Refugiados, Dignidade e Trabalho.

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REFUGIADOS, DIGNIDADE E TRABALHO. Tiago Leão de Castro Monteiro1

O ano de 2015 pode ser comemorado como aquele em que a sociedade acordou para antiga problemática dos refugiados. O lado bom desse começar a pensar é, em primeiro lugar, o reconhecimento da existência de pessoas em situação de imperiosa precariedade em sua autonomia, esta que a nós humanos não é uma dádiva constantemente concedida. Em segundo lugar, por trazer os olhos da sociedade à miséria alheia, trabalhadores humanitários aproveitam os poucos espaços abertos, outrora quase inexistentes, para demandar ao Estado maior atenção e maiores investimentos no atendimento às populações refugiadas. O lado ruim consiste na imaturidade da sociedade para analisar fenômenos sociais, atinente, considero, a qualquer descoberta – como podemos atribuir à (re)descoberta da política a partir de junho de 2013 no Brasil –, que já vem dando indícios de comportamentos e discursos aqui nunca vistos, ao menos abertamente. A outrofobia é traço de qualquer civilização. Entretanto, historicamente infrequente no Brasil, a xenofobia, tão comum nos países desenvolvidos, finalmente mostra a cara. E é possível conferir à essa chegada alguns fatores, como a atratividade do país aos migrantes econômicos – atribuível ao desenvolvimento econômico do país nos últimos 15 anos –; as consequências nefastas do neoliberalismo desenfreado pelo mundo adentro e a fora; a ideologia governamental de abertura dos portos aos refugiados e haitianos (que não são considerados refugiados, como será explicado); as redes sociais; a ignorância e o surto de nacionalismo. Para piorar, o Brasil vive hoje imensa crise política e econômica (e moral). No Brasil, a legislação sobre refúgio é considerada pelos teóricos como boa e atende as demandas históricas da ONU – salvo a nova demanda de inclusão no rol de refugiados das pessoas que se deslocam em razão de catástrofes naturais ou econômicas. Haitianos foram uma exceção à regra. Uma benesse humanitária concedida pelo Poder Executivo Federal e aplaudida internacionalmente. O Representante do ACNUR Brasil, Andrés Ramires2, que chegou ao país em 2010, ano do início do boom migratório, ponderou que o Brasil hoje é 15º país (entre os 44 mais desenvolvidos) em números de refugiados em uma conjuntura global de aumento do número de solicitações de asilo. O oficial da ONU parabenizou o Brasil pela avançada legislação protetiva dos direitos do refugiado, ressaltando que o único direito que a este é negado é o político. Ressaltou ainda a necessidade de implementação das políticas de integração existentes no Estado do RJ e do Plano Nacional de Integração do Refugiado. Similar demanda3 foi feita em 2011 na Itália pela Dra. Dr Lê Quyên Ngô Dình4, que foi diretora da Caritas Roma5, porém hoje se percebe poucos avanços naquele país. Recentemente o Primeiro Ministro da Itália Matteo Renzi6 reiterou seus pedidos de ajuda à União Europeia no acolhimento aos refugiados, todavia, até o momento, ignorado. Mas quem são os refugiados? Refugiados são internacionalmente conceituados a partir de instrumentos jurídicos ratificados pelos Estados, por via da ONU, e sua predecessora Liga das Nações. Os principais instrumentos são a Convenção de 1951, o Protocolo de 1967 e a Declaração de Cartagena de 1984. No Brasil, o instrumento jurídico responsável por conceituar refugiados é a Lei 9.474 de 1997, mais conhecida como Estatuto do

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Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Em evento promovido pela Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região na semana que antecedeu o Dia Mundial do Refugiado em junho de 2015. 3 Sobre alojamentos e direitos: "If you get one of those, you get good care. But if not, you are on the street … You have the rights, but because the Italian welfare system is so weak – they are just rights on paper." 4 Falecida em 2012 em um acidente de trânsito em Roma. 5 Counselling Centre for Immigrants of the Diocesan Caritas of Rome 6 Matteo Renzi - The Mediterranean migrant emergency is not Italy’s. It is Europe’s. http://www.theguardian.com/commentisfree/2015/jun/23/mediterranean-migrant-crisis-not-italy-buteurope?CMP=EMCNEWEML6619I2 2

Refugiado. O conceito foi elaborado com base nos ditames convencionais internacionais – praticamente uma tradução do estatuto do ACNUR. Em seu primeiro artigo, o Estatuto define que refugiado será aquele que fundadamente se sinta perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, não querendo ou não podendo retornar ao seu país, já se encontrando em território brasileiro. E ainda, aqueles que fugindo de grave e generalizada violação de direitos humanos em seu país buscarem refúgio no Brasil. Por não ser o objeto do presente artigo, vou me abster de tecer maiores comentários sobre a interpretação destes conceitos que, por parte da doutrina, apesar de seu destaque positivo, já é considerado atrasado e insuficiente às atuais demandas humanitárias. O CONARE7, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e responsável por decidir sobre as solicitações de refúgio, meramente declara a existência de uma condição – a de refugiado. Desta forma, mesmo ainda enquanto solicitante de refúgio, o Estado dispende tratamento equivalente ao do já declarado refugiado, permitindo ainda que o mesmo solicite expedição de documentos como Carteira de Trabalho e CPF. Ou seja, o refugiado, declarado ou ainda solicitante, pode trabalhar legalmente no Brasil. Desde o momento em que o estrangeiro, em solo nacional, se declara refugiado já passa a valer o Princípio do Non-Refoulement, que impede a “devolução” do refugiado ao país de anterior passagem ou de origem, ou qualquer tipo de expulsão, e o Princípio Protetivo, que prenuncia uma rede de políticas de proteção e inclusão social para refugiados e solicitantes capitaneada por entidades governamentais e não governamentais. O refúgio é o único caso em que o estrangeiro possui o direito público subjetivo de entrar no território brasileiro, ou seja, o estrangeiro é autorizado a entrar no país mesmo sem documentos, ou portando documentos falsos. Deferida a solicitação de declaração da condição de refugiado, todos os procedimentos relativos à sua entrada no território serão extintos. Isso vale para processos de extradição também. Estes procedimentos ficam suspensos a partir do momento da solicitação e são extintos a partir da declaração do status. Estimativas de especialistas revelam que, até o final de 2015, teremos cerca de 15 mil refugiados declarados em terras brasileiras8. Em 20149, o CONARE proferiu decisões em 2.20610 casos, sendo 1.952 deferimentos (e 46 reuniões familiares11). No mesmo período, a população de refugiados no Brasil alcançou 7.289 pessoas e o número de novas solicitações de refúgio chegou a 8.302, dividas em 44 diferentes nacionalidades. Agora vejamos a evolução dos trabalhos do CONARE ao longo dos anos. O número de deferimentos aumentou drasticamente desde 1998, começando em meros 20 deferimentos, até 2014, quando alcançou 1.952 deferimentos.

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Comitê Nacional para os Refugiados Informação obtida (aproximadamente em maio de 2015) durante o período em que trabalhei como voluntário no setor de pesquisa da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro – entidade da sociedade civil que promove assistência aos refugiados no âmbito do estado do RJ. 9 Até outubro. 10 Site do CONARE 11 Instituto jurídico que permite que familiares do já declarado refugiado aproveitem a decisão de deferimento sem exame de mérito. 8

1998 20 2003 77 2008 106 2013 648

1999 168 2004 157 2009 275 201412 1952

2000 469 2005 226 2010 124

2001 115 2006 233 2011 103

2002 112 2007 355 2012 207

Os números brasileiros são considerados quase irrelevantes se comparados com Europa, EUA e Austrália. Mesmo assim, o aumento das solicitações – de grande maioria legítima – implica na reciclagem das ideias e na criação de novas políticas de acolhimento. Vejamos o quadro abaixo, que indica o aumento exponencial de solicitações de refúgio ao CONARE e evidencia o enunciado. Ano

Solicitações

2010

566

2011

1138

2012

2008

2013

5882

13

2014

8302

No ano de 2010, apenas 566 novas solicitações foram feitas. Em 2013 o número foi aproximadamente 10 vezes maior, e é possível, segundo relatos de profissionais da Cáritas RJ, que esse número tenha dobrado até o final de 2014 em relação ao ano de 2013. A urgência do repensamento é ululante e a questão principal é compreender que não se trata meramente de refugiados, mas sim de pessoas humanas, que têm necessidades e demandas. De modo a ilustrar o atual cenário, colacionei a tabela abaixo (elaborada com dados fornecidos pelo ACNUR14 e pelo CONARE) que indica as principais nacionalidades dentre os refugiados reconhecidos no Brasil. É possível notar que o Haiti não aparece na tabela. Como já dito antes, e posteriormente será explicado, os haitianos não se enquadram no conceito jurídico nacional de refugiado. Refugiados reconhecidos Principais países (até outubro de 2014) Síria 1524 Colômbia 1218 Angola 1067 RDC 784 Líbano 391 Libéria 258 Palestina 263 Iraque 229 Bolívia 145 Serra Leoa 137 12

Até outubro. Até outubro. 14 ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Em inglês, UNHCR – United Nations High Commissioner for Refugees. 13

A população de refugiados no Brasil, até outubro de 2014, alcançou 7.289 refugiados já reconhecidos, ou seja, que obtiveram decisão de reconhecimento da condição de refugiado por alguma via (deferimento ou reunião familiar). Um quarto desse número corresponde a mulheres. No total, são 81 nacionalidades. As maiores populações são da Síria, Colômbia, Angola e República Democrática do Congo (RDC). No Rio de Janeiro, ao final do ano de 2013, segundo dados do ACNUR, havia 1.899 pessoas consideradas dentro do conceito de Population of Concern15, sendo que, do número total de pessoas, 89,63% eram adultos (entre 18 e 59 anos), 8,21% tinham menos de 18 anos e apenas 33,07% do sexo feminino. Essa conjuntura, destarte, está em movimento, em processo de renovação. Em 2012, seguindo orientação global do ACNUR, foi adotada medida de cessação de refúgio aos angolanos e liberianos. Foi, entretanto, proferida portaria16 e estes outrora refugiados estão sendo agraciados com visto de residência permanente no país. O caso dos haitianos é paradigmático, porém será analisado em conjunto neste trabalho. Os migrantes haitianos não são considerados refugiados pela Lei por terem fugido de uma situação econômica, agravada por catástrofe natural – o terremoto de 2010 que devastou o país. A partir de 2011, o Governo Federal brasileiro, através do Conselho Nacional de Imigração (órgão vinculado ao Ministério do Trabalho), passou a conceder visto humanitário de residência aos haitianos que pediram refúgio. Mesmo não sendo propriamente, ou melhor, legalmente refugiados, os haitianos vivem em situação rigorosamente igual à dos refugiados, sofrendo das mesmas dificuldades e estigmas. Evitando preciosismo de enquadramento jurídico, vou considerá-los refugiados até o final deste artigo. A crítica anteriormente suscitada à atual legislação brasileira, que acompanha os instrumentos internacionais, é evidenciada no estudo dos haitianos no Brasil. Existe efetivamente uma fuga em massa do país, se não por receio de perseguição, em razão de suas vidas estarem em iminente perigo, dada a total insuficiência das instituições estatais no Haiti. A situação lá ainda é catastrófica, mesmo com toda a ajuda externa recebida, inclusive do governo brasileiro. Tem início, ao ultrapassarem a fronteira brasileira (o que pode levar meses), uma nova fase da longa estrada da salvação dos refugiados. Eles, agora, precisam buscar os caminhos da legalização e do estabelecimento. Necessidades básicas como habitação e alimentação são suas preocupações primeiras e, no Rio de Janeiro, são auxiliados pelos valorosos esforços dos funcionários e voluntários da Cáritas RJ e outras entidades, como o Viva Rio. Após o mínimo de sobrevivência, outra batalha se inicia, em concomitância com a anterior: a inserção cultural, social e econômica. Esta é a questão primordial deste artigo que, despretensiosamente, não propagandeia soluções, mas brevemente propõe análises. No decorrer dos meus estudos, em parte e inicialmente, de imersão para a pesquisa de dissertação de mestrado, observo a experiência dos refugiados no âmbito da região metropolitana do Rio de Janeiro com respeito às demandas de inserção cultural, social e econômica e às políticas públicas e projetos com estes objetivos. Os estudos vêm se mostrando profícuos para a construção de uma análise crítica e propositiva sobre as razoes pelas quais, até o momento de elaboração deste artigo, se discutem vários projetos de inclusão.

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Pessoas dentro da esfera de preocupação da ONU. Não necessariamente refugiados, porém em situação de deslocamento forçado. Até o momento da concepção deste artigo, infelizmente pende há alguns meses uma solicitação ao CONARE, reiterada diversas vezes e por diversas vias, de disponibilização de estatísticas dos seus trabalhos. Meu intuito, entre outros, é coletar informações sobre as populações refugiadas no estado do Rio de Janeiro e realizar pesquisas e outros trabalhos. 16 Ministério da Justiça nº 2.650 (de outubro de 2012).

REFUGIADOS SÃO PESSOAS O substantivo refugiado possui conotação quase pejorativa. Como se um adjetivo negativo. Há uma tendência em pensar o refugiado como um ser famélico, miserável e digno de pena. Como se não dotasse de condição alguma de autossubsistência e autodeterminação. Isso se dá ao longo das instâncias de defesa dos direitos dos milhões de migrantes forçados, nas quais, em primeira linha, têm como necessária virtude a de chamar a atenção daqueles que, detendo maior poder de mudança das estruturas que as próprias vítimas, se não se encontram em estado de fortuna, ao menos vivem (e não sobrevivem) em sociedades minimamente estruturadas. Ou seja, não sofrem risco de perseguição de seus governos e/ou podem contar com sua razoável proteção. São, portanto, na medida do possível, bombardeadas com imagens chocantes de seres humanos em estado lamentável. E assim precisa ser, caso contrário não há mobilização alguma. É preciso, infelizmente, apelar ao coitadismo. Mas deve haver um limite. Esse limite deve estar no âmago de quem trabalha e pesquisa refugiados. Acima de tudo há que ser pragmático. É óbvio que a empatia é razão primordial de todo o esforço, mas quem busca efetividade e eficácia no trabalho precisa dar atenção ao pragmatismo mínimo. Evitar moralismos. Sem transcendentalismos, o objetivo aqui não é agradar. É salvar vidas, em princípio, e disponibilizar insumos materiais e imateriais para a reconstrução de vidas. Vida salva e estabelecida a segurança contra perseguições do governo do país de nacionalidade: E agora? Há muito se imaginava um campo de refugiados cujo objetivo era sobreviver ao tempo sob orçamento do ACNUR-ONU e, assim que possível, repatriar os migrantes. O eterno Sergio Vieira de Melo, como relatado em sua biografia, movia mundos e fundos para possibilitar o retorno aos seus lares das centenas de milhares de refugiados sob sua tutela. Sergio manejou, por exemplo, uma reunião no interior de floresta cambojana com os líderes do Kmer Rouge, grupo político violentíssimo e armado responsável pela morte de milhões de pessoas no Camboja, da qual logrou êxito em negociar com os líderes genocidas o retorno dos refugiados aos seus lares. Há que se observar, com efeito, que tratamos de vidas humanas e, no Brasil, que tem seu território considerado na integralidade pela ONU, com anuência do Estado, como se um imenso campo de refugiados fosse, o refugiado vai necessariamente se integrar à sociedade. Cabe às políticas aplicadas (ou não) determinarem como será essa integração. O governo, de modo geral, autoriza a estada, permite o trabalho e o acesso a algumas instituições (hospitais, por exemplo) e só. Para alguns poucos e em situação de maior urgência, há pequenos auxílios do CONARE e do ACNUR, que, no Rio de Janeiro, são repassados aos cuidados da Caritas RJ, que repassa a escolhidos. Valor que ajuda na sobrevivência de mães com filhos pequenos, mas não garante sequer a moradia. Há planos de políticas de suporte, mas aplicação de políticas públicas não é o forte do Brasil. A eloquência do status de refugiado diferencia as pessoas na prática, no sentido de garantir-lhes acolhimento. Porém traz consequências. Não apenas reforça o coitadismo, mas também pode subtrair o sentimento de pertencimento. Segundo Emma Haddad, a identidade do refugiado é forjada precisamente pela sua falta de pertença, seu status de ‘outsider’ e sua posição ‘entre’, ao invés de ‘fazendo parte de’, estados soberanos. Daí a importância da integração. Questão migratória é assunto delicado em qualquer ordem jurídica. Vide a recente rejeição de praticamente toda a Indochina aos refugiados bengalis e birmaneses, de etnia muçulmana Rohingya, à deriva no Mar Andamão. É preciso, portanto, trabalhar os aspectos identitários do refugiado, de modo que ele não apenas mantenha sua original cultura, língua, costumes, mas que não encontre dificuldades na busca dos recursos próprios do alcance da sua dignidade e inserção em novos grupos sociais. O Professor Marcus Fabiano Gonçalves, com apoio em seus estudos do filósofo Ernst Tugendhat, afirma que a inclusão social se dá através da possibilitação de acesso da pessoa a oportunidades capacitantes, ou seja, mecanismos que moldem a intersubjetividade da pessoa ao ponto de naturalmente estar incluída nos sistemas moral e jurídico. A este conjunto de capacidades o acadêmico denomina Mínimo Ético e se destina ao desenvolvimento pleno da autonomia, em oposição à heteronomia.

O trabalho de (re)construção da identidade da pessoa ganha cores na sede da Cáritas RJ através de vários projetos integrados. Um deles, e o que julgo mais importante por lidar com crianças, é a Arteterapia17. Relataram os profissionais deste projeto que as crianças, de maioria entre 5 e 10, em seus primeiros encontros costumam estar muito agitadas, evitam a troca de olhares, ignoram diálogos e ordens (mesmo em seu próprio idioma) e demonstram individualismo exagerado, como no uso não compartilhados dos materiais e no descuido na utilização e manutenção destes e do ambiente. Os psicólogos afirmam, destarte, que em pouco tempo a dinâmica muda e as crianças começam a se adaptar, se tornam participativas e agem em cooperação, especialmente no auxílio às crianças “novas”. As crianças, na verdade, malgrado não necessariamente exteriorizarem claramente, são fortemente impactadas pelo deslocamento.

Na verdade, muitas das características acima também se revelam no trato com refugiados adultos. A questão da cooperação é seríssima no caso deles e duplamente vital. A cooperatividade é característica a ser adquirida desde a infância, segundo boa doutrina, porém a maioria dessas pessoas cresceu em condições limitadas em países subdesenvolvidos. Além disso, os motivos de sua fuga costumam gerar uma preocupação individualista natural, instinto de sobrevivência. Com efeito, ao chegarem no Brasil, é difícil abandonar aquilo que os manteve vivos até aqui, apesar de também ser questão de sobrevivência a vida em cooperação. O trabalho da Cáritas RJ é focado justamente no desenvolvimento da autonomia e da vida em comunidade. Além da Arterapia com as crianças, há projetos de ensino da língua portuguesa instrumental, com vias de permitir ao refugiado entrar na disputa do mercado de trabalho; artesanato, que se volta em especial às mulheres, a quem muitas vezes se delega nos países de origem as tarefas mais caseiras; e oficinas com o Grupo Teatro do Oprimido, que procuram desenvolver capacidades autonomizantes através do teatro.

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https://www.facebook.com/caritasrj/videos/404519436397444/ https://www.facebook.com/caritasrj/videos/402098453306209/

Voltando à cooperação e sua importância entre refugiados, como já suscitado, esta é questão de sobrevivência. Os refugiados novos devem se incluir nas já existentes redes de mútuo-auxílio e cooperação dos deslocados mais antigos e já alojados, e o comportamento individualista pode comprometer essa inserção, já que, como explica Marcus Fabiano, entre as comunidades há expectativa mútua de comprometimento com as normas morais e com o próprio sistema. Além disso, o parasitismo é repudiado com veemência ao ponto do desviante ser expulso da comunidade. Com efeito, de modo a se inserir, e se manter continuamente inserido, o refugiado deve atender às expectativas de cooperação, das quais inclui também fiscalizar a si e a outro, e se abster do parasitismo, ou seja, deve se abster de meramente extrair daquela comunidade, de apenas sugar seus benefícios, mas participar de uma rede de trocas contribuir. Uma das condições de se portar propriamente nessa rede de trocas é possuir certas capacidades que permitam ao indivíduo se posicionar em alguma ocupação, que normalmente se materializa no mercado de trabalho, segundo Amartya Sen. É claro, ao tratar de ocupação, não se exclui trabalhos voluntários e de pesquisa, ou seja, não é absolutamente necessária uma remuneração, mas uma identidade própria que surge de uma ocupação, a qual costumeiramente se dá através do trabalho. Inclusive, em pouco tempo pude perceber que a maior demanda entre os refugiados é por trabalho. Não se trata meramente uma questão financeira, apesar de sua natureza subsistencial, mas de autoestima, que consiste na aprovação interna e externa das condutas do indivíduo. Tratamos aqui dos papéis sociais do indivíduo que adentram sua esfera subjetiva a partir de processos de aprendizado social (HABERMASS, 1984), que o preparam para se apresentar nos diversos momentos e locais sociais, ao passo que a elaboração subjetiva destes papéis é constitutiva e complementar à formação de um self único, que será capaz de definir o indivíduo como tal. Giuseppe Cocco18 afirmou que um dos desafios para entender as migrações é enxergar no fenômeno o elemento liberdade e, para alguns imigrantes (refugiados aqui incluídos), o trabalho é visto como liberdade. A criação, reconstrução, ou adaptação, do self do refugiado é determinante ao seu processo de inclusão. Sobre a intersubjetividade dos refugiados, o Cardeal Dom Orani Tempesta19 bem ponderou que eles vivem nas “periferias existenciais da humanidade”. Essa periferia existencial, que pode ser caracterizada pelo sequestro de autoestima, empurra o refugiado para a marginalidade no sentido de estar fora do círculo da normalidade, ou seja, o refugiado naturalmente chega ao Brasil como um excluído, um empurrado para fora, um ser desviante. Howard Becker teorizou o ser humano como membro de diversos grupos sociais, e, dentro de cada um deles, há uma expectativa de comportamentos. Ou seja, a pessoa pode, com um mesmo ato, violar regras de comportamento em um grupo e reforça-las em outro, o que torna a adaptação para o recém-chegado imigrante muito mais complicada. Na verdade, Becker complementa, é possível que a pessoa considerada desviante não tenha sequer violado regra alguma, pois o processo de rotulagem não é infalível. Ataques xenofóbicos recentes exemplificam isso 20.

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Em encontro na sede da Cáritas no dia 06/06/2015. Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro. 20 Homem grava vídeo no qual acusa um haitiano funcionário de um posto de gasolina de participar de um conluio petista para “roubar” empregos. https://www.youtube.com/watch?v=fm-qD9mMDIU 19

Com efeito, a inserção social, econômica e política do refugiado se dá através da disponibilização de oportunidades capacitantes que, por sua vez, se destinam ao desenvolvimento da autonomia do indivíduo, em oposição à heteronomia, ou seja, a inserção plena se dá através do Mínimo Ético. É através dele que o indivíduo, o refugiado, aloca suas capacidades, entre as quais se inclui sua capacitação profissional, no fortalecimento de sua autonomia a ser exercitada em uma ocupação, no trabalho, e é no trabalho que a subjetividade é continuamente criada e recriada, forjada e adaptada, de modo a garantir, neste exercício, a dignidade outrora perdida. A positiva autoestima resulta dessa cadeia e de suas consequências na sua inserção e manutenção na rede de trocas. Felizmente, se comparando com realidade mais cruéis, o Estado brasileiro merece certo destaque em alguns quesitos. Charly Kongo, refugiado e também funcionário da Cáritas Arquidiocesana RJ, nasceu na República Democrática do Congo (e lá trabalhava como enfermeiro), país que eterniza um longo conflito civil armado, está no Brasil há 7 anos e é também uma espécie de porta-voz dos refugiados no Rio de Janeiro. Em suas falas, costuma valorizar as políticas de seguridade social no Brasil, afirmando que “vocês não têm ideia de sua importância”. Os poucos, em sua terra natal, que conseguem emprego, vivem com medo de perde-lo. Para o refugiado, a pobreza de lá é muito diferente da pobreza daqui. É louvável, portanto, que o Brasil receba refugiados, inclusive os haitianos (dentro do benefício já explicado), mas há urgência de recebe-los de uma forma geral, ou seja, disponibilizando o acesso as estruturas que proporcionem as oportunidades capacitantes necessárias ao advento da autonomia, sob pena de contar apenas com heteronomia, ou seja, com imposições de leis, políticas e medidas restritivas (ou populistas). O desafio é definir quais são as estruturas que levam o refugiado a entrar na normalidade, seja da rede de trocas dos próprios refugiados, da própria sociedade ou de representações estatais, e que consolidem sentimentos morais que identificam a participação na cooperação, e quais instituições21 cuidam dessa inserção social. E por instituições, me refiro não apenas às de estímulo externo, como as estatais e entidades da sociedade civil, mas também aquelas criadas e reinventadas dentro do universo dos refugiados e imigrantes na região metropolitana do Rio de Janeiro. A descoberta e análise destas instituições será objeto dos meus estudos e, em breve, será o foco de pesquisa etnometodológica, cuja construção, como parte de seu conjunto de métodos, consistirá em um breve esquecimento daquilo que venho aprendendo sob ótica externa a respeito dos aspectos culturais, sociais, econômicos, psicológicos e jurídicos, alguns brevemente apresentados neste trabalho, de modo a enxergar e compreender além dos horizontes limitados que a legislação e as políticas de integração existentes proporcionam. Ao final, o somatório de ambas experiências resultará em uma fotografia raio X sóciojurídica mais fiel, assim espero.

PROTEÇÃO INTERNA X HUMANISMO É comum no Brasil, e a academia não escapa disso, observar fenômenos brasileiros com olhos estrangeiros, logo sob perspectivas distorcidas. O fenômeno do refúgio é observado pelos olhos leigos como algo que pode gerar perigo interno. Entender o refúgio no Brasil como uma ameaça externa é um erro comum, porém crasso. As imagens dos barcos lotados de refugiados, alguns já à deriva ou naufragados, assustam duplamente. É assustadora a imagem de pessoas imigrantes passando fome e sede em busca de uma nova vida na Europa. Também é possível se espantar, sob o ponto de vista do europeu, com as eventuais e virtuais perdas na qualidade de seu estimado welfare no seu compartilhamento com outras centenas de milhares de pessoas. Esses dois receios, em terras brasileiras, se baseiam em duas premissas equivocadas. Essas pessoas não são meramente imigrantes. São refugiados fugindo da morte. Elas não buscam uma nova vida, buscam uma sobrevida. Charly Kongo afirma que na África e no Oriente Médio não há instituições jurídicas consolidadas e 21

Instituições aqui tem sentido não físico, mas representativo, como família, colégio, Estado e Igreja.

confiáveis, e no Brasil, mesmo com suas imperfeições, há. Em uma reunião que tive a oportunidade de participar, Charly emocionou os presentes ao afirmar que “nossa vontade de viver, de fugir, de chegar na Europa, é 10 vezes maior do que a vontade dos que querem nos impedir. Para nós, não é questão de buscar uma vida melhor, mas de buscar uma vida e fugir da morte”. Completou, “Nós não somos malucos. Nós vivemos com medo”. E os números confirmam as palavras de Charly. Apenas nos seis primeiros meses de 2015 1.867 pessoas perderam suas vidas na travessia do Mediterrâneo22. Existe uma falácia quase imperceptível nas propagações de notícias sobre a chegada em massa de pessoas na Europa via Mar Mediterrâneo. Elas são constantemente tratadas como imigrantes, quando, em verdade, são claramente refugiados (substrato do gênero imigrante) que foram forçados a abandonar toda a vida anterior em seus países de origem em busca de sobrevivência.

Globo.com – Fantástico BBC.com – 03/01/2015

El País – 18/04/2015

Na semana que precedeu o Dia Mundial do Refugiado23 em 2015 foram realizadas diversas atividades com refugiados. Em uma delas, um evento na Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, foi convidada a compor uma das mesas a Procuradora do Trabalho Cristiane Sbalqueiro Lopes, que explicou o citado equívoco de se tratar o fenômeno do refúgio como mera imigração. A diferença parece sutil, mas as consequências são graves. Na cultura das relações internacionais, assim como no direito internacional público, há tratamento bastante diferente entre migrantes econômicos e os chamados migrantes forçados, dentre estes aqueles que buscam refúgio. Nas palavras da procuradora, “o refúgio é uma ilha dentro de um mar de hostilidades ao movimento de pessoas”. Migrantes econômicos são, de modo geral, mal vistos pelos países. Refúgio é direito, migração é concessão, é ausência de direitos. Há, portanto, todo tipo de restrição a sua estada. O Brasil é um bom estudo de caso, haja vista seu o ordenamento jurídico que, no que concerne à imigração meramente econômica, não comporta muito espaço, porém é bastante aberto e flexível quando trata de refugiados. Recentemente, o escritório do ACNUR em Genebra anunciou que o Brasil é o campo mais fértil para o surgimento de propostas criativas na tutela do refugiado. Pensamento mais radical já circula no campo epistemológico acadêmico. Teóricos mais libertários já

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http://nacoesunidas.org/onu-crise-no-mediterraneo-completa-seis-meses-com-numero-recorde-de-refugiados-e-migrantes/ 20 de junho

admitem o fim das barreiras e defendem total liberdade de mobilidade, o que soa um tanto utópico, entendo, em dias tão confusos e turbulentos como os que vivemos. Tratar, portanto, refugiados como imigrantes é uma forma de eximir, a si e ao Estado, de conceder direitos àqueles que, em teoria, os deveriam deter e deles precisam. O refugiado, como já explicado, possui direitos – como os tutelados dentro das lógicas dos Princípios do Non Refoulement e o Protetivo. Os países europeus reconhecem o refúgio, inclusive por lá este instituto ter sido criado após a II Guerra Mundial. Da mesma forma que o Brasil, concedem direitos aos refugiados e enumeram empecilhos à migrantes econômicos. Logo, a questão gira em torno da interpretação dos casos concretos. Padre Mario, da Pastoral do Imigrante, critica o fato de em um mundo onde se considera normal e necessária a livre circulação de capitais, não se considera, porém, a livre circulação de pessoas. O acadêmico francês Yann Moulier-Boutang24, ressaltou que, interpretando os Acordos de Helsinque, tendo em vista haver um direito de sair (do país), também existe um direito de entrar em outro – o professor resume esses direitos ao Direito Humano de Migrar. A crise do deslocamento na Europa difere do Brasil em vários aspectos. Um deles é a histórica influência política, econômica e bélica sobre os países africanos, do oriente médio e alguns asiáticos, e a exploração dos seis recursos naturais que gera constante instabilidade as regiões. Não à toa, a maioria dos refugiados têm procedência do Oriente Médio e África, mais precisamente, Síria, Eritréia e Afeganistão. Logo, entendo, a Europa possui responsabilidade moral sobre as consequências de sua influência colonizadora, e não estou sozinho. Antônio Guterres, Alto Comissariado da ONU para Refugiados, afirmou em julho de 2015 que “a Europa tem uma clara responsabilidade de ajudar aqueles que buscam proteção por causa de guerras e perseguições. Negar essa responsabilidade é ameaçar os fundamentos básicos de humanidade que o sistema europeu trabalhou duro para construir. Os países europeus devem assumir sua parcela na resposta à esta crise de refugiados, tanto em seus territórios como fora deles”25. Outro aspecto se refere às disposições geográficas da Europa se as comparando com a quantidade de refugiados que lá buscam abrigo. Entre janeiro e junho de 2015, cerca de 137 mil refugiados e migrantes chegaram à Europa26. Um aumento de 83% em relação ao mesmo período em 2014. Número recorde. Até o mês de maio, chegaram 54 mil pessoas na Itália, 48 mil na Grécia, 91 em Malta e 920 na Espanha. Os números brasileiros estão mais próximos de Espanhóis que de Grécia e Itália, sendo que o Brasil é quase 17 vezes maior que a Espanha em território e possui população 4,28 vezes maior. Ou seja, proporcionalmente e em números absolutos, há muito mais espaço vazio aqui. Em 2014, por todo o vasto território brasileiro, porém com maior incidência em São Paulo, foram feitas 8.302 solicitações de refúgio, sendo que a população de já declarados refugiados alcançou 7.289 pessoas. Ou seja, além de o Brasil não ter participação qualquer nas causas das fugas em massa, também não há um número preocupante de refugiados e solicitantes de refúgio no país. Tampouco se deve suscitar o caso dos haitianos, cujo número, que cerca 50 mil pessoas residindo no Brasil, ainda é ínfimo se comparado com a crise europeia. Desta forma, o mito gerado pela confusão entre fenômenos brasileiro e europeu de aumento do desemprego, bem como da piora na prestação dos já péssimos serviços públicos no Brasil e o aumento da população em situação de pobreza ou miséria, é totalmente sem fundamento. Brasil é um país criado por migrantes e descendentes de migrantes, e disso deve se orgulhar.

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Em encontro realizado na sede da Cáritas no dia 06/05/2015. http://nacoesunidas.org/onu-crise-no-mediterraneo-completa-seis-meses-com-numero-recorde-de-refugiados-e-migrantes/ 26 Idem 25

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press, [1963] 1973. GONÇALVES, M. F. ; ARRUDA JUNIOR, E. L. . Fundamentação Ética e Hermenêutica. 1. ed. Florianópolis: CESUSC, 2003. v. 1. 330p. HADDAD, Emma. The Refugee in International Society: Between Sovereigns. Cambridge. Cambridge University Press. 2008. PÁDUA, João Pedro. Sobre a necessidade de estudos empíricos para compreender o direito (como um sistema de prática): um estudo exploratório sobre a constituição de identidades institucionais no Legislativo. In: Enzo Bello (org.). Ensaios críticos sobre direitos humanos e constitucionalismo. Caxias do Sul: EDUCS, 2012. p. 219-238. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética e Ser. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999; Ser, verdad e acción. Barcelona: Gedisa, 1998.

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