. O Procurador dos Índios, que redigira a petição do índio Manuel, conversando com o governador sobre esse assunto, lhe diria que o idoso tinha sido, recentemente, metido em um tronco e “levado muitas palmatoadas” (p. 116). Além dos alegados danos à soberania e às relações de trabalho, o poder temporal dos padres seria também incriminado pelo açambarcamento do comércio das drogas dos sertões, de alimentos, da cal e de serviços especializados – sem, no entanto, pagar impostos por isso. Plantações, criações de gado e artífices eram fartos nas mãos das “religiões” (ordens religiosas), o que lhes conferia um poder econômico considerável frente a moradores sempre representados na correspondência do governador como profundamente empobrecidos e endividados. É preciso assentar que cada Religião [...] forma, em si mesma, uma República; nela se acha toda a casta de oficial; nela há pescadores; nela há os grandes currais e, por conseguinte, são senhoras das carnes, e das pescarias, tanto de peixe como de tartarugas, porque todas são feitas pelas suas canoas e pelos seus índios, sem que haja uma só canoa que sirva ao público neste útil trabalho. As manteigas das mesmas tartarugas são também feitas por ordem dos missionários; finalmente, todos os víveres são das Religiões, à exceção de alguma pequena parte que algum morador, ainda que raro, manda fabricar. Tendo por uma parte as Religiões, dentro dos seus conventos, os oficiais mecânicos não só para se servirem a si, mas aos particulares, sem que haja algum que possa fazer obra que não seja com socorro das comunidades, largando-lhes por grossos jornais os obreiros [...].61

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Carta de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, datada de 21/11/1751 (MENDONÇA, 2005, p. 122). Esse topos da inexistência de uma República voltada para o bem comum, e de cada casa como uma república em si mesma, reproduzia-se desde pelo menos o tempo do Frei Vicente do Salvador e sua História do Brasil de 1627, na famosa passagem sobre o tema: “[...] nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi notar um bispo de Tucuman da Ordem de S. Domingos, que por algumas destas terras passou para a Corte[...]; notava as coisas, e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam: porque não se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas, e outras muitas a casas particulares lhas mandavam, então disse o bispo verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos [...] providas de todo o necessário, porque tem escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se não acha isto a venda” (disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000138.pdf; acesso em 12/01/2016).

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No juízo de Mendonça Furtado, irmão e colaborador de confiança de Carvalho e Melo, para destravar o comércio do Grão-Pará e transformá-lo em uma república bem policiada, era indispensável atacar, portanto, o poder temporal dos regulares. Em uma carta datada de apenas 7 dias depois, também endereçada ao irmão, ele voltava à carga, já envolvido em um parecer solicitado pelo rei para a elaboração de um regimento para o procurador dos índios, “ofício essencialíssimo” enquanto “S. Maj. não for servido mudar o sistema presente” (MENDONÇA, 2005, p. 128, v. I). Era necessário, dizia, que “no dito Regimento se dê ao Procurador uma ideia do modo por que se há de haver para que concorra ao fim de que a quantidade de gente que aqui se perde se reduza a termos de poder vir a ser uma república civil”. 62 Como alcançar isso? Em primeiro lugar, nessa proposta, era necessário “que os índios, depois de civilizados, procedendo no serviço de S. Maj. com honra e fidelidade, sejam habilitados para todas as honras civis” (p. 130). Temos aí uma inovação, pois se desde o início dos estabelecimentos portugueses na América havia uma preocupação em distinguir e conceder privilégios aos líderes nativos (os “principais”), que não deixavam de ser tratados como categoria muito distinta da dos moradores e demais vassalos, agora se estava falando em tratar-se, ao menos potencialmente, do conjunto dos índios de forma simétrica ao conjunto dos vassalos portugueses. Em uma sociedade de Antigo Regime, evidentemente, isso implicava a manutenção dos privilégios de grupos enobrecidos – os principais e demais lideranças, já tituladas como sargentos-

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Carta de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, datada de 28/11/1751 (MENDONÇA, 2005, p. 129).

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mores e capitães em suas povoações. Esses oficiais índios seriam isentos de outras jurisdições que não a do governador “e quando cometerem algum delito sejam processados como militares perante a presença do governador, e se sentenciarem com o seu voto, na forma dos mais militares”, sem que pudessem ser presos por ordem dos missionários (p. 130). O governador sugeria ao rei que, em caso de desrespeito à dignidade dos cargos desses oficiais índios, o missionário perdesse a administração da aldeia, que seria então secularizada. Em sua opinião, essa era “uma boa ocasião de principiar a arruinar o inimigo comum deste Estado, que é o Regimento das Missões” (p. 131). Na mesma semana, prestando contas da execução das Instruções Régias recebidas meses antes, ao Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos, Diogo de Mendonça Corte Real, Mendonça Furtado explicava que a determinação real em “declarar que nenhum índio possa ser escravo, e sejam todos geralmente livres” exigia enorme cautela para tornar sua execução menos violenta “aos povos destas duas capitanias”.63 Nas Instruções Régias, partindo da premissa de que os cativeiros de índios eram irregulares, porque feitos com abuso das leis que os permitiram (como vimos anteriormente no caso da proibição da tropa de resgate em 1747), o rei declarava que nenhum destes índios possa ser escravo, por nenhum princípio ou pretexto, para o que hei por revogadas todas as leis, resoluções e provisões que até agora subsistiam, e quero que só valha esta minha resolução que fui servido tomar no decreto de 28 do corrente [maio de 1751], que baixou ao Conselho Ultramarino para que todos os moradores do Estado cuidem em fabricar as suas terras como se usa no Brasil, ou pelo serviço dos mesmos índios, pagando a estes os seus jornais e tratando-os com humanidade, sem ser, como até agora se

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Carta do governador e Capitão-General do Estado do Maranhão e Grão-Pará Mendonça Furtado ao Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos, Diogo de Mendonça Corte Real, de 30 de novembro de 1751 (MENDONÇA, 2005, p. 133).

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praticou, com injusto, violento e bárbaro rigor.64

Nos parágrafos seguintes, o rei orientava o recém-nomeado governador para que persuadisse os moradores a servirem-se “de escravos negros” e, quando se servissem de índios, tratassem-nos “com caridade” e negociassem o valor dos jornais. A trágica epidemia que dizimara a população indígena nos anos imediatamente anteriores dava “ocasião a que [os moradores brancos] mudassem de método”, de modo a instaurar o novo sistema no qual “os índios possam gozar a sua liberdade nos poucos que restam daquele contágio” (p. 69). No entanto, angustiava-se o governador, se os moradores “de repente se vissem sem os que eles chamam escravos”, as poucas lavouras existentes se extinguiriam; os moradores que não sabiam pescar, nem caçar, morreriam de fome; “os índios, em virtude da sua liberdade, [logo estariam] espalhados por estes sertões, ou talvez em mocambos para o que todos têm propensão”.65 Os moradores, desesperados, poderiam produzir um levante que o governador não teria forças para contrastar. E isso nem mesmo era novo. Em 1652, lembrava o governador, o capitãomor de São Luís tinha chegado à capitania com ordens régias de libertar todos os índios escravizados e, “sem tomar maior conhecimento, ou fazer madura reflexão, na forma por que se devia executar a real ordem que recebera, mandou publicar a liberdade. Como resultado, houve uma sublevação dos moradores que levou a autoridade régia a capitular. O mesmo acontecera em Belém.

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Instruções Régias e Secretas, § 6º (MENDONÇA, 2005, p. 69). Carta do governador e Capitão-General do Estado do Maranhão e Grão-Pará Mendonça Furtado ao Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos, Diogo de Mendonça Corte Real, de 30 de novembro de 1751 (MENDONÇA, 2005, p. 133). 65

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Significativamente, Mendonça Furtado afirmava enxergar duas diferenças entre a situação do Estado em 1652 e em 1751: primeiramente que, um século antes, havia senhores de grossos engenhos e cabedais, dos quais “se devia esperar mais deles a obediência, pelo risco de perderem a Fazenda”; no tempo de Furtado, porém, todos estavam tão empobrecidos que pouco teriam a perder em uma sublevação. Em segundo lugar, continuava, “no ano de 1652, não tinham as Religiões cativo algum, e agora são elas as que, se não têm todos, têm certamente a maior parte, por isso, naquele tempo requeriam a favor da liberdade e hoje, sem dúvida, hão de estar pelo cativeiro” (p. 135). Por todas essas razões (a pobreza dos moradores, a pressuposta resistência dos regulares, a falta de forças militares que assegurassem a obediência dos moradores, a possível fuga dos índios de volta aos sertões, ao invés de aceitarem trabalhar por salários), o Capitão-General explicava ao Secretário de Estado Corte Real que a ordem real para libertar os índios de todo e qualquer cativeiro seria executada “com suavidade e dissimulação”, até que o rei tomasse alguma decisão mais drástica (p. 135). Uma das formas de Mendonça Furtado chegar a uma solução de compromisso temporariamente, entre a ordem peremptória do rei e as necessidades dos moradores brancos que não queriam trabalhar com as próprias mãos, era obrigar estes últimos a reconhecer formalmente a liberdade dos índios que já estavam em seu poder, principalmente em Belém e em seus arredores, e pagar os salários arbitrados administrativamente. Algumas mudanças sutis, imprimindo a marca administrativa de Mendonça Furtado, podem ser percebidas nos termos de compromisso assinados pelos moradores no Livro das Canoas. Começa a ser mencionado o valor do salário: no início de 1752 alguns termos mencionam a irrisória quantia de 8 tostões (800 réis)

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por ano66; mas, a partir de novembro desse mesmo ano, passam a declarar que o salário seria de 4 varas de pano (400 réis) por mês67. Os moradores que recebem os índios para seu serviço (ou que procuram regularizar a situação jurídica desses índios, antes “possuídos como se fossem escravos”, agora confessando que não tinham título dessa escravidão) passam a se comprometer também em educá-los na língua portuguesa e na doutrina católica, quando fosse o caso. Em diversos termos, índios são confiados a moradores para aprenderem um ofício, como os de ferreiro (documento 246, MEIRA, 2004, p. 181), carpinteiro (Alexandre, documento 282, p. 201), pedreiro (João, documento 293, p. 205), ourives (Antônio, 8 anos, documento 306, p. 210) e ferreiro, vestindo-os, sustentando-os, tratando-os como livres para que no fim do aprendizado se tornassem “capazes de servir à República” (Carlos, documento 341, p. 222). A maioria dos termos, entretanto, menciona que os índios serviriam como livres aos seus patrões, sem especificar o ofício. Em alguns casos, diz-se que “servirão como criados”. Os últimos termos registrados no Livro das Canoas são de abril de 1755, ou seja, às vésperas das Leis de Liberdade. As últimas 22 páginas, contudo, foram arrancadas misteriosamente e não podemos mais do que imaginar as razões para esse sumiço – uma delas poderia ser, talvez, a incompatibilidade entre os registros e a nova legislação.

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Um alqueire (cerca de 30 kg) de farinha de mandioca, alimento dos mais baratos e elementares do Estado, podia chegar a custar, em tempos de carestia, dez tostões ou mil réis (carta de Mendonça Furtado ao secretário de Estado Corte Real, 20 de novembro de 1751, in MENDONÇA, 2005, p. 106). Aparentemente esse salário de 8 tostões por ano, que aparece em poucos registros, não era mais que simbólico e com certeza era somado à alimentação dos trabalhadores. Os registros do Livro das Canoas que citam esse valor de salário anual são, entre outros, os documentos 247, 248 e 250, de 15/1/1752 (MEIRA, 1994, p. 181-182). 67 Em 22 de dezembro de 1751, Mendonça Furtado comunicava ao rei que em Junta de Missões havia se arbitrado o salário dos índios em geral “400 rs. por mês, e aos pilotos e proeiros a 600 rs. e aos Oficiais a tostão por dia, e a todos de comer” (MENDONÇA, 2005, p. 189, vol.I).

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Outra linha inicial de atuação de Mendonça Furtado era enquadrar os indivíduos e grupos a quem ele, com ou sem razão, acusava de sustentar o cativeiro ilegal de indígenas, como os traficantes do sertão (os “facinorosos” Braga, Portilho etc.) ou determinados funcionários civis, militares e eclesiásticos: Para se evitarem os contrabandos que continuamente se estão fazendo nos sertões, aprisionando índios não só os do mato, mas até os das aldeias, têm ordem todos os capitães da fortaleza do rio das Amazonas para que vigiem estes contrabandistas que os prendem para não serem comidos, conforme as leis de V. Maj. que há sobre esta matéria. Um destes contrabandistas era um Antônio Correia, a quem os mesmos tapuios que tinha amarrado, mataram e depois de roubarem o que lhes pareceu da canoa, se meteram no mato.68

Ora, ocorreu que os índios do serviço desse traficante, sem saber para onde ir, foram buscar a fortaleza da Barra do Rio Negro69 e foram examinados pelo comandante, que descobriu que tinham sido todos ilegalmente escravizados nos rios Japurá e Solimões, “aonde nunca houve escravos”. Cumprindo as ordens que tinha de prender os traficantes e enviar os índios para viverem livres nos aldeamentos do Pará, o comandante prestou contas ao governador listando os índios e suas etnias. Fez um inventário dos móveis do defunto e remeteu-o para o Tesoureiro dos Defuntos e Ausentes em Belém. No entanto, Logo que o Provedor dos Defuntos e Ausentes recebeu aquela relação, a qual diz que no fim tinha uma declaração que dizia servos ou escravos (porque assim se chamam aqui a todos os índios) que ficaram ao defunto, e lhe não foram entregues, mandara fazer um sequestro nos bens do dito capitão.70

Em outras palavras, dado que mesmo índios livres eram chamados de escravos ou servos pelo fato de serem índios, o Provedor entendeu que se tratava de bens

68

Carta de Mendonça Furtado ao rei, datada de 13 de novembro de 1752 (MENDONÇA, 2005, p. 382). Hoje, Manaus. 70 Carta de Mendonça Furtado ao rei, datada de 13 de novembro de 1752 (MENDONÇA, 2005, p. 383). 69

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móveis subtraídos indevidamente do inventário do defunto e procedeu contra o comandante do forte do Rio Negro. O governador conversou pessoalmente com esse Provedor (que vinha a ser também o ouvidor da Capitania, Manuel Luís Pereira de Melo, empossado dois meses depois do próprio Mendonça Furtado, com quem viria a ter terríveis altercações ao longo de mais de um ano71), entendeu que ele tinha agido conforme a lei, mas que os índios eram livres. Deixou acordado que esses índios seriam trazidos à capital, examinados na Junta de Missões e, se fossem declarados livres, iriam para as aldeias; se declarados escravos, entrariam no inventário. O Provedor e Ouvidor aceitou. Porém o Ouvidor não compareceu na Junta, que votou por unanimidade pela liberdade dos índios que serviam ao falecido contrabandista (que foram encaminhados para a aldeia adjunta à Casa Forte do Guamá no dia seguinte). O Ouvidor, por sua parte, desconsiderou a decisão da Junta e continuou reputando os índios livres como escravos e, portanto, bens móveis do espólio do contrabandista, mantendo o sequestro dos bens do pobre comandante da fortaleza do Rio Negro. Essa era, assim, uma embrulhada que Mendonça Furtado entregava nas mãos do rei para decidir o que lhe parecesse mais justo e mais conforme ao real serviço

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Quase um ano antes, Mendonça Furtado tinha acusado esse mesmo ouvidor do Pará, Manuel Pereira de Melo, de patrocinar o ex-ouvidor do Maranhão em uma sindicância, ao termo de seu mandato, “com uma paixão escandalosa, pública e desordenada”. O mais grave, segundo o governador, é que houvera um escândalo na cidade pelo fato do sindicado ter corrompido e ameaçado testemunhas abertamente, com apoio de Pereira de Melo. O governador era francamente desafiado pelo ouvidor, que lhe “disse ultimamente que na ilha de São Miguel, onde tinha sido Juiz de Fora, fizera depor dois governadores, e que quem tinha histórias com ele ou vivia pouco ou tinha grandes desgostos” Carta ao secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real, de 4 de dezembro de 1751 (MENDONÇA, 2005, p. 150-154, vol. I). O governador o acusava ainda de estar em conluio com o escrivão, constrangendo o povo em uma grande devassa “que importara de lucro para o Escrivão, mais de um conto de réis” – carta de 6 de novembro de 1752 (MENDONÇA, 2005, p. 346-347, vol. I).

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(MENDONÇA, 2005, p. 384, vol. I). Manuel Pereira de Melo acabaria demitido e preso em outubro de 1753, por ordem do rei.72 Além de Antônio Correa, morto pelos índios que tentava escravizar, havia muitos outros contrabandistas com quem Mendonça Furtado teria de lidar. Tratava-se dos cunhamenas, isto é, daqueles sertanistas que se estabeleciam nos distantes sertões ocidentais casando-se com filhas de poderosas lideranças nativas para formar redes de alianças capazes de sustentar militarmente e comercialmente o tráfico de escravos.73 Estruturalmente, essas alianças não eram tão diferentes daquelas que Martim Afonso Tibiriçá fizera em São Paulo no século XVI (MONTEIRO, 1994, p. 17) ou daquelas encetadas pelos “lançados” ou tango-maos, portugueses que se estabeleciam nas povoações nativas da Alta Guiné, funcionando junto com seus descendentes mulatos como intermediários entre africanos e europeus inclusive associando-se aos rituais nativos e falando os idiomas locais (BOXER, 1967, p. 43). João Daniel definia os cunhamenas como “brancos que, esquecidos da sua alma, vão viver com os tapuias, para com toda a liberdade poderem viver gentios, e lhes dão o nome próprio do seu mau ofício: cunhamenas, isto é, marido ou homem de muitas mulheres” (DANIEL, 2004a, p. 380).

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Carta de Mendonça Furtado ao Secretário de Estado Mendonça Corte-Real, 9/10/1753 (Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará, tomo I, 1902, p. 58-59). 73 Aderindo aos juízos fortemente depreciativos dos agentes régios que começaram a combater os cunhamenas na primeira metade do século XVIII, o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis define-os como “Desertores das milícias do Pará e do Maranhão, criminosos fugidos à justiça pública, [que] procuravam o sertão rionegrino, mantendo relações comerciais com os nativos, vivendo licenciosamente, embaraçando a ação das autoridades”, que tentavam combate-los desde uma ordem régia de 23/7/1728. “Infrutíferas as diligências para captura-los, o meio hábil foi o perdão”, tendo Francisco Portilho de Melo e Pedro Braga abandonado seus refúgios e se estabelecendo no Pará (REIS, 1989, p. 84). Na verdade, Portilho de Melo realmente aceitou tornar-se um agente do governador Mendonça Furtado, como antes servira a ordens missionárias, mas Pedro Braga parece ter reincidido no tráfico e acabou nas mãos da Inquisição, como veremos mais adiante.

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Um deles, ainda muito ativo em 1751, era Francisco Portilho de Melo, que havia muitos anos fazia escravos no rio Negro. “A amizade que em todo este tempo tem adquirido com os Gentios, o tem feito poderoso; que me consta ter sujeitado a seu domínio mais de 700 pessoas”, dizia o governador em carta dirigida ao próprio monarca em 2 de dezembro de 1751. Mendonça Furtado acrescentava que precisava ter muita cautela para tratar desse régulo do sertão, pois havia “pessoas poderosas que o favorecem e avisam” (MENDONÇA, 2005, p. 137-138). Em outras palavras, era um “régulo do sertão” que controlava seis aldeias no rio Negro, integrando uma rede de alianças no extremo ocidental do sertão e também redes de alianças na capital do estado. Um adversário formidável e também um especialista em descimentos (SOMMER, 2005) a quem recorreram por vários anos as ordens religiosas missionárias, que mais valia ter como aliado, dadas as modestas dimensões das bisonhas forças militares então disponíveis para Mendonça Furtado74. Em seguida, em carta pessoal ao irmão, Sebastião José de Carvalho e Melo, o governador acusava diretamente os jesuítas e mercenários de favorecerem esse traficante, que os ajudaria a descer índios continuamente para os estabelecimentos missionários e empreendimentos dessas ordens. Enquanto trabalhosamente Mendonça Furtado procurava convencer os moradores a aceitar a liberdade dos índios, aparecia na cidade o jesuíta Achiles Maria Avogadri 75 com 16 canoas

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Somente um pouco mais tarde chegariam dois regimentos de linha, vindos de Portugal, para reforçar a guarnição do Estado. 75 Avogadri tinha sido designado para acompanhar a tropa de resgates de José Miguel Ayres em 1738 e desde então operava no sertão, encarregado de examinar a legitimidade dos resgates (Regimento que levou o Capitão-mor Jozé Miguel Ayres, cabo da tropa de resgates dessa cidade de Belém do Gram Pará, 31, dezembro, 1738 – in Boletim de Pesquisa da CEDEAM, UFAM, v. 5, n.9, jul.dez. 1986, p. 64).

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carregadas de índios trazidos dos sertões – mais de duzentas pessoas, assegurava ele. Estando as Religiões tão publicamente engrossando as suas fazendas de escravos, e os moradores com total proibição, que justamente têm para o fazerem, bem compreenderá V. Exª o efeito que isto produzirá no público e no comum dos homens.76

Mendonça Furtado, claro, transformava retoricamente todos os índios das aldeias missionárias em “escravos” e alegava que Portilho vendia esses índios aos jesuítas e mercedários. As ordens, por seu turno, alegavam que se tratava de descimentos e que os índios eram livres. Já os carmelitas (a quem cabia missionar o Rio Negro, pela partilha de 1693) tinham rogado ao rei D. João V que Portilho fosse expulso do rio Negro, por ser um elemento perturbador na área 77. O próprio Portilho, em carta de 11 de fevereiro de 1753 dirigida ao comandante da fortaleza do registro de Pauxis (Óbidos), declarava que obedecia a ordem de registrar os índios que estavam descendo, mas que dependia mais da vontade dos índios do que da vontade dele, Portilho. A gentilidade, dizia o cunhamena, andava muito alvoroçada e ameaçava desertar ou fazer coisa pior, já que esses índios estavam cientes da fragilidade das fortalezas (MENDONÇA, 2005, p. 429). Ao que parece, Mendonça Furtado enxergou nele a utilidade de um homem experimentado em negociar com índios, encarregando-o de fazer um descimento para fundar uma aldeia de índios junto à vila de Macapá, recém povoada com açorianos (carta do governador ao comandante do Macapá, de 25 de fevereiro de 1753 – p.

76

Carta de 26 de janeiro de 1752 (MENDONÇA, 2005, p. 284-285). REQUERIMENTO (anterior a 28/4/1747) do procurador-geral das Missões do Carmo do Pará, para o rei [D. João V], solicitando que se dê ordem para que o capitão Francisco Portilho se retire do sertão, de forma a se evitarem as perseguições a elementos religiosos e aos índios da zona. AHU_CU_013, Cx. 29, D. 2757. 77

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431). Ele próprio escreveria a Portilho nos seguintes termos, tomando o antigo “facínora” como vassalo emendado e dedicado ao serviço real, podendo mesmo esperar mercês: Há muito tempo que eu esperava que V. M. tomasse a resolução de se tirar de viver entre Feras, adonde com facilidade se esquece a Gente assim dos bens temporais, como dos outros mais importantes, quais são os espirituais. Agora que V. M. tomou esta sólida e importante resolução, ficará por minha conta fazer presente a S. Maj. o serviço que V. M. ultimamente lhe rendeu, e espero que o mesmo Senhor se haja com V. M. com aquela piedade com que costuma olhar para os vassalos que o servem, e que verdadeiramente se arrependem, e abstêm de algumas verduras que cometeram com menos consideração.78

Portilho tornava-se assim um agente e intermediário do governador para o cumprimento das ordens reais, organizando a nova povoação indígena com um clérigo e um mestre-escola pago pela fazenda real para ensinar português; o extraficante convenceria os Principais a enviar os filhos à escola, a tratar bem o padre e o professor, convencendo os índios de que seriam tratados em pé de igualdade “com os vassalos brancos”, participando do comércio e sendo homens livres e dignos de honras. Para se fazer mais digno das mercês do rei, Portilho deveria vigiar atentamente as aldeias da ilha de Joanes (Marajó), “de donde Pedro de Braga, depois de pôr nelas o Descimento que V. M. sabe, tirava os índios pouco a pouco para os vender a diversas pessoas”. Ou seja, Pedro de Braga, outro facínora do sertão e extraficante, também tivera a oportunidade de se tornar um agente do governador e do rei, organizando novas povoações de índios livres, mas perdera a confiança de Mendonça Furtado – que esperava ser diferente o procedimento de Portilho. Aliás, felicitava-o por ter escolhido a melhor hora para se emendar, já que se acabava de

78

Carta do Governador e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão a Francisco Portilho de Melo, 24 de abril de 1753 (MENDONÇA, 2005, p. 451-453).

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publicar um bando mandando castigar todos os cunhamenas do Rio Negro e remover daqueles sertões todos os que não estivessem no real serviço, enviando mesmo uma força militar respeitável para a região. Podemos entender um pouco mais como se deu esse enquadramento de Portilho à nova política para o sertão do rio Negro por um ofício de Corte Real (secretário de estado da Marinha e Ultramar) a Mendonça Furtado, dedicado inteiramente ao problema de como lidar com esse poderoso cunhamena: depois de lembrar como os antecessores de Mendonça Furtado naquele governo tinham tentado em vão persuadir Portilho e seus 700 índios aliados a descer para perto das povoações, mediante promessas de recompensa, ou prendê-lo, informava que o rei decidira que se o governador àquela altura já tivesse colocado Portilho atrás das grades, deveria ter o maior cuidado em descer os índios para os estabelecimentos onde fossem mais necessários. Mas, caso Portilho ainda estivesse livre, “Manda S. Mag.de recomendar a V.Sa. ponha em prática todos os meios que lhe parecerem mais proporcionados para reduzir esse homem com os índios que o seguem para servir a esse mesmo Senhor”, publicando um indulto geral para os criminosos do sertão. Se por esse modo o governador não conseguisse “adquirir o Portilho e mais alguns” semelhantes a ele, dever-se-ia proceder militarmente, tratando-os como rebeldes, agora que o governo em Belém dispunha das tropas necessárias para fazê-lo.79 Esse plano era justamente o que Mendonça Furtado já vinha executando. Um mês antes, em 25 de fevereiro, instruíra o comandante de Macapá a receber Portilho e acomodar as centenas de índios que desciam com ele, para formar a povoação de índios que se

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1753, Abril,28, Lisboa: OFÍCIOS (minutas) do [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Corte Real], para o [governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre as Aldeias de Índios no Sertão do Rio Negro pertencentes a Francisco Portilho. Anexo: informação. AHU_CU_013, Cx. 34, D. 3185.

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tornaria Santana de Macapá, anexa à vila formada por casais das ilhas junto à grande fortaleza de São José de Macapá, fortalecendo as terras do Cabo Norte frente às pretensões francesas. Na mesma carta, determinava que ninguém mais tratasse com Portilho, que deveria ficar isolado e apresentar-se ao governador na capital imediatamente (MENDONÇA, 2005, p. 431, v.I). Na versão do governador, prestando contas ao soberano, o governador e capitão-general explicava seu procedimento a respeito de Pedro de Braga e Francisco Portilho. Ambos eram contrabandistas de índios, mas o primeiro tinha o agravante de ser acusado de 13 homicídios, o segundo não. Mas Portilho tinha um grande número de índios aliados, “os mais guerreiros e desembaraçados” do sertão do rio Negro. Na capital, Belém, os traficantes tinham muitos aliados, pois quase todos os moradores recebiam deles “Tapuyas daquele contrabando” e portanto lhes deviam favores “e tinhão em toda esta Cidade e Capitania tantas vigias quantas são as pessoas que tinhão interesse naquele negócio não escapando deste número nenhuma das Comunidades que aqui estão estabelecidas”.80 Mendonça Furtado avaliou por isso cuidadosamente como deveria lidar com essa situação, na delicada transição da era dos resgates (oficialmente encerrada em 1748) para o estabelecimento de uma institucionalidade laica e diretamente ligada à Coroa no rio Negro. Decidiu então prender Pedro de Braga, que andava naquele momento nos subúrbios de Belém, tendo sido pago para efetuar um descimento para os padres da Província da Conceição. Dissimuladamente, o governador permitiu que Braga e esses

80

Carta de Mendonça Furtado D. José I, 3/11/1753 (Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará, tomo I, 1902, p. 75)

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índios passassem pelas fortalezas do Amazonas até a Aldeia ou Doutrina do Cayá, até promover desordens na Vila da Vigia. Então, diz Mendonça Furtado, me vali de hu dos escandalizados do insulto que ele fes naquela Villa [...] em forma que foy preso por hu ajudante com alguns soldados no dia 3 de Dezembro do anno passado, tendo já hua grande canoa armada como Hyate, [...] para com mais segurança poder navegar estes Ryos, e continuar no seu absoluto e régulo procedimento.81

Quanto ao Portilho, decidiu seguir “diverso sistema”. Os governadores anteriores tinham tentado enquadrar esse poderoso do sertão durante mais de dez anos, oferecendo-lhe patentes e o perdão real, mas Portilho sempre lograra escapar ao poder da Coroa, operando de acordo com suas próprias regras e objetivos. Agora, o recado de Mendonça Furtado era de que primeiro Portilho descesse “com sua gente” para as povoações de Sua Majestade, junto a Macapá, para que somente depois pudesse talvez obter o perdão real. Além disso, tornou público que subiria em pessoa ao rio Negro para impor a nova ordem naqueles sertões. Imediatamente, Portilho resolveu fazer o descimento que prometia havia doze anos, já começando a plantar a maniva para o sustento dos mais de 400 índios que descera para Santana de Macapá. Concluindo, “Ao Portilho perdoey em nome de V. Magestade, e espero que este homem possa ser útil, se acaso não preverter outra ves; porem como está tão perto da Praça de Macapá, a sua guarnição o fará conter em obediência e disciplina”.82 A utilidade da nova aldeia não se fez esperar: logo que chegaram, uma escolta de doze soldados de Macapá, acompanhada por 60 índios do descimento sob o comando de Portilho atacou um mocambo de índios rebeldes “com tal desembaraço que em menos de duas oras prenderão mais de cento e vinte pessoas, fazendo tal

81 82

Idem, p. 76. Idem, p. 78.

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impressão naquela pobre gente o ouvir falar no nome do Portilho [...] que não haver hu que se resolvesse a pegar em armas ou que se atrevesse a defender.”83 Escrevendo ao próprio Portilho em 2 de dezembro de 1753, Mendonça Furtado instruía o outrora “celerado” e ex-“poderoso do sertão”, agora investido do governo dos índios da nova aldeia de Santana do Macapá, com poder de polícia para prender e remeter a ferros para Belém os brancos que ousassem tomar índios da localidade sem ordens do governador. Além de garantir o sustento do pároco e mandar fazer uma igreja decente, Portilho deveria cuidar “com a maior eficácia na civilidade dos índios, fazendo-os trabalhar para que possam vender os seus frutos, e deste dinheiro vestir-se e comprarem tudo o mais que lhes for necessário”. Deveria incentivar os índios a fazer canoas para comercializar seus gêneros em Macapá e Belém “e principiarem a conhecer que coisa é comércio”. Ele poderia servir-se do trabalho dos índios que descera sob o título ilegítimo de escravos, mas pagando devidamente “o seu ordenado como livres e forros que são de sua natureza”. Era responsável também por fazer “toda diligência para lhes ensinar a língua portuguesa não os praticando nunca pela chamada da Terra”, premiando os índios que se tornassem mais correntes ”no nosso idioma” (MENDONÇA, 2005, p. 62-63, v. II). Essa carta, como várias outras de Mendonça Furtado, já antecipa algumas linhas do programa civilizatório do “Diretório dos Índios”. O ex-cunhamena tornava-se um proto-diretor de índios. Era um risco calculado: em outubro de 1754, escrevia para o bispo D. Miguel de Bulhões e Souza84 advertindo que tivesse cuidado com Portilho (MENDONÇA,

83

Idem, p. 79. O bispo Bulhões de Carvalho fora nomeado no ano anterior para assumir interinamente o governo do Estado durante os trabalhos da demarcação determinados pelo Tratado de Madri, dos quais Mendonça Furtado era o Primeiro Comissário. 84

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2005, p. 288-289, v. II). Ao mesmo tempo enviou um bilhete a Portilho intimando-o a deixar a aldeia sob os cuidados de um militar (que recebeu as mesmas instruções que Portilho recebera um ano antes) e acompanhar as diligências das demarcações no rio Negro juntamente com um ou dois principais de sua confiança (MENDONÇA, 2005, p. 295, v. II), onde a rede de alianças de Portilho seria com certeza útil novamente para operar novos descimentos, mapear os rios e assegurar aquelas fronteiras frente aos espanhóis. Para decepção do governador, o bispo comunicava-lhe em 7 de fevereiro de 1756 que estava na iminência de prender Francisco Portilho e seus irmãos Nicolau Portilho e Domingos Portilho, trancafiá-los na fortaleza da Barra e remetê-los ao Reino, por “extraírem” índios continuamente da povoação de Santana, que tinha sido fundada a custa de tanto trabalho (MENDONÇA, 2005, p. 84-86, v. III). Em 1759, o autor do Discurso Encomiástico em homenagem aos feitos de Mendonça Furtado informava em uma nota de rodapé que, dos dois “apóstatas” cunhamenas Antônio de Braga e Francisco Portilho de Melo, “o 1º acha-se nas galés pelo crime de apostasia. O 2º ainda está recluso em prisão” (p. 430). Outro cunhamena teve destino mais afortunado. Manoel Dias também precisou aposentar-se do ofício de traficante baseado no rio Negro. Depois de alguma hesitação, acabou se estabelecendo, junto com seus 200 aliados índios, em uma povoação junto ao forte da Barra do Rio Negro (que tivera triste papel nos resgates e guerras justas que dizimaram a bacia do rio Negro durante 50 anos ou mais), originando um núcleo que se tornaria Manaus. Antes de se formalizar aquela povoação, até chegar aos termos em que agora se acha, não haviam nela mais do que algumas palhoças em que se agasalhavam alguns índios e índias. Sucedeu, porém, que, sendo comandante da fortaleza o tenente Bernardo Toscano de

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Vasconcelos85, desceu do mato, aonde, pelos seus crimes andava refugiado, um Manoel Dias Cardoso, ao qual se não imputavam menos atrocidades do que aos outros dous facinorosos Braga e Portilho, dos quais procedem os nomes que ainda hoje conservam umas duas taperas da parte superior deste rio. Tendo, porém, Sua Majestade, perdoado ao sobredito Manoel Dias e, removendo-se dele o temor que o embrenhava nos matos com perto de 200 índios, recolheu-se com eles para aquele sítio, aonde se situou, passando a casar umas três filhas que tinha; e com uma delas se casou o tenente Crispim Lobo de Souza. Com este princípio de estabelecimento se não contentou aquele comandante; antes, persuadiu quanto pôde ao índio Matias da Costa, hoje principal daquela povoação, que, subindo ao rio Ixié, descesse dele os seus parentes, como assim conseguiu em parte. Por este modo, se formalizou aquele estabelecimento, quanto à povoação dos índios e dos moradores adjuntos, porque, pelo que respeita à fortaleza ali erigida, remonta a outra antiguidade (FERREIRA, 2007, p. 379).

A filha de Manoel Dias era provavelmente uma mameluca (e dificilmente era fruto de um casamento legitimado pela Igreja), mas isso caracteristicamente não é mencionado pelo naturalista Rodrigues Ferreira. O genro de Manoel Dias Cardoso, com todas as relações proporcionadas pelas redes previamente formadas pelo excunhamena e seus aliados, seria comandante da fortaleza por três vezes (FERREIRA, 2007, p. 380) e diretor várias vezes em diferentes povoações. Foi fundamental ali, como em toda parte, a aliança com uma liderança indígena (o principal Matias da Costa) e a renovação dessas alianças: o casamento da filha do cunhamena com um militar, representante da nova ordem no rio.

1.3 As Leis de Liberdade de 1755 e o Diretório dos Índios

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Por volta de 1763, portanto como se vê na folha 42 das certidões apresentadas por aquele comandante: 1786, Novembro, 7, Lisboa AVISO do [secretário do Conselho Ultramarino], Joaquim Miguel Lopes de Lavre, para o fiscal das Mercês, Gonçalo José da Silveira Preto, sobre o requerimento de Bernardo Toscano de Vasconcelos, em que solicita a remuneração pelos serviços que prestou [com tença competente ao posto de sargento-mor de Infantaria]. Anexo: requerimentos, carta régia, informação, sentença, certidões, atestações e aviso (cópias). AHU_CU_013, Cx. 96, D. 7602.

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De forma amadurecida e refletida, como diria Mendonça Furtado, depois de mais de 3 anos de experiência e análise no governo do Estado do Maranhão e GrãoPará, em intensa comunicação com Lisboa, foram outorgadas as chamadas Leis de Liberdade de 1755: em 4 de abril, a “Lei sobre os casamentos com as Índias”; em 6 de junho, a “Lei para restituir aos Índios do Maranhão a Liberdade de suas pessoas e bens”, no mesmo dia da lei que instituiu a Companhia de Comércio do Pará e Maranhão; no dia seguinte, era assinada a “Lei para os índios serem governados por seus nacionais”. O fato daquelas duas leis terem sido assinadas no dia do aniversário do rei D. José86 pode simbolizar um lugar importante reservado ao Grão-Pará entre as prioridades do soberano87. Em 1757, Mendonça Furtado criava o “Diretório dos Índios”, aprovado pelo rei em 1758, mesmo ano em que a lei de liberdade dos Índios do Maranhão era estendida ao Estado do Brasil; finalmente, em 3 de setembro de 1759 D. José assinava a “Lei por onde se expulsão os padres da Companhia”, eliminando a organização identificada por Carvalho e Melo como a maior adversária das reformas pretendidas.88 O próprio texto das leis e outras normas que informam o conjunto de transformações políticas, administrativas, econômicas e culturais no norte da América Portuguesa entre 1755 e 1759 é merecedor de uma análise. Além disso, vamos

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O próprio ministro Carvalho e Melo chama a atenção para esse fato em carta para o irmão Mendonca Furtado, em 4 de agosto de 1755 (MENDONÇA, 2005, p. 464, v. II). 87 “[...] os três diplomas que estabeleciam a Companhia Geral, a liberdade dos índios e o fim do governo temporal das missões, embora já conhecidos meses antes, só vieram a ser assinados a 6 de junho de 1755, no próprio dia do aniversário do rei D. José. Prova, ao mesmo tempo, da relevância atribuída à iniciativa e do ascendente crescente de Sebastião José” (MONTEIRO, 2008, p. 99). 88 COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor. Lisboa: Na Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, v. Tomo I, 1771. FURTADO, F. X. D. M. DIRECTORIO que se deve observar nas Povoaçoens dos Índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não mandar. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1758. Disponivel em: .

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discutir como essas novas normas repercutiram nas vidas das pessoas dessa região, a partir dos indícios deixados em documentos dessa década e das seguintes. O significado das reformas pombalinas tem sido objeto de revisões importantes. Tradicionalmente, havia duas compreensões do significado histórico do Diretório dos Índios: 1. uma política benigna, que pretendia civilizar o índio e inseri-lo na sociedade colonial e proporcionou, posteriormente, uma contribuição para a formação da nação brasileira (Ladislau Baena, 1838; Arthur César Ferreira Reis, 1940); 2. uma estratégia de subordinação das populações indígenas, extraindo delas o trabalho necessário para produção das riquezas da Colônia e fator decisivo no processo de desestruturação e destruição dos indígenas do Vale Amazônico, como se vê em Moreira Neto (1988) ou Hemming (2009). Colin Maclachlan, em um artigo muito influente, acreditava mesmo que os índios tiveram um papel passivo na implantação do Diretório (1972, p. 380), que os teria forçado a assumir os valores dos colonizadores europeus ou a encarar a extinção (p. 359). Sua única forma efetiva de escapar a essa sina seria a fuga (p. 380). Nas últimas décadas, entretanto, muitos historiadores têm procurado escapar a essa dicotomia. A fuga ou a extinção não eram as únicas opções, mas os extremos em uma gama de formas de resistência adaptativa (MONTEIRO, 2001, p. 55-59). Compartilhando desse novo ponto de vista, Mauro Cézar Coelho critica o unilateralismo de ambas as avaliações costumeiras, que assumem o ponto de vista da metrópole (ou seja, supondo a passividade do índio diante das reformas) e concentram-se no texto da lei e não em seus efeitos concretos. Propõe, em vez disso, compreender o Diretório como “uma lei nascida na Colônia formulada em resposta aos conflitos vividos durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Ele representou uma nova associação de interesses, distintas da que havia até então”

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(COELHO, 2005, p. 36-37). Para Francisco Jorge dos Santos e Patrícia Sampaio, com as leis de Liberdade de 1755 e o fim da administração temporal dos índios pelas ordens religiosas, o segmento social indígena começou a ter acesso a um novo modo de governar; ou seja, o modo ocidentalizado de governação [...] [com que] a duras penas as gerações subseqüentes, miscigenadas ou não, foram dando conta dos meandros políticos, jurídicos e administrativos da colônia, que desaguou na sociedade nacional brasileira (SANTOS e SAMPAIO, 2012, p. 91).

Trata-se de um momento de redefinição da organização social e das fronteiras étnicas, decisivo para a formação da sociedade nacional, tal como a conhecemos. A transformação de índios em escravos-mercadorias em grande escala dificilmente poderia se sustentar por muito mais tempo, pois além de ser excessivamente predatória, não era compatível com o principal setor exportador, baseado no extrativismo: “a atividade extrativa, por se exercer em áreas tão amplas e de conformação tão complexa, dificulta enormemente o controle do trabalhador, sem o que a relação escravista torna-se impossível” (COSTA, 2010, p. 178). Por outro lado, as Leis de Liberdade de 1757 não significaram o fim do trabalho compulsório para os índios. Em uma economia escassamente monetarizada, de baixo nível técnico e carente de mão-de-obra abundante, o trabalho remunerado não poderia ser a relação produtiva predominante. Estruturalmente, formas não-livres de suprimento de força de trabalho eram necessárias para a produção comercial em larga escala. “Na Amazônia posterior a 1757 encontramos todas as gradações possíveis entre a escravidão de facto dos índios e o seu trabalho assalariado, predominando formas diversas de parceria e arrendamento” (CARDOSO, 1984, p. 182).

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1.3.1 A “Lei sobre os casamentos com as Índias”

A “lei sobre os casamentos com índias” de 4 de abril de 1755 estabelecia incentivos ao casamento entre índios e brancos, proibindo a discriminação de súditos descendentes de ameríndios, e proclamava que vassalos deste Reino, e da América, que casarem com as Índias dela, não ficão com infâmia alguma, antes se farão dignos da minha Real atenção, e que nas terras, em que se estabelecerem, serão preferidos para aquelles lugares, e occupaçoens, que couberem na graduação das suas pessoas, e que seus filhos, e descendentes serão hábeis, e capazes de qualquer emprego, honra, ou Dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças[...]. E outrossim prohibo, que os ditos meus Vassallos casados com Ïndias, ou seus descendentes, sejão tratados com o nome de Caboucolos, ou outro similhante, que possa ser injurioso [...]. O mesmo se praticará a respeito das Portuguezas, que casarem com índios [...] (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771, p. 211).

As alianças formadas por relações de parentesco e compadrio estavam entre as relações sociais que aproximavam e entrelaçavam os súditos do império, cimentando redes de cooperação e clientela. Também na Amazônia, “A formação de laços de parentesco entre nativos amazônicos e entre nativos e brancos ajudou a solidificar a sociedade local e ofereceu um meio de incorporar forasteiros” (SOMMER, 2000, p. 237). Além do insistente incentivo oficial, a formação de redes de solidariedade baseadas em parentesco real ou fictício não era uma ideia estranha às diferentes populações originárias da Amazônia. João Daniel já lhes censurava o que considerava O abuso de oferecerem as mesmas filhas em sinal de amizade e paz, não só uns aos outros, mas também aos brancos, que os vão visitar às suas aldeias e povoações por razão de algum negócio: porque se os recebem de paz para sinal de que estão persuadidos das suas razões lhes entrega o cacique, ou principal alguma filha, e é necessária boa retórica nos tementes a Deus para não o ofenderem, nem irritarem aos pais, que têm por ponto de honra e avaliam por desprezo e desdouro o não aceitá-las (DANIEL, 2004a, p. 282).

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Evidentemente, a forma das alianças de parentesco e de afinidade, seus princípios e valores subjacentes eram muito diferentes nas sociedades indígenas e nas europeias. Assim, antes da instalação da capitania muitos portugueses e mestiços utilizavam as alianças matrimoniais de uma forma não ortodoxa, do ponto de vista da Coroa e da Igreja, com o fito de aumentar o poder político, econômico e militar junto aos povos indígenas de uma vastidão de fronteiras ainda indefinidas antes de 1755. Eram os já referidos cunhamenas, que se valiam do costume das alianças entre genro e cunhado em diversas sociedades indígenas, casando-se com as filhas de vários principais. Com a chegada do primeiro governador da capitania do Rio Negro, é outro tipo de casamento que passa a ser incentivado e reconhecido, e começa o declínio dos cunhamenas, obrigados a se adaptar ao novo regime ou a enfrentar os agentes régios em uma luta sem esperanças. Em 1760, o primeiro governador do Rio Negro (Joaquim de Mello e Póvoas) relata que um cunhamena, chamado João Portes, tinha se adaptado à nova realidade social do Rio Negro e casado formalmente com a filha do principal Sanidató (a etnia dos sujeitos não é referida na carta); para a felicidade do governador, ambos estavam entusiasmados em criar roças “com grande gosto”, descer sua gente e construir casas para criar uma nova povoação, em um lugar decidido pelo principal. Nada parecia ser melhor que isso, do ponto de vista do governador: um português ou mestiço que tinha criado redes de influência, alianças e clientela no sertão passava a aceitar as novas regras do jogo e fundava uma nova povoação cheia de súditos novos e bem-dispostos. O único problema é que, para João Portes casar-se formalmente com a filha de Sanidató, precisou repudiar a filha de outro principal, chamado Payniuató. Ou seja, tinha rompido um acordo, uma aliança tida na mais alta conta pelos indígenas. Payniuató [...] veyo ao Sitio, em que João Portez estava com o sogro

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e toda a sua gente trabalhando na nova Povoação, e dizendo a estes que este se queria descer para aquelle sitio com toda a sua gente, disse também ao Sogro de João Portez que sua mulher estava sem esperança de vida, que lhe pedia que a fosse ver, o que o Principal fez logo, e a João Portes pedio ferramentas para entrar a rossar; porem como este Principal vinha tão somente a vingarse de João por lhe ter repudiado sua filha, logo que tomarão os machados se chegarão para ver onde o dito Joào Portez estava fazendo huma porta, e [...] o apanharam descuidado e lhe derão com os machados na cabeça, e o matarão. O mesmo fizerao a hum morador do Gurupá chamado Manoel Nunes que aly estava fazendo óleo de cupauba, e ao preto de João Portes, que tinha ido ao mato a cortar madeira e este hé o fim que tem levado todos os cunhamenas deste sertão (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 161-162).

As alianças matrimoniais dos cunhamenas serviam à formação de milícias particulares para escravizar pessoas de outras etnias e estavam fora do controle colonial. Certamente, essa autonomia voltada para o velho cativeiro indígena não era adaptável à nova ordem no ocidente do Grão-Pará. Como insistia o governador do Rio Negro Mello e Póvoas, para se consolidar a nova capitania conduzem muito os Casamentos dos Soldados com as Indias [...] e se conseguir que neste Ryo fiquem ao menos cem cazaes, não darey por infrutuoso o meu trabalho, pos só por este modo Se poderá em breve tempo Segurar a conservação, e aumento destas Povoaçoens” (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 110).89

Esperava-se que esses “casados” não apenas espalhassem a cultura e o estilo de vida português (identificado com a civilização), mas também contribuíssem eficazmente para a defesa e segurança das comunidades. Assim, no Lugar de Alvelos, em 1759, o governador Mello e Póvoas decide retirar o destacamento militar para outro lugar onde ele se fazia mais urgente, pois na povoação “se achão bastantes cazados, [...] moradores já fazem corpo suficiente para poder evitar todo o insulto que lhe quiserem fazer os Muras (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 139-140).

89

Carta a Thome Joaquim da Costa Corte Real, Barcelos, 21/12/1758.

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Na visão do governador, os casamentos interétnicos levavam a uma mestiçagem90 que era conveniente à defesa e ao acrescentamento das povoações da capitania. Cada vez mais mamelucos falando português: não era esse o espírito do Diretório? Não posso deychar de dizer a Vossa Excellencia que achey naquele lugar [Alvelos] 24 mamalucoz, e hoje me dizem que já passão de 30, e fiz nelle mais 4 cazamentos: gostey muito desta situação por ser muy alegre muito bem assentada, e ter muita fartura; o Capitam Joze da Silva Delgado cuidou muito na Igreja, que sem duvida está asseadíssima; e a escola também me pareseo muito bem por ter bastantes rapazes, e quase todos falando Portuguez (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 176).

O mesmo governador, em 1760, tinha a alegria de comunicar ao secretário Thomé Joaquim Corte Real que já tinha casado 177 brancos com índias, o que era uma ação civilizadora particularmente nos ermos do Solimões, onde sem essa política ele encontrou os índios ainda praticando seus antigos ritos (p. 201). O soldado ou colono que casava com uma índia recebia, entre outras coisas, terra, dinheiro, ferramentas e armas, além do direito a frete mais barato para seus produtos. Os párocos listavam em cada comunidade as esposas entre os moradores adjuntos – tecnicamente, elas não eram mais índias. [...] Os filhos desses casamentos eram isentos das listas de prestação de serviço das vilas. Um vigário argumentou que os outros mamelucos deveriam ter o mesmo status, pois ‘são da mesma qualidade ou mais brancos... porque as crianças dos soldados são apenas meio brancos, e nesta vila há mamelucos e mamelucas que tem três quartos de sangue branco e apenas uma parte de sangue índio.’ Entretanto, o status não era determinado unicamente pela categoria racial, mas pela classificação legal (SOMMER, 2000, p. 238).

90

As infindáveis referências desabonadoras aos mestiços mamelucos nas fontes da época (leis espanholas e portuguesas, como o já mencionado Regimento das Missões, proibiam expressamente que mestiços vivessem entre os índios) parecem se dever mais ao estigma da bastardia do que à miscigenação per se, pois muitos dos mestiços eram fruto de uniões informais, não legitimadas pelo casamento, como explica o grande jurista Solórzano, estudioso da regulamentação das relações entre índios e espanhóis na América (SOLÓRZANO Y PEREYRA, 1776, p. 220-222. Tomo I, Livro II, parágrafos 20, 21, 32 e 34).

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Em São Tomé e Príncipe, na África, uma forma de ascensão social para muitos integrantes da maioria negra no período colonial era o casamento com um branco. Por isso, esses casamentos interétnicos foram se sucedendo, ao ponto de não se poder mais assumir uma pessoa como branca, mulata ou preta somente por seus caracteres biológicos. A posição social do indivíduo numa sociedade completamente hierarquizada de Antigo Regime é que vai determinar a sua “qualidade”. Portanto, um negro pode ser legitimado pela Coroa como um ‘branco da terra’ (BANDEIRA e RIBEIRO, 2012, p. 218). Em São Tomé ou em Barcelos, “não ter cor” podia ser às vezes uma vantagem social passível de ser adquirida. No caso do índio, formalmente protegido pela legislação portuguesa desde o início da colonização na América – tendo sido até mesmo proibida a sua estigmatização social em 1755 – renunciar a sua condição étnica específica ou de índio “genérico” ou tapuio podia significar vantagens mas também perdas de direitos, como a posse da terra, como mostrou Maria Regina Celestino de Almeida (2003). A classificação podia ser manipulada até um certo limite. Numa sociedade de classificações ratificadas pelo direito, como a sociedade de Antigo Regime, estes estatutos eram coisas muito expressamente tangíveis, comportando direitos e deveres específicos, taxativamente identificados pelo direito. Daí que, ter um ou outro destes nomes era dispor de um ou outro estatuto. Daí que, por outro lado, classificar alguém era marcar a sua posição jurídica e política (HESPANHA, 2008, p. 7).

Essas classificações podiam oscilar, dependendo da situação concreta e do ponto de vista do observador. No capítulo 2, examinaremos as classificações oficiais dos censos e sobre o que elas podem nos dizer sobre o novo tipo de sociedade que se constituía com essas reformas.

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1.3.2 A “Lei para restituir aos Índios do Maranhão a Liberdade de suas pessoas e bens”

A lei de Liberdade de 6 de junho de 1755, além de reconhecer os índios como senhores naturais de suas terras, definia o modo de se estabelecer os “jornais” (salários) dos índios (que escolheriam a forma de pagamento em gêneros, ferramentas ou dinheiro). O texto começava afirmando que a extrema miséria e a continuidade da barbárie e do gentilismo no Estado do Maranhão [e Grão-Pará] era decorrência da não-observância das determinações régias. O número de povoações e a população total do Estado eram reputadas como muito diminutas, depois de mais de um século de colonização e catequese (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771, p. 241). Derrogava e anulava “todas as Leys, Regimentos, Resoluçoens, e ordens que desde o descobrimento das sobreditas Capitanias do Grão Pará, e Maranhão até o presente dia permittirão, ainda em certos casos particulares, a escravidão dos referidos Índios” e renovava a “inteira e inviolável observância” da lei de 1º de abril de 1680. Todos os índios que estivessem possuídos como escravos deveriam ser colocados em liberdade “sem réplica, nem dilação” e sem apelação. Todos os contratos de compra e venda de índios e sentenças que os tivessem declarado cativos eram declaradas nulas, com exceção dos casos de índios filhos de pretas escravas, que seriam avaliados individualmente conforme fossem ou não “reputados por índios, ou que taes parecerem” (ou seja, de acordo com as características fenotípicas). A redação da lei sublinhava a unidade de princípios e propósitos da monarquia nas relações com os povos nativos da América, suscitando as leis de 1570, 1587, 1595, 1609, 1611, 1647 e 1655 sobre o mesmo tema e até republicando a lei de 1º de abril de 1680 e a de 10 de novembro de 1647. Como explicava o próprio Sebastião

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José de Carvalho e Melo a seu irmão Mendonça Furtado, “nela se não contêm novidades, porque toda consiste em uma renovação das antigas e saudáveis leis, cuja inobservância reduziu o Pará e o Maranhão à miséria”, por culpa da prevalência de interesses particulares sobre o bem comum91. Recapitulando os termos do alvará de 1º de abril de 1680, reconhecia os Índios, primários, e naturaes senhores" das terras. Portanto, depois de descidos, não poderiam ser mudados contra a sua vontade, “nem ser obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras”. Os governadores deveriam "erigir em Villas as Aldeas, que tiverem o competente numero de Indios, e as mais pequenas em lugares, e repartir pelos mesmos Índios as terras adjacentes [...]" (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771, p. 249). Deixava-se claro que os índios deveriam ser livres nas “suas pessoas” e no uso de “seus bens”, e que a intenção era promover uma reciprocidade de interesses entre índios e “moradores”, que não precisariam trazer trabalhadores assalariados de fora. Os jornais, definidos em junta formada pelas autoridades civis e eclesiásticas do Estado, "serão pagos por ferias nos sabbados de cada semana [...] ou em panno ou em ferramenta, ou em dinheiro, como melhor lhe parecer aos que os ganharem" (p. 249). Se a postulação de que a Lei de Liberdade não era uma “novidade” poderia dificultar acusações de arbitrismo ou de introdução de inovações contrárias aos costumes, por outro lado Carvalho e Melo e Mendonça Furtado estavam muito cientes

91

Carta de 4 de agosto de 1755 (MENDONÇA, 2005, p. 273).

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de que ela causaria um grande impacto na prática. Por essa razão, o primeiro fazia saber ao segundo que não era necessário que se publique no mesmo dia o estabelecimento da Companhia e as leis das liberdades e do governo temporal dos índios, e havendo ficado as ditas leis das liberdades e do governo temporal em grande segredo nesta Corte, as podeis ir publicando ao vosso arbítrio, como melhor vos parecer.92

De pleno acordo com isso, em carta de 11 de novembro, Mendonça Furtado alvitrava uma estratégia para dar a público o teor dessas leis no Estado do Grão-Pará e Maranhão, de modo a granjear apoio entre os moradores e isolar opositores: primeiramente, publicar-se-ia a lei que concedia as côngruas aos religiosos, repartindo-se as fazendas das ordens missionárias a particulares. A segunda seria a que extinguia o poder temporal dos missionários, mas com o cuidado de se a reimprimir para omitir a Lei de Liberdade dos Índios, evitando-se tumultos entre os moradores. Publicadas assim as referidas duas leis, e alguns dos moradores com parte das fazendas que administravam os padres e vendo os mesmos moradores que os regulares não têm poder algum nas aldeias, e que estas são administradas por seculares na forma que S. Maj. manda, e tão acabados todos os pretextos e argumentos que os mesmos regulares podiam exercitar para iludir os povos (MENDONÇA, 2005, p. 508).

A estratégia do capitão-general era assim primeiro publicar o que pareceria vantajoso aos moradores, rompendo eventual solidariedade deles com os regulares. Somente vários meses depois (talvez um ano), quando presumivelmente a CGPM teria introduzido um número considerável de escravos africanos no Estado, publicarse-ia a Lei das Liberdades. O assunto era tão delicado que até 1755 não havia sido

92

Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo a Mendonça Furtado, de 4 de agosto de 1755 (MENDONÇA, 2005, p. 472).

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publicado no Pará o Breve de 20 de dezembro de 1741, no qual o Papa Benedito XIV tinha proibido a escravização de ameríndios, sob pena de excomunhão (MENDONÇA, 2005, p. 508-509). A necessidade de isolar politicamente a mais poderosa das ordens missionárias parecia evidente a Furtado também por outra razão: a remoção do poder temporal dos missionários, que minava a autoridade do governador e do próprio bispo em quase toda a área do Estado.

1.3.3 A “Lei para os índios serem governados por seus nacionais”

Reforçando a complementaridade entre as medidas tomadas em 1755 para a reorganização do Estado do Grão-Pará e Maranhão, o prólogo deste alvará explicava que a lei de Liberdade não atingiria os “grandes bens espirituais e políticos” que a motivaram "se ao mesmo tempo se não estabelecesse para reger os sobreditos Indios huma forma de governo temporal, que [...] se accommodasse aos seus costumes..." Derrogava-se o capítulo I do Regimento de 21/12/1686, republicando a lei de 1e de setembro de 1663. Esta lei encerrava a longa disputa do poder temporal sobre as povoações indígenas. O Alvará com força de lei de 7 de junho de 1755 deu fim, portanto, ao sistema das missões e à administração temporal das povoações pelos regulares (i.e., pelos missionários) na Amazônia. Eliminava-se assim o poder temporal dos missionários sobre as aldeias (que era exercido desde o Regimento das Missões de 1686) e determinava-se que as Aldeias fossem transformadas em Lugares (administrados pelos principais, sargentos mores, capitães, alferes e meirinhos indígenas) e Vilas,

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cujos juízes ordinários, vereadores e oficiais de Justiça seriam preferencialmente “os índios naturais delas” (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771, p. 255). Dessa forma, em poucos anos, 28 povoações de índios no Pará93 e nove na capitania do Rio Negro94 seriam transformadas em vilas. O quanto essa decisão era arrojada se mede pelo fato de que, menos de 30 anos antes, o Provedor da Fazenda Real da capitania do Pará atestava não terem rendimento algum as únicas 3 câmaras então existentes no interior (Caeté95, Vigia e Cametá), por estas se comporem de Índios, Mamelucos, e se há algum branco não chegão ao número das luvas estes não se lhe dão de terem casas, mais do que [?]as, e para seu sustento hua espingarda, arco e flecha, e não cuidam o mais, nem de acrescentarem casas, nem rendimentos, não só para si, como para as Câmaras[...]96

A correspondência do Capitão-General do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (MENDONÇA, 2005) – um dos protagonistas da elaboração ou da adaptação das reformas na Amazônia –, assim como os textos de vários viajantes da segunda metade do século XVIII, insiste na necessidade de civilizar, de reduzir à polícia, de polir os habitantes nativos para que se tornem bons vassalos de Portugal. Bluteau (1716) definia Policia como

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Vila de Sintra, Vila Nova de El Rei, Vilas de Conde, Beja, Soure, Salvaterra, Monforte, Monsarás, Chaves, Oeiras, Melgaço, Portel, Porto de Moz, Pombal, Veiros, Souzel, Arraiolos, Espozende, Almeirim, Monte Alegre, Santarém, Boim, Franca, Alter do Chão, Pinhal, Alenquer, Óbidos e Faro. As demais povoações, que eram menores, foram convertidas em Lugares sob o governo dos principais, mas sem câmaras. Quase todas essas vilas, depois da independência, perderam sua autonomia. 94 Vilas de Thomar, Barcelos, Moura, Borba, Serpa, Silves, Ega, Olivença e Javari. As demais povoações tornaram-se “lugares”, termo usado para “povoação pequena, menor que villa, e mais que aldeia” (SILVA, 1789, p. 35). 95 Caeté, depois de 1753, seria Bragança. 96 1728, Outubro, 6, Belém do Pará. CARTA do provedor da Fazenda Real da capitania do Pará, João Ferreira Dinis de Vasconcelos, para o rei D. João V, em resposta à provisão de 9 de Setembro de 1727, sobre o rendimento das Câmaras Municipais daquela capitania. Anexo: certidões. AHU_CU_013, Cx. 11, D. 1001.

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A boa ordem que se observa, & as leys que a prudência estabeleceo para a sociedade humana nas Cidades, Republicas &c. Divide-se em Policia civil, & militar. Com a primeyra se governão os Cidadãos, & com a segunda os Soldados. Nem huma, nem outra policia se acha nos povos, a que chamamos Bárbaros, como v.g. o Gentio do Brasil, do qual diz o P. Simão de Vasconcellos nas notícias que deu daquele Estado, pag. 120 (Andão em manadas nos campos, de todo nus, assim homens, como mulheres, sem empacho algum da natureza; vive nelles tão apagada a luz da razão, quase como nas mesmas feras; parecem mais brutos em pé, que racionaes, &c. nem tem arte, nem policia alguma, &c.) (vol. VI, p. 575).

Ou seja, o gentio, além de não ter sido reduzido à “religião verdadeira”, é aquele que não tem polícia. Ele não vivia em cidades nem suas comunidades eram reconhecidas por Bluteau como Repúblicas. Para Bluteau, ainda, diz-se que uma cidade é regulada ou governada com boa polícia. De forma análoga, fala-se em “Policia no trato, na conversação, nos costumes, &c. [...] Policia, também se toma pela boa graça nas acções e gestos do corpo, &c. Vid. Garbo, Graça, &c.” Seria um conceito próximo daquele de Urbanitas, no caso do comportamento, e daquele de asseio, limpeza e alinho, no caso de uma cidade ou lugar. O Dicionário de Antonio Moraes Silva, de 1789, oferece as seguintes definições para o verbete Polícia: POLÍCIA, s. f. o governo, e administração interna da Repub. principalmente no que respeita ás comodidades, i. e. limpeza, aceio, fartura de viveres, e vestiaria, e á segurança dos Cidadãos. § No tratamento decente; cultura, adorno, urbanidade dos Cidadãos, no falar, no termo, na boa maneira. [...] § Policias, obras de curioso lavor, manufaturas de luxo: f. Amaral c. 8., policias de guerra, artifícios bellicos. § Intendente Geral da Policia, v. Intendente. (SILVA, 1789, p. 213).

Silva dá polícia como sinônimo de política (idem, ibidem), “arte de governar os Estados”. Político, entre outras acepções próximas ao uso corrente atual, é um adjetivo que significa urbano ou civil (como homem político ou sociedade política). Polidez é sinônimo de polícia, segundo o mesmo dicionário. Não obstante, a origem etimológica de polícia e política é grega (politiké e politeia, respectivamente), a partir

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de polis, enquanto polir e seu particípio polido vem do latim polire. Um homem polido, segundo Moraes, é o oposto de homem rude; é um indivíduo urbano e civil. Um antônimo é bárbaro, salvagem ou selvagem. BÁRBARO, adj. Homem rude, sem polícia, nem civilidade, oposto ao civilizado, e urbano. §. Estilo bárbaro, do que não é polido; mas incorrecto, e contrario ao de que usa a gente bem educada. [...] §. Bárbaro: deshumano, feroz, cruel, inculto: v.g. animo bárbaro; costumes, usos bárbaros. (SILVA, 1789, p. 263).

A barbaridade associa-se à rudeza, à ignorância ou à desumanidade. Urbanidade seria “a cortesia, e bom termo, os estilos da gente civilizada, e polida, civilidade, policia.” (SILVA, 1789, p. 503). As reformas impostas pelo Diretório legitimavam-se na missão civilizadora e cristianizadora que, em meados do século XVIII, era não só apanágio como obrigação dos soberanos absolutistas europeus com possessões coloniais. Era dever moral dos monarcas civilizar os povos que se consideravam rústicos, ignorantes, bárbaros e pagãos em nome da felicidade e do progresso dos povos e do interesse da ‘república’ e do bem comum (DOMINGUES, 2000, p. 76).

Vemos em um grande conjunto de fontes do período o jogo de opostos (civilizado x bárbaro; polido x rústico etc.). O ideal de comportamento da era do absolutismo era o comportamento “civilizado”. Para Norbert Elias, o conceito de civilização “expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. [...] Ele resume tudo em que a sociedade ocidental nos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’” (ELIAS, 1994, p. 23). Além disso, “civilização” descreve um processo ou, pelo menos seu resultado. Diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessantemente ‘para a frente’” (idem). Ele contém uma tendência homogeneizadora, “minimiza as diferenças nacionais entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou – na opinião dos que o possuem – deveria sê-lo” (p. 25). É um

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conceito que tem, entre outras funções, a de expressar “uma tendência expansionista de grupos colonizadores”. Com efeito, é de homogeneização que se fala – ao menos no nível das intenções dos reformadores ilustrados – na Amazônia portuguesa da segunda metade do século XVIII: a mudança dos nomes dos aldeados e dos aldeamentos para nomes portugueses, o incentivo aos casamentos mistos, a imposição da língua portuguesa e o combate à Língua Geral e aos idiomas nativos etc. Segundo Andrea Daher, é preciso compreender que a concepção de selvagem se transformou significativamente ao longo do tempo. Se a partir do século XIX o selvagem tornou-se “obstáculo à civilização”, uma “alteridade definitivamente instaurada como diferença cultural, do século XVI até a primeira metade do século XVIII a Escolástica tinha o selvagem como mesmo ou próximo [...] iluminado pela luz natural da Graça inata, apto a receber a Revelação através da sua própria língua. Sob as Luzes do Directorio pombalino, o selvagem se mostrava inabilitado a falar e a ler a verdadeira língua, o português, cuja imposição passava a ser condição de sua integração como outro, súdito da monarquia (DAHER, 2012, p. 174).

A insistência é visível no Diretório: civil, civilidade, incivil, civilizar e cognatos aparecem 28 vezes no texto que, em sua forma impressa original, mal chegava às 40 páginas; em oposição, “rústico” ou “rusticidade” e “bárbaro” e “barbaridade” aparecem, respectivamente, 12 e 6 vezes (FURTADO, 1758). Estudando os significados de civil, civilidade, civilizar, civilização em dicionários e vocabulários da língua portuguesa do século XVI ao XIX, Luís Filipe Silvério Lima chega a avançar uma hipótese interessante: Talvez civilizar fosse entendido mais como um ato inscrito na missão do Império Português em tirar os índios do estado de selvageria (e com isso garantir o tamanho de seus domínios), do que educar e polir as rústicas e vis gentes de seus campos, vilas e aldeias. Civilizar era uma dimensão para manter o Império, retirando o selvagem do seu

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estado bárbaro e tornando-o subjugado ao poder soberano das Leis da Cidade, mas a civilidade (em ambos sentidos) – e depois a polidez – servia para distinguir quem verdadeiramente era civilizado no interior dessa Cidade (LIMA, 2012, p. 81).

Jean Starobinski (2001, pp. 11-12) assinala que, em francês, já se registrava a palavra civil desde o século XIII e civilidade desde o século XIV, mas civilizar apenas desde o século XVI. Em uma de suas acepções, civilizar significa “levar à civilidade, tornar civis e brandos os costumes e as maneiras dos indivíduos” (é nesse sentido que Montaigne usa o adjetivo civilizado, por exemplo). L’ami des hommes, de Mirabeau pai (1756), parece ter sido a primeira obra na França a usar o termo civilização no sentido moderno que conhecemos. Starobinski não deixa de anotar o quanto o termo é objeto de uma disputa ideológica. Embora depois de 1789 o termo tenha sido apropriado pelos revolucionários mais radicais, os autores do Dicionário de Trévoux, em 1771, escolheram cuidadosamente a obra de Mirabeau pai para endossar o significado de civilização: Aí encontravam um argumento oportuno para sua luta contra a filosofia das Luzes e contra os Enciclopedistas. A religião, longe de ser excluída pelas ‘virtudes sociais’, ou pela ‘moral natural’, é considerada por Mirabeau como o ‘principal móvel’ da civilização, ela mesma assimilada à sociabilidade. A palavra CIVILIZAÇÃO aparece, portanto, por ocasião de um elogio da religião, ao mesmo tempo como poder de repressão (‘freio’), de reunião fraterna (‘confraternidade’) e de abrandamento (STAROBINSKI, 2001, p. 13-14).

Diderot, no entanto, em 1775 já utiliza o termo civilização em um sentido que será vitorioso mais tarde: o de civilização como “substituto laicizado da religião”. A partir de 1795, os dicionários começam a incorporar o termo em um sentido tanto processual como definidor de um resultado final: “Ação de civilizar ou estado do que é civilizado” como consta no Dicionário da Academia de 1798 (STAROBINSKI, 2001, p. 11-14).

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A palavra civilização pôde ser adotada tanto mais rapidamente quanto constituía um vocábulo sintético para um conceito preexistente, formulado anteriormente de maneira múltipla e variada: abrandamento dos costumes, educação dos espíritos, desenvolvimento da polidez, cultura das artes e das ciências, crescimento do comércio e da indústria, aquisição das comodidades materiais e do luxo. Para os indivíduos, os povos, a humanidade inteira, ela designa em primeiro lugar o processo que faz deles civilizados (termo preexistente), e depois o resultado cumulativo desse processo. É um conceito unificador (STAROBINSKI, 2001, p. 14).

Naquele final de século XVIII, os conceitos de civilização e progresso convidavam a uma reflexão genética dedicada a investigar as etapas do processo civilizador, “da marcha da civilização por meio de diversos estados de aperfeiçoamento sucessivos” (STAROBINSKI, 2001, p. 15). A América era vista, pelas Luzes do século XVIII, como uma espécie de museu vivo, que seria útil para compreender o passado europeu (CANIZARES-ESGUERRA, 2011, p. 72-74). Influenciado por Adam Smith, Ferguson elaboraria uma sequência de 4 etapas: selvagens (caçadores-coletores); pastores nômades; agricultores sedentarizados, nações industriais/comerciantes. Outros escritores produziriam diferentes esquemas lineares, como Condorcet e Comte. A civilização passava a ser o processo fundamental da história humana, homônimo do ponto de chegada desse processo, cujo estado inicial suposto era a natureza, selvageria ou barbárie. O sufixo –ação “obriga a pensar um agente: este pode confundir-se com a própria ação, que se torna, assim, autônoma; pode remeter a um fator determinante (Mirabeau diz: a religião; Rousseau diz: a perfectibilidade; outros dirão: as Luzes)” (STAROBINSKI, 2001, p. 16). Carvalho e Melo, em carta de 15/5/1753 a Mendonça Furtado, partilhava da crença de que os ameríndios estariam em uma “etapa” do desenvolvimento já superada pelos povos da Europa: “Positivamente o concluem assim os exemplos dos

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alemães, dos ingleses, dos franceses, dos castelhanos e dos portugueses. Todos nós fomos bárbaros, como hoje são os tapuias, só com a diferença de não comermos gente” (MENDONÇA, 2005, p. 492). O comércio e a religião seriam os agentes de sua civilização, do ponto de vista desses reformadores. No entanto, ao chegar à Amazônia em 1751 Mendonça Furtado avaliava que os índios se encontravam, imerecidamente, na rusticidade, na ignorância e na barbárie por culpa do isolamento e da exploração impostos pelas ordens religiosas missionárias. Explicitamente, Mello e Póvoas afirma em carta de 21/12/1758: Sem embargo ser o Comercio hum dos principaes meyos para por elle se radicar nos Indios a Civilidade que pertendo, pois por elle se podem vestir, e Comprar moveis para suas Cazas, e ferramentas para as suas lavouras, foy muito pouco o negócio que fizeram este anno as Povoaçoens deste Ryo, e nenhum o desta Villa, e das mais que ficão por elle asima, por cauza das desordens, e soblevaçõens passadas, que deyxaram a todos os Indios tão timoratos, e inquietos, que senão puzerão em sucego senão com a nossa vinda; porem este anno já os índios desta Villa forão ao negocio das Manteygas e pretendo mandalos brevemente a Colheyta do Cacao, para com o seu produto remediarem as necessidades que experimentao, e se fará o mesmo, em as demais povoaçõens, e permitindo Deoz que sejão bem sucedidos, ficarão capacitados os Indios de que hé para eles o que lucrarem com o seu trabalho, de que inteiramente senão podiam ainda Capacitar pelo antigo Costume de ser tudo para os seus Padres Missionarios; e espero que por este modo venhao no conhecimento da grande felicidade que alcanssarao em merecer a Real proteção de Sua Magestade (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 110-111).

Rusticidade opunha-se a civilização. Desde muito cedo, rusticus e rusticitas eram termos que existiam em oposição a urbanus e urbanitas. “As maneiras do camponês (villanus) são vilania em comparação com os usos da corte (cortesia)” (STAROBINSKI, 2001, p. 21). Esse par de valores opostos pressupunha que o habitante das cidades (pólis) era portador de uma civilidade superior.

Polido e polícia/policiado, embora etimologicamente díspares – a primeira vem do latim polire (polir), a última vem do grego polis, politeia –, são palavras semântica

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e foneticamente próximas. A imagem do luzimento e do aperfeiçoamento associados à ação de polir associa o polido ao civilizado (pp. 25-26). Policiar, por seu turno, é definido pelos dicionaristas do século XVIII como “Fazer leis, regulamentos de polícia para manter a tranquilidade pública” (STAROBINSKI, 2001, p. 29). Também no Vocabulário de Bluteau (1716) encontramos a mesma proximidade entre polícia e polimento. Nos dicionários do século XVIII, Starobinski encontra uma série de candidatos à transformação pela via do polimento, vindos de um estado inicial de natureza feroz e grosseira: “bárbaros, selvagens, gente de província (a fortiori: camponeses), jovens (a fortiori: crianças)”, mutuamente intercambiáveis e encontradiços mesmo no interior da Europa, onde quer que o polimento educativo ainda não tenha feito sua intervenção civilizadora. Em comparação com a perfeição do polido, o bárbaro é uma espécie de criança, a criança é uma espécie de bárbaro. [...] para quem confia nos poderes da educação, não será difícil, correlativamente, considerar os selvagens como crianças, que um benévolo e paciente polimento tornará semelhantes a nós (STAROBINSKI, 2001, p. 28).

Essa é a ambiguidade fundamental: entregar aos índios o governo da república, nas novas vilas, ao mesmo tempo em que se insiste em sua menoridade. Para atender ao programa civilizador, do ponto de vista dos agentes régios, era necessário ajudar os índios a atingir a urbanitas, sinônimo de civilidade, apanágio da cidade bem asseada, provida, limpa, alinhada, segura e organizada.

1.3.4 A criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão

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O capital da empresa seria constituído por 1.200 ações, com valor nominal de 400.000 réis cada. 36 ações, contudo, foram inutilizadas por razões desconhecidas. A concessão do monopólio foi fixada em “vinte anos contados da data de largada da primeira frota (art. 51)”. Oficialmente, essa primeira frota largou somente em 1758, pois somente era considerada “frota” um conjunto de navios escoltados por naus de guerra. Além disso, o terremoto de 1755 provocou perdas significativas e destruição de armazéns da CGPM em Lisboa, contribuindo para o atraso (CARREIRA, 1988a, p. 65-66). Era possível pagar as ações em prestações. Procurou-se atrair as pequenas poupanças, facultando-se a constituição de morgadios e capelas. Mas como se tratava de uma forma de investimento pouco usual em Portugal, na época, parece ter havido uma desconfiança inicial – além da resistência aberta dos deputados da Mesa do Espírito Santo, representando interesses comerciais prejudicados pelo monopólio, prontamente reprimida. Somente em 1759 completou-se o capital de 465.600.000 réis. No mesmo ano, cumprindo seu estatuto, a CGPM distribuiu os dividendos referentes aos três primeiros anos de operações, a 19,5% por ação (78.000 réis). Essa margem revelou-se bastante atraente para os investidores, dado que o limite legal para a taxa de juros era de 4% ao ano (CARREIRA, 1988a, p. 73-74)97. Inicialmente, 144 acionistas controlavam a empresa, sendo apenas 4 residentes no Estado do GrãoPará e Maranhão: o mestre-de-campo Lourenço Belfort, Domingos Antunes Pereira, João de Souza Azevedo e Amaro Soares Lima. O conde de Oeiras (futuro Marquês

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Ou, segundo outros autores, 5%: segundo João Fragoso, Roberto Guedes e Thiago Krause, os empréstimos concedidos por conventos, irmandades, juízos de órfãos e casas de misericórdia, na América ibérica, faziam as vezes de um mercado creditício para empreendimentos agrícolas e urbanos, “geralmente de 5%, de modo a não ser classificado como usura” (FRAGOSO, GUEDES e KRAUSE, 2013, p. 106).

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de Pombal) detinha 6 ações e sua esposa outras 6. O rei, por meio de um testa-deferro, tinha 80 ações. Para Antônio Carreira, o leque de acionistas alargou-se (de 144 acionistas em 1759 para 269 em 1776) e os grandes acionistas tenderam a perder espaço para indivíduos de menores posses (pp. 74-87). Para incentivar ainda mais a aquisição das ações, o parágrafo 39 do estatuto, confirmado por alvará real de 7 de junho de 1755, determinava que as pessoas que adquirissem 10 mil cruzados ou mais em ações teriam “privilégio de homenagem da sua própria casa”, isenção dos “alaridos e companhias de pé e de cavalo, levas e mostras gerais”. O investimento no comércio da Companhia não prejudicaria a nobreza das pessoas, “mas antes, pelo contrário, será meio próprio para alcançar a nobreza adquirida”, habilitando para as Ordens Militares, sem dispensa de mecânica. A CGPM financiava a aquisição de escravos (por dois ou três anos, “mediante a liquidação em gêneros”) pelos colonos do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Mas “o lucro que a empresa auferia não provinha do negócio de escravos”, que “produziu benefícios irrisórios comparativamente aos obtidos nas mercadorias e nos gêneros transacionados” (CARREIRA, 1988a, p. 60). Entre outros privilégios, eram concedidos à CGPM armazéns, duas naus de guerra e o direito de “fabricar os navios que quiser fazer, assim mercantes como de guerra”, em qualquer parte do Reino ou das capitanias do Grão-Pará e Maranhão, recrutar gente de mar e guerra. Governadores não teriam jurisdição alguma sobre a gente de mar e guerra da Companhia. A CGPM teria o comércio exclusivo com aquelas capitanias, com limites expressos de preços de venda dos gêneros (parágrafos 22, 23 e 24). Mas, para não sufocar os comerciantes locais, era vetado à Companhia vender a varejo. Seus produtos só poderiam ser vendidos em “grossas

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partidas” de valor não inferior a cem mil réis no Estado e duzentos mil réis no Reino (parágrafo 28). Além disso, se os produtos da Companhia fossem permutados pelos gêneros produzidos no Estado do Grão-Pará e Maranhão, “cujo valor é incerto e depende do livre arbítrio dos vendedores”, o ajuste ficaria aberto à negociação entre as partes. Aqui entra a troca dos gêneros entregues pelos índios em Belém durante a vigência do Diretório, como veremos. Uma grande parte das drogas do sertão comercializadas pela Companhia seria fruto do trabalho das canoas do comércio operadas e comandadas pelos índios das vilas e lugares do Diretório, permutada por bens manufaturados.

1.3.5 O “Diretório dos Índios”

As leis de 1755, portanto, estabeleciam que todos os índios do Estado do GrãoPará e Maranhão deveriam ser colocados imediatamente em liberdade, passando a participar diretamente do governo de suas comunidades e do comércio, usufruindo de suas vantagens e contribuindo para o bem comum como qualquer súdito português. Se ainda não estivessem muito polidos, padecendo ainda da rusticidade em que teriam sido mantidos artificialmente, como acusavam os alvarás em suas justificativas, o próprio exercício do comércio e do governo das repúblicas os civilizaria, em comunhão com os súditos recém chegados da Europa, resultando inclusive – alegavase – em uma cristianização mais profunda do que aquela que era praticada nas missões.

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Mendonça Furtado modificou bastante o escopo dessas Leis da Liberdade ao elaborar o Diretório, avaliando que os principais, por sua “lastimosa rusticidade, e ignorância, com que até agora forão educados, não tenhão a necessaria aptidão, que se requer para o governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo-lhes não só os meios da civilidade, mas da conveniência [...].” Dessa forma, para que as “piíssimas intenções” do rei D. José pudessem ser concretizadas, o Diretório estabelecia que “haverá em cada uma das sobreditas Povoaçoens, em quanto os Índios não tiverem capacidade para se governarem, hum Director, que nomeará o Governador, e Capitão-General do Estado”, encarregado de dirigir os índios (FURTADO, 1758, p. 1) sob estrita supervisão do governador do Estado. Essa inovação administrativa, sobreposta explicitamente à estrutura do governo pelas câmaras e às prerrogativas das lideranças indígenas – os Principais – pressupunha que o Diretor não teria jurisdicção coactiva nos Índios, mas unicamente “directiva; advertindo aos Juízes Ordinários, e aos Principáes, no caso de haver nelles alguma negligência, ou descuido, a indispensável obrigação, que tem por conta dos seus empregos, de castigar os delictos públicos com a severidade, que pedir a deformidade do insulto, e a circunstância do escândalo; persuadindo-lhes, que na igualdade do premio, e do castigo, consiste o equilíbrio da Justiça, e bom governo das Repúblicas (FURTADO, 1758, p. 2).

No espiritual, caberia ao diretor tão somente apoiar o pároco (§ 4). Já a civilidade, pertencente ao campo temporal, era da alçada do diretor (§ 5). Para desenvolver essa civilidade, cabia introduzir nos povos conquistados a língua do Príncipe, como "um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes", radicando neles "o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe" (§ 6). Proibia-se, para os índios, o uso da língua materna e da Língua Geral - como a Coroa já havia determinado várias vezes no passado e determinava-se que em cada povoação deveria haver uma escola para

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meninos e outra para meninas. Ninguém poderia chamar os índios de “negros”, como era o costume até então, mas pelo contrário mostrar-lhes que "buscamos todos os meios de os honrar, e tratar, como se fossem Brancos" (§§ 10 e 11). Por essa mesma razão, ordenava-se que todos os índios adotassem sobrenomes das famílias de Portugal, que abandonassem o costume das casas multifamiliares e construíssem suas casas à imitação dos brancos (§ 12). Cabia ao diretor combater a “ebriedade” (§§ 13 e 14), estimular a dedicação dos índios à agricultura e ao comércio, para que se fizessem “úteis a si”, concorrendo para o sólido estabelecimento do estado e desenvolver uma reciprocidade de interesses e utilidades entre eles e os “moradores”. Todos os índios deveriam fazer “Roças de maniba, não só [...] para a sustentação das suas casas, e famílias, mas com que se possa prover abundantemente o Arrayal do Rio Negro; socorrer os moradores desta Cidade; e municiar as Tropas, de que se guarnece o Estado”. A farinha de mandioca, o pão do Estado e “base fundamental do commercio, deve ser o primeiro, e principal objeto dos Directores” (§ 22). Outras culturas para a alimentação, a produção de algodão para as fábricas de pano locais e o “interessantíssimo Commercio dos Sertoens” deveriam ser também incentivados. Particularmente, o tabaco deveria ser tão fomentado que os empregos e privilégios em cada povoação deveriam ser distribuídos pelos diretores “à proporção das arrobas de Tabaco, com que cada hum deles entrar na Casa de Inspecção” (§ 25). A cobrança dos dízimos de todos os frutos cultivados e todos os gêneros adquiridos deveria ser feita rigorosamente, pois o costume anterior (de não se cobrar) era um “diabólico abuso”. Sendo responsável pela avaliação, arrecadação e entrega dos dízimos ao Provedor da Fazenda Real, cabiam ao Diretor como remuneração um sexto do valor desse tributo sobre tudo o que fosse cultivado pelos índios e sobre os

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bens não comestíveis que eles adquirissem (§§ 33 e 34). Logo em seguida de proclamar as virtudes da liberdade do comércio, o Diretório recomendava aos ditos Directores, que por nenhum modo consintão, que os Índios, comerceiem ao seu pleno arbítrio; porque não podendo negar-se-lhes a liberdade de venderem, ou commutarem os fructos, que tiverem cultivado, àquellas pessoas, e naquelas partes donde lhes possa resultar maior utilidade; nem devendo prohibirse aos moradores do Estado o comerciar com os ditos Índios nas suas mesmas Povoaçoens; [...] como subposto da parte dos Índios o desinteresse, e a ignorância; e da parte dos moradores, o conhecimento, e ambição; ficando a venda dos gêneros ao arbítrio, e convenção das partes, faltaria no mesmo commercio a igualdade; não poderão os Indios até segunda ordem de Sua Magestade fazer negocio algum sem a assistência dos seus Directores, para que regulando estes racionavelmente o preço dos fructos, e o valor das fazendas, sejão recíprocas as utilidades entre huns, e outros comerciantes (FURTADO, 1758, § 39).

Era ainda o diretor que decidiria se as fazendas comutadas pelos seus frutos eram ou não convenientes aos índios, “sendo inegavelmente certo, que entre as mesmas fazendas, humas são nocivas aos Indios, como he a aguardente, [...] e outras se devem reputar supérfluas” (§ 40). Em cada povoação seria mantido um Livro do Comércio para o registro de todas as trocas (com os preços dos gêneros permutados e nomes das pessoas que comerciaram com os índios), remetido anualmente ao governador do Estado (§ 44). Mas um cuidado especial era dedicado ao comércio mais importante do Estado, o do sertão, que “não só consiste na extracção das próprias Drogas, que nelle produz a natureza, mas nas feitorias de tartarugas, salgas de peixe, óleo de cupaiva, azeite de andiroba, e de outros muitos gêneros de que he abundante o Paiz”. Os diretores deveriam examinar as características da região da povoação sob sua supervisão e definir os produtos mais vantajosos, nos quais ela deveria se especializar. Depois de garantir o cultivo de alimentos, o diretor deveria reunir os Principais e demais índios e consultá-los sobre o interesse de “ir ao negócio do Sertão”. Esse era um

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empreendimento da comunidade, correndo os custos98 por conta das Câmaras (nas vilas) ou dos principais (nos lugares). Os cabos das canoas deveriam ser selecionados cuidadosamente. O que pode parecer surpreendente hoje é que as canoas deveriam sempre passar pela povoação de origem, lançar o valor e a discriminação da carga no Livro do Comércio na presença da Câmara e dos índios interessados e então rumar imediatamente para Belém, a várias centenas de quilômetros de distância, para entregar os produtos ao Tesoureiro Geral do Comércio dos Índios, com uma guia destinada a ele e uma ao governador do Estado (§ 55). Depois de conferir as guias, de avaliar e vender os gêneros, deveria esse tesoureiro pagar os dízimos à Fazenda Real, as despesas da expedição, a remuneração do cabo da canoa, o sexto dos diretores e, finalmente, dividir o restante entre todos os índios interessados (§ 56). Mas, “suposta a rusticidade, e ignorancia dos mesmos Indios, entregar a cada hum o dinheiro, que lhe compete, seria ofender não só as Leys da Caridade, mas da Justiça, pela notória incapacidade”, o tesoureiro era obrigado a usar esse dinheiro para comprar as fazendas que os índios necessitassem. Dessa forma, os índios do comércio das povoações deveriam receber sua paga pela venda das Drogas do Sertão em mercadorias, não em dinheiro. Essa era uma exceção expressa ao que dispunha a lei de liberdade, que facultavam ao índio decidir se receberia sua remuneração em espécie ou em dinheiro. Finalmente, nos §§ 60-73, o Diretório tratava do trabalho compulsório, lançando mão de um velho topos político corporativo para justifica-lo: “Dictão as Leys da

98

O custo da organização da expedição não seria menor que 300 ou 400 mil réis por canoa (CARDOSO, 1984, p. 171).

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natureza, e da razão, que assim como as partes no corpo fysico devem concorrer para a conservação do todo, he igualmente percisa esta obrigação nas partes, que constituem o todo moral, e político. Fica patente, todavia, o caráter transitório do Diretório. Nenhuma indicação de prazo de vigência ou de critérios para a emancipação individual ou coletiva dessa tutela seria sugerida, mas o próprio título estabelecia quem teria a competência para fazer cessar essa tutela: ela duraria “enquanto sua Magestade não mandar o contrário” – o que ocorreria, aliás, por uma carta régia em 1798. O próprio ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, já nos preparativos para a implementação das Leis das Liberdades e diante das preocupações do irmão governador de que os índios livres “voltariam para o mato”, tinha proposto ao governador Mendonça Furtado uma medida que, sem abalar formalmente a pretendida igualdade entre vassalos brancos e vassalos índios, permitiria algum controle sobre a população indígena:

Porém, para que não falte em se acautelar tudo quanto prudentemente se pode prevenir, conformando-vos com as leis de alguns Estados da Europa, que proíbem saírem deles os seus habitantes sem preceder licença do governo, podeis mandar publicar um bando geral, que compreenda portugueses e índios, para que nenhuma pessoa possa sair dos limites do território da sua residência sem licença do governador, comunicando-lhe algumas penas aflitivas do corpo, sem que delas se siga infâmia da pessoa.99

Segundo Marcos Carneiro de Mendonça, esse bando foi realmente publicado em Belém em 1757 (MENDONÇA, 2005, p. 476, v. II). Essa limitação da liberdade

99

Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo a Mendonça Furtado, de 4 de agosto de 1755 (MENDONÇA, 2005, p. 476, v. II).

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teria consequências de grande alcance para os índios, ratificando um regime de tutela. Em 23 de maio de 1772, sob o governo de Pereira Caldas, outro bando ordenava que, dentro do tempo de dous meses, se recolhessem às suas povoações os índios que andassem ausentes delas, por malícia e vontade sua, sob pena de serem presos em calcetas por tempo de três meses, servindo nas fortificações da capitania (FERREIRA, 2007, p. 122).

Como já tinha notado Nádia Farage (1991), Mendonça Furtado sublinhava para o irmão a necessidade de um meio termo entre a liberdade absoluta e a cruel escravidão, um período de transição para que os índios pudessem se adaptar ao novo regime. Por fim, ao mesmo tempo em que remetia uma cópia do Diretório para o governador do Maranhão, instruía-lhe em carta de 25 de maio de 1757 a publicar um bando para os índios que os índios de serviço se conservassem no serviço de seus respectivos amos, para que “se não ponham em desordem” com a publicação da Lei das Liberdades (que seria divulgada junto com esse bando). Esse bando não se aplicava, entretanto, aos índios “oficiais e mecânicos, e os que estiverem tratando per si nas suas lavouras, mas somente aos que costumam servir aos moradores” (MENDONÇA, 2005, p. 271, vol. III). No Diretório percebe-se bem como o governo exercia funções de polícia, não mais apenas no sentido de manter a ordem e regular os costumes, mas no de economia pública. Não apenas dissuadir e reprimir, mas facilitar “a circulação das pessoas e das mercadorias”, controlar o abastecimento, restringir despesas supérfluas etc. (SENELLART, 2006, p. 36-37). A frase de Hobbes, citada por Senellart (“quem governa em proveito dos súditos governa em proveito do soberano”) faria todo o sentido para os correspondentes.

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A saída encontrada pelo Capitão General para fazer cumprir a radical reforma de 1755 de uma forma que ele considerava realista e enquadrar aqueles índios que não se comportavam como os demais vassalos – rejeitando o trabalho mal remunerado, as jornadas de trabalho intermináveis ou os maus tratos, por exemplo – foi tratá-los como dementes100. De imediato, somente alguns poucos índios – a longo prazo, possivelmente, todos – seriam efetivamente tratados em pé de igualdade com os demais vassalos. Para o conjunto dos índios do Estado, “usar inteiramente de sua liberdade, na forma que S. Maj. Manda”, deveria ser inicialmente uma condição excepcional e não a regra, na ótica de Mendonça Furtado. Procurando mitigar, expressamente, a Lei de Liberdades, ele pediu para o Rei, atendendo à rusticidade dos índios e à preguiça que lhes é natural e igualmente à necessidade dos Moradores, ordenar que, sem embargo da sobredita lei das liberdades, não pudessem os mesmos índios sair por ora das casas e fazendas em que se achavam, pagando-lhes os seus amos o trabalho como a quaisquer criados, modificando-se por ora assim a lei, para se fazer menos odiosa aos Moradores101.

Essa seria, em essência, a mesma justificativa que abriria o texto do Diretório dos Índios de 1757 (FURTADO, 1758). A crer-se na narrativa do Governador e Capitão General do Estado, no mesmo dia de 1757 em que se publicaram finalmente as leis de 1755, a consternação dos moradores transformou-se em alívio quando foi lido o bando estabelecendo que os índios a serviço dos moradores seriam sujeitados ao Regimento dos Órfãos, ou seja, às normas das Ordenações sobre o Juízos de Órfãos (o que não era, de forma alguma, previsto na Lei das Liberdades de 1755)102. Caberia

100

Carta de 30/8/1757 de Mendonça Furtado a Gonçalo Pereira Lobato de Sousa (MENDONÇA, 2005, p. 341, vol.III). 101 Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Tomé Joaquim da Costa Corte-Real, datada de 11 de junho de 1757 (MENDONÇA, 2005, p. 295, vol. III). 102 Carta de 11/7/1757 de Mendonça Furtado a Tomé Joaquim da Costa Corte-Real (MENDONÇA, 2005, p. 295-296, vol. III).

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aos moradores regularizar os índios a seu serviço nos moldes do estatuto dos órfãos, registrando-os junto à autoridade competente. Fato digno de nota: o juiz de órfãos, e não o Procurador dos Índios (cargo existente no Estado ao menos desde 1655103) é que seria encarregado, a princípio, de velar pelos índios “que não têm conhecimento do bem que se segue do trabalho”104. Função própria da América portuguesa, o Procurador dos Índios “atuava como advogado e auxiliar dos índios”, sem função jurisdicional (MELLO, 2012, p. 223). Originadas em um determinado contexto (no qual os resgates eram permitidos, os aldeamentos eram dirigidos temporalmente pelos missionários e existiam infindos casos de dúvidas sobre a legitimidade dos cativeiros), as incumbências do Procurador dos Índios certamente mudariam muito ou perderiam grande parte de sua relevância após as Leis de Liberdade de 1755. Salta aos olhos o fato de que, ao contrário do Procurador dos Índios, o Juiz de Órfãos era escolhido em um processo no qual não influíam os eclesiásticos. A retirada dos índios da tutela missionária orientava-se mais para a busca de uma nova e laicizada tutela do que à emancipação tout-court. Assim, fazia sentido assimilar os novos vassalos às crianças – de juízo insuficiente, sem conhecimento dos negócios civis e mercantis, portanto hipossuficientes e suscetíveis de serem enganados. Como as crianças constituem um padrão – e uma metáfora – para avaliar outras situações de humanidade diminuída, o que se diz das crianças diz-se, por extensão, dos rústicos, dos nativos, dos dementes e dos velhos. [...]. Por um lado, dizia-se que eram imperfeitos e carentes de um pleno juízo humano. E, com isto, eram afastados das responsabilidades civis e políticas. Mas, por outro, não se quebrava de vez o seu vínculo com a humanidade, nem se estilhaçava a unidade do género humano, princípio teologicamente intangível. Era tudo

103

Segundo Márcia Eliane Souza e Mello, o cargo foi introduzido no Estado do Brasil em 1596; no Estado do maranhão, já era mencionado na lei de 9 de abril de 1655 (MELLO, 2012). 104 Carta de 30/8/1757 de Mendonça Furtado ao governador do Maranhão, Gonçalo Pereira Lobato de Sousa (MENDONÇA, 2005, p. 341, vol.III).

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questão de tempo e de educação. Este estatuto assenta como uma luva aos rústicos e, mais tarde, aos povos nativos, permitindo evitar o conceito aristotélico de escravos por natureza, esse sim prejudicial do dogma católico da salvação universal e justificando, ao mesmo tempo, a tarefa de direcção temporal e espiritual imposta pelos europeus. (HESPANHA, 2008, p. 42;50-51).

Essa parece ter sido, entretanto, um encaminhamento jurídico de curta duração, substituído pelo Diretório. Mas a concepção geral dos índios como tutelados permaneceu no Diretório. Entre as funções do Juiz de Órfãos, de acordo com as Ordenações, estavam: 1. Cuidar dos órfãos, de seus bens e rendas. 2. Fazer um levantamento dos órfãos do lugar. [...] 4. Fazer com que os culpados por danos aos bens dos órfãos paguem por seus crimes. [...] 7. Entregar os órfãos menores e desamparados a pessoas capazes de cria-los. 8. Fazer pregão dos órfãos maiores de sete anos, que forem dados por soldada. 9. Garantir o necessário ao mantimento, vestuário, calçado, e tudo o mais dos órfãos que não forem dados por soldada, mandando registrar os gastos no inventário. 10. Mandar ensinar a ler e escrever aos órfãos, que tiverem qualidade para isto, até a idade de 12 anos (SALGADO, 1985, p. 263).

Como no Diretório, já se enxergam aí as características de uma tutela pensada como transitória e necessária para tornar seus pacientes “úteis a si e à República”. Essas atribuições (garantir o ensino da leitura e escrita em língua portuguesa, velar pelo necessário para a reprodução como alimentação e vestuário, no cultivo da roça do comum, supervisionar a entrega dos indivíduos para o trabalho remunerado ou soldada, inventariar os bens dos tutelados) seriam confiadas aos diretores. Dessa forma, o Diretório expressa a forma como, localmente, as diferentes demandas e pressões de moradores, agentes régios e índios moldaram a aplicação das Leis de Liberdade. A prática dessa legislação não estava destinada a ser tranquila.

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Mesmo do ponto de vista de alguns contemporâneos, as antinomias entre a intenção original (e radical) das Leis de Liberdade e sua regulamentação não passariam despercebidas. Pestana da Silva, que serviu como o segundo ouvidor da capitania do Rio Negro, participou da implementação do projeto reformador. Ele questionava diretamente o fato da “Lei para os índios serem governados por seus nacionais” estabelecer que os juízes ordinários, vereadores e demais oficiais deveriam exercer o governo temporal, como em todo o império, mas o Diretório cometia aos diretores “toda a execução do dito governo” (SILVA, 2007, p. 286). O trabalho compulsório contradizia as Leis das Liberdades, pois como indagava Pestana da Silva, “Se os Índios são livres como dizem as leis, e recomendam os pontífices romanos, para que hão de ser obrigados a servir a título de distribuição?” (p. 300). Seria em meio a essas contradições novas e antigas que se desenrolariam as transformações ao longo de meio século.

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2 Rio Negro e Pará: demografia e economia

As reformas pombalinas ocorrem possivelmente no ponto mais baixo da catástrofe demográfica indígena do período colonial na Amazônia. É bem conhecido o que se passou com os povos nativos da América como um todo, após a conquista. Para 1492, Denevan estimou o total da população do continente americano em 53,9 milhões de pessoas, ou, com uma margem de erro de 20% para mais ou para menos, entre 43 e 65 milhões (DENEVAN, 2003, p. 178; PORRO, 1995, p. 23). A redução da população foi, em grande parte do continente, da ordem de 90% a 97% no primeiro século de colonização (SANCHEZ-ALBORNOZ, 1990, p. 17; PORRO, 1995, p. 23). Embora os relatos dos primeiros europeus a explorar a calha do Amazonas nos séculos XVI e XVIII soem exagerados hoje (mencionando cidades indígenas com 3 mil a 8 mil habitantes), a arqueologia tem encontrado evidências de grandes áreas de ocupação contínua por 800 e até mais de 1400 anos, as “terras pretas de índio”, com extensão de até 6 km de comprimento e compreendendo 100-200 hectares de área, nos rios Caquetá (Japurá), Negro, Solimões, Tapajós e Amazonas. Na ilha de Marajó, a arqueologia já encontrou evidências de comunidades que devem ter abrigado, cada uma, mais de 10 mil habitantes. Tanto a várzea quanto a terra firme podiam sustentar uma população muito maior do que se supunha até os anos 1970. Escavações recentes indicam que uma aldeia em terra firme, no alto Xingu, estendia-se por 30 a 50 hectares, comportando uma população de no mínimo 1000-1500 pessoas. Atualmente, na mesma região, uma aldeia Kuikuru não excede 6 hectares e 330 pessoas (DENEVAN, 2003, p. 180-182). Esta última se aproxima da dimensão, aliás,

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de grande parte das povoações da Amazônia colonial no período estudado neste trabalho. Somente para a região amazônica como um todo, Denevan calcula que a população nativa em 1492 era de 5 a 6 milhões de pessoas (3 a 4 milhões para a bacia amazônica) (DENEVAN, 2003, p. 187). O contraste dessa ordem de grandeza com a da população dos estabelecimentos coloniais das capitanias do Pará e Rio Negro na segunda metade do século XVIII, que somadas não chegavam perto de 100 mil pessoas, é espantoso. No capítulo anterior, tivemos alguns elementos para dimensionar o impacto dos descimentos, resgates, “guerras justas” e as variadas formas de cativeiro ilegítimo. Mas o fator que em todo o continente americano causou o maior impacto foi o choque epidemiológico. Dois episódios próximos no tempo exemplificam as diferentes ordens de grandeza da letalidade da guerra e dos patógenos: a brutal guerra contra os Manau, na década de 1720, teria levado 2800 índios à morte (FARAGE, 1991), mas uma única epidemia de sarampo, em 1743, teria ceifado a vida de 18.377 pessoas, quase todas índias e mamelucas, na capital, e um total de possivelmente 40 mil se computadas as aldeias missionárias do interior e povos independentes (FARAGE, 1991).105 No século XVI, no Estado do Brasil, epidemias dizimaram as populações que sobreviveram às guerras do primeiro século. Em ambos os Estados da América Portuguesa, no século XVII, outros contágios devastaram as populações nativas. No

105

Em Lisboa, uma cidade então 20 vezes maior que Belém, o grande terremoto de 1755 teria destruído de 6 a 15 mil vidas (MONTEIRO, 2008, p. 103). O padre João Daniel afirmava que na epidemia de sarampão de 1749-1750, haviam morrido 30 mil índios nas missões (DANIEL, 2004a, p. 385)

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século XVIII, a varíola e o sarampo causaram um impacto duradouro nas populações ameríndias independentes e aldeadas. A terrível epidemia de sarampo de 1749 foi descrita em um opúsculo famoso, a Noticia verdadeyra do Terrivel Contagio..., cuja autoria foi atribuída ao presbítero Manoel Ferreira Leonardo, familiar do bispo do Pará, Frei Miguel de Bulhões. O relato começa lembrando que depois da terrível epidemia de varíola de 1724, cujo fogo mal se aplacara, tornavam-se a levantar maiores chamas (agora, do sarampo): no princípio de Outubro de 1748, sendo já no anno de 1742, mais rigoroso mal. Procedeu este contágio de humas canoas, que vierão do Certão, cheyas de Escravos, todos inficionados com o sarampo, mas tão pouco conhecido dos Cirurgioens mais experimentados, que os poucos sinaes fazião desmentir toda a malignidade. Principiou-se a aplicar remédios, mas forão tão infructíferos, que se a huns servião de triaga, a outros erão veneno [...]. Os mesmos, que já parecião estavão livres do susto, [...] segunda vez sentião os colpes da enfermidade. A estes terríveis assaltos se congregarão os impulsos de vômitos de sangue, e diarrhéas, que finalmente pagavão à morte o seu tributo. Tal Senhor houve, que deu à terra mais de cem escravos, entre pretos, e malucos, caboucos, e mestiços Não havia nos Conventos sepulturas para mortos; sirvião os campos de campa aos cadáveres. Dous meses durou este funesto [e] perigoso achaque, mas passados estes, degenerou em febres malignas, estupores, e papeiras, às quaes doenças se applicavão remédios redículos, e de pouca utilidade [...]. Enfim não houve Tapuya, ou quem dele tivesse sangue, que não padecesse a força deste contagio. Servio de privilégio aos filhos do Reyno (LEONARDO, 1749).

Em cores vívidas, o registro sublinha a suscetibilidade de índios e mestiços ao sarampo, que não tinha a mesma letalidade para os europeus, “filhos do Reyno”. Manoel Leonardo acrescentou, porém, que como eram os índios que faziam todo o transporte de alimentos para a cidade, a carestia atingiu a todos. O horror não deixava de crescer:

Já não havião pretos [negros da terra – os índios] que lavassem os defuntos; porque ou temerosos do contágio, ou menos compassivos da dor, ausentavão-se de semelhantes actos. Os escravos erão levados pelos mesmos Senhores, e os hião lançar às féras nos matoz

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vezinhos à Cidade [...], outros ao mar, nas portas das Igrejas [...] (LEONARDO, 1749).

A despeito das fervorosas orações do padre Malagrida e das compungidas procissões dos Mercedários, dos Capuchos da Província de Santo Antônio e seus irmãos seculares da Terceira Ordem, no intuito de obter a misericórdia divina, o autor da Notícia Verdadeira conclui um tanto materialisticamente que a epidemia arrefecera “porque já não há Tapuyas, em que o mal empregue os seus golpes.” Mesmo na Europa a incidência da varíola ao longo do século XVIII causou devastações, antes da generalização da inoculação e da vacinação. Em 1733 a corte real portuguesa em Lisboa foi atingida por uma epidemia, embora sem mortes (MONTEIRO, 2008, p. 33), e na França o próprio rei Luís XV morreria de varíola em 1774. Naquele continente, durante o inverno de 1709-1710 houve uma forte contribuição da varíola para uma crise de mortalidade em vários lugares (BIRABEN, 1984, p. 134). Evidentemente, o impacto dessa doença na América tinha outra dimensão: havia menos recursos para combater a disseminação das epidemias (as quarentenas impostas rigidamente na Europa não tem paralelo na América Portuguesa); a resistência da população ameríndia era muito menor que a dos europeus, pois ainda não havia anticorpos para ela na população nativa deste lado do Atlântico; dessa forma, enquanto na Europa a varíola atingia principalmente crianças, entre os ameríndios atingia todas as faixas etárias. Como explica Crosby,

Os indígenas das Américas e da Austrália permaneceram quase absolutamente isolados dos germes do Velho Mundo até as últimas centenas de anos [...]. Os ameríndios certamente conheciam o purupuru, a bouba, a sífilis venérea, a hepatite, a encefalite, a pólio, algumas variedades de tuberculose [...] e parasitos intestinais; mas parecem jamais ter tido alguma experiência com enfermidades do Velho Mundo como varíola, sarampo, difteria, tracoma, coqueluche, catapora, peste bubônica, malária, febre tifoide, cólera, febre amarela, dengue, escarlatina, disenteria amébica, gripe e uma série de

141

manifestações helmínticas (CROSBY, 2011, p. 207).

Teodósio Constantino de Chermont, na década de 1780, escreveu a pedido do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira um resumo das grandes epidemias que assolaram o Estado ao longo daquele século. Em 1724, dizia essa Memória, só na cidade do Pará e suas vizinhanças, teriam se contado 15 mil mortos, ceifados pelas bexigas (varíola).106 A população mal tinha tempo para recuperar-se antes de novas ondas de contágio. As expedições de resgate, intensificadas a partir de então, depois da guerra contra os Manau, levavam as doenças para os sertões e comunicavam as epidemias de volta à capital e arredores, junto com os cativos. Os mais atingidos, sempre, eram os índios e, em menor escala, os mamelucos. Isso comprometia profundamente a produção e o transporte de alimentos, dependentes do trabalho indígena, o que amplificava as consequências das epidemias.

Em 1740 repetiu o mesmo contágio e, ainda que menos mortífero, sempre fez grande estrago, principalmente no sertão, onde Frei José da Madalena, religioso carmelita, superior das missões da sua ordem no Rio Negro, fez inocular, pela primeira vez no Estado, por cujo motivo salvou grande número de pessoas. Em 1749, governando o Estado o Exmo. Sr. Francisco Pedro Gurjão, mandou visitar as fortalezas dele pelo capitão mor José Miguel Pires. Quando baixou desta diligência do gentio extraído do Rio Branco, teve princípio o contágio do sarampo, que se comunicou ao Estado. Por ocasião da extração do dito gentio, foram vistos lugares naquele rio que, sendo antes habitado de inumerável gentio, então não mostravam outros sinais mais do que os ossos dos corpos que haviam perecido. Os que escaparam do contágio não escaparam do cativeiro. Na cidade e em todo o Estado, fez tal estrago que, por isso, mereceu o distintivo de ser chamado o sarampo grande. Ele não era mortífero por si, mas da disenteria acessória nenhum escapou. A penúria foi tão grande na cidade, que não havia com que sustentar os sãos, e que faria os doentes! Para estes, era grande felicidade achar uma galinha

106

Tenente-coronel Teodósio Constantino de Chermont, Memória dos mais terríveis contágios de bexigas e sarampo deste Estado desde o ano de 1720 por diante, posteriores às que manifestam os Anais Históricos do Maranhão, pelo Exmo. Sr. Bernardo Pereira de Berredo, nos anos de 1621 (§ 487) e de 1663 (§ 1109) (FERREIRA, 2007, pp. 103-105).

142

pelo peso de uma oitava de ouro.107

Ainda de acordo com Chermont, no governo de Mendonça Furtado, de 1751 a 1759, duas epidemias de sarampo e varíola causaram estrago entre uma população indígena ainda não recuperada da devastação recente. Todas as atividades econômicas, assim como o serviço real, eram atingidas, embora a capital nunca mais tivesse sofrido estrago tão grande quanto na primeira metade do século.

Em 1762, governando o Ilmo. e Exmo. Sr. Manoel Bernardo de Melo [e] Castro, foi tal o contágio, que não bastavam quatro hospitais para receber o número do índios doentes que resultavam do serviço régio, ocupados na factura da nau Belém e corte das madeiras para a carga das charruas. A mortandade foi tanta que raras vezes se abria sepultura para um só cadáver. Pelos anos de 1763 até 1772, governando o Ilmo. [e] Exmo. Sr. Fernando da Costa de Ataíde [e] Teive, foi o Estado, por diferentes vezes, acometido dos sobreditos contágios de bexigas e sarampo. A capital, contudo, não sofreu em proporções do estrago que experimentou a vila de São José do Macapá, porque, sendo menor o número dos habitantes da vila, foi sem comparação maior o número dos mortos.108

Ainda em 1776, no governo de Pereira Caldas, o memorialista cita duas epidemias que, embora “mais benignas” que as anteriores, teriam provocado grande devastação entre índios e escravos e “principalmente” na “mocidade da tropa, sendo vítimas dos seus estragos dous alferes e oitenta soldados”. Note-se que Chermont se refere aqui à tropa de linha, composta inicialmente de elementos do reino. Discutiremos adiante as marcas dessa epidemia no censo de 1777.

107 108

Id., ibidem. Id., ibidem.

143

No século XVIII a varíola espalhou-se até os confins ocidentais da Amazônia, como se vê na descrição de vários índios capturados no Japurá, Içá e Alto Rio Negro na década de 1740, que eram registrados em Belém com sinais de bexigas109. De origem viral, transmitida “por contato direto ou indireto (ou seja, pelo ar, portador de gotas de saliva e poeiras infectadas pelas escamações finas da pele, ou ainda por objetos usados pelos doentes)”, a varíola tem seu potencial de contágio diminuído pela chuva e umidade, o que poderia ser uma vantagem no clima amazônico. No entanto, essa diminuição da virulência não se verifica quando há grandes ajuntamentos de doentes (BIRABEN, 1984, p. 127). Quando se manifesta, depois de 12 dias de incubação no corpo da pessoa infectada, começa

“um grande calafrio, a temperatura sobe a 40º ou 41º [...], o pulso bate a 100 ou 120 por minuto, e uma violentíssima cefaleia se declara. Um ou dois dias depois, aparecem as dores dorsolombares muito características, que se irradiam pelas pernas. A respiração é curta, as mucosas congestionadas e muito frequentemente acompanham vômitos e delírio. Por volta do quarto dia, aparece no queixo e na testa uma erupção que se estende progressivamente pela face, mucosa bucal, braços, costas, peito e atinge as pernas [...]. A febre, porém, cai. Quanto mais precoce for a erupção, mais grave será a varíola [...] [cada erupção] evolui isoladamente, em mancha, pápula, vesícula e enfim pústula. Depois, os sinais gerais melhoram pouco a pouco, volta o apetite e, aproximadamente, no 20º dia começa a convalescença, com a queda das cascas das pústulas. Cicatrizes permanecem, testemunhando a importância das destruições celulares (BIRABEN, 1984, p. 126-127).

As roupas guardadas de um doente podem conservar o vírus vivo por dois a três anos. O vírus pode ser transportado por cartas e até por insetos (BIRABEN, 1984, p. 127-128).

Por exemplo, o “mocetão” de nação Baniwa “chamado Helias de idade ao parecer de dezoito anos com bastantes sinaes de bexigas” (termo de registro de primeiro de dezembro de 1747, MEIRA, 1994, p. 163). 109

144

A varíola normalmente é mais letal em crianças do que em adultos, o que potencializa seu impacto para as gerações seguintes. Dessa forma, mesmo na Europa, “as perdas demográficas têm consequências de longa duração, que se desfazem gradualmente só muito tempo depois de as gerações afetadas pela crise terem saído de cena” (LIVI-BACCI, 1984, p. 101). Epidemias de tifo e de peste, na Europa, causavam crises de mortalidade de tipo “a” (mortalidade jovem-adulta), enquanto que as de varíola causavam uma crise de mortalidade de tipo “b” (mortalidade infanto-juvenil) (LIVI-BACCI, 1984, p. 105). Porém, “quando uma população é atacada pela primeira vez, todas as idades são atingidas” (BIRABEN, 1984, p. 128). O que tivemos na Amazônia na primeira metade do século XVIII foi, portanto, o pior dos mundos: uma combinação dos tipos “a” e “b”. Quando as comunidades atingidas são de dimensões reduzidas, como uma aldeia, a epidemia de varíola extingue-se rápida e espontaneamente, a não ser que as trocas com o mundo exterior sejam constantes, fazendo a moléstia circular de um grupo a outro sem se extinguir. Cidades com mais de 20 mil habitantes são um potencial repositório permanente de vírus, com surtos epidêmicos periódicos a cada 4 anos, aproximadamente (BIRABEN, 1984, p. 128). A primeira condição estava presente em alguns rios amazônicos setecentistas, com as frequentes expedições de resgate e de coleta de drogas, mas a segunda provavelmente não se aplicava à região objeto deste estudo. Belém, o maior centro, não chegava a 20 mil habitantes. A periodicidade das epidemias citadas por Chermont de Miranda pode se dever mais à sua condição de importante porto do Atlântico, receptor de africanos escravizados. No norte da América Portuguesa, como veremos a seguir, depois dos maiores surtos epidêmicos terem ocorrido até 1749, parece ter havido uma estabilização e

145

mesmo uma recuperação crescente da população ao longo da segunda metade do século.

2.1 Contagem da população: das primeiras tentativas à sistematização

No século XVIII, com todos esses impactos, quais seriam as dimensões reais da população amazônica vinculada de alguma forma à monarquia pluricontinental lusa? Como essa população evoluiu durante a reorganização do espaço, da política, da sociedade e da economia após a década de 1750, terminado o ciclo mais intenso das epidemias? Como para tudo o mais, dependemos das fontes, cuja produção e sobrevivência dependeram das opções e prioridades dos sujeitos históricos e de muitas circunstâncias fortuitas. Novamente, vemos uma diferença nítida de padrão entre a primeira e a segunda metade do século. Em 1727 o rei João V pediu ao bispo do Pará que lhe enviasse uma lista de todos os moradores do bispado, incluindo os pequenos, e discriminando brancos, mamelucos e negros.110 De forma surpreendente para leitores do século XXI, não se propunha para essa lista a categoria “índios”, provavelmente subsumida entre os “negros” (como no conhecido uso do termo negros da terra, presumivelmente). No ano seguinte o bispo respondeu ter posto “todo o cuidado para que nas freguesias se fizessem o rol das confissões”, tendo sido necessário mesmo passar uma pastoral para que cada hum desse a rol não só as pessoas brancas, mas também as escravas; e por estarem no detestável costume, de que só acabado o tempo quaresmal dava cada hum o rol de seus escravos, que se tinham confessado fora da cidade, nesta ou naquela capella, e a maior q.de em casas, levantando-

110

1728, Setembro, 14, Belém do Pará. CARTA do Bispo do Pará, [D. fr. Bartolomeu do Pilar], para o rei [D. João V], sobre uma lista que elaborou com o número total de habitantes que compõem o seu bispado. AHU_CU_013, Cx. 11, D. 973.

146

se em palhoças com grande indecência altares portáteis, ficando desta sorte por saber os que se não tinhão confessado.111

Segundo o bispo, houve oposição dos moradores à pastoral e o próprio governador lhes insinuara que o cura perguntava pelos nomes dos escravos por querer toma-los. Não é despropositado supor que esses temores eram motivados pela consciência, por parte dos moradores, da ilegitimidade generalizada do cativeiro indígena. Somente dois anos depois o bispo conseguiu enviar a lista solicitada pelo soberano, admitindo faltarem na contagem os índios aldeados pelos mercedários e muitos escravos que os amos não quiseram revelar, por acharem que “não lhes convinha”. Havia brancos e mamelucos pelos sertões fugidos da justiça, que nem os párocos conheciam nem lhes sabiam os nomes, não tendo como incluí-los nas listas. “Enfim, fiz o que pude”, suspirava o bispo.112 Infelizmente, a lista remetida não foi conservada junto com a carta e não dispomos dos números que o bispo teria conseguido coligir, mas o episódio é um indício de como, na primeira metade do século, as contagens populacionais eram imprecisas e difíceis de executar (com a resistência dos moradores suplantando as forças das autoridades), além de não parecerem não ter sido tão prioritárias aos agentes régios até então. Em 1756, nova tentativa. O bispo Miguel de Bulhões informava ao secretário de Estado de marinha e Ultramar que a ordem real para que “cada hum dos párocos desta diocese” declarasse todas as pessoas que havia de comunhão nas suas freguesias necessitaria de tanto tempo que não seria possível enviar as informações

111

AHU_CU_013, Cx. 11, D. 973. 1730, Setembro, 19, Belém do Pará. CARTA do Bispo do Pará, [D. fr. Bartolomeu do Pilar], para o rei [D. João V], enviando lista de todos os habitantes do seu bispado, à excepção das aldeias administradas pelos missionários de Nossa Senhora das Mercês e informando que o número de escravos é diminuto, porque os seus senhores não o quiseram revelar. AHU_CU_013, Cx. 12, D. 1138. 112

147

solicitadas na frota seguinte, mas prometia fazer tudo com “brevidade e prontidão”.113 Um ano depois, desculpava-se com o secretário pelo atraso, pois o Alvará de 7 de junho de 1755 acrescentara à sua jurisdição 64 novas freguesias (as antigas missões). Mas prometia remeter a relação na frota seguinte.114 O bispo, contudo, parece não ter voltado a tocar no assunto, não sendo encontrado até agora nenhum recenseamento anterior à década de 1760. Até essa altura da história, temos poucos elementos para calcular a população da região. Não parece ter fundamento a estimativa proposta por Lourenço Amazonas de 100 mil habitantes em 1750 para a área do que se tornaria a capitania do Rio Negro, não obstante a notável erudição desse militar e grande conhecedor da Amazônia. Sem indicar fontes, ele estimava 100 mil habitantes em 30 mil fogos em 1750, somente na região que se tornaria pouco depois a Capitania do Rio Negro, a partir de um rol de 45 povoações dos rios Negro, Solimões, Madeira e mesmo do rio Branco, que só teria aldeamentos depois de 1775 (AMAZONAS, 1852, p. 241). Aparentemente, ele cometeu um lapso nesse caso, embora Arthur Cezar Ferreira Reis tenha aceitado esses números sem objeções (REIS, 1989, p. 84). Essa estimativa significaria mais de 2.200 habitantes e mais de 660 fogos em cada povoação, em média, sendo que as 5 povoações do Rio Branco somadas nunca tiveram mais de 1200 pessoas, por exemplo. Na verdade, povoações com mais de 2 mil habitantes, fora de Belém e Cametá, eram absolutamente excepcionais no Estado do Grão-Pará

113

1756, Novembro, 9, Pará. OFÍCIO do [governador interino do Estado do Maranhão e Pará], Bispo do Pará, [D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa], para o [ex-secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Diogo de Mendonça Corte Real, sobre a ordem recebida para a realização um censo estatístico dos rios, lugares e povoações daquele Bispado. AHU_CU_013, Cx. 41, D. 3800. 114 1757, Novembro, 28, Pará. OFÍCIO do [governador interino do Estado do Maranhão e Pará], Bispo do Pará, [D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa], para o [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre o atraso na entrega da relação dos lugares, povoações e freguesias pertencentes ao bispado do Pará. AHU_CU_013, Cx. 43, D. 3916.

148

como um todo. No Rio Negro, a maior povoação era a capital Barcelos, com 1153 habitantes em 1785. O próprio Arthur Cézar Ferreira Reis anota que a população total da capitania do Rio Negro em 1767 era de 5.289 pessoas (REIS, 1989, p. 124). É bom lembrar que Boxer considerava razoavelmente acurada a estimativa de João Lucio de Azevedo de uma população de 50 mil índios para as 63 missões de toda a Amazônia portuguesa antes da grande epidemia de varíola de 1743-1750 (BOXER, 1995, p. 290-291), ao que poderíamos somar menos de 5 mil habitantes da capital e das vilas então existentes. Ou seja, metade do que Lourenço Amazonas propunha apenas para a metade ocidental dessa região. Em 1765, uma contagem da população da capitania do Pará foi coligida pelo vigário capitular Giraldo José de Abranches a partir dos róis de confessados115: Tabela 1: Relação das pessoas que habitam as freguesias da capitania do Pará em 1765 Freguesia

Maiores

Menores

Todos

-

-

3775

3939

200

4139

São Domingos da Boa Vista

679

42

721

S. Miguel da Cachoeira do Guamá

683

82

765

-

-

306

135

7

142

S. Bento do mesmo Rio

63

30

93

Sancta Anna do Bujarú

-

-

292

S. José do Rio Acará

-

-

552

Espírito Sancto do Rio Mojú

204

4

208

Sancta Anna do Igarapé Merim

108

-

108

N. Snra. Da Conceição do Rio Abaité

191

12

203

Freguezia da Sancta Sé Freguezia de N. Snra. Do Rozario da Campina

N. Snra. Da Piedade do Rio Yrituya Sancta Anna do Rio Capim

115

OFÍCIO do administrador do bispado do Pará, Giraldo José de Abranches, Para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, remetendo para o tribunal da Mesa da Consciência e Ordens uma Relação das remunerações e moderações do Escrivão da Câmara Eclesiástica da capitania do Pará, assim como uma relação das igrejas paroquiais, Freguesias e Povoações daquela Capitania e das pessoas que nelas habitam, conforme os róis dos Confessados do ano de 1765, excluindo-se os de Marajó, Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira, Vila de Oeiras, São José do Macapá e da capitania do Rio Negro, por dúvidas e atrasos no acesso à informação desejada. AHU_CU_013, Cx. 58, D. 5242.

149

Sancta Cruz de Villa Viçoza do Cametá

4180

551

4731

N. Snra. De Nazareth da Vigia

1113

127

1240

S. Miguel da Villa de Cintra

688

131

819

Villa de Collares

213

25

238

N. Snra. Do Rozario de Villa nova d'El Rey

101

13

114

S. Miguel da Villa de Beja

157

62

219

S. João Baptista da Villa Viçoza do Conde

317

60

377

S. Francisco da Villa de Monçarás

330

40

370

O Menino Jesus da Villa de Soure

212

24

336 [sic]

N. Snra. Do Rozario da Villa de Monforte

361

100

461

N. Sra. Da Conceição da Villa de Salvaterra

136

70

206

Sancto Antonio do Gurupá

312

40

352

S. Miguel da Villa de Melgaço

801

462

1263

S. Bras de Porto de Moz

303

82

385

S. João Baptista da Villa de Veiros

391

39

430

S. João Baptista da Villa de Pombal

591

28

619

Villa de Souzel

358

258

616

S. Jozé da Villa de Macapá

554

248

802

N. Snra. Da Conceição da Villa de Almeirim

137

15

152

N. Snra. Do Rozario da Villa de Arrayolos

245

44

289

N. Snra. Da Conceição da Villa de Espozende

146

38

184

Sancto Antonio da Villa de Chaves

262

25

287

S. Francisco de Monte Alegre

319

39

358

Villa de Santarem

525

41

566

N. Snra. Da Saúde de Alter do Chão

205

49

254

N. Snra. Da Assumpção de Villa Franca

605

84

689

Sancto Ignacio de Boim

160

31

191

S. Jozé da Villa de Pinhel

188

20

208

Sancto Antonio da Villa de Alenquer

200

40

240

Villa de Óbidos

329

73

402

-

-

504

Villa de Faro

171

49

220

S. João Baptista da Villa de Bragança

580

137

717

60

19

79

111

11

122

42

6

48

N. Snra. Da Conceição de Bemfica

167

25

192

N. Snra. Da Conceição do Lugar de Condeixa

101

34

135

S. Jozé do Lugar de Mondim

150

45

195

99

9

108

141

65

206

Espírito Sancto do Rio Guamá

S. Caetano do Lugar de Odivelas N. Snra. Da Luz de Porto Salvo N. Snra. Da Conceição de Penha Longa

S. Francisco de Villar N. Snra. Da Conceição Ponte da Pedra

150

Sancta Anna de Macapá

222

9

231

92

26

118

Sancta Cruz de Villarinho do Monte

180

30

210

N. Snra. Da Graça do Lugar do Outeiro

111

36

147

Sancto Antonio do Lugar de Fragozo

118

27

145

S. Joaquim do Lugar de Rebordelo

106

21

130

S. João Baptista do Lugar de Azevedo

252

31

283

1095

167

1262

S. Jozé do Lugar de Carrazedo

Villa de Portel Soma geral

33754

Nesse tipo de recenseamento do século XVIII, dada a origem eclesiástica dessas fontes, “menores” e “maiores” referem-se à idade de comunhão (podiam comungar mulheres maiores de 12 anos de idade e homens maiores de 14 anos). Já as crianças com menos de sete anos, incapazes de se confessar, não eram incluídas nessas contagens (MADEIRA, 1999)116. Corrigindo-se o único erro de soma do documento (cem pessoas a mais em Soure), temos um total de 33.654 habitantes para a capitania do Pará, excluída a população da ilha de Marajó. Temos boas razões para acreditar na exatidão da contagem (sempre lembrando que ela só arrolou os maiores de 7 anos), pois os números não são arredondados e a possibilidade de o pároco conhecer cada paroquiano em comunidades tão pequenas é bem elevada (HOLLINGHSWORTH, 1977, p. 34).

116

A diocese do Pará era sufragânea do arcebispado de Lisboa. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que seguiam as normas das arquidioceses de Lisboa e do Porto, nesse aspecto, determinavam nos Títulos XXXVI-XXXVII o controle da obrigação de todos os fiéis se confessarem e comungarem ao menos uma vez por ano, na quaresma, por meio de um “Rol pelas ruas, e casas, e fazendas de seus freguezes, o qual acabarão até a Dominga da Quinquagesima, sendo possivel, e nelle escreverão todos os seus freguezes por seus nomes, e sobrenomes, e os lugares, e ruas onde vivem.” Esse rol nominal deveria diferenciar os maiores e menores de comunhão. Embora todos os maiores de 7 anos estivessem obrigados a participar desse sacramento, os maiores ausentes sem justificativa estavam sujeitos a excomunhão e multa. Já a ausência dos rapazes menores de 14 anos e as moças menores de 12 sujeitava os pais a multa, mas não a excomunhão (CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas e ordenadas pelo Ilmo. e Rmo. Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, 1853 [1707]).

151

O quadro, mesmo excluindo os menores de confissão, oferece uma noção da diferença de tamanho entre a capital (que somava as duas primeiras freguesias) e as dezenas de pequenas comunidades do interior da capitania. Embora os dados sejam incompletos (algumas comunidades não dispõem dos dados desagregados entre menores e maiores de comunhão), o conjunto dos maiores de comunhão (maiores de 12 ou 14 anos, conforme o sexo) é 6 vezes superior ao dos menores de comunhão (meninas de 7 a 12 anos e meninos de 7 a 14 anos), o que não indica uma mortalidade particularmente alta. Mais adiante, utilizaremos dados mais precisos para discutir mortalidade e natalidade dessas populações. Curiosamente, o Vigário Capitular recebera os dados sobre a população da Capitania do Rio Negro, mas recusou-se a incluí-los por considerá-los inverossímeis: Da cappitania do Rio Negro veyo também a lista, mas com tão pouca certeza, e averiguação, que duvido a verdade della; por cuja razão me não atrevo a enviá-la a V. Exa., fazendo-se-me incrível, que tenha somente quatro mil, e tantas almas aquella Cappitania. 117

Não obstante o ceticismo do compilador, “quatro mil e tantas almas” correspondiam efetivamente a uma outra contagem realizada três anos antes pelo ouvidor daquela capitania, Lourenço Pereira da Costa, para a população total de índios das vilas e lugares da Capitania do Rio Negro (PINHEIRO, 1983, p. 80-81)118, como vemos na tabela 2: Tabela 2: Mapa Geral dos índios da capitania do Rio Negro em 1762, pelo ouvidor Lourenço Pereira da Costa119

Localidades

117

Oficiais

Índios de Serviço

Índias

Rapazes

Velhos

Pagãos

Total

OFÍCIO do administrador do bispado do Pará, Giraldo José de Abranches [...]. AHU_CU_013, Cx. 58, D. 5242. 118 Pinheiro, ao transcrever o documento, cometeu um pequeno lapso identificando a datação como 1763, pois no documento original (AHU_CU_020, Cx. 2, D. 113) vemos que se trata de informações do ano de 1762, na verdade. 119 As somas foram corrigidas por mim.

152

Alvelos Ega Nogueira Alvarães Castro de Avelans Fonte Boa Olivença Borba Barcelos Javari Moreira Tomar Poiares Carvoeiro Moura Airão Serpa Silves

4 10 4 3 0 1 6 7 6 1 2 7 12 2 7 2 2 3

48 180 56 22 37 34 124 110 280 19 90 138 204 58 122 56 68 69

125 87 105 26 46 30 163 141 272 37 93 38 250 92 241 48 40 42

53 83 34 23 7 20 77 41 65 23 5 0 101 32 80 0 0 0

8 7 0 0 0 2 0 17 15 3 1 0 10 0 4 0 6 0

0 0 70 79 0 34 76 0 0 0 0 25 97 0 7 21 3 0 Soma total

238 367 269 153 90 121 446 316 638 83 191 208 674 184 461 127 119 114 4799

A população aldeada de toda a capitania do Rio Negro, portanto, elevava-se a um número pouco superior ao de apenas uma das freguesias de Belém. A população de pessoas livres exceto índios aldeados, somada à de escravos africanos, provavelmente não ultrapassava muito as mil pessoas nesse ano, o que elevaria a menos de 6 mil indivíduos a população total da capitania do Rio Negro em 1762. Este seria, sem dúvida, um número pequeno para uma capitania tão extensa, mas compatível com as contagens posteriores. A categoria “pagãos”, que não surge em outros levantamentos encontrados, é muito significativa por dar uma dimensão da importância dos descimentos recentes, de contingentes ainda não batizados. O total de 412 pagãos (8,5% da população aldeada total) é bem expressivo da mobilidade existente sete anos depois das leis de liberdade e da criação da capitania do Rio Negro. Novamente, deparamo-nos com um censo que pode ser útil pela riqueza de informações que oferece, mas que não é comparável com outros “mapas de população”, que sempre eram executados segundo diferentes metodologias e critérios antes da padronização ordenada em 1772. A contagem da tabela 2 não permite, por

153

exemplo, calcular a razão de sexo ou a proporção de cada grupo etário, pois esses dados não estão desagregados no caso dos pagãos ou são imprecisos (“rapazes”, “velhos”). Provavelmente, índios de serviço eram aqueles que designados como tais tanto pelo Regimento (§12) quanto pelo Diretório (§64), ou seja, homens dos 13 aos 60 anos. Se fosse lícito contar como homens todos os oficiais, índios de serviço, rapazes e velhos (descartando-se os dados dos pagãos, impossíveis de desagregar), teríamos 2511 indivíduos do sexo masculino contra 1876 do sexo feminino, o que seria uma razão de sexos muito alta (133,84), incompatível com as contagens posteriores, que seguem outra metodologia. Dois anos depois, a contagem de índios aldeados do Rio Negro enviada pelo governador Tinoco Valente120 ilustra a grande oscilação possível nesses censos da população aldeada. O total sobe para 5467, com acréscimo de novas povoações inexistentes na contagem de 1762, como Marabitenas, Cachoeira e Lamalonga. A população de “aldeados” da vila de Thomar sobe de 208 índios para 485, provavelmente pelo impacto que um grande descimento provocava em comunidades tão pequenas. Em 1766, o governador da Capitania informava que um total de 264 índios haviam descido para diferentes povoações121; em 1767, foram 323122; em 1769, com a fundação de novas povoações no rio Içana123, 1228; em 1771, 628124 e em

120

AHU_CU_020, Cx. 2, D. 120. 1766, Julho, 22, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [governador do Rio Negro, coronel] Joaquim Tinoco Valente ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado a remeter os mapas da tropa e dos novos descimentos dos índios. AHU_CU_020, Cx. 2, D. 131. 122 1767, Agosto, 10, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [governador do Rio Negro, coronel] Joaquim Tinoco Valente para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado a enviar mapas da tropa, homens casados, índios descidos e pessoas capazes de pegar em armas. AHU_CU_020, Cx. 2, D. 143. 123 1769, Agosto, 06, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [governador do Rio Negro, coronel] Joaquim Tinoco Valente ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado a enviar o mapa dos índios recolhidos às povoações. AHU_CU_020, Cx. 2, D. 161. 124 1771, Setembro, 09, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [governador do Rio Negro, coronel] Joaquim Tinoco Valente ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, a remeter 121

154

1772, 199.125 Em outro informe, o governador Tinoco Valente afirmava que durante 10 anos (de 1760 a 1770), um total de 1305 índios teriam sido descidos no total para as diferentes localidades da capitania (FARAGE, 1991), o que perfaz uma média de 130 descidos por ano. Somente no ano de 1781, o governador e capitão-general gabava-se para a rainha D. Maria I de terem sido descidos (por iniciativa de oficiais índios) 743 índios de diferentes nações para as vilas de Portel, Monte Alegre, Macapá, Alter do Chão e Pinhel (Pará), Serpa e Silves (Rio Negro). Ele oferecia uma lista nominativa completa dos descidos, muitos deles com respectivas idades e estado civil. Embora alguns nomes sejam cristãos, recém atribuídos, a grande maioria é de nomes indígenas de diferentes etnias126, indício de que ainda não eram batizados. Naturalmente, o número de pessoas incorporadas à população das duas capitanias por meio de descimentos variava muito a cada ano. Como apontou Maria Regina Celestino de Almeida (1990), isso podia levar frequentemente a enormes variações em muitas vilas e lugares da capitania do Rio Negro. Mas a figura 5 mostra que, no quadro mais amplo das duas capitanias, a contribuição líquida dos descimentos acabava sendo muito reduzida. De 1774 a 1779, o mais alto saldo líquido anual de descimentos (em 1775) equivaleu a cerca de 2% da população aldeada. Uns pelos outros, descimentos e deserções de índios aldeados deixaram um saldo anual, de 1774 a 1779, de cerca de 80 pessoas em média, para as duas capitanias somadas.

o mapa da população de índios que desceram para as povoações da capitania do Rio Negro. AHU_CU_020, Cx. 2, D. 168. 125 1772, Julho, 25, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [governador do Rio Negro, coronel] Joaquim Tinoco Valente ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro a remeter o mapa das deslocações dos índios para as povoações do Rio Negro. AHU_CU_020, Cx. 3, D. 176. 126 CARTA do [governador e capitão general do Estado do Pará e Rio Negro], José de Nápoles Telo de Menezes, para a rainha [D. Maria I], AHU_CU_013, Cx. 88, D. 7159.

155

Comparando-se esse dado com a tabela 5, verifica-se que essa contribuição, ao contrário do que pensava Almeida (1990), era inferior ao crescimento vegetativo da população dos índios aldeados. Para essa autora, as povoações do Diretório eram [...] artificiais e incapazes de se manterem por si mesmas. Eram fundadas e constantemente reabastecidas com migrações internas de populações indígenas deslocadas através dos descimentos, num processo de contínuo esvaziamento das aldeias de origem (ALMEIDA, 1990, p. 12).

Nesse aspecto, a autora segue as conclusões de MacLachlan, para quem as constantes fugas ou deserções requeriam esforços para atrair e fixar novos contingentes indígenas nas povoações (1972, p. 383). No entanto, as fontes podem levar a avaliações um pouco mais matizadas. Afinal, quase todas as povoações consolidaram-se ao longo da segunda metade do século XVIII e a população seguiu aumentando. Isso seria paradoxal se esse crescimento fosse tão inteiramente dependente dos descimentos, que tendiam logicamente a se esgotar à medida em que os territórios eram devassados e as fronteiras tornavam-se mais conhecidas. Um topos recorrente nas fontes do século XVIII era o das “deserções” dos índios aldeados, escapando às prestações de trabalho ou simplesmente para viverem em paz, à sua maneira. Essas ausências podiam ser temporárias ou definitivas. Podiam ser uma forma de pressionar pelo atendimento de determinadas reivindicações. Essas atitudes davam ensejo a acusações de “inconstância”, “ingratidão”, “indolência” e outras disposições de espírito pouco abonadoras atribuídas aos índios pelos agentes régios, clérigos e viajantes que anotaram suas impressões sobre a região.

156

Contudo, as outras pessoas livres também se movimentavam e, na verdade, os números dos censos de 1773 a 1779 registram que os não-aldeados (incluindo brancos) “evadiam-se” mais das capitanias do que os aldeados, com exceção do ano de 1777, na sequência de uma grande epidemia. Muitos documentos conservados no AHU são pedidos de autorização de brancos para se deslocar do Pará ao Reino e vice-versa. O gráfico da figura 5 mostra a dimensão dos descimentos e das “deserções”, no caso dos indígenas aldeados, e dos deslocamentos de entrada e saída das pessoas livres com exceção dos aldeados. Os números foram obtidos subtraindo-se o número de pessoas que “se retiraram” do total de pessoas que “acresceram” nas duas capitanias, em cada grupo (índios aldeados e “livres exceto índios aldeados”). As fontes quantitativas, portanto, mostram um quadro diferente das qualitativas, sempre alarmadas com as deserções que pareciam prestes a transformar as povoações em cidades-fantasmas.

Figura 5: saldos anuais dos movimentos migratórios (1774 a 1779, Pará e Rio Negro)

A esta altura, já ficou evidente que os mapas da população setecentistas ofereciam dados desagregados entre indígenas aldeados e demais grupos, o que é bastante conveniente para os historiadores de hoje. Kelly-Normand (1986) observou que a separação entre vilas e lugares de brancos e de índios aparentemente

157

contradizia o espírito assimilacionista da legislação vigente após 1755, sendo mais condizente com a rígida separação anterior entre índios e brancos do Regimento das Missões de 1686. Ela aponta para o fato de que o grande censo de 1783 foi compilado pelo então Intendente Geral do Comércio dos Índios, Mathias José Ribeiro. No mapa de 1789, a autora destaca que se usou o termo “freguesia” para as povoações de brancos e “povoações” para as de índios. Até que ponto seria consistente essa discriminação e quão contraditória ela seria em relação à legislação reformista? Aparentemente, essa diferenciação entre “freguesias” e “povoações” era uma idiossincrasia sem maior significação, pois outros censos indicam a população em cada povoação, seja ela um lugar ou uma vila, distinguindo apenas as povoações “de índios” das povoações “de brancos”. Na realidade, ocorrera uma padronização administrativa, tanto civil como eclesiástica. Desde 1753 o bispo do Pará, Miguel de Bulhões, aliado de Mendonça Furtado, participava ativamente da conversão das povoações de índios em freguesias, em consonância com as diretrizes de Carvalho e Mello. No final daquele ano, o bispo informava ao secretário de Marinha e Ultramar o domínio quase completo da coroa sobre as antigas capitanias particulares (Cametá, Caeté e, em processo final de ajuste com o barão donatário, a Ilha Grande de Joanes) e a criação de 13 freguesias sob párocos seculares.127 Antes disso, em 1751, já tinha obtido do rei D. José o direito de realizar as visitações episcopais às aldeias do Estado (prerrogativa contra a qual se bateram por décadas os superiores das ordens missionárias), sendo mesmo

127

1753, Novembro, 27, Pará. OFÍCIO do [governador interino da capitania do Pará], Bispo do Pará, [D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa], para o [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Diogo de Mendonça Corte Real, sobre o meio mais eficaz de se extinguirem, a pouco e pouco, as Aldeias de índios, e a partir delas, se fundarem povoações e freguesias. AHU_CU_013, Cx. 35, D. 3310.

158

encarregado de informar à Coroa de quantos clérigos dispunha a diocese para substituir os regulares e paroquiar os índios aldeados (até então sob a jurisdição dos missionários).128 Nesse processo, contou com os carmelitas como aliados, entregando a eles a administração paroquial das povoações do rio Negro e do Solimões em 1758129. Em 1759, ano da expulsão dos jesuítas, o bispo do Pará já tinha conseguido finalmente impor sua autoridade sobre as povoações do interior, anteriormente imunes às visitações episcopais, dividindo todo o estado em freguesias130. Com exceção de Belém, que tinha duas freguesias, de forma geral cada vila ou lugar (de brancos ou de índios) correspondia a uma freguesia, de acordo com essa reorganização do bispado. Resta o fato de que, realmente, desde pelo menos 1727 no Estado do Maranhão e Grão-Pará, como se viu, a coroa solicitava a contagem da população com números separados de brancos, mamelucos e negros (termo que provavelmente designava os índios, como “negros da terra”). É legítima a pergunta de Kelly-Normand: por que razão quase todos os censos oferecem os dados populacionais desagregados entre índios e brancos, mesmo após a proclamação da igualdade entre vassalos brancos e vassalos índios da América? Uma das únicas exceções, como vimos, foi a

128

1751, Abril,26, PROVISÃO (cópia) do rei [D. José] para o Bispo do Pará, [D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa], sobre o modo como as visitas às Missões se deveriam realizar, à semelhança do acontecido em Goa; e solicitando informações sobre os Clérigos disponíveis naquela Diocese para missionarem nas Aldeias da capitania do Pará. AHU_CU_013, Cx. 32, D. 3036. 129 1758, Julho, 15, Pará. OFÍCIO do Bispo do Pará, [D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa], para o [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a entrega da administração paroquial das povoações dos Rios Negro e Solimões aos religiosos da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, pela obediência e rectidão ao alvará de 7 de Junho de 1755 junto das povoações dos índios do Estado do Pará. Anexo: termo (cópia). AHU_CU_013, Cx. 43, D. 3955. 130 GALLUZZI, Henrique Antonio. Mappa geral do bispado do Pará: repartido nas suas freguezias que nele fundou, e erigio o Exmo. e Revmo. Snr. D. Fr. Miguel de Bulhões III Bispo do Para. [S.l.: s.n.], 1759. 1 mapa ms. em 4 seções, col., desenho a nanquim col., cada seção 59,5 x 45,5. Disponível em: . Acesso em: 2 ago. 2016.

159

contagem feita a partir dos róis de confessados pelo vigário e visitador da Inquisição, Dom Giraldo Abranches, em 1765, que discrimina a população recenseada apenas entre maiores e menores de comunhão, sem diferenciar brancos, índios, mamelucos, negros e outros mestiços. Mas a instrução oficial mais antiga131 que pude encontrar, determinando a forma e os cuidados para a realização dos censos, é de 2 de outubro de 1772, referida por João Pereira Caldas (governador do Estado). Ele transmitiria a Tinoco Valente, governador do Rio Negro, em 25 de novembro de 1772, a ordem de Martinho de Melo e Castro para que a contagem da população do Estado fosse realizada anualmente tendo como referência as pessoas residindo em cada localidade no último dia do mês de junho de cada ano. Recomendava especial cuidado para que os párocos de cada freguesia, que “não costumão ordinariamente incluir nos seus róes de desobriga132 as crianças da idade de hum a sete anos, [...] não as omitão nos seus registos, para que os mapas se formem sempre com a maior exacção, e sem diferença alguma dos referidos modelos”. O primeiro censo produzido com base nessas instruções de fato é datado de primeiro de julho de 1773, mas os que foram feitos posteriormente (1774 a 1779, 1785) foram todos datados do dia primeiro de janeiro de cada ano. Pereira Caldas, por sua vez, informava ao secretário de Estado de Marinha e Ultramar que remetera as instruções e os modelos aos governadores das capitanias

131

1773, Maio, 15, Pará. OFÍCIO do governador e capitão general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, remetendo cópias da ordem e modelos que enviou aos governadores das capitanias subalternas e aos párocos das freguesias daquela, para que lhe fornecessem o número de habitantes de cada, necessário para a realização correta do censo da população daquele Estado. Anexo: ofícios (cópias) e mapas. AHU_CU_013, Cx. 70, D. 6002. Em 1776 e 1797, novas instruções para a contagem da população foram enviadas a governadores de todo o império (MATOS e SOUZA, 2015, p. 82). 132 São os róis ou listas de confessados. Somente pessoas de comunhão podiam se confessar. Usase o termo “desobriga” referindo-se a desobrigar-se de confessar. “Desobrigar-se da quaresma. He satisfazer ao preceito da confissão, & comunhão, que ordena a Igreja” (BLUTEAU, 1716, p. 159).

160

do Estado e a todos os párocos das freguesias, para que as ordens fossem cumpridas com toda exatidão, apesar das enormes distâncias e das escassas luzes de alguns párocos: não obstante a clareza dos modelos dos Mappas, e da ordem com que lhos participei, eles não os entendem, antecipando-me a remessa, antes do fim de Junho, que lhes determinei; mandando-me outros humas relações informes, e inteiramente confusas; e já houve algum, que me mandou perguntar, se os Regulares érão soldados Auxiliares, sendo aliás este dos que se tem em conta de mais esperto.133

Tinoco Valente, de Barcelos do Rio Negro, respondia ao governador do Estado que remeteria cópias dos modelos dos mapas “respectivos às Povoações de Índios”, mas que “[...] O Segundo Modêllo para as Povoaçõens de brancos, como nesta Capitania se não encontre huma só, que assim se intitule, ou possa intitular, fica sustado athe V. Ex.cia mandar o que for servido”. Isto é, os censos das capitanias do Pará, do Maranhão e do Piauí tinham “povoações de brancos” e “povoações de índios”, conforme a origem da formação de cada uma e conforme a qualidade majoritária de seus habitantes. Mas São José do Rio Negro era a única capitania da América Portuguesa formada exclusivamente por povoações de índios – inclusive sua capital. É o que atestam todos os censos do último quartel do século XVIII, utilizados neste trabalho. A resposta de Tinoco Valente mostra que realmente existiam – ao menos para o Estado do Grão-Pará e Maranhão – um modelo de censo para “as povoações de índios” e outro para as “povoações de brancos”. A Figura 6 mostra o modelo que foi distribuído em todo o Estado do Grão-Pará, aplicável às povoações de brancos:

133

AHU_CU_013, Cx. 70, D. 6002.

161

Figura 6 Modelo para a tabulação dos dados populacionais de cada freguesia (povoações de brancos)

A categoria “Pessoas cativas”, depois de 1755, não podia mais se referir a índios, mas somente a africanos escravizados e seus descendentes. O modelo para as povoações de índios simplesmente acrescenta uma seção de “Índios aldeados, ou estabelecidos em povoações”, com a discriminação por gênero e idade idêntica à das “pessoas livres” e “pessoas cativas”. Também eram adicionadas colunas para nascimentos, mortes, acréscimos e decréscimos das populações indígenas. Mas, ao contrário daquele levantamento solicitado em 1727, não há mais nenhuma categoria ou contagem de mamelucos. Para efeito dos censos realizados a partir de 1773, importava o estatuto jurídico: 1) livres com exceção dos índios aldeados (moradores), categoria na qual podiam entrar brancos europeus ou americanos, índios “adjuntos” ou não-aldeados (que viviam sobre si), mestiços mamelucos, mulatos e pretos forros; 2) índios aldeados (oficiais indígenas isentos do trabalho compulsório e índios também livres, mas sujeitos ao trabalho compulsório) e 3) escravos (de origem africana), compreendendo negros, cafuzos e mulatos cativos. Somente alguns raros

162

numeramentos, de outra natureza, como o Mapa das Famílias de 1778 (Pará e Rio Negro)134 ou o de 1788 (somente para Macapá)135, atribuíam a qualidade a cada morador. Evidentemente, a qualidade (branco, mameluco, mulato, preto forro, cafuzo etc.) não dependia apenas das características fenotípicas, mas era determinada socialmente. A diferença entre livres não aldeados, índios aldeados e escravos, utilizada nos censos do Pará, Rio Negro, Maranhão e Piauí, era de outra ordem: era uma distinção jurídica (ou de condição, na terminologia setecentista), com implicações óbvias na mensuração das possibilidades fiscais e militares das capitanias. Mesmo em épocas e lugares em que o casamento legítimo interétnico não era incentivado, a mestiçagem era notoriamente elevada na América Portuguesa. Frequentemente, ela era associada a relacionamentos informais.136 Alguns censos coloniais, em outras capitanias, classificavam a população mestiça como mulatos ou pardos, mas às vezes mestiços de branco e índios entravam na categoria “brancos”, outras vezes na de “mulatos” ou mesmo de “negros” (MARCÍLIO, 1990, 56-57). Mas é preciso notar que, além dessa heteroatribuição arbitrada pelos produtores do censo, existia a autoatribuição: um baré que se autodenominava tapuio, um cafuz que se identificava como mameluco (pois o “cabelo corredio” podia ser a chave para se livrar da escravidão), um mameluco que omitia a qualidade e a origem ou se dizia branco ou um mameluco que reivindicava a origem indígena ao pedir uma mercê. Longe de se verificar uma dicotomia “resistência x submissão”, essas estratégias retratam

134

AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509. AHU_CU_013, Cx. 99, D. 7852. 136 Na população livre de São Paulo, mais de 40% dos nascimentos no final do século XVIII eram ilegítimos; em Vila Rica, 52,2% em 1804 entre a população livre; em relação à população total, contando livres e escravos, entre 1719 e 1723, 89,5% (MARCÍLIO, 1990, p. 56). 135

163

algumas das “múltiplas experiências de elaboração e reformulação de identidades que se apresentaram como respostas criativas às pesadas situações historicamente novas de contato, contágio e subordinação” (MONTEIRO, 2001, p. 78). Do ponto de vista dos organizadores dos censos, porém, duas motivações, uma pragmática e outra programática, podem ter orientado essa

divisão dos

recenseamentos especificando quem era índio aldeado e quem não era. Pragmaticamente, se o recenseamento de todos os vassalos livres era fundamental por razões militares e fiscais (oferecia informações consistentes sobre quem pode ser alistado nos corpos auxiliares e ordenanças, quantos poderão pagar o dízimo etc.), havia uma carga de trabalho compulsório que pesava apenas sobre os índios aldeados que não eram oficiais. Por isso alguns mapas chegam a discriminar até mesmo quantos são os oficiais índios e suas famílias em cada povoação do Estado, deixando claro quantos índios aldeados estavam empregados no serviço real ou no de particulares. Dentre os moradores, todos os homens livres em idade de pegar em armas podiam ser mobilizados para as forças auxiliares, mas nem sempre todos os homens livres índios poderiam sê-lo, dadas as necessidades desesperadas de remadores e outros trabalhadores para o transporte, comunicações, agricultura e manufatura do Estado. Programaticamente porque, como vimos, o Diretório mudava a política oficial sobre a presença de brancos nas povoações indígenas. Sob o antigo Regimento das Missões, a presença de brancos e mamelucos era uma ameaça de corrupção e violência contra os aldeamentos missionários. Sob o Diretório, brancos bem selecionados devem cooperar, com seu exemplo e seus costumes, para a tarefa civilizatória com sua presença nas vilas e lugares indígenas. Sem eles, a

164

transformação definitiva dos índios em vassalos com direitos e potencialidades iguais aos demais vassalos seria impossível. A própria existência do Diretório demonstrava uma crença (pelo menos entre os agentes régios mais próximos de Mendonça Furtado e Sebastião José de Carvalho e Melo) de que a transição ou a adaptação dos índios para assumirem pleno poder sobre suas próprias vidas, como os demais vassalos seria um trabalho de longo prazo, fruto de uma convivência duradoura entre índios e brancos. Os censos e os relatórios de agentes régios (como os do ouvidor Ribeiro de Sampaio, do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira) enviados a Lisboa permitiam à alta administração do império (no nível dos conselhos e das secretarias de Estado) monitorar o andamento das relações entre índios e brancos nesses laboratórios de uma experiência civilizacional: quantos índios se dedicavam ao comércio, quantos trabalhavam para moradores brancos, quantos índios se evadiam a cada ano, quantos eram descidos, como se comportavam a natalidade e a mortalidade, qual proporção de não-aldeados existia em cada uma das povoações de índios... Dessa forma, fazia sentido que os censos indicassem as populações de índios aldeados, escravos (africanos) e “livres à exceção de índios aldeados”. Note-se, porém, que a classificação não é de “brancos”, mas de “todos os livres exceto índios aldeados”. Essa categoria incluía brancos, pretos forros, mulatos livres, mamelucos e índios não aldeados. Algumas pesquisas pioneiras foram realizadas utilizando os dados dos censos, o que com certeza era uma tarefa extremamente desafiadora antes da reorganização e divulgação dos microfilmes do Arquivo Histórico Ultramarino pelo Projeto Resgate. Os dados de que se dispunha (em um momento em que o acesso às fontes era muito

165

mais difícil que hoje)137 levaram Kelly-Normand a supor que a cada 3 anos se tentou fazer um censo geral da população do Estado do Grão-Pará (KELLY-NORMAND, 1986, p. 95)138. Na verdade, as instruções de Martinho de Melo e Castro em 1772 eram no sentido de que se realizassem as contagens anualmente e, de fato, sobreviveram censos completos do Estado (índios aldeados, outras pessoas livres e escravos) para os anos de 1773, 1774, 1775, 1776, 1777, 1778, 1783, 1785 e 1797139, e somente de todos os índios aldeados do Estado para 1789, 1791, 1792, 1793 e 1794. A não ser que a sobrevivência dos censos tenha de ser atribuída meramente ao acaso, aparentemente foi Pereira Caldas (1772-1780) o capitão-geral que mais levou a sério a produção desses censos. A contagem da população, o controle da arrecadação e os relatórios sobre a produção eram feitos com regularidade e precisão inéditas, refletindo uma forma de administração bem diferente daquela que tínhamos visto nas cartas do velho bispo Bartolomeu do Pilar em 1728-1730. Parece ser a transformação de que fala Senellart: preocupadas com quantidades – “população ativa ou inativa, riquezas, mercadorias, equipamentos civis e militares” –, as monarquias agora procuravam desenvolver ao máximo os recursos materiais e humanos, pois as finalidades governamentais estavam sendo redefinidas em função das necessidades do Estado. Assim, “O antigo

137

Ela tinha pesquisado principalmente no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro e salientou, corretamente, que o Arquivo do Conselho Ultramarino deveria ter muito mais material relativo aos recenseamentos. Foi do Arquivo Histórico Ultramarino, afinal, que obtive a maior parte de minhas fontes, com a ferramenta do Projeto Resgate. 138 A autora realizou um importante trabalho pioneiro sobre recenseamentos na Amazônia colonial, embora tenha cometido alguns pequenos equívocos, como utilizar o termo “vila” (ligado a um estatuto bem definido de governo local) como sinônimo de “povoações” (KELLY-NORMAND, 1986, p. 99). Um trabalho anterior da mesma autora foi sua tese de doutorado baseada em fontes paroquiais da povoação de Gurupá (KELLY, 1984). 139 Ao escrever este trabalho, só tive acesso aos censos disponíveis no AHU.

166

governo das almas e dos corpos é substituído [...] pelo governo das coisas” (SENELLART, 2006, p. 42-43). Na Capitania de São Paulo, segundo Maria Luiza Marcílio (1973), as listas de cada vila e lugar eram reunidas pelo Secretário do Governo do Estado da Capitania que, finalmente, elaborava uma tabela ou mapa geral com as informações de todas as vilas. Eram produzidos dois exemplares, ficando um na Capitania e o outro sendo enviado às autoridades metropolitanas. É pouco provável que no Estado do GrãoPará e Maranhão esse processo fosse diferente. A exatidão e a eficiência da coleta de informações certamente aumentam nas últimas décadas do século XVIII, mas não são absolutas. Os agentes dessa contagem, fossem os párocos, fossem os capitães de ordenanças, mesmo na Capitania de São Paulo (onde as contagens mereceram uma atenção particularmente zelosa sob o Morgado de Mateus), não tinham sempre os mesmos padrões de diligência e meticulosidade.

“Como estes censos deveriam ser realizados

anualmente, seus responsáveis limitavam-se, por vezes, em copiar as listas dos anos anteriores” (MARCÍLIO, 1973, p. 82). Para as capitanias do Rio Negro e do Pará, não cheguei a detectar esse tipo de fraude, mas as dificuldades e erros (intencionais ou não) eram quase inevitáveis em qualquer lugar. Até onde pude perceber, erros de soma eram muito raros e poucas vezes apareciam números redondos, o que é um indicador de cuidado nos levantamentos. Mas o despreparo dos encarregados (párocos e cabos de esquadra das ordenanças) provavelmente não era raro em uma capitania remota como a do Rio Negro. Ao organizar a contagem da população do lugar de Thomar, no rio Negro, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira lamenta que teve grandes dificuldades em examinar os livros de ordenanças, mas Maior trabalho reputei eu o da consternação, a que nos vimos

167

reduzidos, eu, e o Reverendo Vigário, de aos próprios brancos, Índios, e Índias, andarmos perguntando pela gente ou das suas famílias, ou do seu conhecimento. Por isso eu não abono de exacto o Máppa da População, perduado-me contudo, que atendidas as circunstâncias da brevidade do tempo, confusão dos livros, novatice do Director, e do Vigario, e ausência dos Principaes, sahio tão exacto quanto se pode esperar sobre o exposto.140

Estudando os censos de 1775 (elaborado pelo ouvidor Ribeiro de Sampaio e limitado à Capitania do Rio Negro), 1782, 1788, 1791 e 1796, Arlene Kelly-Normand identificou o que considerou um surpreendente “aumento da diferenciação social e racial141 nas percepções oficiais da sociedade”, a despeito da orientação pombalina para a integração da população indígena ao conjunto dos vassalos portugueses. No censo de 1782, eram 3 categorias sociais; em 1788 eram 4 e em 1796 já eram sete categorias “raciais” e socioeconômicas (p. 106). Kelly-Normand anotou ainda que os censos da década de 1790 incluem dados sobre a quantidade de índios no trabalho compulsório dos contratos reais (arrematados para a produção de aguardente, cal, manteiga de tartaruga etc.) e de índios e mestiços que trabalhavam de soldada, o que pode indicar uma crescente complexidade social no Grão-Pará. Os últimos censos distinguem também o número de oficiais índios e suas famílias em cada localidade, já que eles eram isentos do trabalho compulsório. A autora classifica os oficiais índios como “destribalizados” (p. 109) – ao contrário de seus liderados. Trata-se de uma terminologia discutível, em minha opinião. Em um certo sentido, todos os índios “descidos” e realocados em povoações

140

AHU_CU_020, Cx. 10, D. 387 Provavelmente é inexato e anacrônico chamar de “racial” esse olhar classificador de agentes régios setecentistas. As teorias “raciais” biologizantes surgiriam no século seguinte e expressam algo bem diferente do que significavam as “qualidades” de cor na América Portuguesa. MacLachlan (1972, p. 363), ao se referir ao incentivo oficial a casamentos entre índios e portugueses, insiste no termo “raça”, mas o Diretório usava a expressão “qualidade” de índios. 141

168

coloniais poderiam ser considerados “destribalizados”, pois o descimento implica o deslocamento

espacial

conforme

as

necessidades

coloniais,

a

fixação/sedentarização, a mudança de costumes, a conversão religiosa etc. KellyNormand associa esse processo a um certo apagamento das origens étnicas dos descidos (p. 103). Os censos ou mapas populacionais de fato homogeneízam uma parte da população, contada como “índios aldeados”, discriminados apenas pelo sexo, idade e ocupação, em oposição a moradores que podiam assumir outras identidades (brancos, índios, mamelucos, mulatos, cafuzos). Entretanto, a própria razão de ser dos oficiais índios assenta-se sobre a identidade étnica originária. Um líder Baré é reconhecido como Principal pelos agentes régios justamente porque ainda existe uma identidade Baré que liga esse principal e seus “súditos”, na linguagem dos documentos coevos, mesmo em uma vila colonial. Da mesma forma, abalizados, sargentos-mores e outros oficiais índios derivam sua autoridade e seu prestígio da manutenção desses laços étnicos. Vilas como Barcelos, cujos habitantes índios dividem-se em várias etnias, têm também vários principais, o que não aconteceria se as identidades Manau, Baré, Carajaí, Japiúna, Baniua, Jaruna (FERREIRA, 2007b, p. 36) já se encontrassem dissolvidas em uma identidade genérica como “índio” ou “tapuio”. Em 1775, o ouvidor Ribeiro de Sampaio anotava a existência de 7 principais em Nogueira e 8 em Fonte Boa (SAMPAIO, 1856 [1775]). Para Patrícia Sampaio, em última análise, os censos mostram um Diretório “em pleno funcionamento”, com o estabelecimento de populações de maneira mais ou menos duradoura”. Mesmo com os já conhecidos casos de deserções e fugas, “tão

169

80000 70000 60000 50000 40000 30000 20000 10000 0 1770

1775

1780

1785

1790

1795

1800

população total da Capitania do Pará

População total da Capitania do Rio Negro

Linear (população total da Capitania do Pará)

Linear (População total da Capitania do Rio Negro)

Figura 7: População total das capitanias do Pará e Rio Negro, 1773-1797

25000

20000

15000

10000

5000

0 1760

1765

1770

1775

1780

1785

1790

1795

1800

somente índios aldeados do Pará

somente índios aldeados do Rio Negro

Linear (somente índios aldeados do Pará)

Linear (somente índios aldeados do Rio Negro)

Figura 8: populações apenas de "índios aldeados" nas duas capitanias, 1762-1797

importante quanto saber por que muitos se foram, é [...] tentar entender por que outros tantos ficaram” (SAMPAIO, 2011, p. 74).

170

Outra conclusão importante que a autora extrai dos censos do período do Diretório é a percepção de um dos sistemas hierárquicos em funcionamento: “dizer apenas índio não esclarecia muito sobre quem se falava, sem que se agregassem os distintivos moradores e aldeados” (SAMPAIO, 2011, p. 76). Uma distinção marcada no censo é que moradores, diferentemente dos aldeados, não estavam disponíveis para o trabalho compulsório. Os primeiros já podiam “viver sobre si”, desobrigados da tutela a que o aldeado estava submetido. O que se vê nesses espaços são transições “entre categorias sociais mesmo que, no conjunto, os resultados sejam limitados”, foram “espaços construídos, elaborados e, até mesmo, arrancados dentro de um cotidiano restritivo” (SAMPAIO, 2011, p. 76-77). No último capítulo deste trabalho analisaremos alguns casos concretos. Neste momento procurarei traduzir essas transições em números. A taxa média de crescimento anual da população total (livres, índios aldeados e escravos de todas as idades) da capitania do Pará entre 1773 e 1785 é de 1,11%. Para a capitania do Rio Negro, no mesmo período, a taxa é muito semelhante (1,28%). No que se refere apenas aos índios aldeados, a taxa média de crescimento anual no Pará de 1773 a 1794 é de apenas 0,33% e, no Rio Negro, de 1,24%. Descartei os dados anteriores a 1773 pelo fato da metodologia dos recenseadores ser diferente daquela posterior às instruções de 1772 e também pelo fato dos primeiros anos da instalação da capitania do Rio Negro configurarem uma conjuntura de forte instabilidade demográfica (grandes rebeliões e pelo menos uma epidemia importante marcaram o período 1755-1760). O período posterior a 1773 (quando dispomos de censos constantes e usando a mesma metodologia) pode ser considerado como de relativa estabilização social em ambas as capitanias e, portanto, se presta a estas considerações. Se fossem empregados os dados da década de 1760, obter-se-ia uma

171

taxa de crescimento muito acelerada para a população aldeada do Rio Negro, como se vê no gráfico da Figura , mas que seria provavelmente ilusória. A queda da população aldeada e total da capitania do Rio Negro em 1783 pode ter se devido ao levantamento generalizado das povoações do rio Branco, que abandonaram quase todas as povoações naquela fronteira. Patrícia Sampaio relaciona o aumento mais acelerado da população aldeada na capitania entre 1764 e 1774 a uma conjuntura de rápida expansão para oeste, com a fundação de várias novas povoações resultantes de descimentos (SAMPAIO, 2011, p. 63). De fato, a figura 8 mostra uma desaceleração do crescimento entre os aldeados da capitania do Rio Negro após 1780. Com tudo isso, o crescimento da população total142 é, portanto um pouco mais acelerado que o da população de índios aldeados143 em cada capitania. Tais categorias não eram estanques, pois existiam indivíduos que passavam da categoria “índios aldeados” para a de moradores, ou seja, saíam da condição de tutelados para a de vassalos com direitos realmente iguais aos dos demais vassalos, como há muito tempo já sugeria Colin MacLachlan (1972, p. 386). A absorção de índios como moradores pelo casamento e, principalmente, pelo concubinato, certamente já ocorria em alguma medida antes das Leis das Liberdades (BOXER, 1967, p. 132), mas agora isso ocorria em outra escala, de forma

142

A elaboração do gráfico das populações totais das capitanias utilizou os documentos seguintes: ano de 1762: PINHEIRO, 1983, p. 80-81; para 1765, AHU_CU_013, Cx. 58, D. 5242; para 1773 e 1774, AHU_CU_013, Cx. 72, D. 6100; para 1775, AHU_CU_013, Cx. 74, D. 6252; para 1776, AHU_CU_013, Cx. 74, D. 6256; AHU_CU_013, Cx. 76, D. 6368. Anos de 1778 e 1779: AHU_CU_013; Cx. 85, D. 6940; para 1785, AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509. Para os anos de 1783 e 1797, utilizei os dados de Maria Regina Celestino de Almeida (ALMEIDA, 1990), que excluem as povoações do Rio Branco; isso provoca uma distorção de até 10% a menos na população da capitania. 143 A elaboração do gráfico das populações de índios aldeados usou os documentos do gráfico anterior e mais os seguintes: AHU_CU_013, Cx. 99, D. 7872; AHU_CU_020, Cx. 2, D. 120; Mapas gerais da população dos índios aldeados em todas as povoações das capitanias do Estado do Grão-Pará e São José do Rio Negro, 1791 a 1794 – Biblioteca Municipal do Porto C-M & A-Pasta 24 [65]. Para a capitania do Rio Negro, apenas nos anos de 1773 e 1783, utilizei os dados de Maria Regina Celestino de Almeida (ALMEIDA, 1990).

172

institucionalizada, regulada e expandida para todo o interior do Estado. No capítulo 3 veremos como alguns índios buscavam outras formas de passar para a categoria de moradores ou adjuntos das povoações, rejeitando a condição de tutelados. Tabela 3: Populações totais do Pará e do Rio Negro

Ano

População total da Capitania do Pará 33754144

População total da Capitania do Rio Negro n.d.

n.d.

n.d.

1773

55318

10296

1774

54464

10826

1775

54374

11259

1776

54899

11056

1777

53657

10952

1778

54914

11234

1779

57251

11513

1780 a 1782

n.d.

n.d.

1783

n.d.

11097

1784

n.d.

n.d.

1785

63162

12007

1786 a 1796

n.d.

n.d.

1797

n.d.

12707

1765 1766 a 1772

Tabela 4: População somente de "índios Aldeados" nas duas capitanias

Ano

144

1762

Índios aldeados da Capitania do Pará n.d.

Índios aldeados da Capitania do Rio Negro 4799

1763

n.d.

n.d.

1764

n.d.

5467

1765 a 1772

n.d.

n.d.

1773

19123

9099

1774

19034

9661

1775

19328

10121

1776

19511

9900

1777

19573

9732

1778

19179

9976

1779

19588

10247

1780 a 1782

n.d.

n.d.

1783

n.d.

9655

Como se trata de um total obtido a partir de róis de confessados, provavelmente exclui os menores de 7 anos.

173

1784

n.d.

n.d.

1785

21383

10581

n.d.

n.d.

1789

21513

n.d.

1790

n.d.

n.d.

1791

20500

11313

1792

21245

11405

1793

21103

11588

1794

20524

12368

1795 e 1796

n.d.

n.d.

1797

n.d.

10686

1786 a 1788

A população aldeada da capitania do Rio Negro era aproximadamente metade da do Pará, mas recebia maiores aportes de descimentos. A população aldeada do Pará permaneceu praticamente estável enquanto a população total da capitania cresceu mais de 14% entre 1773 e 1785. O número de “pessoas que se retiraram” (emigração, deserção das povoações) podia, em determinados anos, ultrapassar o número de mortes; assim como o número de “pessoas que se acresceram” podia ultrapassar número de nascimentos. Mas essas pessoas que “se retiravam”, evadiam ou ausentavam das povoações podiam retornar algum tempo depois, assentar-se em outra freguesia ou mesmo passar da categoria de aldeado para a de livre não-aldeado (morador). Os índices de mortalidade dos livres não-aldeados parecem ser ligeiramente inferiores aos dos índios aldeados, exceto para 1777-1778 (figura 9). Em 1776, como se sabe, houve uma séria epidemia de varíola em Belém. Se existe uma correlação entre esses fatos, a letalidade parece ter sido surpreendentemente maior no primeiro grupo que no segundo, possivelmente por ter atingido mais a capital145. Cada mapa

145

1777, Setembro, 15: OFÍCIO do Bispo do Pará para o [secretário de estado dos Negócios do Reino], visconde de Vila Nova de Cerveira, sobre a necessidade de se construir um cemitério na vizinhança da cidade de Belém do Pará, em virtude do elevado número de pessoas falecidas devido a uma epidemia de bexigas. AHU_CU_013, Cx. 77, D. 6449.

174

da população era datado de primeiro de janeiro e apresentava os dados do ano anterior, como vimos. Portanto, o número de mortes que aparece no mapa de 1777 refere-se ao ano anterior. Em 1779, cessados os efeitos, as taxas voltam a patamares semelhantes aos de antes da epidemia. Esse padrão fortemente oscilante não destoa da “mortalidade do tipo Antigo Regime”. Nesse modelo, enquanto a natalidade mantinha-se relativamente constante (figura 10), a mortalidade oscila anualmente. Dependendo dos períodos de crise que surgiam, esse número de mortalidade podia exceder ao de nascidos (IMHOF, 1984, p. 250). As taxas de natalidade dos índios aldeados assemelham-se às dos livres não aldeados (figura 10 e tabela 5), ao menos na conjuntura 1773-1779, para a qual pudemos obter dados contínuos.

Figura 9: taxa de mortalidade (por mil): índios aldeados e pessoas livres não aldeadas (Pará e Rio Negro)

175

50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 1774

1775

1776

1777

1778

1779

natalidade de pessoas livres exceto índios aldeados natalidade de índios aldeados

Figura 10: taxa de natalidade (por mil): índios aldeados e pessoas livres não aldeadas (Pará e Rio Negro)

POPULAÇÃO TOTAL (PARÁ E RIO NEGRO) ESCRAVOS ÍNDIOS ALDEADOS POPULAÇÃO LIVRE EXCETO ÍNDIOS ALDEADOS MORTES DE LIVRES EXC. ÍNDIOS ALDEADOS MORTES DE ÍNDIOS ALDEADOS NASCIMENTOS DE LIVRES EXC.ÍNDIOS ALDEADOS NASCIMENTOS DE ÍNDIOS ALDEADOS mortalidade de livres exceto índios aldeados (por mil)146 mortalidade de índios aldeados natalidade de livres exceto índios aldeados

1773

1774

1775

1776

1777

1778

1779

65614

65290

65633

65955

64609

66148

68764

11607 28222

12088 28695

11422 29443

12492 29411

11943 29305

12347 29154

13188 29835

25785

28695

24768

24052

23361

24647

25741

n.d.

538

436

499

1480

1261

389

n.d.

631

688

926

1324

825

1077

n.d.

653

882

996

945

1123

1146

n.d.

840

1178

1086

1331

943

1223

n.d.

21,9

17,6

20,7

63,3

51,1

15,1

n.d.

21,9

23,3

31,4

45,1

28,3

36,1

n.d.

26,6

35,6

41,4

40,4

45,5

44,5

Os números absolutos foram compilados dos mapas de população do Arquivo Ultramarino (AHU – Projeto Resgate) já mencionados; as taxas de natalidade e mortalidade foram calculadas por mim, dividindo-se o número absoluto de mortes ou nascimentos de cada grupo pela respectiva população e multiplicando-se o resultado por mil. 146

176

natalidade de índios aldeados

n.d.

29,2

40,0

36,9

45,4

32,3

40,9

Tabela 5: Cálculo das taxas de mortalidade e natalidade (capitanias do Pará e Rio Negro) – 1773 a 1779

Como base de comparação, em Minas Gerais, no ano de 1815, a taxa de natalidade dos brancos era de 36,6 por mil; a dos mulatos livres, 41,7 por mil. A taxa de mortalidade dos brancos era de 27,4 ‰, e a de mulatos livres 34,3 ‰ (MARCÍLIO, 1990, p. 59). Schwartz, em seu estudo sobre uma região açucareira, oferece outros dados para comparação: A taxa bruta de mortalidade em Pernambuco em 1774 era de quase 33 por mil, e permaneceu em torno desse nível até o final do século XIX. No Maranhão, a taxa bruta de mortalidade dos indígenas em 1798 esteve próxima de 22 por mil, ao passo que para os escravos negros era pouco mais de 27 por mil. Portanto o percentual encontrado para o Engenho Santana parece elevado [43 por mil], embora não se aproxime da taxa de 70 por mil verificada para os escravos africanos na Jamaica e em Barbados no final do século XVII” (SCHWARTZ, 1988, p. 63).

Incidentalmente, a tabela 5 e o gráfico 11 mostram que até 1779 a população de escravos de origem africana equivalia a menos da metade da população indígena aldeada nas capitanias. Como veremos na próxima seção, a importância do trabalho indígena permanece central em todo o período colonial na região, mesmo com todo o impacto das crises de mortalidade e com toda a política oficial de incentivo à importação de escravos africanos. Os três grupos (índios aldeados, livres não aldeados e escravos) mostram um crescimento lento, mas estável no período. O gráfico 11 mostra isso, acrescentando

177

os dados de 1785147, quando vemos pela primeira vez a população livre não aldeada ultrapassar os índios aldeados: 80000 70000 60000 50000 40000 30000 20000 10000 0 1773 ESCRAVOS

1774

1775

ÍNDIOS ALDEADOS

1776

1777

1778

1779

1785

POPULAÇÃO LIVRE EXCETO ÍNDIOS ALDEADOS

Figura 11: Os 3 grupos da população do Pará e Rio Negro, 1773-1785

O mesmo valeria tanto para a capitania do Rio Negro quanto para a do Pará separadamente, como mostraram a tabelas 3 e 4. Por que, então, como vimos, Maria Regina Celestino de Almeida (1990) concluíra pela artificialidade e insustentabilidade das povoações do Diretório, especificamente na capitania do Rio Negro? A autora apoiava-se nas pirâmides etárias que elaborou a partir dos mapas da população organizados pelo Ouvidor do Rio Negro, Francisco Xavier de Ribeiro Sampaio (SAMPAIO, 1856 [1775]), para afirmar que “não havia crescimento vegetativo nos povoados, confirmando que a população aumentava através das migrações” (ALMEIDA, 1990, p. 168). No caso dos índios aldeados, a pirâmide desenhada por ela assumia este aspecto (figura 12):

147

AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509.

178

Figura 12: Pirâmide Etária produzida por ALMEIDA (1990, p. 172)

Entretanto, a forma como os mapas disponíveis organizavam os dados, em grupos etários irregulares (0 a 7 anos, 7-14, 14-50, 50-90 e acima de 90 para as mulheres; 0-7, 7-15, 15-60, 60-90 e acima de 90 para os homens) impõe dificuldades provavelmente intransponíveis para a elaboração de pirâmides etárias. Somente quando as fontes permitem agrupar os números em coortes regulares (0 a 9 anos, 10 a 19, 20 a 29 e assim por diante) é possível produzir uma pirâmide etária útil. A área ocupada por cada coorte no gráfico tem significado e por isso cada coorte deve ter a mesma profundidade. Se a primeira coorte é de 0 a 7 anos, todas as outras devem ser intervalos de idade de 8 anos. Porém, na pirâmide acima, Almeida inadvertidamente multiplicou o grupo etário de homens de 15 a 60 anos (2972 indivíduos) por 5,6, criando um “crescimento vertiginoso” nessa faixa etária (p. 168),

179

mas ilusório. Isso porque caberiam nesse grupo 5,6 coortes (de 8 em 8 anos), comparáveis à primeira, e o comprimento desse grupo teria de ser dividido entre esses grupos. No caso das mulheres de 14 a 50 anos (2629), a pirâmide multiplicou o volume desse grupo por 4,5. Distorções semelhantes ocorreram nos grupos de 60-90 e 5090. Isso explica a anomalia do formato dessa pirâmide. Se tivéssemos os dados desagregados em grupos etários regulares, o formato possivelmente seria mais semelhante a este:

Figura 13: Reconstrução hipotética da pirâmide etária dos aldeados da Capitania do Rio Negro, 1774

Nessa figura (13), os únicos números fornecidos diretamente pela fonte são os do grupo de 0 a 7 anos. Nas demais coortes (**), dividi os efetivos fornecidos por Sampaio por grupos de 8 anos, impondo uma redução arbitrária à medida em que se aproximava do topo. Esse exercício destinou-se apenas a demonstrar como a forma proposta por Almeida (1990, p. 172) exagera o centro da pirâmide, distorção que a fez concluir que a mortalidade das crianças seria excepcionalmente alta (p. 171), tanto entre os índios aldeados quanto entre os livres não aldeados, pois a mesma

180

metodologia foi aplicada na elaboração das demais pirâmides, resultando no mesmo formato anômalo com o centro extremamente alargado. A região das várzeas amazônicas, que concentrava as povoações setecentistas, permanecia com as imensas potencialidades de produção de alimento que criaram as condições para uma população de milhões de indivíduos no período pré-colombiano. A forma como se organizavam as relações de trabalho, duramente opressivas, dificultando a produção de alimentos, quebrando as relações tradicionais de parentesco e as antigas formas de sociabilidade, teria provocado a virtual inviabilidade do Diretório e suas povoações, para MacLahlan (1972), Hemming (HEMMING, 2009) e Almeida (1990). Mais uma vez, precisamos notar que mesmo em meio às mais terríveis mudanças, dizimação demográfica e iniquidades históricas, a escolha possível não era apenas entre o etnocídio e a assimilação. Os índios interpretavam a seu modo os acontecimentos e faziam suas escolhas e estratégias. Muitas formas de resistência adaptativa permitiram a formação de novas identidades e a transformação de antigas.

2.2 Produção, circulação e exportação

Depois de termos uma ideia da demografia do Estado do Grão-Pará e de sua evolução na segunda metade do século, procuremos entender como se organizava a economia que sustentava a reprodução dessa sociedade. Em primeiro lugar, há que se ressaltar a importância da produção de alimentos para o consumo local, quase toda a cargo dos índios aldeados. A farinha, “pão do Estado”, a pesca e a salga de peixes, o peixe-boi, a tartaruga e seus derivados

181

garantiam a alimentação, majoritariamente fora do circuito monetarizado do mercado. Uma parte significativa desses bens, aliás, tinha sua circulação regulada pelo Estado, que controlava pesqueiros (unidades de pesca e salga), olarias e teares (FERREIRA, 2007b). Os dois principais pesqueiros da capitania do Rio Negro, por exemplo, encaminhavam juntos cerca de 6 mil tartarugas por ano para a alimentação dos servidores da coroa na década de 1780 e, segundo o naturalista, “uma tartaruga dá de comer a 10 pessoas” 148. Um terço desses animais morria antes do consumo e era desperdiçado (FERREIRA, 2008, p. 159-166). Os salários dos índios aldeados (90% da população da capitania do Rio Negro) eram fixados pelo governo, bem como os fretes: em 1776, 1600 réis por pessoa transportada de Belém até Barcelos, por exemplo, e 960 por escravo; 300 réis por arroba de café e 200 por arroba de cacau; 160 réis por tartaruga grande etc. (FERREIRA, 2007b, p. 515-516). A maior parte da circulação de bens e serviços, portanto, não passava por trocas mercantis, mostrando uma economia enraizada (POLANYI, 2012). Alexandre Rodrigues Ferreira mencionava uma flutuação anual do preço da tartaruga, do peixe-boi e de suas manteigas, provocada pela escassez relativa sazonal das cheias do rio, mas fora de Belém provavelmente uma fração pequena das pessoas precisava adquirir esses alimentos no mercado. Para o Rio Negro, em 1785, Alexandre Rodrigues Ferreira (FERREIRA, 2007b) deixou um minucioso levantamento da produção de várias povoações. Selecionei cinco produtos, os mais comuns nessa região, deixando de lado o algodão, o mel, o

“Das tartarugas, enfim, não só se aproveitam as carnes, os ovos e as manteigas. Das peles dos pescoços, depois de enxutas ao sol, fazem os índios os seus adufes [instrumentos musicais semelhantes ao pandeiro], tampas de isqueiros e de bocetas e excelente cola. A concha superior é o alguidar de lavar e de amassar; é o coche dos pedreiros para conduzir o tijuco; é o cesto de transportar a terra para as obras e, nesta vila de Barcelos, toda cortada de alagadiços, até servem os cascos de poldras ou passadouros para se atravessar de uma para outra rua”. 148

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tabaco e outros produtos que somente apareciam em um ou dois lugares. A tabela 6 e a figura 14 permitem visualizar claramente a importância relativa da produção para consumo interno (farinha, arroz e milho) e a da produção para exportação (café e cacau). Tendo-se em mente que um alqueire (medida de volume equivalente a 2 paneiros ou 30 kg de farinha) podia ter aproximadamente o dobro do peso de uma arroba (14,7 kg), a disparidade é ainda maior. Dos 64 lavradores nominados por Ferreira em Thomar, diga-se de passagem, apenas 15 eram brancos (e somente entre eles havia o emprego de 40 índios de soldada e 4 escravos). Os demais eram todos índios, que trabalhavam com suas próprias famílias.149 Sobre estes últimos assentavase a produção de alimentos do Estado. Tabela 6: produção de gêneros de consumo e de exportação - Rio Negro

Lugar de Moreira Vila de Thomar

Arroz (alqueires) 26

Milho (alqueires) 60

1811

Lugar de Lamalonga

400

Lugar de Poiares

863

34

Vila de Moura

190

40

Barra do Rio Negro

322

Vila de Barcelos

149

Farinha (alqueires) 2359

1479

AHU_CU_020, Cx. 10, D. 387, folha 41.

203

30

Café (arrobas) 56

Cacau (arrobas) 49

40

14

178

68

198

134

76

8

28

370

183

Figura 14: gráfico da produção para consumo interno e exportação - Rio Negro, 1785

Vejamos, agora, alguns dados sobre a produção de bens exportáveis e o grau de engajamento dos índios aldeados nesse ramo econômico que, mesmo regulado por uma companhia privilegiada (a CGPM), inseria uma parte da população no comércio mundial. Pouco mais de dois anos antes da chegada de Mendonça Furtado a Belém, a frota de cinco navios que partiu do Maranhão e Grão-Pará em 28 de junho de 1749 levava a seguinte carga: 48148 arrobas e 19 libras [arráteis] de cacau. 1022 arrobas e 19 libras de cravo grosso. 236 arrobas e 16 libras de cravo fino. 2355 arrobas e 9 libras de salsa. 2307 arrobas e 9 libras de café 8047 arrobas e 4 libras de açúcar

184

245 arrobas e 12 libras de algodão 170 arrobas e 4 libras de fio de algodão 20 arrobas e 20 libras de urucum 2 arrobas de chocolate 5 arrobas de casca preciosa 24 cascos de tartaruga 15 arrobas de quina 8000 peles [couros em cabelo] (BOXER, 1995, p. 353).

É uma pauta variada, que inclui os produtos do extrativismo (drogas do sertão, como cacau, salsa, cravo, casca preciosa, urucum, quina) e da agricultura (café, açúcar, algodão). Como amostra da exportação anual, pode oferecer uma ideia exagerada, pois no ano anterior (1748) nenhum navio tinha tocado o porto de Belém, o que pode ter acumulado estoques de dois anos nesse embarque. De qualquer forma, de 1730 até aquele ano o valor total das exportações por esse porto tinha quase sempre oscilado entre 220 e 90 contos de réis, sendo o valor de 1749 (107:564$129 réis) muito semelhante aos de 1747 e 1750 (ALDEN, 1976, p. 120-121). A multiplicidade de gêneros exportados pelo Pará – Mendonça Furtado mencionava 39 produtos cultivados ou coletados na Amazônia em 1752 – “indicava, de fato, uma debilidade estrutural da economia” (CARDOSO, 1984, p. 126). Em um cuidadoso estudo da produção e da circulação no Estado do Grão-Pará antes, durante e depois da era pombalina, Francisco de Assis Costa chega a algumas conclusões instigantes. De 1720 a 1755 (ou seja, antes das reformas pombalinas), a taxa média anual de crescimento da economia colonial amazônica teria sido de 6,33% ao ano. Supondo um crescimento lento da população no período, sob o impacto dos grandes surtos de varíola e sarampo, Costa atribui a expansão ao crescimento da produtividade do trabalho. A forte alta de preços dos produtos exportados no mercado europeu de 1720 a 1735 impulsionou tardiamente a expansão da quantidade

185

exportada a partir de 1725. A posterior baixa de preços tem reflexo igualmente atrasado na produção, que cai fortemente (-6,5% ao ano) de 1750 a 1755, com os preços em ligeira recuperação (COSTA, 2010, p. 180). Essa desaceleração econômica coincide com o início do governo de Mendonça Furtado e de elaboração do conjunto das reformas pombalinas, portanto. Após as reformas da segunda metade da década de 1750, o crescimento parece ter sido mais modesto e mais estável, com um crescimento constante da arrecadação de tributos (2,85% ao ano). Nos primeiros 22 anos de vigência do Diretório até o encerramento das atividades da Companhia de Comércio, a economia colonial amazônica teve crescimento modesto de 1,54% a.a. A produção cresceu a taxas de 2,99% a.a., mais como um resultado do crescimento da população a 2,19% a.a. que pelo incremento da produtividade que se fez a meros 0,78% a.a. As relações externas fizeram-se sob a égide de preços declinantes a -1,41% a.a. no mercado mundial (COSTA, 2010, p. 187).

A reorganização da economia não significou, entretanto, a substituição de um modelo com predominância do extrativismo por outro com predominância agrícola. O perfil extrativista foi mantido. “Mais precisamente, o valor dos produtos do extrativismo de coleta cresceu no período a 1,44% a.a. ao passo que o da agropecuária cresceu em ritmo um pouco menor, de 1,23% a.a.” (COSTA, 2010, p. 187). O setor agropecuário representava 31% das exportações do Estado em 1755, caindo para 10% por volta de 1765, chegando a 23% no final do período – 1777 (COSTA, 2010, p. 188; 198). De 1778 a 1798, a economia colonial como um todo cresceria 3,77% ao ano, em parte por causa do crescimento da população (2,08% a.a.) e “em parte por preços em recuperação no mercado externo, a 2,54% a.a.” Os preços agrícolas subiriam em média 4,8% ao ano, levando a agricultura a representar 46% do valor total das exportações no final da vigência do Diretório (p. 196-198). De 1799 a 1820 verificou-se um ciclo de queda nos preços de quase 4% ao ano. Mesmo com forte

186

crescimento da exportação de produtos agropecuários (3,4% a.a.), o setor extrativista continuava respondendo por 61% da exportação no final do período colonial (p. 199). Um outro aspecto, na verdade, passaria por uma transformação significativa, para Francisco Assis da Costa: a ascensão de um outro grupo produtivo na região, além das povoações do Diretório e das fazendas escravistas. A produção exportada sob a titularidade da CGPM era fruto do trabalho das povoações indígenas do Diretório. Os colonos ou moradores, utilizando trabalho escravo negro ou da repartição dos índios aldeados, sob remuneração, representavam menos de 15% da exportação total. Os produtos desse grupo eram embarcados nos navios da companhia em consignação. O já referido incentivo oficial aos casamentos entre índios e brancos levou à formação de famílias nucleadas que “detinham o conhecimento índio da natureza circundante e, ao mesmo tempo, se reproduziam atendendo às necessidades e aos valores europeus” (COSTA, 2010, p. 194-195). O autor denomina esse grupo de “campesinato caboclo”. De fato, trata-se de um grupo mestiço, distinto dos escravos, dos índios livres aldeados e dos proprietários escravistas e que preenche os requisitos propostos por Ciro Flamarion Cardoso para o reconhecimento de formas de atividade camponesa: 1) acesso estável à terra [...]; 2) trabalho predominante familiar (o que não exclui, em certos, casos, o recurso a uma força de trabalho adicional, externa ao núcleo familiar); 3) economia fundamentalmente de auto-subsistência, sem excluir por isto a vinculação eventual ou permanente com o mercado; 4) certo grau de autonomia na gestão das atividades agrícolas, o seja, nas decisões essenciais sobre o que plantar e de que maneira, como dispor do excedente etc. (CARDOSO, 1984, p. 185).

Essa hipótese de Costa, como se percebe, vai no mesmo sentido do que foi discutido na seção anterior, na análise da evolução demográfica da região.

187

Ao longo da segunda metade do século XVIII, com todas as reformas econômicas, políticas e sociais, como se comportaram as exportações do Pará150? Comecemos com os produtos do extrativismo (as drogas do sertão). Trata-se de gêneros cuja produção flutuava bastante. Entre 1759 e 1778, a CGPM embarcava de 53 a 2.835 arrobas de salsa151 de sua propriedade por ano no Pará para exportação, além de uma quantidade entre 9 e 700 arrobas de salsa que lhe era consignada pelos colonos (CARREIRA, 1988b, p. 242 e 268)152. Em média, nesse período, o Pará exportava pouco mais de 1200 arrobas por ano pela Companhia e outras 232 arrobas pelos colonos, consignadas à CGPM. José Jobson de Arruda, em seu cuidadoso estudo das balanças de comércio publicadas no final do século XVIII e início do XIX (ARRUDA, 1980, p. 488), mostra que entre 1796 e 1811, o ponto mais alto da exportação de Salsaparrilha do Pará para o Reino foi de 4084 arrobas (em 1803). Essa mercadoria destinava-se ao mercado português e estrangeiro (Hamburgo e Inglaterra, especialmente) e era um produto exclusivo do Pará (e, em escala insignificante, do Maranhão). O cravo grosso, “produto típico do comércio exterior português”, era exportado apenas pelo Pará e Maranhão (este, com uma participação mínima) e reexportado principalmente para Itália, Castela e Barbária (costa norte-africana). Das 1022 arrobas de cravo grosso exportadas pelo Pará em 1749, como vimos anteriormente, a exportação anual de cravo grosso dessa capitania, diretamente pela CGPM, seria em

150

É quase que desnecessário dizer que toda a produção exportável da bacia amazônica passava por Belém. Portanto, as drogas do sertão e mesmo o café ou o anil produzido na capitania do Rio Negro e exportado para Portugal tinha de sair por Belém e estaria incluído nessas estatísticas. 151 A salsa ou salsaparrilha-do-Pará (Smilax Papirácea) é “um cipó da família das liliáceas”; suas raízes de até 3 metros de comprimento “são vermelhas e utilizadas no tratamento de sífilis, moléstias cutâneas e reumatismo (CARREIRA, 1988b, p. 326). 152 No colossal corpus documental compulsado por Antônio Carreira ao longo de décadas, faltavam entretanto os livros de entrada da CGPM referentes aos anos de 1765 a 1769 (CARREIRA, 1988a, p. 16).

188

média de 1063 arrobas no período de 1758-1778, sem contar remessas eventuais de colonos – entre 3 e 172 arrobas em determinados anos (CARREIRA, 1988b, p. 239; 266). Entre 1796 e 1811, já no período pós-Diretório, as remessas anuais cairiam para 35 a 984 arrobas/ano com preços entre 3.520 e 8.000 réis por arroba (ARRUDA, 1980, pp. 464-469). Já o cravo fino era um produto mais dirigido ao consumo interno de Portugal. Seu preço, entretanto, costumava ser superior (oscilou entre 4.250 e 10.880 réis no período). Somente Pará e, de forma pouco significativa, o Maranhão o exportavam. A exportação paraense oscilou entre 53 e 3839 arrobas anuais entre 1758 e 1778, com média de pouco mais de 1200 arrobas/ano só de efeitos da CGPM, fora as remessas esporádicas de colonos, que podiam ser de 52 a 426 arrobas anuais (CARREIRA, 1988b, p. 238; 264). No intervalo 1796-1811, posteriormente à liquidação oficial da CGPM, as remessas do cravo fino variariam entre 148 e 3070 arrobas anuais (ARRUDA, 1980, pp. 470-475). A exportação de óleo de copaíba não era constante: nos 9 embarques efetuados em vinte anos de atuação da CGPM, a média embarcada era de 936 canadas – equivalentes a 78 almudes (CARREIRA, 1988b, p. 240). Mais que um produto do mercado português, o óleo de copaíba153 era um produto de reexportação, tendo Inglaterra, Hamburgo, Holanda e França como principais consumidores. O porto de Belém era praticamente o único exportador, remetendo entre 4 e 4.152 almudes154 anuais entre 1796 e 1807 (ARRUDA, 1980, pp. 500-505). Essas mesmas

A copaíba é uma árvore de grande porte, da família das cesalpináceas. “Seu óleo é abundante, muito líquido e claro [...] usada contra a disenteria, bronquites rebeldes e afecções cutâneas; catarro pulmonar, blenorragias, leucorreias etc. (CARREIRA, 1988b, p. 325). 154 Almude: “Antiga unidade de medida de capacidade para líquidos, equivalente a 12 canadas, ou seja, 31, 94 litros” (FERREIRA, 2004). 153

189

características aplicam-se ao ourucu (urucum ou urucu): em contraste com as vinte arrobas (ou 640 arráteis) do carregamento de 1749, citado por Boxer (1995, p. 353), Carreira indicou uma média de 58 arrobas (1.865 arráteis) anuais nos 14 embarques realizados entre 1759 e 1778 (CARREIRA, 1988b, p. 243). Arruda anotou carregamentos anuais de 320 a 7.156 arráteis entre 1796 e 1809, com preços médios variando entre 300 e 490 réis por arrátel. A Inglaterra comprou quase toda a produção reexportada nesses anos (ARRUDA, 1980, pp. 506-511). Quanto aos produtos agrícolas, o açúcar branco se destaca como o principal produto exportado pela América Portuguesa no período estudado por Arruda (17961811), representando 27,5% do valor total exportado. No entanto, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco respondiam por quase todo o embarque no período, ficando o Pará e o Maranhão com uma ínfima participação: respectivamente um total de 2.976 e 296 arrobas em 14 anos, menos da metade do embarque anual de 1749! Esses dados sugerem uma significativa decadência da produção de açúcar no estado setentrional, o que é corroborado por diversas fontes155 e, de certa forma, condizem com uma estratégia de especialização regional, evitando a competição dentro do império156. Já em 1752, Mendonça Furtado dizia que o açúcar era encontrado em

155

Em carta ao rei, datada de 9/11/1751, o capitão-general do Maranhão e Grão Pará Mendonça Furtado expressava grande preocupação com “Os muitos molinetes que tem este Estado, em que se fabricam águas ardentes”, criando problemas graves com a “ebriedade” dos poucos escravos existentes (sem especificar se eram africanos ou índios) e arruinando “totalmente os engenhos de açúcar; porque vendo os lavradores da cana que a fatura da aguardente é muito mais fácil, todos se empregam nela e têm destruído inteiramente o comércio”; Mendonça Furtado recorda que uma ordem régia de 10 de julho de 1748 proibira que os Governadores deste Estado dessem licença “para se erigirem semelhantes engenhocas” e sugeria que fosse demolidos os molinetes construídos irregularmente depois dessa ordem, ou que fossem tributados tão pesadamente que voltasse a ser rentável a produção de açúcar, em vez de aguardente (MENDONÇA, 2005, p. 105). 156 Nesse mesmo sentido, respondia o documento anônimo (posterior a 1776) às críticas feitas à Companhia de Comércio do Pará e Maranhão: “Se a Companhia cultivasse o açúcar e o tabaco e introduzisse neste Reino as quantidades que se poderiam esperar das suas possibilidades, quem seria o que lhe houvesse de dar o consumo? Porventura seria boa política que S.M. concedesse a Companhia para destruir nesta parte os estabelecimentos feitos na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro? [...] De açúcar temos nas três Capitanias muito mais do que podemos consumir enquanto

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Lisboa a um preço menor que o de Belém, e que o açúcar paraense era de qualidade tão desprezível que “é indigno de se servir o Chá e o Café com ele, e de Lisboa o tenho mandado vir para este ministério”157. Em ofício de 1761, já como secretário de Estado na corte, Furtado transmitiria ao governador Manuel Bernardo de Melo e Castro uma ordem régia determinando que para o comércio e navegação desse Estado são impróprios os gêneros do tabaco e açúcar, porque tem contra si os da Bahia e Pernambuco, estabelecidos com muito maior abundância e reputação depois de muitos anos. E por isso ordena Sua Majestade se devem reduzir os ditos gêneros a se fabricar em somente aqueles que forem necessários para o consumo e comércio interior dos rios e do Estado (FERREIRA, 2007, p. 285).

Com efeito, a CGPM efetuou embarques de tabaco do Maranhão e açúcar do Pará apenas duas vezes no espaço de vinte anos que durou seu monopólio, totalizando meras 181 arrobas do primeiro e 4.452 do segundo (CARREIRA, 1988b, p. 232). Muito diferentes eram os casos do cacau e do café, importantes pautas de exportação agrícola do Pará. O cacau era o sétimo produto mais importante em valor de exportação dos domínios portugueses da América entre 1796 e 1811, mas representando apenas 2,7% do valor total; o café era o 8º produto em valor, com 1,8% do total (ARRUDA, 1980, p. 353). Segundo João Daniel, os cafezais na região começavam a dar frutos em um ou dois anos após a semeadura, enquanto os cacauais “mansos” (i.e., cultivados)

existirem os que fazem fabricar franceses e ingleses. E de tabaco temos na Bahia tudo quanto pode consumir a Europa e parte da África e não há nenhuma necessidade de aumentar estes frutos, para com eles arruinar os mais estabelecimentos” (“Exame e resposta aos fundamentos da representação que os homens de negócio da praça desta cidade fizeram a sua Majestade para a extinção da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão que poderá servir para a decisão desta importante matéria”, in CARREIRA, 1988, p. 66, vol. 2). 157 Carta de Mendonça Furtado a seu pai, Francisco Luís da Cunha e Ataíde, 6/11/1752 (MENDONÇA, 2005, p. 349, vol 1).

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entram a frutificar [...] no terceiro ano do seu plantamento, [...] e se avaliam estes cacauais em tantos mil cruzados quantos mil pés são, para que se veja quanto lucrosos são os sítios ou quintas do Amazonas [...]. Os cafezais também fazem quase como os cacauais, mas não em alagadiços, nem necessita[m] de tantas ceremônias, porque as plantas do café são tão pegadiças, que basta cair a semente na terra para logo pegar, arrebentar e crescer (DANIEL, 2004b, p. 22).

O cacau paraense exportado diretamente pela CGPM entre 1758 e 1778 correspondeu a uma média de 35.885 arrobas/ano, sendo a quantidade exportada em consignação pelos colonos insignificante no período (CARREIRA, 1988b, p. 236; 264). Posteriormente, de 1796 a 1811, sabe-se que o preço médio da arroba de cacau variou entre 1.500 e 3.200 réis158. De um total de 1.835.712 arrobas de cacau exportadas pela América Portuguesa no período, o Pará sozinho respondeu por 1.774.835 arrobas (ARRUDA, 1980, p. 400-401), ou 96,7% do total (média de 118.322 arrobas por ano)159. Parte dessa produção era coletada no sertão160 e o resto era fruto do cultivo – incentivado pelos agentes régios.

158

Na década de 1730, o preço da arroba de cacau amazônico teria sido em média 4.800 réis, caindo para algo em torno de 1.000 réis entre 1748 e 1755. Esse comportamento acompanhava as tendências das cotações internacionais (ALDEN, 1976, p. 120). 159 Isso corresponde a cerca de 1.740 toneladas anuais. Comparativamente, no período entre 1772 e 1802, a região de Quito (a mais importante região produtora nos domínios espanhóis) exportou entre 3,2 e 8,1 milhões de libras de cacau por ano – aproximadamente 1.045 a 3.674 toneladas –, três quartos do valor total exportado pelo porto de Guayaquil (ALDEN, 1976, p. 107). A Venezuela exportava quantidades comparáveis de cacau. Entretanto, até as primeiras décadas do século XVIII o mercado principal tanto da produção quitenha quanto da venezuelana (reputada como de qualidade superior) era o México e não a Europa. Na última década do século XVIII a Venezuela, já principal fornecedora de cacau para a Europa, atingiu um pico de 8,8 milhões de libras exportadas (ALDEN, 1976, p. 112). 160 Possivelmente o cacau originou-se na Amazônia Ocidental, atravessando os Andes em direção ao norte da Colômbia para chegar, enfim, à Mesoamérica e ao México. Provavelmente era uma espécie pouco valorizada na região de origem, ainda que alguns povos do Alto Amazonas (como os Kofán do Equador) utilizassem as sementes torradas como estimulante (BALÉE, 2006, pp. 51-53). A maioria dos povos que consomem cacau nas outras partes da Amazônia, porém, limitam-se a comer a polpa adocicada, descartando as sementes. Não há registro de produção de chocolate na Amazônia préconquista. Colombo observou o uso do cacau em sua quarta viagem (1502), no litoral norte de Honduras. A bebida do chocolate tornou-se apreciada na Europa e já no final do século XVI surgiram plantações de cacau na Venezuela. Por isso, as densas matas de cacaueiros chamaram a atenção do espanhol Acuña no Amazonas em 1641. A coleta de sementes de cacau nativo para exportação na Amazônia é registrada desde pelo menos 1678, tornando-se um artigo fundamental da pauta comercial regional no século seguinte (BALÉE, 2006, p. 54). Sendo a principal das “drogas do sertão”, suas sementes circulavam como dinheiro na região pelo menos até 1750.

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No período do monopólio da CGPM, entre 1758 e 1778, a média anual de embarque de café de propriedade da companhia foi de pouco menos de 3.000 arrobas, mais 635 arrobas/ano dos colonos (CARREIRA, 1988b, p. 237; 264). No final do século XVIII, as principais capitanias exportadoras de café eram o Rio de Janeiro, a Bahia e o Pará161. De um total de 112.157 arrobas exportadas em 1807, por exemplo, essas capitanias responderam por 104.923, 4.979 e 2.255 arrobas respectivamente. Embora esse número de 1807 seja muito próximo da quantidade de café exportada pelo Pará em 1749 (2.307 arrobas, como vimos acima), o total anual exportado por essa capitania162 oscilava bastante, desde as 2.170 arrobas de 1797 até as excepcionais 98.968 arrobas de 1811 (ARRUDA, 1980, pp. 418-419). As remessas de anil entre 1775 e 1779 foram pequenas: 26 arráteis por ano da companhia, entre 1775 e 1779, e 153 arráteis dos particulares na média de 4 embarques entre 1763 e 1777 (CARREIRA, 1988b, p. 234; 262). Depois de décadas de incentivo oficial para a produção de anil nas capitanias do Pará e Rio Negro, Belém tornou-se o segundo maior porto exportador do produto na América Portuguesa, depois do Rio de Janeiro (respectivamente, 46.293 e 1.223.587 arráteis163 em todo o período 1796-1811)164. A quantidade exportada anualmente por Belém ficava entre

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Uma Carta Régia de 30/7/1731 concedera, a pedido dos moradores, 12 anos de isenção de direitos para a exportação de canela e café, para que essas culturas se propagassem no Estado (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 253). A medida foi bem-sucedida para o segundo, mas aparentemente não para a primeira. 162 Os dados supracitados de Boxer (1995) para 1749 referem-se à frota anual que levava carregamentos do Pará e do Maranhão, mas os produtos discutidos aqui são tipicamente especialidades do Pará e do Sertão que incluía a porção ocidental da Amazônia, transformada em Capitania do Rio Negro em 1755. Portanto, a comparação com os dados do estudo de Arruda (1980) é pertinente. 163 Um arrátel (ou libra) equivale a 459g ou 16 onças (FERREIRA, 2004). 164 Dauril Alden (1965, p. 60) aponta que a produção de anil da América Portuguesa era marginal em relação à da América Espanhola ou do Haiti. Apesar do enorme esforço do Marquês do Lavradio, Alden ressalta que o êxito da produção de anil na capitania do Rio de Janeiro foi fugaz e sucumbiria (junto com o anil do Rio Negro e Pará) diante da conjuntura internacional do início do século XIX, com as guerras napoleônicas e o renascimento do índigo na Índia sob domínio britânico.

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550 (1809) e 16.333 arráteis (1800). Parte significativa dessa produção era reexportada para Hamburgo, Inglaterra, Itália e outras partes da Europa (ARRUDA, 1980, p. 446-451). Vimos no primeiro capítulo que uma grande parte da produção das drogas do sertão, na vigência do Diretório, era organizada pelos índios das vilas e lugares, que tinham que permutar esses gêneros por outros produtos sob a fiscalização do Tesoureiro do Comércio dos Índios, pagando o dízimo, taxas e emolumentos diversos. Os dados oferecidos por Francisco de Assis Costa (2010), já discutidos, mostram que o setor extrativista, dependente da mão-de-obra indígena, continuava a ser mais importante para as exportações do Estado do que a agricultura (animada tanto pela produção camponesa quanto pela escravista). Esta, no entanto, ganhava espaço lentamente. Uma enorme parte da economia, evidentemente, não era dedicada a produtos de exportação, mas para a subsistência dos produtores e, em menor escala, para o comércio interno. Se a participação indígena era vital para o extrativismo, e para a produção de alimentos para a população do Estado, qual era a sua importância na cultura de gêneros exportáveis? O Ouvidor Ribeiro de Sampaio (SAMPAIO, 1856 [1775]) ofereceu um levantamento relativamente raro e útil para responder a essa questão. Ele compilou, em 1775, um quadro comparativo do número de pés de café, cacau, tabaco e algodão cultivados por brancos e índios na capitania do Rio Negro. É um levantamento de uma grande região, realizado quando o Diretório já estava em vigor havia quase vinte anos. Essa tabela sugere que a participação dos índios na produção agrícola para exportação era inversamente proporcional à sua presença majoritária na população da capitania. É preciso atentar, porém, que a julgar pela tabela 8, a tabela 7 refere-se às plantações do comum das povoações (ou seja, plantações

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comunitárias) quando fala em plantações “dos índios”. Ou seja, não inclui as plantações dos índios adjuntos ou moradores. É importante lembrar também que, via de regra, essas plantações “dos brancos” envolviam famílias formadas pelos casamentos de brancos com índias. Tabela 7: Mapa das plantações de toda a capitania de S. José do Rio Negro, no anno de 1775, calculado em visita das povoações (SAMPAIO, 1856)

A tabela 8, entretanto, mostra que a contribuição dos índios (novamente, da produção “do comum”, e não a produção de índios não-aldeados, chefes de família

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ou moradores) no caso de outros produtos exportáveis era bem maior que a dos brancos: Tabela 8: Mapa dos gêneros da colheita dos moradores índios e brancos, das povoações da Cap. de S. José do Rio Negro; anno de 1775 (SAMPAIO, 1856)

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Ou seja, se no conjunto dos produtos agrícolas exportáveis a produção dos particulares (brancos) superava a produção comunal indígena sob a supervisão dos diretores e oficiais índios da capitania do Rio Negro na proporção de 11 para 1 (café), de 42 para 1 (cacau), de 22 para 1 (tabaco) e de 7 para 1 (algodão), a situação se invertia no caso do “negócio do sertão” (tabela 8). Em primeiro lugar, são 23 povoações interessadas nessa produção, em lugar das 10 que apresentavam alguma produção agrícola exportável (tabela 7). Além disso, a produção de cacau do comum (que inclui o cacau selvagem) acabou sendo 2,3 vezes maior que a dos particulares (que, como o título da tabela sugere, são os brancos); a produção de salsa dos índios foi 63 vezes maior que a dos brancos. Já na fabricação de manteiga (de ovos de tartaruga), a produção dos brancos foi 2,6 vezes maior que a dos índios, mas somente estes produziram castanhas e peixe. Já o puxurim165 foi extraído apenas pelos particulares (brancos). Sublinhe-se que a produção total de cacau e salsa em 1775 é 10 vezes maior que a verificada em 1764 (tabela 8). Sampaio, em outro quadro (o de número IV) de seu Apêndice que possivelmente ilumina bastante o real funcionamento do Diretório, mostra que 408 índios de todas as vilas e lugares da Capitania do Rio Negro estavam nas canoas do negócio das povoações. Quase tanto quanto o número total de índios no serviço d’El Rey (329 homens e 112 mulheres) e bem mais que os índios ao serviço dos moradores (203 homens e 72 mulheres) em toda a capitania, que então somava um total de 10.620 índios aldeados (SAMPAIO, 1856 [1775]). Em outras palavras, 716 índios aldeados estavam a serviço de outrem - 6,7% do efetivo total ou 13,2 % da

“Puxuri, puxerim, pixuri (ou louro-pixuri): árvore da família das lauráceas. Os frutos são aromáticos, estimulantes e tóxicos, usados com êxito no combate às diarreias, dispepsias e leucorreias” (CARREIRA, 1988a, p. 326). 165

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população considerada economicamente ativa (homens de 13 a 60 anos, mulheres de 14 a 50 anos), de acordo com a mesma fonte. Os outros 408 índios na canoa do negócio (7,5% da população economicamente ativa) estavam, presumivelmente, atuando por conta própria. Contudo, ainda que teoricamente engajados em uma atividade para seu próprio ganho, podiam ver até mais de 75% do produto da venda das drogas do Sertão (apurado pelo Tesoureiro dos Índios) subtraídos em função do dízimo, das comissões do cabo da canoa (20%), do diretor, do próprio tesoureiro e outras taxas (MACLACHLAN, 1972, p. 374). O que faziam os demais índios (quase 80% da população economicamente ativa), que permaneciam nas vilas e lugares da capitania? De acordo com o próprio Sampaio, dedicavam-se ao trabalho em suas próprias casas e roças, pescando para si, atuando nos descimentos e no serviço comum, ou seja, para a própria comunidade. No capítulo seguinte, veremos como índios e não índios operaram na produção desses gêneros, principalmente na Capitania do Rio Negro que, sendo composta apenas por povoações de índios, nas palavras de seu governador Tinoco Valente, foi a área na qual o experimento do Diretório foi mais completo e influente em toda a América Portuguesa. Procuraremos identificar, também, como se davam outras formas de produção e circulação no interior dessa capitania.

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3 O Cotidiano das povoações: adaptação, resistência e alianças

3.1 A reorganização das fronteiras étnicas

A intensidade dos “resgates” e “descimentos” forçou dezenas de milhares de indivíduos a formar aldeamentos multiétnicos; a escravização indígena formou planteis multiétnicos nos séculos XVII e XVIII (GUZMÁN, 2006, p. 76). As mais variadas formas de arranjos sociais e políticos (missões, casamentos, escravidão, projetos oficiais de miscigenação, urbanização) formaram uma sociedade mestiça que apresenta peculiaridades em cada parte da Amazônia (p. 77). Sociedade atravessada por fronteiras étnicas166 entre portugueses, tapuios, caboclos, mulatos e negros e, ao mesmo tempo, em constantes interações (pacíficas ou não) com grupos não incorporados, denominados pelos seus etnônimos específicos ou genericamente como gentios. Tais identidades étnicas – novas e antigas, autoatribuídas e heteroatribuídas – mostraram-se duradouras a despeito da intensa e contínua interação social. A forma de organizar o trabalho e a produção na região estruturou essas interações de modo a manter as fronteiras étnicas (BARTH, 2000): resgates e guerras justas dependiam dessas fronteiras étnicas, assim como a sujeição ao trabalho compulsório, a organização das expedições de coleta de drogas do sertão. Paradoxalmente, a mesma dinâmica motivada pela convicção da superioridade religiosa, cultural e

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Refiro-me aqui, naturalmente, a divisões socioculturais e não geográficas ou materiais (BARTH, 2000).

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política dos portugueses cristãos, que impelia à conversão (religiosa, política e econômica) e, portanto, à assimilação e ao apagamento de outras identidades também conferia uma funcionalidade às fronteiras étnicas. O gentio deve ser convertido, mas tem seus direitos naturais. Os dicionaristas Bluteau (1716) e Silva (1789) definem gentio como pagão (de “Pagus, que significava Nação ou Gente”)167, bárbaro, idólatra, sinônimo de ethnos ou ethnico. ETHNICO. Derivase do Grego Ethnos, Gente, & Ethnico val o mesmo que Gentio, ou cousa de Gentio. Gentes, ou Gentiles chamavão os Hebreos aos que não adoravão, como eles, ao verdadeiro Deos. GENTILICO. Cousa de gentios. Erro ou imperfeição gentílica. GENTILIDADE. A falsa Religião dos Gentios. [...] O tempo, ou o lugar, em que antigamente houve, & ainda hoje há gentios (BLUTEAU, 1716).

Os modos gentílicos opunham-se aos modos de ser dos cristãos. Bluteau registra, ainda, que Gentio é um termo que pode ser usado no sentido de “Gente baixa, popular” (“Gentalha ou plebe”, segundo Antônio de Moraes Silva, 1789), o que reforça a conotação negativa e derrogatória ao termo, sempre usado para classificar determinadas alteridades, além de remeter à familiaridade entre a rusticidade interna ao Reino e aquela dos nativos do Novo Mundo, de que fala Hespanha (2008, p. 157), como vimos no capítulo anterior. O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira usa o vocábulo gentio, quase sempre, para referir-se genericamente a populações indígenas independentes ou recém-incorporadas à sociedade colonial: gentios Curutus, gentios Jurupixunas, gentio Cambeba, gentio Caripuna, gentio Mura, gentios Warekena, gentios Guaikuru. Mas usa o termo índios para os habitantes ameríndios da Vila de Barcelos, índias

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Já um dicionário moderno oferece outra origem etimológica: pagão derivaria do latim paganus, que significaria aldeão (FERREIRA, 2004).

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do Estado, índias de Santarém (FERREIRA, 2008). Por exemplo, na descrição do rio Univini, procura identificar as etnias e associá-las a determinado território, mencionando o informante indígena. “A sua água é clara; nele tem entrado o índio Rafael Mendes, do Lugar do Carvoeiro: conta que vira muito anani, donde se extrai o chamado breu da terra; abunda de jabotins, tartarugas, peixes-boi(s). Do gentio que nele habita, reconheceu o rasto, mas não a nação; suspeita que são parauanas” (FERREIRA, 2007, p. 15).

A narrativa da grande rebelião de 1781 no Rio Branco é muito rica, pois identifica grande número de lideranças pelo nome próprio e, em muitos casos, pela “nação” (etnia) (FERREIRA, 2007). A atribuição (e autoatribução) dessas identidades étnicas era fundamental para qualquer ator naquelas fronteiras, pois permitia identificar aliados e adversários em cada conjuntura, bem como o grau de familiaridade com o modo de vida europeu e a necessidade ou não de línguas (intérpretes). Em 1759, Mello e Póvoas diferencia claramente os gentios Mura dos índios integrantes das povoações portuguesas: depois de uma diligência frustrada contra os Mura que amedrontavam as povoações do Rio Negro, próximo ao Lugar de Alvelos, ele conclui: Ainda que parece desta deligencia não tiramos fructo algum sempre com ella conseguimos a grande utilidade daquellez Indios cuidarem nas suas rossaz, que com o temor do Gentio as tinham abandonado, e se não resolviam a sair das Povoaçõens, e por este modo vierão no conhecimento de que não tinhão inimigos por aquellaz vizinhanças, e entrarão a cuidar nas suas lavouraz de que tinhão a maior necessidade (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 139).

O índio pode ser tapuio ou gentio, pode ser acompanhado ou não de um etnônimo. O gentio, grupo ou indivíduo não submetido, é categoria frequentemente

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oposta ao tapuio e sempre distinta do mestiço, caboclo ou mameluco. Com o descimento voluntário, o resgate ou o cativeiro na guerra justa, o gentio muda sua identidade e passa a ser tapuio, mantendo ou não seu reconhecimento do grupo étnico específico (Baré, Manau, Macuxi, Paraviana etc.). Casando-se com branco, adquirindo um ofício, aderindo ao estilo de vida europeu, as gerações seguintes podem deixar de se identificar e serem identificadas pelos outros como índios ou mamelucos, pois “o pertencimento étnico é tanto uma questão de origem quanto de identidade atual” (BARTH, 2000, p. 54). Como a nova sociedade colonial era organizada a partir de valores diferentes daqueles das sociedades nativas – religiosos, morais, políticos, econômicos – os padrões aceitos de avaliação para alguém obter reconhecimento, influência e segurança diferiam bastante daqueles para os quais a socialização Baré, Manau, Macuxi ou Paraviana preparava. A pressão para mudar de identidade era, em maior ou menor medida, forte e constante. Uma vez que a identidade étnica está associada a um conjunto culturalmente específico de padrões valorativos, segue-se que há circunstâncias em que tal identidade pode ser realizada com relativo sucesso, e limites para além dos quais esse sucesso é impossível. [...] as identidades étnicas não são mantidas quando esses limites são ultrapassados [...] (BARTH, 2000, p. 48).

Nos novos padrões sociais dominantes, havia alguns aspectos em que as habilidades e os valores indígenas podiam ser reconhecidos pelos brancos, como determinadas habilidades produtivas, o conhecimento do meio ambiente e as habilidades militares. Voltaremos a esses pontos na sessão seguinte. Dessa forma, um amplo setor da população manteve identidades tradicionais. Em cada situação, indivíduos e grupos podiam considerar vantajoso manter ou não determinadas identidades. Grupos étnicos são formas de organização que respondem às

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condições políticas e econômicas contemporâneas e não vestígios de organizações passadas. Elas se servem do arsenal cultural não para conservá-los como um todo [...] mas para selecionar traços que servirão de sinais diacríticos para se exibir a filiação de um grupo. [...] Que a identidade, além de atender a imperativos cognitivos, possa ter uma ‘função’ e até ser estrategicamente usada, que possa beneficiar pessoas ou grupos de interesse e frequentemente o faça, não significa que ela não passe de um cálculo estratégico, de uma manipulação (CUNHA, 2009, p. 231-233).

A identidade estrutura a realidade para seus portadores. Os organizadores do Mapa das Famílias de 1778168 consideraram relevante informar a “qualidade” dos chefes de família (brancos, cafuzos, mamelucos, índios, mulatos e pretos). Se considerarmos “a identidade étnica como um status, este será superior em relação à maioria dos outros status e definirá a constelação possível de status, ou personalidades sociais, que um indivíduo com uma dada identidade étnica pode assumir” (BARTH, 2000, pp. 36-37). Não havia clérigos que não fossem registrados como brancos no Mapa das Famílias, por exemplo. Na capitania do Rio Negro, vários índios “moradores” ou “adjuntos” (que viviam “sobre si”, ou seja, não estavam sujeitos ao trabalho compulsório) e também os aldeados cultivavam café, maniva e cacau ao lado do roçado idêntico de um branco, mas este último é registrado no Mapa das Famílias como “lavrador”, enquanto os primeiros não o são. Diferentemente, os compiladores desse censo na capitania do Pará registram vários índios como lavradores, assim como Mendonça Furtado, no Diretório, chamava os índios enquadrados em seu projeto civilizador de lavradores (FURTADO, 1758, § 28). Alexandre Rodrigues Ferreira em seu Diário do Rio Negro

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1785, Junho, 22, Barcelos [Rio Negro] OFÍCIO do [governador e capitão general da capitania ]do Rio Negro, João Pereira Caldas, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, remetendo os mapas anuais da população das capitanias do Estado do Pará e Rio Negro, de 1778 a 1781. Anexo: mapas. AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509.

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(2007) observa esses roçados de índios, mamelucos e brancos, mas jamais chama índios (nem os moradores nem os aldeados) de “lavradores”, título que concede a brancos e mamelucos, da mesma forma que o Mapa das Famílias169. De forma significativa, entretanto, no início do século XIX o Cônego André Fernandes de Souza já chama os índios das vilas e lugares do Rio Negro de lavradores. Ao denunciar as “agarrações” (escravização ilegal do gentio) que eram feitas entre 1787 e 1815 na capitania do Rio Negro, Souza pergunta “Porque não agarram os Muras, nem os Erequénas, nem os Mundurucús, nem outros belicosos, senão os pacíficos lavradores?” Para Bluteau, Lavrador é simplesmente “Aquelle que cultiva terras próprias, ou alheyas” (BLUTEAU, 1716). O autor inclusive lamentava que as pessoas de sua época desprezassem os lavradores como rústicos e vilões, esquecendo de que por milhares de anos lavrar a terra tivesse sido atividade das mais nobres. Nas condições objetivas em que se vivia na capitania do Rio Negro, entretanto, a condição de lavrador era das mais respeitáveis a que se podia aspirar, e era assim que se apresentava a maior parte dos camaristas. A maioria dos brancos casados na capitania estabelecia-se na condição de lavradores e a tendência era que seus filhos mestiços prosseguissem nessa ocupação. Possivelmente, a constante ausência dos índios aldeados, requisitados por longos meses para o serviço real ou de particulares, sendo obrigados a abandonar seus roçados, levava a alguma hesitação, por parte dos observadores brancos, a denominá-los como “lavradores”, pois essa dificilmente era sua ocupação principal. Pode-se conjecturar que, durante algum tempo esse estatuto dos aldeados tenha influenciado a percepção dos observadores brancos sobre os índios “moradores”.

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AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509.

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Sublinhe-se também a inexistência de “um estatuto unificado da população colonial. Alguns, os nascidos de pai português eram ‘naturais’, gozando de um estatuto pleno de portugueses, usando o direito português e estando sujeitos às justiças portuguesas” (HESPANHA, 2001, p. 170), estatuto em que se incluíam (ou podiam reivindicar) muitos mamelucos. Os “índios bravos”, não integrados, eram estrangeiros, isentos da “obediência ao governo e direito portugueses” (p. 170). O fenômeno da mestiçagem é tema complexo e rico de significados para a compreensão dos mecanismos sociais, culturais e econômicos em todas as sociedades coloniais. O crescimento (em termos relativos e absolutos) da população de mestizos na América Espanhola colonial, por exemplo, não era apenas um índice do grau de miscigenação entre espanhóis e índios, como alertou Karen Spalding (SPALDING, 1972). A categoria denominada mestizo relacionava-se também a critérios sociais e econômicos. O que era um índio? As autoridades espanholas definiam o índio como o descendente de pais índios, registrado como tal ao nascer, nos arquivos paroquiais. Mas um índio era também uma pessoa que poderia ser reconhecida por certas características no vestir e no comportamento, que falava uma língua diferente, vivia em uma comunidade nativa e, acima de tudo, pagava tributo e, no Peru, estava sujeito ao trabalho compulsório. Econômica e socialmente, o grupo definido como índio situava-se no extrato mais inferior da sociedade colonial, no qual seus membros recebiam a menor remuneração social e econômica por seus trabalhos. Mas e quanto à elite indígena, os membros das famílias definidas como nobres, livres da maior parte do tributo em trabalho imposto aos demais membros da sociedade nativa e com frequência desfrutando de riqueza considerável? E quanto aos artesãos índios urbanos, [...] que partilham de quase nenhuma das características definidas pela sociedade para o índio, mas continuam registrados como índios? (SPALDING, 1972, p. 66).170

170

What was an Indian? The Spanish authorities defined an Indian as the descendent of Indian parents, registered as such at birth in the parish records. But an Indian was also a person who could be recognized by certain characteristics of dress and behaviour, who spoke a different language, lived in a native community and above all, paid tribute and, in Peru, was liable to the labor draft. Economically and socially, the group defined as Indian was at the bottom of colonial society, in that its members received the least social and economic remuneration for their labors. But what of the Indian elite, the members of fmilies defined as noble, free of most of the levies imposed upon other members of native

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Uma hipótese (criticada por essa autora) seria a de que a estratificação social colonial, na América espanhola, mudou gradualmente de um sistema de “castas” para um modelo mais parecido com o de classes sociais, no qual as designações raciais passaram a definir grupos socioeconômicos. Spalding propunha que seria mais útil conceber a sociedade colonial em termos de múltiplas hierarquias baseadas em critérios diferentes, mas inter-relacionados (1972, p. 66). Como vimos, no caso do Grão-Pará, temos ao menos três hierarquias inter-relacionadas: a socioeconômica, a étnico-racial e a de titularidade. Bancos e índios disputavam títulos e patentes. Havia brancos ricos, abastados, remediados, pobres e muito pobres, assim como índios e mamelucos distribuíam-se também por essas categorias socioeconômicas. Um oficial índio, porém, frequentemente não era arrolado entre os “chefes de família”, mas entre os “índios aldeados”. No Estado do Grão-Pará, o uso disseminado da Língua Geral Amazônica (LGA) ou Nheengatu (língua boa) é um índice de um processo gradativo e parcial de mestiçagem cultural, que não apagou as identidades étnicas particulares e ainda serviu como elemento para a marcação de uma nova fronteira étnica entre portugueses e índios tapuios e mestiços. Surgida pouco tempo depois de iniciada a colonização portuguesa na bacia amazônica em 1616, a LGA “baseava-se no Tupinambá falado na região do Baixo Amazonas [...] e sofreu significativa influência léxica da língua portuguesa.” Sua gênese é o produto das uniões entre mulheres tupinambás e soldados ou colonizadores portugueses, bem como da sistematização

society and often enjoying considerable wealth? What of the urban Indian artisans [...] who shares almost none of the characteristics defined by the society as Indian, but were still legally registered as such?

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feita pelos jesuítas. A Língua Geral Paulista ou Tupi Austral formou-se sob circunstâncias semelhantes. A LGA seria dominante na Amazônia até que o boom da borracha inundasse a região de migrantes monolíngues do Nordeste do Brasil, no último quartel do século XIX (BALÉE, 2006, p. 47). Nas condições específicas da conquista da Amazônia, portanto, a nova “comunidade de fala” estabelecida pelo conquistador não foi baseada na língua portuguesa nem na manutenção dos idiomas dos povos conquistados, mas em uma nova construção linguística e em um bilinguismo bastante generalizado. Nos primeiros tempos da colônia, O tupinambá, falado na costa do Salgado até a boca do rio Tocantins, foi adotado pelos portugueses como segunda língua e imposto, também como segunda língua, a povos indígenas de outras famílias linguísticas [...]. Após algumas gerações, foi-se transformando em língua materna da população mestiça e cabocla, dos índios das aldeias de repartição controladas pelos missionários, e até mesmo de muitos filhos de portugueses e de escravos de origem africana, ficando conhecida então pelo nome de língua geral. Depois de passar por um processo progressivo de ‘reajustamento’, acabou tornando-se uma língua diferente do próprio tupinambá [...]. Dessa forma, tornou-se gradualmente uma língua supra-étnica, válida para todas as etnias que eram compulsoriamente integradas ao sistema colonial (FREIRE, 2003, p. 206).

Sua gramática foi descrita pelos jesuítas e ela passou a penetrar nos rios mais longínquos, sendo usada em catecismos, orações, narrativas míticas e poemas. A LGA, conhecida como Nheengatu desde o século XIX, continua sendo falada até hoje em uma área do alto Rio Negro. Embora o uso da LGA fosse comumente apontado como uma característica dos “tapuios” (os índios integrados à sociedade colonial), portanto, sinal diacrítico de uma nova identidade étnica, sabemos que o conteúdo da cultura não necessariamente elimina ou modifica fronteiras (BARTH, 2000). Um grupo pode manter suas fronteiras étnicas mesmo mudando a língua. Ou pode usar uma língua franca como a LGA tornando-se bilíngue. Segundo o padre João Daniel, os

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Nheengaíba (termo genérico – nheengaíba significa “língua ruim”, em LGA – usado para designar grupos que não falavam línguas do tronco Tupi) tinham uma estratégia bem peculiar para manter o uso de sua língua171, mesmo tendo que usar a LGA como língua franca: proibiam as mulheres adultas de usar a LGA (DANIEL, 2004a, p. 370). As fontes utilizam continuamente os termos gentio, índio, tapuio/tupuyo, mameluco e, em muito menor grau, caboclo. O termo “caboclo” é carregado de história. Toda uma discussão em torno dos pressupostos da Antropologia na Amazônia, sobre a tradicional exclusão dos povos não-indígenas, criticando posturas essencialistas e pouco dispostas a enxergar a inserção de seus objetos de estudo em uma sociedade maior e no mercado mundial tem se desenvolvido e envolvido diversos pesquisadores na produção de reflexões metodológicas e pesquisas empíricas individuais e coletivas sobre o ‘caboclo’ amazônico (ADAMS, MURRIETA e NEVES, 2006).Ao contrário de outras categorias populares de pessoas miscigenadas (como mulato e cafuzo), o caboclo é associado à Amazônia, o que se relaciona às particularidades do processo colonizador da região (LIMA, 1999). Categoria relacional172 quase sempre usada de forma pejorativa, caracteriza geralmente um Outro inferiorizado em relação ao locutor (que, ao chamar o outro de

“São muito ciosos e tenazes da sua língua, de sorte que sabendo também a língua geral, e sendo a mais praticada entre os homens, as mulheres não hão de falar senão na sua própria, ainda para as confissões anuais, para a mesma da morte, em que antes hão de confessar por intérprete, do que pela língua geral. E isto executam à risca as pobres mulheres por medo e recomendação dos maridos, que não querem que falem a geral, senão a sua particular, porque não tenham ocasião de falar com os brancos, como eles dizem” (DANIEL, 2004a, p. 370). 172 É uma categoria relacional porque sempre utilizada por um grupo em relação a outro – não há um grupo identificado de maneira unívoca e absoluta como “caboclo”. Os amazônicos das grandes cidades podem chamar de caboclos aos habitantes de núcleos menores; estes, por sua vez, chamarão de caboclos não a si mesmos, mas à população rural do município; estes, ainda, não aceitarão o rótulo e dirão que caboclos são os índios que vivem mais ou menos isolados nas distantes fronteiras (WAGLEY, apud PACE, 2006). Como explica Deborah Lima, “[...] caboclo poderia designar um índio, um habitante da zona rural ou uma pessoa pobre do meio urbano, dependendo do status relativo entre o orador e o indivíduo ou a população a que se refere.” (1999, p. 21). 171

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caboclo, está ao mesmo tempo reservando a atribuição de “branco” a si mesmo) e raramente é usado como autodenominação (LIMA, 1999) (PACE, 2006). Mesmo nos raros casos em que grupos atualmente se autodenominam “caboclos”, como no caso dos índios Gavião do médio Tocantins, o termo é usado em contexto de oposição/ conflito em relação aos não-índios. O uso de caboclo como autodesignação entre os Ticuna subentende a conotação negativa de inferioridade em relação ao branco. Grupos do médio Solimões como Cambeba, Ticuna, Miranha e outros usam o termo “caboclo” para designar seus próprios grupos quando relembram o passado; no presente, identificam-se como “índios”, categoria que voltou a adquirir valorização política recentemente (LIMA, 1999, p. 11-12). O próprio conceito de índio foi um rótulo de identificação heteroatribuído a uma infinidade de grupos que historicamente “ganhou significado concreto e foi aceito por quem o recebeu” (p. 12). Não há um grupo social caboclo, apenas uma categoria social abstrata ou “agregação artificial de pessoas baseada na identificação de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam em um relacionamento social em razão dessa similaridade.” (LIMA, 1999, p. 8). Embora a etimologia do termo “caboclo” seja controversa e especulativa (LIMA, 1999, p. 9), trata-se provavelmente de um termo que desde a sua origem servia para designar o integrante de um grupo diferente daquele do locutor, seja ele originário do tupi caa-boc (“o que vem da floresta”), seja do tupi kari’boka (“filho do homem branco”). Segundo Deborah Lima, caboclo foi um termo usado inicialmente na Amazônia como sinônimo de tapuio, “termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam

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quando se referiam a indivíduos de outros grupos. ” (1999, p. 9).173 Durante o período colonial, como lembra Deborah Lima, os termos tapuio e caboclo foram largamente utilizados para se referir ao índio aldeado – sendo assim a designação dada ao índio ‘domesticado’, não necessariamente mestiço (p. 21). Para Nugent, entretanto, as sociedades caboclas existem objetivamente e são comunidades do tipo campesino, produtos da intervenção ocidental na Amazônia (NUGENT, 2006). De fato, a política colonial de meados do século XVIII em diante procurava constituir um campesinato no Grão-Pará destinado a produzir bens para a Europa. Acrescente-se que, como temos visto, tal política previa realmente que esse campesinato fosse composto majoritariamente de índios “destribalizados” e mestiços (incentivando-se os casamentos mistos). A Antropologia tem usado o termo “caboclo” para designar esse campesinato amazônico, ao qual falta um termo abrangente de autodenominação (LIMA, 1999, p. 8). O caboclo teria se originado assim no período colonial dos índios catequizados e descendentes da miscigenação; no século XIX, foi designação genérica dos habitantes rurais da Amazônia; hoje refere-se às populações tradicionais não indígenas da região (PACE, 2006). Com frequência associa-se o caboclo à inferioridade, rusticidade, ‘mistura racial’, ignorância, falta de ambição e pobreza.

José Veríssimo, escrevendo em 1878, afirma que curiboca (cariúa – branco – e oca – “tirar, extrair, o que saiu do branco”) é o mestiço de branco e índio; mameluco, para ele, seria o resultado da mestiçagem secundária (curiboca com branco); registra que usava-se – equivocadamente – em seu tempo o termo tapuio para o mestiço de branco e índio (mas reconhecia ser muito difícil distinguir um tapuio verdadeiro de um curiboca (VERÍSSIMO, 1970, p. 12-13). A palavra tapuio, para os Tupi do litoral, era um conceito semelhante ao de bárbaro para os romanos, “uma denominação genérica do desprezo [...] e que naquela língua significava não só o hostil, o inimigo, mas o escravo. Os mamelucos, aproximando-se mais e mais da sociedade de seus pais, os brancos, começariam a criar pelo índio aldeado, escravizado, vendido, o mesmo desprezo [...]” (idem, p. 14). Stradelli, no entanto, anota que tapuio seria o mesmo que indígena, propondo como origem da palavra a contração de táua (taba) e epy (origem, princípio) e ia (fruta) – fruto da origem da taba. O fato de os tupis do litoral nomearem os não-tupi que se retiraram para o sertão como tapuias seria assim circunstancial, em sua opinião (STRADELLI, 1929, p. 665). 173

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Pobreza não somente em relação aos padrões de vida urbanos, mas também em relação à expectativa dos projetos de desenvolvimento de um campesinato produtor de bens exportáveis na Amazônia, desde o período colonial, como lembra Deborah Lima (1999, p. 13-14). Caboclo é um conceito formado na história da formação do campesinato amazônico, em uma sociedade fortemente hierarquizada. A ele estão associados um grande conhecimento da floresta e dos rios; hábitos alimentares e padrões de moradia peculiares; origem na miscigenação, mas diferenciação em relação ao migrante nordestino e ao índio “tribal”. Richard Pace (2006) e Deborah Lima (1999) propõem mesmo que se deixe de utilizar o termo, tão depreciativo como outros usados na escrita etnográfica (cholo, chicano, navajo, esquimó etc.). Harris chama de ribeirinhos e caboclos os camponeses que vivem às margens dos rios amazônicos e considera a flexibilidade e a resiliência como suas características essenciais, cuja gênese se deu no contexto de expulsão dos missionários e do estabelecimento do Diretório, na segunda metade do século XVIII (HARRIS, 2006, p. 81-83), mas prefere o primeiro termo (ribeirinhos) ao segundo (caboclos). Não existe uma “cultura cabocla” entendida como um legado imóvel de crenças, saberes e práticas. Em outro escrito, o mesmo autor mostra a insuficiência de uma noção “geertziana” de cultura que ofereceria a sociedade cabocla como um molde ou gabarito para a população rural amazônica, contradizendo a própria ideia de uma identidade produzida historicamente (HARRIS, 1998, p. 84). Aqui vemos o combate à reificação174 da cultura, à imposição de categorias abstratas (como cultura) a práticas e pessoas reais, no sentido da contribuição de Barth (2000).

174

Na verdade, até mesmo a Amazônia tem sido reificada como objeto cultural.

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Harris partilha da ideia de Deborah Lima de que entre essas populações predomina um presentismo ou o entendimento do passado como descontínuo em relação ao presente sempre instável econômica e mesmo ecologicamente, “uma amnésia entre gerações, uma carência de identidade grupal consolidada em torno de memórias sociais ou de um mito de origem [...]” (HARRIS, 2006, p. 84). Uma abertura para o presente, para a reinvenção. Mas critica a visão de que os ribeirinhos ou caboclos estariam hoje contribuindo para o fim de sua cultura – na verdade, pode-se interpretar que estão se reinventando mais uma vez. Critica também a ideia de que as sociedades caboclas tenham sido o resultado de pressões externas e não das ações das pessoas que as vivenciaram. Há uma visão consolidada de que a sociedade cabocla seja um sistema adaptativo, consequência de forças conquistadoras heterogêneas. No entanto, reconhecer que essas populações se desenvolveram em interação com o mercado mundial não deve nos levar a vê-las como passivas ou meramente reativas a essas influências externas. A hipótese de Nugent (apud HARRIS, 2006, p. 89) é mais refinada que a visão linear simplificadora e reificadora de uma sociedade formada no final do período colonial, consolidada no período colonial e hoje em vias de desaparecimento. Diversamente, Nugent propõe que as comunidades locais se desenvolvem e se diferenciam mais intensamente nas épocas de baixa demanda externa; inversamente, o aumento da demanda por produtos amazônicos leva à intensificação do controle da mão de obra (com endividamento e com trocas desiguais, por exemplo), tornando essas populações mais vulneráveis e voltadas para o exterior. Ainda assim, lembra Harris, trata-se de uma simplificação. A realidade é mais complexa e menos homogênea, mesmo que o dinamismo das formas locais de reprodução seja invisível para a maior parte dos estudiosos. Uma das causas dessa “invisibilidade” pode ser o fato de que as relações produtivas camponesas –

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tanto a organização da mão-de-obra quanto o controle dos recursos – são baseadas no parentesco (isto é, são localmente geradas) (HARRIS, 2006, p. 88-92). No século XIX, o intelectual paraense José Veríssimo definia o tapuio como integrante da [...] população que habita as margens do grande rio e dos seus numerosos afluentes, vivendo a nossa vida, contribuindo para a nossa receita, trabalhando nas nossas indústrias, e que não é nem o índio puro, [...] nem o seu descendente em cruzamento com o branco, o mameluco [...] (VERÍSSIMO, 1970, p. 14).

Vicente Chermont de Miranda, escrevendo em 1906, registrava tapuio tanto como índio camponês nacional quanto como mestiço: “Índio manso já meio civilizado, que vive entre a população sertaneja. § Caboclo ignorante e rude. Etim. Tapyia, bárbaro, selvagem” (CHERMONT DE MIRANDA, 1970, p. 86). Ora, a etimologia fornecida pelo autor parece contradizer a definição de tapuio como índio “domesticado” ou como o mestiço do índio com o branco. Curiosamente, uma carta175 de Bernardo de Berredo, datada de 10 de agosto de 1721, discute sobre o pedido de um colono para “resgatar apenas cem casais de escravos índios da nação Tapuia para servirem no seu engenho açucareiro no sítio de Carnapijô”. Ora, “Tapuia” não era nação no sentido de uma identidade autoatribuída, mas um designativo genérico, tal como “nação hebreia”. Nos Anais Históricos do Estado do Maranhão, o próprio Berredo usa tapuya como sinônimo de índio (Barbados, tapuyos de corso da capitania do Maranhão, § 1473; Encabellados, tapuyos belicosos, § § 705-707), chegando mesmo nos §§ 441-442 a chamar de “tapuyos” os Tupinambás rebelados contra Francisco Caldeira de Castelo Branco

175

AHU_CU_013, Cx. 7, D. 593.

213

(fundador de Belém). Quando trata dos índios que se rebelaram contra os holandeses em 1644 no Ceará, Berredo usa indistintamente, para denominar um único grupo, os termos “Tapuyas queixosos” (contra os holandeses, § 920), “valentes bárbaros” (§ 921), “valerosos Indios” (§ 923) (BERREDO, 1749). Tapuios, portanto, podem ser o gentio (índios bravos, não integrados à sociedade colonial), os índios genéricos das povoações coloniais ou, em um período pós-colonial, os mestiços (como sinônimos de caboclos). O autor de Notícia Verdadeyra (LEONARDO, 1749), de quem falamos no capítulo anterior, além de enfatizar que “não houve Tapuya, ou quem dele tivesse sangue, que não padecesse a força deste contagio” (o sarampo), ainda menciona que houve um proprietário que “deu à terra mais de cem escravos, entre pretos, malucos, caboucos e mestiços.” Ora, por que não aparecem índios nessa frase? Por que pretos, ali, eram os índios escravizados, assimilados ideologicamente a negros (da terra); malucos são nesse caso os mamelucos; os “caboucos”, pelo contexto, são certamente os caboclos.176 Não está clara a diferenciação que o autor fazia entre caboclos e mamelucos, todavia. Um requerimento anterior a 25/5/1751, feito em nome de “Apolonia Mameluca” e “de seos filhos descendentes de Indos [sic] do Rio das Amazonas cap.nia do Grão-

176

Bluteau (1716) e Antônio de Moraes Silva (1789), compreensivelmente, não registram o termo caboclo (certamente por ser um regionalismo) mas tão-somente o verbete “cabouco” como variante de cavouco (“o buraco, que o cavouqueiro faz com uma espécie de alavanca, o qual se enche de pólvora, para rebentar a pedra” –Silva) ou cabouqueiro (cavouqueiro – “o que arranca pedras, o que corta e tira as pedras da pedreira.” - Bluteau). Obviamente, o autor da Notícia Verdadeyra, conhecedor dos regionalismos paraenses ou baseado em testemunhos que o utilizavam, não está se referindo a esse ofício, mas ao mestiço, o caboclo. Mesmo ouvindo o termo caboclo, pode tê-lo assimilado a algum vocábulo conhecido em sua língua materna.

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Pará de Nação Tapuyos” pedia provisão do rei para poder apelar de sentença da Junta das Missões que lhes negara a liberdade177. Francisco Xavier de Mendonça Furtado chama de tapuias tanto aos índios independentes quando aos aldeados, diferenciando-os de mestiços (MENDONÇA, 2005). Em 1752 participa ao Secretário Diogo de Mendonça Corte Real a situação dos militares no Estado e reporta que a fortaleza dos Pauxis (Óbidos – PA) exige “grande cuidado, pois ali vem parar a maior parte dos homens que andam no sertão, capturando Tapuias, contra as ordens de S. Maj.”.178 Aí, portanto, Mendonça Furtado refere-se a índios não aldeados, que poderiam ser chamados de gentios, mas por cuja liberdade também velava; porém no mesmo mês, em outra carta, usa o termo “tapuias” para referir-se aos índios aldeados, distinguindo-os dos brancos com quem convivem: dizia que era necessário dar a conhecer às Religiões que vivem absolutas, e despóticas neste Estado, que S. Maj. Olha para elas com diverso sistema do que até agora olharam os seus Reais predecessores; querendo que nas Povoações de que se compõem, se faça justiça a todos os moradores dela, sem a tirania com que são governados; mandando administrar esta justiça, por quem lhes parecer há de distribuir igualmente a Tapuias e Brancos, na conformidade das suas leis (MENDONÇA, 2005).179

Da mesma forma, chama de tapuias os índios aldeados, objeto dos planos de civilização e aproveitamento econômico do Estado, em carta sobre o potencial econômico das diferentes regiões e dos vários produtos exportáveis, neste caso nos rios da capitania do Maranhão:

177

AHU_CU_013, Cx. 32, D. 3047. Vol. I, p. 233 – carta a Diogo de Mendonça Corte Real. Pará, 9/1/1752. Aliás, não são poucas as referências a militares envolvidos no contrabando de índios escravizados, na correspondência dos meses seguintes. 179 Vol. I, p. 263 – carta a Diogo de Mendonça Corte-Real. Pará, 20 de janeiro de 1752. 178

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Nestes rios é fácil a condução das lenhas, por ser água abaixo, o que podiam muito bem fazer os Tapuias que se acham aldeados nas margens dos mesmos rios, com grande conveniência dos senhores de engenho, porque aqueles Tapuias se poderiam servir, não só para a condução das lenhas, mas para lavradores de cana, sendo-lhes só preciso os escravos negros para a fábrica do engenho, vindo assim a poupar o infinito dinheiro que se gasta em pretos que continuamente lhes fogem e morrem, e os Tapuias se adiantariam da miséria em que vivem; e ensinar-se-iam por essa forma a saberem negociar por meio da cultura.180

Eram esses tapuias que deveriam servir, não como escravos, mas como qualquer trabalhador assalariado (carta a Sebastião José de Carvalho e Melo, 26/9/1752, acusando os jesuítas de conluio com um poderoso do sertão, o “celerado” Francisco Portilho, que “rouba no mesmo sertão infinitos índios que lhes entrega”). 181 Os tapuios poderiam ser também índios especializados, mestres em seu ofício de escultores e pintores, tratados como livres ou como escravos.182 Quando o oficial da Secretaria e Casa das Canoas de Belém Matias Pais comportava-se de forma aceitável para os padrões portugueses, possivelmente sua condição de mameluco não seria lembrada ou considerada relevante, pois essa identidade étnica não era relevante nesse tipo de interação. Mas quando começou a “meter hóspedes na secretaria” e a fazer danças (puracy) e festas no local de trabalho, Mendonça Furtado imediatamente aludiu a sua condição de mestiço: O estado em que V. Exª achou a Secretaria e Casa das Canoas, não era certamente para dar gosto. Matias Pais é certo que tem todas as partes que se podiam desejar para oficial dela, porém quis Deus que tivesse esse pedaço de Tapuia para se lembrar daqueles avós, e imitálos nos seus Purassés (Carta ao governador interino, Bispo Miguel de

Vol. I, p. 270 – carta a Diogo de Mendonça Corte-Real. Pará, 22 de janeiro de 1752. Vol. I, p. 284. 182 Vol. I, pp. 355-356 – carta endereçada a Sebastião José de Carvalho e Mello. Pará, 8 de novembro de 1752. Em 1786, Alexandre Rodrigues Ferreira apresenta um rol dos índios empregados em Barcelos, incluindo 23 oficiais de ofícios (2 pedreiros, 9 carpinteiros, 2 serradores, 3 calafates, 1 ferreiro, 3 sapateiros e 3 oleiros) e 6 aprendizes (1 de ourives, 1 de carpinteiro, 2 de sapateiro e 2 de oleiro), além de 6 principais, 1 capitão, 1 alferes e 2 abalizados (FERREIRA, 2008). 180 181

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Bulhões, Mariuá, 4 de janeiro de 1755).183

Em 1756, tratando de conluios entre padres e alguns militares, menciona que um tal Tenente José da Fonseca divertia-se com “umas tapuias e mestiças que eram suas companheiras” 184. A marca de uma sociedade hierárquica de Antigo Regime aparece nos topoi dos índios e índias como lascivos, de vida desordenada e controlados pelos baixos instintos, dados a beberronias. Em 20 de novembro de 1766, Luis Vieyra da Costa, 33 anos, natural da Freguesia da Sé da cidade do Pará, denunciava o índio Miguel, natural da capitania do Rio Negro, por bigamia. Ao final da denúncia, como de praxe, o inquisidor lhe perguntou sobre a opinião dele, denunciante, sobre a crença, vida e costumes do denunciado. “Disse que conhece há quatro anos, pouco mais ou menos que tem dito, E que não fes dela boa nem ma opinião, porém que Sobre a vida e custumes he sabida a opinião, que se costuma fazer das Indias, que ordinariamente são mal procedidas” (LAPA, 1978, p. 260). O projeto civilizatório do Diretório reconhecia essas alteridades, mas não era exatamente igualitário. Na verdade, redefinia e fortalecia hierarquias ao mesmo tempo em que integrava o outro como vassalo do rei de Portugal (DAHER, 2012, p. 169). Andrea Daher critica como anacrônica, nesse sentido, esta interpretação de Elisa Frühauf Garcia: O Diretório tinha como objetivo principal a completa integração dos índios à sociedade portuguesa, buscando não apenas o fim das discriminações sobre estes, mas a extinção das diferenças entre índios e brancos. Dessa forma, projetava um futuro no qual não seria possível distinguir uns dos outros, seja em termos físicos, por meio da miscigenação biológica, seja em termos comportamentais, por intermédio de uma série de dispositivos de homogeneização cultural (GARCIA, 2007, p. 23).

183 184

Vol. I. p. 300. vol. III, p. 169 – 155ª carta, endereçada a Sebastião José de Carvalho e Mello, Mariuá, 13/10/1756.

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Talvez o problema apontado nessa exegese seja a omissão da permanência de hierarquias. Independentemente das intenções, o fato é que ao longo de 50 anos de vigência do Diretório, a população continua sendo dividida entre “índios” e “livres exceto aldeados”, os regimentos auxiliares e de ordenanças continuam sendo organizados em regimentos de índios e de brancos etc. O Diretório (FURTADO, 1758) usa o termo “índios”, mas não “tapuios”. Tampouco menciona mestiços como mamelucos, curibocas ou caboclos, visto que o objetivo dessa lei era mesmo fazer dos índios e seus descendentes, portugueses. Incentiva os casamentos entre índios(as) e portugueses(as) e não nomina os frutos desses enlaces. Serão, apenas, portugueses. Proíbe expressamente que se tratem os índios por “negros”, epíteto que lhes era dado usualmente “querendo talvez com a infâmia, e vileza deste nome, persuadir-lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa da África” (art. 10). No artigo seguinte (11), o texto legal determina ainda que, para demonstrar aos “Índios com toda a evidência, que buscamos todos os meios de os honrar, e tratar, como se fossem Brancos; terão daqui por diante todos os Índios sobrenomes, havendo grande cuidado nos Diretores em lhes introduzir os mesmos Apelidos, que os das Famílias de Portugal[...]”. Como dizia Mello e Póvoas em 1758, o meyo mais eficcas, e prompto para se introduzir nos habitantes desta Capitania a Civilização de que tanto carecem hé o cazarem os Soldados com as Indias, como muitos o tem feito e a frequência das escolas em que aprendem os pequenos não só a ler, escrever e contar, mas tão bem a Lingua portuguesa (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 121).

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Mais de três décadas depois, Alexandre Rodrigues Ferreira usa os termos tapuia, cariboca e mameluco185 sem, no entanto, esclarecer as diferenças entre eles. Provavelmente Ferreira supunha que os significados desses termos seriam de amplo conhecimento de seus leitores – em primeiro lugar, os agentes régios na América e no Reino. Possivelmente, se tivesse tido a oportunidade de editar e corrigir os manuscritos, teria esclarecido o sentido dessas categorias mas, como se sabe, o grande viajante baiano nunca pôde organizar seus escritos para a publicação em vida. Para Andrea Daher, entretanto, os discursos dos europeus eram pelo menos até antes do século XVIII “governados pela analogia, segundo a qual a alteridade se define por graus de semelhança e não como diferença” (DAHER, 2012, p. 19). Dessa forma, talvez querer saber a diferença precisa entre essas categorias seja uma idiossincrasia de leitores do século XXI, que não teria muito sentido para Ferreira. O tapuia bem pode ser o índio livre, súdito português legalmente igualado em deveres e direitos aos portugueses de origem, pagando impostos, prestando serviço militar e ocupando cargos oficiais. Mas ainda pode ser objeto de curiosidade e estranhamento radical, como se vê no ofício de 28/10/1783 que Alexandre Rodrigues Ferreira escreve para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro], remetendo para o Gabinete Real objetos coletados em sua Viagem Filosófica no Estado do Grão-Pará, como “a cabeça de um índio tapuia e uma caixa com colares, braceletes e outros”.186

O dicionarista fluminense Antônio de Moraes Silva define que “No Brasil, chamão mameluco ao filho de Europeo com negra, segundo diz Margravio; outros dizem ser filho de Índio com mulata” (SILVA, 1789). Bluteau registrara somente a primeira acepção, depois de remontar a origem do nome ao árabe mamlouk, que significava escravo (BLUTEAU, 1716), propriedade, coisa possuída (FERREIRA, 2004). 186 AHU_CU_013, Cx. 90, D. 7363. 185

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Pouco depois da Independência, um requerimento feito em nome de Teresa Joaquina, órfã, com dez anos de idade e sozinha em Lisboa depois da morte de uma emigrada do Pará, a quem provavelmente servia, pede ao rei João VI que lhe conceda o passaporte gratuito para voltar ao Pará, identificando-se como “índia da nação tapuia”.187 O documento explica que ela não tem dinheiro, mas tem quem a sustente até chegar no Pará. Esse me parece um bom exemplo de manutenção das fronteiras étnicas, na mobilização de uma identidade que faz sentido nessa interação: pouco importa que não exista uma tal “nação tapuia”. O que importa é que, demonstrandose que se trata de uma índia paraense, após a independência, faz todo o sentido auxiliá-la para que possa voltar ao seu lugar de origem, isentando-a de pagar as taxas do passaporte. Embora muitos índios estivessem continuamente assumindo novas identidades (via casamento com brancos, aprendizado de um ofício, adesão a valores e estilos de vida europeus) como “moradores” e vassalos “sem cor”, a organização da vida social e econômica da capitania dependia da existência dos índios. A organização política e econômica em cada povoação se dava em torno de linhas étnicas, pois havia um principal para cada grupo étnico em cada vila ou lugar. As formas de recrutamento da força de trabalho e a divisão social do trabalho (a especialização das vilas e lugares indígenas em determinados produtos e serviços, o transporte, a coleta das drogas do sertão, o serviço de remeiros e jacumaúbas) parecem ter sido “relações sociais estáveis, persistentes e frequentemente vitais que não apenas atravessam essas

187

AHU_CU_013, Cx. 163, D. 12471. Documento sem local e data, anterior a 1825.

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fronteiras como também muitas vezes baseiam-se precisamente na existência de status étnicos dicotomizados” (BARTH, 2000, p. 26). Foi na qualidade de índios que alguns indivíduos parecem ter sido impedidos de entrar na Ordem Terceira da Penitência em Belém e, por essa razão, peticionaram ao rei requerendo sua intervenção para que fossem admitidos. No requerimento, apresentavam-se como “civilizados, e estabelecidos com cabedais e bons procedimentos”. Mas identificam-se como “índios e índias mamelucos e mamalucas”, o que mostra que as linhas que separavam as qualidades não eram tão nítidas como um leitor do século XX ou XXI esperaria ver. Invocando as Leis de 1755, afirmavam que era uma injúria negar-se sua admissão à ordem por serem descendentes de índios. O despacho de um integrante do Conselho Ultramarino datado de 2 de junho de 1759 recomendava que se atendesse a reivindicação, pois qualquer cristão católico romano deveria ser admitido nessas ordens terceiras.188 Em 1761, o governador Manuel Bernardo de Melo e Castro oficiava ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Mendonça Furtado, que o frei João do Monte Carmelo estava sendo remetido a Lisboa, por ter recusado “escandalosamente” a admissão de José Rodrigues da Fonseca na Ordem Terceira, “por ser Mameluco”189. Acrescentava que o fato mostrava que se devia “vigiar sobre o desprezo com que algumas pessoas poderão olhar para o Sangue dos Índios, privando-os daquelas honras de tratamento da Nobreza com que o mesmo Senhor os manda nobilitar e distinguir”.

188 189

AHU_CU_013, Cx. 45, D. 4082. AHU_CU_013, Cx. 50, D. 4606.

221

Como vimos no requerimento de 1759, ser produtivo, “estabelecido e com cabedais” era uma forma de procurar reconhecimento para suas reivindicações. Veremos na próxima seção como os índios utilizavam esses meios para manter ou ampliar sua autonomia.

3.2 Trabalho e comércio

O eclipse da política surtiu um efeito sumamente perturbador nos aspectos morais da filosofia da história. A economia caiu no vazio. Instaurou-se uma postura hipercrítica a respeito da justificação moral dos atos políticos. Isso resultou numa depreciação radical de todas as forças, exceto a econômica, no campo da historiografia. A psicologia mercantil, que só considera reais as motivações ‘materiais’, relegando as motivações ‘ideais’ ao limbo da ineficácia, estendeu-se não só às sociedades que não eram de mercado, mas também a toda a história pregressa. Quase toda a história antiga passou a ser vista como um amontoado de consignas sobre justiça e direito, alardeado por faraós e monarcas divinos, com o único intuito de enganar súditos desamparados que se curvavam sob o açoite. Era uma atitude contraditória. Por que se haveria de adular uma população de escravos? Se tal adulação era necessária, será que poderia ser feita com promessas que nada significavam para os adulados? Se as promessas tinham algum significado, a justiça e o direito deviam ser mais do que meras palavras (POLANYI, 2012, p. 59-60).

As Leis de Liberdade e o Diretório pretendiam promover a integração das populações nativas como vassalos do rei de Portugal pelas vias da catequese e, principalmente, do comércio – já que a catequese, nos cem anos anteriores, não tinha logrado tal integração, permanecendo os índios em um mundo missionário que já não era o de suas comunidades independentes mas permanecia separado da sociedade colonial e do império pela mediação das ordens religiosas. Mantinham-se as justificativas morais da conquista e se procurava cooptar ativamente as populações nativas para um projeto apresentado como portador de interesses recíprocos. No entanto, no contexto das mudanças culturais e econômicas europeias da segunda

222

metade do século XVIII, enfatiza-se o interesse próprio como móvel da produção e do comércio. Em que medida ou de que maneiras o estímulo a um comércio integrado à circulação mundial mudou a vida econômica dos índios da capitania do Rio Negro? Certamente, um número considerável de índios escolheu tentar se integrar a esse comércio, produzindo café, cacau e outros gêneros de exportação. Referindo-se aos habitantes do Lugar de Moreira, Alexandre Rodrigues Ferreira comentava, 30 anos depois das Leis de Liberdade, sobre os processos sociais que tendiam a integrar os índios às relações de mercado: A agricultura dos índios consiste em maniba e algum café; assim esta gente não é tão falta, como se pensa, das idéias de interesse; o ponto está em da nossa parte sabermos fomentá-las. Vêem que o café é gênero lucrativo para os brancos e eles, que já hoje estimam a camisa de bretanha com seus punhos, o calção de tafetá encarnado, o chapéu à nossa moda, sob pena de não irem à missa nos dias do preceito, quando se envergonham de não terem a tal farda, eles, digo eu, não deixam de trabalhar o que podem e o que se-lhes permite, para a adquirirem. Falo dos índios aldeados nas povoações aonde nasceram e observaram desde pequenos a polícia portuguesa (FERREIRA, 2007, p. 96).

No início da experiência, havia alguma hesitação e o projeto ameaçou naufragar diante dos obstáculos. Já em 1759, pouco depois de encerrar-se o governo de Mendonça Furtado, seu sucessor informava, aflito, que “a grandíssima falta de gente nas povoações” faria com que a repartição dos Índios para as Canoas do negócio dos moradores há de certamente ser muito diminuta, e em consequência será também muito pequena a extração das Drogas do Certão, mayormente com a quase invencível desconfiança em que os Índios estão, de que os negócios das duas Povoações, não são para eles, mas sim para Sua Majestade [...]190

190

1759, Agosto, 9, Pará. OFÍCIO do [governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará], Manuel Bernardo de Melo e Castro, para o [capitão general] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre o estado de decadência das povoações da capitania do Pará, devido à saída dos índios após a concessão de alforria. AHU_CU_013, Cx. 45, D. 4106

223

Isso acontecia, explicava o novo governador, por não haver fazendas de qualquer qualidade nos armazéns da Companhia de Comércio para se pagar aos índios pelos gêneros que eles trariam, pelo segundo ano consecutivo. Isso, temia ele, poderia fazer os índios terem saudades dos “tempos dos padres”. Mas aparentemente os agentes régios, a Companhia de Comercio e os próprios índios colocaram a grande engrenagem para funcionar. Em carta de 20 de janeiro de 1760, o primeiro governador da Capitania do Rio Negro informava o agora Secretário de Marinha e Ultramar Mendonça Furtado que muitos dos índios fugidos que andavam amocambados já tinham retornado às povoações. Segundo Póvoas, mais de 150 pessoas que tinham fugido do lugar de Carvoeiro retornavam agora, segundo seu líder, porque “lá já não governavão os Padres senão o Morochava191” (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 223225). Seus sucessores da capitania do Rio Negro informavam continuamente Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os progressos do comércio das povoações sob o regime do Diretório. Em 1764,192 Joaquim Tinoco Valente indicava a seguinte produção das vilas e lugares do rio Negro, no que dizia respeito à produção do comum (isto é, a produção coletiva que deveria reverter para as comunidades): Tabela 9: Produção de gêneros exportáveis - Rio Negro, 1764

191

Povoações

Cacau (arrobas)

Salsa (arrobas)

Lamalonga

0

0

Morubixaba, ou seja, principal ou cacique. 1764, Julho, 26, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [governador do Rio Negro, coronal] Joaquim Tinoco Valente ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado a enviar os mapas dos gastos da Fazenda Real; da tropa da capitania; dos índios aldeados e do comércio das povoações. AHU_CU_020, Cx. 2, D. 120. 192

224

Thomar

234

6

Moreira

80

11

0

85

Poyares

445

3

Carvoeiro

138

5

Moura

357

0

Ayrão

68

10

Soma

1322

120

Barcellos

Uma produção muito modesta, comparada com os volumes de exportação do Estado, vistos no capítulo 2. Segundo o bispo Frei João de São José, um único produtor do rio Capim, próximo a Belém, podia colher 1500 arrobas em um ano (SÃO JOSÉ, 1868 [1762], p. 197). Se considerarmos um preço de 1500 a 3200 réis por arroba de cacau, mesmo a maior produção dessas oito povoações significava uma importância de 667$500 a 1.424$000 para Poiares, por exemplo, cuja população não passava de 700 pessoas no total. Desse total hipotético, haveriam de se deduzir os tributos e o percentual de direitos do diretor. Esse valor parece insignificante à primeira vista para índios aldeados cujo menor salário mensal possível, normalmente, era de 400 réis por mês, pois essa produção exigia alguns meses de trabalho. Mas mesmo que todos os homens e mulheres aldeados adultos recebessem 12 meses de salário, o que não acontecia, o montante seria equivalente a 1.440$000 para o ano todo. Um único produto do sertão poderia, em alguns meses e com uma pequena parte dos adultos envolvidos, trazer a mesma importância para a comunidade. Acrescente-se a isso que a maior parte do consumo da povoação não passava pelo mercado. Os valores

225

monetários obtidos podiam ser úteis, entretanto, para aqueles itens que não podiam ser produzidos no âmbito da própria povoação. Nos termos do Diretório, agora os índios (ou pelo menos os oficiais índios) eram agora os protagonistas do comércio das drogas do sertão. Cada comunidade e cada oficial índio organizava e tinha um quinhão nos ganhos no envio das canoas ao sertão. No entanto, havia problemas. O ex-ouvidor do Rio Negro (1767-1773), Pestana da Silva, que tinha conhecido de perto essa realidade, retratava o sistema das canoas do comércio das povoações do Diretório da seguinte forma: faz-se a expedição das canoas, que montam por penosos rios, até a vizinhança dos sertões, donde se hão de extrair as drogas e especiarias: ali se estabelece a feitoria, ou assento donde todos os dias faz o cabo partir os Índios em pequenas canoas, a dois para cada parte, a colher aqueles frutos, conforme o seu destino, e de que dão conta à noite, quando se recolhem , ou passados alguns dias à proporção da colheita; extraem-se as drogas à custa do trabalho, das fomes, de perigos de vida, [...] e neste tempo tem os Índios sofrido muitas violências e mau trato dos cabos, que sendo de ordinário soldados, e tendo de interesses o quinto, costumam corresponder com um pau aos Índios que trazem ou colhem poucos gêneros, por não quererem dissipar suas esperanças e sua cobiça. Passados muitos meses, e feita a carga da canoa principal com mais ou menos abundância, à proporção da fertilidade dos anos, se restitui a canoa ao sítio da povoação a fazer os manifestos que recomenda o Diretório e concluída a diligência se partem para a cidade capital, sem haver o menor descanso a entregar os gêneros ao tesoureiro geral, que os trafica com a Companhia, recebendo fazendas em pagamento. Na mesma capital se tira o dízimo, a despesa, o quinto para o cabo de canoa a 6ª parte que pertence aos diretores, 3 por cento para o tesoureiro, 2$000 de novos direitos, além do viático para a igreja. Feita a conta de todo este abatimento, se reparte o resto pelos Índios interessados, e muitas vezes lhes tem tocado pouco mais de 1$600 na importância dos efeitos, que lhes distribuem, e lhes dão em pagamento (SILVA, 2007).

Ou seja, no processo de coleta, segundo o ex-ouvidor, pouco havia mudado. Se agora cada comunidade enviava sua própria canoa e teoricamente trabalhava em seu próprio benefício, havia a penosidade de se remar do rio Negro ou Solimões até Belém, ida e volta, havia os muitos descontos e taxas, havia o pagamento em espécie

226

que, segundo Pestana, parecia mais talhado a favorecer a Companhia Geral de Comércio do que aos índios, pois pagava a salsa, o cacau, a andiroba com fazendas que nem sempre interessavam as eles: Na partilha das fazendas, cabe por exemplo: um espadim a quem não tem, nem casaca, nem vestidos; umas meias, a quem não traz sapatos, e nunca usou desse abrigo; várias fitas, que só pelas cores enganam; partidas de cetim a quem em suas palhoças, apenas terá uma corda, onde pendurem e guardem semelhantes alfaias

Em 1772, A Tesouraria do Comércio dos Índios informava os rendimentos e as despesas das 66 vilas e lugares de índios das capitanias do Pará e Rio Negro. Em 1770, o mapa de rendimentos da tesouraria anotou a grande variedade de produtos e serviços dos índios do Estado: cacau (1500 réis a arroba), cravo fino (4500 réis), salsa (3$000), cravo grosso (2$400), peixe boi, peixe seco, tainhas secas, cestos de peixe em salmoura, estopa do mato, breu do mato, potes de manteiga, caranguejos, farinha, castanhas, tartarugas, andiroba, tabaco, carne de porco do mato, milho, algodão, café, tijolos, canoas, sernambim, serviços de fretes e muitos outros. Aparentemente, a tesouraria operava em equilíbrio ou com pequenos déficits. Para 1768, as despesas totais das 66 vilas e lugares de índios (ambas as capitanias) alçaram a 44.533$605, enquanto os rendimentos só chegaram a 42.827$618 (média de 648$903 por comunidade/ ano).193 A natureza das despesas (que mostra o volume dos descontos referentes à remuneração dos funcionários brancos, como os cabos, o tesoureiro, o diretor, o escrivão) pode ser elucidada pela Tabela 9.

193

1773, Outubro, 28, Pará. OFÍCIO do governador e capitão general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, remetendo os mapas dos rendimentos e despesas produzidas nas povoações de índios das capitanias do Pará e de São José do Rio Negro nos anos de 1768, 1769, 1770 e 1772. AHU_CU_013, Cx. 71, D. 6055.

227

Tabela 10: Rezumo dos Mappas das Contas da Thezouraria Geral do Commercio dos Índios - Despesas 1772

Capitania do Gram Pará

1772 A soma do dízimo Novo imposto quintos dos cabos das canoas Comissão do Tesoureiro Sexta parte dos diretores Emolumento do escrivão da Tesouraria O que ficaram devendo algumas vilas e lugares nas contas do ano anterior O que receberam os índios que trabalharam para si O que receberam os índios que trabalharam para os oficiais índios o que receberam os oficiais índios o que receberam os [???] As despesas do negócio, e outras do Comum O líquido das roças de mandioca, que se remeteu O líquido das olarias O líquido do negócio de alguns Índios em particular, que se remeteu O líquido que renderam os algodoais, que se remeteu O líquido do negócio despesa total

Capitania do Rio Negro

691484 54000 4176180 1202285 2605724 73200 2562647

37087 60000 3784296 1010274 2501231 46800 189801

5943293 1319946 706867 280756 4705540 2941418 211551 672120

6008180 1630388 820636 147085 2411114 591110 138640 1336634

66928 80770 28.294$709

0 0 20.713$276

Para se ter uma ideia aproximada do que esses valores representavam naquele contexto, podemos compará-los com as despesas que Lobo D’Almada contabilizava para manter a Capitania do Rio Negro em 1795:194 Tabela 11: Cálculo de algumas despesas da Capitania do Rio Negro

Despesas anuais da Capitania do Rio Negro - 1795 Conservação das fortalezas

600$000

Caçadores e pescadores para alimentar as guarnições

400$000

Hospital da Repartição da Capitania

800$000

Carta do governador da capitania do Rio Negro, Manoel da Gama Lobo d’Almada, ao governador e capitão-general do Estado, Francisco de Souza Coutinho, em 15 de julho de 1795 (REIS, 2006, p. 239240). Nessa carta, Lobo D’Almada informava ainda que o rendimento da terça da principal Câmara da capitania (Barcelos) não ultrapassava os 66 contos. 194

228

Pesqueiro para sustentação da tropa, da Ribeira, diligências etc.

350$000

Reparos anuais nas igrejas

300$000

total

2.450$000

O volume das transações das canoas do comércio das povoações mostra-se, naquele contexto, muito significativo. O regime do Diretório estava em pleno funcionamento, com todas as suas contradições, vantagens e desvantagens para os índios. Mas, ao lado (ou abaixo, como o substrato, como prefere Ruggiero Romano) desse setor da economia ligado ao mercado exterior, persistiam também outras concepções sobre o comércio, herdadas de estruturas sociais e visões de mundo ameríndias bem mais antigas. Como indica Karl Polanyi, o comércio é uma instituição mais antiga que o mercado como mecanismo de oferta-procura-preço – e independente dele (POLANYI, 2012, p. 48-49). Em seu Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, o Padre João Daniel mostra exasperação com o comportamento dos índios quanto às trocas. Decididamente, os índios não se comportavam da forma como João Daniel esperava. Em duas cousas são notáveis os índios nos seus contratos, ou sejam os mansos das missões, ou os que servem aos brancos nos seus sítios, e é que quando tem, ou acham alguma coisa de que já sabem ser mui estimada dos brancos, não a levam ordinariamente aos ditos brancos, a quem servem, ainda antes, quando eram escravos, mas a outros brancos seus conhecidos, e isto muito em segredo; o mesmo fazem os índios das missões com os seus respectivos missionários, porque não hão de vender ao seu missionário, embora saibam que o missionário anda em diligência daquilo mesmo que lhe encobrem, mas só a hão de ir oferecer a algum branco belforinheiro195, quando aporta na povoação, embora que saibam que o missionário lha há de pagar em um ou mais dobros; daqui nasce que quando algum missionário

195

Provavelmente por “bufarinheiros”, vendedores ambulantes de bugigangas.

229

quer comprar alguma cousa especial de algum índio, o faz por 3ª pessoa, por algum branco, porque por si mesmo se expõe a levar do índio um não quero. São nesta parte tão ingratíssimos, que ainda que vejam que os missionários lhes estão acudindo nas suas necessidades, nas suas doenças, e em tudo o que deles querem, contudo lhes não querem vender o que tem, e muito menos dar, mas só a algum branco estranho que os engana, e a quem não devem alguma obrigação (DANIEL, 2004b, p. 124).

Entre os aspectos assinaláveis nessa passagem, vemos uma inquietante analogia (provavelmente involuntária, por parte do padre jesuíta) entre o senhor de índios escravizados e o missionário. Para João Daniel, os índios debaixo da autoridade de um e de outro deviam-lhes alguma deferência ou preferência nas trocas, ao que os índios resistiam sempre que podiam. O autor acrescentava que os acumulavam dívidas com os missionários ao comprar-lhes fazendas fiadas (por exemplo, um machado em troca de panos ou farinhas), mas que os missionários com frequência perdoavam essas dívidas (p. 125). A “ingratidão” dos índios é um lugar comum na obra de João Daniel, que talvez seja o indício de uma concepção de trocas que o missionário não lograva compreender. [...] um missionário capucho, que [...] se achava muito enfermo, e mandando por vezes alguns seus familiares196 pela missão, e casas dos seus neófitos para comprar algumas galinhas com vários resgates de panos, facas et similia, por serem as principais fazendas que estimam os índios, sempre foi diligência baldada; porque nunca achara, os compradores quem quisesse vender-lhe alguma galinha. Vendo-se nesta consternação, o religioso doente, tirando forças da fraqueza, e fazendo das tripas coração, se foi arrastando como pôde com uma arma para o canto da igreja para matar alguma galinha que aparecesse e pagá-la depois ao seu dono. Sucedeu chegar neste tempo um negro àquela povoação a seus negócios, ou de seu senhor, e vendo ao religioso amarelo, macilento e manifestos sinais de enfermo perto da igreja, depois de bem informado do caso, se ofereceu para ir comprar as galinhas, para o que não aceitou mais resgates, que uns fios de anéis de vidro. Foi, e depois de pouco tempo

196

“Familiares” da casa eram os servidores domésticos (BLUTEAU, 1716).

230

se recolheu com seis escolhidas galinhas, dizendo, que tinha dado um anel por cada uma. Admirado o religioso do provimento em tão breve espaço, perguntou e instou para que lhe dissesse os donos em ordem a lhe integrar o justo preço, porque cada anel valeria meio real, ao que respondeu o negro que não sabia, mas que estavam bem compradas, por ter dado o que pediam (DANIEL, 2004a, p. 296).

Um outro missionário, jesuíta, quando um índio aldeado lhe pedia um prato de sal, “dava um alqueire, a quem um prato de farinha, dava um paneiro, e assim no mais”. Em meio ano, tinha consumido o ganho da produção de 40 arrobas de tabaco da comunidade para fazer essas “esmolas”. Esse mesmo padre, vendo “uma maquira, ou rede (são as camas do Brasil), que quis comprar a uma índia, por estar bem-feita e destinada pela mestra para se vender. ” A índia respondeu que não a venderia senão por um preço 3 ou 4 vezes maior do que o padre reputava justo. O padre então tornou para casa antevendo que a índia a venderia a outrem por pouco mais que nada como costumam, porque sabia já bem e com muita experiência o seu modo; e contou a um secular seu hóspede o sucedido, o qual logo se ofereceu para ir compra-la, com a condição que depois lhe satisfaria o preço. Voltou brevemente com a rede ao missionário dizendo que lhe tinha custado uns fios de bolório, que ad summum valeriam até 3 tostões. Pasmado o missionário a mandou chamar e ponderando-lhe a desigualdade do preço por que a vendeu, ao que ele lhe tinha prometido, acabou de pagar-lha por cheio. O agradecimento que a índia lhe deu foi dizer que se soubera que o branco lha entregaria não lha teria vendido (DANIEL, 2004a, p. 296297).

O missionário europeu esperava uma relação contratual na qual houvesse uma estrita correspondência de valores. Mas os índios, nos casos relatados, não pareciam dispostos a barganhar com o seu missionário, ao contrário do que fizeram com estranhos. Como ensinou Mauss, “é sempre com estranhos que se negocia” (MAUSS, 2003, p. 313). A lógica interna ao grupo é a da dádiva e contradádiva. Além disso, o que certamente escapava aos europeus do século XVIII é que a atribuição de valor a um objeto para determinados povos depende de uma complexa articulação e encadeamento de significados sociocosmológicos atribuídos a esses bens, às suas fontes de origem e à sua circulação. [...] os bens industrializados – as miçangas, em

231

especial – representariam os não-índios, corporificando seus poderes, domesticados e cooptados à medida que assimilados aos circuitos de intercâmbios (BARBOSA, 2005, p. 85-86).

Mesmo que uma pequena parte da produção fosse dirigida ao mercado, um persistente sistema ritualizado de trocas é testemunhado pelas fontes do período. Um ano depois de sua chegada ao Pará, Mendonça Furtado escrevia a Lisboa pedindo a remessa de uma quantidade de artigos para uso pessoal e também de artigos muito específicos, que tinham um significado material, mas também simbólico nos sertões do Estado: Na peregrinação em que andei por estes sertões uma das grandes despesas que fiz foi em bagatelas que dei a estes Tupuias, que é o costume entre eles logo que chega pessoa grande à sua aldeia viremlhe todos fazer seus presentes, de frutas e farinhas, e como não era razão que eu ficasse lhos recompensasse na qualidade de fazenda que V. Rª verá do rol incluso a qual nesta terra custa dinheiro considerável, e em Lisboa poderei fazer pela quarta parte esta despesa, porque como dei em Cigano, e aquelas são as povoações em que devo fazer os meus provimentos e nelas devo receber os presentes da gente da terra, porque se lhe não pode rejeitar sem escândalo comum daqueles miseráveis, é necessário satisfazer-lhes, e esta é a moeda que eles mais estimam. V. Rmª perdoe tanta impertinência, e sempre me tem para servi-lo com aquela fiel vontade que devo. Guarde Deus a Rmª muitos anos. Pará, 22 de novembro de 1752. [...] Relação do que se pede na carta acima: 12 Milheiros de agulhas umas mais grossas que outras, mas nenhuma das finas. 12 Milheiros de anzóis estanhados sortidos. 500 Berimbaus. 6 Dúzias de pentes de marfim ordinários. Alguns maços de velório. 6 Dúzias de pentes tortos de madeira da terra que se tira da cabeça dos bois. 2 ou 3 Peças de fitas de largura de dois dedos ordinárias azuis vermelhas, e verdes. 6 Dúzias de espelhos ordinários de pau com sua corrediça. 4 Dúzias de navalhas de barba ordinárias. 1 Barril de facas flamengas. 1 Dúzia de peças de panico ordinário. 4 Dúzias de tesouras pequenas e ordinárias.197

197

Carta ao Frei Luís Pereira (MENDONÇA, 2005, p. 408-409).

232

Embora para Mendonça Furtado o significado dessas trocas fosse quase que puramente simbólico e político, poderíamos dizer que para os índios acrescentava-se a isso uma importância material, pois sem dúvida era uma forma de obter manufaturados europeus em uma economia pouco monetarizada. Mas também para os índios o significado simbólico e ritual (inseparável do que chamamos de político) era provavelmente fundamental, pois as ocasiões de trocas em visitas de grandes chefes brancos eram esporádicas, enquanto as canoas de bufarinheiros certamente podiam atender suficientemente às necessidades puramente materiais dos índios, ainda que a preços desvantajosos. O propósito da troca parece ser, como diria Karl Polanyi, o de “tornar as relações mais próximas, reforçando os laços de reciprocidade (POLANYI, 2012, p. 241). Embora os termos de troca certamente fossem mais favoráveis com os ministros do que com os bufarinheiros, estava em jogo o “interesse em estabelecer ou manter relações com certos parceiros, estratégias para diversificação de alianças” (BARBOSA, 2005, p. 82). Em 12 de outubro de 1754, dez dias depois de partir de Belém em direção ao rio Negro, às voltas com as imensas dificuldades em conseguir provisões e remadores suficientes para a expedição das demarcações, o governador capitão-general do Estado e plenipotenciário das demarcações, Mendonça Furtado, recebia no porto da missão de Arucará (posteriormente a vila de Portel, em uma área ao sul da ilha de Marajó e com densa população indígena ao longo de todo o período colonial) um curioso grupo de mulheres indígenas, que “trouxeram os seus presentes costumados, a que chamam putavas, ao Exmº Sr. General, as quais lhes foram ressarcidas e

233

satisfeitas com pano de algodão, fitas, sal e outras drogas que eles muito estimam.”198 Dez dias depois, a expedição chega à aldeia de Arapijó (posteriormente denominada Lugar de Carrazedo, a montante de Gurupá e próxima à foz do rio Xingu), dos padres Capuchos da Província da Piedade. Sempre subindo o rio e fazendo a derrama das farinhas nas aldeias em que a frota encostava, o narrador volta a falar com naturalidade sobre as putavas: as índias trouxeram as suas costumadas putavas, que quase todas constavam de muita quantidade de bananas ou pacovas, e depois de S. Exª as mandar recompensar com fitas, facas, panos e sal, as mandou repartir pelos oficiais da expedição e da infantaria, na forma que praticou em todas as partes, cometendo esta diligência aos oficiais da fazenda (MENDONÇA, 2005, p. 267, vol. II).

A mesma cena repete-se dois dias depois na aldeia de Maturu, dos mesmos missionários, na foz do Xingu: derrama executada pelos agentes régios, e a putava trazida pelas mulheres índias e ressarcida por ordem do governador (p. 268). No mês seguinte, já no Rio Negro, a expedição chega à aldeia carmelita do Jaú (futuro Lugar de Airão) e passa o dia vendo as índias trazendo “a S. Exª as limitadas putavas ou presentes que bem correspondiam à sua grande pobreza e rusticidade” (p. 281). Na aldeia carmelita do Cumaru, depois da missa, “recebeu S. Exa. as costumadas ofertas, ou putavas das índias, às quais mandou remunerar, e repartir na forma ordinária, e depois de feita esta diligência, que foi breve, saímos (com vento) por proa” (p. 285). "Putaua é uma palavra do Nheengatu muito antiga na região do baixo rio Tapajós – Bettendorff ([1698] 1990, p. 161) escreveu putabas, no plural - e significa o costume de uma pessoa e/ou família doar um pouco de alimento (carne de caça, pescado ou frutos) a outra família que lhe retribui, imediata ou posteriormente, com outra porção de alimentos. Putaua, literalmente, é aquilo que se dá, um presente, que carrega consigo a obrigação da

198

Diário Da Viagem Que O Ilmº E Exmº Sr. Francisco Xavier De Mendonça Furtado, Governador E Capitão-General Do Estado Do Maranhão, Fez Para O Rio Negro. A Expedição Das Demarcações Dos Reais Domínios De Sua Majestade (reproduzido em MENDONÇA, 2005, p. 263, vol. II).

234

retribuição. No fim, é uma rede de troca de presentes que muito contribui para a distribuição geral de alimentos na comunidade, evitando o acúmulo em algumas casas e a escassez em outras" (VAZ FILHO, 2010, p. 31).

Cerca de uma década mais tarde, o então bispo Frei João de São José 199 menciona esse tipo de troca em suas duas visitações pastorais. Na primeira, em 176162, em Ourém (próximo a Bragança), recebera um grande peixe (surubim) do sargento-mor dos índios. Não aceitou dinheiro o índio porque dizia lhe não servia de nada o dinheiro. Dei-lhe contas de coquilho, um espelho pequeno, uma faca ordinária, e mandei-lhe dar de cear e a dois companheiros, com o que foram contentíssimos ao outro dia para o seu Porto Grande (SÃO JOSÉ, 1868 [1762], p. 182)

Se, como vimos no caso da capitania do Rio Negro (na seção 2.2), apenas 20% da população aldeada economicamente ativa estava engajada no trabalho assalariado (e, mesmo assim, frequentemente recebia sua paga em mercadorias), a putaua ou putava era um importante meio das populações indígenas obterem bens manufaturados europeus, mas constituía uma relação de troca que não se confundia com a compra e venda. Não pelo simples fato de não se utilizar dinheiro, mas porque se trata o bem explicitamente como um presente ou dádiva e, mais ainda, por ostensivamente não se procurar medir o valor do bem. Bem diferente, e sem qualquer conotação de dádiva, era a relação de compra e venda, relatada pelo mesmo narrador na vila de Faro, onde precisou comprar cem alqueires de farinha. “É indispensável

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Seu nome secular era João da Silveira Queirós. Nascido em Matozinhos, Portugal, 11 de agosto de 1711, falecido em Lisboa, 15 de agosto de 1764. “Entrou para a Ordem de São Bento, adquiriu título de teólogo, sendo nomeado aos 48 anos por D. José I, Bispo do Pará, onde chegou a 31 de agosto de 1760 (4º Bispo do Pará, 1760-1763). Conflitos com outras ordens e colonos obrigaram-no a recolherse à Corte, embarcando de volta a 24 de novembro de 1763. Morreu no convento de São João de Penduraba, entre o Douro e o Minho, onde o Monarca o mandara confinar [...]” (RODRIGUES, 1979, p. 100).

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este provimento, que achamos em bom preço, pelo que damos muitas graças a Deus: sendo o alqueire resgatado por uma vara de algodão a dois tostões, quando atualmente está na cidade a oitocentos réis e a dez tostões, gemendo a pobreza e padecendo todos” (SÃO JOSÉ, 1847 [1763], p. 220). No ano seguinte, em visitação a Carrazedo, lugar do baixo rio Amazonas próximo a Gurupá, o mesmo bispo ofereceria alguns detalhes valiosos para compreender a putava: Aqui vieram índios e índias em uma como procissão oferecer seus presentes, como costumam; uma melancia, um cacho de bananas, um gallo ou pato pequeno, e talvez galinhas, e paneiros de farinha [...]: a estas dadivas chamam potavas, que se costumam pagar em dobro, e nós o fizemos assim, mandando-os satisfeitos e alegres com listões encarnados, agulhas, pentes, navalhas de barba, facas, e algum espelho pequeno. Assim o praticam bispo e governador. As melancias eram verdes mais do que na cor: mas no dia seguinte os índios de remo lhes aproveitaram até as pevides. Sendo este reconhecimento dos índios atenção voluntária aos seus bispos e governadores, soubemos no mesmo anno certo ministro, que visitou as povoações, mandava por seu meirinho dizer que viessem os índios e mais as índias visitar o seu ministro, e que trouxessem as suas potavas, para cuja correspondência levava uns fios de contas, por modo de linhas de pescar: assim irá passando a estes pobres uma espécie de tributo, que se poderá por este modo estender a ministros, capitães e subalternos. De boa vontade cederíamos d’este obsequio, e em partes pedimos se dispensassem d’elle, não tanto pela própria conveniência, quanto pela isenção, e por não parecer pirata destes rios [...] mas seguram-nos ser grande o sentimento nos índios com a repulsa, que definem desprezo [...] (SÃO JOSÉ, 1847 [1763], p. 66-67).

O bispo esclarecia, nessa passagem, que as autoridades em visita deviam ser generosas na retribuição dos presentes, o que, como se sabe, sempre é uma forma de aumentar o próprio prestígio. Essa prática simbólica não deveria ser distorcida em um tributo, em uma imposição, pois eram dádivas voluntárias por definição. O ministro revertia os presentes, ou parte deles, aos integrantes de sua comitiva. O relato mostra, ainda, que essas putavas costumavam ser feitas a bispos e governadores.

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Podemos acrescentar os ouvidores: quinze anos depois, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, Ouvidor e Intendente da capitania do Rio Negro, em visita de correição pelas povoações, narrou o mesmo costume em Silves (a povoação mais a leste da capitania, no rio Amazonas), mesmo depois de décadas de convivência de seus habitantes “Aneaqui, Baré, Caraias, Baeúna, Pacuri, Comani”, com “muitos moradores brancos”: § VII. [...] He costume de todas as Índias presentearem o Ministro nestas ocasiões com frutas das suas roças, com mandiocas, beijus, que he o pão feito dela &c., mas o fim destes presentes he adquirir por eles algumas couzas, vindo a ser assim humas compras violentas; pois que he necessário dar-lhes fitas, pentes, anzoes, pano de algodão, aguardente, a que todas são inclinadíssimas, e o que mais he que he necessário dar a cada huma de persi alguma couza, já para isso costumão vir cinco, e seis, ainda que seja só hum o prezente: e também se a família he humeroza, divide-se em dous, ou três ranchos, e cada huma vem por sua vez. Forão muitos os presentes, que aqui tive, que satisfiz com fitas, e a maior parte com aguardente, que era o que mais me agradecião (SAMPAIO, 1825, p. 4).

Depois de Sampaio subir o rio por enormes distâncias, os “presentes” voltam a aparecer na povoação seguinte a montante do Solimões: Alvelos, na foz do Coari. “Tive aqui grande número de presentes de várias frutas, que as índias com interessada liberalidade me trouxerão” (Sampaio, 1825, § LXVI, p. 24). Novamente, a convivência com moradores brancos era uma realidade também nessa povoação há décadas, mas as etnias presentes eram completamente outras: “Sorimão, Júma, Passé, Uayupí, Irijú, Purú, Catauuixí”. O costume das putavas era todavia compartilhado por muitas etnias diferentes e persistia mesmo depois de tanto tempo de influência cultural portuguesa. Apesar do tom levemente irônico, Sampaio parece ter na prática alguma deferência à prática cultural local, pois dedica muito do seu tempo a atender a essas trocas. Sem referir a nenhuma troca de presentes na vila de Ega, atravessa a baía formada pelo rio Tefé e se demora um dia no vizinho Lugar de Nogueira, com moradores índios e alguns brancos:

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As índias desta povoação são menos bisonhas, que costumão ser as de outras. [...] Em todo hum dia, que neste lugar me dilatei, apenas pude ter algumas horas para empregar nos objetos do meu officio. Erão continuas as visitas das índias com presentes. A varanda das cazas, em que rezidi, parecia huma feira. Estava cheia de paneiros200 de farinha de mandioca, de galinhas, de frangos, e outras avez domesticas, de frutas principalmente ananazes, banânas, ambaúbas. Bem se entende, que tudo isto se paga. Dizião primeiramente que nada querião; porem logo querião tudo, quanto se podia imaginar, e ao mesmo tempo se satisfazião com o que se lhes dava, respondendo pela sua lingoa = Eré; que quer dizer, está bom (SAMPAIO, 1825, pp. 35-36).

Vemos um sistema simbólico de dádiva e contradádiva. Não se trata de barganhar. “Eré”, “Está bom”: o movimento recíproco de bens foi cumprido.201 a adequação significa que a pessoa certa, na ocasião certa deve retribuir o tipo certo de objeto. A pessoa certa, é claro, é a que está colocada em posição simétrica. Aliás, não fosse essa simetria, o complexo toma-lá-dá-cá envolvido num sistema de reciprocidade não poderia funcionar. O comportamento adequado é, muitas vezes, o de equidade e consideração, ou pelo menos, aparência dele (POLANYI, 2012, p. 88).

Recusar dar, recusar receber equivaleria a recusar aliança e comunhão (MAUSS, 2003, p. 202). Rejeitar a dádiva seria interpretado como ter medo de ter de retribuir (p. 248). Ainda na atualidade, na região das Guianas, A oferta e o pedido de presentes, assim como intercâmbios em geral são feitos de modo bastante discreto, sem regateio. Não se deve pedir em demasia ou cobrar insistentemente, tampouco negar algo solicitado pelo parceiro de troca [...]. Cada prestação entre parceiros de troca depende e alimenta, portanto, a expectativa de que o outro agirá da mesma maneira, ou seja, comedida e generosamente

Um paneiro, na Amazônia, é um “cesto de tala de palmeira e trançado largo, geralmente forrado de folhas” (FERREIRA, 2004). Segundo o governador do Estado, Mendonça Furtado, os paneiros eram uma medida demasiado imprecisa, “que só servem de roubar as gentes” (carta a Sebastião José de Carvalho e Melo, Mariuá (Barcelos), 12/11/1756, in MENDONÇA, 2005, vol. III, p. 127). Um paneiro comportaria cerca de 15 kg, ou meio alqueire (SAMPAIO, 2011, p. 346). 201 No momento em que escrevo estas linhas, um índio Yanomami bateu a minha porta, em uma rua residencial de Boa Vista. Ele oferecia um arco e flechas produzidas por ele. Perguntei o que ele queria em troca e ele respondeu que estava com a família em tratamento de saúde na cidade e queria alimentos. Em nenhum momento houve barganha sobre a quantidade de bens que deveriam equivaler ao arco e às flechas. Há muitos séculos todos os povos da região das Guianas estão acostumados a percorrer regularmente enormes distancias para efetuar trocas de bens entre produtores especializados (DREYFUS, 1993; BARBOSA, 2005). 200

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(BARBOSA, 2005, p. 96-97).

De forma direta ou indireta, vastas regiões e variadas etnias da Amazônia possuíam complexos sistemas tradicionais de interações, sob a forma de guerra, alianças, trocas culturais e materiais, desde antes do período colonial até o presente. Na segunda metade do século XIX, Barbosa Rodrigues possuía uma pedra-de-chefe, a nefrite verde, muiraquitã rara e disputadíssima, tuixaua-itá dos tupis, falsificada pela indústria da Inglaterra, vendida através das Guianas. Era um cilindro de louça, imitando perfeitamente o ornato das supremas autoridades indígenas. Esse sucedâneo viera aos índios Chirianás por troca com os Macuxis do rio Branco (CÂMARA CASCUDO, 1947, p. 17).

Essa passagem mostra, a um só tempo, um traço de hierarquia social – a muiraquitã é um dos bens exclusivos das chefias –, o alcance e a persistência das trocas materiais envolvendo artigos manufaturados europeus e a difusão de valores culturais entre as mais diferentes etnias nativas. Na década de 1780, índios amocambados no remoto rio Içana, que tinham decidido deixar as povoações coloniais, dedicavam-se à manufatura de ralos de mandioca, apreciados em todo o Estado: [na povoação de N. Sra. Da Guia] Em fevereiro de 1784 ainda se constavam 101 almas, quando para o mato desertaram 39 por uma e 16 por outra vez. Induziu-as o índio Joaquim José de Lima, filho do principal Domingos Jaibuco. Existiam, quando passei, 46 almas, entre homens e mulheres e menores de ambos os sexos. [...] A indústria dos índios consiste nos ralos em que se rala a raiz da maniba. Quebram em lascas miúdas o quartzo das cachoeiras, a que chamam pedra de ralo, embutem as lascas em suas tábuas, distribuindo o embutido em forma dezizezais e a envernizam com o leite da sorva, corado com o tauá. De ambas as capitanias do estado se fazem encomendas deles, e os desertores os vendem a 600 até 640 réis na povoação, para na cidade se pagarem a razão de 1$000 por cada um (FERREIRA, 2007, p. 197).

Um número muito maior de índios integrou-se como trabalhadores – remadores, operários das feitorias e outras funções do serviço real e dos particulares,

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nos quadros do trabalho compulsório da legislação indigenista, negociando melhores condições de trabalho e remuneração ou encontrando válvulas de escape nas “deserções” individuais e coletivas, levando observadores europeus a reafirmarem os costumeiros topoi sobre a “indolência”, “inconstância” ou “selvageria” congênitas dos nativos. Compreensivelmente, quanto mais livres e autônomos, mais se percebia o quanto os índios se submetiam ao trabalho assalariado apenas quando consideravam conveniente para adquirir determinados gêneros que não podiam ser obtidos de outra forma, “porque na farinha das suas roças, peixe e caça têm de sobejo para passar boa vida” (DANIEL, 2004a, p. 342). O cônego Souza observava que os mura, uma geração depois da pacificação de 1787, não tinham sido sistematicamente aldeados e ainda mantinham uma margem considerável de autonomia no início do século XIX: “Quando todos os gentios no Rio Negro são tratados como escravos, os indivíduos d’esta nação são tratados com respeito. [...] Quase todos os moços são batizados, e tem vindo à capital remando as canoas dos negociantes para ganhar seu salário” (SOUSA, 1848, p. 431). Determinados ofícios, como os de piloto (jacumaíba), revestem-se de uma grande importância social e dignidade e são quase que exclusivos dos índios: [os navios] que frequentam esta navegação não a empreendem, nem do Maranhão para o Pará, nem deste para aquele porto, nas embarcações mais pequenas, sem serem governadas pelos índios, que pelo seu grande tino dão furo e acham saída onde parece a não há; o mesmo é nos baixos das barras, e navegação de todo o Amazonas. [...] se vestem, e revestem de tanto brio, e coragem, que antes se arriscarão a morrer, do que a deixar perder as canoas, cuja direção tem a seu cargo. E para terem boa saída, já nos baixos das baías, já no intrincado das ilhas, e tormentas, que às vezes se levantam, fazem das tripas coração, e tirando forças da fraqueza, se desfazem a remar, só por darem boa conta de si; por terem grande glória e honra sua o saberem livrar as canoas dos perigos; assim como tem grande desonra, e desdouro o perder-se embarcação, em que eles são pilotos, ofício e arte que entre eles é uma das maiores dignidades, e cargos das suas povoações, e por eles são respeitados, e obedecidos dos seus nacionais. Chamam estes pilotos na sua língua jacumaíbas, cujo nome é originado de umas pás, de que alguns usam

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nas suas canoas em lugar de leme, chamadas jacumã (DANIEL, 2004a, p. 343).

A resistência, em todas as suas formas, nunca deixou de manifestar. Em 1731, eram tão comuns as fugas de índios a serviço dos moradores que o rei determinara o envio de escoltas pelos rios, todos os verões, para aprisionar os fugitivos que fogem a “cada hora deixando as fazendas desertas e fazendo escondedouros pelos mattos donde assaltão as fazendas com mortes em grande prejuízo dos meus Vassalos e rendas riais” (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 254). Em 1752, vários índios foram castigados pelo governador, a pedido dos padres da Companhia de Jesus. A punição consistia em servir a moradores em Belém, mediante salário, como pessoas livres e forras, por tempo indeterminado, até que os padres os considerassem suficientemente castigados e pudessem retornar a suas aldeias. Foi o caso, entre outros, de Patrícia e Serafina, que “desertaram algumas vezes de sua aldeia” (documento 280, MEIRA, 2004, p. 200); da índia Maria, de Bararoá; dos índios Adão e Polinário e da índia Curixilena, da aldeia de Piraviry; de Damião, Maria, Maria Josefa, Luiza e quatro crianças filhas dessas mulheres, da aldeia de Arucará, pela mesma falta (documentos 284, 285, 288, 289, 291, 293 pp. 201-205). Sobejam testemunhos de todo o período colonial sobre o quanto a superexploração dos índios minava profundamente os próprios esforços de povoamento estratégico (aldeamentos) na bacia amazônica. O governador Francisco de Souza Coutinho202, no afã de tornar economicamente viáveis o comércio e as

202

Governador do Grão-Pará de 1790 a 1803.

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comunicações entre o Grão-Pará e o Mato Grosso, compreendeu bem o impacto das requisições de serviço aos índios como remeiros: Sobre todas estas dificuldades, que facilmente superará a redundância de cabedal ou de credito, porque os subidos preços dos gêneros em Mato Grosso indemnizam o emprego e empate d’elle, prevalece a da falta de gente. Os índios, que sem dúvida seriam os mais próprios para estas viagens, se o clima lhes não fosse tão fatal, repugnam por tão justa causa empregar-se n’ellas, e por terem sido muitos os que se tem empregado, ou sacrificado, se acham as povoações tão exaustas [...]. À exceção d’aquelles que chegando a habituar-se ao clima vem a ser práticos d’esta carreira, e vencem soldadas mais crescidas, acaso se achará algum que a queira empreender sem coacção, porque os comboeiros para mais fundamentarem a sua natural aversão não omitem deprimir o quanto podem nos seus vencimentos, nos que lhes vem a pagar procuram desfazer-se das fazendas mais ruins por preços enormes, não querem nem respeitar [...] os direitos que as leis concedem aos homens [...], querem ser servidos e tratal-os como se servem e tratam os escravos, ou peior, porque desde que chegam aos termos de não poderem trabalhar, que morram ou que vivam, como lhes não custaram as somas que aquelles custam pouco lhes importa [...] (COUTINHO, 1865, p. 47)

Enquanto a lógica econômica obrigava o proprietário do escravo a evitar maus tratos ou a superexploração além de um certo limite, para não perder o cabedal investido, o índio “livre” era legalmente obrigado a prestar serviços à Coroa e aos particulares (colonos e moradores brancos) durante um período ao longo do ano, regulamentado pelo Diretório. Mas os comerciantes e lavradores brancos extrapolavam o tempo regulamentar, não pagavam ou pagavam muito mal e em espécie, com mercadorias ordinárias. Não evitavam sobrecarregar de trabalho e maus tratos os índios, que não lhes tinham custado nenhum investimento. Aliás, muitos servidores da coroa denunciavam essa situação, quase com essas palavras, como foi o caso do cientista Alexandre Rodrigues Ferreira no seu relatório sobre os laboriosos,

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leais, sofridos e sobrecarregados índios da Vila de Monforte, na ilha de Marajó203, em 1783: Estou em dizer, Sr. Exmo204., que mais escravos ficaram os índios depois de declarada a sua liberdade do que antes da declaração. O senhor do índio zelava na sua vida o seu dinheiro; hoje não importa que adoeça, que morra, que estoure de trabalho, porque nisso dele trabalhar, ganha o contratador, o diretor, o juiz etc.; de ele morrer, ninguém perde, pois vem outro, e quem perde hoje um, amanhã outro, é Sua Majestade, que nem conserva as vilas, nem, até o presente, experimenta as utilidades que há muito deviam ter resultado dos seus muito altos desígnios (FERREIRA, 2007, p. 66).

No mesmo sentido, referindo-se às exações do serviço régio, o Cônego Sousa (escrevendo no início do século XIX) dava conta dos efeitos das requisições de trabalho para as comissões de limites no último quartel do século XVIII:

N’este tempo subiram ao Rio Negro os dois comissários para dar começo ao flagelo das demarcações. Chamo flagelo as demarcações porque verdadeiramente o era; não só porque era um jugo pesadíssimo aos índios, que deviam marchar a várias e assíduas digressões, senão serem obrigados a remar as canôas para MatoGrosso, aonde devia haver correspondência, e onde ficaram enterrados muitos centos d’elles (SOUSA, 1848, p. 471).

A demografia do Rio Negro era tão frágil que, em 1758, o governador Mello e Póvoas admitia que não podia supervisionar os rios Solimões e Javari por falta de índios para o conduzirem, já que todos os remeiros estavam ocupados em conduzir a tropa que naquele momento reprimia os levantes de índios e soldados do Rio Negro (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 111).

203

Notícia Histórica da Ilha de Joanes ou Marajó, parte do material publicado em Viagem ao Brasil (FERREIRA, 2007a). 204 Os relatórios e as Memórias de Alexandre Rodrigues Ferreira eram dirigidos ao mentor das Viagens Filosóficas, o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro).

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Como explica Ângela Domingues, o indígena na segunda metade do século XVIII, no Grão Pará e Maranhão, tinha liberdades pessoais, mas não liberdade profissional: podia, como qualquer outro súdito, peticionar ao rei, ao governador ou aos tribunais; pagava impostos; servia nas companhias de ordenanças e tropas regulares; participava do governo local, seja nas formas coloniais (ofícios camarários) ou indígenas (principalato, concelhos de anciãos) e muitos deles eram elegíveis para o usufruto de benefícios, isenções e privilégios. No plano profissional, formalmente tinha direito à remuneração, de acordo com tabelas de salários estabelecidos pelo governo, podia escolher o ofício e escolher a pessoa com quem queria trabalhar. No entanto, caso não tivesse ocupação, seria dado de soldada compulsoriamente aos moradores que os quisessem para suas lavouras, por meio de portaria governamental (DOMINGUES, 2000, p. 43-44). Barbara Sommer explica que “Os esforços portugueses para consolidar o controle de nativos amazônicos durante o final do século XVIII foram moderados pelas relações locais de poder, pela mobilidade da população e sua habilidade em agir em prol de seus próprios interesses” (2000, p. vi). A situação de fronteira, tanto na Amazônia como em outras partes da América Portuguesa, tem sido apontada como um fator que aumentava o poder de barganha dos indígenas frente às autoridades coloniais (DOMINGUES, 2000, p. 85-88; 284. GARCIA, 2009; ROCHA, 2009). Nesse sentido, a capitania do Rio Negro era certamente uma conquista na qual súditos de todos os níveis podiam prestar serviços relevantes à Coroa e solicitar mercês, desde Governadores Capitães Generais como Mendonça Furtado, naturalistas como Alexandre Rodrigues Ferreira, ouvidores como Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, simples soldados ou cabos-de-esquadra como Miguel Arcanjo e inúmeras lideranças indígenas como os Principais Francisco Xavier, Silvestre José Calisto José e o índio

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Manoel Maurício, que realizavam descimentos de comunidades inteiras para uniremse em vassalagem ao Rei de Portugal (FERREIRA, 2007, p. 120-121). Alguns desses principais adotavam aspectos do estilo de vida europeu, como Basílio de Carvalho, que foi receber com toda solenidade, com cabeleira à europeia, o bispo do Pará em visita a Portel, vila de índios com mais de dois mil habitantes ao sertão: A encontrar as canoas sahiram da villa com o vigário e direstor os principaes das nações, entre os quaes se distinguia o dos Ariquenas, chamado Basilio de Carvalho, porque vinha em uma grande canoa própria, vestido de pano azul, e com cabelo próprio. [...] As casas em que mora são magníficas, e o trato não parece de índio, conservando em grande retiro duas filhas com recato notável (SÃO JOSÉ, 1847 [1763], p. 491).

Adotar traços da cultura portuguesa era estratégico para os principais não apenas nas suas relações com os brancos, mas também, ao que parece, para com seus liderados. O padre João Daniel, referindo-se ao período anterior ao Diretório (quando as vilas e lugares eram missões), afirmava que as povoações indígenas Tem cacique ou principal, ou ordinariamente tem muitos, porque como as missões se tem ido conservando com diversos descimentos, que os missionários vão fazendo, quando podem, e todos eles são de diversas nações, e cada nação tem seu cacique, sucede haver muitos caciques em cada missão, mas é dignidade ordinariamente só de nome; [mas] na realidade não lhe obedecem os mais exceto em alguma em que por muito tempo com os brancos se fez mais ladino o seu principal, e pouco a pouco se foi fazendo obedecer dos demais índios vassalos (DANIEL, 2004b, p. 65-66).

A narrativa de João Daniel faz sentido, na medida em que a liderança tradicional indígena foi sendo redefinida pelos portugueses (DOMINGUES, 2000) e também porque, do ponto de vista da comunidade indígena em contexto colonial, um líder que se mostrava capaz de transitar entre as culturas pareceria mais capaz de garantir segurança e autonomia para os seus integrantes.

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Como se caracterizavam as relações de trabalho entre moradores e índios nessa sociedade? Pelo menos desde o Regimento de Vidal de Negreiros (1655), o preço estabelecido administrativamente para o trabalho dos índios livres foi o de duas varas205 de pano por mês, ou 200 réis206. Diante da patente insuficiência desse pagamento, o Rei D. José, por provisão de 28 de maio de 1751, determinou que aos índios se lhes estabelecesse uns preços justos, racionável e conveniente à qualidade do seu trabalho, tendo igualmente atenção ao estado e pobreza da terra, cujo estabelecimento se deveria fazer na Junta das Missões, ouvida a Câmara e Provedoria da Fazenda 207.

Cumprindo essa ordem, o Capitão-General Mendonça Furtado divulgou que – ouvidas a Junta e as Câmaras de Belém e São Luís – o novo pagamento mensal mínimo pelo trabalho dos índios seria de um cruzado (quatrocentos réis). “Aos pilotos ou jamaíbas, como lhes chamam nestas partes, e aos proeiros, a seis tostões208 por mês, e aos oficiais e mecânicos a tostão por dia”, fora a alimentação. O próprio Furtado afirmaria em 1752 que a Companhia de Jesus cobrava 5 a 6 tostões por dia de trabalho individual de tapuias de uma família de artesãos escultores e pintores, acusando a ordem de embolsar a diferença209. Os jesuítas seriam ainda acusados em 1756, pelo mesmo governador do Estado, de desrespeitar os salários determinados pela Junta das Missões: Apesar, porém, das ditas reais determinações, se conservam estes religiosos no antigo costume de não dar aos índios cada mês mais que

Vara: “Antiga unidade de medida de comprimento, equivalente a cinco palmos, ou seja, 1,10m” (FERREIRA, 2014). 206 Regimento dado a André Vidal de Negreiros, Governador Geral do Estado do Maranhão e GrãoPará, em cinquenta e dois artigos, em 14 de abril de 1655. IN: Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará, Tomo I. Belém: Imprensa de Alfredo Augusto Silva, 1902. 207 § 52 do “Papel que acusa a carta nº 4, na qual se mostra que o negócio que os padres fazem nem é licito, nem necessário, nem, em consequência dele, há bens industriais, e que os que adquirem nas aldeias são para o comum delas”. Documento de Mendonça Furtado anexo a sua carta de 13/10/1756, endereçada a Sebastião José de Carvalho e Melo (MENDONÇA, 2005, p. 151, vol. I). 208 O tostão era a moeda de cem réis. 209 Carta de Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, 8/11/1752 (MENDONÇA, 2005, p. 356, vol. I). 205

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duas varas de pano, e este, pela maior parte, fiado por suas mulheres e filhas nas aldeias, entrando também neste pagamento os oficiais mecânicos, que na forma do novo estabelecimento, que por se achar confirmado por S. Maj. é lei, a este respeito e na forma dela deveram ganhar um tostão por dia, o qual os padres lhes nunca pagaram, não passando de lhes dar duas varas de pano por mês, como a todos os mais índios, fato a todos bem notório210.

O que se poderia comprar com quatrocentos réis (4 tostões) no Grão-Pará da segunda metade do século XVIII? Em 1786, de acordo com o Tratado de Agricultura do Rio Negro de Antônio Vilela do Amaral, uma canada211 de mel de engenho (melaço de cana), fabricado localmente e usado pelos moradores brancos para suprir a falta de açúcar e adoçar o chá, café e conservas, custava 320 réis (FERREIRA, 2007b, p. 507). A mesma fonte informa que 50 espigas de milho se vendiam a 50 ou 60 réis (p. 505). Um gênero de exportação como o fumo alcançava o preço de 4 mil réis a arroba212, o que seduzia até mesmo os pretos escravos da capitania a plantá-lo, para o consumo e comercialização (p. 508). Um alqueire213 de farinha em época de carestia ou em sertões remotos poderia chegar a ser vendido por 10 tostões ou até mais. O padre João Daniel mostrava que duas varas de pano por mês, ou 200 réis pelo trabalho mensal, era um valor tão insignificante que os cabos de canoa que traziam a portaria para requisitar índios para as expedições de coleta das drogas dos sertões regularmente ofereciam mais. Adicionalmente, João Daniel mostra que a

§ 58 do “Papel que acusa a carta nº 4, na qual se mostra que o negócio que os padres fazem nem é licito, nem necessário, nem, em consequência dele, há bens industriais, e que os que adquirem nas aldeias são para o comum delas”. Documento de Mendonça Furtado anexo a sua carta de 13/10/1756, endereçada a Sebastião José de Carvalho e Melo (MENDONÇA, 2005, p. 152, vol. I). 211 Uma canada equivale a quatro quartilhos, ou seja, 2,66 litros. 212 Uma arroba equivalia a 32 arráteis (aproximadamente 14, 7kg) (FERREIRA, 2004). 213 Um alqueire equivaleria a 36,27 litros. No caso da farinha, cerca de 30 quilogramas. Mendonça Furtado comentava que o preço de 10 tostões (mil réis) era excessivo e conjuntural, chegando a levar a tropa da capital do Estado ao limiar de um motim quando foi anunciado que a ração de farinha seria descontada do soldo – a solução foi efetuar o desconto pelo preço mais comum do alqueire de farinha: uma pataca (320 réis) (carta de Mendonça Furtado ao Rei D. José, de 17 de agosto de 1755. Annaes da Bibliotheca e Archivo Publico do Estado do Pará, vol. IV, pP. 179-182). 210

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prestação de serviço do índio, àquela altura (antes mesmo das Leis de Liberdade de 1755), costumava comportar alguma margem de negociação e escolha. Logo manda vir o pagamento, que costuma ser [roto o original] duas varas de pano grosso de algodão taxado pelos magistrados por cada mês de serviço; e quando o serviço é como este de remar nas canoas, ainda por pagamento de cada dia, seria mui pouco: nestas viagens do sertão o pagamento que ordinariamente costumam dar a cada índio por toda a viagem, que ordinariamente é de seis té oito meses, são 12 varas de pano grosso de algodão, duas té duas e meia, ou três, varas de Bretanha para camisa; uns calções de baeta, ou alguma outra droga, um barrete, um prato de sal, com seis agulhas em cima, e nada mais, antes às vezes de menos; exceto aos pilotos, a que chamam jacumaíbas, a quem costumam dar mais três varas de pano grosso, e um corte de ruão para saia de sua mulher; e é todo o pagamento de tantos meses com trabalho insano, e grandes perigos de vida. Os missionários dão mais aos seus 25 índios, porque dão a todos mais pano, dão chapéus, e outras miudezas, além [de] muitas aguardentes, e uma pequena botica para curar os enfermos etc. (DANIEL, 2004b, p. 80)

Outro indício de que o ínfimo valor regulamentar da remuneração mensal do trabalho indígena estava frequentemente abaixo do que efetivamente se pagava na prática é oferecido por Mendonça Furtado. Desenvolvendo uma narrativa segundo a qual os regulares (missionários) teriam deliberadamente solapado o comércio das drogas do sertão para em seguida monopolizá-lo, o capitão general do Grão Pará dizia em carta a seu irmão que os missionários, sob a capa da piedade cristã, diziam aos cabos das canoas do sertão que chegavam às aldeias missionárias que o ordenado era pouco e que deveria dar-se mais àqueles pobres, e com efeito foram concordando os homens que iam ao seu negócio, acrescentando a 4 até 6 varas, além de outros refrescos, para poderem fazer as suas viagens, por não perderem a monção e carregação que levavam. [...] A repetição destes feitos pôs aos homens tão faltos de meios e tão cheios de temor, que pouco a pouco foram deixando o comércio do sertão, e o puseram de sorte que ainda no ano de 1726 passaram ao sertão 150 canoas, e de então para cá foram em tal decadência, que o ano passado apenas foram 3 e ainda este ano não tenho despachado nenhuma dos moradores, quando já da Companhia foram 28, do Carmo 24, além das dos Capuchos.214

214

Carta de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, datada de 21/11/1751 (MENDONÇA, 2005, p. 120-121, vol. I).

248

Contra o poder temporal dos missionários, o que Mendonça Furtado alega é que tal prerrogativa retiraria dos índios a liberdade de vender seu trabalho a quem quisessem. Esta aparente liberdade que sempre clamam as Religiões é o mais rigoroso cativeiro que se pode imaginar, como demonstrarei com a brevidade possível. Chega qualquer pessoa que vai para o sertão a uma aldeia de índio seu conhecido, ajusta-se com ele, apresenta-o ao missionário à portaria, diz o índio que quer ir com aquele homem, pediu o mesmo, e isto assim que parecia um contrato feito, e que o miserável índio devia gozar toda a liberdade, ainda não há exemplo de que assim sucedesse, que se desse liberdade ao índio para ir com o seu conhecido; e se insta que quer ir, é metido em um tronco e nele escalado a açoites, não se livrando deste vil castigo nem ainda os mesmos Principais, como infinitas vezes tem sucedido, e as mais delas injusta e inumanamente como é notório e constante em todas estas terras.215

A lei de 10 de novembro de 1647 (cujas disposições a Lei de Liberdade dos Índios de 6 de junho de 1755 mandaria observar) determinava que “os índios possão livremente servir, e trabalhar com quem bem lhes estiver, e melhor lhes pagar seu trabalho” (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771, p. 245-247). Com ou sem essa concessão, os índios dificilmente deixaram de procurar barganhar melhores condições de trabalho ou atividades mais compensadoras ou alguma margem de autonomia e liberdade. Ou, simplesmente, viver em paz longe das exigências de trabalho dos brancos. Mas muitos negociavam. Em 10 de fevereiro de 1730, o próprio rei João V viu-se obrigado a ameaçar com multas os moradores que oferecessem vantagens para que os índios destinados ao serviço do bispo fossem trabalhar nas canoas do

215

Carta de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, datada de 21/11/1751 (MENDONÇA, 2005, p. 115, vol. I).

249

sertão. O rei tinha concedido 30 índios para servirem na casa do bispo do Pará e na obra da Sé Catedral de Belém, mas Chega a tanto a tirania e desatenção de alguns moradores que os mandão cathequizar com promessas para irem nas suas canoas ao Sertão à colheita do Cacáo, e salça não se contentando com o que se lhes concedem das Aldeas da repartição ficando sem ter por este Caminho quem o sirva nem quem trabalhe nas obras da dita Igreja a vista do que devia eu mandar que todo que divertir do seu serviço os Índios que eu fui servido aplicar para ele pague por cada dia e por cada Índio duzentos reis aplicados para o serviço de sua caza [...] (Livro Grosso do Maranhão - 2a parte, 1948, p. 240).

Ainda em 1756, o bispo e governador interino, Miguel de Bulhões, queixava-se escandalizado a Mendonça Furtado (ironicamente, o campeão da liberdade de trabalho dos índios) sobre os moradores que aliciavam índios do serviço real: É certo que para semelhantes deserções têm concorrido muito as práticas destes moradores, especialmente daqueles que foram fazer cravo ao Moju, nos quais chegou a tanto excesso a sua ambição, regulada por um ditame verdadeiramente bárbaro, que clara e distintamente praticaram índios do serviço de El-Rei, assim desta cidade como da Ribeira do Moju, chegando a tanto extremo a sua temeridade, que até foram tirar alguns das canoas, em que iam para o Macapá o Desembargador Ouvidor-Geral, e o Sargento-Mor Engenheiro.216

Fiquemos advertidos, no entanto, que (principalmente antes de 1755) não se tratava absolutamente de um mercado capitalista de compra e venda de trabalho: como lembra Pacheco de Oliveira, “o indígena tinha as suas condições de reprodução fora da órbita do mercado e estava em uma condição tutelada, o seu salário sendo pago ao administrador da aldeia e apenas uma pequena parte a ele mesmo e em espécie” (OLIVEIRA, 2014, p. 190). O que estava em jogo, para a nova política, era

216

Carta do Bispo do Pará, D. Frei Miguel de Bulhões, ao capitão general e Governador F. X. de Mendonça Furtado, de 30 de janeiro de 1756 (MENDONÇA, 2005, p. 80, vol.III).

250

colocar os indígenas como participantes cada vez mais plenos do mercado. Após a publicação das Leis das Liberdades, Mendonça Furtado afirmaria – sem medo de exagerar no otimismo – que os índios oficiais (artesãos especializados) podiam livremente trabalhar e negociar sua remuneração. Na cidade de Belém, ele explicava ao governador da capitania do Maranhão, seu subalterno, que Todos os mais oficiais que saírem das escravidões, se acham nesta Cidade ganhando a sua vida, e alguns deles ganham a cruzado, outros a pataca217, alguns a doze vinténs, e dois tostões, e finalmente com quem melhor lhes parece, e paga; sendo todo o nosso cuidado vigiar para que não andem ociosos, cuidando em exercitarem os vícios a que são inclinados.218

Nessa mesma carta (em que o irmão de Carvalho e Melo parece falar de forma bastante franca e aberta com um colaborador) transparecem, entretanto, os limites da liberdade dos trabalhadores indígenas e as contradições de sua equiparação aos vassalos brancos, nos termos das leis de 1755: Se alguns desses índios querem absolutamente não trabalhar e viverem à sua vontade, dando exercício à preguiça, que lhes é natural, estes são metidos em uma calceta e obrigados a trabalhar nas obras públicas, e com este remédio que se tem aplicado a alguns, nos temos livrado de embaraços. As mulheres que também se não querem sujeitar a quem lhes paga, são metidas na cadeia, na qual se lhes dá tarefa de algodão para fiarem, da qual saem para casa de seus amos, a servirem na forma que devem. Ultimamente, a estas gentes que não têm conhecimento do bem que se segue do trabalho, se devem reputar dementes, e, por isso, os pus na administração do Juiz de Órfãos, e mandei observar com eles absolutamente aquele Regimento. Se, porém, se conhecer em algum que tem capacidade para se reger, este deve inteiramente usar da sua liberdade, na forma que S. Maj. manda219.

217

A pataca era a moeda de 320 réis. Carta de 30/8/1757 de Mendonça Furtado a Gonçalo Pereira Lobato de Sousa (MENDONÇA, 2005, p. 340, vol.III). 219 Carta de 30/8/1757 de Mendonça Furtado a Gonçalo Pereira Lobato de Sousa (MENDONÇA, 2005, p. 341, vol.III). 218

251

Como vimos no primeiro capítulo, a regulamentação da liberdade dos índios (produzida localmente, pela mediação do governador do Estado entre as demandas, pressões e resistências dos moradores, índios e missionários) assimilava os índios a órfãos, menores de idade, pelo menos em um período de transição, na medida em que – do ponto de vista dos agentes régios – fossem “incapazes de se reger”. Desde o início, os índios que fossem capazes de se reger, ou de viver sobre si, estavam excluídos da tutela. Então, com todos esses constrangimentos, mesmo depois de 1755, que mercado de trabalho existiria realmente no Estado do Grão Pará? Tal como Ruggiero Romano se pergunta no caso da América espanhola, existiam mesmo preços e salários no período colonial? Essa pergunta, naturalmente, não se refere aos gêneros de exportação, que realmente tem preços oscilantes em função de oferta e procura no mercado internacional. Mas no nível das sociedades locais, quanto das necessidades da maioria das pessoas (índios aldeados, por exemplo) eram supridas por bens comprados no mercado? Na América espanhola do século XVII, “os artigos que passam pelo mercado, sobretudo os produtos de primeira necessidade, não são muito numerosos”, pois uma grande parte das necessidades é atendida pelo autoconsumo, pela produção de subsistência e pela troca (ROMANO, 1993, p. 122). Por certo, parte da população urbana de Belém precisava comprar provavelmente quase todo o alimento, como peixe seco, galinhas, farinha de mandioca etc., cujos preços realmente oscilavam conforme a demanda, como vimos. Comprar a farinha para comer, em lugar de cultivá-la, era coisa de quem tinha “ofício ou benefício”, como dizia o padre João Daniel (2004b, p. 33). Mas os índios aldeados viviam geralmente em pequenas comunidades com a roça a alguns minutos ou horas de casa. Seus salários,

quando

no

serviço

real

ou

no

de

particulares,

eram

fixados

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administrativamente e podiam ser pagos em espécie, embora houvesse uma margem de negociação. A resistência dos índios à sua integração subordinada ao mercado é retratada em uma bela imagem nas páginas do Tesouro Descoberto: Logo cada um busca fora da povoação mais ou menos distante o sítio e paragem que mais lhe agrada para nela fazerem as suas sementeiras, ou plantamentos; e como a extensão das terras é tão grande, tem todos onde escolher mesmo à sua vontade, sem que ninguém lhe dispute a eleição e se lhe oponha à posse, e muito menos lhe inveje a sorte, porque todos elegem, todos escolhem, e todos vivem contentes, e satisfeitos da sua sorte; e quando o não estejam, buscam outra, e outras como, e toda a vez que querem. Nestes sítios pois, que ordinariamente fazem só nas margens de rios e lagos pela conveniência dos ventos, e ares, pela utilidade das pescarias e muitas outras conveniências, como são os seus inevitáveis banhos, e fácil navegação. [...] Esta mesma eleição de sítios fazem os índios mansos, e doutrinados nas suas missões, sem mais diferença dos índios selvagens do que alguma melhor economia, e indústria, e não serem tão escondidos, como os sítios e roças dos bravos; ainda que há muitos que ainda que sejam mansos de propósito buscam as paragens mais escondidas, para nelas não serem perseguidos, nem perturbados, como eles dizem, dos brancos (DANIEL, 2004b, p. 14).

Isso nos leva a crer que a economia da Capitania do Rio Negro (e da maior parte da Capitania do Pará funcionaria como uma economia natural, na qual a massa das transações não se efetua essencialmente em moeda (ROMANO, 1991, p. 242). Quando o bispo do Pará tenta pagar um barbeiro em Pinhel, no baixo Tapajós, em 1763, não conseguiu remunerar o serviço em dinheiro: Em dia de Reis confirmamos na fé a muita gente em Pinhel. No mesmo dia, querendo pagar a um índio o ter-nos feito a barba, dando-lhe meia pataca220, riu muito, dizendo que aquillo não prestava senão na cidade, e perguntou se havia cauhí, isto é aguardente da terra. Com efeito bebeu: porém, como fez mais barbas, suponho lançou as suas de remolho, porque achou mais pias, de que tomou tantas vezes que andou em fortes delírios toda a tarde, sendo necessário prendel-o para lhe avitar algum desatino de consequência (SÃO JOSÉ, 1847 [1763], p. 197).

220

Moeda de prata no valor de 160 réis.

253

Antônio José Pestana da Silva, ex-ouvidor no Rio Negro, em seu memorial sobre o governo temporal dos índios, chamava a atenção para a contradição do Diretório sobre o pagamento dos soldos. Em um parágrafo, estabelecia que o pagamento poderia ser em dinheiro ou em espécie, a critério dos índios; em outro, permitia que os moradores decidissem e mais, que os índios não o receberiam diretamente, mas por intermédio do tesoureiro dos índios: Enquanto a espécie dos mesmos salários, parece que o Diretório não oferece pequena dúvida, porque no § 40 diz, que fique na liberdade dos Índios, o venderem os seus frutos ou por dinheiro, ou permutá-los com fazendas; e só nos §§ anteriores recomenda (87) aos diretores que assistam às suas e semelhantes negociações para que os contratantes não abusem da ignorância dos Índios, e estes não fiquem lesados. No § 72 deixa ao arbítrio dos moradores a dita espécie explicando-se pela vontade deles quererem, ou não fazer os pagamentos em fazendas; donde se infere que podem fazer os ditos pagamentos em dinheiro. No § 58 é muito diverso o trilho, porque encarecendo-se muito a rusticidade, e ignorância dos Índios, se diz que o tesoureiro geral, não entregue dinheiro aos Índios, o que lhes couber dos lucros do negócio do sertão por não o saberem administrar, mas sim em fazendas de que eles necessitarem (SILVA, 2007, p. 407).

Mesmo no caso da produção de um artigo para exportação, como o anil, o salário dos operários indígenas podia ser pago em mercadoria – no caso, com parte do próprio anil que eles mesmos produziram. Dentro de um programa de incentivo governamental à produção do anil, o governador do Estado concedeu ao morador de Poiares Jacinto dos Santos dois índios e uma índia para a manufatura do anil em 1785. O despacho dizia: O diretor do lugar de Poiares assistirá ao suplicante com os dois índios e uma índia, que requer, para a fatura de anil, a que se me tem obrigado, sem que na dita assistência haja por modo algum falta ou desculpa: vigiará contudo o diretor, se as mesmas pessoas se empregam no destino declarado, ou se em outro diverso, para me dar conta do que se praticar, pena de me ser responsável, e as ditas três pessoas serão mudadas de 6 em 6 meses, pagas pelo produto do referido gênero, na forma regulada (FERREIRA, 2007, p. 334).

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Vemos assim uma articulação entre o setor monetário da economia e o setor de economia natural, não monetarizada, em benefício do primeiro. R. Romano oferece vários exemplos sobre como na América espanhola, fora das grandes cidades como Lima e México, a moeda era muito rara e seu uso pouco difundido fora das classes mais altas, a despeito da grande quantidade de metais preciosos no Peru e na Nova Espanha (ROMANO, 1991, pp. 242-244). Além disso, a qualidade da circulação da reduzida massa monetária ainda varia socialmente: as peças de ouro circulam somente em uma certa esfera social. “O grande comerciante tratará seus negócios em peças de ouro ou em peças fortes de prata; pagará seu alfaiate em peças fortes de prata, mas dará sua esmola em peças pequenas (de prata, cobre ou bilhão)” Mas aí se coloca um dado surpreendente da circulação monetária hispano-americana colonial: não havia moedas de bronze, nem de cobre. A menor unidade fracionária era meio real de prata (ROMANO, 1991, p. 245). Segundo Romano, as Casas da Moeda nos domínios espanhóis da América foram instituídas contra a vontade dos comerciantes, que prefeririam que a circulação continuasse dividida em dois setores, um utilizando ouro em pó e prata em barras, outro utilizando a simples troca. Essa situação lhes garantiria uma posição extremamente vantajosa no intercâmbio. Conseguiram uma vitória parcial: o metal precioso passou a ser amoedado, mas praticamente nenhuma moeda fracionária foi cunhada nem no México nem no Peru (ROMANO, 1991, p. 247). Para as massas, predominava a troca e o uso das “moedas da terra”, como o cacau no México e os tecidos de algodão (p. 248). Na Europa anterior ao século XIX, havia em cada país ou cidade duas ou três circulações monetárias paralelas, de acordo com o nível social da circulação. Na América espanhola da mesma época, havia um mundo da moeda (de

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dimensões reduzidas) e um mundo (numericamente majoritário) da economia natural, quase sem uso da moeda (pp. 254-255). Para falar-se de mercado, a rigor, deve haver relação de compra e venda a dinheiro e o vendedor ou comprador devem ser livres para entrar ou sair do mercado. Nem sempre essas condições estavam presentes na América colonial. Além disso, a maior parte da população indígena não obtinha seus alimentos do mercado, mas do autoconsumo. Quando participava do mercado, era pelo intermédio do corregidor – que era quem definia preços e escolhia os produtos usados como pagamento (ROMANO, 1991, pp. 256-258). Tanto nos domínios espanhóis quanto nos portugueses, muitos impostos (os mais lucrativos, como o quinto real e os dízimos) eram pagos em espécie (ROMANO, 1991, p. 259; VIEIRA, 1973, pp. 343-344). Mesmo entre os estratos mais altos da sociedade colonial, muitas vezes o uso da moeda era desnecessário. Grande parte do que consumiam era produzido em seus domínios, o que valia tanto para os domínios espanhóis quanto para os portugueses. Sabe-se também que a terra tinha pouco ou nenhum valor monetário. As datas de terras eram concedidas liberalmente no Grão-Pará (DANIEL, 2004b, p. 18-19). Em razão das diferenças étnicas, há um “mercado vertical” quando a transação se dá entre integrantes de diferentes grupos sociais (e assimétricos), e um “mercado horizontal”, quando os participantes são do mesmo grupo social. A simples troca entre sujeitos de um mesmo grupo social não é apenas uma imposição da escassez de moeda, mas também uma forma de transação com vantagens econômicas e sociais para os índios em uma sociedade tão desigual (ROMANO, 1991, pp. 267-268). João Daniel oferece uma amostra muito eloquente de como funcionava um mercado vertical, quando explica a forma de atuação dos comerciantes que levavam mercadorias ao sertão em canoas:

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Vai qualquer destes contratistas pelos sítios dos índios dispersos por entre rios, e ilhas, entram-lhes em casa; veem algumas farinhas, ou qualquer outra cousa que lhes agrada, e sem mais ajuste lhes metem na mão umas facas, ou uns bolórios, ou os cariciam com alguma porrada de aguardentes, e acrescentando: Eu quero tanta farinha, ou tantas galinhas etc., e logo mandam carregar, porque os índios por mui tímidos não se atrevem a repugnar-lhes; [...] E se não acham as farinhas que querem, lhes entregam alguns resgates, v.g. machados, e outros instrumentos de ferro que os índios muito estimam, com a condição de que dali a tantos dias, ou em tal tempo, lhes tenham prontas aquelas farinhas, ou o que querem, porque então voltarão a busca-las; e os índios ordinariamente cumprem com a sua palavra enquanto podem (DANIEL, 2004b, p. 123).

Além de farinha, redes e galinhas, João Daniel informava que os tais contratistas também “resgatavam” ou compravam dos índios por objetos de valor irrisório alguns artigos de alto valor para os brancos: âmbar, tartaruga fina, pedras de bezoar, pedra de camaleão, pedras d’água. No entanto, é possível que, do ponto de vista dos índios, a prestação e a contraprestação diferida no tempo tenha assumido um caráter de presente recebido que gera uma expectativa de retribuição – um verdadeiro imperativo social de troca (BARBOSA, 2005, p. 96-100), e não um mero logro do índio pelo branco. De qualquer forma, vemos que circuitos de intercâmbio sem uso de moeda estavam presentes por toda parte e atendiam a maior parte das necessidades da população. Como diria Ruggiero Romano (1991), a economia natural é o substrato sobre o qual florescia a economia colonial. Um setor monetarizado convivia com uma economia predominantemente natural e não monetarizada. No trânsito da segunda para o primeiro, os comerciantes obtinham ganhos extraordinários. No Estado do Grão-Pará como um todo a introdução da moeda era recente (1750). Comerciantes, negociantes e taberneiros são identificados pelo Mapa das

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Famílias de 1778221 somente nos centros maiores do Pará (Belém, Cametá, Macapá e Mazagão), com duas únicas exceções: Antônio Freire Évora no Lugar de Poiares, Antonio Joze de Siqueira e Gabriel Ribeiro, na vila de Barcelos, são os únicos mercadores ou negociantes identificados como tais na capitania do Rio Negro. Dos três, Freire Évora e Gabriel Ribeiro estavam entre os citados como moradores brancos que se casaram com índias em 1759. Referindo-se à realidade da Amazônia que conheceu até sua expulsão em 1759, o padre João Daniel comentava a inexistência de mercados e feiras na região: Semelhante à falta de providência, e economia, que acima dissemos dos barcos comuns, e pescadores públicos, é a falta de mercados no rio Amazonas, porque em todo o seu distrito não há feira alguma em forma (té o meu tempo) nem praça alguma em que se façam compras, e vendas, dos víveres, dos gêneros, ou dos frutos, mais do que as lojas ordinárias dos mercadores, e nas cidades algum açougue público da vaca. Digo nas cidades, porque nas vilas e povoações menores [...] cada um vive sobre si, do que por si, os seus escravos, se os tem, podem buscar ou na pesca, ou na caça; [...] muitas vezes, ainda que tenham dinheiro, não acham absolutamente o que comprar. Por isso só são bem servidos os moradores que tem sítios, e escravos, porque nos sítios, em que mais ordinariamente vivem, fazem por ter o preciso para passarem. [...] São enfim terras, as do Amazonas, onde não basta ter dinheiro para passar bem, é necessário ter quintas, e ter escravos (DANIEL, 2004b, p. 121).

Até mesmo as transações comerciais que os brancos faziam entre si eram geralmente esporádicos, exceto aquelas ligadas à exportação. Só quem necessita faz diligência para comprar com os particulares, mas estes nenhuma fazem para vender, e por isso se há quem os busque nos seus sítios, muito bem, fazem então seus negócios; mas se os não vão buscar, lá consomem consigo os seus frutos, exceto os transportáveis para Europa, porque esses conduzem aos portos, e embarcam, ou contratam nas frotas; enfim, só particularmente, e com muita diligência, se fazem as compras e vendas nas casas particulares, mas não em feiras, ou em praças públicas (DANIEL, 2004b, p. 122).

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AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509.

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A existência de índios com ofícios especializados ou que se ocupavam de lavouras para exportação, vivendo “de sua própria agência”, respondia ao incentivo do Diretório e das Leis de Liberdade e era uma forma de se conseguir produzir um mercado de bens e serviços. O Mapa das Famílias222, um censo extremamente detalhado de 1778, que parece só ter ficado pronto em 1785 e ao qual já nos referimos anteriormente, oferece um retrato valioso de como esses índios escapavam ao controle e à tutela que recaía sobre os “índios aldeados”. Trata-se de uma planilha com mais de duas centenas de folhas, com a lista nominal de 4.253 chefes de família de todas as freguesias das capitanias do Pará e do Rio Negro. Destes, 4270 chefes de família eram da primeira capitania, 253 da segunda. Principais e outros oficiais índios em geral não aparecem nessa lista, pois estavam arrolados como índios aldeados, a despeito de seus privilégios de nobreza da terra. Ao lado de cada nome de cabeça de família (homens e mulheres), anotouse a “situação” (lugar de moradia), qualidade (branco, preto, índio, mameluco, mulato, cafuz), estado civil, emprego (vigário, diretor, patente militar, cabo de canoa etc.), ofício (senhor de engenho, regatão, lavrador, ferreiro, carpinteiro, pedreiro etc.), componentes das famílias (mulheres, filhos, parentes e agregados; pessoas de soldada; escravos) e, por fim, “Notas da possibilidade e aplicação dos cabeças das Famílias” (pobre, de mediada possibilidade, rico etc.). O total de chefes de família e seus dependentes totalizava 41.045 pessoas em ambas as capitanias (1474 no Rio Negro).

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AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509.

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Na Capitania de São José do Rio Negro, índios e índias cabeças de família totalizavam 29 (17 índios e 12 índias). Todos os 17 índios (chefes de família do sexo masculino), segundo o documento, viviam como “pobre”, “pobremente” e “pobríssimo”. Nenhum deles possuía escravos, eram casados ou viúvos, nenhum solteiro. Entre as 12 índias, todas eram viúvas e somente duas possuíam escravos. Uma delas era Margarida Pinheiro, moradora da Vila de Barcelos, que tinha 14 escravos, cultivava café, “passava pobremente” e tinha 4 familiares e ou agregados. Era viúva de um morador branco, Antônio Pedro, com quem se casara ainda no tempo do governador Mendonça Furtado, como veremos a seguir. A outra era Joaquina Maria, moradora da Vila de Borba, que possuía somente 1 escravo, mas era classificada como remediada e não tinha nenhum familiar ou agregado. O critério utilizado para classificar os cabeças de família como ricos, remediados ou pobres, parece ter sido mais qualitativo que quantitativo e podia variar conforma o responsável pela contagem em cada freguesia, já que a posse de escravos em maior número e seu cultivo de café não foram determinantes para definir Margarida como rica ou moderada, ao contrário de Joaquina. Com relação aos ofícios, Christina Maria, moradora do Lugar de Carvoeiro, viúva, era a única das 12 índias que tinha um ofício (pintora de cuias). Dos 17 índios homens listados como chefes de família, 12 tinham ofícios como sapateiro (3), ouvires (1), carpinteiro (6), ferreiro (1) e tecelão (1). E ainda, dentre os 17 índios, 6 deles possuíam empregos de Soldado Auxiliar (4) e Alcaide (1) e Capitão Mor (1). Há um único preto chefe de família, Domingos Lopes, morador de Borba, casado, sem emprego e sem ofício. Os mulatos totalizavam 6, dentre eles 5 casados e 1 viúvo. Seus empregos estavam distribuídos entre soldado auxiliar (2), capitão do

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mato (1), mestre de escola (1) e soldado da tropa paga (1). Seus empregos dividiamse entre sapateiro (1), alfaiates (2) e ferreiros (2). O número de mamelucos e mamelucas cabeças de família chegava a 50 (47 mamelucos e 3 mamelucas). Das 3 mamelucas, duas eram viúvas e uma era solteira, Ignez Maria, e tinha um escravo e nenhum familiar ou agregado. Todas classificadas como “pobre”, “pobríssima” e sem ofício. Dos 47 homens mamelucos, somente três possuíam escravos. Apolinário, casado, cabo de canoa, tinha 2 escravos, 6 agregados e ou familiares e “passava medianamente”, sendo um dos únicos moradores da capitania que aparece entre os colonos que realizaram carregamentos consignados nos navios da CGPM (CARREIRA, 1988b, p. 286). Outro é João Baptista de Oliveira, solteiro, “rico”, Soldado Auxiliar, tinha 14 escravos, 10 familiares e ou agregados, 24 trabalhadores de soldada e tinha plantação de tabaco e roças. O terceiro era José Estevão de Brito, casado, Soldado Auxiliar, lavrador, tinha 6 escravos, 4 familiares e ou agregados, “vivia remediadamente” da fabricação de farinha, café e cacau. Dentre os ofícios dos mamelucos, aparecem lavradores (7), carpinteiros (8), alfaiates (3), sapateiro (1) e ferreiro (1). O único ofício que não apareceu na lista de índios e que aparece na entre os mamelucos é de lavrador. Com relação aos empregos, os mamelucos aparecem como Soldado Auxiliar (20), Sargento Auxiliar (2), diretor (somente Raymundo Dias, diretor do lugar de Airão), soldado da tropa paga (3) e cabo de canoa (1). Tivemos alguns elementos para entender como viviam os índios “moradores”, isentos da tutela do Diretório: seus ofícios, suas oportunidades de trabalho, suas condições de vida. Por outro lado, para os índios aldeados, como vimos, a sujeição

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ao trabalho compulsório podia ser muito dura. As Leis de Liberdade não trouxeram o paraíso, mas abriam novas possibilidades de adaptação e resistência. No capítulo 2, interpretávamos que os dados demográficos das capitanias do Pará e do Rio Negro indicavam uma constante mobilidade social da categoria de índios aldeados para a categoria de “pessoas livres, à exceção dos índios aldeados”. Essa categoria, muitas vezes chamada de moradores ou moradores adjuntos, parecia ser um objetivo desejável para alguns aldeados. Essa passagem podia se dar pelo casamento com um branco ou pelo aprendizado de um ofício, pelo viver “sobre si”, pela mudança de costumes, pela adesão a determinados valores ou hábitos dos brancos. Não era necessariamente uma elevação de status. Oficiais índios encontravamse em uma esfera especial de prestígio social, privilégio e status, sem deixar de serem contados entre os índios aldeados por eles liderados, legalmente tutelados pelos diretores. Como oficiais índios, podiam ser eleitos vereadores ou juízes, por exemplo. Por outro lado, a maioria dos homens e mulheres índios nominados como chefes de família, embora livres de toda a tutela e de qualquer exigência de trabalho compulsório, eram considerados pobres ou muito pobres. Margarida Pinheiro, como vimos, foi listada no Mapa das Famílias em 1778 como viúva, dona de 14 escravos e “passando pobremente” com 4 parentes, no cultivo do café em Barcelos. Era índia e pobre, mas vivia sobre si, sem ser tutelada. Mas, além desses caminhos – pelo ofício, pelo matrimônio, pela informalidade – em alguns momentos índios pediam formalmente para deixarem de ser contados entre os aldeados. Para continuar a ser índios, todavia não mais tutelados. No início da década de 1780, a índia Maria Silvana solicitava à rainha uma provisão para manter-se como “moradora” (portanto, não aldeada, sujeita ao Diretório)

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da vila de Sintra, junto de seus filhos e netos.223 Viúva, com seus filhos e netos faziam o número de 8 pessoas, “verdadeiros operários de suas Lavouras, que fabrica no distrito daquela Villa, de que paga o Dizimo a Deus” (apresentava inclusive os recibos do dízimo). A petição insiste no fato de que essa família tinha suas próprias lavouras em outro lugar e comportava-se como se esperava de súditos ideais, mas tinham sido conduzidos “violentamente” para a vila, ficando a lavoura ao desamparo. Uma vez em Sintra, dedicaram-se novamente à agricultura, por não desejarem ficar nunca na ociosidade. No entanto, mais uma vez a queriam levar “coactiva e involuntariamente” para trabalhar nas salinas, quando esperava que pelas piíssimas leis e ordens de sua majestade ela pudesse na sua velhice gozar de “sua natural liberdade civilizada”, com os filhos e netos “aplicados nas suas lavouras, de que percebe utilidade a mesma República”. Requeria provisão para ser declarada “moradora”, por nunca ter sido “a suplicante de povoação alguma, antes nascida, e criada em caza de brancos”. Depois que seu antigo amo falecera, Silvana “procurou viver com o dicto seu Marido, e filhos, educando-os no Santo temor de Deus, e criando-os com o trabalho de sua agência.” Nos despachos, ouvidos como testemunhas vários moradores de Sintra, assinalavase que realmente a suplicante nunca estivera na lista de aldeados e portanto seu pedido deveria ser atendido, “sendo sim moradora adjunta àquella Villa”. Um pouco antes de 1786, um requerimento de Jorge Francisco de Brito, “filho da Índia Cristina Furtado, naturaes da Villa de Chaves, Comarca, e Bispado do Grão Pará”, pedia que ele e sua mãe pudessem “uzar da sua Liberdade, que por Direito

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REQUERIMENTO da índia Maria Silvana, viúva Eleutério José da Serra, para a rainha [D. Maria I], solicitando provisão régia que a mantivesse moradora efectiva na vila de Sintra na capitania do Pará, junto de seus filhos, Crispim, Nicácio, Alexandre, Vicência e Merência, e netos, José e Manuel, e nas suas lavouras, tal como tinha sucedido até então. Anexo: requerimentos, auto e ofício. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7507.

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Natural e Divino, e ainda pela Ley das Liberdades dos Índios lhe he permitida”, mas na prática impossibilitada “pela sujeição em que se achão os Índios aldeados, não podendo sahir das mesmas Povoações para outra qualquer parte, onde lhe convier [...] sem que seja por meio de fuga”. Isso, argumentava a petição, ofendia o direito natural e as leis de sua Magestade, motivo pelo qual rogava “uma provisão para usar da sua Liberdade”. Nem Jorge nem Cristina aparecem como chefes de família da Vila de Chaves no Mapa das Famílias224 de 1778, de fato. O despacho de três conselheiros do Ultramarino mostrava perplexidade: afinal, esses índios não eram livres desde 1755? Anotaram então, à margem: “Informe o Governador e Capitão General com o seu parecer, declarando o que se pratica com estes Índios, e a ordem por que os obrigão a não gozarem de sua liberdade e qual he o inconveniente [...] de se lhe deferir na forma que supplica”.225 Um requerimento idêntico foi feito por Antônio José, filho da Índia Andreza, do Lugar de Mondim.226 Esses e muitos outros requerimentos são a expressão de tantos índios que resistiam à tutela e ao trabalho compulsório e procuravam usar as regras do próprio sistema para alcançar alguma segurança e autonomia.

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AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509. [Ant. 1786, Novembro, 23] REQUERIMENTO de Jorge Francisco de Brito, filho da índia Cristina Furtada e naturais da vila de Chaves na comarca do Bispado do Pará, para a rainha [D. Maria I], solicitando provisão de concessão de liberdade, como é seu direito pela Lei das Liberdade dos Índios ainda em vigor, de modo a escapar das sujeições em que se encontram os Índios aldeados. AHU_CU_013, Cx. 96, D. 7606. 226 [Ant. 1786, Novembro, 23] REQUERIMENTO de António José, filho da índia Andreza e naturais do Lugar de Mondim, casado com a índia Francisca Lopes natural do Lugar de Odivelas, na comarca do Bispado do Pará, para a rainha [D. Maria I], solicitando provisão de concessão de liberdade, como é seu direito pela Lei das Liberdade dos Índios ainda em vigor, de modo a escapar das sujeições em que se encontram os Índios aldeados. AHU_CU_013, Cx. 96, D. 7607 225

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3.3 Forjando a elite dirigente do Rio Negro: casamentos de brancos com índias

Vimos que uma das leis que formam o conjunto das chamadas “reformas pombalinas” foi a “Lei sobre os casamentos com as Índias”. Quem eram os brancos e índios envolvidos nessas alianças promovidas pela Coroa? Como se saíram em suas trajetórias pessoais e familiares ao longo da segunda metade do século, em meio a tantas transformações políticas e sociais? Em 31 de julho de 1759, o sucessor de Mendonça Furtado no Governo do Grão Pará, Manuel Bernardo de Melo de Castro, encaminhava ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar (Tomé Joaquim da Costa Corte Real) uma relação nominal227 dos homens (quase todos soldados) que se casaram com índias na capitania do Rio Negro, de um total de 53 matrimônios atendendo ao desígnio do Rei. O dote era o mesmo concedido aos “povoadores das ilhas” que foram se estabelecer em Bragança e Macapá, no litoral atlântico: “hum machado, huma fouse, hum ferro de cova, e se há alguma serra, ou enxó, se lhe dá, e huma athé duas pessas de Bertanha ordinária, atendendo sempre a necessidade dos contraentes, e hua saia de Ruão, ou de outra Droga semelhante”.228 Os casados que requeressem recebiam baixa, “e os outros ficam por a sua praça por tempo de mais um anno”.229 Meses depois, o novo

227

1759, Fevereiro, 10, Pará. OFÍCIO do [governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Corte Real, sobre as uniões e matrimónios entre índios e europeus, bem como a dinamização das vilas criadas a partir dos aldeamentos daquele Estado. Anexo: relação e alvará AHU_CU_013, Cx. 44, D. 4002. 228 Idem. 229 1759, Julho, 31, Pará. OFÍCIO (cópia) do [governador e capitão general do Estado do Maranhão e Grão Pará], Manuel Bernardo de Melo de Castro, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre os casamentos entre Soldados europeus e índias, remetendo uma relação dos casamentos que se realizaram na Capitania do Pará. Anexo: relação. AHU_CU_013, Cx. 45, D. 4100.

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governador Manuel Bernardo de Melo e Castro envia uma nova lista com 33 militares que se casaram com índias na capitania do Pará.230 Nessa lista aparecia, entre outros, o famoso engenheiro militar e empreendedor Henrique Wilkens231. Na década de 1780, ele seria indicado Segundo Comissário da expedição demarcadora, escrevendo em 1781 o Diário da Viagem ao Japurá (AMOROSO e FARAGE, 1994) e em 1785 o poema épico Muhuraida ou O Triumfo da Fé (WILCKENS, 1993 [1785]). Faleceu como tenente-coronel em 1802, perto do destacamento militar na cachoeira do Salto, rio Madeira.232 No Lugar de Poiares, aparecem quatro casais: José Antônio Freire Évora casou-se com a índia Isabel da Costa; Jacinto dos Santos casou-se com Inácia Joaquina; Francisco Rodrigues com D. Rosa de Mendonça e Rodrigo Xavier com Rita Joaquina. Entre os homens que se casaram com índias em Barcelos, apenas um paisano (civil) aparece, sem indicação do nome da esposa: João Nobre da Silva. Mas veremos a seguir o nome e a distinção da sua consorte. Em Ega, José da Silva Coelho, José Gomes, José Gonçalves, João Pedro Nogueira e José Ribeiro Leite. Nesse caso, o documento não indica se eram soldados ou “paisanos”, nem declina os nomes das noivas. Provavelmente eram militares, pois somente a condição de paisano era explicitada para alguns nomes, sendo que os demais deveriam ser subentendidos como militares. Relação dos Soldados, e Paizanos, que tem casado com Índias, nas Povoações do Rio Negro Vila de Moura

230

AHU_CU_013, Cx. 45, D. 4100. Nesse documento, o nome da esposa está ilegível. Em um requerimento do casal, datado de 1773 para tratar da saúde no Reino, consta que Wilkens era casado com D. Inez Aranha, “natural do Paiz”, isto é, do Pará (AHU_CU_013, Cx. 71, D. 6023.). 232 AHU_CU_013, Cx.123, D. 9515. 231

266

José Gonçalves, com Luiza da Gama Domingos Afonso, com Tereza de Souza José Francisco, com Joana Maria Manoel da Silva Botelho, com Rita Soares José Roiz [Rodrigues] Madeira, com Domingas [Rodrigues] 6. Manoel Roiz [Rodrigues] com Tereza Joaquina 7. Manoel José Ramos, com Joana Rosa 1. 2. 3. 4. 5.

Roiz

1. 2. 3. 4. 5. 6.

Lugar do Carvoeiro Manoel Gomes, com Maria Teresa Crispim dos Santos, com Teresa Ferreira Joaquim Gonçalves, com Angelica Maria Antonio Gomes, com Vitória Luiza Bartolomeu de Paiva, com Teresa de Jhó Duarte Gomes, com Clemencia Joaquina

1. 2. 3. 4. 5.

Lugar de Moreira Antonio Roiz [Rodrigues], com Angela Gomes Antonio Roiz [Rodrigues] Calombo, com Antonia Joaquina João do Rosário, com Tereza Rosa Agostinho de Chaves, com Susana Maria José Ferreira da Silva, com Andreza Maria

Paisanos 6. José Estêvão de Brito, com Marcela Pereira 7. Antonio Francisco, com Micaella de Menezes

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.

Villa de Thomar Custodio Maximo, com Clemencia de Menezes Francisco Coelho Ramos, com Domingas dos Santos Francisco Gonçalves, com Micaella de Oliveira Bernardo José, com Joanna Maria Bento Antonio, com Angela Lopes José Bonifácio, com Angela[?] da Silva Antonio Lopes de Moraes, com [?] da Silva Raymundo Dias, com Quiteria Pacheco Diogo Muniz Braga com Isabel Maria Gonçalves

Payzanos 10. Paulino da Silva Rego, com Juliana Barbosa 11. José Nunes [?] com Rosa Maria 12. Matheus Nogueira, com Esperança Gonçalves

1. 2. 3. 4. 5. 6.

Villa de Barcellos Alexandre de Souza, com Isabel Gomes Francisco das Chagas, com Tereza Joaquina Antonio Pedro, com Margarida Pinheiro Antonio José Fernandes, com Esperança Maria Cabo de Esquadra João Pedro, com Damazia Roza Felipe de Souza, com Caridade de Souza

267

7. Francisco Fragoso, com Candida Maria 8. Manoel Machado, com Elena Roza 9. Gabriel Ribeiro, com Tereza Joaquina 10. José Lopes, com Mariana de Brito 11. Francisco Coelho, com Dionizia de Souza 12. Antonio Duarte da Cruz, com Marta Francisca 13. Manoel Teixeira, com Marcelina Pinheira 14. Manoel Roiz [Rodrigues] da Silva, com Joanna de Albuquerque 15. Paullo da Fonseca, com Quiteria Paizanos 16. João Nobre da Silva

1. 2. 3. 4.

Lugar de Poyares José Antonio de Freire Évora, com Izabel da Costa Jacinto dos Santos, com Ignacia Joaquina Francisco Roiz [Rodrigues], com Dona Rosa de Mendonça Rodrigo Xavier, com Rita Joaquina

Villa de Silves 1. Lazo[?] da Costa, com Custódia Pimentel No Ryo Solimões Lugar de Alvellos 1. Gregorio Antonio 2. Luiz Teixeyra Villa de Ega 1. 2. 3. 4. 5.

José da Silva Coelho José Gomes José Gonçalves João Pedro Nogueira José Ribeiro Leite

Lugar de Nogueira 1. Raymundo do Porto233

Encontramos muitos desses nomes na documentação posterior sobre essas comunidades. Eles realmente se estabeleceram, com maior ou menor êxito, como povoadores e lavradores na nova capitania, contribuindo na formação de uma nova

233

AHU_CU_013, Cx. 44, D. 4002.

268

organização social, política e econômica. Dos sete casais de Moura, encontramos no Mapa das Famílias de 1778234 dois chefes de família, listados como soldados auxiliares. Naquele ano, a família de José Gonçalves plantava café com a ajuda de um escravo. Alexandre Rodrigues Ferreira descreveu elogiosamente quase dez anos depois, a manufatura de anil da família, em uma roça próxima da vila, que operava com apoio governamental. Domingos Afonso liderava uma família de 6 pessoas em 1778 e, em 1785, produzia farinha (100 alqueires), café (22 arrobas) e cacau (60 arrobas) (FERREIRA, 2007, p. 355). No Lugar de Moreira, Antônio Rodrigues (cognominado “O Primeiro”, possivelmente para se distinguir do outro Antônio Rodrigues, “o Calombo”, seu vizinho) chegaria a diretor no tempo do Mapa das Famílias (1778), vivendo remediadamente com mais 5 familiares e 9 escravos, cultivando cacau e mandioca. Calombo (ou Calombro) e Custódio Máximo também exerceriam a função de diretor – todos eles por duas vezes, os dois últimos em Lamalonga (FERREIRA, 2007, 113). Em Moreira e na vizinha Vila de Tomar viviam também, vinte anos depois dos casamentos, Custódio Máximo, Antônio Francisco, Matheus Nogueira José Estêvão de Brito, João do Rosário, Agostinho de Chaves e Francisco das Chagas, todos soldados auxiliares, uns pobres, outros remediados e proprietários de escravos. Alexandre Rodrigues Ferreira os reencontraria em 1785, trabalhando na agricultura do cacau, café e mandioca (FERREIRA, 2007, p. 91-97). Francisco Coelho, Antônio Lopes e Diogo Muniz de Braga, apresentados na lista de 1759 como soldados que se casaram com índias, são listados em 1778 como chefes de família e lavradores mamelucos, com emprego de soldados auxiliares

234

Mapa das Famílias (AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509).

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nessas duas povoações. No entanto, na lista nominativa da povoação, em 1785, constam como brancos – Francisco Coelho, inclusive, era mestre-escola235. Sem cor em 1759, mamelucos em 1778, brancos em 1785: não há como se afirmar com segurança a causa dessa aparente mudança de “qualidade”. Pode ter ocorrido um simples erro na compilação do Mapa das Famílias de 1778, ou o caso pode ter sido um exemplo de como a atribuição dessas qualidades podia variar de acordo com a situação social: descendentes de índios e brancos, podem ter sido arrolados na lista de 1759 como soldados sem indicação da qualidade (em um contexto no qual o autor da lista desejava certamente encarecer seus préstimos ao colocar em prática a lei dos casamentos de vassalos portugueses e índios de 1755236), mas o responsável pela contagem de 1778 pode ter levado em conta seu fenótipo e a sua baixa condição social naquele momento. A Lei sobre os Casamentos com as Índias, de 4 de abril de 1755, aliás, proibia que vassalos casados com Índias, ou seus descendentes, fossem “tratados com o nome de cabouclos, ou outro semelhante que possa ser injurioso” (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771). A interpretação dos contemporâneos sobre se o termo “mameluco” estaria entre os termos injuriosos semelhantes a “cabouclo” pode ter variado. Em outro documento, essa fluidez da qualidade aparece de modo inequívoco. Em agosto de 1785, o autor do mapa da população do Lugar de Moreira, em lugar de

235

AHU_CU_020, Cx. 10, D. 387. A Lei sobre os Casamentos com as Índias, de 4 de abril de 1755, aliás, proibia que vassalos casados com Índias, ou seus descendentes, fossem “tratados com o nome de cabouclos, ou outro semelhante que possa ser injurioso” (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771). A interpretação dos contemporâneos sobre se o termo “mameluco” estaria entre os termos injuriosos semelhantes a “cabouclo” pode ter variado. 236

270

dividir os habitantes entre “Livres, exceto índios aldeados”; “Índios aldeados” e “Escravos”, optou por substituir a primeira categoria por “Moradores Brancos”. Por essa razão, achou por bem apor uma advertência “metodológica”: N.B., que na classe dos Brancos, são incluidas as Indias, ou Mamelucas, suas Mulheres, como tambem os Mamelucos seus filhos em attenção à condição de seus Pays, e a Dignidade do Sacramento [...], segundo as ordens de Sua Magestade (AHU_CU_020, Cx. 10, D. 387, folha 31).

O escrúpulo do compilador parece se dever à antiga associação entre a mestiçagem e a bastardia, que envileceria injustamente aqueles vassalos. Historicamente, muitos dos mamelucos na América eram “filhos naturais”, frutos de relações informais (concubinato, por exemplo). O próprio filho de Henrique Wilkens, ao pedir a reforma de seu posto militar por invalidez, considerou necessário enfatizar que era filho legítimo do engenheiro, como se, ainda no início do século XIX, filhos de brancos com índias fossem usualmente tidos como bastardos237. Podemos nos enganar tentando compreender essas classificações a partir de um paradigma racialista. Mas antes do século XIX, falava-se em qualidades, não em raças determinadas biologicamente. Um eminente jurista do século XVII com larga experiência na América, não atribuía a causas biológicas ou “raciais” as restrições legais, profissionais e políticas impostas aos mestiços na América espanhola, mas antes a explicações sociais e históricas, contingentes: porque lo mas ordinario es, que nacen de adulterio, ó de otros ilicitos,y punibles ayuntamientos: porque pocos Españoles de honra hay, que casen con Indias, ó Negras, el qual defecto de los natales les hace infames [...]. si en estos Mestizos (especialmente habidos em Indías) concurriese virtud conocida, y segura, y suficiente habilidad,y doctrina, pudieran ser sumamente provechosos, para ocuparse en la de los Indios, por ser como sus naturales, y saber tan perfectamente su

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AHU_CU_013, Cx. 108, D. 8493.

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lengua,y costumbres (SOLÓRZANO Y PEREYRA, 1776, p. 221).

Os mestiços que fossem frutos de legítimo matrimônio, prosseguia Solórzano, deveriam ser “muy atendidos por las leyes”. Os que tivessem casa e fossem lavradores teriam direito a portar armas como os espanhóis. Quanto aos filhos de negros e negras livres, chamados morenos ou pardos, dizia o juiz espanhol, cada dia iam “mejorando em policía”, o que o fazia acreditar que chegaria o tempo em que seriam admitidos sem restrições nos postos militares (p. 222). Lido e muito citado por Mendonça Furtado (MENDONÇA, 2005), Solórzano dá a entender que a discriminação contra os mestiços não era uma barreira intransponível nem ligada a qualquer tipo de determinismo biológico, mas que se aplicava a determinadas situações socialmente demarcadas. Voltando à lista dos brancos que se casaram com índias em 1759, vimos um outro Francisco Coelho, o de Barcelos, que vivia na mesma vila em 1778, produzindo café e cacau. Administrava as salgas do Pesqueiro Real do Rio Branco e foi ele que encontrou o desertor Nicolau Horstmann em 1775238, com a notícia de que os espanhóis estavam estabelecendo reduções e uma pequena fortificação no rio Uraricoera. Paulino da Silva Rego, civil casado com Juliana Barbosa naquela lista de 1759, seria registrado em 1778 como viúvo, lavrador e “capitão do mato”239, com 3 escravos. Sua roça no igarapé Xibaru é assim descrita por Ferreira em 1785: “Tem boas casas e mais um cafezal que o sobredito morador deu em dote a uma filha sua, a qual

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Carta de Joaquim Tinoco Valente, governador da capitania do Rio Negro, a João Pereira Caldas, 6 de abril de 1775 . 239 “Capitão de descimentos”, informava – talvez com mais acurácia – uma lista nominativa em 1785 AHU_CU_020, Cx. 10, D. 387.

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enviuvou há pouco, na fortaleza da barra deste rio. Está largada por mão, depois que a formiga tomou posse dela” (p. 118). Adquiriu dois escravos fiados pela Companhia de Comércio, por instâncias do governador, para produzir anil, de forma promissora, segundo Ferreira, tendo 10 trabalhadores – 8 índias e 2 índios (pp. 154; 191). Sua casa, em frente ao pelourinho da vila, era a mais asseada e bem repartida de Thomar. Era um homem inquieto: Nem eu sei como ainda subsiste semelhante morador, suposta a distração que tem feito dos seus poucos braços. Empregou-os na factura das casas que tem na vila, que também já escrevi que são as melhores e as mais asseadas; empregou-os na factura de outras boas casas que possui na foz do riacho de Xibaru, pouco superior ao lugar de Lamalonga, aonde não reside, porque a formiga lhe destrói a maniba; empregou-os, finalmente, no estabelecimento da roça que dentro deste rio possui, internando-se tanto por ele dentro que da vila a ela gasta os seus 2 e 3 dias de viagem, segundo vai esquipado (FERREIRA, 2007, p. 220).

Entre as índias, vemos apenas “nomes cristãos”, mas algumas com sobrenomes e outras sem. Isso também ocorre com alguns militares brancos, como o Cabo de Esquadra João Pedro. Duas índias com o sobrenome Pinheiro chamam a atenção para a existência de uma importante família indígena em Barcelos com esse apelido: em 1785, Alexandre Rodrigues Ferreira anotaria a existência de roças de café dos índios Teodósio Pinheiro, Lucas Pinheiro e seu filho Feliciano Pinheiro, próximas à fortaleza da Barra do rio Negro (FERREIRA, 2007, p. 380-381). Vemos na lista do governador uma índia com o tratamento honorífico de “Dona”, provavelmente por ser da família de oficiais indígenas de Poiares: um regimento expedido pelo então governador Mendonça Furtado para o capitão Miguel de Siqueira Chaves, datado de 19 de agosto de 1758, recomendava apoiar o descimento que o principal Caetano de Mendonça desejava fazer “de seus parentes no rio Cauaburis para o seu lugar de Poiares”, concedendo-lhe os presentes que fossem necessários (FERREIRA, 2007b, p. 575). Alexandre Rodrigues Ferreira

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apontava que João Nobre da Silva, um dos mais distintos cidadãos da vila de Barcelos, casara-se em 1759 com “a índia D. Tereza de Mendonça e Melo, filha do principal Manoel Jama” (p. 246). Esse era o branco paisano de Barcelos que tínhamos visto na lista de Mendonça Furtado sem indicação do nome da esposa indígena. Quase trinta anos depois, duas das principais lideranças de Poiares seriam o principal dos barés, Clemente de Mendonça, e o abalizado João de Mendonça. Possivelmente, a mesma família do capitão Baltazar de Mendonça, da vila de Moura. De acordo com Alexandre Rodrigues Ferreira, nessa vila em 1785 “O índio que mais se distingue entre eles no cuidado de cultivar a terra quanto pode é o capitão Baltasar Luís de Mendonça. Paga anualmente de dízimo os seus 6 até 8 alqueires de farinha e colhe as suas 10 até 12 arrobas de café” (FERREIRA, 2007, p. 354). Avançamos com alguma cautela, pois embora a diminuta população dessas comunidades autorize essas hipóteses, devemos ter em mente que os sobrenomes das famílias nem sempre eram os mesmos dos pais ou dos ascendentes no período colonial. O que os registros e censos mostram é que a mulher casada não adotava nunca o nome ou os nomes de famílias de seu marido. Finalmente os filhos de uma mesma família tinham, em regra geral, sobrenomes que variavam enormemente. Como geralmente havia dois sobrenomes para cada pessoa, teríamos para cada casal quatro sobrenomes; dois para cada pessoa. Então, os sobrenomes de seus filhos, por sua vez, poderiam aparecer ora com os dois nomes do pai, ora com os da mãe ou ainda com diferentes combinações e diversa posição dos quatro sobrenomes. Alguns dos filhos poderiam trazer nomes que não eram nem de seu pai, nem de sua mãe, mas de um dos seus quatro avós (MARCÍLIO, 1973, p. 70).

É difícil discernir se havia alguma regra geral que norteasse esse hábito, mas essa característica era observável tanto no norte como no sul da América Portuguesa. Por outro lado, o uso de sobrenomes portugueses no rio Negro era recente e raro, o que torna mais consistente a hipótese dessas mulheres serem dos mesmos grupos familiares citados.

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A documentação sobrevivente permite acompanhar mais de perto a trajetória de alguns desses casais. José Ribeiro Leite foi eleito juiz ordinário da Câmara de Ega em 21 de outubro de 1774. Ele e José Gomes aparecem no Mapa das Famílias de 1778, o primeiro registrado como alfaiate, chefiando uma família com mulher e quatro filhos ou parentes e duas escravas, “vivendo pobremente”; o segundo “vivendo medianamente” com o ofício de cabo de canoa e com o emprego de cabo de esquadra auxiliar, com a mulher, um filho e duas escravas240. A condição de oficial camarário não livraria José Ribeiro de alguns dissabores. Ele seria um dos signatários do requerimento que cobrava o pagamento dos alugueis das casas tomadas aos moradores índios e brancos de Ega para a acomodação das partidas portuguesa e espanhola, três anos antes. Os pobres moradores desalojados lamentavam-se, em sua petição, por viver em casas alheias, sem seus móveis e sem receber nenhuma compensação pelo uso de suas casas. A casa de José Ribeiro era possivelmente a melhor das casas da vila, uma vez que foi a escolhida para a residência do primeiro comissário português.241 Sabe-se também que a Câmara, não tendo prédio próprio, como era comum na época e lugar, reunia-se na casa de José Ribeiro242. Com efeito, nem mesmo o diretor da Vila, Vitoriano Lobo, foi poupado: sua casa igualmente foi

240

1785, Junho, 22, Barcelos [Rio Negro] OFÍCIO do [governador e capitão general João Pereira Caldas, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, remetendo os mapas anuais da população das capitanias do Estado do Pará e Rio Negro, de 1778 a 1781. Anexo: mapas. AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509. 241 1784, Setembro, 03, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [encarregado das demarcações do Rio Negro e capitão-general], João Pereira Caldas, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre o pagamento do aluguer das casas utilizadas pelas partidas portuguesa e espanhola na vila de Ega. (1+2 fls.) Anexo: 1 requerimento. AHU-Rio Negro, cx. 8, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 8, D. 346 242 “Copia de um termo de abertura de hu Pilouro das Justiças que hão de servir no Anno de mil setecentos e setenta e seis”. Archivo do Amazonas, anno 1, volume 1, n.o 2, Manaus, 23/10/1906, p. 41.

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tomada para alojar o primeiro comissário espanhol. Finalmente, José Ribeiro Leite seria designado diretor da Vila de Ega em 1782243. Depois disso, perdi sua pista. Antônio Freire Évora tornar-se-ia um destacado empreendedor da capitania do Rio Negro e – por via de consequência – viria a ser chamado a responder por importantes funções públicas. Em 14 de novembro de 1777, obtém uma sesmaria no Igarapé Pucá 244. Em 2 de maio de 1778, Évora passa de alferes a capitão da companhia franca de Infantaria Auxiliar de Brancos da capitania do Rio Negro, com carta patente expedida pelo Governador e General do Estado, João Pereira Caldas245. No Mapa das Famílias do Estado do Grão Pará (1778), ele aparece como o único povoador considerado “rico” no Lugar de Poiares e um dos mais poderosos da capitania, com onze pessoas na família (mulher, filhos e agregados), uma empregada assalariada e 42 escravos. Produzia, segundo aquele censo, café e anil, dois dos gêneros mais lucrativos da região. É um dos únicos moradores do Rio Negro que teve carregamentos registrados nos navios da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (CARREIRA, 1988b, p. 285), o que mostra a extensão de sua rede de relações. Um episódio que oferece uma ideia de suas ambições e do alcance de sua capacidade comercial foi o do comércio que fez com os espanhóis, nos anos da

“Copia de um termo de posse e juramento do diretor da Villa de Ega em virtude da remoção do respectivo Diretor para Bohim”. Archivo do Amazonas, anno 1, volume 1, n.o 2, Manaus, 23/10/1906, p. 51. 244 Annaes da biblioteca e Archivo Publico do Pará. Tomo 3º, 1904, Belém, p. 86. Há uma localidade com esse nome no médio Juruá e outra no Arapiuns, perto de Santarém. A segunda possibilidade é a mais provável, pois o Juruá não era navegado no século XVIII. 245 REQUERIMENTO de José António Freire Évora à rainha [D. Maria I] a solicitar a confirmação do seu posto de capitão da companhia franca de Infantaria Auxiliar de Brancos da capitania do Rio Negro. Anexo: 1 carta patente. AHU-Pará, cx. 810 AHU_CU_020, Cx. 3, D. 194 243

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segunda demarcação. A primeira demarcação, na década de 1750, correspondeu às expedições decorrentes do Tratado de Madri; seu primeiro Comissário foi Mendonça Furtado. O Tratado foi denunciado, entretanto, e na década de 1780, depois do Tratado de Santo Idelfonso, novas expedições de demarcações foram enviadas pelas duas coroas ibéricas à América do Sul. Um número considerável de servidores de primeiro nível, com grande criadagem, de ambas as coroas, passou alguns anos na vila de Ega, no Solimões, nas atividades de demarcação. Uma certidão passada em 16 de agosto de 1791 por José de Nápoles Tello de Menezes (governador do Estado do Grão Pará e Rio Negro de 1780 a 1783) atestava que Freire Évora se encarregava do transporte dos provimentos de Belém a Ega com grande eficiência e sem qualquer avaria, em sociedade com o Cirurgião João Manuel Rodrigues, que possuía uma canoa maior e melhor para esse transporte, pagando soldo e mantimentos a 28 remeiros e um piloto, sem ser pago pelos fretes por dois anos (1781 e 1782).246 Sem fazer caso da autoridade da Rainha e do governador do Estado, Freire Évora deu um passo adiante e acertou diretamente com o comissário espanhol (D. Francisco Requena) o fornecimento de víveres a sua partida ou comitiva. Em 1784 essas operações comerciais semiclandestinas de Évora são reportadas ao Secretário de Estado de Marinha e Ultramar (Martinho de Melo e Castro) pelo Capitão General e encarregado das demarcações do lado português, João Pereira Caldas. O provimento da partida espanhola, estacionada em Ega, a princípio seria feito pela extinta (mas ainda atuante) Companhia de Comércio, de acordo com o que se havia sido aprovado pela Rainha. Sucede que sem mais atenção, nem civilidade, se resolveo o sobredito Comissario a empreender, e formalizar o novo ajuste de ser socorrido por

246

AHU-Rio Negro, cx. 18, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 16, D. 616.

277

hum traficante desta capitania, chamado José Antonio Freire Évora, que houve por bem de participar-me em Carta de 21 de Julho, e da cópia n. 1º. E o que sobre esta picardia eu respondi e o decoroso modo porque estranhei aquella indecência, e incivilidade, será a V. Ex.a evidente da outra adjunta Copia, com o n. 2º. indicada.247

Escrevendo a Requena, um resignado Pereira Caldas limita-se a dizer-lhe que o Capitão Évora tinha já a licença para passar do Rio Negro a Belém e, o que era vital, a permissão de contratar os índios necessários à tripulação de sua canoa de negócio, “porque nunca confundirei entre as faltas particulares o respeito sempre devido ao real serviço de sua Majestade Católica”. Sutilmente, o plenipotenciário português mostrava-se ofendido pela ousadia do “traficante” local em fazer negócios diretamente com o comissário espanhol. Ao tenente-coronel João Batista Mardel, comandante da guarnição portuguesa em Ega, Pereira Caldas comenta explicitamente que o capitão Freire Évora “estava bem nos termos de experimentar o merecido castigo, por se animar ao mesmo ajuste, sem primeiro obter o meu consentimento” (carta de 28 de agosto de 1784, inserta no mesmo ofício). Ainda em 1793, o primeiro comissário espanhol mandava cobrar-lhe em mil pesos fortes “por conta dos gêneros que lhe incommendara para lhe trazer do Pará”. Mas o comerciante protelava o pagamento, alegando o risco de remeter esse valor em dinheiro. O governador da capitania do Rio Negro, Manuel da Gama Lobo D’Almada, enviou então um oficial e dois soldados buscarem Freire Évora em Barcelos e conduzi-lo preso, se necessário, à fronteira de

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1784, Setembro, 03, Vila de Barcelos. OFÍCIO do [encarregado das demarcações do Rio Negro e capitão-general], João Pereira Caldas, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre o ajuste de fornecimentos feito entre o comissário espanhol, D. Francisco Requena e o traficante José António Freire Évora. Anexo: 2 documentos. AHU-Rio Negro, cx. 8, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 8, D. 345

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Tabatinga para saldar a dívida com o dignitário espanhol248. Não foi preciso chegar a tanto, pois Évora saldou a dívida. Além das aventuras comerciais, Évora tinha seus estabelecimentos agrícolas. Como vimos, o caráter compulsório do trabalho indígena, naquela região e naquela conjuntura, era relativizado pelas infinitas possibilidades de fuga, além de ser mediado por diversos fatores que influenciavam o acesso à mão-de-obra, como os principais e demais oficiais indígenas, diretores, eclesiásticos e agentes régios, como governadores e ouvidores. Não seria despropositado supor que Freire Évora levava alguma vantagem frente a outros comerciantes e lavradores da capitania por ser casado com uma índia, o que poderia inseri-lo em uma rede de relações capaz de facilitar o recrutamento de trabalhadores, remadores etc. para seus negócios. Tal hipótese é reforçada pelo caso de João Nobre da Silva, que veremos a seguir. O cônego Souza, tendo vivido as últimas décadas do século XVIII na capitania, não tinha dúvidas sobre o quanto essa inserção nas redes de reações de reciprocidade com os índios era decisiva para os lavradores: para ele, os abusos dos últimos governadores da capitania, requisitando excessivamente índios e índias para as fábricas reais, teriam feito desaparecer os índios das villas e lugares até agora, e os cafezais, anizaes e mais cultura dos particulares reduziram-se ao estado da inniquilação; porque tendo cada um dos lavradores nos índios parentes, afilhados e compadres para se coadjuvarem mutuamente, faltando estes, ficaram reduzidos ao nada (SOUSA, 1848, p. 473 - grifo meu)

Carta de Manoel da Gama Lobo D’Almada ao governador geral do Estado, D. Francisco de Souza Coutinho, de 10 de julho de 1793 (REIS, 2006, p. 224-226). 248

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Até o momento, infelizmente, não dispomos de documentos sobre Isabel da Costa249, a esposa de Freire Évora, e seus parentes. Podemos falar apenas dos desdobramentos dessa união: o que acontece com o chefe da família e seus filhos mestiços. Em 1786, Freire Évora deixou Poiares e passou a residir na capital da capitania, por ter sido nomeado juiz ouvidor interino (FERREIRA, 2007b, p. 250). Alexandre Rodrigues Ferreira admite nessa época que Évora tinha sido, a princípio, um lavrador aplicado. Fabricou urucu durante algum tempo (p. 510), produziu anil e revendeu cotas de outros produtores em Belém (p. 107)250 e possuía 18 das 42 cabeças de gado vacum de Barcelos (p. 482). Ele e o genro – o licenciado João Manuel Rodrigues –, como bons lavradores, colheram “em sucessivos anos avultadas porções de alqueires” de arroz (FERREIRA, 2007b, p. 503). No entanto, o naturalista censuralhes a dispersão por “causas particulares”, que os distraíam dos deveres e da disciplina da agricultura (p. 504), e o absenteísmo de ambos: Persuado-me, que a tenção, que faz, é a de seguir os passos de seu genro: viu que ele, sendo casado com filha de morador, sendo o mais abastado que nesta vila havia, e sendo finalmente o cirurgião da tropa da guarnição, impetrou a licença, que requereu, de deixar outro em seu lugar, e de se retirar para a Cidade do Pará; e desejando fazer o mesmo aplica as diligências que pode; razão por que nem emprega os 52 escravos que tem em lavoura alguma [...] nem reedifica a casa que tinha no lugar. Consigam-se umas poucas mais de licenças destas, que eu seguro a V. Ex.a, que bem cedo ficam a arbítrio dos índios os estabelecimentos, que tanto custaram a principiar (FERREIRA, 2007b, p. 253).

249

Conhecemos apenas, com esse sobrenome, o principal Matias da Costa, responsável pelo descimento que deu origem à povoação da Barra do Rio Negro, anexa à fortaleza (FERREIRA, 2007, p. ) 250 É possível que revendesse anil dos moradores com alguma frequência, pois ainda em carta de 20 de dezembro de 1790 o governador Lobo D’Almada informava ao capitão-general do Estado, Francisco de Souza Coutinho, que o morador José Antonio Freire Évora tinha comprado a produção de anil dos moradores, pagando por ela prontamente e garantindo embarcar tudo por sua conta para Lisboa (REIS, 2006, p. 168).

280

Com efeito, dois anos depois Freire Évora pediria a Martinho de Melo e Castro, em retribuição a seus 34 anos de serviços na capitania do Rio Negro, “o cargo de mestre de campo do Terço do Rio Negro, para si e para seu filho [o] cargo de capitão de uma companhia de Infantaria Auxiliar da mesma capitania”. Se isso não fosse possível, requeria “licença para com a sua família e bens passar ao Pará ou outra qualquer parte.”251 O plantel de escravos de Antônio Freire Évora em Poiares era completamente atípico para a capitania do Rio Negro.252 Segundo Ferreira, esse proprietário tinha por ano um rendimento de 400 mil réis, mas não tirava “sequer o sustento preciso para os ditos escravos; de modo que nem há roça circunvizinha em que eles não exercitem várias pilhagens, nem canoas nos portos das roças que eles não retirem” (p. 236). Ferreira denuncia que, tendo havido um cafezal do comum em Barcelos desde o tempo do Intendente e ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, cerca de dez anos antes, pelo qual deveria zelar o diretor da vila, o desleixo e a incúria fizeram declinar a produção: os sucessivos diretores “nem o mandavam limpar [...] nem

251

AHU-Rio Negro, cx. 16. AHU_CU_020, Cx. 14, D. 532. O próprio naturalista, consultando o Mapa das Famílias, comparava Freire Évora aos detentores de grandes planteis do Pará (em um patamar completamente distinto de escravaria e de riqueza), afirmando que justamente os proprietários que, como ele, conseguiam mais escravos eram os mais indolentes, em uma e outra capitania, aplicando-os mais “para os serviços domésticos, para acompanhamentos pomposos, para ostentações vãs de riqueza e de senhorio” do que na agricultura: “o mestre-de-campo da vila do Cametá, João de Morais Bittencourt, que contava cento e setenta e nove braços, incluídos os índios assalariados e da mesma sorte seu filho capitão Hilário de Morais Bittencourt, que contava cento e nove e o outro filho, alferes João Maria de Morais, que contava sessenta e quatro, segundo o mapa do ano de 1778. O outro mestre-de-campo já defunto, André Miguel Aires, tinha cento e trinta e cinco; o mestre-de-campo Pedro Furtado de Mendonça tinha cento e dezesseis. O capitão Agostinho José Tenório tinha cento e três; Domingos da Costa Bacelar tinha cento [e] setenta e cinco; Manoel Domingues tinha noventa e, de todos estes nenhum foi o que mais se distinguiu em lavouras, nem ao menos tanto como se distinguiram outros de muito menor número de escravos” (FERREIRA, 2007, p. 276-277). 252

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nomeavam operários, que tratassem dele”. A produção caiu de 10 para 2 arrobas. Entrou em cena o genro do homem mais rico da capitania, então ouvidor interino: Representou-se por isso ao juiz Ouvidor interino João Manuel Rodrigues, que do sobredito cafezal não só se não tiravam os lucros projetados, mas antes procediam as avultadas despesas, que no ar da sua malícia armaram os representantes para conseguirem o despacho, que se lhes deu. Porque, despachando o sobredito ouvidor, que se passasse a avalia-lo, para ser vendido a quem mais desse, avaliou-se, com efeito, como se quis, e comprouo o capitão Bento José do Rego, que é quem hoje o possui (FERREIRA, 2007b, p. 255).

Dessa forma, aquela lavoura passou de bem público (em benefício dos índios) a bem privado em benefício de um proprietário integrante da rede de relações de Évora e seu genro. O engenhoso genro, que no Mapa das Famílias de 1778 aparecia como casado, sem filhos, com apenas 4 escravos e “vivendo remediadamente” 253, pediria em 1780 o Hábito da Ordem de São Bento de Avis, com a respectiva tença.254 Bento José do Rego, importante sujeito da capitania, escrivão de fazenda, produtor de café com seis escravos em Poiares, que foi ouvidor interino e participou das juntas governativas, é um dos elementos de sua rede de relações, chamado a passar certidões de serviços prestados à Coroa por João Manuel Rodrigues. Évora seria um dos ouvidores interinos entre 1779 e 1799 e integrava a 8ª Junta governativa da Capitania do Rio Negro em 1788, quando deu posse a Lobo D’Almada. Como mais um índice da rede de relações de Évora, ressalte-se que seu genro255,

253

AHU-Rio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509, fls.203. [ant. 1791, Novembro, 12], Lisboa. REQUERIMENTO do cirurgião do Hospital Real da capitania do Rio Negro, João Manuel Rodrigues à rainha [D. Maria I], a pedir, em atenção aos serviços prestados, o Hábito da Ordem de São Bento de Assis [sic!], com a respectiva tença. (1+39 fls.) Anexo: 22 documentos. AHU-Rio Negro, cx. 18, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 16, D. 616. 255 A informação a respeito desse laço de parentesco encontra-se no Diário do Rio Negro (FERREIRA, 2007b, p. 503). João Manuel Rodrigues, nascido em Matozinhos por volta de 1743, foi tenente-coronel, o único cirurgião da capitania por 19 anos, juiz e ouvidor interino – além de ter trazido as primeiras sementes de manga e jaca da Bahia para o Rio Negro, como informa o minucioso naturalista (p. 235; p. 425). Segundo seu próprio relato, João Manuel Rodrigues teria sido tirado do navio em que se encontrava, no Pará, “por expressa e absoluta ordem do General Fernando da Costa de Athaíde Teive 254

282

aliás, integrara a referida junta de 1783 a 1783 (SAMPAIO, 2011, p. 348-349) e também foi ouvidor interino, por dois anos256. Como não podia deixar de ser, Freire Évora associou-se à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila de Barcelos257. O filho de Freire Évora receberia em 1801 a patente de capitão, solicitada treze anos antes.258 Como epílogo da trajetória dessa família mestiça, o Cônego Souza relata que, depois do governador João Manuel da Gama Lobo D’Almada ter encaminhado aos campos naturais do Rio Branco o gado vacum que a partida espanhola abandonou em Ega (após sua retirada em 1793), o “morador opulento” José Antônio Évora comprou novilhas em várias povoações da capitania e fundou uma fazenda junto ao forte São Joaquim, na margem do Tacutu e do Branco. Sem cercas, com poucos vaqueiros e cuidados, mas com “bons e salitrados pastos” naturais, não havia “gado vacum no Estado melhor que o do Rio Branco, na multiplicação, no tamanho e nutrição”. O gado se espalhou pelos “vastíssimos campos, de sorte que é impossível numerar”, tanto na fazenda de Freire Évora quanto na do Rei e na de Nicolau de Sá Sarmento, comandante do forte. “Assim mesmo sem pastor, dizem, expostos às onças, tem multiplicado tanto que os holandeses têm vindo fazer salga dele, como é

[governador do Estado de 1763 a 1772], e mandado hir a exercitar a sua ocupação” na capitania do Rio Negro, onde precisavam de um cirurgião, percebendo soldo de 240 mil réis a partir de 2 de dezembro de 1763 (AHU-Rio Negro, cx. 18, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 16, D. 616). 256 AHU-Rio Negro, cx. 18, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 16, D. 616. 257 Compromisso para governo da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila de Barcelos, Capital da Capitania do Rio Negro, sendo Digníssimo Protetor o Il.mo e Ex.mo Sr. Capitão General João Pereira Caldas (in FERREIRA, 2007b, pp. 433-444). 258 1807, Julho, 31, [Lisboa] AVISO do [secretário de estado da Marinha e Ultramar], visconde de Anadia, [D. João Rodrigues de Sá e Melo], para o [conselheiro do Conselho Ultramarino], visconde da Lapa, [D. Manuel de Almeida e Vasconcelos Soveral de Carvalho da Maia Soares de Albergaria], sobre a confirmação da carta patente de Filipe José Freire Évora, no posto de capitão da 10ª Companhia do 1º Corpo de Milícias da capitania do Rio Negro. AHU_CU_013, Cx. 141, D. 10687. O suplicante não tinha conseguido pedir a confirmação da patente no prazo de um ano (i.e., até 1802) devido ao falecimento de seu procurador em Lisboa.

283

notório” (SOUSA, 1848, p. 455-456). Évora, durante algum tempo, teve sucesso na exploração econômica desse gado, o qual tratava com vaqueiros escravos e transportava provavelmente com trabalhadores índios. Era a todos dia de prazer a chegada da canoa do Évora aos portos de Barcellos, de três em três mezes, carregada de carnes salgadas, couros, manteigas e queijos, que por ser por módico preço a todos remediava. A fazenda do Rei, como igualmente a do Sarmento, ofereciam a mesma profusão e abundância, em quanto não foram addidas ao cuidado dos comandantes militares do forte de S. Joaquim, e dos administradores. [...] É incontestável que a casa do capitão José Antônio Évora era a mais opulenta do Rio Negro, e que por seu falecimento ficou a seu filho Filippe Évora. Achava-se este no cargo de almoxarife da fazenda, quando o governador José Joaquim Victorio259 impôs a todos os habitantes d’aquella comarca a finta das farinhas, com o consentimento do governo do Pará em 1808; por cujo motivo durou a dita finta até 1820 inclusive [...]. (SOUSA, 1848, p. 456457)

Segundo o Cônego Souza, o governador Vitório tirava proveito pessoal dessas fintas, que jamais foram ressarcidas integralmente. Não contente com isso, José Joaquim Vitório da Costa teria usado os índios do serviço real para construir uma caríssima chácara particular no igarapé do Tarumã, próximo da fortaleza da Barra do Rio Negro, e outras chácaras para seus genros, [...] em cujo serviço se despendia diariamente um grande número de alqueires de farinha que sahia dos reaes armazéns: e d’esta os soldados recebedores, ou fosse por ordem maliciosa ou por motu próprio, deixaram de passar recibo ao almoxarife; e este ou por descuido ou por incapacidade, não reclamou ao mesmo governador os recibos. Em 1815 o provedor Francisco de Paula Pereira Duarte [...] deu balanço aos reaes armazéns, e tomou conta ao fiel. Achou-se um horroroso e extraordinário numero de alqueires de farinha despendida sem conhecimentos; motivo porque se lhe tomou e sequestrou prédio, trastes e estabelecimentos, escravatura e fazenda de gado vacum e cavalar. [...] A escravatura foi vendida em hasta pública, em vez de se com ella amanhar as fazendas de gado, visto serem quase todos vaqueiros. Este foi o fim da desgraçada casa do Évora e da sua fazenda de gado vacum, que foi unida às duas do Rei e Sarmento, e que por fim há de ser contada, se não houver providencia, no número d’aquellas coisas que já não existem (SOUSA, 1848, p. 457).

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Governou o Rio Negro de 1806 a 1818.

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Podemos reter um dado muito significativo: tanto nos documentos oficiais do processo de obtenção da patente de capitão de milícias quanto na narrativa do Cônego Souza, o filho de Freire Évora e da índia Isabel da Costa não tem cor. Não é mencionado como mameluco, nem faz seus pedidos como índio ou mameluco. Depois de conhecer a ascensão e queda da família mestiça de Freire Évora, voltemos a João Nobre da Silva, o único civil de Barcelos que aparece na relação de casamentos entre brancos e índias de 1759260. Ele aparece no Mapa das Famílias de 1778 com a esposa, uma filha e dois escravos, plantando café e cacau. No Tratado sobre Agricultura do Rio Negro, de Antônio Vilela do Amaral (1787), Nobre da Silva surge como um lavrador exemplar, pois “foi o primeiro que plantou e cultivou os ditos gêneros [...]. Distinguiu-se o dito capitão, porque como não era soldado, e foi o primeiro que casou com índia, não se lhe dificultou auxílio algum para ele poder fazer as suas lavouras” (FERREIRA, 2007b, p. 501). Para Vilela do Amaral, João Nobre da Silva, além de provar que o Rio Negro não é estéril como se costumava se dizer, é um exemplo de lavrador aplicado, mas prejudicado pelas dificuldades de comercializar a produção: por volta de 1758 (ou seja, nos primórdios da capitania), teria produzido em Barcelos 40 alqueires de feijão, mas passou dois anos tentando vendê-lo, sem sucesso. Depois disso, passou a produzir para seu consumo apenas, ou sob encomenda de outros (p. 505). Naquele ano, quando o Senado da Câmara de Barcelos indicou ao Governador do Estado, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, as

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AHU_CU_013, Cx. 44, D. 4002.

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três pessoas das mais distintas, e capazes do posto de capitão-mor, para uma delas governar as ordenanças da vila e sendo-lhe por eles propostos o capitão João Nobre da Silva, o sargento-mor Francisco Xavier de Andrade, e Agostinho Cabral de Souza; no dito posto nomeou por carta patente de 10 de agosto do mesmo ano, ao capitão da ordenança João Nobre da Silva, assim pelo seu honrado procedimento, como por ter casado com a índia D. Teresa de Mendonça Melo, filha do principal Manuel Gama (Corografia do Rio Negro, reproduzida em FERREIRA, 2007b, p. 370).

Como o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira não deixou de notar, Mendonça Furtado quis reiterar ali os princípios do Alvará de 4 de abril de 1755 (ano de criação também da capitania), que declarou que os que se casassem com índias não contrairiam infâmia, mas seriam merecedores da Real atenção, preferidos nas terras e cargos, honras e dignidades, de acordo com a graduação de suas pessoas. Da mesma forma, o Diretório, nos §§ 88 e 89, equiparava os que se casavam com as índias aos índios como merecedores de privilégios nas novas vilas e lugares. Por isso mesmo, ao escolher os oficiais da câmara de Barcelos, incluiu o índio Manoel de Vasconcelos Camandri, “governador” do Rio Negro e principal dos Manaus, liderança indígena das mais respeitadas no rio261. Era reverenciado por outros principais e sobre sua ascendência política repousava a conservação das aldeias do rio Negro na aliança com Portugal (FERREIRA, 2007, p. 257). João Nobre da Silva, ao casar-se com uma das filhas de Camandri, teve um forte trunfo para tornar-se um dos moradores mais destacados da Capitania. Foi juiz ordinário de Barcelos em 1776 e ouvidor interino no ano seguinte, como se vê nos autos da devassa da agressão contra o ouvidor Sampaio, espancado e injuriado por um militar e por um vigário (reproduzida em FERREIRA, 2007b, pp. 472-477). Integrou

Camandri e os demais oficiais camarários daquela capital foram contemplados “com todas as honras, privilégios, liberdades, e isenções e franquezas que os senhores reis de Portugal tem concedido aos cidadãos da Cidade do Pará [...]”. Provisão de seis de maio de 1758, dada em Barcelos (FERREIRA, 2007b, p. 204). 261

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a terceira junta governativa da capitania, em 1781. Parece integrar, portanto, a rede de relações de Freire Évora e João Manuel Rodrigues, fato que emerge também do conflito que culminou na agressão contra o ouvidor Sampaio em Barcelos, no dia 31 de maio de 1777. No auto da devassa sobre o incidente, o ouvidor descreve o atentado: [...] saíra ele ministro de tarde a ver as obras reais, e achando-se com esse fim nas casas das canoas, vira passar pela rua o capitão Filipe da Costa Teixeira e, achando-se com esse fim nas casas das canoas, vira passar pela rua o capitão Filipe da Costa Teixeira, do regimento da cidade do Pará, [...], e com ele o Reverendo Vigário desta vila, Jerônimo Ferreira Barreto, e detrás dos mesmos Filipe Serrão de Castro[...]. E logo ele, ministro, subiu só pela rua acima, que vai direita ao mato e, voltando para outra, seguiu o caminho do mesmo mato, para passear, indo sempre só, e ao pôr o sol, voltou para casa, tomando o caminho da olaria e daí, o que vem direito à igreja, o qual, seguindo a poucos passos, viu vir da porta da mesma igreja o mesmo capitão Filipe da Costa Teixeira, [...] acompanhado do mesmo vigário Jerônimo Ferreira Barreto, os quais, separando-se para os lados, por modo de quem dava passagem a ele, ministro, lhe disse o dito Reverendo Vigário: “Criado, sô Ouvidor!” tirando o chapéu, ao que ele, ministro, correspondera com a mesma cortesia. E, andando dois passos por entre eles para diante, em cujo tem[p]o com a maior aleivosia e traição lhe disparou por detrás uma pancada o mesmo vigário, com um pau que trazia na mão, ao que se seguiu o dito capitão. E, pondo-se ele, ministro, em defesa, que era natural, e tirando para isso uma pequena faca de mato que traz de costume, continuando as pancadas, lha tiraram da mão com uma pancada e, depois, caindo ele, ministro, por terra, embaraçado em umas ervas, lhe principiaram aí a dar ambos muitas pancadas e, levantando-se ele, ministro, como pôde, entrou a gritar, com o que foi acudindo pouco a pouco o povo e guarnição militar desta vila.262

De tal forma ferido e ultrajado, ainda com a cara ensanguentada e sem a cabeleira, que lhe caiu em meio à luta, o ouvidor mandou prender os dois agressores em flagrante e começou a procurar as razões do ataque e isolar os possíveis aliados dos agressores. De imediato, suspendeu o juiz ordinário da vila, Pedro Rodrigues Chaves, “não em razão de inimizade, [...], mas pela sua notória incapacidade,

“Auto que mandou fazer o Dr. Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, ouvidor intendente geral desta capitania, pela injúria, espancamento e ferimento que lhe fez o capitão Filipe da Costa Teixeira, do regimento da cidade do Pará, destacado nesta vila de Barcelos, associado com o Reverendo Vigário dela, Jerônimo Ferreira Barreto”, datado de 2 de junho de 1777 (FERREIRA, 2007b, pp. 472-473). 262

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insuficiência, facilidade, e falta de segredo para um negócio de tanta ponderação” (FERREIRA, 2007b, p. 474-475). Sem perda de tempo, convocou para o exame de corpo de delito o sangrador do Hospital Real, Vitorino Gomes da Silva, e dois de nossos conhecidos: o cirurgião João Manuel Rodrigues e o capitão João Nobre da Silva (“ouvidor interino no impedimento” do próprio Sampaio, o agredido). Esse episódio mostrou o vigor que a nova organização social possuía. João Nobre e outros pacatos moradores brancos casados com índias tornaram-se os guardiões das instituições da monarquia pluricontinental nos confins da Amazônia, articulando as redes imemoriais de lideranças indígenas com o sistema político, econômico e jurídico do império português.

3.4 A participação na defesa

Outro espaço aberto para muitos índios e mestiços era a carreira militar. A organização das forças militares tinha três níveis – a tropa de linha ou tropa paga, organizada em terços ou regimentos “designados pelo nome do lugar de sua formação” (como Regimento de Macapá, por exemplo); as milícias ou tropas auxiliares; as ordenanças, “força de terceira linha, de caráter eminentemente local, não podendo assim ser afastadas do lugar de sua formação, engajadas sob forma de arrolamento em vez de recrutamento” (AVELLAR, 1983, p. 58). Estas últimas seriam formadas por companhias de 250 homens, distribuídos em esquadras com 25 integrantes. Em lugares pouco habitados, “era designado um Cabo de esquadra, responsável por vinte e cinco homens. As companhias tinham Capitão, Alferes, Sargento, Meirinho Escrivão e dez Cabos” (p. 59).

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Ao escrever sobre as companhias de ordenança franca da Ilha de Joanes ou Marajó, oferece uma colorida descrição daqueles corpos militares multiétnicos: Por mais ordens que se tenham passado a respeito dos soldados, sempre aparecem como podem ou querem, já com armas, já com flechas os tapuias, pretos forros, mulatos, cafuzes, caribocas etc. Têm eles a obrigação de, em sendo chamados pelo seu comandante, aparecerem sempre com o seu remo, porque devem estar prontos para as diligências marítimas. Ora, além de todas estas quatro companhias, há nas vilas e lugares ordenanças de índios com seus oficiais de capitão para baixo, porque só em Monforte há o sargentomor Severino, e ainda os mesmos postos estão por prover (FERREIRA, 2007, p. 60).

Esse sargento-mor Severino é um dos informantes fundamentais para o naturalista Ferreira escrever a Notícia Histórica da Ilha de Joanes ou Marajó. Índio da nação Sacaca (ou iuioana, Ioioanes, Joanes, daí o nome da ilha), já idoso, era o portador da memória das terras tradicionais, dos primeiros contatos e da aliança entre seu povo e os portugueses e. por conseguinte, dos direitos de aliados: Tal é a informação que dá sobre diversas perguntas minhas o sacaca Severino dos Santos, sargento-mor da ordenança dos índios da vila de Monforte. É um índio, pelo que dele alcancei, suficientemente versado nas cousas do país, civilizado já pelo menos com a civilidade de haver aprendido a ler e escrever. Fala expeditamente a língua portuguesa, que entende como os nacionais. Conta de idade 70 e tantos anos e, portanto, nenhum escrúpulo faço em subscrever as suas informações. Como eu disse acima, que esta era a informação do sacaca Severino dos Santos, para não deixar suspensos os juízos sobre a palavra sacaca, devo advertir desde agora que sacaca se ficou chamando a nação iuioana depois do caso seguinte. Trabalhavam na fortaleza da Barra da Cidade, não só os iuioanas, mas com eles outras nações. Presidia ao trabalho dos primeiros certo espírito muito ativo que, dentre eles havia sido escolhido para feitor. E, como a palavra que, pela sua gíria, pronunciava para animar os seus era necessariamente sacacon, que vale o mesmo que “aviar com o trabalho”, as outras nações que a ouviam sem aperceberem, porque era gíria para ser entendida dos iuioanas, entravam a chamá-los sacacas, e sacacas ficaram [a]té o dia de hoje. Habitaram sempre os sacacas de hoje (que então eram iuioanas), continua o sargento-mor, pelos centros da ilha, [...], enquanto os não obrigou a perseguição dos aroans, seus inimigos, e juntamente a dos topinambás, a descerem deles para a costa em que ao presente se acha a vila de Monforte. Pela nação caripuná, que eram de parte a parte camaradas, foram informados os iuioanas que na parte em que ao presente está a cidade do Pará, se achava gente branca valerosa

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pelas suas armas e que faria timbre de os proteger. Continuavam as violências dos aroans, a fama do valor português os animava, o interesse do seu sossego e segurança veio a acabar com eles que atravessassem a baía. Atravessaram-na, com efeito, para o lugar da cidade, e, tendo logo a fortuna de nela encontrarem um parente seu que, em rapaz havia sido cativado pelos topinambás nos campos da ilha, batizado depois com o nome de João e, por alcunha, o Sapatu, deste se serviram como seu intérprete para pôr na presença do capitão-mor que então governava o Pará, a representação seguinte: Que as violências dos aroans os consternavam de modo que nenhum outro recurso lhes deixavam para a vida e liberdade mais que o que ousavam tomar de se abrigarem debaixo das armas portuguesas, de cujo valor e sucessos militares estavam bem informados. Que de boa mente se sujeitavam ao domínio d‘El-Rei de Portugal, protestando serem seus leais vassalos, se o capitão-mor os auxiliasse com soldados e oficiais que os ajudassem a vencer na guerra os aroans (FERREIRA, 2007, p. 54-55).

O relato mostra de forma muito clara a forma como se davam alianças: a ameaça de um outro grupo étnico (os Aruãs), alianças e inimizades entre diferentes grupos indígenas, a necessidade dos portugueses em granjear aliados na ainda frágil posição de Belém no início da colonização (início do século XVII), a existência de um índio intérprete que transitava entre as fronteiras étnicas, o auxílio militar luso bem sucedido e a disposição em contribuir com trabalho para a construção das primeiras fortificações da cidade. As lideranças Aruan tinham consciência de sua importância para a defesa do Estado. Em 1753, o principal Inácio Coelho e seu filho Luiz de Miranda, sargento-mor de São José do Igarapé Grande, no Marajó, pediriam postos militares no Pará263. Valores em que geralmente os povos indígenas podiam obter reconhecimento na sociedade colonial, como a bravura na guerra, eram um vetor de manutenção da identidade étnica. Em contrapartida, em capitanias como o Pará e o Rio Negro, era dessas populações que os agentes régios dependiam para organizar a defesa

263

AHU_CU_013, Cx. 35, D. 3307.

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armada. Em 1767, o governador do Rio Negro informava ao secretário de Marinha e Ultramar que dispunha de 1512 homens capazes de pegar em armas264. Como a população aldeada da capitania era de cerca de 5500 pessoas na época, sendo a população branca provavelmente inferior a um décimo desse total, era obviamente com os índios que o governador contava para apoiar o reduzido efetivo da tropa de linha (223 homens)265.

3.5 Índios no governo da República

Como vimos no capítulo 1, as Leis de Liberdade estabeleciam que o governo temporal das povoações ficaria a cargo dos próprios índios. A vida urbana e policiada, esperava o legislador, permitiria a integração dos índios, em um experimento que apresentava algumas continuidades e muitas inovações em relação ao antigo sistema das missões. É por isso que, como relata o primeiro governador da capitania de São José do Rio Negro, Joaquim de Mello e Póvoas, Mendonça Furtado levou três meses e meio para viajar de Belém a Barcelos, fundando vilas e instalando câmaras e nomeando seus oficiais índios por todo o caminho.266 Seu sobrinho Joaquim de Mello e Póvoas, governador do Rio Negro, continua o empreendimento cívico-urbanístico de civilização: ordena que o capitão engenheiro Felipe Sturm faça simultaneamente o “risco” (o plano) das vilas de Borba, de Serpa (Itacoatiara) e Silves. Na primeira,

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1767, Agosto, 10. OFÍCIO do [governador do Rio Negro, coronel] Joaquim Tinoco Valente para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado. AHU_CU_020, Cx. 2, D. 143. 265 AHU_CU_020, Cx. 2, D. 158. 266 Carta a Thome Joaquim da Costa Corte Real, Barcelos, 4/7/1758 (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 99).

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Mendonça Furtado tinha instalado a Câmara recentemente. Nas outras duas, Mello e Póvoas instala a Câmara (MELLO E PÓVOAS, 1983, p. 153). Em todas elas, há oficiais índios. Em 1774, foram eleitos para a Câmara da Vila de Ega ao menos um branco casado com índia e um índio (Eliseu, eleito Procurador da Câmara). O principal Francisco Xavier de Mendonça, o branco Vitoriano Francisco da Rosa Lobo (que seria diretor de 1776 a 1780), João da Silva, sem indicação étnica, Jacinto Antônio, branco, o alferes Marcos de Araújo e o Capitão Brás da Silva, índio, eram os eleitores267. Para 1776 foram eleitos para Juizes Francisco de Freitas, e o Cappitão Calisto de Menezes, vereadores Luiz Lupo [Lobo], Vitoriano Francisco da Rosa Lupo [Lobo], e Vitoriano da Silva, o qual este por ser falecido elegerão os officiaes em seu lugar ao Alferes Marcos de Arahujo, e para Procurador o Principal Romé de Morais268.

Além deste último, o capitão Calisto era índio. Em 1777, seriam eleitos “juízes Filipe Coelho e o Alferes Damásio Pereira; Vereadores Ascenso Rodrigues Chaves, José Gomes Roldão, o Índio Principal Romé de Moraes, e para procurador Jacinto Pinto”269. José Gomes era casado com uma índia270. Damásio, segundo uma relação de casas tomadas pelas partidas portuguesa e espanhola, era índio 271. Ascenso,

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Cópia de um termo de abertura de hu Pilouro das Justiças que hão de servir no Anno de mil setecentos e setenta e cinco. Archivo do Amazonas, anno 1, volume 1, n.o 1, Manaus, 23/7/1906, p. 9. As classificações étnicas foram obtidas cotejando esse documento com o Mapa das Famílias (AHURio Negro, cx. 8, doc. 355. AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509) e o Requerimento dos moradores de Ega sobre o pagamento dos alugueis das casas tomadas pelas comissões de limites (AHU-Rio Negro, cx. 8, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 8, D. 346). 268 Cópia de um termo de abertura de hu Pilouro das Justiças que hão de servir no Anno de mil setecentos e setenta e seis. Archivo do Amazonas, anno 1, volume 1, n.o 2, Manaus, 23/10/1906, p. 41. 269 Cópia de um termo de um termo de posse e juramento que tomarão os officiaes da câmera nova que servem neste ano de mil setecentos e setenta e sete. Archivo do Amazonas, anno 1, volume 1, n.o 2, Manaus, 23/10/1906, p. 44. 270 AHU_Pará CU_013, Cx. 45, D. 4100. 271 AHU-Rio Negro, cx. 8, D. 6 AHU_CU_020, Cx. 8, D. 346.

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segundo o Mapa das Famílias de 1778, era mameluco e pobre. Jacinto Pinto, além do nome infeliz, foi classificado como “branco” pobre, cabo de esquadra auxiliar e cabo de canoa no Mapa das Famílias. Nos anos de 1778, 1799, 1802 e 1803 os nomes se alternariam nos cargos camarários da Vila, com alguns acréscimos e algumas perdas (como a morte do principal Francisco Xavier de Mendonça em 1778). Essa era a “nobreza e povo” da Vila de Ega, no Solimões, um retrato da nova sociedade que se formava no norte da América Portuguesa. Com a possível exceção de Barcelos (e, naturalmente, das câmaras mais antigas do Pará, como Belém, Cametá e Vigia), as câmaras do Estado poderiam ser consideradas como “rústicas”. Segundo o ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, em 1775 nem a capital nem qualquer vila do interior da capitania do Rio Negro possuía prédios da câmara e cadeia, falta na verdade prejudicialíssima ao bem da administração da justiça; e falta universal em toda a Capitania; porque em nenhuma villa da mesma se acha huma cadea; o que he incommodo aos povos ; sendo necessário executar as prisões, ou na fortaleza, ou no calabouço desta villa, que aliás bastaria que fossem feitas nos próprios lugares dos delinqüentes. Accrecendo a isto o pouco respeito, que por este motivo, tem ás justiças ordinárias, faltando-lhes o fundamento da coacção, em que elle se estriba (SAMPAIO, 1856 [1775], p. 129).

Mesmo com minguadas rendas e com a superposição (que podia ser às vezes conflituosa) com o Diretor, as Câmaras das vilas do Diretório parecem ter funcionado regularmente. Mas com o fim do Diretório em 1798, parece ter havido uma inflexão. Em 1799 só consegui identificar um índio entre os oficiais camarários; em 1800, nem um, em 1802, apenas um. A crer-se no Cônego André Fernandes de Souza, tanto as câmaras enquanto instituições de autogoverno quanto o princípio da igualdade entre vassalos brancos e índios parecem ter caducado junto com o Diretório: José Joaquim Vitório

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da Costa, governador do Rio Negro de 1806 a 1818, obteve do governo de Belém o direito de arrecadar as fintas272 de farinha, pagando os lavradores, além dos dízimos, de três alqueires de farinha um à fazenda real [...]. Para arrecadar estas fintas erigiu as villas e lugares em comandâncias militares, em despeito dos corpos municipaes a que chamamos camaras, um dos mais belos monumentos dos nossos maiores (SOUSA, 1848, p. 475).

Dessa forma, nas palavras do memorialista, os comandantes militares moviam “a massa de trinta povoações” de acordo com sua vontade. Em uma atmosfera que Souza descreveria como de opressão geral, cheia de “intriga” e “calúnias”, começaram os conflitos entre os comandantes militares, camaras e moradores pacíficos, de que foram victimas alguns dos últimos, como Jose Antonio Pinheiro, juiz da Fonte Boa, o qual morreu lançando sangue das pancadas que o comandante de Ega, José Coelho de Abreu, lhe deu; os índios Raimundo de Nogueira, o filho do capitão Calisto de Ega, que logo morreram das rodas de páo; outros com efeito escaparam com sangrias e soldas que tomaram. O sucessor d’este comandante, o capitão de primeira linha Francisco Videira Zuzarte, bem se distinguiu com as prisões de calabouço, ferro e golilhas, castigos extraordinários nos vereadores da câmara da villa de Ega (SOUSA, 1848, p. 477).

Nenhum dos oficiais indígenas ou camarários (índios ou não) parecia estar a salvo das arbitrariedades dos últimos governadores da capitania, a crer-se no Cônego Souza. A experiência do autogoverno indígena e do enobrecimento dos oficiais tapuios parecia ter chegado ao fim.

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Segundo o Cônego Souza, essas fintas teriam sido recolhidas de 1808 a 1820 na capitania. De acordo com Bluteau, finta era “Tributo, que se paga ao Príncipe do rendimento da fazenda de cada súbdito. [...] Costumão os Príncipes pôr fintas em ocorrência de alguma necessidade, ou utilidade, como quando he preciso fazer guerra, fabricar huma ponte, ou outro edifício público, & cada hum está obrigado a contribuir segundo a fazenda, que possue” (BLUTEAU, 1716).

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Considerações Finais

Em janeiro de 1781, o matemático Lacerda e Almeida, em diligência do serviço real, passou pelo rio Branco e entabulou uma conversa metafísica com um índio principal, na maior povoação do rio, organizada pelos portugueses seis anos antes: Portamos pelas 7 h., e chegamos a povoação de N. Sr." do Carmo pelo meio dia, Andamos neste dia 2 ½ legoas. Consta esta povoação de 116 Indios de varias Nação [sic] Separás, Tipiquás, e foi estabelecida no anno de 1775. Os Indios são bem feitos, e esta é uma povoação das d’es te rio, em que ha menos preguiça, e em que se achão rapazes com mais alguma luz da doutrina Christã. Tinha por principal um homem bem feito, e de uma presença de espirito agradavel: e indagado por alguns principios da Religião que seguião nas suas terras, respondeo que os bons depois de mortos hião ter muitas mulheres, e os máos hião para uma cova muito funda em que havia muito fogo. De que se collige que estes selvagens sempre tem a crença da immortalidade d’alma, e a recompensa do mal e do bem. Costumão ter muitas mulheres, de que se servem indiferentemente, mas uma d’ellas sempre tem um modo de imperio sobre as outras .

A catequese deixara marcas, mas os índios Sapará reinterpretavam as influências culturais portuguesas no quadro de suas próprias tradições e visões de mundo. Negociaram o descimento voluntário para uma localidade distante algumas centenas de quilômetros do lugar de origem, cooperavam com trabalho para a economia e a defesa dos domínios portugueses, como índios Sapará. O conteúdo de sua cultura transformava-se, mas mantinha-se singular e distinto. Não é trivial que hoje 98% da extensão de todas as terras indígenas e 42% da população indígena do Brasil estejam na Amazônia Legal273, no território que

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CHIARETTI, Daniela. Mais de 98% das terras indígenas ficam na Amazônia Legal. VALOR, 6/6/2012. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/520747-mais-de-98-das-terras-indigenasficam-na-amazonia-legal . Acesso em 21/1/2016. Ver também https://pib.socioambiental.org/pt/c/terrasindigenas/demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis

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corresponderia aproximadamente aos limites do antigo Estado do Grão-Pará. 150 línguas de 50 famílias linguísticas ainda são faladas na Amazônia Brasileira, o que a torna uma das regiões com maior diversidade linguística no planeta (RODRIGUES, 2003) mesmo depois de 400 anos de drástica redução populacional e políticas assimilacionistas. A demografia e correspondente correlação de forças entre índios e não-índios, ou a geografia da região, que poderia ter dificultado o acesso e a exploração econômica, não podem explicar por si mesmas a diferença qualitativa entre a marcante presença ameríndia na região e as difíceis condições de vida dos índios em outras partes do Brasil atualmente. Ao contrário do que imagina o senso comum, não é o isolamento social ou geográfico que explica a manutenção da diversidade étnicocultural (BARTH, 2000, p. 26). As notícias sobre “povos isolados” na Amazônia causam periodicamente sensação no público em geral, mas mesmo esses grupos mantinham desde sempre relações com outros grupos. O que salta aos olhos, porém, é a manutenção de fronteiras étnicas apesar de séculos de interação. Após a independência e a adesão do Grão-Pará ao império do Brasil, sucessivas ondas catastróficas abateram-se sobre as populações indígenas. A maioria das câmaras de vilas indígenas, bem como a própria capitania do Rio Negro, foram dissolvidas na década de 1820. A Cabanagem e o terrível massacre que se seguiu, de proporções próximas às de um genocídio; a subsequente instituição dos “corpos de trabalhadores”, que eliminava na prática a igualdade entre índios e brancos em pleno segundo reinado; a lei de Terras de 1850 e as investidas dos governos locais sobre as terras das populações indígenas; a migração maciça de nordestinos para as províncias do Pará e Amazonas nas décadas do auge da borracha, levando os índios a passarem de maioria a minoria (MOREIRA NETO, 1988) e transformando o idioma

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português, pela primeira vez, em idioma hegemônico na região (FREIRE, 2011); a onda de usurpação das terras indígenas após a Constituição de 1891 (SANTILLI, 2001) e os sucessivos projetos de “integração nacional” cobraram seu preço em termos de etnocídio, discriminação e perda de direitos. Ainda assim, numerosas etnias que conviveram com o domínio português resistem até hoje: Macu, Macuxi, Wapixana, Atroari, Baré, Baniwa e muitos outros continuam forjando suas próprias histórias, a história da região e do país. Demografia, geografia e história política formam uma trama intrincada e indissolúvel na interpretação dessa realidade. A própria interação social não fez esmaecer as fronteiras étnicas, mas se organizou, ela própria, nos termos dessas fronteiras étnicas, que organizaram um sistema social. No período colonial, estruturando uma economia dual – uma economia natural articulada a um pequeno setor exportador; hoje, depois da população indígena ter chegado ao ponto mais profundo da retração demográfica no século XX, assistimos a uma reafirmação das identidades étnicas, em um quadro de direitos constitucionais atribuídos aos índios. Mas é inegável que a mestiçagem intensa forjou novas identidades não-indígenas. Como acontece com todo clássico, podemos extrair alguma sabedoria de um grande historiador tradicional como Arthur Cézar Ferreira Reis, limado de seus excessos lusófilos, apologéticos e ufanistas. O projeto de Mendonça Furtado, Pombal, Ataíde Teive e Lobo D’Almada, heróis de Ferreira Reis, um erudito amazonense, apaixonado na vertigem das fontes como um Michelet, realmente deixou marcas na formação da sociedade amazônica contemporânea. As simplificações e a unilateralidade de perspectiva de uma historiografia “lusitanocêntrica” perderam terreno, como sói acontecer, para outros reducionismos que muitas vezes foram unilaterais na denúncia contra a opressão colonial. A violência inerente aos processos

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históricos coloniais é evidente demais para ser negada, mas o viés denuncista pode ser tão prejudicial quanto o viés apologético pois, paradoxalmente, reduz o protagonismo dos indivíduos e grupos nativos. O ensinamento de John Monteiro foi confirmado pelo exame direto das fontes: os índios não se apropriaram apenas de novas ferramentas e armas, mas também “dos símbolos e dos discursos dos brancos para buscar um espaço próprio no Novo Mundo que pouco a pouco se esboçava” (MONTEIRO, 2001, p. 76). As fontes trouxeram mais complexidade ao quadro interpretativo. Os diretores sempre foram apontados como os grandes vilões, forasteiros sem vínculos com as comunidades dirigidas, dispostos a extrair impiedosamente o maior ganho possível do trabalho indígena, mesmo à custa de fome e morte por exaustão de seus tutelados. Em última instância, foram responsabilizados pelo fracasso do Diretório. Nenhuma fonte do período ousa defender o conjunto dos diretores, limitando-se a apontar alguns indivíduos que se destacavam por desempenhar corretamente as duas funções (FERREIRA, 2007; SAMPAIO, 1825). As metas da legislação reformista eram por certo muito ambiciosas, e a lentidão ou a insuficiência das transformações causava ansiedade nos agentes régios que produziram os relatos da época. Olhando mais de perto as fontes, no entanto, percebemos que vários dos diretores indicados eram homens brancos casados com índias, inseridos em redes de alianças duradouras que se formaram no rio Negro. Uma imagem muito diferente da generalização dos diretores como abutres gananciosos que procuravam predar o máximo possível para acumular algo e sair rapidamente de cena. Ao contrário, esses homens se estabeleceram na região e lá viveram por décadas (presumivelmente até o fim de seus dias), dependendo quase que inteiramente das boas relações com as famílias de suas esposas e outras famílias indígenas. Como vimos, eles não tinham cabedais para

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adquirir escravos africanos e Rodrigues Ferreira mostrou que as alianças matrimoniais eram decisivas para conseguir braços para o trabalho agrícola. Pudemos verificar que, 20 anos depois das Leis de Liberdade, as taxas de natalidade e mortalidade da população aldeada na década de 1770 não eram muito diferentes daquelas da população total. Com efeito, elas garantiam crescimento vegetativo e sustentabilidade. Vimos também que a arbitrariedade e flexibilidade da classificação étnica eram estratégicas para as relações entre índios e não índios, permitindo tanto o apagamento das origens indígenas de alguns quanto a manutenção das fronteiras étnicas para outros, até os dias atuais. Enfim, a tendência de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu não apenas como instrumento de dominação, como também de parâmetro para a sobrevivência étnica de grupos indígenas, balizando uma variedade de estratégias geralmente enfeixadas num dos pólos do inadequado binômio acomodação/resistência (MONTEIRO, 2001, p. 58).

Ao lado da manutenção de algumas fronteiras étnicas e da formação e dissipação de outras, vimos a formação de um extenso, contraditório e elusivo setor mestiço, no qual cafuzos podiam metamorfosear-se em mamelucos, índios podiam se tornar brancos ou mamelucos e mamelucos podiam ser brancos ou não ter cor. Inerente à formação das novas sociedades em tantas partes da monarquia pluricontinental, para as quais os portugueses viajavam mas não as portuguesas, a mestiçagem é tão complexa e contraditória quanto essas novas formações sociais. O indivíduo mestiço podia valer-se de ambas as heranças, materna e paterna, atuando como intermediário, mas podia sofrer com o estigma da origem materna. Podia esquivar-se desse estigma, em determinadas circunstâncias, ou podia travar uma

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guerra desesperada para ser aceito pelo grupo paterno, socialmente dominante e prestigiado, mesmo à custa do povo materno, como bandeirante, como traficante de escravos. Boxer cita o depoimento de um frade italiano em Angola no final do século XVII: “Odeiam os negros mortalmente, até mesmo suas mães que os tiveram, e fazem tudo o que podem para igualar-se aos brancos, o que não lhes é permitido, não tendo eles nem permissão para sentar-se em presença deles” (BOXER, 1967, p. 65). Diversas normas na América Portuguesa, em diferentes épocas e lugares, restringiam direitos de determinados grupos de mestiços como o acesso a cargos camarários em Minas Gerais (1726), às escolas jesuíticas na Bahia (1680), à Ordem dos Carmelitas Descalços de Olinda etc. (BOXER, 1967, p. 150-152). Acredito que esses fatos aumentam a importância da experiência das Leis das Liberdades no período estudado.

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