Refúgios e migrações: práticas e narrativas

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Refúgios e Migrações: práticas e narrativas

Karine de Souza Silva Mariah Rausch Pereira Rafael de Miranda Santos (Organizadores)

Refúgios e Migrações: práticas e narrativas

1ª edição Florianópolis Nefipo 2015

NAIR/EIRENÈ - Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados - Núcleo de Pesquisas e Extensão sobre as Organizações Internacionais e a promoção da Paz, dos Direitos Humanos e da Integração Regional Coordenadora: Profa. Dra. Karine de Souza Silva Campus Universitário – Trindade – Florianópolis Caixa Postal 476 Departamento de Economia e Relações Internacionais – UFSC CEP: 88040-900 http://www.irene.ufsc.br em parceria com: NEFIPO - Núcleo de Ética e Filosofia Política Coordenador: Prof. Dr. Denilson Luís Werle Vice-coordenador: Prof. Dr. Darlei Dall’ Agnol http://www.nefipo.ufsc.br/ Capa e foto: José Fernando Rosa Ribeiro e Maria Isabel Grullón Hernandez. Diagramação: José Fernando Rosa Ribeiro Apoio:

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

ISBN: 978-85-99608-14-2 R332

Refúgios e Migrações: práticas e narrativas / organizadores Karine de Souza Silva, Mariah Rausch Pereira, Rafael de Miranda Santos. – Florianópolis : NEFIPO/UFSC, 2016. 533 p. : tabs. Inclui bibliografia. 1. Migração – Aspectos sociológicos. I. Silva, Karine de Souza. II. Pereira, Mariah Rausch. III. Santos, Rafael de Miranda. CDU: 314.7

Sumário A jurisdicionalização de casos envolvendo Direitos Humanos e decisões de regresso em matéria de imigração na Itália e na União Europeia Carla Piffer   17 O MOVIMENTO DE PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS NA AMÉRICA LATINA, O CONTEXTO BRASILEIRO E AS INICIATIVAS MUNICIPAIS DA CIDADE DE DOURADOS PARA A ASSISTÊNCIA ÁS PESSOAS EM TRÂNSITO César Augusto S. da Silva    Caio Morelli Marques   41 Da África para o Brasil: Estudo com Senegaleses no Sul do Brasil Anelize Maximila Corrêa    Ana Paula Dittgen da Silva   59 O “pânico moral” na narrativa (tele)jornalística: uma análise da representação de refugiados ganeses em telejornais brasileiros (2014) Samira Moratti Frazão    Gláucia de Oliveira Assis   75 POR QUE O BRASIL HOJE É UM POLO DE ATRAÇÃO PARA A IMIGRAÇÃO INTERNACIONAL? Thiago Assunção    Jacqueline Chomatas   101 IMIGRAÇÃO, SAÚDE E DIREITOS HUMANOS Júlia de Freitas Girardi    Lucienne Martins Borges   131

MIGRAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: O BRASIL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MIGRANTES – ANÁLISE A PARTIR DO PROJETO DE LEI 288/2013 Simone Andrea Schwinn    Letícia Regina Konrad   145 O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DO TRABALHADOR IMIGRANTE Fernanda Almeida Marcon   169 A Aplicação do Estatuto do Estrangeiro e as Propostas de Novas Leis Migratórias Eduardo de Oliveira Soares Real   199 O Direito de Asilo e o Sistema de Proteção dos Refugiados no Brasil: uma distinção necessária Priscilla Camargo Santos    Rafael de Miranda Santos   225 OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E A GRAVE E GENERALIZADA VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DO ARTIGO 1º, INCISO III, DA LEI N. 9.474/97 Tiago Scher Soares de Amorim   239 Fluxos migratórios e as novas categorias de refugiados: Os refugiados ambientais e os refugiados econômicos Thiago Giovani Romero   259 O RECENTE CASO DO PEDIDO DE “REFÚGIO CLIMÁTICO” NA NOVA ZELÂNDIA E SEU CONTEXTO INTERNACIONAL Giulia Manccini Pinheiro    Mariana de Almeida Tavares   279

RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL PELOS REFUGIADOS AMBIENTAIS: Anomia, soft law e o caso do arquipélago de Tuvalu Paola Durso Angelucci    Mário Cesar Andrade   301

Um Dia sem Mexicanos – ou – Sobre o não-lugar do migrante econômico Márcia Letícia Gomes    Raquel Fabiana Lopes Sparemberger   327

A imigração italiana em Buenos Aires no período 1880-1890 Danilo Milev   345 A Securitização da Política Europeia para Refugiados e a Criação de “Espaços de Exceção” Flávia Rodrigues de Castro   367 REFUGIADOS NO MEDITERRANEO E O DIREITO INTERNACIONAL: “Controlo migratório de oriundos de África” Patrícia Susana Baía da Costa Colaço Machado e Jorge   387 Crianças soldado podem ser refugiados? Uma análise das cláusulas de exclusão da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 Camila Dabrowski de Araújo Mendonça    Danielle Annoni   411 ANÁLISE DE COMETIMENTOS DE CRIMES DE GUERRA EM CAMPOS DE REFUGIADOS: O caso dos refugiados sírios no Vale do Beqaa entre 2011 e 2015 Júlia Rodrigues   423

Políticas Migratorias post 11 de septiembre y su respuesta desde la Responsabilidad de Proteger David Fernando Santiago Villena Del Carpio   439 O caso “Ferouz Myuddin vs Governo Australiano” e o princípio da complementary protection Paulo Augusto de Oliveira    Alice Menezes Dantas   453 REFÚGIO SOB A ÓTICA DA IDENTIDADE Rafaella Ribeiro de Aguiar   471 A LUTA DOS MIGRANTES FORÇADOS PELO RECONHECIMENTO DE SUA DIGNIDADE: AS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DE AXEL HONNETH Diego Souza Merigueti   497 CIDADANIA, DIGNIDADE E MOBILIDADE HUMANA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO FENÔMENO DA TRANSNACIONALIDADE Ana Cristina Bacega De Bastiani    Mayara Pellenz   513

Apresentação A obra “Refúgios e Migrações: práticas e narrativas” é fruto dos profícuos debates ocorridos na III Semana Internacional da Paz (III SIP), realizada nos dias 15, 16 e 17 de setembro de 2015, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis. O Evento foi promovido pelo “Eirenè: Núcleo de Pesquisas e Extensão sobre as Organizações Internacionais e a promoção da Paz, dos Direitos Humanos e da Integração Regional”, vinculado aos Programas de Pós-graduação stricto sensu em Direito e em Relações Internacionais da UFSC. A III SIP foi financiada com recursos da Secretaria de Cultura da UFSC (SeCult), através do Edital 001/2015 PROCULTURA 2015, e obteve apoio institucional do CNPq, da CAPES, ACNUR, ANET, da International Law Association, e da Pastoral do Migrante de Florianópolis. Os desafios em torno das migrações e dos refúgios na contemporaneidade nortearam as discussões suscitadas na III SIP e provocaram instigantes análises que são ora publicadas neste livro com o intuito de permitir uma ampla difusão das ideias e o desenvolvimento dos estudos desses eixos temáticos nas esferas do Direito e das Relações Internacionais. Os holofotes da III SIP se direcionaram, sobretudo, rumo aos caminhos para efetivar a proteção das pessoas que migram em diversos continentes, a partir de uma ótica emancipadora que valoriza a dignidade do ser humano. Neste diapasão, os participantes do Encontro ressaltaram, ainda, o papel do Brasil na recepção de migrantes e refugiados, e impulsionaram a formulação de alternativas políticas e jurídicas destinadas a validar e a implementar as normas de Direito Internacional Humanitário e de Direito Humanos em escala planetária.

Os debates de Florianópolis animaram interlocuções necessárias e urgentes sobre assuntos da mais elevada relevância no cenário internacional e que aqui são ampliados para a comunidade acadêmica nacional e estrangeira. Por fim, cumprimentamos as autoras e os autores dos artigos e desejamos muito boa leitura a todos.

Karine de Souza Silva Mariah Rausch Pereira Rafael de Miranda Santos

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A jurisdicionalização de casos envolvendo Direitos Humanos e decisões de regresso em matéria de imigração na Itália e na União Europeia Carla Piffer1 Resumo: O presente artigo possui como objetivo geral apresentar e analisar a jurisdicionalização de alguns casos que envolvem a temática dos Direitos Humanos e das Decisões de Regresso em matéria de imigração tanto na Itália quanto no âmbito da União Europeia. O estudo permeia, desde uma análise histórica da imigração na Itália, até algumas questões relacionadas à atual política de imigração adotada pela União Europeia. Os casos elencados que são analisados são demandas julgadas pela Corte Constitucional italiana, decisões proferidas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos em matéria de imigração e regresso que envolva os direitos contidos nos ditames da Comissão Europeia de Direitos Humanos e, ao final, a posição até então adotada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia com vistas a construir uma orientação de respeito aos direitos humanos dos imigrantes quando da aplicação de Decisões de Regresso no âmbito da União Europeia. Em sede de considerações finais é possível afirmar que os casos analisados e a atuação dos respectivos tribunais têm contribuído para um diálogo interativo entre os ordenamentos jurídicos e também entre as Cortes. Isto se apresenta como uma perspectiva positiva diante da denotação de um incremento do corpus normativo do direito da UE em matéria de Imigração, observando-se uma considerável ampliação da jurisprudência sobre o tema e uma tendência à formação de um “estatuto” de proteção aos direitos humanos dos imigrantes, passo a passo que questões individuais são contestadas. Palavras-chave: Imigração; Jurisdicionalização; Direitos Humanos; Decisão de Regresso; União Europeia. Abstract: This article has as main objective to present and analyze the judicial nature of some cases involving the theme of Human Rights and Return Decisions of the immigration in Italy and in the European Union. The study permeates, from a historical analysis of immigration in Italy, to some issues related to the current immigration policy adopted by the European Union. The listed cases analyzed are demands judged by the Italian Constitutional Court, decisions made by the European Court of Human Rights on immigration and return involving the rights contained in the dictates of the European Commission of Human Rights and in the end, the position thus far adopted by the European Union Court of Justice in order to build an orientation respect for human rights of immigrants when applying Return decisions within the European Union. For final considerations it is clear that the analyzed cases and the performance of the respective courts have contributed to an interactive dialogue between the legal systems and also between the Courts. This is presented as a positive outlook on the denotation of an increase of the legal corpus of EU law on Immigration, observing a considerable expansion of jurisprudence on the subject and a tendency to the formation of a “status” for the protection of rights human immigrants, step by step that individual issues are disputed. Keywords: Immigration; Jurisdictionalization; Human Rights; Return Decision; European Union.

1  Doutora em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI e Doutora em Direito Público pela Università degli Studi di Perugia – UNIPG Itália. Instituição de origem: Centro Universitário de Brusque – UNIFEBE. Endereço eletrônico: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO As questões migratórias adquirem sempre um maior relevo não somente em nível nacional, mas também internacional e principalmente no âmbito da União Europeia, onde suas atuais normativas sobre imigração, além de muito polêmicas, são objeto de discussão tanto no âmbito judiciário de cada Estado-membro, quanto junto aos Tribunais comunitários. Um dos temas que envolve a imigração é a atual Diretiva de Retorno, cuja aprovação adveio de alguns acontecimentos históricos praticados no âmbito da União Europeia. Entende-se que esta temática possui alcance muito alargado devido ao fato de que as Decisões de Regresso de imigrantes pode ser aplicada a todos estes, independentemente da sua classificação de imigrante, seu motivo migratório e sua situação no país de destino. Além disso, embora intitulada como medida a ser aplicada contra os imigrantes irregulares, esta não se restringe somente a estes. Diz-se isso, pois não existem dúvidas que tais imposições favorecem a manutenção de muitos imigrantes em condições irregulares, induz a péssimas condições de trabalho, favorecem a exploração sexual e, em muitos casos, não atendem a outras matérias abrangidas pela política migratória, como o direito à reunião familiar, liberdade de culto, opção religiosa e manutenção da cultura. Partindo-se do pressuposto de que os direitos humanos dos imigrantes - quando da imposição do regresso ou afastamento - devem ser considerados e efetivados, pretende-se, com o presente estudo, analisar algumas decisões judiciais que tratam do assunto. Para tanto, apresenta-se um elenco de decisões do Tribunal Constitucional italiano relativas à matéria Imigração, Decisões de Regresso e proteção dos direitos humanos dos imigrantes. Posteriormente, com o intuito de analisar a jurisdicionalização de casos envolvendo Decisões de Regresso e direitos humanos dos imigrantes no âmbito da União Europeia, apontam-se alguns julgados do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem quando da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem como julgados do Tribunal de Justiça da União Europeia acerca da interpretação do Direito Europeu relacionado à Diretiva de Retorno. 2 A experiência da Corte Constitucional Italiana no tratamento dos Direitos Humanos dos Imigrantes O intuito de analisar a experiência da Corte Constitucional Italiana com matérias relativas aos direitos humanos dos imigrantes justifica-se a fim de demonstrar que a evolução do tratamento jurisdicional do assunto está ligado à história da Imigração

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na Itália. Significa que, inicialmente, a constituinte italiana possuía uma visão restritiva do tema, tendo em vista ser esta um país fornecedor de imigrantes e não o contrário. Com o passar dos anos e com o aumento do fluxo migratório em direção à Itália tal perspectiva começou a se inverter gradativamente, momento em que a Corte constitucional italiana começou a se pronunciar sobre o assunto a partir da década de 1970. Embora existissem imigrantes na Itália nesta época, os números não eram muito significantes. Foi isto que levou o país a não possuir uma legislação que regulamentasse o ingresso de imigrantes, apesar de outros Estados europeus como a Suécia, França e Alemanha já possuírem normas do tipo. E foi tratando o fenômeno como uma novidade no contexto histórico, social e legislativo que o país permaneceu até o início dos anos de 1990 sem nenhuma norma que disciplinasse o assunto2. Quando do início da adoção de normativas acerca da imigração, os julgamentos dos juízes constitucionais italianos começaram a destacar decisões a favor dos imigrantes3, da tutela constitucional dos seus direitos e da consequente proteção aos seus Direitos Humanos. Nesta ordem, pretende-se demonstrar que esta Corte construiu um material dúctil e por vezes equilibrado em defesa da constitucionalidade sem, no entanto, perder de vista a necessidade de reconhecimento dos direitos humanos dos imigrantes. A primeira manifestação da Corte constitucional italiana a respeito da condição jurídica do estrangeiro ocorreu no ano de 1967. Trata-se da Sentença 120/1967, momento em que esta teria lançado o fundamento de um provável status constitucional do imigrante4 . Neste momento a Corte deveria se pronunciar acerca da menção constante na Constituição italiana, especificamente em seu artigo 3º5, quando dispõe que alguns direitos são concedidos somente aos cidadãos italianos. Segundo o Tribunal, esta disposição não deveria ser considerada de maneira isolada, mas sim em conexão com os artigos 2º - o qual não faz distinção entre cidadãos e estrangeiros – e com o art. 10, I do mesmo diploma constitucional. Conforme exposto na decisão, se o artigo. 3 se refere expressamente aplicável apenas aos cidadãos, também é verdade que o princípio da igualdade também se aplica para o estrangeiro quando estão por respeitar os direitos fundamentais6. Dois anos mais tarde a Corte constitucional italiana veio a esclarecer por meio 2  Até esta data, as regulamentações mínimas acerca do assunto eram representadas pelo Testo Unico della Legge di Pubblica Sicurezza – TULPS, datado de 1931. 3  Embora a maioria da doutrina e as decisões a partir de agora analisadas façam relação aos estrangeiros, opta-se por utilizar a expressão imigrantes para substituí-las e adequá-las ao presente estudo. 4  ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 120/1967 de 23 de novembro de 1967. Disponível em: http://www.cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do. Acesso em: 01 set. 2013. 5  ITÁLIA. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ITALIANA, de 27 de dezembro de 1947. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2013. 6  ITÁLIA. Ibid, 1967.

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da Sentença 104/69, que não todos os direitos fundamentais são reconhecidos aos estrangeiros, mas somente os direitos invioláveis da personalidade garantidos pelos arts. 2º e 10, I e II da Constituição Italiana. Segundo esta decisão, no que diz respeito aos direitos invioláveis da personalidade, que representam um mínimo respeito à soma dos direitos de liberdades reconhecidos ao cidadão, a titularidade desses direitos, comuns ao cidadão e ao estrangeiro dentro dessa esfera, não pode importar, pela mesma, da sua posição de igualdade7. A partir dos anos 90, com uma considerável intensificação das migrações em direção à Itália, a Corte italiana passou a tratar constantemente da condição jurídica dos imigrantes. No curso de 1997 a cifra oficial se multiplicou, atingindo o número de novecentos e oitenta e seis mil Imigrantes na Itália8, aumentando para mais de dois milhões em 2004 e três milhões em 2006, atingindo a cifra de quatro milhões e duzentos mil no ano de 20109. Especificamente sobre o assunto da aplicação de Decisões de Regresso10, que é objeto deste estudo, é possível afirmar que, desde o início do século, a Corte constitucional italiana construiu, por meio de importantes decisões, preceitos limitativos da atuação do poder estatal em decidir sobre a permanência e o regresso dos Imigrantes do território nacional. Neste sentido cita-se a Sentença n. 34/1995, a qual declarou inconstitucional o inciso I do artigo 7, bis da Lei Martelli11 por punir com pena de reclusão de seis meses a três anos o imigrante que, ao ser expulso do território italiano, não se esforçasse para obter junto à autoridade consular a expedição do documento de viagem competente. Neste momento a Corte italiana mencionou que não é possível determinar - dada a indicação genérica do comportamento dos estrangeiros expulsos de que ‘não se esforçarem para obter’ - o grau de inércia punível, nem o tempo em que a conduta hipnotizada ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 104/1969 de 26 de junho de 1969. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. 8  CORTI, Paola. Storia delle migrazioni internazionali. Roma-Bari: Laterza, 2010. 9  CORTI, Paola; SANFILIPPO, Matteo. L´Itália e le migrazioni. Roma: Editori Laterza, 2012. 10  O Regresso, ou procedimento de regresso está previsto no artigo 3º, III da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, refere-se a normas e procedimentos comuns nos Estados-Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular. Segundo consta, se refere ao “processo de retorno de nacionais de países terceiros, a título de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercivo: ao país de origem, ou a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários ou bilaterais ou de outras convenções, ou a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar voluntariamente e no qual seja aceita”. (UNIÃO EUROPEIA, 2008). Tal diretiva é também chamada de Diretiva do Retorno. 11  ITÁLIA. Legge n. 39/1990. Conversione in legge, con modificazioni, del decreto-legge 30 dicembre 1989, n. 416, recante norme urgenti in materia di asilo politico, di ingresso e soggiorno dei cittadini extracomunitari e di regolarizzazione dei cittadini extracomunitari ed apolidi già presenti nel territorio dello Stato. Disposizioni in materia di asilo. in Gazz. Uff., 28 febbraio, n. 49. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2012. 7 

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pelo legislador deve ser realizada; elementos estes que seriam essenciais para a realização do crime de omissão. Além disso, não poderiam ser derivados a partir de requisitos eventualmente (mas não necessariamente) contidos na Decisão de Regresso, os quais, na previsão assim configurada, constituem - como afirmado também pela jurisprudência - apenas um pressuposto externo à estrutura do fato típico. A respeito deste assunto, a jurisprudência italiana continuou a confirmar a legitimidade e constitucionalidade da aplicação de Decisões de Regresso para a contenção de fluxos migratórios. No entanto, foram mantidos os parâmetros das decisões no sentido de que a aplicação destas medidas deve garantir o respeito dos direitos à vida, liberdade pessoal, defesa, saúde, proteção dos menores, independentemente da cidadania dos envolvidos. Com relação às Decisões de Regresso com efeitos automáticos e aplicáveis aqueles que adentravam clandestinamente no território italiano (conforme previsão legal do Decreto Lei 416/1989), a Corte considerou, mediante a Sentença 353/1997, como ilegítima qualquer tentativa de declarar a inconstitucionalidade de tal preceito, sob os seguintes fundamentos: As razões de solidariedade humana não podem ser estabelecidas fora de um equilíbrio adequado entre os valores em jogo, que tomou comando do Legislativo. O Estado não pode abdicar da tarefa de fato, inevitável, para proteger suas fronteiras: as regras estabelecidas em função de uma migração ordenada e de uma adequada recepção devem, portanto, ser respeitadas, e não evitadas, ou mesmo dispensadas ao longo do tempo com apreciações de caráter discricionário, sendo colocado em defesa da comunidade nacional, e em conjunto, para proteger aqueles que as têm observado e que poderiam ser prejudicados pela tolerância de situações ilegais12 .

Para a Corte, o automatismo desta espécie decisão, quando confirmada judicialmente, não é nada menos que um reflexo do princípio da estreita legalidade que permeia a disciplina de imigração, sendo descabido atribuir legalidade a um ato que, desde seu início, foi envolvido por práticas ilegais (fazendo menção, neste caso, à entrada clandestina em território italiano). Mas de maneira diferente é o tratamento do tema do acompanhamento coercitivo dos imigrantes à fronteira como meio de execução de Decisões de Regresso proferidas na esfera administrativa, pois envolve imigrantes que adentraram ao território italiano por meios legais (com visto de turista, autorização para estudo ou trabalho). ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 353/1997 de 21 de novembro de 1997. Disponível em: < http://www.cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>. Acesso em: 14 set. 2013 12 

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Neste assunto, vários problemas de compatibilidade com o sistema das liberdades fundamentais previstos no artigo 13 da Constituição italiana passaram a ser verificados. Os direitos fundamentais à liberdade pessoal e à tutela jurisdicional formaram a base de importantes pronunciamentos da Corte. O primeiro assunto pode ser apresentado pela Sentença 105/2001, a qual afirmou que: os imigrantes são titulares do direito à liberdade pessoal previsto na Constituição italiana; e que a medida de detenção e o acompanhamento coativo à fronteira devem ser obrigatoriamente convalidados judicialmente, por restringirem tal liberdade pessoal13. Vale mencionar que a partir desta decisão foi declarada a inconstitucionalidade da matéria constante no Decreto-Lei 286/1998, que excluía qualquer forma de efeito suspensivo ao recurso interposto contra o decreto do prefeito que determinava o regresso (neste caso de ordem administrativa) ou o acompanhamento coercitivo até a fronteira14. A partir da promulgação da Lei Bossi Fini15, que promoveu modificações consideráveis às normativas em matéria de imigração e asilo, a Corte constitucional retomou o assunto relativo ao regresso e detenção de imigrantes. A Sentença 222/2004 entendeu que a disciplina de acompanhamento dos imigrantes à fronteira não pode contrastar com o seu direito de defesa, ou seja, que a convalidação da decisão administrativa, por meio de decisão judicial, deve ser desenvolvida antes do regresso, atendido o direito ao contraditório e às demais garantias de defesa. A única diferença de tratamento jurídico entre cidadão e estrangeiro definida pela Corte foi a menção à necessidade de garantia de um intérprete para acompanhar o ato, sob o fundamento de que tal diferenciação visa a garantia de tutelar o próprio direito frente a um magistrado16. Quanto às penas previstas pelo não cumprimento da proibição de reingresso ao território italiano a partir de uma Decisão de Regresso, a Corte se pronunciou por meio da Sentença 466/2005. A declaração da inconstitucionalidade da disciplina de regresso introduzida a partir da Lei Bossi-Fini se referiu à adoção de penas mais severas para os imigrantes que, já denunciados pelo crime de reingresso no território sem a devida autorização, reentrasse novamente no território. Neste sentido, afirmou que o legislador de 2002 simplesmente transformou em delito uma simples contravenção, o que seria ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 105/2001 de 10 de abril de 2001. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2013 14  ITÁLIA. Decreto Legislativo n. 286 di 25 luglio 1998. Testo unico delle disposizioni concernenti la disciplina dell’immigrazione e norme sulla condizione dello straniero. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2012. 15  ITÁLIA. Legge n. 189 di 30 luglio 2002. Modifica alla normativa in materia di immigrazione e di asilo. Disponível em: . Acesso em: 09 jun. 2012. 16  ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 222/2004 de 07 de abril de 2004. Disponível em: < http://www.cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>. Acesso em: 14 set. 2013. 13 

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inaceitável, declarando ilegítimo o artigo 13, e 13-bis do Texto Único em matéria de imigração com as modificações advindas no ano de 200217. Com relação à temática multicultural que envolve os imigrantes, a Corte constitucional italiana também contribuiu diretamente com algumas reflexões a partir da verificação de notáveis transformações na sociedade italiana, notadamente com relação ao direito à identidade religiosa e cultural envolvendo os Imigrantes, por exemplo. Embora referido assunto não seja o objeto central deste estudo, não custa mencionar a contribuição da jurisprudência constitucional e administrativa nestes assuntos, demonstrando uma tentativa de composição dos conflitos por meio de um equilíbrio entre os diversos direitos e princípios constitucionais envolvidos, sob a bandeira da defesa dos direitos humanos. Entende-se que tal equilíbrio se constitui sob a égide de uma Constituição que nunca propiciou uma reflexão profunda e radical acerca do conceito de cultura e conflitos culturais em uma sociedade democrática marcada por transformações propiciadas pelas ondas migratórias em direção à Europa. Na Itália, a temática do “véu islâmico” remete a uma pronúncia do Conselho de Estado por meio do Dec. 3076/08. Segundo consta, diante da ausência de legislação a respeito, o Conselho passou a indicar que a proibição de usar o niqab ou a burqa em locais públicos refere-se à dificuldade de reconhecimento da pessoa em locais públicos ou abertos ao público, mas não uma proibição à utilização de tais vestimentas. Segundo a decisão, trata-se, portanto, de uma medida de segurança pública sem ligação com preferências religiosas ou culturais18. Com relação ao episódio conhecido como “crucifixos italianos”, tal tema foi retomado após uma medida de urgência do Tribunal de Aquila que ordenou fossem os crucifixos retirados de uma sala de aula da cidade de Ofena, frequentada por duas alunas islâmicas. Logo em seguida, o presidente do mesmo Tribunal revogou a medida em questão. Neste ínterim o Tribunal Administrativo Regional do Vêneto enviou o assunto para Consulta, a qual declarou serem errôneos os pressupostos utilizados pelo magistrado a quo para fundamentar a decisão de remoção dos crucifixos. Sem adentrar no mérito da questão, a Consulta menciona que a Constituição italiana não proíbe nem mesmo obriga a fixação de crucifixos, tratando dos mesmos como um símbolo que, além de ser religioso, é cultural e nacional. Conforme menciona Locchi19, as Supremas Cortes constitucionais e administrativas até hoje nunca afrontaram a questão do conteúdo e dos limites do princípio da laicidade do Estado com referência aos símbolos ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 466/2005 de 28 de dezembr de 2005. Disponível em: < http://www.cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>. Acesso em: 14 set. 2013 18  ITÁLIA. Consiglio di Stato. Decreto 3076/08. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2013. 19  LOCCHI, Maria Chiara. I diritti degli stranieri. Roma: Carocci editore. 2011. 17 

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culturais e religiosos minoritários, enquanto que a questão dos crucifixos (na condição de símbolo religioso majoritário) restou prontamente abordada. Algumas decisões relativas ao direito à vida familiar também possuem relação com a temática do regresso e afastamento dos imigrantes. As mais consideráveis decisões são aquelas citadas por Bascherini20: as sentenças 199/198621, 28/199522 e 203/199723. A primeira decisão reconheceu ilegítima a Decisão de Regresso aplicada a um imigrante menor de dezoito anos e em condições de abandono na Itália, ordenando, por analogia, que este deveria ser equiparado como cidadão italiano em potencial, conforme a mesma proteção assegurada pela lei italiana nos casos de adoção. A segunda decisão reconheceu a natureza fundamental do direito à unidade familiar, mencionando que limitações a partir da aplicação de uma Decisão de Regresso somente seriam admissíveis diante do equilíbrio com outros valores a serem levados em consideração24. A última decisão retorna ao assunto do direito à unificação familiar, interpretando-o não mais como um direito do chefe da família a se reunir com seus familiares, mas sim como um direito fundamental de cada componente familiar, mesmo aquelas constituídas de fato, decidindo pela permanência do imigrante no território italiano. Da análise das decisões mencionadas é possível perceber a tendência a um aumento da jurisdicionalização das questões relativas aos imigrantes, na medida em que são gradualmente contestadas. No entanto, é indubitável que a jurisprudência constitucional tenha colocado um freio nos casos referentes à disciplina de regresso, tentando manter um compromisso razoável entre segurança pública, respeito aos direitos humanos e a outras garantias fundamentais em matéria de liberdade pessoal. Também, embora muitas vezes indiretamente, enalteceu a necessidade de respeito aos Direitos Humanos dos imigrantes e demonstrou certa flexibilidade em ampliar o leque de considerações sobre a vida familiar e a dignidade destes diante de uma possibilidade de afastamento de um dos membros da família. Após este panorama da Corte constitucional italiana sobre a matéria de regresso dos imigrantes localizados no seu território, se faz necessário avaliar alguns casos em que BASCHERINI, Gianluca. Immigrazione e diritti fondamentali. L´esperienza italiana tra storia costituzionale e prospettive europee. Napoli: Jovene editore, 2007. 21  ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 199/1986 de 18 de julho de 1986. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2013. 22  ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 34/1995 de 13 de fevereiro de 1995. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2013 23  ITÁLIA. Corte Constitucional Italiana. Sentença 203/1997 de 26 de jungo de 1997 (a). Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2013. 24  Neste caso específico foi levada em consideração a relevância do valor sócio-econômico do trabalho doméstico e familiar, e consequentemente o direito da dona-de-casa à unificação familiar com seu filho menor, momento em que a lei dispunha que o exercício de atividade laboral era pressuposto necessário para o exercício de tal direito. 20 

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se pronunciaram o Tribunal Europeu de Direitos Humanos - TEDH e o Tribunal de Justiça da União Europeia – TJUE , a fim de demonstrar a atual perspectiva Europeia sobre o tema. 3 O posicionamento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos diante da análise de Decisões de Regresso envolvendo os imigrantes na União Europeia Neste momento serão apresentados alguns casos selecionados e analisados a partir de decisões pronunciadas pelo TEDH em matéria de imigração envolvendo os direitos da CEDH. O TEDH vem desenvolvendo importantes tendências jurisprudenciais em matéria de Imigração, independentemente do fato de que matérias relativas ao ingresso, permanência e Regresso de Imigrantes não sejam por este tratadas diretamente. O TEDH só pode apreciar queixas por violação dos direitos e liberdades garantidos pela Convenção se o queixoso tiver esgotado, no seu país, todos os meios que a lei lhe faculta para tentar remediar a violação. Mas mesmo de maneira indireta, algumas regras da CEDH tem imposto alguns limites ao poder estatal de dispor sobre a condição jurídica dos imigrantes nos países europeus. Iniciando-se pelo artigo 3º da CEDH, que diz respeito à proibição de tortura e outros tratamentos ou penas desumanas e degradantes, representa um extraordinário instrumento de limitação da soberania dos Estados, notadamente com relação ao poder de aplicação de Decisões de Regresso dos imigrantes. Um dos primeiros casos de aplicação do artigo 3º a imigrantes passíveis de extradição e afastamento do território de um Estado pertencente ao TEDH envolve o Reino Unido no caso Soering de 1989. Soering cometeu um homicídio nos Estados Unidos, fugiu para a Inglaterra e os Estados Unidos requereram sua extradição. O tribunal foi acionado por Soering, que argumentou em seu pedido a negação do pedido de extradição, por constituir uma violação do art. 3º da Convenção que impede a extradição de pessoa que no país destinatário venha sofrer (ou haja grande risco de sofrer) tortura ou pena ou tratamento cruel e degradante. O tribunal entretanto, não enfrentou diretamente o argumento da ilegalidade da pena de morte em si, mas entendeu que a forma de execução da pena de morte pode vir a constituir uma pena cruel, levando em consideração as circunstâncias pessoais do condenado, que possuía apenas 18 anos quando cometeu o crime e com estado mental fragilizado. Neste caso o Tribunal entendeu que o procedimento penal a que Soering seria submetido nos EUA- conhecido como “corredor da morte” – violaria o artigo 3º. Em função deste controverso entendimento,

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o Regresso de Soering só foi autorizado quando os Estados Unidos se prontificaram a tomar uma série de garantias para que ele não sofresse o procedimento penal que, nos termos da CEDH, consistia em pena desumana25. Por meio de outras decisões a respeito da matéria o TEDH passou a demonstrar que o princípio da dignidade dos envolvidos deveria ser levado em consideração no momento da deliberação e análise do julgamento, denotando a responsabilidade dos Estados quando da autorização de regresso de um imigrante. Mesmo em casos envolvendo a luta contra o terrorismo o Tribunal entendeu que o imigrante a sofrer afastamento deveria ser protegido contra os riscos que o ser humano envolvido sofreria no seu país de origem. No julgado 37201/2006, envolvendo um cidadão da Tunísia, o Tribunal recordou os princípios gerais relativos à responsabilidade dos Estados no caso de afastamento, mesmo que o imigrante envolvido fosse suspeito da prática de terrorismo no seu país de origem26. Neste norte cita-se também o entendimento do Tribunal de que o Estado que entenda pelo afastamento do imigrante do seu território deve levar em consideração as condições de saúde deste. Seriam, portanto contrárias ao artigo 3º as Decisões de Regresso que não permitissem a um imigrante doente de receber no país de destino os cuidados médicos adequados e os tratamentos necessários27. O direito à liberdade e à segurança é exposto no artigo 5º da CEDH, o qual impõe aos Estados a não arbitrariedade da detenção, sendo necessário não somente o respeito à reserva legal, mas também a utilização de uma espécie de proporcionalidade e nexo de causalidade entre a medida de detenção e os fins previstos na Convenção28. Igualmente, quando a manutenção do Imigrante no local de detenção previamente à Decisão de Regresso passa a denotar tratamento desumano e degradante, o Tribunal se pronunciou a favor da violação do artigo 3º - sobre proibição de tortura e outros tratamentos ou penas desumanas e degradantes - no caso Muskhadzhiyeva contra a Bélgica, diante da detenção de quatro crianças e sua mãe durante mais de um mês antes de deportá-los para a Polônia. Neste caso restou entendido que a Bélgica violou a proibição de tortura e outras formas de maus-tratos e o direito à liberdade das quatro crianças. Desde Outubro de 2009, as famílias com crianças começaram a ser alojadas TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS. Sentença n. 14038/88. 07 july 1989. Case of Soering v. The United Kingdom. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013 26  TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS. Sentença n. 37201/2006. 28 february 2006. Case of Soering v. The United Kingdom. Disponível em: < http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search. aspx?i=001-85276>. Acesso em: 15 ago. 2013. 27  TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS. 1998. 28  CONSELHO DA EUROPA. Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1950. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. 25 

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nas chamadas “unidades de alojamento” em vez de centros de detenção29. Voltando ao artigo 5º, as garantias ali expostas vinculam os Estados contratantes sempre que se perceba a limitação ou a privação da liberdade pessoal de um Imigrante diante de uma detenção prevista na Convenção, bem como nos casos de detenção em zonas de trânsito de aeroportos que se prolonguem no tempo, antes da determinação do afastamento. Cita-se como exemplo o caso envolvendo cidadãos da Somália, os quais foram mantidos por vinte dias na zona de trânsito internacional do aeroporto de Paris sob constante vigilância da força policial, restando verificado pelo Tribunal a violação ao artigo 5º, I, f. Segundo a decisão, tal medida poderia ser tomada apenas para contrariar a “Imigração ilegal” e, em qualquer caso, deveria cumprir os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado. O Tribunal também argumentou que a detenção excessiva em um centro de detenção, a propósito de assumir o comando da solicitação de asilo ou de execução do regresso deve sempre levar em consideração a impossibilidade da remoção indevida da liberdade pessoal e privaria o sujeito do direito de acesso aos procedimentos para o reconhecimento dos seus direitos30. Mais recentemente o Tribunal, no caso Zeciri contra a Itália, entendeu pela aplicabilidade do artigo 5º também nos casos de detenção de imigrantes em centros de detenção provisória diante da condição irregular destes. Neste caso foi reconhecido o direito de ressarcimento diante da detenção considerada injusta, em que o imigrante possuía sim a condição de vítima, mencionando, mesmo que indiretamente, que os centros de detenção provisória se equiparam às prisões31. Com relação à matéria relativa ao direito de reunião ou reagrupamento familiar32 frente a uma Decisão de Regresso, embora o TEDH tenha se declarado por diversas vezes incompetente para tratar da matéria específica, interveio na questão do Regresso de imigrantes que conviviam com os próprios familiares no país de residência. Ao desenvolver uma leitura do artigo 8º da Convenção – sobre o Direito ao respeito pela vida privada e familiar -, mesmo afirmando que o imigrante não possuía a garantia de não ser afastado do país de residência, são impostos limites ao poder estatal da Decisão de Regresso com o fim de evitar práticas contrastantes com as políticas de integração dos residentes de longo período. Outrossim, após a segunda metade dos anos noventa o Tribunal passou a ponTRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS. 2010. TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS. 2010. 31  TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS . Sentença n. 55764/2000. 04 august 2005. Case of Zeciri v. Italy. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013 32  Reagrupamento familiar diz respeito a situações em que uma pessoa residente num Estado-Membro da União Europeia ou do Conselho da Europa, quer ser alcançada por membros da família que deixaram seu país de origem quando migrou. 29  30 

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derar dois critérios a fim de avaliar a legitimidade da Decisão de Regresso contra um membro de uma família residente na União Europeia: a conduta antissocial ou criminal e o elo social e afetivo mantido na efetivação por este com o território. Como exemplo cita-se o caso Boultif contra Suíça julgado em 2001, em que o Tribunal fixou com certa clareza os critérios relevantes a serem utilizados na avaliação da ilegitimidade da Decisão de Regresso de um imigrante. Para tanto, foram levados em consideração os seguintes critérios: conduta antissocial do estrangeiro, alcance ou natureza de crime eventualmente cometido, inserção e envolvimento pessoal e social do envolvido e de seus familiares (filhos e esposa, neste caso) na sociedade de residência, tempo decorrido desde a chegada do imigrante no país de residência, nacionalidade dos demais integrantes da família, duração do matrimônio, gravidade ou prejuízos advindos do afastamento deste da sua família, dentre outros. Neste acórdão o Tribunal declarou que excluir uma pessoa de um Estado onde vivem os seus familiares mais próximos pode constituir uma ingerência no direito ao respeito da vida familiar tal como é previsto no artigo 8.°, n.°1, da CEDH. De igual modo, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Estrasburgo, só se pode permitir a separação de uma pessoa dos seus familiares quando for demonstrado que esta se justifica por uma necessidade social imperiosa e, nomeadamente, proporcional ao objetivo legítimo prosseguido33. Neste sentido Bascherini34 complementa que estas decisões do TEDH demonstram o reconhecimento de que o direito ao respeito da vida familiar não constitui somente uma situação jurídica pura e simples, a qual não envolve somente o sujeito ou imigrante a ser expulso, mas sim pode ser invocado por meio de ações autônomas por iniciativa dos familiares afetados pela decisão. São também inúmeras as Decisões de Regresso na esfera administrativa envolvendo imigrantes que não representam qualquer espécie de ameaça para a ordem pública ou segurança, fundadas na suposta necessidade de preservar o bem-estar econômico do país. Ora, torna-se evidente que o regresso de um imigrante deve resultar legítimo quando analisado frente ao princípio da proporcionalidade, pois mais dilacerante é o sacrifício da esfera individual afetada pela Decisão de Regresso. Isto, por si só, faz com que o benefício público obtido com o regresso seja estritamente necessário e devidamente comprovado. Neste sentido cita-se a decisão do TEDH de 1988 no caso Berrehab contra Países Baixos. Nesta decisão o Tribunal também entendeu que os laços que integram o conceito de vida familiar, para efeitos do ora analisado artigo 8º, inclui TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS . Sentença n. 54273/2000. 02 august 2001. Case of Boultif v. Switzerland. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013. 34  BASCHERINI, Gianluca. Ibid. 33 

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também as situações em que o imigrante a ser expulso não coabita com o próprio filho, ou mesmo nos casos em que o filho tenha nascido de uma relação extraconjungal35. Conforme se pôde perceber, o TEDH não garante ao imigrante o direito de não sofrer uma Decisão de Regresso, até porque tem rechaçado a análise de matéria referente à faculdade dos Estados de decidir sobre o regresso dos imigrantes. No entanto, este tem se mostrado ativo no tratamento de matérias concernentes à CEDH, garantindo uma série de direitos aos imigrantes submetidos à uma Decisão de Regresso, acenando uma série de limites ao poder estatal diante da aplicação de uma medida que afronte os direitos humanos dos envolvidos. Igualmente, o Tribunal de Justiça da União Europeia - TJUE também tem contribuído para um diálogo interativo entre os ordenamentos jurídicos e também entre os Tribunais, embora em menor proporção, com alguns Acórdãos referentes aos direitos dos imigrantes diante de Decisões de Regresso, as quais serão analisadas na sequência. 4 O Tribunal de Justiça da União Europeia e o caminho (a ser) trilhado na proteção dos direitos humanos diante da análise de Decisões de Regresso envolvendo os imigrantes Antes de analisar algumas decisões do TJUE, cabe mencionar que antes que adquirisse as características e competências atuais, este tribunal passou por variados momentos que resultaram na sua evolução técnica-institucional. Uma importante limitação das competências jurisdicionais do Tribunal era representada pela impossibilidade do mesmo se pronunciar sobre medidas ou decisões relativas ao controle de pessoas nas fronteiras internas e na matéria de manutenção da ordem pública e da salvaguarda da segurança interna, o que demonstrava a cautela dos Estados em tornar comunitária a matéria imigração. Uma considerável mudança neste panorama foi verificada a partir do Tratado de Lisboa, possibilitando a superação dos supracitados limites. Desde então qualquer jurisdição, inclusive aquelas que não são de última instância, poderão submeter ao TJUE, nos moldes do artigo 267 do Trata de Funcionamento da União Europeia, uma questão envolvendo a interpretação do direito europeu, chamado de reenvio prejudicial. Tal modalidade é um processo exercido perante o TJUE, permitindo a uma jurisdição nacional interrogar referido Tribunal sobre a interpretação ou a validade do direito europeu. O reenvio prejudicial favorece, assim, a cooperação e a comunicação ativa entre as jurisdições nacionais e o TJUE, visando a aplicação uniforme do direito europeu. 35  TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS. Sentença n. 10730/84. 21 june 1988. Case of Berrehab v. the Netherlands. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013.

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Cabe mencionar que: Ao contrário dos outros processos jurisdicionais, o reenvio prejudicial não é um recurso formado contra um ato europeu ou nacional, mas sim uma pergunta relativa à aplicação do direito europeu.prejudicial. Qualquer jurisdição nacional, que deva dirimir um litígio no qual a aplicação de uma norma jurídica europeia suscite dúvidas (litígio principal), pode decidir dirigir-se ao Tribunal de Justiça para resolver estas dúvidas. Existem, então, dois tipos de reenvio prejudicial: o reenvio para interpretação da norma europeia: o juiz nacional solicita ao Tribunal de Justiça que especifique um ponto de interpretação do direito europeu para o poder aplicar corretamente; o reenvio para apreciação da validade da norma europeia: o juiz nacional solicita ao Tribunal de Justiça que controle a validade de um ato jurídico europeu. [...] O Tribunal de Justiça pronuncia-se, então, apenas sobre os elementos constitutivos do processo de reenvio prejudicial sobre os quais é instado, cabendo à jurisdição nacional o julgamento da questão principal. Por princípio, o Tribunal de Justiça deve responder à questão colocada. Não pode recusar responder pelo fato de a resposta não ser relevante nem oportuna em relação ao processo principal. Pode, em contrapartida, rejeitar o reenvio se a questão não integrar a sua esfera de competência. Quanto ao alcance destas decisões, as mesmas tem valor de coisa julgada. É, além disso, vinculativa não só para a jurisdição nacional que tenha estado na origem do processo de reenvio prejudicial, mas, ainda, para todas as jurisdições nacionais dos Estados-Membros. No âmbito do processo de reenvio prejudicial sobre a validade de um ato europeu, se este for declarado inválido, também o serão todos os outros atos já adotados que nele se baseiem. As instituições europeias competentes deverão, então, adotar um novo ato para ultrapassar a situação 36.

Embora o Tribunal de Justiça não seja competente para fiscalizar a validade ou a proporcionalidade de operações efetuadas pelos serviços de polícia ou outros serviços responsáveis pela aplicação da lei num Estado-Membro, outros assuntos que são originários do direito europeu a respeito da imigração – como algumas diretivas e dentre elas a Diretiva de Retorno – podem ser objeto de reenvio prejudicial. Segundo consta no próprio site do TJUE, O Tratado de Amsterdã alargou as prerrogativas do Tribunal que passa a poder intervir em domínios que, até agora, estavam fora do alcance da sua competência, mas onde a necessidade de UNIÃO EUROPEIA (site oficial), 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2013. 36 

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proteção dos direitos individuais é muito acentuada: os direitos fundamentais; o asilo, a Imigração, a livre circulação de pessoas e a cooperação judiciária civil; a cooperação policial e judiciária em matéria penal. [...] Quanto ao tema ASILO, IMIGRAÇÃO, LIVRE CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA EM MATÉRIA CIVIL foi introduzido no Tratado que institui a Comunidade Europeia um novo Título designado por “Vistos, asilo, Imigração e outras políticas relativas à livre circulação de pessoas”37.

Deste modo, pode-se perceber em algumas pronúncias do TJUE sobre o tema de liberdade de circulação e permanência a existência de fragmentos e interpretações de direito da UE que são significativos para o legislador nacional em matéria de imigração. Também, a tendência é que tal arcabouço divisional possa contribuir, cada vez mais, para a efetivação dos direitos humanos dos imigrantes. Diz-se isso, pois quando da análise de temas como o Regresso de imigrantes, os Acórdãos do TJUE pronunciados no marco destas questões prejudiciais têm efeito de coisa julgada, fazendo com que o magistrado que interpôs a questão deva aplicar a norma comunitária segundo a orientação do TJUE, além do fato de que tais decisões têm efeitos erga omnes e dão lugar à formação de jurisprudência relativa ao tema, impelindo todos os órgãos jurisdicionais de todos os Estados-membros a julgarem em conformidade com o teor da decisão prejudicial38. Por esta razão, apresentam-se algumas decisões do TJUE acerca da matéria Imigração, visando demonstrar que este Tribunal tem reconhecido, em alguns Acórdãos, a violação do Direito Europeu quando da aplicação de Decisões de Regresso contra imigrantes. Em um caso específico (CGCE, 25.7.2002, C-459/99 ASBL x Bélgica), o TJUE manteve sua posição de ofensa ao Direito Europeu, consagrando o direito do imigrante permanecer com sua família, mesmo nos casos em que este tenha adentrado no território de um Estado sem visto ou documento de identidade, bastando que seja comprovado o vínculo familiar e desde que o imigrante não ofereça um perigo para a ordem pública e segurança39. Em 2010, no caso Hassen El Dridi ou Soufi Karim, a Corte de Apelo na Itália, através do instituto do Reenvio Prejudicial perguntou ao Tribunal de Justiça da União UNIÃO EUROPEIA (site oficial), 2012. Tratado de Amsterdã. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2012.. 38  SILVA, Karine de Souza. União Europeia: antecedentes e evolução histórica. In: SILVA, Karine de Souza; COSTA, Rogério Santos da. Organizações internacionais de integração regional: União Europeia, Mercosul e UNASUL. Florianópolis: Editora Ufsc, 2013. 39  BASCHERINI, Gianluca. Ibid. 37 

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Europeia se a legislação italiana violava o conteúdo da Diretiva 2008/115 e seu objetivo de uniformizar o retorno de nacionais de países terceiros ao prever no Decreto Legislativo 286/1998 a possibilidade de imposição de sanção criminal ao estrangeiro irregular em descumprimento de ordens de regresso40. Neste caso a Itália detectou um nacional de país terceiro em situação irregular no território italiano. Foi expedida, então, ainda em 2004, uma Decisão de Regresso. Ocorre que, até meados de 2010, referida decisão não havia sido cumprida. Em Maio de 2010, foi expedida outra ordem de regresso do território italiano, para que o sr. El Dridi se retirasse do país, sob as alegações de que: (i) o governo italiano não dispunha de meios de transporte para realizar a remoção; (ii) o estrangeiro não possuía documentos de identificação; e (iii) não seria possível acomodá-lo em um estabelecimento de detenção por não haver mais vagas. Até Setembro do mesmo ano, no entanto, as autoridades italianas detectaram que o sr. El Dridi não havia cumprido a ordem de regresso e, com base em um Decreto Legislativo (286/98), o Imigrante foi sentenciado a 1 ano de prisão pelo descumprimento da ordem supracitada. Tendo em vista a existência da Diretiva 2008/115, Hassan El Dridi recorreu à Justiça Italiana, questionando a possibilidade de, diante do conteúdo da Diretiva em questão, imposição de sanção criminal durante procedimento administrativo de retorno de nacional de país terceiro. A discussão se mostrava pertinente por diversos motivos, entre os quais cabe destacar: (i) A diretiva previa prazo até o fim de dezembro de 2010 para transposição ao direito dos EstadosMembros. O prazo acima havia se esgotado, e a Itália não havia realizado a transposição no momento do recurso de Hassan El Dridi. (ii) A Diretiva 2008/115 estabelecia nos seus artigos 15 e 16 em que casos e como ocorrerá a detenção para fins de retorno de nacionais de país terceiros; (iii) A legislação italiana previa situação mais rigorosa do que aquela prevista na Diretiva 2008/115, no caso, a possibilidade de prisão. A detenção, conforme idealizada pela Diretiva, tinha como único objetivo viabilizar o regresso do nacional (inclusive com previsão de período máximo de detenção dos estrangeiros), não possuindo caráter de sanção. O Tribunal, analisando as questões suscitadas acima, entendeu que a Diretiva estabelece procedimentos e parâmetros comuns de retorno de nacional de país terceiro. Sendo assim a norma italiana suscitada, incompatível com o conteúdo da Diretiva 2008/115 prejudicaria seu objetivo. O Tribunal frisou ainda que os Estados-Membros não podem adotar medidas mais drásticas do que aquelas previstas na Diretiva, o que exclui a possibilidade aplicação de sanção (principalmente criminal) pela simples estada 40  TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. Causa Hassen El Dridi, alias Soufi Karim. Pedido de decisão prejudicial: Corte d’appello di Trento – Itália. 2011. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2013.

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irregular de nacional de país terceiro pela Itália. Outra decisão, conhecida como Kahveci e proferida em 2012, envolve dois casos. O primeiro envolvendo Kahveci e o segundo envolvendo Inan, ambos cidadãos turcos. A esposa do primeiro, também de nacionalidade turca, nasceu na Holanda, onde trabalhava e adquiriu a nacionalidade holandesa, mantendo sua nacionalidade anterior. O segundo estava incluído no mercado de trabalho na Holanda, desde 1993, tem a nacionalidade holandesa , além da turca. A autorização de residência concedida ao Sr. Kahveci referia-se ao direito à reunificação familiar, em virtude de sua esposa ser holandesa, a qual foi renovada várias vezes. Em 23 de janeiro de 2007, o Sr. Kahveci foi condenado a uma pena de prisão incondicional de seis anos e nove meses. Por decisão de 20 de Março de 2007, o Staatssecretaris disse . Kahveci é pessoa indesejada por causa de sua convicção e revogou sua autorização de residência, o que resultou na sua demissão. A indignação do Sr. Kahveci foi com relação ao fato de que, por ter sua mulher a nacionalidade holandesa, afirma que ele não pode ser considerado um membro da família de um trabalhador turco inserido no mercado de trabalho regular, o que lhe colocaria em situação de Imigrante irregular com a aplicação da Decisão de Regresso. Quanto ao segundo caso, Sr. Inan entrou legalmente na Holanda, em 1999. A autorização de residência concedida à restrição relatada “reagrupamento familiar no H. pai Inan”, a qual foi prorrogada várias vezes, a última até 10 de junho de 2005. Até sua prisão, o Sr. Inan vivia com seu pai. Em 22 de maio de 2007, o Sr. Inan foi condenado a uma pena de prisão incondicional de sete anos. Por decisão de 13 de Novembro de 2007, o Staatssecretaris disse: Inan é pessoa indesejada por causa da convicção e indeferiu o seu pedido de renovação da autorização de residência, deixando-o em um situação de Imigrante irregular passível a ser atingido por uma Decisão de Regresso. Nestas circunstâncias, ao passo que a solução dos dois litígios pendentes que depende da interpretação do direito da União Europeia, o Raad van State decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões ao TJUE. o Tribunal considerou que os componentes do núcleo familiar de um trabalhador turco inserido no mercado de trabalho de um Estado-membro (a Holanda neste caso) pode sempre invocar tal condição se, mantendo a Cidadania turca, adquiriu a nacionalidade do Estado-Membro de acolhimento, sendo inaplicáveis as Decisões de Regresso41. Nos casos reunidos Y e Z envolvendo cidadãos paquistaneses, os envolvidos seriam fortemente ligados à fé no Paquistão, onde a viveram de maneira ativa. Na Ale41  TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. Decisão prejudicial do Raad van State, 27 de abril de 2012, TJCE, processos apensos C-199/12, C-200/12 e C-201/12 (pendente), ministro voor Immigratie en Asiel c. X, Y e Z. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2013.

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manha, estes continuavam a praticar a própria fé, considerando o exercício do culto em público necessário para conservar a própria identidade religiosa. O Tribunal foi solicitado para definir quais atos podem constituir um “ato de perseguição” no contexto de uma grave violação à liberdade de religião. No momento foi questionado à Corte se a definição dos atos de perseguição por razões religiosas compreendia também a interferência na liberdade de manifestar a própria fé. Restou esclarecido, portanto, que a interferência na manifestação da liberdade de religião constitui um ato de perseguição, sendo a gravidade intrínseca de tais atos e suas consequências para as pessoas interessadas que irão determinar se houve ou não tal violação42. Ao analisar o caso, o TJUE entendeu que a existência de um ato de perseguição pode resultar de uma violação da manifestação da liberdade exterior, e para avaliar se uma violação do direito à liberdade de religião que viola o artigo 10, parágrafo 1 º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia pode constituir um “ato de perseguição”, as autoridades competentes devem determinar, à luz da situação da pessoa em causa, se estes, devido ao exercício dessa liberdade no país, correm o risco real, em particular, de serem processados ou submetidos a tratamento desumano ou degradante43. Com relação aos efeitos da Decisão de Regresso, no caso Hassen El Dridi alias Karim Soufi julgado no Tribunal de Trento, o TJUE se pronunciou acerca da Diretiva de Retorno no sentido de que não se justifica a imposição da pena de prisão a um imigrante em situação irregular pela simples razão de que este, em violação de uma ordem para deixar dentro de um determinado período o território deste Estado, permanece neste local sem válida autorização44. A partir da análise destas decisões do TJUE proferidas nos últimos anos e do consequente incremento do corpus normativo da UE em matéria de imigração, é possível observar uma considerável ampliação da jurisprudência do TJUE sobre o tema da condição jurídica dos cidadãos de terceiros países localizados na Europa. Isto porque além das decisões relativas às normas comunitárias dedicadas especificamente à imigração e ao status dos imigrantes não-comunitários, interessantes prospectivas parecem advir a partir de pronúncias sobre os direitos humanos que envolvam o tema de cidadania, liberdade de circulação, permanência e regresso.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA . Causas reunidas C-71/11 e C-99/11, Bundesrepublik Deutschland c. Y e Z, paragrafi 72, 80. 2012a. Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2013 43  TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. Ibid, 2012 a. 44  TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. Causa C-61/11, 2011a. El Dridi, paragrafi 2962. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2013. 42 

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo pretendeu apresentar uma análise da jurisdicionalização de casos envolvendo Decisões de Regresso e direitos humanos dos imigrantes na Itália e na União Europeia. A partir da análise da atual política de Imigração adotada pela União Europeia, notadamente quanto à aplicação das Decisões de Regresso orientadas pela Diretiva do Retorno, verifica-se a possibilidade de afronta aos direitos humanos dos imigrantes, o que legitima estes a buscar proteção junto ao Poder Judiciário, seja ele nacional ou Comunitário. Quanto à política de imigração adotada pela Itália, percebe-se que os anos que precedem a adoção da política comum da União Europeia denotam que este Estado já possuía comandos de Regresso e Afastamento possivelmente atentatórios aos Direitos Humanos. Na realidade, a adesão da Itália ao Tratado Schengen e sua ratificação do Tratado de Amsterdã constituíram os precedentes legislativos desta norma, influenciando-a diretamente no sentido de orientar e marcar as escolhas políticas italianas quanto ao tema, vez que estas deveriam seguir os modelos europeus. Visando alcançar o objetivo deste estudo, várias decisões judiciais sobre a matéria foram analisadas. Em que pese a legítima possibilidade do Estado de aplicar a Decisão de Regresso a um imigrante em situação irregular, não se pode perder de vista que, principalmente nestes casos, os direitos humanos devem ser atendidos. Neste sentido questiona-se a legitimidade de uma medida de detenção que poderá durar até dezoito meses a ser cumprida por um imigrante em centros de detenção que possuem somente a denominação diferente de um cárcere. Tal questionamento se estende também à possibilidade do mesmo tratamento a menores desacompanhados e mulheres grávidas, bem como a imposições de regresso a um pai de família que, devido ao infortúnio de ser imigrante, não poderá conviver com seus filhos e esposas, ou diante do caso de pessoas nascidas na Itália, por exemplo, que conhecem a terra de origem dos seus pais somente por fotos, reportagens da televisão ou pelo documento de identidade a estes concedidos. Além disso, uma Decisão de Regresso pode ser acompanhada de uma interdição de entrada, ou de reingresso em todo o território coberto pela diretiva, que pode durar cinco anos ou até se prolongar indefinidamente. No caso da Itália, por exemplo, tal proibição pode durar até dez anos. Num processo apto a resultar em tão graves conseqüências, o Estado pode considerar desnecessária a tradução dos documentos, desde que se possa razoavelmente supor que o envolvido os compreenda. Ademais, as informações sobre as razões de fato da decisão podem ser limitadas, para salvaguardar, entre outros, a segurança nacional, as quais podem ser proferidas somente na via admi-

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nistrativa, sem a necessidade de confirmação judicial. Dentre estes e tantos outros variados assuntos que podem envolver imigrantes e Decisões de Regresso, demonstrou-se não ser possível analisar o tema somente sob o viés do objetivo da política de imigração. Existem tantas outras derivações e peculiaridades que envolvem um imigrante, bem como também existem tratados internacionais – leia-se, neste caso, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, Convenção Internacional dos Direitos das Crianças até a própria Convenção Europeia e a Carta Europeia de Direitos Humanos - e previsões constitucionais dos próprios Estadosmembros que são diretamente feridos pelos dispositivos desta diretiva. Ao prever a detenção de imigrantes a diretiva representa um desproporcional e discriminatório atentado ao direito à liberdade. Desproporcional, porque não está em causa uma conduta que, pelo seu dano social ou periculosidade, possa ser equiparada a um crime. A esmagadora maioria dos seres humanos envolvidos desempenham atividades laborais que satisfazem necessidades econômicas e sociais dos países de acolhimento e, em muitos casos, a entrada ilegal ou o fato da sua permanência exceder o período de validade dos vistos, não tem impedido a sua posterior legalização, nem mesmo tem evitado que os empregadores utilizem a diretiva como uma ameaça contra os trabalhadores imigrantes. Não se pode ignorar, também que, com frequência, os imigrantes irregulares, não só não representam um perigo social, como são verdadeiras vítimas de redes de imigração ilegal, quando não até vítimas de tráfico de pessoas. Da análise da política europeia sobre a Imigração torna-se evidente que todo o contexto histórico visando o controle do fluxo de pessoas estranhas demonstra o imperioso interesse de controle das fronteiras da União. No entanto, a contradição verificada hoje é flagrante, pois a cada dia incentivam-se as trocas, estreitam-se as relações entre bens e empresas, mas fecham-se os portões para o intercâmbio humano. Especificamente diante da aplicação de Decisões de Regresso pela Itália, ou por outro Estado-membro da União, em desfavor dos imigrantes, a proposta de efetivação de tais direitos ocorrerá por meio da atuação dos tribunais competentes para tratar da matéria de violação dos Direitos Humanos no âmbito da União Europeia. Com relação ao TEDH, este tem se mostrado ativo no tratamento de matérias concernentes à CEDH, garantindo uma série de direitos aos imigrantes submetidos à uma decisão de regresso, acenando uma série de limites ao poder estatal diante da aplicação de uma medida de regresso que afronte os direitos humanos dos envolvidos. Igualmente, o TJUE também tem contribuído para um diálogo interativo entre os ordenamentos jurídicos e também entre os Tribunais. A atuação deste tribunal denotou um incremento do corpus normativo do direito da UE em matéria de Imigração, tornando-se claro observar uma considerável ampliação da jurisprudência do TJUE so-

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bre o tema da condição jurídica dos cidadãos de terceiros países localizados na Europa. Outra constatação que não pode deixar de ser mencionada é o fato de que o complexo de todas as decisões - do TEDH e do TJUE – envolvendo imigrantes nas mais diversas situações tendem a formar um “estatuto” de proteção aos direitos destes, passo a passo que questões individuais são contestadas. Esta inquietação, transformada em jurisdicionalização das demandas, tende a enaltecer a necessidade da comunicação a fim de promover o debate e a jurisdicionalização de determinadas questões e a consequente efetivação dos direitos humanos dos imigrantes. REFERÊNCIAS Agenzia dell’Unione europea per i diritti fondamentali. Manuale sul diritto europeo in materia di asilo, frontiere e immigrazione. Lussemburgo: Ufficio delle pubblicazioni dell’Unione europa, 2013. BASCHERINI, Gianluca. Immigrazione e diritti fondamentali. L´esperienza italiana tra storia costituzionale e prospettive europee. Napoli: Jovene editore, 2007. CONSELHO DA EUROPA. Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1950. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. CORTI, Paola. Storia delle migrazioni internazionali. Roma-Bari: Laterza, 2010. ______; SANFILIPPO, Matteo. L´Itália e le migrazioni. Roma: Editori Laterza, 2012. ITÁLIA. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ITALIANA, de 27 de dezembro de 1947. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2013. ______. Legge n. 39/1990. Conversione in legge, con modificazioni, del decreto-legge 30 dicembre 1989, n. 416, recante norme urgenti in materia di asilo politico, di ingresso e soggiorno dei cittadini extracomunitari e di regolarizzazione dei cittadini extracomunitari ed apolidi già presenti nel territorio dello Stato. Disposizioni in materia di asilo. in Gazz. Uff., 28 febbraio, n. 49. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2012. ______. Decreto Legislativo n. 286 di 25 luglio 1998. Testo unico delle disposizioni concernenti la disciplina dell’immigrazione e norme sulla condizione dello straniero. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2012. ______. Legge n. 189 di 30 luglio 2002. Modifica alla normativa in materia di immigrazione e di asilo. Disponível em: . Acesso em: 09 jun. 2012. ______. Consiglio di Stato. Decreto 3076/08. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2013. ______. Corte Constitucional Italiana. Sentença 120/1967 de 23 de novembro de 1967. Disponível em: http://www.cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do. Acesso em: 01 set. 2013. ______. ______. Sentença 104/1969 de 26 de junho de 1969. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. ______. ______. Sentença 28/1985 de 19 de janeiro de 1995 (a). Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2013. ______. ______. Sentença 199/1986 de 18 de julho de 1986. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2013. ______. ______. Sentença 34/1995 de 13 de fevereiro de 1995. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2013 ______. ______. Sentença 353/1997 de 21 de novembro de 1997. Disponível em: < http://www. cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>. Acesso em: 14 set. 2013 ______. ______. Sentença 203/1997 de 26 de jungo de 1997 (a). Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2013. ______. ______. Sentença 105/2001 de 10 de abril de 2001. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2013 ______. ______. Sentença 222/2004 de 07 de abril de 2004. Disponível em: < http://www.cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>. Acesso em: 14 set. 2013. ______. ______. Sentença 223/2004 de 15 de julho de 2004 (a). Disponível em: < http://www. cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>. Acesso em: 14 set. 2013 ______. ______. Sentença 466/2005 de 28 de dezembr de 2005. Disponível em: < http://www. cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>. Acesso em: 14 set. 2013 LOCCHI, Maria Chiara. I diritti degli stranieri. Roma: Carocci editore. 2011. PORTUGAL. Procuradoria da República. Gabinete de Documentação e Direito Comparado (GDDC), 2013. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. SILVA, Karine de Souza. União Europeia: antecedentes e evolução histórica. In: SILVA, Karine de Souza; COSTA, Rogério Santos da. Organizações internacionais de integração regional: União Europeia, Mercosul e UNASUL. Florianópolis: Editora Ufsc, 2013. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. Causa C-33/07, Jipa contra Romênia. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2013. ______. Causa Hassen El Dridi, alias Soufi Karim. Pedido de decisão prejudicial: Corte d’appello di Trento – Itália. 2011. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2013. ______. Causa C-61/11, 2011a. El Dridi, paragrafi 29-62. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2013. ______. Decisão prejudicial do Raad van State, 27 de abril de 2012, TJCE, processos apensos

Carla Piffer| 39 C-199/12, C-200/12 e C-201/12 (pendente), ministro voor Immigratie en Asiel c. X, Y e Z. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2013. ______. Causas reunidas C-71/11 e C-99/11, Bundesrepublik Deutschland c. Y e Z, paragrafi 72, 80. 2012a. Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2013 TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS. Sentença n. 10730/84. 21 june 1988. Case of Berrehab v. the Netherlands. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013. ______. Sentença n. 14038/88. 07 july 1989. Case of Soering v. The United Kingdom. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013 _____. Sentença n. 54273/2000. 02 august 2001. Case of Boultif v. Switzerland. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013. ______. Sentença n. 55764/2000. 04 august 2005. Case of Zeciri v. Italy. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013 ______. Sentença n. 37201/2006. 28 february 2006. Case of Soering v. The United Kingdom. Disponível em: < http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-85276>. Acesso em: 15 ago. 2013. UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2004/114/CE do Conselho, de 13 de Dezembro de 2004, relativa às condições de admissão de nacionais de países terceiros para efeitos de estudos, de intercâmbio de estudantes, de formação não remunerada ou de voluntariado. JO L 375 de 23.12.2004, p. 12-18. Disponível em: . Acesso em: 09 abr. 2012. UNIÃO EUROPEIA (site oficial), 2012. Tratado de Amsterdã. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2012.. ______, 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2013.

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O MOVIMENTO DE PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS NA AMÉRICA LATINA, O CONTEXTO BRASILEIRO E AS INICIATIVAS MUNICIPAIS DA CIDADE DE DOURADOS PARA A ASSISTÊNCIA ÁS PESSOAS EM TRÂNSITO César Augusto S. da Silva1 Caio Morelli Marques2 Resumo: O fenômeno dos refugiados ganhou grande notoriedade a partir da Segunda Guerra Mundial, sendo que nesse período a América Latina recebeu grande contingente de refugiados provenientes da Europa e se inseriu no contexto internacional do refúgio. O Brasil teve destaque neste contexto, porém foi no seu período de redemocratização que consolidou com outros países as diretrizes do multilateralismo e defesa dos direitos humanos. Através de levantamento bibliográfico e pesquisa de campo buscamos analisar a região do estado do Mato Grosso do Sul como local de passagem de imigrantes e refugiados, suas dificuldades quanto ás várias etapas do processo envolvido, e o importante papel de iniciativas para essas pessoas na esfera municipal, em específico a cidade de Dourados (MS), como cidade “de passagem” de imigrantes e de possíveis refugiados, como estratégias para os problemas atuais de assistência desse grupo. Palavras chave: Refugiados; Política Brasileira; Dourados-MS. Abstract: The phenomenon of the refugees gained great renown in the context of the Second World War, in this period the Latin America received great contingent of refugees originating from Europe and was inserted in the international context of the refuge. Brazil had distinction in this context; however it was in his re-democratization period that it consolidated with other countries the guidelines of the multilateralism and defense of the human rights. Through literature and field research we seek to analyze the Brazil and Mato Grosso do Sul as highlighted in assisting refugees regarding other countries of the Latin America, his difficulties how the several stages of the process involved, and the important role of initiatives to these people at the municipal level, in specific the city of Dourados (MS), as city “of passage” of immigrants and of possible refugees, as strategies to current problems of assistance to this group. Keywords: Refugees, Brazilian Policy, Dourados-MS.

1  Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor dos cursos de Direito e Relações Internacionais da FADIR/UFGD. [email protected] 2  Discente e Pesquisador do Curso de Relações Internacionais da UFGD (FADIR/UFGD). [email protected]

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1 Introdução O fenômeno do refugio têm ganhado grande notoriedade no cenário internacional, segundo dados oficiais da ONU o número de refugiados no mundo é 51,2 milhões de indivíduos, que são provenientes de diversas regiões do globo, principalmente da África, Oriente Médio e Ásia. Segundo LOESCHER3, o legado do colonialismo praticado pelas grandes potências europeias dos séculos XV e XVI, é uma das principais causas deste fenômeno, uma vez que durante a dominação, a metrópole criava fronteiras no território conquistado, sem levar em conta as rivalidades e administração já praticada pela população local, fato que culmina com as diversas guerras civis no século atual. Além dos conflitos armados, a perseguição de qualquer natureza, que ameaça a vida do indivíduo, é outra causa do movimento. A Declaração de Cartagena de 1984 considera a “violação generalizada dos Direitos Humanos”, como um dos requisitos para a solicitação de refúgio. Logo, com o aumento de refugiados no contexto global, percebe-se que em vários Estados Nacionais os direitos de seus cidadãos não são respeitados de maneira satisfatória, os quais solicitam a proteção de outros Estados que se dispõem em acolhê-los. O Brasil é um desses Estados que busca aumentar o acolhimento, no qual se encontram, atualmente, cerca de 7.700 refugiados de 81 nacionalidades diferentes4. Neste contexto, foi criado o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), o qual é responsável por analisar e aprovar as solicitações de refúgio que vêm sofrendo um aumento vertiginoso desde 2010. Além disso, há uma grande variedade de organizações não governamentais espalhadas pelo território nacional que oferecem assistência e proteção a estes sujeitos. Por ser um país com dimensões continentais, o Brasil recebe muitos imigrantes internacionais, incluindo refugiados, por suas fronteiras. Estes municípios de entrada são conhecidos como cidades de passagem, que é o caso do município de Dourados, no estado do Mato Grosso do Sul, o qual está bem próximo da fronteira paraguaia. Por esse motivo, passam pela cidade uma grande quantidade de imigrantes, principalmente da América Latina, e dentre estes se encontram possíveis solicitantes de refúgio. O presente artigo exibe uma breve análise histórica do movimento de proteção aos refugiados na América Latina, a atual situação latina americana e brasileira em relação a esse fenômeno, as dificuldades encontradas pelos solicitantes de refúgio no Brasil, e por fim, centraliza sua análise no caso específico da cidade de Dourados, no estado 3  LOECHER, Gill. Beyond Charity: International Cooperation and the Global Refugees Crisis. Oxford University Press, USA, p. 11 -30. 4  Disponível em http://oestrangeiro.org/2015/06/07/salvando-vidas/. Acesso em 28.06. 2015.

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do Mato Grosso do Sul. O artigo tem como base a política migratória brasileira, com abordagem das relações internacionais e da ciência política. Os resultados apresentados são parciais e busca expor as políticas municipais existentes na cidade para auxílio e recebimento dos imigrantes internacionais. Para essa finalidade, foi realizado levantamento bibliográfico nacional e internacional, pesquisa de campo, a qual consiste em entrevistas estruturadas realizadas em instituições municipais da cidade de Dourados - MS, coleta de dados e análise dos resultados. 2 Proteção aos refugiados na América Latina: contexto histórico A América Latina recebeu grande contingente de refugiados da 2º Guerra Mundial, provenientes da Europa. O Brasil teve destaque neste contexto, uma vez que foi o país que recebeu um grande contingente de refugiados, em torno de 40 mil pessoas em 1954, além da Venezuela, com aproximadamente 18 mil refugiados5. Com o início da Guerra Fria, o tema do refúgio ficou intimamente ligado à questão ideológica, pois os EUA e o bloco de países capitalistas recebiam refugiados dos Estados do Leste europeu, como argumento de superioridade do capitalismo em relação ao socialismo implantado em parte da Europa, enquanto plataforma de política externa6. Em 1950, a ONU criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, ACNUR, órgão específico de proteção ás vítimas de perseguição, violência e intolerância em seu país de origem, além de criar mecanismos de proteção às mesmas. Uma organização com recursos limitados e poucos funcionários, mas com uma abrangência de responsabilidades muito vasta e uma esfera para novas ações, praticamente infinitas7. E em 1951, na cidade de Genebra, foi realizada a Conferência Internacional das Nações Unidas, com a participação de 26 países, entre eles Venezuela, Colômbia e Brasil, durante a qual foi definido o conceito de refugiado. Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtu5  SHEPHARD, Ben. A longa estrada para casa – restabelecendo o cotidiano na Europa devastada pela guerra. Tradução de Vera Joscelyne. São Paulo: Paz e Terra, 2012. 6  SHEPHARD, Ben. Op Cit. 7  SHEPHARD, Ben. Op Cit, p. 485.

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de daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar8.

Segundo MOREIRA9, a definição traz uma limitação geográfica e temporal, pois se refere aos “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951”, o que possibilita dupla interpretação: eventos ocorridos somente na Europa, ou aqueles ocorridos na Europa e em outros lugares. De acordo com a primeira interpretação, eram considerados refugiados somente os indivíduos europeus. Além disso, a Convenção estabeleceu que os refugiados acolhidos, não poderiam ser devolvidos para territórios, onde corressem o risco de perseguição política, étnica e religiosa. Conforme LOESCHER10, o legado do colonialismo nos países do chamado Terceiro Mundo resultou na criação arbitrária de fronteiras e tratamento preferencial a certos grupos populacionais, fatores responsáveis pelas guerras civis e movimentos separatistas nestas nações, principalmente no período de descolonização, como consequência desta situação estes novos Estados se converteram em produtores de refugiados. Este cenário se tornou nítido na década de 60, que trouxe consigo várias mudanças no sistema internacional, dentre elas a descolonização de países da África e da Ásia. Devido à limitação temporal e geográfica da Convenção de 51, os solicitantes de refúgios provenientes de Estados africanos e asiáticos não eram abrangidos pela mesma. Diante desta situação, em 1967, é assinado por todos os países latinos americanos, com exceção de Cuba, o Protocolo de sobre o Estatuto dos Refugiados, o qual elimina a restrição imposta pela Convenção anterior. Desta maneira passa a ser considerada refugiada qualquer pessoa que tenha fundado temor de perseguição, por motivos raciais, religiosos, políticos, e por este motivo se encontra fora de seu país de origem, uma vez que não quer ou não pode se valer da proteção do mesmo. Nas décadas de 1970 e 1980, com a implantação de regimes ditatoriais em várias nações da América Latina, com destaque para El Salvador, Chile, Nicarágua e Guatemala, os Estados latinos americanos deixaram sua posição de acolhedores e se tornaram produtores de refugiados. Neste período foi gerado um fluxo de dois milhões de refugiados na América Latina, os quais buscaram refúgios nos países vizinhos e Estados 8  ACNUR. Coletânea de Instrumentos de Proteção Nacional e Internacional de Refugiados e Apátridas. UNHCR. Disponível em: http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2012/ Lei_947_97_e_Coletanea_de_Instrumentos_de_Protecao_Internacional_de_Refugiados_e_Apatridas.pdf?view=1. Acesso em: 21 de setembro de 2014, p. 61. 9  MOREIRA, Julia Bertino. A questão dos refugiados nos contextos latino-americano e brasileiro. São Paulo, 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 de abril de 2015. 10  LOECHER, Gill. Ibid.

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Unidos. Entretanto, neste último, muitos pedidos de refúgios foram negados, uma vez que o governo norte americano apoiava os regimes de extrema direita dos países de origem dos imigrantes. Já os países da América Central e o México, reconheceram 150 mil refugiados1112. Neste contexto, foi realizado um colóquio na cidade de Cartagena, na Colômbia, em 1984. Como resultado foi assinado por vários países latinos americanos a Declaração de Cartagena, um documento que inaugurou um sistema regional de proteção aos refugiados, que engloba toda América Latina. Esta Declaração ampliou o conceito de refugiado, pois até então, a definição vigente, não reconhecia como solicitantes de refúgio os indivíduos que abandonavam seus países no período de 1970 a 1980, devido á presença de conflitos armados constantes e intermitentes. A Declaração de Cartagena, além de definir como refugiados os indivíduos que saem de seus Estados devido à ameaça e violação de seus direitos humanos, também incluem aqueles que deixam o país por causa da desordem pública e conflitos armados. Ou seja, o documento rompe com a barreira do âmbito individual, e passa a enxergar um contexto coletivo. Com isso, os solicitantes de refúgio não são apenas pessoas que sofrem perseguições individualizadas de religião, nacionalidade, opinião política, etc.; mas igualmente aqueles que vêm de países em guerras, lugares onde prevalece a violação massiva de direitos, e a desordem pública. Segundo TRINDADE13 a Declaração de Cartagena estabeleceu conexão entre os domínios do Direito Internacional dos Refugiados e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Apesar do Documento não ter caráter obrigatório, o mesmo foi assinado por diversos países da América Latina, como Venezuela, Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Belize, Honduras, Costa Rica, El Salvador e Panamá. Mesmo os Estados que não assinaram vêm adotando o conceito ampliado de refugiado. Além disso, há nações que adotaram a definição da Declaração em suas próprias constituições nacionais e o incorporaram no seu texto infraconstitucional, este é o caso do Brasil. A Declaração de Cartagena adquiriu grande importância no contexto latino ACNUR. Manual de Procedimentos e critérios para determinar a condição de refugiado. De acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. UNHCR. Disponível em: http://www.dedihc.pr.gov.br/arquivos/File/54BB90A0d01.pdf. Acesso em: 21 de setembro de 2014, p. 132. 12  ANDRADE, J. H. Fischel de. A Política de Proteção a refugiados da Organização das Nações Unidas – sua gênese no período pós-guerra (1946-1952). Brasília: UNB 2006. 327 f. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. 13  Apud BARICHELLO, Stefania Eugenia. A evolução dos instrumentos de proteção do direito internacional dos refugiados na América Latina: da convenção de 51 ao plano de ação do México. Universitas Relações Internacionais. Brasília, v. 10, n. 1, p. 35-51, jan./jun. 2012. 11 

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americano, e com isso, em comemoração aos vinte anos da Declaração, foi assinado o Plano de Ação México em 2004, o qual propõe maior integração entre governos locais, sociedade civil e a comunidade internacional para a proteção dos refugiados, fato que culmina com os projetos: Cidades Solidárias, Fronteiras Solidárias e Reassentamento Solidário. Dez anos depois, em 2014, foi assinado o documento Cartagena + 30 em Brasília, o qual mais uma vez afirma os conceitos propostos pela Declaração de 1984, além de analisar a situação atual dos refugiados, deslocados internos e apátridas em toda a região da América Latina. Todos estes movimentos de proteção aos refugiados na região possibilitou a criação de mecanismos legais, em diversos países latinos americanos, os quais são reconhecidos internacionalmente como Estados acolhedores de indivíduos em busca de refúgio, entretanto, a população de refugiados ainda enfrentam certas dificuldades, principalmente no âmbito da integração com a comunidade nacional. Fato que mostra a constante necessidade de inovar as políticas públicas, para que sejam promovidos avanços na recepção e integração dos mesmos. 3 América Latina e Brasil: situação atual do refúgio De acordo com o ACNUR14, em 2011 o panorama das pessoas em necessidade de proteção na América Latina era de 4.1 milhões. Estas estavam divididas entre: refugiados sendo 83 mil indivíduos; possuindo como países em destaque o Equador, a Costa Rica, Brasil, Argentina, Panamá, o Chile e a Venezuela. População vivendo como refugiados sendo 290 mil; destacando-se a Venezuela, o Equador, Panamá, e Costa Rica. Outro grupo como solicitantes de refúgio (71 mil), divididos entre Equador e Venezuela. E ainda os deslocados internos por conflitos armados, com cerca de 3,6 milhões. A Colômbia tratava-se do destaque evidente, enquanto único país com deslocados internos, além de muitos viverem na região “entre fronteiras”, ora adentrando as fronteiras brasileiras na região Amazônica15. Segundo ZARJEVSKI16 “os países da América Latina se inseriram no contexto internacional do refúgio após acolherem cerca de 100 mil refugiados entre 1947 a 1952”. Porém foi no período de redemocratização do Brasil que o mesmo e os demais países com acordos para a proteção dos refugiados, estabeleceram como diretrizes de política externa o multilateralismo, a cooperação, defesa dos direitos humanos, adesão aos regimes e o respeito às organizações internacionais. Desde então, o país passou a se ACNUR apud MENEZES, 2011, p. 95. REDIN, Giuliana. Direito de Imigrar – Direitos Humanos e Espaço Público. Florianópolis: Conceito Editorial, 2013, p. 144. 16  Apud MOREIRA, Julia Bertino. Ibid, p. 59. 14  15 

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destacar quanto à criação de políticas públicas para ampliar sua proteção aos refugiados e promover soluções duradouras, com o ponto culminante com a aprovação da lei 9.474/97, o Estatuto dos Refugiados. Já que cada Estado precisa instituir procedimentos internos para a proteção dos refugiados de acordo com suas normas constitucionais, a lei 9.474 foi criada em 22 de julho de 1997 com o intuito de proceder em relação à proteção desse grupo dentro de suas normas internas. Segundo o 1o artigo da lei “será reconhecido como refugiado todo o indivíduo que devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupos sociais ou opinião políticas encontram-se fora de seu país de origem e não possa e não queira acolher-se a proteção de tal país”. Ou seja, no contexto da legislação são responsáveis pela questão dos refugiados, o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), que é constituído de um representante do Ministério da Justiça que ocupa o cargo de presidência no órgão, de Relações Exteriores (vice-presidência), do Trabalho, da Saúde, da Educação e do Departamento da Polícia Federal, um representante da sociedade civil que possui direito a voto e um representante do ACNUR que não possui poder de voto. E também a Polícia Federal no auxílio da obtenção de documentos como o Registro Nacional do Estrangeiro (RNE), Carteira de Trabalho e Previdência Social definitiva (CPTS) e um número de cadastro de pessoa física (CPF). A representante da sociedade civil, a Cáritas Brasileira, vem se destacando, uma entidade que presta serviços de acolhida e interação de refugiados no Brasil, além de Pastorais do Imigrante e ONGs em várias cidades brasileiras. Conforme o CONARE, o Brasil possui atualmente em torno de 7.700 refugiados reconhecidos, de 81 nacionalidades incluindo os reassentados (dados de meados de 2015). Os principais grupos são nacionais da Síria, Colômbia, Angola e República Democrática do Congo (RDC)17. O ACNUR conta com uma sede em Brasília e duas unidades em São Paulo, que são responsáveis pela proteção e integração de refugiados além de arrecadações de fundos privados. Precisa trabalhar em parceria com o governo nos âmbitos federal, estadual e municipal, com o setor privado e organizações civis em regiões estratégicas no país para efetivar suas políticas. O reconhecimento internacional do Brasil como um líder regional na temática de proteção aos refugiados, na atualidade, é fundamentalmente explicado por essa relação triparte construída historicamente entre o governo, a sociedade civil e o ACNUR no que tange às políticas nacionais para refugiados e que levou ao fortalecimento e engajamento do país no tema nos últimos anos.

17 

Disponível em http://oestrangeiro.org/2015/06/07/salvando-vidas/. Acesso em 28.06. 2015.

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4 Dificuldades encontradas pelos refugiados no Brasil A composição legislativa atual para assistência aos refugiados no Brasil é destaque perante a comunidade internacional, porém ainda há muitas dificuldades quanto ás várias etapas do processo envolvido, desde o reconhecimento do refúgio até a integração dos refugiados na sociedade civil e garantia de todos os seus direitos. Os principais desafios para soluções eficazes e duradouras estão relacionados principalmente à centralização das responsabilidades das organizações envolvidas e consequentemente a burocratização do processo, além de aspectos de gestão e ausência desses órgãos em regiões estratégicas do país, como nos locais considerados de passagens desses grupos que geralmente não são os grandes centros urbanos, como é caso do estado do Mato Grosso do Sul. O processo de assistência ao refugiado no Brasil se inicia com a solicitação do refúgio. Segundo as disposições presentes nos artigos 7o e 9o da Lei 9.474/97, os solicitantes de refúgio devem se apresentar a qualquer autoridade migratória dentro do território nacional para explicar as razões que levaram a deixar seu país de origem e solicitar refúgio, esta deverá ouvir o interessado e elaborar uma declaração contendo as informações obtidas. Já nesse primeiro contato com refugiado os profissionais envolvidos encontram barreiras quanto á falta do domínio do idioma do solicitante, o desconhecimento da realidade social, política e econômica do país e principalmente pela situação atual da “cultura política desses agentes”, o que dificulta a implantação das políticas para esses grupos: SILVA18 afirma: A legislação procura superar desafios para estabelecer políticas públicas voltadas aos refugiados. Tais desafios giram em torno de uma melhor gestão de organização desta instituição que decide a condição de refugiado no país, pois é o maior responsável pela política nacional do tema. Assim como a cultura política dos agentes públicos que compões a entidade e daqueles que fazem o primeiro contato com o solicitante de refúgio nas fronteiras do país, os agentes da policia federal”.

Depois da apresentação, a declaração com pedido de refúgio será encaminhado para o CONARE (Comitê Nacional para Refugiados) que conta apenas com a sede em Brasília. Trata-se do único órgão habilitado para decidir a situação do solicitante, ou SILVA, César Augusto S. da. Desafios para uma política brasileira para refugiados no contexto contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Faculdade de Direito/ UFRGS, v. especial, p. 182-208, Jan. 2014, p. 185. 18 

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seja, pedidos de todas as regiões do país se concentram nesse órgão. Conforme SILVA19 “o CONARE atualmente apresenta em torno de somente nove funcionários em sua estrutura administrativa, e com grande acúmulo de casos de anos anteriores.” Com essa demanda as decisões podem demorar em média quase um ano. Isso é reflexo dos desafios enfrentados pelos CONARE atualmente por conta de sua gestão e pelo fato de não estar concentrado em Brasília e contar apenas com a Polícia Federal e os parceiros das organizações não governamentais nas fronteiras brasileiras. Essa enorme demanda, devida essa centralização de responsabilidades pelo CONARE, interfere nas seguintes etapas para a legalização do solicitante no país, como na rigorosa triagem qual o possível refugiado passará. E que poderá durar de três a seis meses em média, que consiste em entrevistas e conferência de dados pelo órgão. Essa etapa gera um verdadeiro contratempo para os servidores entrevistadores que precisam se deslocar para os diferentes pontos do país para ouvir os solicitantes, que implica, sobretudo, no tempo e orçamento necessários para esse deslocamento, e também para o refugiado que chega desgastado pela perseguição sofrida em seu país e que perdeu praticamente tudo: bens, emprego e muitas vezes até a família. Após isso, as autoridades migratórias precisam produzir o Termo de Declaração, pois esse servirá de documento até a emissão do Protocolo Provisório que pode ser pedido diretamente na Polícia Federal até a decisão definitiva em Brasília20. As diversas dificuldades para a legalização e inserção do refugiado na sociedade brasileira, como a garantia da educação, trabalho e saúde assegurados pela Constituição Federal vão muito além das questões burocráticas. Para se inserir na sociedade, o refugiado precisará trabalhar e nessa etapa da integração encontram muitas barreiras, principalmente pelos “mitos” criados pela própria população por conta do desconhecimento da causa: o “medo” de que esses “imigrantes” (como generalizam) tomem seus postos de trabalho, uma vez que há um número considerável de refugiados que são bem qualificados. Porém, não conseguem emprego assim como os demais, esse fato faz com que o ingresso desses indivíduos no mercado de trabalho aconteça principalmente por meio da economia informal e que fiquem mais vulneráveis á organizações criminosas. São prejudicados no que se refere ao microcrédito e direitos trabalhistas. Geralmente precisam de atendimento médico específico com psicólogos, que não são facilmente conseguidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), há ainda a resistência da sociedade civil em aceita-los sem preconceitos ou discriminação. SILVA, César Augusto S. da. Ibid, 2014, p. 195. SILVA, César Augusto S. da. A Política brasileira para refugiados (1998-2012). Porto Alegre: UFRGS 2013. 292 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Programa de Pós Graduação em Ciência Política, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013, p. 149. 19  20 

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Por da análise das diversas interpretações normativas que em sua maioria são restritivas e securitárias quanto ao que se refere às migrações internacionais, observamos que o que consta na Lei brasileira para proteção a esse grupo em específico, não condiz com a realidade enfrentada pelos mesmos. “Ora o tratamento aos refugiados é encarado como uma questão de direitos humanos, ora é vislumbrado como de segurança nacional”21. O primeiro passo, para soluções duradouras, lutar contra o desconhecimento sociedade em geral quanto a esses dois conceitos e principalmente aos órgãos competentes como a Polícia Federal quanto à criminalização das migrações internacionais. As políticas públicas e o conjunto de suas ações que também incluem a sociedade civil têm o dever de garantir os benefícios a quais estão propostas, com os instrumentos, procedimentos e recursos coerentes ás atuais necessidades dos refugiados, independentemente da localidade desses indivíduos dentro do território nacional. Sendo assim mesmo que essa localidade não represente o destino final do possível refugiado, os locais de passagem, também precisam ser incluídos no que tangem tais políticas, principalmente por se tratar de cidades fronteiriças em sua maioria, e muitas vezes já nessas cidades iniciam o processo de solicitação de refúgio. Assistir á essas cidades com as políticas para refugiados, pode significar um grande avanço estratégico para a eficiência, desburocratização e melhorias na assistência aos mesmos. 5 O caso do Mato Grosso do Sul: Dourados, cidade fronteiriça do Brasil O estado do Mato Grosso do Sul é considerado porta de entrada de vários imigrantes internacionais no Brasil, os quais, em sua maioria, provêm de países da América do Sul, uma vez que o estado faz fronteira com dois países do Cone Sul, Paraguai e Bolívia. Segundo SILVA22 o Mato Grosso do Sul é o quarto estado brasileiro, pelo qual mais entram imigrantes solicitantes de refúgio no país. Entretanto muitos desses indivíduos não permanecem no estado, se dirigem para os grandes centros econômicos, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, já que buscam oportunidades de trabalho e emprego. Logo, os municípios fronteiriços são considerados lugares de passagem. Além disso, um levantamento estatístico do ACNUR de 2012, afirma que a região Centro- Oeste é segunda região nacional que mais recebe solicitações de refúgio, com 16% do total, apenas atrás da região sudeste, a qual recebe 66% das solicitações. Porém, apesar de sua posição de destaque, os estados que compõem a região Centro-Oeste não possuem comitês estaduais de Refugiados, os quais estão presentes em somente quatro unidades federativas: São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul. 21  22 

HAMID apud SILVA. César Augusto S. da. Ibid, 2013, p. 191 SILVA apud ABRAÃO, 2012.

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A partir desta situação, é possível concluir que dentre os imigrantes que entram pelo estado do Mato Grosso do Sul e passam por suas cidades de fronteira, há um número evidentemente relevante de possíveis refugiados, que muitas vezes, não são identificados ou sequer passam por qualquer tipo de registro. Devido á ausência de órgãos estaduais para o acolhimento dos solicitantes de refúgio nessas localidades, o trabalho se concentra nas mãos de organizações não governamentais, e também em políticas municipais. A cidade de Dourados está inserida neste contexto, uma vez que a mesma está localizada a aproximadamente 120 km da fronteira paraguaia, muito próxima de Ponta Porã, cidade gêmea de Pedro Juan Caballero (em território paraguaio). Como não há uma instituição estadual específica para este tema no município, os processos de acolhimento, e encaminhamento acontecem no âmbito municipal, através de políticas que incluem o atendimento aos imigrantes de todo o tipo. Segundo os dados oficiais do Município, em 2001, duas instituições da cidade trabalhavam diretamente com os imigrantes, a Casa da Acolhida e a Cada da Divina Providência. Esta última era uma organização não governamental, e atualmente se encontra desativado. A Casa da Acolhida é uma instituição pública municipal, a qual recebeu, em 2001, 87% dos imigrantes que passaram pela cidade. Em 2014, foi inaugurado pela prefeitura do município de Dourados, o Centro de Referência especializada para População em Situação de Rua – Centro POP, o qual atende e presta assistência aos moradores de rua e à população em situação de trânsito. Com isso, no contexto atual, a Casa da Acolhida e o Centro POP são as duas instituições que recebem e trabalham de maneira direta com os imigrantes que chegam a Dourados. Logo, para o estudo e análise da situação atual dos imigrantes internacionais, e possíveis refugiados na cidade de Dourados, foram realizadas entrevistas com as coordenadoras de ambas as instituições. Vale ressaltar que as duas instituições não tem os migrantes como público- alvo específico, porém abrange esta classe de indivíduos em seus atendimentos. Ambas as instituições pertencem á gestão da política de assistência social de Dourados. a) Centro de Referência Especializada para População em Situação de Rua. O Centro de Referência Especializada para População em Situação de Rua, mais conhecido como Centro POP, realiza seus trabalhos dede de Julho de 2012, porém seu ponto fixo de atendimento foi oficialmente inaugurado em Maio de 2014. O centro tem como público os indivíduos em situação de rua, o que inclui os moradores de rua

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da cidade, e também os migrantes que passam por Dourados, uma vez que os mesmos não possuem uma moradia. Segundo dados oficiais do Centro, no ano de 2014 foram atendidos 468 imigrantes pela instituição, uma média de 68 indivíduos por mês. Os usuários, em sua grande maioria são homens (429) com idade a cima de 20 anos. No ano passado, 39 mulheres passaram pelo Centro. A instituição não fornece atendimento para menores desacompanhados. É importante esclarecer, que os números apresentados englobam todos os tipos de migrações, inclusive a deslocação de brasileiros de uma região do país para outra. As maiorias dos imigrantes recebidos são haitianos, paraguaios, uruguaios, bolivianos, africanos, chilenos, argentinos e libaneses (Informação Verbal) 23. Ao chegar ao Centro POP, os imigrantes são registrados no livro e no sistema de informática. A falta de documentação não é um empecilho ao atendimento, porém implica nos encaminhamentos que serão realizados. Logo, se o estrangeiro chega sem documentos, é acompanhado por um servidor da instituição á Polícia Federal, no caso dos cidadãos brasileiros, é feito um boletim de ocorrência, com a posse desses documentos é possível dar continuidade aos serviços prestados (Informação Verbal)24. Entretanto, a maioria dos imigrantes e possíveis refugiados que se apresentam à instituição está em situação regularizada e possuem documentação (Informação Verbal)25. Houve casos de refugiados que vieram de São Pulo para Dourados, os quais já tinham a carteirinha de refúgio, porém no ano passado um possível refugiado não regularizado chegou para o atendimento (Informação Verbal)26. Grande número de pessoas é direcionado ao Centro, através da indicação da população local, orientação da guarda civil, e outras instituições do município. Ultimamente, muitos imigrantes têm passado pelo Município de Dourados, com destino à cidade de Itaquiraí – MS, devido à existência de um abatedouro no município, que tem buscado os imigrantes enquanto mão – de –obra (Informação Verbal)27. No mês de Março de 2014 chegou uma mulher no Centro POP, a qual não conseguia se comunicar em língua portuguesa, com isso foi chamado um cidadão para ajudar na interpretação, entretanto o mesmo não tinha conhecimento do idioma utilizado pela atendida, logo a comunicação foi feita através de gestos, o que possibilitou o entendimento de que ela estava em busca de trabalho. Após a pesquisa realizada pela instituição, foi descoberto que o destino final da mulher era o município de Itaquiraí, AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Coordenadora do Centro POP. Depoimento em março de 2015. Dourados (MS). 24  AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit. 25  AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit. 26  AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit. 27  AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Ibid. 23 

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no qual iria trabalhar, e havia desembarcado no lugar errado (Informação Verbal) 28. O Centro trabalha a partir da escuta qualificada, também disponibiliza atendimento psicossocial, orientação jurídico-social, e diagnóstico socioeconômico. Porém, a maioria dos imigrantes que se apresentam ao Centro vai em busca de passagens para outras localidades (Informação Verbal)29. Quando o imigrante já foi atendido por outra instituição em outra cidade, o Centro entra em contato com a mesma. Além disso, mantêm contato com o posto da Polícia Federal local, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio de Janeiro, e outras instituições (Informação Verbal) 30. Há casos, que os indivíduos são encaminhados para a Casa da Acolhida, principalmente aqueles que requerem passagens para outros locais. Com isso, ficam abrigados na Casa, até a aquisição da mesma. Há registros de africanos, possíveis potenciais solicitantes de refúgio, que ficaram na Casa da Acolhida por três dias, depois foram para o Rio de Janeiro (Informação Verbal)31. Este é um trabalho novo na cidade, e sempre está em busca de novas parcerias para a ampliação da rede e aperfeiçoamento dos serviços. Segundo a coordenadora do Centro, a principal dificuldade enfrentada é a não aceitação dos indivíduos em situação de rua por parte da sociedade civil organizada, a falta de compreensão, a qual é resultado do desconhecimento do assunto (Informação Verbal)32. Quando se trata do imigrante proveniente de outro país, surge a barreira da diferença idiomática, que de certa forma atrapalha o atendimento, uma vez que certos idiomas são de difícil compreensão, e a instituição não conta com pessoas para a realização de tradução e interpretação, uma vez que a sua demanda é considerada esporádica (Informação Verbal)33. Porém, quando chega alguém que não tenha o domínio da língua portuguesa, são procurados outros recursos, para a garantia do atendimento, como por exemplo, a ajuda de civis. Também há a dificuldade em relação às passagens, uma vez que esta é requisitada por grande parte dos usuários do Centro, porém em alguns períodos não é possível à aquisição da mesma. Além disso, algumas vezes o alto nível burocrático, somado á intolerância de outros órgãos públicos, prejudica a agilidade dos serviços (Informação Verbal)34. O Centro POP busca oferecer um atendimento de qualidade para todos, sem discriminação, buscando proteger o indivíduo dentro da lei, informa-lo a respeito de 28  29  30  31  32  33  34 

AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit. AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit.. AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit. AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit. AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit. AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Ibid. AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Op Cit.

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seus direitos e garantir a efetivação dos mesmos. b) A Casa de Acolhida. A Casa da Acolhida de Dourados é uma instituição pública mantida pela Secretaria Municipal de Assistência Social, a Casa opera no município desde 2001, e tem como principais usuários, classes distintas de indivíduos, as quais são: abrigados (pessoas que perderam totalmente o vínculo familiar, moram na casa por tempo indeterminado), pessoas em situação de rua, mochileiros, indivíduos em trânsito e migrantes. Ainda há aqueles não estão hospedados na instituição, mas recorrem a ela para realizar refeições diárias. De acordo com dados oficiais, durante os meses de Janeiro a Agosto de 2013, a Casa recebeu 609 acolhidos, dentre eles 473 (77,66%) homens, 101 (16%) mulheres, e apenas 34 (6%) crianças e adolescentes. O número baixo de menores é explicado pelo fato da instituição estar de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, com isso, não recebe menores desacompanhados. Em relação á faixa etária, a maioria dos usuários compreende entre 21 e 30 anos (44%), 46, 30% dos indivíduos atendidos alegam ser solteiros. Quando o indivíduo chega á Casa da Acolhida, é realizado um cadastro, e preenchida uma ficha, a qual abrange vários dados, inclusive os três últimos estados e cidades por onde ele passou. De acordo com as informações adquiridas, grande número dos atendidos já passou por outras cidades do estado do Mato Grosso do Sul. Os estados do Paraná, São Paulo e Mato Grosso também se destacam como lugares da última parada dos indivíduos antes de chegarem a Dourados. Há também os imigrantes estrangeiros que são atendidos pela Casa, em sua maioria são argentinos, paraguaios, uruguaios, peruanos, colombianos, equatorianos, haitianos e africanos em geral (Informação Verbal)35. Os migrantes acolhidos pela instituição, geralmente chegam à rodoviária da cidade, e são levados a Casa pela guarda municipal. Outros tomam conhecimento do local através de encaminhamento popular, ou de outras instituições, como por exemplo, igrejas locais (Informação Verbal)36. Estes indivíduos alegam estarem em busca de uma melhor qualidade de vida e novas oportunidades, muitos deles não permanecem na Casa da Acolhida por muito tempo, outros chegam em busca de passagens para outras cidades, e ficam na instituição até a aquisição da mesma (Informação Verbal) 37. SILVA, Cleibe Maria da. Coordenadora da Casa da Acolhida. Depoimento em Março de 2015. Dourados (MS). 36  SILVA, Cleibe Maria da. Op Cit. 37  SILVA, Cleibe Maria da. Op Cit. 35 

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A falta de documentação não implica no atendimento inicial, entretanto, aqueles que não apresentam nenhum tipo de documentos, são acompanhados até a Delegacia para a realização de um Boletim de Ocorrência. É importante ressaltar, que muitos indivíduos, passam antes pelo Centro POP, e são encaminhados para a Casa da Acolhida (Informação Verbal)38. A Casa possui parcerias com órgãos públicos municipais e federais, mantém vínculos com a OAB e a Casa dos Conselhos, além de contar com o apoio do SESC e da Mesa Brasil para capacitação das cozinheiras (Informação Verbal)39. Durante sua estadia, o acolhido não recebe apenas refeições hospedagem, tem acesso a atendimento psicológico, é orientado a respeito de seus diretos, e quando necessário, a Casa realiza encaminhamentos para outras instituições, as quais fornecem um atendimento mais rápido devido a mediação da mesma (Informação Verbal)40. Quando se trata dos migrantes internacionais, a principal dificuldade encontrada pela instituição é o idioma, porém, nestes casos eventuais, a Casa busca parceria com universidades e indivíduos da comunidade local que tenham conhecimento do idioma estrangeiro (Informação Verbal) 41. Também se nota certo grau de discriminação da sociedade em relação á estas pessoas, preconceito que deve ser descontruído a partir de informação e conhecimento. A Casa da Acolhida é um lugar para todos, os migrantes estrangeiros são acolhidos e tratados da mesma maneira como são os usuários nacionais. Os imigrantes, geralmente, são pessoas bem inteligentes e capacitadas, em certa ocasião a Casa recebeu um chileno, o qual cozinhava muito bem, no período de um dia, conseguiu dois empregos, a ideia de que os imigrantes são intelectualmente inferiores não condiz com a realidade (Informação Verbal)42. A instituição sempre buscar fazer algo a mais, que possa trazer melhorias para a vida do acolhido. 6 Considerações Finais Quando se trata de imigrantes e refugiados, é muito comum mencionar órgãos e políticas públicas federais, porém é possível perceber que as instituições municipais da cidade de Dourados, tem exercido um papel fundamental na recepção, acolhimento e assistência aos imigrantes internacionais e possíveis solicitantes de refúgio que cruzam a fronteira brasileira pelo Mato Grosso do Sul e passam pelo município. 38  39  40  41  42 

SILVA, Cleibe Maria da. Op Cit. SILVA, Cleibe Maria da. Op Cit. SILVA, Cleibe Maria da. Op Cit. SILVA, Cleibe Maria da. Op Cit. SILVA, Cleibe Maria da. Ibid.

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Entretanto, há registros de imigrantes internacionais, e até mesmo refugiados, que já haviam estado em outros estados e cidades da Federação, e vieram para a região da Grande Dourados em busca de emprego e de novas oportunidades de trabalho. É certo que os grandes centros nacionais, como São Paulo e Rio de Janeiro, continuam como principais destinos dos imigrantes, porém muitos tem se deslocado para outras partes do país, incluindo as cidades de fronteiras (local por onde muitos entraram no país), uma vez que os mesmos têm enfrentado grandes dificuldades de integração e falta de trabalho nas grandes metrópoles urbanas. Ambas as instituições da cidade apresentam ótima infraestrutura e bom planejamento, porém são fundamentais alguns aperfeiçoamentos para melhor atender os imigrantes que chegam a Dourados. Os funcionários precisam ter esclarecimentos sobre as condições em que o imigrante pode solicitar refúgio segundo a legislação brasileira; e com este conhecimento haveria grande facilidade em identificar esses sujeitos, além dos encaminhamentos realizados pelas instituições ganharem em eficácia e rapidez. Outro grande avanço seria o estabelecimento de uma rede municipal com pessoas fluentes em diversos idiomas, as quais poderiam ser contatadas, assim que o estrangeiro solicitasse o atendimento. A criação de um comitê municipal ou estadual para refugiados nas cidades de fronteiras do Mato Grosso do Sul. Em toda a região da fronteira seca do Estado, particularmente nas cidades de Ponta Porã e Dourados- MS seria de grande valia, a partir do momento em que as autoridades do estado percebessem que a questão migratória impacta, de maneira relevante, o Estado e os municípios, devendo ser tratada como algo estratégico dentro do espírito dos direitos humanos. O comitê, junto à gestão municipal, contribuiria tanto para modernizar os processos de reconhecimento da condição de refugiado, diminuindo as dificuldades encontradas pelos solicitantes, como para ajudar na sua integração com a comunidade local. Neste sentido, o desenvolvimento estratégico de postos de atendimento para imigrantes internacionais nestas regiões de passagem, com uma maior estrutura burocrática e de recursos humanos, para além apenas do atendimento dos postos da Polícia Federal, seria extremamente relevante. Ou seja, uma maior presença do Estado, de modo a aumentar a capacidade resposta pública no que tange ao recebimento e acolhimento de migrantes internacionais, incluindo refugiados. Referências Bibliográficas ACNUR. Coletânea de Instrumentos de Proteção Nacional e Internacional de Refugiados e Apátridas. UNHCR. Disponível em: http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2012/Lei_947_97_e_Coletanea_de_Instrumentos_de_Protecao_Internacional_de_Refugiados_e_Apatridas.pdf?view=1. Acesso em: 21 de setembro de 2014.

César Augusto S. da Silva e Caio Morelli Marques| 57 ________. Manual de Procedimentos e critérios para determinar a condição de refugiado. De acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. UNHCR. Disponível em: http://www.dedihc.pr.gov.br/arquivos/File/54BB90A0d01.pdf. Acesso em: 21 de setembro de 2014. ADUS. Instituto de Reintegração de Refugiados. Disponível em: . Acesso em: 20 de março de 2015. ANDRADE, J. H. Fischel de. A Política de Proteção a refugiados da Organização das Nações Unidas – sua gênese no período pós-guerra (1946-1952). Brasília: UNB 2006. 327 f. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. ARENDT, Hannah. Nós, os Refugiados. Tradução de Ricardo Santos. LusoSofia: press. Covilhã, 2013. BARICHELLO, Stefania Eugenia. A evolução dos instrumentos de proteção do direito internacional dos refugiados na América Latina: da convenção de 51 ao plano de ação do México. Universitas Relações Internacionais. Brasília, v. 10, n. 1, p. 35-51, jan./jun. 2012. BARRETO, LUIZ Paulo T. Ferreira; LEÃO, Renato Z. Ribeiro. O Brasil e o espírito da Declaração de Cartegena. Mini-feature: Brasil. Revista Forced Migration. Edição 35, Julho de 2010. BARRETO, Luiz Paulo T. Ferreira. Refúgio no Brasil. Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010. 216 p. FERLA, LEDI (Org.). Revisando a trajetória da Assistência Social em Dourados: a ruptura do favor na busca da consolidação do direito. Dourados: Arandu, 2014. p. 90; 220-230. LOECHER, Gill. Beyond Charity: International Cooperation and the Global Refugees Crisis. Oxford University Press, USA, p. 11 -30. MOREIRA, Julia Bertino. A questão dos refugiados nos contextos latino-americano e brasileiro. São Paulo, 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 de abril de 2015. MOREIRA, Julia Bertino; BAENINGER, Rosana. Refugiados e política pública no Brasil. VII Encontro da ANDHEP. São Paulo, 2014. Disponível em: . Acesso em: 13 de maio de 2015. PACÍFICO, Andrea Maria C. Pacheco. O capital dos refugiados: bagagem cultural versus políticas públicas. São Paulo: PUC 2008. 490f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais – Sociologia) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme A. Almeida. 60 anos de ACNUR. São Paulo: CL-A, 2011. REDIN, Giuliana. Direito de Imigrar – Direitos Humanos e Espaço Público. Florianópolis: Concei-

58 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas to Editorial, 2013. SHEPHARD, Ben. A longa estrada para casa – restabelecendo o cotidiano na Europa devastada pela guerra. Tradução de Vera Joscelyne. São Paulo: Paz e Terra, 2012. SILVA, César Augusto S. da. Desafios para uma política brasileira para refugiados no contexto contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Faculdade de Direito/ UFRGS, v. especial, p. 182-208, Jan. 2014. _________________________. A Política brasileira para refugiados (1998-2012). Porto Alegre: UFRGS 2013. 292 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Programa de Pós Graduação em Ciência Política, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. __________________________. Direitos Humanos e Refugiados. Dourados: UFGD, 2012. 144 p. Entrevistas AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Coordenadora do Centro POP, em Dourados. Depoimento em março de 2015. Dourados (MS). SILVA, Cleibe Maria da. Coordenadora da Casa de Acolhida de Dourados-MS. Depoimento em Março de 2015. Dourados (MS). RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme A. Almeida. 60 anos de ACNUR. São Paulo: CL-A, 2011. REDIN, Giuliana. Direito de Imigrar – Direitos Humanos e Espaço Público. Florianópolis: Conceito Editorial, 2013. SHEPHARD, Ben. A longa estrada para casa – restabelecendo o cotidiano na Europa devastada pela guerra. Tradução de Vera Joscelyne. São Paulo: Paz e Terra, 2012. SILVA, César Augusto S. da. Desafios para uma política brasileira para refugiados no contexto contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Faculdade de Direito/ UFRGS, v. especial, p. 182-208, Jan. 2014. _________________________. A Política brasileira para refugiados (1998-2012). Porto Alegre: UFRGS 2013. 292 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Programa de Pós Graduação em Ciência Política, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. __________________________. Direitos Humanos e Refugiados. Dourados: UFGD, 2012. 144 p. Entrevistas AMORIM, Amarilda de Jesus Alves. Coordenadora do Centro POP, em Dourados. Depoimento em março de 2015. Dourados (MS). SILVA, Cleibe Maria da. Coordenadora da Casa de Acolhida de Dourados-MS. Depoimento em Março de 2015. Dourados (MS).

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Da África para o Brasil: Estudo com Senegaleses no Sul do Brasil Anelize Maximila Corrêa1 Ana Paula Dittgen da Silva2 Resumo: O presente é fruto do trabalho de investigação realizado no município de Rio Grande/RS, com imigrantes senegaleses que vieram para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Buscase desvendar o modo de vida desses imigrantes, os casos de intolerância dos quais foram vítimas e o que o poder público local vem fazendo no sentido de evitar a segregação dos mesmos. A pesquisa identifica senegaleses que já passaram por situações de flagrante discriminação e realiza uma análise qualitativa de documentos e entrevistas semiestruturadas (MINAYO, 2003). Na construção deste trabalho, entendeu-se que a Análise de Discurso, tal qual proposta por Pêcheux (1990), foi essencial para a compressão do objeto desta pesquisa. O problema aqui proposto pode ser enfrentando por suas características históricas - a postura migratória brasileira foi vista por meio de suas contingências contextuais e pela perspectiva marxista/ideológica. Os fluxos migratórios para o Sul do Brasil, oriundos dos países da África, sobretudo o Senegal, tem encontrado resistência em espectros da sociedade local, que associa a xenofobia com discriminação racial e de classe. O não acolhimento dos imigrantes senegaleses pela população local e a inexistência de políticas públicas focalizadas para os mesmos dificultam de forma definitiva sua adaptação no país e empurram parcela deles para a marginalização. Palavras-chave: Imigração; Senegaleses; Discriminação. Resumen: Este es resultado del trabajo de investigación llevado a cabo en el municipio de Rio Grande / RS, con los inmigrantes senegaleses que llegaron a Brasil en busca de mejores condiciones de vida. Pretende desentrañar el modo de vida de estos inmigrantes, los casos de intolerancia de los cuales fueron víctimas y que el gobierno local ha estado haciendo con el fin de evitar la segregación de los mismos. La investigación identifica senegalese que han experimentado situaciones de discriminación flagrante y realiza un análisis cualitativo de documentos y entrevistas semi-estructuradas (Minayo, 2003). En la construcción de este articulo, se entiende que el análisis del discurso, como propone Pêcheux (1990), es esencial para la compresión del objeto de esta investigación. El problema aquí propuesto puede ser enfrentando por sus características históricas - la postura de inmigración brasileña fue visto a través de sus contingencias contextuales y el / la perspectiva ideológica marxista. La migración hacia el sur de Brasil, procedente de los países africanos, particularmente Senegal, ha encontrado espectros de resistencia de la sociedad local, que se asocia con la discriminación racial y de clase y la xenofobia. La no recepción de inmigrantes senegaleses por la populación local y la falta de políticas públicas dirigidas a los mismos dificulta a la adaptación de forma permanente en el país y los empujan a la marginalización. Palabras claves: Inmigración; Senegaleses; Discriminación.

1  Professora de Direito na Universidade Católica de Pelotas e da Universidade Federal de Pelotas, mestre em Direito Unisinos/Br, doutora em Direito UBA/Ar, doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Pelotas, Coordenadora GEMIGRA/UCPEL; [email protected]. 2  Professora de Direito na Universidade Católica de Pelotas, mestre e doutoranda em Política Social pela UCPel, Coordenadora GEMIGRA/UCPEL; [email protected].

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1 Introdução O presente é fruto do trabalho de investigação realizado no município de Rio Grande/RS, pelo Grupo de Estudos em Políticas Migratórias e Direitos Humanos – GEMIGRA/UCPEL, com imigrantes senegaleses que vieram para o Brasil a partir de 2013, em busca de melhores condições de vida. Com a pesquisa busca-se desvendar o modo de vida desses imigrantes, os casos de intolerância dos quais foram vítimas e o que o poder público local vem fazendo no sentido de evitar a segregação dos mesmos. A pesquisa identifica senegaleses que já passaram por situações de flagrante discriminação e realiza uma análise qualitativa de documentos e entrevistas semiestruturadas3. Na construção deste trabalho, entendeu-se que a Análise de Discurso, tal qual proposta por Pêcheux4, foi essencial para a compressão do objeto desta pesquisa. O problema aqui proposto pode ser enfrentando por suas características históricas, a postura migratória brasileira foi vista por meio de suas contingências contextuais, e pela perspectiva marxista/ideológica. 2 O papel do Brasil como receptor da imigração africana No Brasil a imigração foi impulsionada por importantes fatores, o primeiro deles pode ser identificado com a transformação do regime de trabalho na sociedade brasileira, necessidade provocada pela abolição da escravidão, produzindo a indispensável substituição da mão de obra escrava e negra pela mão de obra livre e branca. Os africanos traficados para o Brasil não se enquadram no conceito de imigrante, mas sua vinda, que significou um deslocamento de centenas de milhares de pessoas, significou uma importante mudança para a economia e configuração étnica e cultural do país. O comércio de africanos, de fato, foi uma das atividades mais rentáveis entre os séculos XVI e XIX. No que tange ao início da escravidão de africanos no Brasil, destaca MARQUESE5: Após 1560, com a ocorrência de várias epidemias no litoral brasileiro (como sarampo e varíola), os escravos índios passaram a 3  MINAYO, M.C. de S. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 22 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. 4  PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 1990. 5  MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. In: Novos estud. - CEBRAP [online]. 2006, n.74, pp. 107-123. Disponível em , p. 111.

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morrer em proporções alarmantes, o que exigia reposição constante da força de trabalho nos engenhos. Na década seguinte, em resposta à pressão dos jesuítas, a Coroa portuguesa promulgou leis que coibiam de forma parcial a escravização de índios. Ao mesmo tempo, os portugueses aprimoravam o funcionamento do tráfico negreiro transatlântico, sobretudo após a conquista definitiva de Angola em fins do século XVI. Os números do tráfico bem o demonstram: entre 1576 e 1600, desembarcaram em portos brasileiros cerca de 40 mil africanos escravizados; no quarto de século seguinte (1601-1625), esse volume mais que triplicou, passando para cerca de 150 mil os africanos aportados como escravos na América portuguesa, a maior parte deles destinada a trabalhos em canaviais e engenhos de açúcar.

Mas capitalismo encontrava resistência no sistema escravagista que subsistia no Brasil, pois como o trabalho escravo não era remunerado, ele limitava a expansão do mercado inglês, o que levou a Inglaterra a exigir de Portugal a abolição desse sistema de produção.6 Com a extinção do tráfico de escravos em 1850, os escravos existentes se concentraram basicamente nas lavouras de café paulistas, o que agravou o problema da mãode-obra no Brasil. Portanto não há como deixar de considerar a íntima ligação entre a empresa imigratória e a escravidão. Uníssonos são os historiadores ao analisar estes dois momentos: escravidão e imigração. Eles afirmam que a questão da imigração europeia no século XIX esteve intimamente ligada à escravidão7. A imigração proporcionou a substituição do escravo pelo trabalhador livre europeu e foi condição determinante para a abolição da escravidão. Importante lembrar que os africanos que até esse período foram retirados à força de sua terra natal, apartados de sua família e passados a ser tratados como coisa, tornando-se alienáveis e expostos a todo tipo de humilhações, hoje têm dificuldade de sair de seu país em busca de melhores condições de vida, mesmo quando precisam o fazer sob pena de serem mortos ou presos em razão de perseguições políticas, religiosas ou correlatas. Também não podemos esquecer da posição assumida pela elite intelectual brasileira, refletida nas leis do império, que defendiam e incentivavam o branqueamento da população brasileira, situação semelhante a que se passou em outras nações latino -americanas, como é o caso da Argentina, que na sua Constituição (artigo 25), revela a necessidade de incentivar a imigração europeia: “El gobierno federal fomentará la 6  LANDO, Aldair Marli e BARROS, Eliane Cruxên. Capitalismo e colonização – In RS: Imigração & Colonização. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996, p. 10-1. 7  SODRÉ, Nelson. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1976, p. 245 e seg.

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inmigración europea; y no podrá restringir, limitar ni gravar com impuesto alguno la entrada en el territorio argentino de los extranjeros que traigan por objeto labrar la tiera, mejorar las industrias, e introducir y enseñar las ciencias y las artes.” Para a ideologia dominante, o incentivo de ingresso de população branca e europeia permitiria melhores resultados no trato com a terra, incentivaria as artes e as ciências, bem como daria impulso à indústria. Por outro lado, evitaria, a longo prazo, o surgimento de nações de negros, que estaria intimamente ligado à ideia de fracasso. Para Sarmiento8 a causa do atraso da América Latina não seria apenas decorrente dos erros e ambições dos governantes, mas sim da miscigenação e do conflito de raças. Afirmava ser preciso branquear a raça, limpar o sangue, incentivar a imigração europeia que traz consigo a ciência, a indústria e a civilização. A substituição da mão de obra escrava por imigrantes europeus, marginalizados lá pelo mercado industrial e desejados aqui como barateamento do custo de produção também se inscreve no contexto civilizatório europeu. Assim, a imigração europeia, buscada, incentivada, justificada pelas nações latino-americanas como um processo de “branqueamento” da raça e com isso, de modernização da mão de obra e dos cérebros para fazer nascer e incrementar a industrialização, dentro dos parâmetros positivistas da ‘ordem e do progresso’, insere-se no horizonte da imitação e da dependência de uma Cristandade Colonial e pós-colonial.9

Também em outros países sul americanos a situação era semelhante: na Argentina, por exemplo, a grande imigração terminou provocando modificações significativas, tanto nos aspectos demográficos como nos econômicos e na vida política da Nação. Como consequência da grande imigração europeia, sobretudo a italiana, teve início em 1880 a chamada era das transformações. Neste período, a sociedade, apresentava um alto grau de pluralidade étnica. Ambos os governos tomaram medidas de incentivo à vinda dos migrantes. A imigração foi determinante na industrialização e no desenvolvimento agrícola sendo inquestionáveis as enormes contribuições sociais, econômicas e culturais para esses países. Atualmente conforme dados levantados por DUTRA et alii10, a partir de dados SARMIENTO (1811-1888) APUD ZANOTELLI, Jandir João. América Latina – Raízes sócio-políticoculturais. 2ª ed.revista e ampliada. Pelotas: EDUCAT, 1999, p. 159. 9  ZANOTELLI, Jandir João. Op. cit., p 157. 10  DUTRA, Delia et ali .Os estrangeiros no mercado de trabalho formal brasileiro: Perfil geral na série 2011, 2012 e 2013 in Cadernos OBMigra. Revista Migrações Internacionais. Vol 1. No 2. 2015. 8 

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do Ministério do Trabalho e Emprego, na análise da série 2011, 2012 e 2013 percebese um incremento na inserção de migrantes de todas as regiões do mundo no mercado formal de trabalho no Brasil. No entanto o local de origem de onde ingressaram menos migrantes é a África. 3 As políticas brasileiras de acolhimento de imigrantes O art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê a aplicação dos direitos humanos a todo e qualquer indivíduo, independentemente de qualquer condição pessoal. Assim, pressupõe-se que para todas as pessoas, sejam imigrantes legais ou ilegais, ou não, os direitos fundamentais serão respeitados. Ocorre que a previsão e efetivação de direitos humanos no âmbito dos ordenamentos jurídicos internos estão condicionadas à legislação de cada país, diante, principalmente, da ideia de soberania estatal. Pode-se dizer, assim, que a soberania, em sua concepção moderna, segundo Hannah Arendt11, apresenta-se como um entrave à concretização dos direitos humanos, já que a efetivação dos mesmos está vinculada à sua necessária incorporação ao direito produzido internamente pelos Estados, permitindo restrições especialmente no que tange aos imigrantes internacionais, que não possuem um vínculo jurídico-político com o território em que estão. A análise da política e legislações migratórias brasileiras nos revela que a proteção à tradicional soberania estatal reflete diretamente no tratamento destinado ao imigrante no Brasil, impedindo a construção de uma cidadania plural e inclusiva. A análise acerca do contexto legal e político em torno da questão migratória no Brasil pode ser iniciada a partir da seguinte problematização: há uma efetiva política migratória nacional? Que política é essa? A política migratória brasileira atual decorre, em parte, de leis consideradas ultrapassadas, oriundas, por exemplo, do período do governo militar (vide o Estatuto do Estrangeiro, publicado em 1980) e que, portanto, tinham como principal enfoque uma alegada defesa de segurança nacional ante a chamada ameaça estrangeira. Na lei 6815/80, Estatuto do Estrangeiro, as características não democráticas ficam perfeitamente evidenciadas no dispositivo que abre o estatuto brasileiro in verbis: “Em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair, resguardados os interesses nacionais”. A subjetividade, ausência de critérios pré-estabelecidos, ofensa ao princípio da legalidade já aparecem nesse dispositivo quando condiciona a observância das regras estatutárias a critérios subjetivos. A defesa dos “interesses nacionais” aparece insistenARENDT, Hannah, Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. Säo Paulo: Companhia das Letras, 1989. 11 

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temente nas regras do estatuto. Assim, além de no artigo 1º, nos artigos 2º e 3º, in verbis:12 Artigo 2º. Na aplicação desta Lei, atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional. Artigo 3º A concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais.

Como se pode observar a partir dos dispositivos supra transcritos, a lei reserva ao aparelho estatal um desmedido poder discricionário quando subordina a autorização de ingresso e permanência no país ao não delimitado interesse nacional. As características não democráticas restam evidenciadas através dos dispositivos que impedem a concessão de autorização de ingresso e permanência ao estrangeiro, considerado nocivo à ordem pública e aos interesses nacionais. Neste ponto, temos de levar em conta a característica de esta norma ser filha da ditadura militar, e ter concedido um excessivo poder discricionário ao agente estatal. Dessa forma, a norma estatutária brasileira contraria a Constituição do Brasil e os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, entre os quais o Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, que podemos extrair do entendimento do Comitê de Direitos Humanos13, o qual ao interpretar as restrições admitidas pelo artigo 12 § 3º do Pacto em conjunto com o disposto em seu artigo 5º, manifesta-se afirmando que a relação entre o direito e a restrição, entre a norma e a exceção, não deve ser invertida, já que as leis que autorizam a aplicação de restrições devem usar critérios precisos e não devem conferir discricionariedade ilimitada àqueles encarregados da sua execução14. Portanto tal posicionamento nos permite concluir que as restrições só poderiam ser estabelecidas dentro dos princípios que norteiam uma sociedade democrática. Art. 7º .................................................................................... Parágrafo único. A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores BRASIL. Lei nº 6815 de 1980. Estatuto do Estrangeiro. Disponível em . Acesso em 06 fev. 2015. 13  Órgão de monitoramento e controle criado pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos 14  Através da recomendação geral de nº 18. 12 

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específicos.

Conforme se depreende da análise do parágrafo único supra, a lei novamente se mostra frontalmente contrária à sistemática de proteção aos direitos humanos, uma vez que torna o Estatuto do Estrangeiro uma lei restritiva que termina por privilegiar uma minoria de imigrantes que tenham uma boa qualificação profissional e disponham de recursos financeiros significativos, consagrando assim a discriminação, face à condição econômica, qualificação profissional etc. A lei 6815/80 explicita os objetivos que deverão ser proporcionados pela imigração: mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à política nacional de desenvolvimento, e especialmente ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recurso para setores que sejam considerados prioritários15. Pelo que se pode extrair, sob a égide dessa lei, a preocupação deixa de ser com a povoação do País, mas com a qualificação profissional de quem imigra para o Brasil; neste sentido, passa-se a desenvolver uma imigração seletiva. O discurso oficial, então, considera que o Brasil precisa de elementos capazes de ajudar o seu desenvolvimento e não simplesmente de indivíduos para aumentar a sua população e ocupar seu território16. Tendo em vista a inadequação e senilidade da norma migratória vigente, incapaz de abarcar as questões migratórias enfrentadas pelo Brasil no século XXI, as resoluções adotadas pelo Conselho Nacional de Imigração17 ganham especial destaque. O Conselho, que é presidido pelo representante do Ministério do Trabalho e Emprego, tem por finalidade, entre outras, formular a política de imigração; coordenar e orientar as atividades de imigração; efetuar o levantamento periódico das necessidades de mão de obra estrangeira qualificada, para admissão em caráter permanente ou temporário; estabelecer normas de seleção de imigrantes, visando proporcionar mão de obra especializada aos vários setores da economia nacional e captar recursos para setores específicos. Na adoção de suas resoluções, o conselho tem refletido os interesses econômicos/ hegemônicos, os quais têm levado a alterações na política migratória, mantendo a imigração seletiva, mas atendendo os padrões das necessidades manifestadas pelo capital. Assim, em 2013, foram aprovadas resoluções pelo Conselho Nacional de Imigração Parágrafo único do artigo 16 da lei 6815/80. FRAGA, Mirtô. O novo estatuto do estrangeiro comentado. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p.8. 17  O Conselho Nacional de Imigração (CNIg) é um órgão colegiado, formado por representantes governamentais indicados por nove diferentes ministérios; representantes de cinco centrais sindicais, de cinco confederações de empregadores, um representante da comunidade científica, além de doze observadores. 15  16 

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que flexibilizaram a exigência de forte qualificação profissional, atendendo, assim, a demanda de mão de obra dirigida. Outro aspecto que merece análise diz respeito a situação dos imigrantes oriundos de Estados vizinhos, sobretudo daqueles que formam com o Brasil o Mercosul. Em 2009 entrou em vigor o acordo de residência do Mercosul e Estados associados o qual possibilitou a regularização migratória de estrangeiros da região que vinham para o Brasil e que por não possuírem a qualificação profissional exigida ou vínculo familiar não conseguiam adquirir uma situação migratória regular. Este acordo beneficia os nacionais de países que compõem o Mercosul e seus Estados associados, inclusive bolivianos, os quais viviam (e vivem) no Brasil em situação de extrema vulnerabilidade, trabalhando muitas vezes em situação análoga a de escravos em indústrias (atualmente pequenas oficinas) de confecção, sobretudo no estado de São Paulo. Pode-se observar que a situação vivida pelos bolivianos significou o início da crise migratória, a partir do qual a urgência das mudanças legislativas e políticas restou evidenciada. A questão imigratória passou a ser ainda mais percebida quando do incremento do fluxo migratório de haitianos para o Brasil, os quais impulsionados por dificuldades no estado de origem, decorrente da pobreza (maior das Américas) e do terremoto que devastou grandes áreas do país; bem como por uma “propaganda” favorável ao Estado de destino (tropas brasileiras, missão de paz, notícias de bom desempenho econômico e de níveis baixos de desemprego), passaram a vir para o Brasil. Nesse andar o Conselho Nacional de Imigração aprovou resoluções que autorizam a concessão de vistos de caráter humanitário, destinado sobretudo aos nacionais do Haiti. No que tange aos africanos que vem para o Brasil, especialmente os senegaleses, não há uma resolução específica do CNIg de modo a prever um tratamento específico para os mesmos, apesar das estatísticas mostrarem o fluxo cada vez maior dos mesmos para o país. O que ocorre com esses imigrantes é que eles fazem pedido de refúgio junto ao CONARE (Conselho Nacional de Refugiados), o qual expede declaração que autoriza a emissão do protocolo provisório de solicitação de refúgio. Este protocolo será o documento de identidade do solicitante até a análise de seu caso. Com ele, o solicitante poderá tirar o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a Carteira de Trabalho. O documento tem validade de três meses e deverá ser renovado na Polícia Federal até o solicitante ter sua resposta final. Ao ter negado seu pedido, o imigrante poderia, pelo Estatuto do Estrangeiro, ser deportado do Brasil, mas o que se tem feito é encaminhar seu caso ao Conselho de Imigração para a averiguação da concessão de visto permanente.

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Conforme levantamento do ACNUR18 a maioria dos pedidos atualmente em análise no Brasil são de senegaleses, de acordo com dados de setembro de 2014.19 O refúgio é um instrumento previsto em documentos internacionais e que visa a proteção de determinadas pessoas que são forçadas a saírem de seus países de origem por motivos de extrema gravidade. Segundo a Convenção de Genebra20: tendo sido (…) ou receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, e não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar.

Essas hipóteses de refúgio foram ainda ampliadas pela Declaração de Cartagena de 1984, prevendo-se também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.

O procedimento adotado pelos senegaleses ao entrar no Brasil nada mais é do que um subterfúgio encontrado na tentativa de preencher a lacuna que há na legislação migratória, de maneira que a causa desta imigração - essencialmente econômica - não se adéqua a nenhuma das hipóteses de refúgio. A certeza de que enquanto estão com o protocolo da solicitação de refúgio sua permanência em território nacional está garantida, faz com que praticamente a totalidade destes imigrantes utilizem esse procedimento. Cumpre destacar, neste sentido, que os fundamentos e objetivos através dos quais serão produzidas legislações e políticas migratórias é que informarão as consequências positivas ou não da entrada do estrangeiro no país. Assim elucida Grimson21: ACNUR. Refúgio no Brasil: uma análise estatística, 2014. ACNUR. Refúgio no Brasil uma análise estatística, 2014. 20  CONVENÇÃO DE GENEBRA, 1951. Disponível em . Acesso em 10 mar.2015. 21  GRIMSON, Alejandro. “Doce equívocos sobre las migraciones”, Revista Nueva Sociedad, n.233, maiojun. 2011. Disponível em: www.nuso.org/upload/articulos/ 3773_1.pdf, p. 36 18  19 

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En la historia humana ha habido procesos migratorios de enormes proporciones para las sociedades receptoras. Pero de acuerdo con las políticas públicas y los modelos de desarrollo, no solo en muchas ocasiones esos problemas encontraron soluciones, sino que el mismo proceso de poblamiento fue el hecho decisivo para generar tendencias de crecimiento económico, integración social y ampliación de los derechos sociales y políticos. Asimismo, en casos de prejuicios extremos y políticas públicas de segregación, procesos migratorios comparativamente pequeños han originados problemas graves y situaciones de exclusión y violencia social.

VAINER22 atenta para o fato de que como consequência direta do descompasso entre as demandas sociais e econômicas e as políticas adotadas oficialmente pelos Estados Nacionais, tem se observado a ampliação das desigualdades entre oportunidades e realizações dos projetos migratórios que se traduzem diretamente nas alternativas estratégicas de deslocamento. Assim, a clandestinidade e os chamados deslocados ilegais, indocumentados, compulsórios e refugiados proliferam-se e se tornam uma característica acentuada dos processos migratórios contemporâneos. Deisy Ventura e Paulo Illes23 fazem algumas considerações acerca do descompasso das leis brasileiras que tratam de migração no que tange àquelas dos demais países, especialmente na América do Sul: Salta aos olhos que, se quiser deixar para trás o legado da ditadura militar, em lugar de um Estatuto do Estrangeiro, o Brasil precisa de uma Lei de Migrações, capaz de dar forma jurídica a uma política legítima. Ela deve ser acompanhada de emendas constitucionais que eliminem as restrições injustificadas dos direitos dos estrangeiros que figuram na Constituição Federal. A anacrônica negação de seus direitos políticos é uma delas. O Brasil vai ficando isolado num continente em que o direito ao voto dos migrantes já foi reconhecido por Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, México e Peru.

Pode-se aferir, assim, que em decorrência de uma lei ainda retrógrada no que tange à questão migratória, tem-se no Brasil uma política casuística que funciona como uma espécie de colcha de retalhos, buscando adequar o precário cenário legal às demandas dos imigrantes, mas também servindo aos interesses do mercado. VAINER, Carlos B. Deslocados, reassentados, clandestinos, exilados, refugiados, indocumentados... As novas categorias de uma sociologia dos deslocamentos compulsórios e das restrições migratórias. In: Migrações internacionais. Contribuições para políticas. CASTRO, Mary Garcia (Coord.) Brasília: CNPD, 2001. 23  Idem. Loc. cit. 22 

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4 O caso dos senegaleses de Rio Grande Rio Grande é um município com 207.036 habitantes.24 Em razão da construção do pólo naval, o município passou a ser destino de inúmeros imigrantes internos e internacionais. A primeira leva de imigrantes internacionais foi formada por haitianos (os quais, em sua maioria, já deixaram a cidade em busca de novas oportunidades de trabalho) e nos últimos dois anos cresce a cada dia o número de senegaleses na cidade. A pastoral do migrante de Rio Grande25, entidade vinculada à Igreja Católica e que tem feito um importante trabalho no acolhimento dos imigrantes no município, estima que atualmente morem entre 120 e 150 senegaleses na cidade. A partir da constatação desta realidade, foram realizadas entrevistas semiestruturadas realizadas por um grupo de três pesquisadores do GEMIGRA/UCPEL no município de Rio Grande, entre os dias 18 e 19 março de 2015, e a amostra atingiu 20% dos senegaleses que residem no município. A entrevista foi previamente agendada com a intermediação da pastoral do migrante do município do Rio Grande e a escolha dos alojamentos a serem visitados foi feita pela pastoral pelo critério de organização dos locais. Ressalte-se que as pesquisadoras durante um período de seis meses que antecedeu a realização da pesquisa mantiveram contato pessoal, telefônico e por redes sociais com alguns dos senegaleses, em razão de projeto de extensão. Portanto estabeleceramse vínculos de confiança com os imigrantes, os quais, em regra, não falam abertamente sobre suas vidas, dificuldades, cultura. Notou-se que sem a aproximação prévia as entrevistas não lograriam êxito no sentido de extrair verdadeiramente os anseios, motivações que os fizeram imigrar e demais aspectos. Vir para o Brasil se tornou um projeto para estes jovens senegaleses (com idade entre 22 e 35 anos), alguns deixaram esposa e filhos no Senegal, outros amigos mãe e irmãs. A maioria juntou por um ano dinheiro para poder custear aas despesas de transporte para conseguir chegar ao Brasil. As conversas realizadas com os senegaleses também demonstraram a dificuldade que os mesmos tiveram para chegarem ao Brasil. A média de países pelos quais tiveram que passar antes de entrar em território brasileiro é de cinco. A viagem foi, na totalidade dos entrevistados, de avião da Espanha para o Equador, e a partir deste país foram tomados trajetos diferentes, todos de ônibus, por diversos países latino-americanos. A Conforme estimativa do IBGE para o ano de 2014, feita no Censo 2010. Disponível em < http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=431560&search=rio-grande-do-sul|riogrande|infograficos:-informacoes-completas>. Acesso em 10 fev. 2015. 25  Dados extraídos por meio de entrevista com a Irmã Ariete D’Agostini, coordenadora da Pastoral do Migrante de Rio Grande. 24 

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maioria dos entrevistados entraram no Brasil pela cidade de Brasiléia, no Acre, e foram mandados deliberadamente de ônibus fretado pelo Estado do Acre à cidade de São Paulo. Apenas um entrevistado entrou pela Argentina adentrando o território nacional por Uruguaiana. Ao serem questionados porque escolheram o Brasil afirmaram que viram na Internet que o “Brasil é bom, Brasil é legal”, fazendo referência a imagens que tinham do país: “futebol, carnaval e trabalho”. Os vínculos de amizade que tinham com senegaleses já residentes no país também foi fator importante para a escolha do destino. Os que estão a mais tempo no Brasil não tinham Rio Grande como destino ao chegarem ao Brasil, alguns passaram por outros municípios (Caxias do Sul, Passo Fundo – municípios que também vem recebendo uma quantidade significativa de imigrantes internacionais, inclusive senegaleses). Segundo se pôde aferir nas entrevistas, a quantidade de senegaleses chegando ao município cresce a cada dia, uma vez que as redes de contato levam ao estímulo para vinda desses imigrantes a locais em que já tenham outros compatriotas, possibilitando o compartilhamento da mesma cultura, língua, e religião (em regra muçulmana). Dois destes alojamentos visitados são disponibilizados pelas empresas que empregam os imigrantes, vinculadas à indústria de pescado. O terceiro local é uma casa em que moram em torno de oito senegaleses, todos eles vendedores ambulantes que sobrevivem da venda de produtos que afirmam comprar em São Paulo e revendem nas ruas de Rio Grande e das cidades vizinhas. A referida moradia é alugada e as despesas são divididas de forma igualitária e pagas integralmente pelos imigrantes que ali habitam (em torno de R$1.200,00 só de aluguel, para uma casa simples, com poucos cômodos). Percebeu-se que os imigrantes que possuem trabalho formal vivem em alojamentos relativamente estruturados bancados pelas empresas empregadoras. Estes possuem auxilio alimentação, plano de saúde e todos os direitos trabalhistas respeitados. Constatou-se que aqueles que não estão inseridos no mercado de trabalho formal vivem em situação precária dividindo residência com poucos cômodos e trabalhando como ambulantes. Alguns diuturnamente se dirigem as cidades vizinhas para comercializar seus produtos. Estes sistematicamente tem enfrentado problemas com as fiscalizações municipal pois vendem seus produtos em locais não autorizados, muitas vezes perdendo suas mercadorias e/ou tendo que arcar com multas bastante elevadas. Apesar de afirmarem que são os proprietários dos produtos que comercializam, causa estranheza a padronização dos produtos e das maletas utilizadas para exposição dos mesmos. Muitos destes migrantes estão há pouco tempo no Brasil e encontram dificuldade de comunicação no idioma português.

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São estes imigrantes presentes no mercado informal que terminam tendo maior contato com a sociedade local e sofrendo manifestações discriminatórias, muitas vezes associando a xenofobia com a injuria racial. Como é o caso de um ambulante que foi agredido fisicamente e moralmente no centro da cidade de Pelotas (cidade vizinha a Rio Grande) sendo vítima dos crimes de lesão corporal e injúria racial. A língua falada pelos senegaleses é o wolof, a qual não corresponde à língua oficial do Senegal, que é a francesa, mas é falada por 40% da população. Independentemente do tempo em que os entrevistados estavam no Brasil (que variaram de 1 semana a 2 anos), todos eles conseguiram entender as perguntas feitas em português e travaram diálogos, o que também foi viabilizado porque a Universidade Federal de Rio Grande – FURG disponibiliza aulas semanais de português para os grupos de senegaleses, a partir de iniciativa da Pastoral do Migrante. A totalidade de imigrantes entrevistados revelaram que encaminham a maior parte de seu salário para as famílias no Senegal (em torno de 80% do que ganham). Ainda, 80% desses imigrantes disseram ter intenção de permanecer no Brasil. Aos entrevistadores falarem acerca da existência ou não de discriminação no Brasil (em Rio Grande, nas cidades por onde andaram como Caxias do Sul e Passo Fundo, de colonização predominantemente italiana), pôde-se notar um constrangimento entre os entrevistados. Eles passavam a falar entre si no idioma de origem e respondiam de forma insegura, temerária. Destacam-se algumas considerações, dentre as quais a de um imigrante que disse não sofrer nenhum tipo de discriminação, outra que lembrou de um episódio em que foi chamado de “macaco” e a de que “independente do lugar em que vamos, no Brasil, na Europa, na Argentina, há discriminação, então é normal”. Além disso, dentre aqueles que afirmaram não sofrer discriminação foi identificado pelos membros do grupo de entrevistadores um imigrante que havia sido vítima de injúria racial e tentativa de lesão corporal no centro da cidade de Pelotas, vizinha à Rio Grande. Destaca-se que mesmo após o ocorrido, o imigrante não considerava o fato como algo relevante e significativo para esta análise. Pode-se entender, a partir disso, que os imigrantes senegaleses já incorporaram, na maioria dos casos, a ideia da discriminação como algo normal, rotineiro. Eles sequer entendem as agressões que sofrem como algo inaceitável, injusto, adotando-se diante disso, discurso que nega o racismo, nega a xenofobia, nega a realidade, ou, o que também é possível, a aceita como se a única possível. O fato de terem conseguido adentrar e permanecer no território brasileiro, recebendo autorização para o trabalho, os leva a se colocarem numa posição de “devedores” com relação ao Estado. Isso também é determinante para a aceitação de qualquer tipo de discriminação ou negação de direitos. Ademais, pôde-se notar que a maioria dos

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entrevistados tinham interesse em pleitear a naturalização brasileira, porque somente dessa forma entendem, segundo eles, que se tornarão efetivamente cidadãos e poderão ficar com segurança no país. Essa percepção demonstra o quanto o imigrante é pouco acolhido e se sente marginalizado, o que é potencializado, muitas vezes, por serem tratados no país receptor como transgressores da lei. Neste sentido: En los países receptores, las ciudadanías llegan a vivir la inmigración como una transgresión. Lo que alimenta esta noción de inmigración como transgresión surge de múltiples condiciones. Por ejemplo, está la crecientemente explícita lealtad al Islam entre los jóvenes algerianos en Francia, pero también las nuevas modalidades de participación directa en el desarrollo económico de México llevado adelante por las comunidades inmigrantes mexicanas de Estados Unidos. Otro factor, más general, es la emergencia de las asociaciones de inmigrantes como actores políticos que están comenzando a funcionar en red a través de Europa, y que ahora empieza a darse a lo largo de las Américas. También incluiría la inserción de ciertas problemáticas inmigratorias en un debate multicultural más amplio que incluye a las minorías nacionales, inserción que también puede extenderse a las nuevas políticas culturales. 26

5 Considerações finais Conforme se verificou, a ausência de políticas públicas de inclusão dos ex escravos quando da abolição foi determinante para a marginalização dos africanos que para cá foram trazidos durante os séculos e para a construção de uma sociedade racista e desigual. As ideias de incentivo a migração branca europeia como forma de branquear a raça no final do século XIX e início do século XX foi sentida a partir da abolição, portanto estreitos são os vínculos da escravidão com a migração no Brasil. No entanto esta tendência se mantém, basta que verifiquemos os dados da presença de trabalhadores no mercado formal brasileiro por região de origem (gráfico 1) percebe-se que a presença de trabalhadores oriundos do continente africano é ínfima. As normas migratórias atuais não contemplam a possibilidade de inserção de trabalhadores africanos (no caso desta pesquisa, senegaleses) pois seguem exigindo condições não acessíveis a estes. Os senegaleses que para virem para o Brasil juntaram suas economias ao chegarem aqui não restou outra saída a nãos ser fazer a solicitação SASSEN, Saskia. Inmigrantes em la Ciudad Global. Catalago de la Bienale de Pntevedra. Espana: Victoria Northoorn, 2006, pág 1. 26 

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de refúgio. Conforme se verifica dos levantamentos realizados pelo ACNUR houve um incremento nas solicitações de refúgio no Brasil e a principal nacionalidade destes solicitantes é do Senegal. Os fluxos migratórios para o sul do Brasil, oriundos dos países da África, sobretudo o Senegal, tem encontrado resistência em espectros da sociedade local, que associa a xenofobia com discriminação racial e de classe. O não acolhimento dos imigrantes senegaleses pela população local e a inexistência de políticas públicas focalizadas para os mesmos dificultam de forma definitiva sua adaptação no país e empurram parcela deles para a marginalização. Referências ACNUR. Refúgio no Brasil: uma análise estatística, 2014. Disponível em http://www.acnur.org/t3/ fileadmin/Documentos/portugues/Estatisticas/Refugio_no_Brasil_2010_2014.pdf?view=1. Acesso em 09 mar. 2015 ARENDT, Hannah, Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. Säo Paulo: Companhia das Letras, 1989. BRASIL. Lei nº 6815 de 1980. Estatuto do Estrangeiro. Disponível em . Acesso em 06 fev. 2015. CONVENÇÃO DE GENEBRA, 1951. Disponível em . Acesso em 10 mar.2015. DUTRA, Delia et ali .Os estrangeiros no mercado de trabalho formal brasileiro: Perfil geral na série 2011, 2012 e 2013 in Cadernos OBMigra. Revista Migrações Internacionais. Vol 1. No 2. 2015. FRAGA, Mirtô. O novo estatuto do estrangeiro comentado. Rio de Janeiro: Forense, 1985. GRIMSON, Alejandro. “Doce equívocos sobre las migraciones”, Revista Nueva Sociedad, n.233, maio-jun. 2011. Disponível em: www.nuso.org/upload/articulos/ 3773_1.pdf. IBGE. CENSO 2010. Disponível em . Acesso em 10 fev. 2015. LANDO, Aldair Marli e BARROS, Eliane Cruxên. Capitalismo e colonização – In RS: Imigração & Colonização. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996. MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. In: Novos estud. - CEBRAP [online]. 2006, n.74, pp. 107-123. Disponível em . Acesso em 09 fev. 2015. MINAYO, M.C. de S. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 22 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

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O “pânico moral” na narrativa (tele)jornalística: uma análise da representação de refugiados ganeses em telejornais brasileiros (2014) Samira Moratti Frazão1 Gláucia de Oliveira Assis2 Resumo: O artigo, recorte de tese em desenvolvimento, aborda a análise da cobertura (tele)jornalística sobre um grupo de migrantes ganeses que chegaram ao Brasil antes, durante e após a realização da Copa do Mundo de futebol em 2014, e que solicitaram refúgio no país. O objetivo é problematizar como esses(as) migrantes, enquanto refugiados(as), foram representados(as) à época na narrativa de telejornais brasileiros. Parte-se da hipótese de que o modo como se deu tal construção da realidade pode ter contribuído para a disseminação de um “pânico moral” na sociedade, desencandeando manifestações de caráter racista e de xenofobia nos canais pelos quais o público pode emitir sua opinião na imprensa. Para examinar a questão, foram utilizadas as recomendações apresentadas no “Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil”, organizado pelas autoras Denise Cogo e Maria Badet Souza, considerando ainda aspectos técnicos da prática (tele)jornalística. O referencial teórico é composto pelas obras de Roger Chartier e o conceito de representação; Paul Ricoeur, Luiz Gonzaga Motta e Célia Ladeira Mota e o conceito de narrativa, Kenneth Thompson e o conceito de Pânico Moral, bem como a legislação nacional e internacional que estabelece os direitos dos(as) refugiados(as), além de autores ligados aos estudos de Jornalismo, História e Migrações. Palavras-chave: Fluxos migratórios; Refugiados; Telejornalismo; Pânico moral; Narrativa jornalística. Abstract: The article, a thesis in production, is a analysis of news coverage about a group of Ghanaian migrants who arrived in Brazil before, during and after the football World Cup in 2014. The intention is to discuss how these migrants, as refugees, was represented at news narrative of Brazilian press. Our hypothesis is that the way they create a construction of reality may have contributed to the spread of a “moral panic” in society, generating racist manifestations in the channels through which the public can send in your opinion. To examine the issue, we used the recommendations presented in the “Guide of Transnational Migration and Cultural Diversity for Communicators - Migrants in Brazil,” organized by Denise Cogo and Maria Souza Badet, considering, yet, technical aspects of professional practice of journalists. The theoretical basis consists of the works by Roger Chartier and the concept of representation; Paul Ricoeur, Luiz Gonzaga Motta and Célia Ladeira Mota and the concept of narrative, Kenneth Thompson and the concept of Moral Panic, as well as national and international legislation establishing the rights of refugees, and authors linked to Journalism Studies, History and Migration. Keywords: Migration; Refugees; TV news; Moral panic; Narrative. 1  Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (2013). Integrante do Observatório das Migrações de Santa Catarina. Aluna pesquisadora do Grupo de Relações de Gênero e Família (LABGEF/UDESC) e do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Telejornalismo (GIPTele/UFSC). Contato: [email protected] 2  Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995). É professora na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) atuando na Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em História e Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socio-Ambiental. Participa do Grupo de Pesquisa Relações de Gênero e Familia (LABGEF/UDESC), Observatório das Migrações de Santa Catarina e do Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC). Contato: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO Desde a primeira década do século XXI houve um aumento no número de refugiados no Brasil, com origem de diversos países, bem como raças e etnias variadas. De acordo com informações do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão ligado à Secretaria Nacional de Justiça brasileira, desde 2010 foi registrado um aumento de 800% nas solicitações de refúgio no país. Em 2013, o Conare estimava que o Brasil abrigava 5.208 refugiados(as). Atualmente vivem no país cerca de 7.700 refugiados, entre homens, mulheres e crianças, de 81 nacionalidades que vivem no Brasil sob esta condição345. Entre os migrantes que solicitaram refúgio estão os ganeses, incluindo não só homens como mulheres e seus dependentes. Parte desses migrantes chegou ao Brasil antes, durante e após a realização da Copa do Mundo de Futebol ocorrida nos meses de junho e julho de 2014 no Brasil. Alguns vieram com o intuito de participar do evento, portando visto de turista. Conforme dados divulgados pelo Ministério da Justiça em 2014, foi emitido um total de 8.767 vistos de turista para cidadãos ganeses, cuja validade máxima era de noventa dias de permanência. A Polícia Federal, por sua vez, confirmou a entrada de 2.529 ganeses, número divulgado em julho do mesmo ano6. Com o término do evento muitos continuaram no Brasil – mais de 1.130 –, entre os quais 180 migrantes iniciaram a solicitação de refúgio (dados registrados em julho de 2014; após esse mês o número de solicitações aumentou, chegando a marca de 400 pedidos em agosto); inicialmente permaneceram em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, dispersando-se posteriormente para outras cidades e estados brasileiros,

3  ALBUQUERQUE, Flávia. Brasil abriga 7,7 mil refugiados de 81 nações. Agência Brasil, 3 jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 1 ago. 2015. 4  GELBERT, Laura. Pedidos de refúgio no Brasil cresceram 800% nos últimos anos, indica ONU. UOL Notícias, 6 ago. 2014. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2014. 5  REIS, Thiago. Brasil tem hoje 5,2 mil refugiados de 79 nacionalidades. G1, 24 abril 2014. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2014. 6  Dados divulgados na reportagem “Brasil cria grupo para expedir vistos de refugiados ganeses”, publicada pela revista Exame, edição digital, em 16 de julho de 2014. Disponível para consulta em: . Acesso em: 14 nov. 2015.

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tais como Criciúma em Santa Catarina e São Paulo7891011. Embora tanto Brasil quanto Gana estabeleçam acordos comerciais e diplomáticos12, é necessário o visto de turismo ou de negócios para brasileiros(as) que desejam ir a Gana13; desse modo, adotando a reciprocidade diplomática aplicada aos países que também exigem visto de brasileiros(as), ganeses(as) somente poderão entrar no Brasil portando visto de turismo ou negócios, válido por noventa dias14. No entanto, o governo de Gana não reconheceu a condição desses migrantes que pediram refúgio em solo brasileiro, tensão que também foi apresentada pela mídia na ocasião, embora sem maior destaque acerca de seus desdobramentos15. Esta mídia é composta também pela imprensa e as plataformas que a compõem, incluindo os telejornais, cuja representação da realidade promove não somente informação à sociedade, como também se constitui uma das bases para a construção da opinião pública em torno desse e de diversos assuntos noticiados16. Apesar de utilizar aqui uma série de dados estatísticos é importante ressaltar que tais dados anteriormente apresentados podem ou não corresponder à realidade, uma vez que é sabido que entre migrantes uma parcela deles(as) pode não estar representada nas amostras numéricas oficiais, por não dispor de reconhecimento formal de sua condição enquanto migrante17. De qualquer modo, utiliza-se tais estatísticas como uma base para 7  EFE. Mais de 200 torcedores ganeses pediram refúgio ao Brasil durante a Copa. UOL Copa, 10 jul. 2014. Disponível: . Acesso em: 14 nov. 2014. 8  MAPELLI, Suelen. Ganeses que permanecem no Rio Grande do Sul começam a trabalhar em Caxias. Pioneiro – Clic RBS, 31 jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2014. 9  MENEZES, Paula. Ministério da Justiça vai analisar onda migratória de ganeses em Caxias, RS. G1 RS, 11 jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2014. 10  OGLIARI, Elder. Ganeses que vieram para a Copa pedem refúgio no Brasil. O Estado de S. Paulo, 9 jul. 2014a. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2014. 11  _______. Fluxo de ganeses para Caxias do Sul está quase parado. Exame.com, 7 ago. 2014b. Disponível em: < http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/fluxo-de-ganenses-para-caxias-do-sul-esta-quase-parado>. Acesso em: 14 nov. 2014. 12  Informação consultada no site do Ministério das Relações Exteriores, disponível em: . Acesso em: 5 jun. 2015. 13  Informação disponível em: . Acesso em: 5 jun. 2015. 14  Informação disponível em: . Acesso em: 5 jun. 2015. 15  GANA rejeita alegação de torcedores refugiados que pediram asilo no Brasil. UOL Copa, 11 jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2014. 16  VIZEU, Alfredo. O telejornalismo como lugar de referência e a função pedagógica. In Revista Famecos, n. 40, Porto Alegre/RS/Brasil, dez. 2009, p. 77-83. 17  COGO, Denise; SOUZA, Maria Badet. Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para

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tomar conhecimento parcial da dimensão e presença de migrantes e refugiados(as), bem como solicitantes de refúgio no Brasil. Durante a análise de algumas reportagens, não apenas telejornalísticas como também divulgadas na internet, notou-se que parte da sociedade que emitiu sua opinião a respeito do assunto por meio de comentários nos sites dos jornais, bem como pelas redes sociais digitais, estava dividida quanto ao tema, assim como também se notou que parte do discurso promovido pelos jornais a respeito do fato também divergia no que diz respeito a abordagem. Enquanto de um lado o enquadramento dado à questão tratava da fragilidade e vulnerabilidade na qual esses migrantes viviam durante o processo de solicitação de refúgio, necessitando de ajuda e auxílio para sua integração na sociedade brasileira e locais onde estão em mobilidade, de outro lado o discurso jornalístico expunha informações que deixavam alguns dos migrantes sob suspeita, colocando sua integridade física e moral em questão, uma vez que entre as denúncias, ainda em fase de investigação, estava a de que esses migrantes que aqui buscavam asilo estavam sendo vítimas de tráfico humano por parte de conterrâneos; houve casos, como os analisados neste artigo, em que as reportagens publicadas na imprensa escrita e televisionada apontaram alguns dos migrantes como sendo atravessadores, como será visto adiante, os quais estariam atuando de forma ilegal e que seriam responsáveis por atrair migrantes ganeses que vêm ao Brasil em busca de melhores condições de vida. No entanto, tais suspeitas à época ainda estavam em fase de investigação por parte de órgãos como a Polícia Federal, sem confirmação sob as suspeitas apontadas. Dessa forma, parte-se da hipótese de que o modo como se deu tal construção das representações sobre os(as) migrantes ganeses(as), por parte dos telejornais e sites jornalísticos analisados, pode ter contribuído para a disseminação de um “pânico moral” na sociedade, desencandeando manifestações de cunho racista e de ódio nos canais pelos quais o público pode emitir sua opinião contra migrantes ganeses que solicitaram refúgio durante e após a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil em 2014. A fim de confirmar ou rebater tal hipótese e com o intuito de ilustrar a questão e discutir a respeito, foi realizada a análise preliminar de duas reportagens, sendo uma veiculada no telejornal Jornal do Almoço da RBS TV do Rio Grande do Sul e a outra veiculada na versão digital do jornal Zero Hora, cujas informações são detalhadas adiante. O exame das reportagens foi feito com base em recomendações metodológicas apresentadas no “Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural paras Comunicadores – Migrantes no Brasil”, organizado pelas autoras Denise Cogo e Maria Badet Souza18, considerando ainda aspectos técnicos da prática telejornalística. O guia fornece uma Comunicadores – Migrantes no Brasil. Belatterra: Instituto de la Comunicación de la UAB/Instituto Humanitas Unisinos, 2013. 18  COGO, Denise; SOUZA, Maria Badet. Ibid.

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série de recomendações quanto ao uso de termos e o tratamento da temática e dos grupos migrantes nas notícias, em suportes variados. A escolha em torno das e dos migrantes ganeses enquanto refugiados(as) partiu da necessidade em eleger um grupo dentre os vários existentes no Brasil, somado ao impacto gerado na imprensa quando parte desses migrantes iniciou a solicitação de refúgio. Considerou-se também a captação das reportagens telejornalísticas uma vez que, no caso do telejornalismo, as narrativas por meio das imagens, “... constituem um discurso que interfere na realidade, constroi e reconstroi relações sociais e relações de poder”19. Entendidas como documentos que, neste caso em particular, constroem narrativas sobre a migração e os(as) migrantes, muitas matérias jornalísticas marcaram e marcam a história política, cultural e social do Brasil e em grande parte dos casos não estão disponíveis de forma acessível aos pesquisadores e sociedade. Felizmente, no caso das reportagens telejornalísticas, parte dos acervos vem sendo disponibilizado por algumas emissoras em seus sites, mas principalmente por terceiros em repositórios virtuais como é o caso do YouTube, por meio do qual é possível assistir os vídeos. Foi por este meio que as matérias aqui analisadas foram assistidas. A seleção dos telejornais analisados partiu da mesma premissa. Como referencial teórico, o artigo é apoiado nos conceitos de representação, postulado por Roger Chartier, e de narrativa, discutido por autores como Paul Ricoeur e no âmbito da Comunicação/Jornalismo por Luiz Gonzaga Motta e Célia Ladeira Mota, Kenneth Thompson e o conceito de pânico moral, dentre outros. No que diz respeito aos(às) refugiados(as), são tomados como base documentos oficiais como a Convenção de 1951, que estabelece o Estatuto do Refugiado pelas Nações Unidas, a lei brasileira 9.474/97 que estabelece os direitos e deveres do refugiado no Brasil, além de pesquisas científicas que abarcam o tema. 2 AS REPRESENTAÇÕES E SUA RELAÇÃO COM A NARRATIVA JORNALÍSTICA Entende-se que o conceito de representações postulado por Roger Chartier pode dialogar e ser utilizado para pensar sobre o discurso disposto nas matérias telejornalísticas, analisando não apenas o texto presente na reportagem como a imagem enquanto linguagem e mensagem, apreendida pelos telespectadores de maneiras diferentes. O conceito de representação social advém da sociologia, das reflexões do sociólogo francês Émile Durkheim. Podem tratar a “... relação entre a significação, a realidade e sua MOTA, Célia Ladeira. A narrativa semiótica da imagem. In: MOTA, Célia Ladeira et al. (orgs.). Narrativas Midiáticas. Florianópolis/SC: Insular, 2012, p. 213. 19 

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imagem”20. Por meio das representações os indivíduos conferem sentido à realidade em seu ambiente social. No entanto, pressupõem ideais, interesses, ideologias, respaldadas pelos grupos que detêm o poder de pensa-las e as repassar adiante2122. Assim, as informações recebidas através das mídias são componentes na construção da realidade e na formação da opinião. a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepção, a representação é o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma “imagem”capaz de repô-lo em memória e de “pintá-lo” tal como é. Dessas imagens, algumas são totalmente materiais, substituindo ao corpo ausente um objeto que lhe seja semelhante ou não23.

Ao transpor essa discussão para a análise de uma reportagem telejornalística, o discurso empregado textual por meio das imagens sobre determinado fato ou pessoa passa aos telespectadores a representação do que se pensa ou se almeja moldar o que é e como deve ser visto. Tal discurso também é permeado por omissões de informação, falta de conhecimento quando da elaboração e produção da reportagem em um curto espaço de tempo por conta dos deadlines corridos, edição do material, enquadramento das imagens e escolhas de quais recortes de imagem serão privilegiados na reportagem. No caso do jornalismo, podem ser representadas realidades baseadas em fatos verídicos ou moldados de acordo com os interesses da linha editorial do veículo, ou ainda de patrocinadores e demais sujeitos que detenham algum poder sobre o conteúdo que será produzido e repassado ao público. “... As representações constroem uma organização do real por meio das próprias imagens mentais veiculadas por um discurso”24. Diferente de outros suportes nos quais a imprensa é midiatizada, seja pelo impresso, pelo rádio ou virtualmente pela Internet, a televisão ainda detém o benefício de falar não só pela linguagem verbal, mas potencializar o alcance de seu conteúdo por meio das imagens, razão pela qual ainda é considerada um aparelho a merecer destaCHARAUDEAU, Patrick. Representação social. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do discurso. 3 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014, p. 431. 21  CHARTIER, Roger. A historia cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa/Portugal: Difel, 1990. 22  __________. O mundo como representação. Estudos Avançados, v. 5, n. 11. São Paulo: jan.-abril, 1991. Disponível em: . Acesso em: 2 dez. 2014. 23  Idem. 24  CHARAUDEAU, Patrick. Ibid, p. 433. 20 

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que no lar. Ainda que haja a possibilidade de buscar informações por outros meios, o aparelho televisor continua sendo um dos destinos de busca do público. Segundo informações divulgadas na “Pesquisa brasileira de mídia 2014: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira” promovida pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República do Brasil, cerca de 65% dos brasileiros assiste televisão diariamente; os programas de cunho jornalístico ou de notícias são os mais procurados, constituindo 80% das respostas25. Além dos interesses estabelecidos pelos sujeitos que as editam, o meio também propicia que determinados conteúdos sejam moldados a fim de se tornar apropriados para a veiculação na televisão. Retornando ao conceito de representações de Chartier e o apropriando à discussão em torno do telejornalismo, este diz que “... é preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor”26. Inclui-se nesse contexto as edições promovidas pelos repórteres e editores de telejornais, ao determinar as formas como um fato será narrado. E por tratar de representação, é importante também debater acerca do conceito de narrativa e como é compreendido tanto no campo da História quanto do Jornalismo. “Estudar as narrativas como representações sociais pode ensinar muito sobre as maneiras através das quais os homens constroem essas representações do mundo material e social”27. Em seu livro, o qual reune estudos com base nas obras de Paul Ricoeur, o historiador Aldo Nelson Bona28 cita que embora seja impossível narrar o modo como os fatos ocorreram no passado ou em outro momento do tempo, para Ricoeur a história é considerada uma narrativa. Desse modo, a narrativa não deve ser compreendida como mera descrição dos acontecimentos, mas conferir a eles sentido; ou seja, atribui-se sentido a algo real que é descrito, não necessariamente ao modo como aconteceu. No campo do Jornalismo é a sua prática, independente do suporte no qual é promovida, que conta à sociedade a realidade factual e cotidiana ou uma perspectiva dela. Quanto ao telejornalismo, texto narrado pelos locutores/repórteres/narradores e imagens que passam na tela da televisão promovem uma imersão de sentidos acerca do conteúdo contemplado, possibilitando ao público dispor de uma realidade que pode PESQUISA brasileira de mídia 2014: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2014. 26  CHARTIER, Roger. Ibid, 1991. 27  MOTTA, Luiz Gonzaga. Por que estudar narrativas? In: MOTA, Célia Ladeira et al. (orgs.). Narrativas Midiáticas. Florianópolis/SC: Insular, 2012, p. 29. 28  BONA, Aldo Nelson. História, verdade e ética: Paul Ricoeur e a epistemologia da História. Guarapuava/ PR: 2012. 25 

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ser interpretada tal qual é dada ou decodificada de acordo com inferências próprias dos indivíduos, com base em conhecimento adquirido em seu círculo social ou de outras fontes. Essa construção da narrativa telejornalística é permeada por técnicas próprias do meio e que interferem na informação que será mediada, além de todo o processo antes, durante e após a veiculação da notícia. ... a narrativa da notícia na TV é uma articulação específica da linguagem que encobre práticas de codificação – visuais ou verbais – produzindo efeitos de real, naturalizando os acontecimentos que são narrados para o leitor com todos os elementos de uma narrativa: personagens, conflitos, desfechos, cenários. Como a notícia na TV é duplamente codificada, é preciso observar sempre a relação que existe entre estes dois códigos, o visual e o verbal. E como cada um deles narra o acontecimento29.

A narrativa imagética compreende alguns procedimentos, os quais são sinteticamente expostos a seguir. Contudo é importante salientar que embora resumido, o processo é complexo e envolve uma série de fatores tecnológicos, humanos e de tempo, o que pode fazer com que equivocadamente se incorra no pensamento de que os procedimentos são fáceis e objetivos, quando diferente disso o processo requer problematizações inerentes ao meio profissional, técnico e ético: requer componentes da notícia, fundamentada geralmente em questões básicas a respeito do fato ou de quem é tratado e quais estão presentes no lide (ou lead), considerada a parte principal da notícia e na qual são encontradas respostas às seguintes perguntas: o quê, quando, onde, como, quem, por quê?; no caso da reportagem telejornalística é preciso pensar os elementos imagéticos, dispostos nas cenas que serão filmadas, dialogando com o texto a ser lido/ narrado, e nos planos e sequências dessas imagens, costuradas posteriormente ao texto para conferir sentido à notícia que é produzida, construída e estruturada30. No caso do fator tempo, este é crucial em jornalismo, sendo determinante para que um assunto seja discutido de forma eficaz, com apuração e pesquisa, quando há tempo suficiente para tanto, ou incorrer em omissões e equívocos, quando o tempo é curto. Desse modo, o tempo é fundamental na constituição da narrativa jornalística. Por isso se ressalta a importância da análise da narrativa (tele)jornalística e em suas representações do real não só com base na linguagem verbal existente, tampouco na análise das imagens de forma isolada, mas sim a junção de ambas e as possibilidades de compreensão para o entendimento da mensagem, em suas explicações e omissões. 29  30 

MOTA, Célia Ladeira. Ibid, p. 208. MOTA, Célia Ladeira. Ibid.

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3 REFUGIADOS(AS) NO FLUXO MIGRATÓRIO: QUEM SÃO E QUAIS SEUS DIREITOS? A Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados instituída em 28 de julho de 1951 e empreendida após a Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas realizada em Genebra, estabelece uma série de instrumentos legais e que vigoram em nível internacional com direitos aos(às) refugiados(as). Nela é possível delinear padrões básicos para o tratamento e acolhimento dos refugiados(as), além de apresentar características de quem são. No entanto, antes de expor os pontos apresentados no documento é necessário antes tratar acerca do refúgio no Brasil, do ponto de vista histórico. A relação do Brasil com refugiados(as) ocorre no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, em decorrência de seu posicionamento político junto à Liga das Nações que fez com que os(as) recebesse, sobretudo provenientes da Europa, porém com a denominação de imigrantes comuns. Com sua desvinculação da Liga e seu posicionamento político por conta do cenário provocado com a eclosão da guerra, já no pós-Segunda Guerra Mundial, o Brasil continua a acolher refugiados(as) provenientes da Europa, sendo considerado o país que acolheu o maior número de refugiados(as) vindos dessa região. Em 1960, o Brasil foi o primeiro do Cone Sul a ratificar a Convenção referente ao Estatuto dos Refugiados de 1951. A partir da década de 1970, como integrante do  Comitê Executivo do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o país passa a receber refugiados(as) da América Latina, fazendo o reassentamento deles(as) em outros países como Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e continente europeu. Também foi o primeiro do Cone Sul a sancionar uma lei específica para refugiados(as), de número 9.474/9731. No caso dos migrantes de origem africana, muitos deles, principalmente vindos da República Democrática do Congo, chegaram ao Brasil em uma onda migratória ocorrida no final da década de 1970. Hoje parte dos migrantes africanos, entre angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos, vêm ao país por motivos educacionais, por meio de programas de intercâmbio formalizados entre os países com as instituições de ensino superior brasileiras públicas e privadas. Além disso, cerca de 65% dos(as) refugiados(as) presentes no país também são de origem africana, dentre eles os(as) ganeses(as)32. Mais recentemente, a partir da primeira década de 2000, novos fluxos migratórios foram estabelecidos tendo o Brasil como destino, sobretudo durante e após o goHAYDU, Marcelo. O envolvimento do Brasil com a problemática dos refugiados: um breve histórico. ; Ponto e vírgula – Revista de Ciências Sociais da PUC-SP, n. 6, 2009, p. 183-200. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2015. 32  COGO, Denise; SOUZA, Maria Badet. Ibid. 31 

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verno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, o qual estebeleceu acordos multidimensionais entre o Brasil e países do continente africano33. É nesse contexto que o Brasil também ganha destaque na imprensa internacional, muito em parte de seu avanço econômico e status de nação em desenvolvimento, fator que pode ter contribuído para atrair migrantes em busca de melhores condições de vida. Sobre a denominação de quem pode ser considerado um(a) refugiado(a), há alguns fatores para conceitua-los(as) e diferencia-los(as) de um(a) migrante. A Convenção de Genebra de 1951 estabelece, no artigo 1o, letra A, item 2, o(a) refugiado(a) como sendo a pessoa que ... temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. No caso de uma pessoa que tem mais de uma nacionalidade, a expressão “do país de sua nacionalidade” se refere a cada um dos países dos quais ela é nacional.

Conforme informações da organização Human Rights Education Associates34 é usual que tanto os organismos de assistência quanto os mecanismos de proteção àqueles que solicitam asilo proponham algumas soluções de caráter permanente para o acolhimento de refugiados, sendo elas: a repatriação voluntária (quando os(as) refugiados(as) podem retornar ao seu país de origem quando este não lhe representa mais nenhum perigo, dos quais apontados pela Convenção), a integração local (quando os países de asilo concedem a sua integração no país) e a reinstalação num terceiro país (quando não podendo retornar ao seu país de origem por ainda temer riscos à sua vida, é negado a entrar em um lugar onde busca inicialmente asilo, parte, desse modo, para uma segunda opção de refúgio). Quanto aos direitos dos(as) refugiados(as), são instituídos no documento entre os artigos 12 e 30 e constituem os seguintes: o Estado deve fornecer os documentos de identidade, carteira de trabalho e documentos de viagem; no país de acolhimento devem poder ter liberdade de vivenciar sua religião ou dispor de educação religiosa; VISENTINI, Paulo Fagundes. As relações Brasil-África: da indiferença à cooperação. In: VISENTINI, Paulo Fagundes; RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. História da África e dos africanos. 3. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014, p. 188-219. 34  Informações disponíveis no seguinte endereço: http://www.hrea.org/index.php?doc_id=511. Acesso em: 10 dez. 2014. 33 

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dispor de assistência jurídica; educação em todas as suas instâncias (níveis básico, fundamental, médio e superior, no caso brasileiro); acesso aos serviços públicos; benefícios trabalhistas quando em trabalho e de seguro social; proteção legal de direitos autorais; direito a ter uma propriedade; exercer profissão; trabalhar de forma autônoma; acesso à moradia por livre escolha; circular dentro do país, dentre outros. Por sua vez, a lei brasileira n. 9.474 de 22 de julho de 1997, que define mecanismos legais para a implementação da Convenção de 1951, apresenta não só a definição do(a) refugiado(a) como estabelece direitos e deveres a quem está nesta condição. Basicamente segue os mesmos preceitos fundados no documento de 1951, reforçando adicionalmente condições como a violação grave aos direitos humanos como um dos fatores que faz com que uma pessoa venha a solicitar asilo como refugiado(a) em outro país. Poderá entrar em solo nacional mesmo que esteja em situação irregular, quando sua entrada não é feita de forma legal. Cabe ao Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça, avaliar os pedidos de refúgio, dentre outras circunstâncias que envolvam os(as) refugiados(as) no Brasil. A lei institui, ainda, que para entrar no Brasil como refugiado(a), o(a) solicitante deverá dispor de auxílio de funcionários públicos designados para seu recebimento, como um tradutor para auxiliar em seus diálogos, preenchendo um formulário que preveja seu reconhecimento enquanto refugiado(a), documento no qual devem conter informações sobre a pessoa, identificando sua qualificação profissional, escolaridade sua e de seus membros caso estejam consigo, além de relato no qual exponha os motivos que o levaram a solicitar asilo. Posteriormente a Polícia Federal emite um protocolo por meio do qual o refugiado poderá solicitar carteira de trabalho em caráter provisório. Após o término do processo, caso seu pedido de refúgio seja aceito, receberá as documentações em caráter permanente. Caso o pedido seja negado, dispõe de período estabelecido por lei para solicitar a revisão do resultado e do pedido junto ao Ministro de Estado da Justiça. E mesmo que seu pedido seja negado em definitivo, o refugiado não poderá ser deportado ao seu país, em consideração às premissas que estabelecem sua condição. Somente poderá ser deslocado para outro país caso haja a certeza de que não corra risco de perseguição. É importante salientar, ainda, que o governo de origem de quem requisita o refúgio necessariamente não precisa aprovar sua condição; cabe ao país de acolhimento conceder-lhe este reconhecimento. De acordo com o ACNUR, apesar de os países signatários da Convenção de Genebra disporem de instrumentos legais por meio dos quais irão analisar os pedidos de refúgio, “uma pessoa é um refugiado independentemente de já lhe ter sido ou não reconhecido esse status por meio de um processo legal

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de elegibilidade.”35 E estabelece ainda: “Ao ACNUR é atribuído o mandato de assegurar que qualquer pessoa, em caso de necessidade, possa exercer o direito de buscar e obter refúgio em outro país e, caso deseje, regressar ao seu país de origem.”36 4 ENTENDENDO O CONCEITO DE PÂNICO MORAL E SEU USO NA ANÁLISE JORNALÍSTICA Acredita-se que as construções de realidade fomentadas pela imprensa, aqui especialmente a televisiva, podem contribuir para a criação de estereótipos37, além de fomentar no público um pânico de ordem moral em torno de determinados assuntos dispostos na agenda jornalística. Entende-se como pânico moral o conceito discutido pelo sociólogo britânico Kenneth Thompson, com base nos estudos do sociólogo Stanley Cohen, para o qual uma reação provocada por um grupo pode desencadear uma representação e percepção equivocada sobre algum comportamento cultural ou grupo de indivíduos, em especial as minorias e aqui se colocam os(as) migrantes de origem africana; os estereótipos construídos nos meios de comunicação também podem facilitar a promoção de um pânico moral à sociedade sobre um tema específico38. A fim de tomar conhecimento sobre o uso do conceito, far-se-á nesse momento um breve panorama a respeito. O termo foi empregado inicialmente no campo da Sociologia. Estaria atrelado às condutas coletivas e de desvio social. É utilizado também para observar fenômenos excepcionais nos meios de comunicação. “O conceito de pânico moral pode resultar útil para iluminar um tipo de comportamento e séries de sucessos cada vez mais comuns nas sociedades modernas saturadas (ou talvez, enriquecidas) pelo midiático”39. Para o autor, estaríamos vivendo um momento no qual o conceito faz-se presentificado. Cita não apenas a imprensa como a televisão como fontes de alerta às então consideradas ameaças. ... Este é o tempo do pânico moral. As manchetes dos jornais nos Informação disponível na questão “É o ACNUR que efetivamente decide quem é um refugiado? Ou esta é uma decisão dos países?” do item “Perguntas e respostas” disposto no site do ACNUR: . Acesso em: 5 jun. 2015. 36  Informação disponível na resposta da questão “Quais são os direitos de um refugiado?” do item “Perguntas e respostas” disposto no site do ACNUR: . Acesso em: 5 jun. 2015. 37  O conceito de estereótipo utilizado significa uma “... representação coletiva cristalizada, é uma construção de leitura” permitindo “... naturalizar o discurso, esconder o cultural sob o evidente” (AMOSSY, 2014, p. 215-216). 38  THOMPSON, Kenneth. Panicos Morales. 1. ed. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2014. 39  Idem, p. 11. 35 

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alertam continuamente acerca de novos perigos, produto da frouxidão moral, e em geral, os programas de televisão amplificam o assunto com documentários sensacionalistas. Por outro lado, os pânicos morais não são nada novos, existem há mais de um século: os pânicos sobre o crime, e as atividades ‘juvenis’ em particular, tem sido apresentados frequentemente como potencialmente imorais e como uma ameaça para o modo hegemônico da vida40.

O uso do conceito para observar fenômenos recentes não possui estreita e direta relação com seus usos no passado. Mudanças significativas ocorreram ao longo das décadas por duas razões principais: a rapidez com que as mudanças ocorrem nas sociedades, uma vez que quando um pânico declina, outro ocupa seu lugar. E a segunda razão é a penetração dos pânicos em vários segmentos da sociedade41. As principais características de um pânico moral compreendem: 1) algo ou alguém é definido como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; 2) esta ameaça se representa nos meios massivos de tal modo que sua forma será facilmente reconhecida; 3) se produz uma rápida construção de uma preocupação pública; 4) as autoridades e os formadores de opinião devem responder ou dizer algo a respeito; 5) o pânico passa ou produz mudanças sociais42 Para Thompson, o uso dos dois termos “pânico” e “moral” pressupõem uma ameaça ao que está estabelecido enquanto sagrado ou fundamental para a sociedade. Com base nos preceitos do sociólogo Stanley Cohen, um dos precursores no uso do conceito, Thompson diz que: O motivo para denominar ‘moral’ ao pânico é precisamente indicar que a ameaça que se percebe não é algo trivial - um resultado econômico ou uma pauta educativa -, e sim uma ameaça a ordem social em si mesma ou a uma concepção idealizada (ideológica) de alguma parte de tal ordem social. A ameaça e seus executores são vistos como o mal, como ‘demônios populares’ (...) despertando fortes sentimentos de controle43.

Como resposta, exige-se que haja uma “maior regulação ou controle, uma demanda para regressar aos ‘valores’ tradicionais”44. Somado a isso, os pânicos morais geralmente surgem em situações nas quais há um aumento de níveis de estress na população, provocados por várias origens que passam pela imprensa, política, economia, 40  41  42  43  44 

Idem, p. 15. THOMPSON, Kenneth. Ibid. Idem, p. 23. Idem, p. 24. Idem, p. 24.

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dentre outros fatores. Thompson afirma que não se pode atribuir a criação de um pânico moral à apenas um segmento, mas sim a um conjunto deles. Por isso, indica que os casos de pânico moral devem levar em conta dois objetivos: compreender os atores implicados nesse processo, e buscar explicações às razões que levaram ao desenvolvimento de um pânico moral. Há dois elementos principais para identificar os pânicos morais: “um alto nível de preocupação pelo comportamento de um determinado grupo ou tipo de pessoas, e um aumento do nível de hostilidade a aqueles considerados como uma ameaça”45 (grifo do autor). Ademais, os pânicos morais geralmente são voláteis, durando um certo período de tempo, e desprorporcionais, já que nem sempre tais ameaças ou perigos atribuídos ao pânico moral são de fato consideráveis, caso se analise o fenômeno de forma realista e não apenas com base em suposições. No entanto, Thompson diz que não há um consenso sobre o fator desproporcionalidade, já que o que é considerado risco para uns, poderá não sê-lo para outros, sendo portanto uma característica dúbia. Entre as dificuldades na aplicabilidade do conceito está a não determinação da magnitude do que é considerado como ameaça ou seus desdobramentos futuros. No entanto, o conceito é utilizado no campo da Sociologia para avaliar determinados fenômenos que ocorrem nas sociedades ao longo dos tempos. Neste momento, acredita-se que tal conceito pode ser utilizado para analisar o fenômeno dos fluxos migratórios contemporâneos, em especial de migrantes de origem africana, destacando aqui os(as) ganeses(as). Considerando o exposto, acredita-se que é possível utilizar o conceito para analisar a abordagem na narrativa da imprensa, aqui se inclui a telejornalística, a respeito dos novos fluxos migratórios. Para tanto, será utilizado um momento recente abordado na cobertura jornalística: a vinda de ganeses(as) durante a realização da Copa do Mundo de Futebol nos meses de junho e julho de 2014, momento em que parte desses(as) migrantes solicitou refúgio no Brasil sob alegações diversas. Na ocasião, segmentos da imprensa, seguidos de comentários realizados por parte da sociedade, atribuíram sua vinda ao tráfico de pessoas, em uma tentativa de justificar que, vindos dessa forma, não seria considerado adequado. Portanto, os órgãos de controle, dentre eles a Polícia Federal, deveriam investigar tal denúncia. Antes de analisar o objeto empírico, faz-se necessário tratar brevemente sobre os contextos históricos de aproximação entre Brasil e o continente africano.

45 

Idem, p. 25,.

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5 A APROXIMAÇÃO ENTRE BRASIL E O CONTINENTE AFRICANO: PISTAS PARA A COMPREENSÃO DOS FLUXOS MIGRATÓRIOS CONTEMPORÂNEOS Se no passado um dos vínculos considerados fortes com a África foi marcado pelo tráfico de escravos, reduzido com a abolição da escravatura, com a independência do Brasil, notadamente durante o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esse vínculo foi novamente estabelecido, sobretudo por conta de uma política externa considerada de ordem “ativa e afirmativa”46. Tal política foi perpetuada no governo sucessor ao de Lula, liderado por sua contemporânea Dilma Roussef, cujas ações continuam a promover a cooperação Sul-Sul, em âmbito multidimensional, com reflexos globais. No entanto, antes de deter o olhar para o cenário contemporâneo, há que se ressaltar que determinadas ações políticas no Brasil do passado foram preponderantes para a manutenção de uma cultura racista na atualidade. Mesmo com uma série de ações e lutas por parte da população negra, com vistas a promover uma imagem afirmativa de sua raça e culturas, respaldadas em algumas situações por políticas públicas junto a sociedade, o racismo ainda é um componente presente na sociedade brasileira contemporânea, fator que também incide sobre o acolhimento de migrantes negros(as) de origem africana que tomam o Brasil como destino de seus fluxos migratórios. Entre meados do século XIX e século XX, ações políticas permeadas pela “ideologia de branqueamento”47, visando a criação de uma “sociedade branca e ocidental”, contando, para tanto, com a imigração de migrantes europeus, vindos de países como Portugal, Itália, Alemanha e Espanha, que vieram ao Brasil em busca de trabalho também contribuíram, de certo modo, para promover uma cultura racista, na qual a população negra, em muitos casos marginalizada e sem garantias e direitos para sua subsistência, era vista como ameaça. Logo, a ideia era provocar a mistura de raças, a fim de promover o branqueamento da população ao longo do tempo48. Com a promoção, no campo acadêmico de pesquisas a respeito do tema, especialmente as promovidas na década de 1980 na terceira onda teórica, como os estudos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, responsáveis por criar a teoria das desvantagens cumulativas, confirmou-se que o racismo contra a população negra era uma forma encontrada pelas elites brancas para garantir seus privilégios49. VISENTINI, Paulo Fagundes. Ibid, p. 188. VISENTINI, Paulo Fagundes. Op Cit. , p. 189. 48  BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002, p. 25-58. 49  VISENTINI, Paulo Fagundes. Op cit.. 46  47 

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Nessa perspectiva, estudos como o de Rafael Guerreiro Osorio50 também apresentam dados demonstrando a relação entre desigualdade e discriminação racial com a origem social, fator que também reflete na redução de mobilidades, o que poderia ter relação com os fluxos migratórios ao Brasil por pessoas de origem africana. Há que se ressaltar, ainda, que do final da década de 1980 à contemporaneidade cresceu a inserção e atuação de emissoras brasileiras de televisão na África, assim como mazelas como “... tráfico de drogas, armas e lavagem de dinheiro”51, questões entre o Brasil e os países do continente africano, fomentando a discussão para ampliar a segurança, nesse sentido, bem como aspectos de ordem cultural. Entre os acordos estabelecidos durante o Governo Lula, dando continuidade a práticas incorporadas em governos brasileiros anteriores, bem como ações como o estabelecimento da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) assim como a organizada pela Organização das Nações Unidas, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas), está a manutenção de programas de bolsas de estudo para estudantes africanos no Brasil e intercâmbio de professores, como o Programa de Estudantes Convênio (PEC) de Graduação (PEC-G) e Pós-Graduação (PEC-PG). Ainda durante o governo liderado por Lula, foram abertas dezessete embaixadas brasileiras no continente africano. Entre 2003 e 2010 o presidente viajou ao continente onze vezes para visitar 29 países, estabelecendo acordos de ordem econômica, política e educacional52. No caso particular entre Gana e Brasil, uma das iniciativas foi a cooperação técnica com o objetivo de promover a agricultura, com a instalação em 2006 do Escritório Regional da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Acra, Gana, a fim de “... atuar como agente facilitador do processo de transferência de tecnologias agropecuárias e florestais”53. Atualmente, com a ascensão de uma política conservadora e de direita, e que faz oposição ao atual governo presidido por Dilma Rousseff, que governa com base ideológica ligada à esquerda e aliada ao seu antecessor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva54, há que considerar que este elemento político pode possuir relação com a provável rejeição de segmentos da sociedade, simpáticos ou ligados sobretudo à oposição do atual governo e seu antecessor, aos novos fluxos migratórios, em especial aos migrantes OSORIO, Rafael Guerreiro. A desigualdade racial de renda no Brasil: 1976-2006. Tese (Doutorado em Sociologia) Universidade de Brasília. Brasília: 2009, 362p. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. 51  VISENTINI, Paulo Fagundes. Ibid, p. 204. 52  Idem. 53  Idem, p. 215. 54  CAVALCANTI, Hylda. Dominado por agenda conservadora, PSDB se firma como oposição sem projeto. Portal Fórum, 6 jul. 2015. Disponível: . Acesso em: 24 jul. 2015. 50 

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de origem africana. Soma-se a isso a colonização de diversas regiões brasileiras, notadamente a região sul, realizada sobretudo por migrantes brancos de origem europeia, cujos reflexos são facilmente notados por meio de celebrações feitas em festas sazonais ou mesmo à existência de monumentos físicos ou imateriais ligados às culturas de origem europeia, sobretudo de países como Itália, Portugal e Alemanha. No entanto, há que se ressaltar que na mesma medida em que uma parcela da população é reticente ou contrária a esses novos fluxos migratórios, outra faz frente e apoia a inserção e integração dos migrantes de origem africana em seu convívio social, principalmente aquelas ligadas aos Direitos Humanos, Relações Internacionais, Serviço Social, dentre outras áreas. Tal pressuposto será, neste momento, alicerçado com base na análise da cobertura midiática que se segue. 6 O PÂNICO MORAL E SUA RELAÇÃO COM A COBERTURA JORNALÍSTICA SOBRE MIGRANTES GANESES Para esta análise, foram utilizadas duas reportagens, sendo uma veiculada na edição digital do jornal Zero Hora, no dia 16 de julho de 2014, e a outra apresentada no telejornal Jornal do Almoço, veiculado na RBSTV do Rio Grande do Sul, no dia 9 de julho de 2014. Ambos veículos fazem parte do mesmo grupo de Jornalismo, o Grupo Rede Brasil Sul de Comunicação55, afiliado à Rede Globo. Embora o espectro de coberturas sobre a temática no período que compreende a realização da Copa do Mundo de Futebol em 2014 e seu término seja superior56, neste momento foram selecionadas duas reportagens a fim de ilustrar a discussão teórica aqui empreendida. Buscou-se selecionar uma reportagem de cada telejornal que tivesse sido exibida em período semelhante, a fim de verificar as diferenças entre as abordagens. Além disso, também se optou por analisar reportagens veiculadas em julho de 2014, uma vez que é o período no qual foi inicialmente identificada a chegada de ganeses no Brasil e a fase inicial de solicitações de refúgio por parte deles(as). Intitulada “Intermediários cobram até R$ 9 mil de ganeses por ‘ajuda’ na viagem” a reportagem publicada na versão digital do jornal Zero Hora em 16 de julho de 2014 denuncia um possível esquema de tráfico humano, que seria liderado por migrantes ganeses na cidade de Criciúma, em Santa Catarina. No entanto, a denúncia não havia sido confirmada na ocasião pela Polícia Federal, como será exposto adiante. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. O corpus da tese, cujo artigo é um recorte, reune análises (em andamento) de 49 reportagens telejornalísticas exibidas durante os meses de julho e agosto de 2014 e 32 reportagens publicadas em sites jornalísticos na internet durante o mesmo período. 55  56 

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Sobre a reportagem: um migrante e refugiado ganês foi entrevistado e, durante seu depoimento contou a respeito de um irmão que também supostamente auxiliaria a vinda de outros conterrâneos; esta terceira pessoa, porém, não concedeu entrevista, mas mesmo assim teve seu nome completo, apelido, ocupação e cidade onde vive publicados, além de seu perfil de uma rede social ter sido observado. A informação sobre esse refugiado, porém, foi utilizada em uma notícia na qual o jornalista aponta uma denúncia de que possivelmente alguns refugiados, já em solo brasileiro, estariam facilitando a entrada de outros imigrantes para o país; seriam considerados na reportagem como “coiotes”. A ação dos coiotes é ilegal e pressupõe aquelas “pessoas ou grupos que cobram para introduzir, de modo ‘ilegal’, migrantes nas fronteiras entre países”57. No caso da matéria, o refugiado em questão é apontado como um coiote que estaria, inclusive, explorando seus conterrâneos, como no trecho a seguir. Manchete: “Intermediários cobram até R$ 9 mil de ganeses por “ajuda” na viagem” Linha fina/linha de apoio: “Pacote de auxílio inclui passagem aérea de vinda ao Brasil, passagem rodoviária para alguma cidade onde possam trabalhar e ajuda com documentos. PF investiga se existe esquema criminoso na migração.”

Trecho da reportagem: A Secretaria de Defesa Social de Criciúma (SC), mediante entrevistas com os ganeses, identificou alguns dos intermediários que recebem os compatriotas africanos e os hospedam no Brasil, mediante alguma remuneração. O material foi repassado à PF, que investiga se isso configura tráfico humano (artigo 206 do Código Penal). Para caracterizar essa situação teria de ocorrer trabalho escravo (até agora isso não foi constatado), falsidade ideológica (no uso de documentos ou na própria declaração de refugiado, que será investigada) ou até estelionato (se o intermediário garante algo que não possa cumprir, como emprego). (…) foi precedido, em território brasileiro, por um irmão que é apontado por muitos ganeses ouvidos por ZH como um dos líderes da migração de conterrâneos. É Mantala, cujo nome de batismo é Abalansa (…). Nas redes sociais, Abalansa alterna fotos em que aparece recebendo compatriotas em aeroportos e também exibindo seus produtos (tênis de marca). Tudo isso é monitorado pela PF. Mas os policiais reforçam que ajudar migrantes não é crime, delito COGO, Denise; SILVA, Therezinha. Mídia, alteridade e cidadania da imigração haitiana no Brasil. Encontro Anual da Compós 2015. Disponível em: . Acesso em: 1 jun. 2015, p. 13. 57 

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é fazer promessas não-cumpridas ou extorquir. Algo que será investigado58

Na parte destinada aos comentários dos(as) leitores(as) na mesma matéria, entre os favoráveis e os que não desejam a presença dos(as) imigrantes de origem africana no Brasil, um deles se identifica como sendo um dos refugiados apontados na reportagem. No texto, pede para que a informação sobre sua identidade seja retirada, uma vez que não concorda como foi utilizada, como pode ser lido abaixo: abalansa • 10 meses atrás or favor, se você não tiver uma boa história não destruir os nomes das pessoas e realmente pronto em nome de Deus para provar a minha inocência, algumas das pessoas que eu nem conheço ainda em Gana e eu como é que estabelecer um negócio com eles?? asnwer seu self.i met alot deles nos estádios durante a copa do mundo e eles são ghanaians Preciso ajudar em uma maneira que eu poderia, mas por favor não estragar o meu nome, eu quero viver a minha vida em pedaços não em piesce eu vou falar ma advogado para começar a investigar e lidar com a pessoa que fez um tal falsos comentários, estamos tem o direito de reagir e proteger nossos Imagens da falsidade (...)59.

Apesar de não ter sido possível localizar o refugiado em questão a fim de comprovar o depoimento, acredita-se que o comentário tenha sido feito por ele, uma vez que a escrita do português é característica de uma pessoa que ainda esteja em processo de aprendizagem do idioma local. Além disso, entre os poucos comentários favoráveis à presença dos refugiados e imigrantes de origem africana, os dois comentários feitos possivelmente pelo refugiado também demonstram indignação com o fato de usar a informação sem seu consentimento. No caso deste exemplo é possível identificar, durante a leitura da narrativa jornalística, brechas para induzir os(as) leitores(as) a suspeitar dos refugiados ganeses apresentados na reportagem. Ainda que não haja confirmação da suspeita, uma vez que as autoridades consultadas, como a Polícia Federal por exemplo, não informam possuir provas concretas a respeito, a acusação presente na narrativa põe dois dos refugiados apresentados como integrantes de um possível esquema e, consequentemente, em uma 58  TREZZI, Humberto. Intermediários cobram até R$ 9 mil de ganeses por “ajuda” na viagem. Zero Hora – ClicRBS, 16 jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2015. 59  TREZZI, Humberto. Ibid.

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situação de vulnerabilidade, afetando inclusive sua moral e honra, o que em nossa visão corrobora para a criação de um pânico moral entre leitores(as) do jornal, como pode ser confirmado por meio de alguns comentários na mesma matéria, os quais citam-se alguns abaixo60: Guilherme • um ano atrás Se nao tiver um controlo [sic] com a vinda de imigrantes ao Brasil, tornara um caos. Rudiber • um ano atrás Rodrigo falou bem, ja notei que a população está assustada com a presença de tantos africanos pelas ruas... quem pode garantir que não se infiltrarão no tráfico de drogas e roubos?? Kata • um ano atrás E dai tem gente que nao gosta de negro mussulmano [sic]... Se fosse uma leva de imigrantes europeus com certeza aportariam muito para a cultura... Carlos • um ano atrás A solução e bem simples, deporta todo mundo. Não são turistas, não tem como se manter no país, não são perseguidos politicos, nem seu país esta em guerra, então são só mais gente desempregada, que já tem de sobra neste país. Agora quem ta com peninha, pega um e leva pra casa. HERMES • um ano atrás O principal responsável pela entrada desenfrada de IMIGRANTES ilegais no Brasil é o próprio governo brasileiro corruPTo. A melhor coisa que deveria fazer é encher os aviões da FAB e largá-los de volta de onde saíram. David • um ano atrás Sim,o plano maquiavélico é fazer título eleitoral para todos eles e assim reeleger o Dilmão e toda sua corja petralha!

Em contrapartida, entre os(as) leitores(as) também há aqueles que rebatem as Os comentários podem ser lidos em sua integralidade na página onde foi publicada a notícia, espaço de comentários. Ver link em Trezzi (2014). 60 

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críticas e preconceitos, como exposto a seguir: Carla • um ano atrás Poxa, sua frase pareceu meio discriminatória, quer dizer que as pessoas estão assustadas com tantos africanos andando pelas ruas? E se fosse uma leva de imigrantes europeus será que estariam preocupados como você disse? Sei que é utopia, além de uma tremenda hipocrisia afirmar que não existe o racismo embutido nessa “preocupação” de muitos brasileiros. Mas vamos lutar contra essa atitude detestável e pensar que antes de serem ganeses (africanos), ou de qualquer outra nacionalidade, eles são seres humanos, que precisam de ajuda e merecem respeito como qualquer um de nós. moreorless • um ano atrás Nada diferente do que os brasileiros fazem há anos nos EUA e Europa. As pessoas deveriam ter o direito de buscar uma vida melhor onde quer que fosse. Sinceramente acho que essas leis de imigração deviam ser menos rígidas. Deveríamos ter o direito de morar onde nos identificássemos mais, seja com a cultura, com leis, com religião... O mundo seria bem mais feliz.

Importante frisar que termos como “invasão”, “ilegais”, “indocumentados”, “clandestinos”, “chegada em massa”, “leva” possuem conotação pejorativa e podem influenciar, portanto, o modo como os migrantes podem ser vistos61, promovendo, com isso, a ideia de pânico moral. Uma semana antes, em 9 de julho, o mesmo viés da notícia já havia sido divulgado no telejornal Jornal do Almoço veiculado na RBSTV RS62, na capital e demais cidades gaúchas, sobre a mesma suspeita que teria partido à época de um órgão vinculado à Prefeitura da cidade de Criciúma. E como parte dos(as) migrantes ganeses(as) partiam também de Criciúma em direção à cidade de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, em busca de agilidade na emissão da documentação e solicitação de refúgio, logo, embora a notícia faça referência a outro estado, também pode ser de interesse dos(as) telespectadores(as) gaúchos(as). Na reportagem, uma representante da Secretaria de Assistência Social de Criciúma informou por telefone que a Polícia estaria investigando um possível esquema de tráfico de pessoas, liderado por atravessadores que também seriam ganeses. Embora a COGO, Denise; SOUZA, Maria Badet. Ibid. A matéria pode ser assistida na íntegra pelo seguinte endereço: . Acesso em: 10 maio 2015. 61  62 

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fonte diga que ainda está em fase de investigação, na cabeça da reportagem a apresentadora informa que o caso foi confirmado, com expressões como “... o suposto atravessador já teria sido identificado. Ele cobraria nove mil reais de cada estrangeiro que entra no Brasil” (grifo nosso). Tanto apresentadora do telejornal quanto a fonte entrevistada mencionam certa “preocupação” com essa questão. Note que o fato de mencionar os verbos no futuro do pretérito pode denotar uma possibilidade, sem dar certeza sobre a informação, somada a palavra “suposto”, que também não confirma ou dá certeza sobre o fato mencionado. Na mesma reportagem, ao final da sonora da fonte, a apresentadora informa ainda que o delegado da Polícia Federal de Caxias do Sul foi procurado, porém não confirmou que houvesse, naquele momento, o envolvimento de atravessadores na vinda dos migrantes ganeses. Em entrevista, o delegado informou ter consultado o representante da Polícia Federal em Criciúma e o mesmo havia informado de que assim como em Caxias do Sul, não havia a confirmação da existência de atravessadores. A informação que se tinha é de que alguns migrantes ganeses que já vivem no Brasil, estariam auxiliando seus conterrâneos no país em seu deslocamento. No entanto, como frisado pelo jornalista de Zero Hora e citado anteriormente, a ajuda a migrantes não confere crime; crime é o tráfico de pessoas, conforme aspectos detalhados no capítulo I, artigo 2o, da lei brasileira 5.948/06, que estabelece os princípios e diretrizes da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Observou-se que a narrativa telejornalística também pode remeter ao telespectador 1) a mensagem de que os(as) refugiados(as) são vítimas que necessitam de ajuda, devido a sua condição de perseguidos e da vulnerabilidade social em que se encontram; 2) ou vê-los como invasores, apesar de no discurso textual não ter sido identificadas palavras que remetessem para tal, apenas a presença de termos como “preocupação” que, embora vago, também pode provocar um sentimento de temor sobre a presença dos(as) migrantes, não apenas com o fato de fazer um melhor acolhimento deles, mas também com a ausência de emprego e moradia para essas pessoas e os possíveis desdobramentos com a ausência de recursos para suprir tais necessidades. No discurso presente na narrativa, pode-se inferir que estando à margem, sem auxílio ou acolhimento adequado, os(as) migrantes poderiam partir para a ilegalidade. Discurso esse que também se faz presente nos comentários feitos por leitores(as) da reportagem publicada no Zero Hora. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com recomendações de caráter geral do guia tomado como parte do método para análise, é recomendado nas notícias que abarquem o tema dos fluxos migratórios “focalizar [a] migração como tema; abordar [a] migração como experiência

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socio-cultural; potencializar [a] migração como fonte em notícias de interesse geral da sociedade; buscar fontes migrantes nacionais e internacionais [e] incluir a perspectiva de gênero como importante para não reforçar a desigualdade”63 (grifo nosso). Entre as cautelas e fatores a se evitar está a de “não vitimizar os migrantes”, entendendo que “embora parte das migrações sejam motivadas por fatores econômicos, é importante, na cobertura das migrações, não enfatizar apenas aspectos relacionados às situações de carência e precariedade vividas pelos migrantes”64. O que se notou nas duas reportagens analisadas foi uma preocupação implícita sobre a presença dos(as) migrantes quando não dispõem de auxílio ou recurso para subsistência, o que poderia leva-los(as) à práticas ilegais. Este tipo de ocorrência, como pode ser confirmado nos comentários analisados e nos demais presentes na reportagem veiculada no site, podem levar o público a um pânico de ordem moral contra os(as) migrantes ganeses(as), que já estão em situação de vulnerabilidade, uma vez que ainda aguardam o processo de solicitação de refúgio. Ademais, somado à existência de fatores como o racismo, pode-se afirmar que discursos presentes de forma implícita ou explícita nas narrativas (tele)jornalísticas podem fomentar não apenas discursos de ódio contra os(as) migrantes, como também pôr em risco sua integridade física, nas comunidades onde estão vivendo ou caso estejam em mobilidade, risco esse elevado quando sua imagem, por meio de foto ou registro audiovisual, ou ainda informações que os identifiquem, são registradas e apresentadas nas reportagens. Desse modo, embora tenha a função de informar por seu caráter enquanto instituição social, cabe ao jornalismo evitar a propagação de pânicos morais evitando, desse modo, ações e/ou motivações deturpadas por parte da sociedade que recebe a informação. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Flávia. Brasil abriga 7,7 mil refugiados de 81 nações. Agência Brasil, 3 jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 1 ago. 2015. AMOSSY, Ruth. Estereótipo. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do discurso. 3 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014, p. 214-216. BONA, Aldo Nelson. História, verdade e ética: Paul Ricoeur e a epistemologia da História. Guarapuava/PR: 2012. BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e 63  64 

COGO, Denise; SOUZA, Maria Badet. Ibid, p. 61. COGO, Denise; SOUZA, Maria Badet. Ibid, p. 61.

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Thiago Assunção e Jacqueline Chomatas| 101

POR QUE O BRASIL HOJE É UM POLO DE ATRAÇÃO PARA A IMIGRAÇÃO INTERNACIONAL? Thiago Assunção1 Jacqueline Chomatas2 Resumo: O presente artigo busca investigar quais são os principais fatores de atração dos novos fluxos de migração internacional para o Brasil, a partir de 2010. Ainda que a presença de estrangeiros no Brasil seja pequena comparada a muitos outros países, os números apontam uma tendência de aumento da imigração para o país. Fatores como a maior inserção internacional do Brasil, através de uma política externa proativa, liderando iniciativas de integração regional e inter-regional; o incremento da cooperação internacional, notadamente a cooperação Sul-Sul; bem como uma atuação importante em organismos internacionais e missões de paz, principalmente durante o Governo Lula, foram decisivos para a mudança de percepção do país no exterior. Ademais, fatores internos, como a estabilidade política e econômica, a expansão da economia com redução da desigualdade e a baixa taxa de desemprego, combinados com a realização de grandes eventos esportivos, compõem um conjunto de elementos que nitidamente aumentaram a atratividade do país aos olhos dos candidatos a imigrar. O estudo busca, portanto, entender e cruzar os determinantes do renovado aumento no número de estrangeiros no país. Palavras-chave: Migrações Internacionais; Estrangeiros no Brasil; Atratividade Brasileira. Abstract: This paper investigates which are the main factors of attraction of the new international migration flows to Brazil, since 2010. Although the presence of foreigners in Brazil is small compared to many other countries, the figures show a rising trend of immigration to the country. Factors such as greater international insertion of Brazil, through a proactive foreign policy, leading regional inter-regional integration initiatives; the promotion of international cooperation, particularly SouthSouth cooperation; as well as an important presence in international organizations and peacekeeping missions, especially during the Lula government, were decisive for the change in perception of the country abroad. In addition, internal factors such as political and economic stability, the expansion of the economy with reduction of inequality and the low unemployment rate, combined with the attaining of major sporting events, make up a set of elements that clearly increased the attractiveness of the country in the eyes of candidates to immigrate. The study seeks through literature search and comparison of statistical data, to understand the motives and determinants of the renewed increase in the number of foreigners in the country. Keywords: International Migration; Foreigners in Brazil; Brazilian Attractiveness.

1  Doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo - USP, é Mestre em “Educação para a Paz: Direitos Humanos, Cooperação Internacional e Políticas da União Europeia” pela Universidade de Roma III (2010), e graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2007). Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. [email protected] 2  Graduada em ciências econômicas pela Universidade Federal do Paraná (2013) e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba (2015). Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. [email protected]

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1 INTRODUÇÃO A estrutura social brasileira passou por um momento singular de transformação na última década. A elevação da renda per capita do brasileiro, especialmente após 2003, vem acompanhada da redução da desigualdade na distribuição da renda no país. A queda na taxa de desemprego, a formalização do mercado laboral e a redução na pobreza absoluta refletem a melhora das condições de trabalho no Brasil. Somados a outros fatores, como opções de política externa e a maior inserção internacional do país, criou-se uma conjuntura que trouxe ao país uma nova onda imigratória, especialmente a partir de 2010. De acordo com o IBGE3, o número total de imigrantes no Brasil passou de 143.644 entre 1995 e 2000, para 286.468 entre 2005 e 2010. Isto representa um aumento de 86,7% no número absoluto de estrangeiros residentes no país nestes períodos. A maior projeção do Brasil no exterior, aliada às crescentes restrições à entrada de imigrantes na Europa e nos Estados Unidos, está provocando uma diversificação no grupo de estrangeiros que têm optado por viver em terras brasileiras. Ainda assim, o número de estrangeiros não representa atualmente mais que 0,3% da população total do país, uma quantidade pequena comparada com a representatividade de mais de 7% no início do século XX. Em âmbito mundial, cerca de 3% da população vive fora do país em que nasceu, dado que revela que a quantidade de imigrantes no Brasil gira em torno a um décimo da média mundial (SAE, 2014). Em comparação, os Estados Unidos contabilizou, em 2013, 41,3 milhões de imigrantes de primeira geração, o que representa 13% da sua população total4. Na Argentina, segundo dados de 2010, 4,5% da população é formada por estrangeiros5. Países caracterizados como grandes receptores de imigração internacional apresentam números mais impressionantes. Em 2011, o Canadá possuía 6.775.800 imigrantes, o que representa cerca de 20% de sua população total6. Em contraste com o novo fluxo migratório experimentado pelo país e as dificul3  IBGE. Censo demográfico 2010: resultados gerais da amostra. Disponível em http://migre.me/rtc10 Acesso em 01/04/2015. 4  Ao contabilizar, também, os filhos de imigrantes nascidos no país, os Estados Unidos possuem 80 milhões de imigrantes de primeira e segunda geração, cerca de um quarto da população total. [tradução nossa] MIGRATION POLICY INSTITUTE. Frequently requested Statistics on Immigrats and Immigration in the United States. 26 de fev. 2015. Disponível em http://www.migrationpolicy.org/article/frequently-requested -statistics-immigrants-and-immigration-united-states#TOP Acesso em 26 de mai 2015. 5  INDEC. Censo Nacional de Población, hogares y viviendas 2001 y 2010. Disponível em http://www. censo2010.indec.gov.ar/resultadosdefinitivos_totalpais.asp Acesso em 26 de mai 2015. 6  STATCAN. Immigration and Ethnocultural Diversity in Canada, Immigration 2011. Disponivel em http://www12.statcan.gc.ca/nhs-enm/2011/as-sa/99-010-x/99-010-x2011001-eng.cfm#a2 Acesso em 26 de mai 2015.

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dades impostas pela legislação migratória, verifica-se a miscigenação da sociedade brasileira, em grande parte consequência das políticas orquestradas pela administração pública e por agentes privados especialmente a partir do século XIX, considerando ainda a migração forçada de africanos para fins de escravidão, desde o século XVI. A análise de como e sob quais condições se deram estes diversos fluxos de migrações internacionais com destino ao Brasil, desde o período colonial aos dias de hoje, permite uma maior compreensão da formação etnográfica e da realidade do país, mas esta análise histórica foge ao escopo deste trabalho. O presente artigo abordará uma série de fatores internacionais e domésticos que explicam a maior visibilidade do país e contribuíram para o aumento no ingresso de imigrantes a partir de 2010. A perspectiva teórica acerca das migrações que serve de base para este estudo não segue necessariamente os push and pull factors7, focando-se a compreensão do processo imigratório para o país sob a ótica do país receptor, sem reduzir a importância, no entanto, dos fatores que levam à emigração nos países de origem. Finalmente, apresentam-se nas considerações finais do trabalho alguns apontamentos críticos sobre a temática. 2 POR QUE O BRASIL HOJE É UM POLO DE ATRAÇÃO PARA A IMIGRAÇÃO INTERNACIONAL? No que tange à imigração, 912 mil estrangeiros viviam no Brasil na década de 80, representando apenas 0,7% da população. A participação dos imigrantes na população total do Brasil apresenta trajetória nitidamente decrescente até 2010, quando sua participação na população total representava apenas 0,3%.

7  “In the neo-classical perspective, decisions to move are made at the individual level in response to hardships in source areas (the ‘push’ factors) and to perceived comparative advantages in destination areas (the ‘pull’ factors).” TACOLI, C. Rural-urban interactions: a guide to literature, Environment and Urbanization.Vol. 15. 2003, p. 3-12.

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Ingresso

de

imigrantes

internacionais

no

Brasil

(2000-2013)

FONTE: OLIVEIRA (2015, apud IBGE, censos demográficos 2000 e 2010, PNADs 2001 a 2009, 2011 a 2013) 8

De acordo com o Observatório das Migrações Internacionais9, entre o censo de 2005 e 2010 pode-se perceber a tendência decrescente no número de estrangeiros no país, que passou de 683.836, em 2005, para 592.591, no recenseamento de 2010. A partir de 2011, no entanto, percebe-se uma tendência crescente, superando os 750 mil estrangeiros em 2013. Os censos demográficos, no entanto, demonstram uma alteração negativa na renda auferida por estes migrantes, com grande aumento no número de estrangeiros com ganhos mensais inferiores ao salário mínimo, como mostra a tabela abaixo.

IIBGE. Ibid, 2010. Órgão criado em cooperação do Ministério do Trabalho e Emprego, via Conselho Nacional de Imigração, e a Universidade de Brasília.

8  9 

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Imigrantes segundo faixas de rendimento (salário mínimo) no Brasil (2000-2010)

FONTE: IBGE (2000 e 2010, apud ALMEIDA, 2015)10

A queda do padrão de vida dos imigrantes no Brasil, no entanto, não desmotivou o ingresso de novos estrangeiros no país. Em 2012, o Brasil contabilizava 1,5 milhão de imigrantes legalizados, de acordo com a Empresa Brasil de Comunicações, EBC (2012). Destes, 70.080 tiveram seu pedido de visto de trabalho concedido, o que significou um aumento de 3% com relação a 2011 11. Dentre estes pedidos, destaca-se o ingresso de cidadãos da República do Haiti, que representaram 58% das novas autorizações em 2012. O recente aumento do fluxo absoluto de estrangeiros, nomeadamente a partir dos anos 2010, se deve, segundo o então Secretário Nacional de Justiça Paulo Abrão12 , ao crescimento econômico brasileiro e a consolidação do país no cenário internacional; à Lei nº 11.961 de 2009 – que anistiou os estrangeiros em situação irregular no país; ao acordo sobre residência para nacionais dos estados do Mercosul; aos grandes eventos esportivos realizados no país; e à outras práticas da política externa brasileira, fatores que se pretende analisar adiante.

ALMEIDA, P. R. O BRIC e a substituição de hegemonias: um exercício analítico (perspectiva históricodiplomática sobre a emergência de um novo cenário global. In BAUMAN, R. (org.). O Brasil e os demais BRICs – Comércio e Política. Brasília: CEPAL, 2010. Disponível em http://migre.me/rtbKZ Acesso em 25/03/2015. 11  CNIg 2010, apud Obmigra, 2015. 12  Número de estrangeiros regulares no Brasil aumenta 50% em seis meses. Ministério da Justiça. Notícias, publicado em 01 de novembro de 2011. Disponível em http://goo.gl/GIEOoJ Acesso em 23/09/2014. 10 

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2.1 A Política Externa Brasileira do século XXI A política externa brasileira passou por consideráveis mudanças e ganhou maior visibilidade durante a primeira década deste século. Em termos internacionais, o governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) foi bastante marcado por opções políticas que privilegiaram a diversificação e o multilateralismo, como a coordenação política com países emergentes e em desenvolvimento, especialmente os membros dos BRICS e a América do Sul. O Brasil adota, a partir de 2003, um modelo de política externa pautado pela ampliação dos laços com o sul e de maior autonomia frente aos países desenvolvidos. Como consequência e reflexo destas opções políticas, apenas nos dois primeiros anos de seu primeiro mandato o Presidente Lula recebeu 75 chefes de Estado13. Na perspectiva de Vigevani e Cepaluni14, os principais objetivos da agenda externa do governo petista foram: (1) busca por maior equilíbrio internacional; (2) fortalecimento das relações bilaterais e multilaterais, aumentando o peso político do Brasil; (3) adensar as relações diplomáticas como ferramenta para expandir os intercâmbios econômicos, financeiros, tecnológicos e culturais; (4) evitar acordos que comprometessem o desenvolvimento nacional; (5) aprofundar os laços da Comunidade Sul-Americana das Nações; (6) intensificar relações com países emergentes, especialmente Índia, Rússia, China e África do Sul; (7) participação ativa nos foros multilaterais, como a OMC; (8) manutenção das relações de parceria com os países desenvolvidos; (9) campanha pela reforma do Conselho de Segurança; (10) fortalecer as políticas sociais, equilibrando as relações entre Estados e populações;

Em termos pragmáticos, o Brasil expandiu as cooperações técnicas para o desenvolvimento, com a cooperação sul-sul, bem como adotou práticas de autonomia pela diversificação, utilizando-se de sua força regional em iniciativas de integração e diversificação de parcerias. Ainda que estas políticas tenham sido mais fortemente adotadas durante o governo Lula (2003-2010), a Presidente Dilma Rousseff optou por manter estes traços de política externa, ainda que enaltecendo as práticas inter-regionais (especialmente o BRICS) e enfraquecendo outras, como as relações com o continente MARRA, T.A; NAZARENO, E. A política externa do governo Lula. São Paulo: Unesp, 2011. Disponível em http://migre.me/rtc3A Acesso em 27/09/2014. 14  VIGEVANI, T; CEPALUNI, G. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. Rio de Janeiro: Revista Contexto Internacional vol. 29, n. 2., 2007. Disponível em http:// migre.me/rtcs3 Acesso em 03/10/2014. 13 

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africano e os esforços de integração. Estas ações no plano internacional tiveram impacto na forma como o Brasil foi percebido no exterior.

2.2 Cooperação sul-sul: problemas do sul, soluções do sul De acordo com Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil) 15, a cooperação sul-sul é um mecanismo de desenvolvimento conjunto entre países emergentes em resposta a desafios comuns, favorecido por laços históricos e geográficos, e que se dá por meio da troca de lições de desenvolvimento, do compartilhamento de melhores práticas e da implementação de boas técnicas. Entre os marcos na cooperação política entre países em desenvolvimento está a Conferência de Bandung, ocorrida em 1955, a Primeira Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) em 1964, as cooperações árabes16, a criação do G77 e, ainda, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo. Mais recentemente, o estabelecimento da Unidade de Cooperação Sul-Sul no PNUD, o Fórum Índia-Brasil-África do Sul (IBAS) em 2003, a Cúpula do Sul de 2003 e a Conferência de Alto-nível das Nações Unidas sobre Cooperação Sul-Sul em 2009 demonstram a importância política e econômica deste modelo de cooperação, o qual possui uma perspectiva de desenvolvimento com bases cooperativas a partir da realidade dos países emergentes17. No âmbito do governo federal, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores) denomina a cooperação sul-sul de “cooperação técnica entre países em desenvolvimento” (CTPD), pontuando-a como: [...] importante instrumento de desenvolvimento, auxiliando um país a promover mudanças estruturais nos campos social e econômico, incluindo a atuação do Estado, por meio de ações de fortalecimento institucional. Os programas implementados sob sua égide permitem transferir ou compartilhar conhecimentos, experiências e boas-práticas por intermédio do desenvolvimento de capacidades humanas e institucionais, com vistas a alcançar um salto qualitativo de caráter duradouro18. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: Nosso Trabalho – Cooperação sul-sul. Disponível em Acesso em 17/03/2015. 16  Destacam-se, entre as iniciativas de cooperação no Oriente Médio, a criação do Fundo do Kuwait para o desenvolvimento árabe (1961), o Banco de Desenvolvimento Islâmico e o Banco Árabe para o desenvolvimento, na década de 70. (MILANI; CARVALHO, 2013) 17  MILANI, C.R.S; CARVALHO, T.C.O. Cooperação Sul-sul e Política externa: Brasil e China no continente africano. Revista Estudos Internacionais, v.1, n.1 2013.Pp:11-35. Disponível em http://migre.me/ rtc4z Acesso em 24/11/2014, p. 14. 18  AGÊNCIA BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO (ABC), Ministério das Relações Exteriores. Coordena15 

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A ABC é a responsável por gerenciar as cooperações técnicas firmadas pelo Brasil. Na agenda internacional do país, a cooperação sul-sul se dá por meio de organizações multilaterais, dos espaços regionais de integração ou por acordos bilaterais em áreas específicas, como saúde, agricultura, gestão pública e educação. Essa cooperação é baseada no conceito de diplomacia solidária, em que “o país coloca suas experiências e conhecimentos à disposição para colaborar na promoção do progresso econômico e social de outros povos”19. A relevância que este modelo de cooperação ocupa na política externa do Brasil acompanha o papel que o país busca desempenhar no cenário político e econômico mundial, assim como nas reformas das instituições internacionais20. O gráfico abaixo demonstra o crescimento dos recursos brasileiros aplicados em cooperação técnica, entre 2005-2009. Recursos anuais aplicados em Cooperação Técnica entre 2005-2009, em milhões de reais

Fonte: Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR)21.

Neste período, de acordo com o gráfico acima, o país dedicou mais de 270 milhões de reais para a cooperação técnica para o desenvolvimento. Seus esforços foram focados na América Latina e Caribe, África subsaariana e os Países Africanos de Língua ção Geral de Cooperação técnica entre países em desenvolvimento. Disponível em http://migre.me/rtbHj Acesso em 24/10/2014. 19  AGÊNCIA BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO (ABC). Ibid, p. 32. 20  MILANI, C.R.S; CARVALHO, T.C.O. Ibid, p. 18. 21  SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (SAE). Comissão Nacional de População e Desenvolvimento. Migração internacional. Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Disponível em http://www.cnpd.gov.br/cnpd/assunto/assuntos/migracao Acesso em 23/03/2015, p. 34.

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Oficial Portuguesa22. A Agência Brasileira de Cooperação possui diversos acordos de cooperação técnica para o desenvolvimento com países do continente africano, da América Latina, asiáticos e do Oriente Médio, além de um acordo em negociação com a Rússia. Mais de 250 projetos foram executados pela ABC em parcerias com 58 países do sul global apenas em 200823. As principais áreas de atuação deste modelo de cooperação concentram-se na agricultura, formação e capacitação técnica, educação, justiça, saúde, desenvolvimento urbano, biocombustíveis, transporte aéreo e turismo, além de parcerias no âmbito da cultura, comércio exterior e direitos humanos. O país também mantém acordos de cooperação multilateral, com órgãos das Nações Unidas, organizações interamericanas e outras organizações internacionais.

2.3 O Brasil e as missões de paz das Nações Unidas Além dos recursos destinados à cooperação técnica para o desenvolvimento, o Brasil é, atualmente, o principal contribuinte com tropas e policiais para a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), criada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2004. A MINUSTAH foi instalada após a saída para exílio do ex-Presidente haitiano Bertrand Aristide durante um conflito armado que se espalhou por diversas regiões do Haiti. A Missão tem como objetivos reestabelecer um ambiente seguro e estável, promover o processo político, fortalecer as instituições governamentais e jurídicas do Haiti e promover e proteger os direitos humanos24. Ainda que a líder da Missão e representante especial do Secretário-Geral seja a trindadense Sandra Honoré, o comando militar é do General brasileiro José Luiz Jaborandy, que chefia 4.975 soldados das forças de manutenção de paz das Nações Unidas no Haiti. Dentro deste contingente, o Brasil contribui com cerca de 3.300 militares (2 mil do primeiro batalhão e 1.300 do segundo, no pós terremoto) que prestam apoio logístico ao esforço humanitário no país. Até 2010, os gastos brasileiros com a MINUSTAH somaram cerca de 467 milhões de reais25. O terremoto em 12 de julho de 2010 trouxe ainda mais instabilidade à já então crítica economia e infraestrutura haitiana. O Brasil também contribui com tropas e/ou auxílio financeiro às Missões das SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (SAE). Op Cit., p. 36. 23  AGÊNCIA BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO (ABC). Ibid. 24  MINUSTAH – United Nations Stabilization Mission in Haiti. Disponível em http://www.un.org/en/ peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml > Acessado em 17/03/2015. 25  IPEA. Cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Agência Brasileira de Cooperação. Brasília: IPEA; ABC, 2013, p. 86. 22 

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Nações Unidas na República Centro-Africana e Chade, à Missão na República Democrática do Congo (Monusco), a Missão em Darfur (UNAMID), a Missão no Sudão (UNIMIS), na Somália (Unisoa), no Chipre (UNIFICYP), no Líbano (Unifil), na Libéria (UNIMIL), no Nepal (UNIMIN), no Timor-Leste (UNIMIT) e na Costa do Marfim (Unoci). O país dedicou, em 2010, R$ 22.758.907,00 em contribuições para estas missões26. Como consequência dos compromissos assumidos pelo país no apoio às atividades das Nações Unidas, o Brasil figura entre os principais colaboradores do pessoal civil, militar e policial dos países em desenvolvimento para as Missões de Paz, ocupando, em 2005, a 14a posição entre todos os Estados contribuintes27.

2.4 A vinda dos Haitianos para o Brasil A postura ativa nas atividades da ONU culminou na participação brasileira enquanto líder das operações no Haiti. A situação haitiana possuía grande visibilidade mundial, dada a intensidade das disputas políticas e a amplitude das catástrofes do terremoto em 2010. Sendo responsável pela maior parte da Missão de Paz, o Brasil demonstra sua capacidade em dar uma resposta à crise de um país vizinho, reforçando seu papel de liderança na América do Sul. A presença brasileira no Haiti, de um modo geral, contribuiu para que a população do país conhecesse e se interessasse pelo Brasil. A complexa situação socioeconômica e política do Haiti, resultado de uma série de calamidades e conflitos, e o bom desempenho da economia brasileira são outros fatores que contribuem para a entrada destes imigrantes no país. Os haitianos percebem o Brasil como uma terra de oportunidades, onde é possível fazer dinheiro rapidamente e cujos controles migratórios, especialmente na vasta região norte, não é tão rigoroso, de acordo com Sidney da Silva28. O pesquisador afirma que O Brasil apresenta-se ‘no imaginário deles’ [haitianos] como um país próspero, onde é possível crescer e ganhar dinheiro. As notícias de crescimento econômico no Brasil animam aqueles que se encontram numa situação de falta total de perspectivas29.

Como resultado, muitos haitianos, em sua maioria homens e com idade entre 20 e 35 anos, ao chegarem a Tabatinga, no Amazonas (fronteira brasileira com o Peru, país IPEA. Op. Cit., p. 88. SEINTEFUS, R. De Sues ao Haiti: a participação brasileira nas Missões de Paz, 2005. Disponível em http://migre.me/rtcjZ Acesso em 23/03/2015. 28  UNISINOS. Entrevista: Haitianos: os novos imigrantes do Brasil. Entrevista especial com Duval Magalhães e Sidney da Silva. 06 de ago 2011. Disponível em http://migre.me/rtcrH Acesso em 27 mai 2015. 29  SILVA apud UNISINOS. Op Cit. 26  27 

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que não exige visto dos cidadãos do Haiti), pleiteiam ao entrar em território brasileiro o status de refugiados, mas acabam recebendo no país um visto de cunho humanitário, que lhes garante direito a fazer o Cadastro de Pessoa Física e à expedição da Carteira de Trabalho, além de acesso a saúde e educação pública. A chegada destes haitianos, na perspectiva do demógrafo Duval Magalhães30 é uma demonstração de que o Brasil reiniciou sua inserção no fluxo das migrações internacionais, tanto enquanto país de emigração como enquanto receptor de migrantes. O reconhecimento do Brasil enquanto potência regional, além do fortalecimento da imagem do país frente às Nações Unidas, garantiu maior destaque ao país na mídia internacional, nos foros multilaterais e nos países pertencentes à zona de influência brasileira, o que contribui para o aumento no fluxo destes imigrantes para o país.

2.5 Participação brasileira em foros multilaterais Em termos de política internacional, o Brasil possuía, na década de 90, certa presença global por meio do comércio e de sua inserção em organismos multilaterais, não apresentado, no entanto, potencial para determinar de forma objetiva os rumos da política internacional31. Grande parte da nova influência positiva brasileira é resultado da estabilização econômica, do grau de abertura do país e do potencial de crescimento de seu mercado doméstico. As limitações brasileiras se dão, principalmente, por suas questões sociais (desigualdade, baixo acesso popular aos serviços públicos, gargalos na educação), o que determina certa escassez de diversos tipos de recurso por parte do Estado, além de restrições de ordem institucional e de política interna para uma inserção internacional mais profunda. Dentro desta conjuntura, o Brasil adota uma postura externa de preferência pela diplomacia e pela defesa do direito internacional como tabuleiro para seus interesses. A participação ativa do Brasil em organizações internacionais tem sido uma característica constante da diplomacia brasileira. Lafer32 pontua essa participação com claro destaque para os esforços brasileiros a partir da década de 90, em que o país se posicionou acerca dos principais temas da agenda política global, como os direitos humanos, o meio ambiente e a não proliferação nuclear. Esta participação demonstrou no país a capacidade de articulação entre as grandes potências e as pequenas nações de Apud UNISINOS. Op Cit. FONSECA JR., Gelson. Anotações sobre as Condições do Sistema Internacional no limiar do século XXI: a Distribuição de Pólos de Poder e a Inserção Internacional do Brasil.São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IELA), 1998. Disponível em http://migre.me/rtbYD Acesso em 23/03/2015. 32  LAFER, Celso. Brasil: dilemas e desafios da política externa. São Paulo: Estudos avançados vol.14, n.38, 2000. Disponível em http://migre.me/rtc2J Acesso em 23/03/2015. 30  31 

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forma indistinta. De acordo com Lafer, [...] se antes o país construiu, com razoável sucesso, a autonomia possível pelo relativo distanciamento em relação ao mundo, na virada do século esta autonomia possível, necessária para o desenvolvimento, só pode ser construída pela participação ativa na elaboração das normas e pautas de conduta da gestão da ordem mundial. Em outras palavras, os interesses específicos do país estão, mais do que nunca, atrelados aos seus interesses gerais  na dinâmica do funcionamento da ordem mundial. É por esta razão que a obra aberta da continuidade na mudança, que caracteriza a diplomacia brasileira, requer um aprofundamento nos foros multilaterais da linha da política externa, inaugurada, por Rui Barbosa, em Haia, em 1907. Esta se traduz em obter no eixo assimétrico das relações internacionais do Brasil um papel na elaboração e aplicação das normas e das pautas de conduta que regem os grandes problemas mundiais, que tradicionalmente as grandes potências buscam avocar e, na medida do possível, exercer com exclusividade33.

Os foros multilaterais, portanto, têm sido utilizados pelo Brasil como arena para geração de poder por meio de alianças de diversas geometrias, mantendo o objetivo claro de defesa dos interesses nacionais e posicionamento ativo e privilegiado do país em questões internacionais. Esta característica da política externa nacional foi aprofundada durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva e, em menor grau, por Dilma Rousseff. O Brasil tem avançado em sua inclusão internacional por meio do modelo baseado nos foros multilaterais. Este multilateralismo à brasileira marca, na perspectiva de Cervo e Bueno34, a prática da política exterior do país no século XXI e pode ser definido como a busca, em todos os domínios da ordem internacional, pelo estabelecimento conjunto de regras do ordenamento multilateral que beneficiam igualmente a todas as nações. Para os autores, [...] a confecção da rede global como propósito da política exterior do Brasil no século XXI toma impulso com o multilateralismo da reciprocidade, movido pela diplomacia, que estabelece coalizões e exerce liderança nas negociações globais, e com a internacionalização econômica, movida por agentes econômicos e sociais que alcançam todos os cantos do planeta35. LAFER, Celso. Ibid. CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. 35  CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo. Op Cit., p. 514. 33  34 

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Como forma de garantir aos foros multilaterais maior capacidade decisória e democracia, o Brasil vem pautando sua prática internacional na defesa da reforma e adaptação dos órgãos e agências do sistema das Nações Unidas aos tempos atuais. O país apoiou a criação do Conselho de Direitos Humanos e da Comissão de Construção da Paz, além de buscar a revitalização da Assembleia Geral e do Conselho Econômico e Social. No entanto, a maioria dos esforços internacionais do país neste tema está direcionada à reforma do Conselho de Segurança, cujos membros permanentes são os mesmos desde 1945. Em publicação acerca da diplomacia multilateral do país, o exchanceler Celso Amorim afirma que O que podemos almejar no atual estágio de evolução da relação entre os Estados é um sistema que busque equilibrar da melhor forma critérios de representatividade e de eficácia. A mudança que buscamos para o Conselho de Segurança tem, a nosso ver, esta característica. Tampouco devemos ter a pretensão de legislar para a eternidade. É necessário que a reforma por que venha a passar o Conselho de Segurança esteja sujeita a uma revisão sem pré-julgamentos, dentro de um período razoável36.

A busca brasileira por modificações no Conselho de Segurança ilustra como, segundo Miyamoto37, “a capacidade que o país tem de alterar as regras de funcionamento do sistema internacional é extremamente limitada”. Logo, o país lança mão de expedientes em termos de cooperação e fortalecimento das arenas multilaterais e do direito internacional como maneiras de progredir em seus objetivos de política externa. Esta expansão propaga o ideário brasileiro e garante ao país maior visibilidade internacional, inserindo-o como uma alternativa no tabuleiro internacional e como uma nova opção de destino na decisão de migrar.

2.6 O Brasil e os mecanismos inter-regionais A diplomacia possui diversas iniciativas dentro da agenda de política internacional do Brasil. Algumas destas ações foram herdadas por Luís Inácio Lula da Silva de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. É o caso da priorização à integração regional AMORIM, C. A diplomacia miltilateral do Brasil: um tributo a Rui Barbosa.Brasília: FUNAG. Disponível em http://migre.me/rtbLr Acesso em 24/03/2015. 37  MIYAMOTO, S. O Brasil e as negociações multilaterais. Brasília: Rev. Brasileira de Política Internacional, vol.43, n.120. Disponível em http://migre.me/rtc7u Acesso 23/03/2015. 36 

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e o fortalecimento do Mercosul. No entanto, o escopo destas ações foi modificado: se na era FHC os objetivos eram de caráter comercial e econômico, Lula pautou sua aproximação com os vizinhos de continente em aspectos sociais e políticos, especialmente em razão da emergência de presidentes mais progressistas na América Latina na virada do século XXI38. O governo Lula também foi marcado por iniciativas diplomáticas inéditas, como a aproximação com parceiros considerados emergentes, como a Índia, China, Rússia e a África do Sul. Como resultado dessa diversificação de parcerias, surgiram dois importantes grupos: o IBAS, em 2003, formado pelo Brasil, Índia e África do Sul e de propósito desenvolvimentista; além do BRICS39. O IBAS (também denominado G-3) é um mecanismo de coordenação criado em junho de 2003 pela Declaração de Brasília. O agrupamento se baseia em três pilares: a concertação política, a cooperação setorial e o Fundo IBAS, além de outras iniciativas diplomáticas. O IBAS emite documentos com sua posição conjunta acerca de temas globais, além de exercitar a cooperação entre diversos setores da administração pública dos Estados e da sociedade civil, concentrados em 16 grupos de trabalho. O mecanismo também conta com o Fundo IBAS para o Alívio da Fome e da Pobreza, que colabora com países em menor desenvolvimento relativo com financiamento de projetos e trocas de melhores práticas. O fundo IBAS recebeu do PNUD, em 2006, o prêmio “Parceria sul-sul para Aliança Sul-sul” por seus projetos no Burundi, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Haiti e Palestina. Estão em andamento projetos nos países citados, além do Camboja, Serra Leoa, Laos e Vietnã40. Já o BRICS, acrônimo criado pelo economista Jim O’Neil41 para denominar a emergência de novos players globais na economia mundial, hoje representa um agrupamento político cujo crescimento econômico fez com que, em 2009, estes países fossem responsáveis por 14% do PIB mundial42. A intensificação das relações entre os países ALMEIDA, P. R. Ibid. “Até 2006, os BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] não estavam reunidos em mecanismo que permitisse a articulação entre eles. O conceito expressava a existência de quatro países (até então) que individualmente tinham características que lhes permitiam ser considerados em conjunto, mas não como um mecanismo. Isso mudou a partir da Reunião de Chanceleres dos quatro países organizada à margem da 61ª. Assembleia Geral das Nações Unidas, em 23 de setembro de 2006. Esta constituiu o primeiro passo para que Brasil, Rússia, Índia e China começassem a trabalhar coletivamente. Pode-se dizer que, então, em paralelo ao conceito “BRICs” passou a existir um grupo que passava a atuar no cenário internacional, o BRIC. Em 2011, após o ingresso da África do Sul, o mecanismo tornou-se o BRICS.” (IPEA, 2014) 40  BRASIL. BRICS criam novo banco de desenvolvimento. Notícias: 15/07/214 Brasília: Ministério da Fazenda, 2014. Disponível em http://migre.me/rtbOQ Acesso em 24/11/2014. 41  O’NEIL, Jim. Building better global economic – BRICs. Goldman Sachs, 30 nov. 2001. Disponível em Acesso em 24/11/2014 42  IPEA. Ibid. 38  39 

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que compõe o BRICS vem institucionalizando o agrupamento, cujo início dos trabalhos coletivos se deu apenas em 2006. A partir de então, os membros do grupo passaram a debater temas da agenda internacional e determinar posições similares entre si, como no setor agrícola, energético e no desenvolvimento tecnológico. O BRICS atualmente possui diversas áreas de atuação, sendo a econômico-financeira a mais desenvolvida. Como resultado desta interação, em 15 de julho de 2014 os governos dos países envolvidos assinaram o acordo que cria o banco de desenvolvimento dos BRICS, que financiará projetos de infraestrutura e desenvolvimento. De acordo com Stunkel43, o adiamento das reformas no Fundo Monetário Internacional e a negativa dos países do Ocidente em reajustar as cotas de votos das nações em desenvolvimento foram fundamentais para o fortalecimento de instituições paralelas ao FMI, como a liderada pelos membros do BRICS. Oficialmente denominado Novo Banco de Desenvolvimento, o banco é uma alternativa de financiamento para projetos em países do sul global, com capital inicial autorizado de US$ 100 bilhões e cujas operações devem ter início em 2016. Com a participação em dois mecanismos inter-regionais, o Brasil amplia seu alcance na política internacional, estabelecendo parcerias nos mais diversos âmbitos. Com isso, sua imagem atrela-se à força de sua economia, sua vontade de cooperar e consequentemente à sua receptividade às mais diferentes nações.

2.7 O Acordo sobre Residência do Mercosul Assinado pelos países-membros do bloco na XXIII Reunião do Conselho do Mercado Comum em 2002, o Acordo de Residência de Nacionais em âmbito do Mercosul “ampliado”44 (compreendendo Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela) foi incorporado pelo Brasil por meio do Decreto n.º 6.975 de 2009, entrando em vigor para o país no plano jurídico externo no mesmo ano. O Acordo é aplicável aos estrangeiros intrarregionais que se encontrem ou tenham como destino de imigração um dos países da região e que desejem regularizar sua situação migratória. Ao reduzir as exigências para concessão de residência temporária de até dois anos e sua transformação em residência permanente, o Acordo aprofunda as relações entre STUNKEL, O. Em Brisbane, países do BRICS reafirmam compromisso de criar banco de desenvolvimento. Post-Western World: how emerging powers changing the world? Disponível em http://migre.me/ rtckI Acesso em 28/09/2014. 44  São Estados-parte do acordo Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela. O bloco, hoje, corresponde a 295.007.000 pessoas distribuídas em 14.869.755km2. A República Plurinacional da Bolívia está em processo de adesão, enquanto Chile, Peru, Colômbia e Equador são Estados associados e que participam do acordo de livre circulação de pessoas e residência temporária. (MERCOSUL, 2014) 43 

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os países-membros do Mercosul, avançando no objetivo de efetivar o mercado comum da região ao dotar a integração de uma dimensão sócio laboral45. O tratado torna-se um marco histórico para o Mercosul, fortalecendo a livre circulação de pessoas, e não mais se aplicando aos cidadãos do bloco os limites tradicionais impostos a entrada e permanência de estrangeiros, como determinados pelo Estatuto do Estrangeiro de 1980 no Brasil. O Acordo concede visto de residência temporária por até dois anos aos cidadãos do Mercosul “ampliado” que cumpram os seguintes requisitos: comprovem sua nacionalidade, possuam declaração negativa de antecedentes judiciais/penais em nível nacional e internacional, apresentem residência comprovada no país de origem nos últimos cinco anos, atestem sua condição de saúde (se exigido pela autoridade migratória do país de recepção) e arquem com a taxa de serviço para emissão de visto46. Para que a residência temporária se torne permanente, o estrangeiro deve requisitar esta nova residência perante a autoridade migratória, 90 dias antes do vencimento da residência temporária, apresentando os mesmos documentos e certidões atualizadas exigidas para a primeira concessão. Uma vez regularizado por meio do Acordo de Residência de Nacionais do Mercosul, o imigrante e seus familiares no Brasil gozam de igualdade de direitos civis e de tratamento com os nacionais, além do direito de transferir recursos livremente ao seu país de origem e ao direito de reunião familiar. Entre os deveres do estrangeiro, constam as responsabilidades previdenciárias e trabalhistas em igualdade aos cidadãos brasileiros. O Acordo prevê a aplicação de mecanismos de cooperação permanente para a promoção de empregos formais e a punição de indivíduos ou organizações que lucrem com a movimentação clandestina dos trabalhadores imigrantes, assim como compromete as partes com a criação de campanhas para que os imigrantes do Mercosul ampliado conheçam seus direitos47. Ainda que o Acordo seja uma contribuição positiva no combate à imigração irregular e ao tráfico internacional de pessoas na América do Sul, os entraves das legislações vigentes em alguns dos países signatários dificultam sua implementação48, especialmen45  TOMASS, L.J. Em vigência a livre circulação no Mercosul, mais Bolívia e Chile. Direitos de trabalhar, empreender, circular e residir. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 107, 2012. Disponível em: http:// migre.me/rtcrj Acesso em 07/11/2014. 46  BRASIL. Decreto-lei nº 6.975 de 7 de outubro de 2009, que Promulga o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado Comum do Sul – Mercosul, Bolívia e Chile, assinado por ocasião da XXIII Reunião do Conselho do Mercado Comum, realizada em Brasília nos dias 5 e 6 de dezembro de 2002. Disponível em http://migre.me/rtbXm Acesso em 21 de out. 2014. 47  BRASIL. Ibid, 2009. 48  ILLES, P. 10 anos do acordo de Livre Trânsito e Residência no Mercosul, 2012. São Paulo: Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante. Disponível em http://www.cdhic.org.br/?p=119 Acesso em 7/11/2014.

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te no Brasil, Bolívia e Paraguai. Além disso, no momento de transformar a residência temporária em permanente, muitos estrangeiros enfrentam dificuldade em comprovar seus meios de subsistência, uma vez que se encontram envolvidos no mercado de trabalho informal. 3 O BRASIL EM TERMOS DOMÉSTICOS O país adotou, em âmbito interno, algumas políticas e decisões que tiveram grande influência no contingente de imigração. O crescimento econômico registrado entre 2003-2008 dotou o país de capacidade para sediar importantes eventos: o Governo brasileiro atraiu para o país os mais importantes megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas e Paraolimpíadas de 2016. A economia também se tornou um atrativo para a onda migratória, seduzida pelas oportunidades de emprego e melhores condições de vida. Além disso, a anistia concedida aos imigrantes em situação irregular no país teve reflexo nos dados sobre imigração, além de permitir que estes imigrantes pudessem reunir seus familiares no país e constar nas estatísticas oficiais.

3.1 Crescimento econômico brasileiro a partir dos anos 2000 No século XXI, o desempenho da economia brasileira voltou a apresentar bons indicadores. Os anos 90 foram marcados pelo baixo desempenho econômico e volatilidade externa. Este cenário econômico desfavoreceu a entrada de trabalhadores internacionais no Brasil (tabelas 03 e 04). A partir dos anos 2000, no entanto, a economia brasileira volta a crescer. A tabela abaixo demonstra a evolução do Produto Interno bruto brasileiro em vinte anos (1994-2013), assim como sua variação percentual.

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PIB anual, entre 1994-2013, em milhões de reais correntes e em termos de acréscimo percentual anual

FONTE: IPEA, 201549.

O cenário econômico deste período pode ser melhor compreendido por ciclos, como os mandatos presidenciais. Entre 1994 a 1997 o país experimentou seu primeiro período de estabilidade macroeconômica e da moeda desde o processo de “estagflação” da década de 80. A estabilidade do Plano Real garantiu maior confiança do capital estrangeiro nas instituições nacionais o que, somado ao bom momento da economia mundial e a abertura promovida pelos governos Collor/FHC, gerou crescimento. A partir de 1998, no entanto, com a crise da moratória na Rússia, aumenta a desconfiança das instituições internacionais nas economias emergentes e recém estabilizadas, como a brasileira. Como resultado, a fuga de capitais em 1998 e os problemas estruturais do Plano Real (baixo investimento estatal, juros elevados, câmbio semi-fixo) acarretaram em forte desvalorização cambial em 1999, o que elevou as dívidas contraídas em dólar e acelerou o processo inflacionário. Esta conjuntura resultou em baixos indicadores de crescimento, com acréscimo do PIB na ordem de 0,25%. O crescimento econômico, no entanto, foi rapidamente retomado, com variação positiva do PIB em 4,31% em 2000. Entre 2000 e 2008, o país apresenta crescimento real em todos os anos, com destaque para 2004 e 2008 (acima de 5%) e 2007 (acima dos 6%). Em 2009, o resultado da contração econômica mundial apresenta reflexos no Brasil, cujo PIB apresentou decréscimo de 0,33% (em valores ajustados). No entanto, o ano seguinte (2010) apresenta 49 

IPEA. Ibid.

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o melhor resultado econômico brasileiro desde 1985, com acréscimo do PIB em 7,5%. Este crescimento acima da média mundial – 4,9% de acordo com o Banco Mundial50 (2015) e bastante elevado se comparado ao norte global51, fez do país uma zona de interesse para o fluxo internacional de investimentos e pessoas. A partir de 2011 o país começa a sentir mais os efeitos da retração econômica internacional, como a queda no nível de investimentos e de crédito. O país passa, então, a apresentar resultados menos destoantes da média mundial. A tabela a seguir compara o comportamento do produto interno bruto brasileiro e a entrada de imigrantes legais no país, assim como a proporção entre imigrantes e a população total brasileira. População estrangeira e população total no Brasil em relação à evolução do PIB anual, entre 1950 e 2000

1 Não houve realização de Recenseamento Demográfico em 1990, o qual foi realizado no ano seguinte (IBGE). 2 Dados disponíveis até o primeiro trimestre de 2013. FONTE: Elaboração própria com base na metodologia de PATARRA (2005, p.28) e nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Censos demográficos e Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, Ministério da Justiça (MJ), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério da Fazenda (MF), Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE-GF), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Ministério das Relações Exteriores (MRE). WORLD BANK: GDP growth annual (%). WORLD BANK. Disponível em http://data.worldbank. org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG Acessado em 17/03/2015. 51  A título de comparação, os Estados Unidos da América cresceram 2,1% em 2010, enquanto a Alemanha, maior economia da zona do Euro, cresceu 4,1% no mesmo período. (BANCO MUNDIAL, 2015) 50 

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As conquistas em termos de estabilidade política e econômica alcançadas nos anos 90 foram catalisadas pela melhora no desempenho geral da economia na distribuição de renda nos anos 2000, o que impactou positivamente na forma como o Brasil é percebido internacionalmente. O crescimento econômico brasileiro provocou sensíveis melhorias em outros indicadores, inclusive em termos de condições sociais. A expansão no número de postos de trabalho com rendimento inferior a 1,5 salários mínimos, a formalização do mercado de trabalho, a política de valorização do salário mínimo e o baixo nível de desemprego, concomitantes à estabilidade econômica e política, geraram melhor distribuição de renda52. De acordo com a Coordenação Geral de Imigração do Ministério do Trabalho e Emprego53, o estado de São Paulo é a unidade federativa que mais recebeu trabalhadores estrangeiros entre 2010 e 2013, seguido pelo Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. Outro importante indicador econômico brasileiro e com grande impacto na consolidação do país no cenário internacional são as trocas comerciais, representadas pela balança comercial (gráfico 01). Em 2012, o Brasil apresentou corrente de comércio exterior de US$465,7 bilhões, composta principalmente por bens de extração mineral e agrícolas, como o petróleo bruto, o açúcar bruto, o café, o minério de ferro e a soja54. A crescente importância destas commodities no mercado internacional contribuiu para a expansão das exportações brasileiras, beneficiando a economia nacional e a importância do país no comércio mundial.

NERI, M.C. A nova classe média: o lado brilhante da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (MTE). Autorização de trabalho a profissionais estrangeiros no Brasil: legislação-base. 2013. Disponível em http://migre.me/rtc4Z Acesso em 14/10/2014. 54  IBGE. Ibid, p. 329. 52  53 

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Comércio exterior brasileiro 2007-2012

FONTE: Brasil em números 2013, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)55.

Este aumento gradual nas exportações brasileiras, somado à melhoria dos indicadores socioeconômicos domésticos, posicionou o país como um novo polo de imigração de trabalhadores, o que resultou, apenas em 2011, no ingresso de cerca de 1,5 milhão de trabalhadores estrangeiros no Brasil.

3.2 A Lei de Anistia de 2009 A Lei 11.961 de 2009 dispõe sobre a residência provisória para estrangeiros em situação irregular no território brasileiro, dando prazo para requisição de anistia até 30 de dezembro do mesmo ano, em sua fase inicial. Sancionada durante o governo Lula, a Lei confere aos cidadãos beneficiados diversos direitos e deveres, como a liberdade de circulação, o acesso ao mercado formal de trabalho, à educação à saúde pública e à justiça brasileira. A Lei também inibiu a cobrança de multas ou taxas aos anistiados em situação irregular que ingressaram no país até 1º de fevereiro de 2009 e permaneciam no país em situação migratória irregular56. A Lei visa proporcionar aos estrangeiros em situação irregular uma vida mais digna, garantindo-lhes o pleno acesso aos direitos fundamentais. O procedimento ordinário determinado pela Lei consiste na concessão imediata de protocolo que garante a regularidade da estada do requerente pela Polícia Federal, 55  56 

IBGE. Ibid, p. 224. BRASIL. Ibid, 2009.

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permitindo ainda a transformação da residência provisória concedida pela anistia em permanente, mediante o cumprimento de alguns requisitos. Em discurso no momento de assinatura da Lei, o então Presidente declarou: Ao longo de muitas décadas o Brasil sempre acolheu europeus, asiáticos, árabes, judeus, africanos e, mais recentemente, temos recebido fortes correntes migratórias de nossos irmãos da América do Sul e da América Latina [...] Somos, na verdade, uma nação formada por imigrantes; uma nação que comprova, na prática, como as diferenças culturais podem contribuir para a construção de uma sociedade que busca sempre harmonia e combate com vigor, discriminação e preconceito57.

A Lei, de acordo com o Ministério da Justiça, reforça a posição humanitária do país com relação aos estrangeiros, visando legalizar a situação de mais de 50 mil imigrantes irregulares, especialmente chineses e sul-americanos58. De acordo com dados do Departamento de Estrangeiros do mesmo Ministério, até 2011 mais de 45 mil estrangeiros tiveram sua situação regularizada por meio da anistia migratória no país. Esta regularização promovida pelo Governo Federal gerou impacto nos dados acerca de estrangeiros residentes no país, contribuindo pata o aumento deste número a partir do fim de 2009.

3.3 Eventos esportivos internacionais no Brasil O Brasil foi sede de diversos eventos esportivos internacionais na última década: os Jogos Pan e Parapan-Americanos de 2007, os Jogos Mundiais Militares em 2011, a Copa das Confederações de 2013, o Campeonato Mundial de Atletismo Master em 2013 (em Porto Alegre) e a Copa do Mundo 2014. O país também sediará as Olimpíadas e Paraolimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, tornando-se um dos únicos três países do mundo (junto aos Estados Unidos e a Alemanha) a receber os dois megaeventos esportivos do mundo em um intervalo de tempo tão curto. Este esforço internacional empreendido pelo Governo brasileiro pode ser compreendido como uma estratégia de diplomacia por meio do esporte e da cultura, construindo uma “plataforma internacional para o diálogo e a criação de confiança entre LULA DA SILVA, L.I. Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva durante cerimônia de sanção da lei que anistia estrangeiros em situação irregular no Brasi. Brasília: Itamaraty, 2009. Disponível em http://migre.me/rtc3i Acesso em 02/04/2015. 58  BRASIL. Ibid, 2009. 57 

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nações”59 (). Além de demonstrar o fortalecimento da emergente economia brasileira no cenário mundial, a busca do país pela participação mais assídua nestes eventos é, na perspectiva de Soares e Castro60, uma etapa da estratégia brasileira de longo prazo para enaltecer seu soft-power61, seu prestígio e visibilidade em termos globais. Copa do Mundo é o segundo maior evento esportivo do mundo, superada apenas pelos Jogos Olímpicos. A estratégia do governo brasileiro, ao prometer garantir “estabilidade financeira, crescimento econômico, inclusão social e o pleno exercício da democracia”62, foi fundamental na expansão da influência internacional do país, gerando subsídios para que o Brasil fosse escolhido para sediar os dois megaeventos. A importância desta diplomacia por meio do esporte não é uma realidade apenas no Brasil, mas entre outros países emergentes, como a China, a África do Sul e a Rússia, que também sediaram ou sediarão grandes eventos. O atingimento de objetivos específicos da política externa é uma das principais motivações no caso brasileiro. Logo, o país reconheceu e adotou a diplomacia cultural do esporte como forma de expandir seu soft-power. Como resultado da maior projeção no exterior e de seu crescimento econômico, o país vem concentrando a atenção de órgãos internacionais, da mídia internacional63, organizações não governamentais de direitos humanos, investidores, e consequentemente, de diversas populações migrantes. Como consequência desta maior exposição internacional, o Brasil passou a ser mais bem conhecido, assim como as oportunidades que o país oferece. O crescimento econômico, a maior exposição e a estabilidade política brasileira popularizaram o país, atraindo imigrantes e refugiados em busca de um porto seguro. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A imigração internacional tem especial importância para o desenvolvimento e composição demográfica do Brasil64. Desde o período colonial até a atualidade, os fluHINDLEY, 2014. SOARES; CASTRO. 2013, p. 29. 61  De acordo com Joseph Nye (2006), o soft-power de um país se dá de três formas: pela cultura (tornando-o atrativo aos demais), por valores políticos (quando vivenciados tanto externamente quanto a nível doméstico) ou pela política externa (quando os países são percebidos como legítimos e com autoridade moral) [tradução nossa]. 62  AMORIM, C. Ibid. 63  O jornal inglês The Huffington Post publicou, em 14 de julho de 2014, um editorial em que apontava a Copa do Mundo no Brasil como um instrumento de soft-power, um toque gentil brasileiro. O The Guardian nomeou a Copa do Mundo brasileira como “um teatro político de ordem maior”. O espanhol El País, em artigo de Carlos Pagni em 1 de julho de 2014, afirma que na “Copa do Mundo de 2014 o poder também joga sua partida”. 64  OIM. Perfil migratório do Brasil. 2009. Disponível em http://migre.me/rtcfM Acesso em 19/10/2014, 59  60 

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xos migratórios ocorreram de distintas formas e sob diferentes políticas de Estado e iniciativas particulares, o que resultou na contribuição de diversos países de origem na formação da população brasileira. O ano de 2010 é um ponto de inflexão nos fluxos migratórios com destino ao Brasil. Uma série de variáveis é responsável pelo aumento no ingresso de estrangeiros e podem ser divididas entre aspectos externos e internos. Em termos externos, a adoção do modelo de autonomia pela diversificação, durante o governo Lula, expandiu os tratados de cooperação entre países do sul, a presença brasileira em Missões de Paz das Nações Unidas (em especial na MINUSTAH), privilegiou a presença do país em foros multilaterais e interregionais, além da busca pelo fortalecimento do Mercosul. Neste último aspecto, a intenção de aprofundar a integração do ponto de vista sociocultural foi bem-sucedida, uma vez que o Acordo assinado em 2009 por dez países da região facilitou o processo de legalização do imigrante, fortalecendo a livre circulação de pessoas no subcontinente. Internamente, o crescimento econômico brasileiro entre 2000 e 2008 foi condição fundamental para a elevação dos postos de trabalho formais no país, incentivando a vinda de trabalhadores estrangeiros. A regularização proporcionada pela Lei 11.961 de 2009 também contribuiu para o aumento no número de estrangeiros de forma imediata, além de posicionar o país como uma nação receptiva à imigração. Os eventos esportivos internacionais foram outra plataforma de expansão do prestígio internacional do Brasil, colocando-o sob os holofotes da mídia internacional. Algumas considerações devem ser feitas a respeito destas opções políticas e da conjuntura que beneficiou o Brasil para o crescimento das imigrações. O crescimento econômico, importante fator de atratividade de trabalhadores, apresenta tendência decrescente a partir de 2013, o que pode influenciar a entrada de estrangeiros a partir de 2014. No entanto, este também foi o ano de um importante evento esportivo no país, posicionando o país no centro das atenções internacionais. Esses fatores combinados resultarão em dados ainda não consolidados a respeito do ingresso de estrangeiros no Brasil em 2014, o que pode trazer interessantes possibilidades de análise, como a relação do turismo internacional com a migração, bem como se o esfriamento da economia terá um impacto na migração para o Brasil de 2014 em diante. Ainda sobre os dados disponíveis, é fundamental ressaltar a dificuldade em relacionar as diversas plataformas (IPEA, PNADs e Censos, RAIS-MTE, Itamaraty, Polícia Federal, Ministério da Justiça) e a busca por estatísticas acerca das migrações internacionais. Embora todas estas bases cumpram com seus objetivos específicos, não há plena harmonização entre suas metodologias, sua periodicidade, a continuidade do sistema p. 17.

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de coleta de dados e seus conceitos acerca de quem é o estrangeiro ou o imigrante internacional. Isto faz com que o estudo sobre as migrações no Brasil seja resultado de associações e cruzamentos entre os dados disponíveis de diversas fontes. Com relação à situação jurídica daqueles que optam em migrar para o Brasil, é clara a defasagem do principal instrumental de regulamentação da situação do estrangeiro no país, o Estatuto do Estrangeiro de 1980. As soluções encontradas pelo Poder Executivo para lidar com a complexidade atual dos processos de imigração (resoluções normativas no CNIg, portarias dos diversos Ministérios, acordos bilaterais e regionais que criam exceções aos nacionais de certos países), enquanto um novo Estatuto não é aprovado, dispersam a legislação sobre estrangeiros, dificultando o acesso do imigrante a seus direitos e obrigações perante o Estado brasileiro. Esta regulação fragmentada do regime de acolhida, dependendo da origem e das características da migração, desafia o princípio fundamental da igualdade. Em um momento de crescente globalização dos fenômenos sociais e tentativas de aprofundar iniciativas de integração regional, o relativo isolamento do Brasil em termos migratórios vai na contramão dos esforços de maior inserção global do país. O fenômeno da pequena representatividade dos imigrantes na demografia brasileira pode ser compreendido por uma perspectiva dual: as restrições do Estatuto do Estrangeiro funcionam como um desincentivo à imigração, enquanto o baixo número de imigrantes talvez não seja ainda capaz de sensibilizar a opinião pública e pressionar o Parlamento por mudanças. Ainda nesta temática, a legislação brasileira também não dialoga com acordos internacionais sobre migração, como a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos dos Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias, em vigor desde 2003, mas não ratificado pelo Brasil. Atualmente, as três principais alternativas ao Estatuto do Estrangeiro são o Projeto de Lei 5.655 de 2009, o Projeto de Lei do nº 288 de 2013 de autoria do Senador Aloysio Ferreira e o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos de Todos os Migrantes de 2014. Todos os projetos se adequam melhor à realidade da globalização e à inserção brasileira no cenário mundial do que a Lei vigente hoje. Um estudo detalhado, comparando os 3 projetos em tramitação ponto a ponto está em execução pelos autores. Finalmente, cabe ressaltar que este trabalho serve como uma contribuição, na perspectiva multidisciplinar das relações internacionais, à análise das imigrações internacionais para o Brasil. Há espaço para uma série de outros estudos: são interessantes os aspectos antropológicos destas migrações (identidades culturais, étnicas, religiosas), dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, razões da emigração na origem, assim como

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a abordagem de gênero ou os processos econômicos e sociais que envolvem a circulação humana por diferentes territórios. Independentemente das possíveis (e desejáveis) alterações do marco legal migratório, ou dos motivos que trazem atualmente os imigrantes para o Brasil, essas pessoas, com a sua diferente bagagem cultural e os seus sonhos, nos ajudam a refletir sobre o país que queremos construir daqui pra frente. Um Brasil formado por diferentes matrizes culturais e que hoje se encontra perante o desafio de (re)aprender a compartilhar suas riquezas, bem como demonstrar se a fama de cordial que caracteriza o seu povo se verifica na prática. REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO (ABC), Ministério das Relações Exteriores. Coordenação Geral de Cooperação técnica entre países em desenvolvimento. Disponível em http://migre. me/rtbHj Acesso em 24/10/2014. ______. Cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional 2005-2009. 2010. Disponível em http://migre.me/rtbKi Acesso em 24/10/2014. ALMEIDA, P. R. O BRIC e a substituição de hegemonias: um exercício analítico (perspectiva histórico-diplomática sobre a emergência de um novo cenário global. In BAUMAN, R. (org.). O Brasil e os demais BRICs – Comércio e Política. Brasília: CEPAL, 2010. Disponível em http://migre.me/ rtbKZ Acesso em 25/03/2015. AMORIM, C. A diplomacia miltilateral do Brasil: um tributo a Rui Barbosa.Brasília: FUNAG. Disponível em http://migre.me/rtbLr Acesso em 24/03/2015. ÁVILA, Carlos F. Domínguez. O Brasil diante da dinâmica migratória intra-regional vigente na América Latina e Caribe: tendências, perspectivas e oportunidades em uma nova era. Brasília: Revista Brasileira de Política Internacional. V.50, nº. 2, 2007. Disponível em http://migre.me/rtbLP Acesso em 19/09/2014. BASSANEZI, Maria Silvia Beozo. Migrações internacionais no Brasil: um panorama histórico. In: PATARRA, Neide Lopes (org.). Emigração e Imigração Internacionais no Brasil Contemporâneo. Campinas: Fundo de População das Nações Unidas, 1996. BOTEGA, T;PALERMO, G.; TONHATI, T.; LOPES, J. Autorizações concedidas para trabalhos. In A inserção dos imigrantes no mercado de trabalho Brasileiro. Brasília: cadernos OBMigra. V.1, n.2, 2015. Disponível em http://migre.me/rtbNl Acesso em 19/05/2015. BRADY, A. Gentle touch: the World Cup as a soft power instrument. Londres: The Huffington Post, 14/07/2014. Disponível em http://migre.me/rtbNW Acesso em 18/05/2015. BRASIL. BRICS criam novo banco de desenvolvimento. Notícias: 15/07/214 Brasília: Ministério da Fazenda, 2014. Disponível em http://migre.me/rtbOQ Acesso em 24/11/2014. ______. Decreto n. 6.975 de 7 de outubro de 2009: Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado Comum do Sul – Mercosul, Bolívia e Chile. Disponível em http://migre.

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IMIGRAÇÃO, SAÚDE E DIREITOS HUMANOS Júlia de Freitas Girardi1 Lucienne Martins Borges2 Resumo: O aumento dos fluxos migratórios, tanto no cenário mundial como no brasileiro, coloca em debate o papel do Estado frente a questões jurídicas, econômicas, sociais e de saúde. Dessa forma, o presente capítulo objetivou discutir o direito à saúde de imigrantes e refugiados sob a perspectiva de direitos humanos e analisar as condições de acesso ao Sistema Único de Saúde brasileiro por essa população. A metodologia adotada segue a linha qualitativa. Para tanto, utilizaram-se como subsídio para esta discussão a análise documental da Constituição Brasileira de 1988 que postula o direito à saúde, as diretrizes básicas do SUS (universalidade, integralidade e equidade) e a revisão sistemática da produção científica nacional acerca das especificidades de imigrantes e refugiados em função do acesso e qualidade dos serviços de saúde. Apesar de não existirem políticas públicas para essa população no que se refere ao SUS, essa temática tem sido cada vez mais discutida no cenário nacional. Nesse sentido, já estão sendo consideradas diretrizes e propostas como: a formação de profissionais culturalmente sensíveis, o uso de intérpretes no sistema de saúde e o incentivo a pesquisas sobre as necessidades dessa população. Palavras chave: Imigração; Refúgio; Saúde; Direitos Humanos. Abstract: The increase in migratory flows, both on the world stage as in Brazil, puts under discussion the role of the State to face legal, economic, social and health issues. Therefore, this chapter aims to discuss the right to health of immigrants and refugees from the perspective of human rights and to analyze the conditions of access to the Brazilian Health System (SUS) of this population. The methodology adopted follows a qualitative model. To this end, it is used to as a subsidy for this discussion a document analysis of the Brazilian Constitution of 1988 that postulates the right to health, the basic guidelines of the SUS (universality, integrality and equity) and a review of the national scientific production on the specificities of immigrants and refugees on the basis of access and quality of the health services. Although there are no public policies for this population in relation to the SUS, this theme has been increasingly discussed in the national scene. In this sense, there are already being developed guidelines and proposals as: the formation of culturally sensitive professionals, the use of interpreters in the health system and encouragement of the research on the needs of this population. Keywords: Immigration; Refuge; Asylum; Health; Human Rights.

1  Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas (NEMPsiC). Email: [email protected] 2  Professora da Graduação e Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas (NEMPsiC). Email: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO É cada vez mais comum deparar-se com notícias sobre o aumento e as consequências das migrações no mundo. A Organização Internacional de Migração ressalta o crescimento dos movimentos migratórios e afirma que, em 2010, existiam 214 milhões de migrantes no mundo3. Nas duas últimas décadas, tem-se observado que o Brasil passa a ocupar lugar de destaque no contexto dos movimentos migratórios45. De acordo com o Censo Demográfico realizado em 2010, havia 92.529 imigrantes que 5 anos antes não residiam no país. Já em 2000, esse dado era de 55.718 imigrantes, ou seja, em 10 anos houve um aumento de 66% no número de imigrantes no país6. Estima-se que o número de estrangeiros que vivem no país varie entre 600 mil e um milhão, incluindo aqueles indocumentados7. Em relação especificamente aos refugiados, segundo relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR –, seu número no país, em 2013, é de 5.208 pessoas de 80 nacionalidades diferentes. Dentro desse contexto, ressalta-se o aumento de 800% do número de pedidos de refúgio no país, que passou de 566 em 2010 para 5.256 em 20138. Outro fluxo importante é a vinda de haitianos após o terremoto ocorrido no Haiti, em 20109. O processo de integração do estrangeiro – tanto o imigrante quanto o refugiado – no país que o acolhe é extremamente complexo e envolve diversas esferas de saber e de reconhecimento público – tanto em nível de sociedade quanto de regulamentações legais1011, inclusive com destaque para a questão da saúde12131415. Assim, avaliar a imigra3  OIM – Organização Internacional para as Migrações. Glossário sobre Migração. Direito Internacional da Migração, n.22, 2009. 4  PATARRA, N. L.; FERNANDES, D. Brasil: país de imigração? Revista Internacional em Língua Portuguesa, III Série, n.24, p.65-89, 2011. 5  REIS, R. R. A política do Brasil para as Migrações Internacionais. Contexto Internacional, v.33, n.1, 2011. 6  IBGE (2010). Migração. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. 7  REIS, R. R. Ibid. 8  ACNUR BRASIL. Refúgio no Brasil: uma análise estatística (2010-2013). ACNUR Brasil, 2014. 9  PATARRA, N. L.; FERNANDES, D. Ibid. 10  STURM, G. Culture, Société, Subjetivité: les innovations de l’Ethnopsychanalyse française. In: GUERRAOUI, Z.; PIRLOT, G. Comprendre et Traiter les Situations Interculturelles: approches psychodynamiques et psychanalytiques. Groupe de Boeck: Bruxelas, 2011. 11  RAMOS, N. Saúde, Migração e Direitos Humanos. Mudança – Psicologia da Saúde, v.17, n.1, p.1-11, 2009. 12  PADILLA, B. Saúde dos imigrantes: multidimensionalidade, desigualdades e acessibilidade em Portugal. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, n.40, p.49-68, 2013. 13  MARTINS-BORGES, L.; POCREAU, J.-B. Serviço de atendimento psicológico especializado aos imigrantes e refugiados: interface entre o social, a saúde e a clínica. Estudos de Psicologia, v.29, n.4, p.577-585, 2012. 14  INGLEBY, D. European Research on Migration and Health. Internacional Organization for Migration (OIM), 2009. 15  RAMOS, N. Ibid.

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ção requer, necessariamente, valorizar a saúde, de forma a prevenir, reconhecer e tratar adequadamente fatores relacionados à saúde dos imigrantes, observar os desafios decorrentes das especificidades dessa população, como diferenças culturais e linguísticas, formas de compreensão sobre o normal e o patológico e o processo de busca por ajuda e tratamento16. É com base nessa reflexão que se pode analisar o papel da Saúde Coletiva que abrange desde políticas de promoção e prevenção à saúde e acesso ao sistema de saúde até questões como acessibilidade cultural, linguística e social17. Outra forma de ampliar esta discussão é programar adaptações do modelo universal, e tradicional, de intervenção em saúde, de forma a abarcar as necessidades e especificidades dessas novas demandas18. É importante salientar que a migração é considerada como um direito humano, conforme postulado pelo 13o artigo da Declaração Universal de Direitos Humanos de 194819. O que se observa no contexto brasileiro quanto à questão migratória é que a legislação em vigor, ou seja, o Estatuto do Estrangeiro data da década de 1980 – momento em que o país vivia uma ditadura militar. Devido a isso, trata a imigração como assunto de segurança pública e, portanto, regulada pela Polícia Federal, postura que está em desacordo com as políticas internacionais e com a própria Constituição Brasileira. Ao contrário do Estatuto do Estrangeiro, a atual Constituição Brasileira trata todas as pessoas que estão em território nacional, incluindo os imigrantes e refugiados, como sujeitos de direito20. Aqui é importante ressaltar que o Brasil está em um momento de repensar e reconstruir a política de imigração, sendo que, desde 2011, já está em trâmite uma nova lei de imigração2122, que foi aprovada pela Comissão de Relações Exteriores (CRE) em 21 de maio de 2015 e, no momento, aguarda votação na Câmara23. Especificamente no que se refere ao campo da saúde, de acordo com a legislação corrente, todos os indivíduos no Brasil têm direito de acesso ao sistema de saúde pública e esta passa a ser considerada como um direito básico24. No entanto, na prática, existem KIRMAYER, L. J. et al. Common mental health problems in immigrants and refugees: general approach in primary care. Canadian Medical Association Journal, v.183, n.12, p.959-967, 2011. 17  PADILLA, B. Ibid. 18  MARTINS-BORGES, L.; POCREAU, J.-B. Ibid. 19  RAMOS, N. Ibid. 20  WALDMAN, T. C. Movimentos migratórios sob a perspectiva do direito à saúde: imigrantes bolivianos em São Paulo. Revista de Direito Sanitário, v.12, n.1, p.90-114, 2011. 21  PATARRA, N. L.; FERNANDES, D. Ibid. 22  REIS, R. R. Ibid. 23  SENADO. CRE aprova nova Lei da Migração para substituir Estatuto do Estrangeiro. 2015. Disponível em:. Acesso em: 19 ago. 2015. 24  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas Constitucionais nos 1/1992 a 68/2011, pelo Decreto legislativo no 186/2008 e pelas emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/1994. Brasília: Câmara dos Deputados, edições Câmara, 2012. 16 

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diversas barreiras que podem afetar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde, principalmente considerando-se a especificidade dessa população25. Assim, refletir sobre a saúde do imigrante atende tanto a política nacional de saúde como entra em consonância com o posicionamento brasileiro frente ao Tratado da Organização das Nações Unidas de 2007 - ao qual o país aderiu - que postula resoluções de proteção, acolhimento e assistência aos imigrantes e refugiados em direitos humanos, entre os quais a saúde26. O presente capítulo possui como objetivo trazer uma compreensão da relação entre os direitos humanos e a saúde dos imigrantes e refugiados, ao dialogar com a questão do acesso e da acessibilidade dessa população aos serviços de saúde, no Brasil, bem como delinear os limites e as perspectivas dessa problemática. Devido aos objetivos propostos, adota-se uma exposição teórica e qualitativa da temática, apoiada em análise documental de leis e políticas públicas relativas ao SUS, e de uma revisão sistemática da literatura brasileira acerca da relação entre serviços de saúde e imigrantes. Em relação ao formato deste capítulo, apresenta-se inicialmente o que a literatura internacional aborda sobre a relação da imigração com os serviços de saúde. Em seguida, discute-se esta questão no cenário brasileiro, utilizando-se como subsídio a Constituição de 1988, as diretrizes do Sistema Único de Saúde – SUS – e as pesquisas realizadas com imigrantes no contexto da saúde pública do país. Por fim, nas considerações finais, articula-se o debate entre essa questão no Brasil com as propostas e possibilidades existentes. 2 IMIGRAÇÃO E SERVIÇOS DE SAÚDE Uma das dimensões do acesso a serviços de saúde refere-se ao direito à saúde, que varia de acordo com as leis de cada país. No entanto, ressalta-se que ter direito de acesso não garante acessibilidade, isto é, na prática pode existir uma série de barreiras que prejudicam o acesso, o uso e, principalmente, a qualidade dos serviços para os imigrantes272829. No que se refere à busca e à utilização dos serviços de saúde por essa população, diversos autores do contexto científico internacional apontam para a baixa utilização do

MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Acesso dos imigrantes bolivianos aos serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, v.22, n.2, p.351-364, 2013. 26  CONECTAS. Direitos Humanos: o Brasil na ONU. CONECTAS Direitos Humanos: 2007. 27  PADILLA, B. Ibid. 28  TOPA, J. B.; NOGUEIRA, C.; NEVES, A. S. A. Inclusão/exclusão das mulheres imigrantes nos cuidados de saúde em Portugal: reflexão à luz do feminismo crítico. PSICO, v.4, n.3, p.366-373, 2010. 29  INGLEBY, D. Ibid 25 

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sistema de saúde, principalmente na atenção básica3031. Isso é uma questão paradoxal uma vez que aborda uma população em geral vulnerável, principalmente no caso de refugiados ou imigrantes indocumentados, existindo assim uma discrepância entre a necessidade e o uso desses serviços, o que, por outro lado, ressalta a importância do debate acerca da temática32. A baixa procura por serviços de saúde pode ser considerada em dois níveis: primeiramente, no que concerne aos imigrantes e refugiados sob o aspecto de barreiras em relação a dificuldades financeiras, de transporte, isolamento, desconfiança e desconhecimento do sistema de saúde, desconhecimento da língua e dificuldade de comunicação, diferentes concepções sobre saúde e doença333435. Já o segundo nível refere-se aos serviços de saúde e nele pode-se observar questões como a falta de treinamento e sobrecarga dos funcionários, pouca disponibilidade de serviços36, despreparo para lidar com necessidades e diferenças culturais373839. Todos esses fatores culminam tanto na escassa busca por esses serviços como também na baixa adesão e desistência dos tratamentos4041. Coutinho e Oliveira42 chegam a afirmar que muitos imigrantes só utilizam o sistema de saúde em casos emergenciais, quando o quadro inicial já se agravou devido à falta de tratamento. Nota-se, em países da Europa e no Canadá, um incentivo para avaliar apromoção de saúde e políticas públicas por meio de práticas culturalmente sensíveis4344. Também se observa na Europa o desenvolvimento de diferentes estratégias para melhorar a acessibilidade e a qualidade na prestação de serviços de saúde para imigrantes, baseadas em conceitos como competência cultural e abertura intercultural45. Outros potencialiGABRIEL, P. S. et al. Refugees and Health Care – the Need for Data: understanding the health of government-assisted refugees in Canada through a prospective longitudinal cohort. Canadian Journal of Public Health, 102(4): 269-272, 2011. 31  COUTINHO, M. P. L.; OLIVEIRA, M. X. Tendências comportamentais frente à saúde de imigrantes brasileiros em Portugal. Psicologia & Sociedade, v.22, n.3, p.548-557, 2010. 32  GABRIEL, P. S. et al. Ibid. 33  PADILLA, B. Ibid. 34  GABRIEL, P. S. et al. Ibid. 35  COUTINHO, M. P. L.; OLIVEIRA, M. X. Ibid. 36  GABRIEL, P. S. et al. Ibid. 37  PADILLA, B. Ibid. 38  SANDHU, S. et al. Experiences with treating immigrants: a qualitative study in mental heatlh services across 16 European countries. Social Psychiatry Psychiatric Epidemiology, v.48, 2013. 39  PUSSETTI, C. Identidades em Crise: imigrantes, emoções e saúde mental em Portugal. Saúde & Sociedade, v.19, n.1, p.94-113, 2010. 40  PADILLA, B. Ibid. 41  COUTINHO, M. P. L.; OLIVEIRA, M. X. Ibid. 42  COUTINHO, M. P. L.; OLIVEIRA, M. X. Op. Cit. 43  MARTINS-BORGES, L.; POCREAU, J.-B. Ibid. 44  KIRMAYER, L. J. et al. Ibid. 45  PENKA, S. et al. The concept of “intercultural opening”: the development of an assessment tool for 30 

136 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas

zadores para o trabalho de profissionais de saúde com essa população envolvem tanto a formação profissional culturalmente sensível como a presença de mediadores culturais ou intérpretes nos serviços de saúde4647. Além dessa dimensão, tem-se observado em países da União Europeia, principalmente na França, um novo posicionamento, que aponta os limites de calcular somente o acesso e a acessibilidade dos serviços de saúde. Assim, o que se propõe é a organização e o desenvolvimento de serviços e dispositivos clínicos adaptados e especializados às necessidades dos imigrantes e refugiados, principalmente na área de saúde mental48. Essas modificações e o desenvolvimento de estratégias que efetivem o trabalho desses serviços podem ser observados de forma mais consistente em relação a atividades de saúde mental495051. Neles já se nota a atenção maior ao contexto dessas populações e aos aspectos práticos da intervenção – comunicação, especificidade cultural dos sintomas e comportamentos, diagnóstico diferencial, trabalho em conjunto com mediadores culturais52. Também é na saúde mental que já se evidencia o surgimento de serviços específicos para imigrantes e refugiados, como o Service d’Aide Psychologique Spécialisée aux Immigrants et Réfugiés – SAPSIR®53 – e a Transcultural Child Psychiatry Clinic (McGill, s.a.), ambos no Canadá e, na França, o Centre George Devereux (s.a). 3 CONTEXTO BRASILEIRO A Constituição Federal de 1988, que apresenta o Sistema Único de Saúde brasileiro, proclama que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”54. De forma a garantir o direito à saúde, o SUS tem como diretrizes básicas a universalidade, a integralidade e a equidade55. No Brasil, por lei, todas as pessoas têm direito à saúde e acesso ao sistema público de saúde, o que inclui os imigrantes e refugiados, mesmo que em situação irregular the appraisal of its current implementation in the mental health care system. European Psychiatry, v.27, suplemento 2, 2012. 46  SANDHU, S. et al. Ibid. 47  PUSSETTI, C. Ibid. 48  STURM, G. Ibid. 49  SANDHU, S. et al. Ibid. 50  KIRMAYER, L. J. et al. Ibid. 51  STURM, G. Ibid. 52  KIRMAYER, L. J. et al. Ibid. 53  MARTINS-BORGES, L.; POCREAU, J.-B. Ibid. 54  BRASIL. Ibid, 2012. 55  BRASIL. HumanizaSUS: política nacional de humanização: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

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perante a lei. No entanto, a situação desses últimos não está clara, pois, apesar do direito ao acesso, para realizá-lo é necessário cadastramento feito com base em documento de identidade e comprovante de residência. É importante ressaltar que a garantia de acesso ao sistema de saúde não significa, necessariamente, que isto aconteça na prática de forma efetiva56. Assim, torna-se necessário analisar como a situação, com essa população específica, transcorre na prática, uma vez que a literatura científica aponta diversas barreiras de acesso e utilização de serviços de saúde por essa população. Tendo em vista essa problemática e com o objetivo de verificar e levantar os estudos realizados no Brasil, que envolvem a população de imigrantes e refugiados, bem como a acessibilidade e qualidade dos serviços de saúde pública, realizou-se uma revisão sistemática de literatura nacional. Para tanto, consultou-se a Biblioteca Virtual em Saúde e Psicologia (BVS-PSI), que reúne bancos de dados como: SciELO, PePSIC, Index Psi, LILACS. Utilizaram-se como descritores: “imigração AND saúde”; “imigrantes AND saúde”; “migração humana AND saúde”, “immigration AND health”; “immigrants AND health”; “human migration AND health”. Inicialmente, foram encontradas 983 publicações. Após a leitura desses resumos, permaneceram 17 artigos científicos publicados em periódicos brasileiros que se encaixavam na temática; mas, somente 4 incluíam pesquisas feitas no contexto nacional. Pode-se observar os objetivos e a população desses estudos na Tabela 1, a seguir.

56 

MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Ibid.

138 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas

Autor(es)

Objetivo

Principais achados

Goldberg e Silveira (2013)

Comparar a dimensão do cuidado e dos serviços de saúde utilizados por imigrantes bolivianos em São Paulo e em Buenos Aires.

3* -,)$, $.)  --))-$-. '  saúde, imigrantes indocumentados encontram dificuldades de acessá-los.

Identificar como os imigrantes bolivianos residentes em São Paulo acessam o SUS e o que pensam da qualidade dos serviços prestados.

3)' (. )-  (., 0$-.)-(/( utilizou o SUS. 3,, $,- *,)& '- )'/($76)* &) desconhecimento do português, experiências de discriminação, dificuldades advindas da necessidade de cadastro e do tempo de espera para acessar serviços de especialistas.

Conhecer as desigualdades geradas pelas condições de vida e de acesso aos serviços de saúde entre os imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo.

3$1)($76) -= )-$'$",(. - bolivianos (n=150). 3/- .).&$ *)*/&76) * (  exclusivamente do sistema público de saúde. 3,, $,- !&. )/' (.76) desqualificação dos serviços de saúde para o trabalho com a população.

Identificar barreiras quanto ao acesso ao SUS por parte de mulheres imigrantes bolivianas na cidade de São Paulo.

3)-- (., 0$-.-( %4/.$&$2,' pelo menos uma vez o SUS, principalmente para atendimento pré-natal. 3,, $,- $ficuldades de comunicação com os profissionais (ligadas principalmente à questão da língua), de acesso aos serviços  . (76)4-$+/ !/($)(0' somente no horário de trabalho) e de baixa +/&$ )-. ($' (.)-!&.  sensibilidade e negligência por parte dos profissionais, incluindo posturas discriminatórias).

Martes e Faleiros (2013)

Silveira et al. (2013)

Waldman (2011)

Tabela 1 – Características das pesquisas brasileiras com imigrantes e serviços de saúde pública

Observa-se que ainda são poucos os estudos no Brasil que se concentram nessa temática. Além disso, todas as pesquisas encontradas na revisão de literatura trabalham com imigrantes bolivianos, na cidade de São Paulo, o que não representa a diversidade da população imigrante e torna problemático fazer inferências sobre o alcance dos

1

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achados575859. Retomando as diretrizes do SUS, aponta-se o entrelaçamento existente entre os princípios da universalidade e da equidade, que podem ser considerados como princípios finalísticos, isto é, como o grande objetivo do SUS, que é garantir acesso à saúde a todos de forma igualitária. Para que isto se torne de fato real é necessário superar barreiras econômicas, sociais e culturais. Assumir responsabilidade política e social perante a saúde implica que o Estado desenvolva e implemente políticas públicas que melhorem a qualidade de vida da população em geral, mas também de grupos específicos de modo a assegurar a universalidade e equidade do acesso ao sistema de saúde60. Também, na Constituição de 1988, estão dispostas outras atribuições do SUS, como “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; [...] incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico”61. Quando se avaliam as políticas de saúde para imigrantes e refugiados é necessário discutir a formação de profissionais sensíveis às questões da cultura, imigração e refúgio e também o desenvolvimento de pesquisas sobre os diversos entrelaçamentos dessa temática no SUS. Apesar de ainda não existirem políticas públicas específicas para imigrantes e refugiados, já é possível observar uma crescente discussão da temática no Brasil e o surgimento de propostas. Nesse sentido, pode-se citar a 1a Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio62, que propõe: Assegurar que migrantes e refugiados, independentemente do status migratório […] sejam devidamente atendidos pelo Sistema Único de Saúde através da simplificação da emissão do cartão SUS e da criação de Centros de Referências de Saúde de migrantes nas localidades de maior fluxo migratório, oferecendo tratamento e prevenção a doenças causadas pela experiência da migração e do refúgio, psicológicas e físicas, programa antidrogas, com atendimento em diversos idiomas e direito ao anonimato, com protocolos de atenção aos migrantes, refugiados e vítimas de tráfico humano e com equipe sensibilizada e capacitada para o atendimento humanizado e para especificidades da saúde das pessoas em mobilidade. GOLDBERG, A.; SILVEIRA, C. Social inequality, access conditions to public health care and processes of care in bolivian immigrants in Buenos Aires and São Paulo: a comparative inquiry. Saúde e Sociedade, v.22, n.2, p.283-297, 2013. 58  SILVEIRA, C. et al. Living conditions and access to health services by Bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Cadernos de Saúde Pública, v.29, n.10, p.2017-2027, 2013. 59  WALDMAN, T. C. Ibid. 60  MATTOS, R. A. Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e a humanização das práticas de saúde. Interface, v.13, suplemento I, p.171-180, 2009. 61  BRASIL. Ibid, 2012. 62  COMIGRAR. 1a Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio: Caderno de Propostas. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015, p. 10. 57 

140 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas

Muitas vezes o sistema de saúde é a porta de entrada para que seja possível notar questões referentes ao social e ao psicológico63, o que torna necessário uma articulação com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Na literatura internacional, nota-se que, muitas vezes, os serviços que problematizam as especificidades do trabalho com imigrantes e desenvolvem novas possibilidades estão relacionados ao campo da saúde mental64656667. Também no contexto brasileiro já se observa o surgimento de serviços especializados para populações de imigrantes e refugiados, no âmbito da saúde mental, como é o caso do Serviço de Orientação Intercultural na Universidade Federal de São Paulo68 – USP – e da Clínica Intercultural, na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC69. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS No Brasil, os imigrantes e refugiados têm acesso ao SUS; no entanto, ainda são observadas barreiras de acessibilidade e qualidade dos serviços para essa população7071. Estudos apontam como principais dificuldades em relação ao SUS: problemas de comunicação (principalmente a língua), o horário de funcionamento da atenção básica (concorrente com o horário de trabalho), o tempo de espera, a falta de documentação (que não impede, mas dificulta o acesso), o despreparo dos profissionais de saúde para lidar com diferenças culturais e experiências de discriminação por parte de funcionários e profissionais de saúde727374. Nesse sentido, é necessário o desenvolvimento de pesquisas sobre as necessidades dessa população e sobre as barreiras existentes. É por meio da ampliação de estudos e de discussões sobre esse tema que se pode fundamentar o desenvolvimento de políticas adequadas às reais necessidades dessa população, uma vez que ainda existe necessidade STURM, G. Ibid. SANDHU, S. et al. Ibid. 65  PENKA, S. et al. Ibid. 66  KIRMAYER, L. J. et al. Ibid. 67  MURRAY, K. E.; DAVIDSON, G. R.; SCHWEITHER, R. D. Review of refugee mental health interventions following ressetlement: best practices and recomendations. American Journal of Orthopsychiatry, v.80, n.10, p.576-585, 2010. 68  DANTAS, S. D. Orientação e Psicoterapia Intercultural. In: ______. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2012. 69  NEMPsiC – Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas. Clínica Intercultural. s.a. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. 70  SILVEIRA, C. et al. Ibid. 71  WALDMAN, T. C. Ibid. 72  GOLDBERG, A.; SILVEIRA, C. Ibid. 73  MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Ibid. 74  WALDMAN, T. C. Ibid. 63  64 

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de aprofundamento de estudos e pesquisas de qualidade, de forma a fundamentar o desenvolvimento de políticas, programas e serviços voltados para as necessidades dessa população7576. No entanto, já se observa, principalmente na literatura internacional, o destaque para o papel da formação dos profissionais de saúde e também do uso de práticas que permitam a melhor comunicação entre profissionais e usuários, como o uso de intérpretes e mediadores culturais7778798081. Apesar da complexidade da temática e dos desafios da implementação de políticas públicas em saúde com essa população, o Brasil encontra-se em um momento de repensar as políticas frente aos imigrantes e refugiados, o que torna o debate sobre a função e a condição dos serviços de saúde essencial. O que se buscou neste capítulo foi trazer elementos desencadeadores de forma a subsidiar e ampliar essa discussão. REFERÊNCIAS ACNUR BRASIL. Refúgio no Brasil: uma análise estatística (2010-2013). ACNUR Brasil, 2014. BRASIL. HumanizaSUS: política nacional de humanização: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas Constitucionais nos 1/1992 a 68/2011, pelo Decreto legislativo no 186/2008 e pelas emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/1994. Brasília: Câmara dos Deputados, edições Câmara, 2012. CENTRE GEORGE DEVEREUX. Centre George Devereux. s.a. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2015. COMIGRAR. 1a Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio: Caderno de Propostas. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. CONECTAS. Direitos Humanos: o Brasil na ONU. CONECTAS Direitos Humanos: 2007. COUTINHO, M. P. L.; OLIVEIRA, M. X. Tendências comportamentais frente à saúde de imigrantes brasileiros em Portugal. Psicologia & Sociedade, v.22, n.3, p.548-557, 2010. DANTAS, S. D. Orientação e Psicoterapia Intercultural. In: ______. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2012. FREITAS, C.; MENDES, A. A resiliência da saúde migrante: itinerários terapêuticos plurais e trans75  76  77  78  79  80  81 

GABRIEL, P. S. et al. Ibid. INGLEBY, D. Ibid PADILLA, B. Ibid. SANDHU, S. et al. Ibid. PENKA, S. et al. Ibid. KIRMAYER, L. J. et al. Ibid. PUSSETTI, C. Ibid.

142 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas nacionais. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, n.40, p.69-92, 2013. GABRIEL, P. S. et al. Refugees and Health Care – the Need for Data: understanding the health of government-assisted refugees in Canada through a prospective longitudinal cohort. Canadian Journal of Public Health, 102(4): 269-272, 2011. GOLDBERG, A.; SILVEIRA, C. Social inequality, access conditions to public health care and processes of care in bolivian immigrants in Buenos Aires and São Paulo: a comparative inquiry. Saúde e Sociedade, v.22, n.2, p.283-297, 2013. IBGE (2010). Migração. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. INGLEBY, D. European Research on Migration and Health. Internacional Organization for Migration (OIM), 2009. KIRMAYER, L. J. et al. Common mental health problems in immigrants and refugees: general approach in primary care. Canadian Medical Association Journal, v.183, n.12, p.959-967, 2011. MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Acesso dos imigrantes bolivianos aos serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, v.22, n.2, p.351-364, 2013. MARTINS-BORGES, L.; POCREAU, J.-B. Serviço de atendimento psicológico especializado aos imigrantes e refugiados: interface entre o social, a saúde e a clínica. Estudos de Psicologia, v.29, n.4, p.577-585, 2012. MATTOS, R. A. Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e a humanização das práticas de saúde. Interface, v.13, suplemento I, p.171-180, 2009. MCGILL. The Transcultural Child Psychiatry Consultation and Treatment Clinic of the Montreal Children’s Hospital. s.a. Disponível em: https://www.mcgill.ca/tcpsych/publications/report/final/ mch. Acesso em: 19 ago. 2015. MURRAY, K. E.; DAVIDSON, G. R.; SCHWEITHER, R. D. Review of refugee mental health interventions following ressetlement: best practices and recomendations. American Journal of Orthopsychiatry, v.80, n.10, p.576-585, 2010. NEMPsiC – Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas.Clínica Intercultural. s.a. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. OIM – Organização Internacional para as Migrações. Glossário sobre Migração. Direito Internacional da Migração, n.22, 2009. PADILLA, B. Saúde dos imigrantes: multidimensionalidade, desigualdades e acessibilidade em Portugal. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, n.40, p.49-68, 2013. PATARRA, N. L.; FERNANDES, D. Brasil: país de imigração? Revista Internacional em Língua Portuguesa, III Série, n.24, p.65-89, 2011. PENKA, S. et al. The concept of “intercultural opening”: the development of an assessment tool for the appraisal of its current implementation in the mental health care system. European Psychiatry, v.27, suplemento 2, 2012.

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144 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas

Simone Andrea Schwinn; Letícia Regina Konrad| 145

MIGRAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: O BRASIL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MIGRANTES – ANÁLISE A PARTIR DO PROJETO DE LEI 288/2013 Simone Andrea Schwinn1 Letícia Regina Konrad2 “Que coisa estranha, que coisa esquisita deve ser: largar o país, a língua, abandonar a família em direção a algo completamente novo e, sobretudo, incerto” Tatiana Salem Levy A chave de casa. Resumo: As migrações de seres humanos entre diferentes países se perdem no tempo. Este fenômeno apresenta muitas implicações, tanto para os migrantes que deixam seus países, de forma voluntária ou forçada, perdendo suas referências e sofrem para se adaptar a uma nova cultura, reduzidas a “displaced persons” nas palavras de Hannah Arendt, quanto para os países que os recebem, que, ou não tem uma política definida para a inserção desta população ou tem políticas insuficientes, que não abarcam a complexidade da situação. Sanchez Rubio (2010) alerta para o fato de que, em várias partes do mundo, é possível afirmar que existe um certo desconforto trazido pelas migrações tendo em vista que milhares de pessoas se deslocam diariamente, em busca de melhores condições de vida, seja por motivos de perseguição em seu país, seja por almejarem uma vida digna para si e suas famílias, em uma terra desconhecida. No Brasil, a exemplo de outros países, esse fato se repete. Destino de inúmeros migrantes internacionais, não mais unicamente europeus, mas de países vitimados por desastres sociais e naturais, o país ainda convive com uma legislação migratória herdada do período da ditadura militar. Diante dessa realidade, a sociedade civil se mobilizou e, coube a um grupo de especialistas elaborar um novo documento, que atendesse as exigências do atual momento de país, com respeito à dignidade e aos direitos humanos dos migrantes. Por outro lado, tramita no Congresso Nacional o Projeto 288/2013, elaborado por um parlamentar, ou seja, sem a participação da sociedade civil. Desta forma, cabe a indagação sobre a efetividade de uma lei que não contou com a participação da sociedade civil, 1  Doutoranda em Direito pelo PPGD da Universidade de Santa Cruz do Sul-UNISC, Área de concentração Direitos Sociais e Políticas Públicas, linha de pesquisa Diversidade e Políticas Públicas, com Bolsa PROSUP/CAPES. Mestra em Direito pelo mesmo programa na linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, com Bolsa CNPq. Integrante dos grupos de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, coordenado pela Profª Pós Dra. Marli M. M. da Costa e “Direitos Humanos”, coordenado pelo Prof. Pós Dr. Clóvis Gorczevski, todos vinculados ao PPGD da Unisc. Integrante do Grupo de Pesquisa Ciência Penal Contemporânea, coordenado pelo Prof. Dr. Tupinambá Pinto de Azevedo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. Integrante da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da UFRGS. Email: ssimoneandrea@ gmail.com 2  Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, com Bolsa CAPES. Integrante do grupo de Pesquisa Direitos Humanos coordenado pelo Prof. Pós Dr. Clóvis Gorczevski e do grupo de Pesquisa “Comunitarismo, Instituições Comunitárias e Políticas Públicas”, coordenado pelo Prof. Dr. João Pedro Schmidt e pelo Prof. Pós Dr. Inácio Helfer, ambos grupos vinculados ao CNPq. Bacharel em Direito. Especialista em Direito Civil com ênfase em família e sucessões. Advogada. Mediadora Familiar. Atualmente é professora na Univates Centro Universitário. E-mail: [email protected]

146 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas e, diante desse fato, se o projeto da nova lei de migrações, hoje em tramitação, atende às necessidades de proteção aos direitos humanos dos migrantes. Ressalta-se que se trata de um trabalho de revisão bibliográfica, baseado em literatura relevante sobre o tema, além de pesquisa documental. O método a ser utilizado é o hipotético dedutivo, cuja hipótese reside no fato de que as políticas migratórias hoje existentes do Brasil são insuficientes para atender as necessidades dos migrantes que chegam ao país e que, portanto, necessária uma nova legislação, que conte com a efetiva participação da sociedade civil, em especial os próprios migrantes, para que se torne eficaz. Palavras chave: Legislação migratória; Migrações contemporâneas; Políticas Públicas; PL 288/2013. Abstract: The migrations of humans from different countries are lost in time. This phenomenon has many implications, both for the migrants who leave their countries voluntarily or forcibly, losing their references and are struggling to adapt to a new culture, reduced to “displaced persons” in the words of Hannah Arendt, as for countries who receive them, who either do not have a defined policy for the inclusion of this population has insufficient or policies that do not cover the complexity of the situation. Sanchez Rubio (2010) calls attention to the fact that in various parts of the world, it is clear that there is some discomfort brought about by migration given that thousands of people move every day, in search of better living conditions, either reasons for persecution in your country, either by crave a decent life for themselves and their families in an unknown land. In Brazil, as in other countries, this fact is repeated. Destination of many international migrants, not only Europeans, but countries victimized by social and natural disasters, the country still faces an immigration law inherited from the military dictatorship. Given this reality, civil society mobilized and fell to a group of experts drawing up a new document that would meet the requirements of the present situation of the country, with respect for the dignity and human rights of migrants. On the other hand, the National Congress the Project 288/2013, prepared by a parliamentary, ie without the involvement of civil society. Thus, it is the question about the effectiveness of a law that did not count on the participation of civil society, and on this fact, the design of the new law on migration, now in progress, meet the protection needs of human rights migrants. It is emphasized that this is a literature review work, based on relevant literature on the subject, and documentary research. The method to be used is the deductive hypothetical, whose hypothesis lies in the fact that existing migration policies in Brazil are insufficient to meet the needs of migrants arriving in the country and therefore required new legislation, which count on effective participation of civil society, particularly migrants themselves, for it to become effective. Keywords: Immigration laws; Contemporary migrations; Public Policy; PL 288/2013.

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O mundo hoje se encontra diante de uma realidade brutal: milhares de pessoas são diariamente forçadas a deixar suas casas, suas vidas, sua terra, para fugir de perseguições e rumar para uma vida melhor, longe da violência e da pobreza. Mas, alguém poderia lembrar: a migração sempre existiu, o que é fato. A diferença está no volume desses deslocamentos e nas crises humanitárias que os tem provocado. Trata-se de um tema atual, cujo estudo é de grande relevância, uma vez que as migrações internacionais estão hoje na pauta das discussões, devido às novas dinâmicas observadas nos fluxos migratórios: países como o Brasil, que tradicionalmente não era destino de migrantes vindos de países periféricos, hoje recebe um número cada vez maior de pessoas vindas de países como o Haiti, Senegal, Gana, Bolívia e também, vem recebendo um número maior de pedidos de refúgio de pessoas fugindo de conflitos armados em países do Oriente Médio, África e Ásia. A política migratória adotada no Brasil é alicerçada na Lei 6815/1980- Estatuto do Estrangeiro, acervo autoritário herdado da ditadura civil-militar, que dá ao Estado total discricionariedade sobre a condição do estrangeiro. O resultado, é que a política migratória continua intimamente ligada às políticas de segurança, uma vez que o imigrante é visto como uma ameaça à segurança e a paz pública, reforçando a visão securitária sobre as migrações, o que leva à necessidade de desmistificação dessa visão, através da adoção de uma política baseada nos direitos humanos dos migrantes. Desta forma, o presente estudo tratará de abordar os novos fluxos migratórios para o Brasil, para, em um segundo momento, analisar a legislação pertinente ao tema: Estatuto de Estrangeiro, Anteprojeto de Lei de Migrações e Projeto de Lei do Senado 288/2013, em uma perspectiva de evolução do tratamento legislativo sobre o tema. Por fim, tratará da possibilidade de criação de políticas públicas para migrantes no Brasil, na perspectiva do PLS 288/2013. 2. MIGRAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: OS NOVOS FLUXOS MIGRATÓRIOS PARA O BRASIL A migração, ou o deslocar-se de um ponto a outro, exige do migrante muito mais do que o mero desejo de se mover: mesmo quando se trata de algo planejado, significa a adaptação à uma nova cultura, um idioma diferente, uma dinâmica de vida nova. A isto Hannah Arendt chamaria de natalidade, ou seja, a ação que provocou um novo começo, o início de algo novo. Assim, frisa a autora que, a condição humana representa tudo aquilo ao que o homem é condicionado, ou seja, todos os elementos com os

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quais ele entra em contato, se transformam em sua condição de existência3. Pode-se afirmar que, em sua generalidade, as tentativas de compreensão dos motivos que caracterizam a migração se situam, sobretudo, no âmbito econômico4. Falta de trabalho ou falta de perspectiva de trabalho e a busca por aprimoramento das condições materiais; catástrofes naturais, guerras e sua consequente desestabilização do modo habitual de vida; mudanças contextuais no modo de produção, como o início da urbanização e do crescimento das grandes cidades motivados pela gradual transição entre economia rural para comercial e industrial; perseguições políticas, religiosas e disputas por territórios podem ser encontrados como motivos em diversos textos que investigam o tema da migração5. Sendo assim, não raro, os migrantes são tidos como um problema, em especial para a segurança. Contribuiu para isso, a guerra ao terror, iniciada em 2001, após os ataques às torres gêmeas nos Estados Unidos. Esse movimento se espalhou especialmente para a Europa que passou a endurecer suas políticas migratórias, baseando-as no combate ao terrorismo, no controle e fronteiras e no controle migratório. Baumann6 evidencia que os habitantes de Primeiro Mundo têm suas fronteiras de Estado derrubadas com mais facilidade, de modo que sua migração representa especialmente a ampliação do capital, das finanças e do mercado. Já para os habitantes de Segundo Mundo, as fronteiras entre os Estados não são derrubadas com tamanha facilidade, uma vez que há maior controle de imigração a partir de políticas públicas de tolerância zero. Destaca o autor que enquanto os primeiros viajam à vontade e são recebidos com sorrisos e de braços abertos, os segundos chegam às escondidas, muitas vezes de forma ilegal, percebidos com desconfiança e desaprovação. No Brasil, com a crise econômica mundial, a partir de 2008, intensificou-se o movimento de retorno de brasileiros que viviam no exterior, mas também, a chegada de imigrantes “estrangeiros”, de países sul americanos, como a Colômbia e de países como o Haiti, cuja imigração se intensificou a partir de 2011. Como se tratava de um fluxo inesperado, as autoridades brasileiras em princípio ARENDT, Hannah. A condição humana. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 17. Thomas Piketty (2014), na obra O capital no século XXI, traz informações que podem corroborar esta afirmação: os países que tem o maior contingente de emigrantes (migrantes de saída), são aqueles que tem PIB per capita 2000 Euros, e, em geral, a procura por uma vida melhor, se direciona aos países europeus, com PIB per capita de 27.300 Euros. Para o autor, a desigualdade pode ser útil para o crescimento e para a inovação, contanto que ela seja razoável. O problema é quando a desigualdade se torna extrema, e é verdade que a distribuição do patrimônio, mais do que a do salário ou a da renda, pode frequentemente assumir proporções extremas. 5  ZANFORLIN, Sofia Cavalcanti. Por que se migra? Das motivações para migrar às narrativas sobre migrações. Labor: Revista do Ministério Público do Trabalho. Ano II, n. 5, 2014. Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2014, p. 86-87. 6  BAUMANN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 3  4 

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não souberam como agir e, em uma tentativa de conter a entrada especialmente de haitianos no país, o Ministério da Justiça passou a estabelecer cotas mensais para a entrada desses imigrantes. Dados de 2010 dão conta de que uma em cada seis pessoas no mundo é migrante, contabilizadas as migrações internas e as internacionais, ou seja, são 214 milhões de migrantes internacionais e, pelo menos, 740 milhões de migrantes internos. Frise-se que este número pode ter aumentado significativamente nos últimos dois anos em razão dos conflitos no Oriente Médio e em parte da Europa7. Para Winckler8 esses migrantes são “pessoas deslocadas”, que muitas vezes, devido à sua condição, “não encontram um lugar no mundo onde possam existir dignamente. Não possuem um status político que lhes possibilite ser tratados pelos demais como semelhantes.” Isso demonstra a complexidade de um fenômeno com diversas implicações, seja para aqueles que se deslocam, seja para os países que os recebem. De forma genérica, a Organização Internacional para Migrações-OIM9 caracteriza a migração enquanto o termo utilizado para descrever o movimento de pessoas, com o atravessamento de fronteiras, internacionais ou internas, pelas mais diversas razões, incluindo-se aí as migrações por motivo de coação, seja por ameaça à vida e a subsistência, ou devido a causas naturais ou humanas.10 Desse fenômeno fazem parte diferentes categorias, como a migração assistida, a circular, a clandestina, a migração de retorno, a coletiva ou em massa e a individual, a espontânea e a forçada, a migração regular e irregular, a migração interna e a internacional, a laboral, a secundária e a migração total ou líquida. O que difere todas estas categorias, é a motivação do migrante, que pode tanto ter sido espontânea, com um objetivo claro, como no caso do trabalho, como a forçada, como no caso dos refugiados, vítimas de algum tipo de perseguição em seu Estado11. Para Grimson12 a classificação dos movimentos territoriais tem consequências profundas sobre as políticas públicas e as decisões das agências internacionais, que por isso mesmo devem atender as particu7  IMDH. Instituto Migrações e Direitos Humanos. Migrantes: quem são? Publicado em 22 jan. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2015. 8  WINCKLER, Silvana. A condição jurídica atual dos imigrantes no cenário internacional à luz do pensamento da Hannah Arendt. In: AGUIAR, Odilio Alves (et al). Origens do Totalitarismo 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria de Cultura de Desporto, 2001, p. 121, 9  OIM. Organização Internacional para as Migrações. Direito Internacional da Migração: Glossário sobre Migração. Nº 22. 2009. Disponível em: >. Acesso em: 12 jul. 2015. 10  Sobre migrações internacionais ver ZOLBERG, A. R. A Nation by Design - Immigration Policy in the Fashioning of America. New York: Russell Sage Foundation, 2006. 11  OIM. Organização Internacional para as Migrações. Ibid. 12  GRIMSON, Alejandro. Doce equívocos sobre las migraciones. In: Revista Nueva Sociedad, n. 233, mayo-junio de 2011. Disponível em: . Acesso em 13 jul. 2015, p. 35.

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laridades de contextos sumariamente diversos. É possível então perceber que as migrações internacionais estão hoje na pauta das discussões, devido às novas dinâmicas observadas nos fluxos migratórios: países como o Brasil, que tradicionalmente não era destino de migrantes vindos de países periféricos, hoje recebe um número cada vez maior de pessoas vindas de países como o Haiti, Senegal, Gana, Bolívia e também, vem recebendo um número maior de pedidos de refúgio de pessoas fugindo de conflitos armados em países do Oriente Médio, África e Ásia (BRASIL, 2014).13 Baeninger14 observa que a população brasileira é composta por imigrantes estrangeiros que chegaram ao país em movimentos distintos, que vem desde a chegada dos portugueses ao Brasil em 1500, passando pelo tráfego negreiro, e, a partir do século XIX, culminou com a chegada de milhões de europeus às terras brasileiras. As décadas de 1930 a 1950 são caracterizadas pela vinda de japoneses, gregos e sírio libaneses, além de uma nova onda de espanhóis, sendo que, a partir da década de 1960, a imigração de estrangeiros para o país praticamente cessou, tendo as migrações internas tido um maior influxo. Nos anos 1980, o fluxo migratório se caracterizou pela emigração de brasileiros para países como Estados Unidos, Japão, Paraguai, Itália, Inglaterra, França, Israel, entre outros, contabilizando mais de um milhão de brasileiros fora do país no início da década de 1990. Com o fenômeno da globalização e a criação de blocos econômicos, a década de 1990 passa a ser marcada pela nova onda de migrações para o Brasil, com a entrada de coreanos e o afluxo de latino americanos, especialmente para cidades maiores como São Paulo, na esteira da indústria têxtil, o que, não raro, significa imigrantes em situação irregular15. Reis16, observa que, no contexto brasileiro atual, o saldo de emigrantes ainda é maior que o de imigrantes, sendo que em 2009, especialistas calculavam algo em torno de um milhão de estrangeiros no país, incluídos aí os indocumentados. De 2010 a 2012, o número de estrangeiros em situação regular no Brasil cresceu 60%, chegando 1,54 milhão de pessoas. As estimativas dão conta ainda de um número entre 60 e 300 mil imigrantes em situação irregular, entre latino americanos, chineses e africanos17. Dados do Ministério da Justiça e do IBGE dão conta de que número de imigrantes no Brasil cresceu mais de 80%, entre os anos de 2002 e 2010. O número dos pedidos de refúgio cresceu 800% entre 2010 e 2014: as solicitações saltaram de 500 em 2010, para 5.200 em 2013, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR. 14  BAENINGER, Rosana. O Brasil na rota das migrações internacionais recentes. Jornal da Unicamp. Edição 226, agosto 2003. São Paulo: UNICAMP, 2003. Disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/ unicamp_hoje/ju/agosto2003/ju226pg2b.html. Acesso em 13 jul. 2015. 15  BAENINGER, Rosana. Ibid. 16  REIS, 2011, p. 48. 17  REPÓRTER BRASIL. Migração: o Brasil em movimento. Brasil: Ong Repórter Brasil, 2012. Dispo13 

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Em janeiro de 2010, um terremoto devastou o Haiti, deixando cerca de 230 mil mortos e 300 mil feridos, além de dois milhões de pessoas desabrigadas. O país, “marcado por graves violações de direitos humanos, conflitos políticos, golpes de estado, sucessivas ditaduras, intervenções militares externas, crises econômicas, ondas de violência, fome e repetidas catástrofes naturais”, sofreu mais este duro golpe18. Foi a partir daí que, segundo Pimentel e Cotinguiba19 os haitianos começaram a chegar em massa ao Brasil, o que (re)colocou na pauta do Estado, a questão da imigração. Para os autores, essa discussão não partiu do Estado, mas sim, da sociedade civil, onde se destaca o trabalho das pastorais sociais “que constituem uma rede humanitária para migrantes e refugiados.” A presença dos primeiros imigrantes haitianos no Brasil foi registrada, inicialmente, no estado de Mato Grosso do Sul, na divisa com a Bolívia. Iniciou-se, assim, um fluxo migratório que se intensificou em 2011, em ou-tros locais de entrada, nas fronteiras do Brasil com a Bo-lívia e o Peru, pelas cidades de Brasiléia e Assis, no estado do Acre e no Amazonas, pela cidade de Tabatinga20.

Walzer21, observa que “O principal bem que distribuímos uns aos outros é a afiliação em alguma comunidade humana”, e a escolha por essa afiliação influencia as escolhas distributivas da sociedade, ou seja, determina a quem se deve obediência, para quem se recolhem os impostos e para quem são reservados bens e serviços. No Brasil, com a entrada de milhares de haitianos a partir de 2010 e, mais recentemente, com um maior número de estrangeiros vindos especialmente de países africanos, se proliferam os discursos discriminatórios. Aliado a isso, as práticas governamentais de tratar a questão da imigração como problema, sem uma política migratória definida, acaba por marginalizar ainda mais um numeroso contingente de pessoas com língua e cultura diferentes.22 nível em: < http://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2015/02/10.-caderno_migracao_baixa.pdf>. Acesso em 13 jul. 2015, p. 15. 18  Idem, p. 15. 19  PIMENTEL, Marília; COTINGUIBA, Geraldo Castro. Wout, raketè, fwontyè, anpil mizè: reflexões sobre os limites da alteridade em relação à imigração haitiana para o Brasil. In: Revista Universitas Relações Internacionais. Brasília: Universitas Relações Internacionais, v.12, n.1, p. 73-86, jan./jun. 2014. 20  Idem. 21  WALZER, Michael. Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução: Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 39. 22  Em maio de 2014, o ultradireitista francês Jean- Marie Le Pen declarou que o vírus ebola poderia resolver o problema da explosão populacional mundial e, em consequência, da imigração ilegal para a Europa. No Brasil, não são raras as manifestações de preconceito contra os imigrantes haitianos, senegaleses e ganeses: “vieram tirar nossos empregos”; “trazem doenças”, são declarações comuns. O jornalista gaúcho Políbio Braga, em um vídeo divulgado no youtube declarou que os imigrantes ganeses que vieram para o Brasil

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Essa situação faz com que, os chamados “não filiados”, muito embora participem do intercâmbio livre de bens (são consumidores, trabalhadores, pagam impostos sobre o consumo), estão excluídos da partilha de bens, ou seja, “São excluídos da provisão comunitária de segurança e de bem-estar social”23. Com o Brasil alçado a potência econômica latino americana, é cada vez maior a entrada de imigrantes para o país, fugindo da violência e das precárias condições sociais de seus países. O que encontram ao chegar em terras brasileiras em muitos casos são subempregos, em condições insalubres e jornadas exaustivas de trabalho. O Ministério Público do Trabalho do Paraná identificou nos frigoríficos do estado jornadas de 17 horas de trabalho2425. Em 2012, durante a 3ª Oficina sobre Trabalho e Emprego para solicitantes de Refúgio e Refugiados(as), realizada em Porto Alegre, os grupos de trabalho identificaram as seguintes dificuldades relativamente ao acesso da população refugiada ao mercado de trabalho brasileiro: 1)dificuldade com o idioma português; 2) baixa qualificação profissional; 3) desconhecimento por parte dos empregadores e dos funcionários das entidades de facilitação de mão de obra sobre o tema do refúgio; 4) desconhecimento dos refugiados sobre as regras trabalhistas brasileiras; 5) dispersão territorial dos refugiados em solo brasileiro; 6) falta de acesso dos refugiados a atividades produtivas, como microcrédito e economia solidária; 7) dificuldade de validação de diploma emitido no país de origem26 .

Em 2014, entre os dias 30 de maio e 1º de junho, foi realizado em São Paulo durante a Copa do Mundo de 2014 e por aqui ficaram, são “mão de obra sem qualificação” e “além disso são muçulmanos”; o jornalista segue dizendo que “nós já temos problemas demais para incorporar um novo problema”; “migração de mão de obra que venha a contribuir ou de gente que tenha dinheiro que venha para cá para contribuir com o desenvolvimento do Brasil, muito bem. Bom nível de escolaridade, como bom dinheiro...” E arremata: “esses ganeses e haitianos que estão vindo para o Brasil, são forças humanas que vem para cá jogar as coisas para baixo” Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F42wx5VzwAk. Vídeo publicado em 16 de julho de 2014. 23  WALZER, Michael. Ibid, p.40. 24  GAIRE, Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados. O drama dos muçulmanos nos abatedouros brasileiros. Disponível em:>. Acesso em 13 jul. 2015. 25  Em 2014, no estado do Paraná frigorífico de abate de frangos foi condenado pelo Tribunal Superior do Trabalho a indenizar um funcionário congolês, por este ter sido vítima de insultos: “segundo ele, os muçulmanos do lugar eram tratados como “árabes sujos, molengas e imprestáveis” e eram agredidos pelos chefes, que arremessavam frangos mortos quando a meta diária não era alcançada” (GAIRE, 2014, online). 26  BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego-MTE. Relatório da 3ª Oficina sobre Trabalho e Emprego para Solicitantes de Refúgio e Refugiados(as). Disponível em: . Acesso em 13 jul. 2015.

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a Primeira Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio, cujo objetivo era o de oferecer subsídios para a criação de uma política nacional voltada para migrantes e refugiados. A Conferência contou inicialmente com conferências regionais e internacionais, cujas propostas foram compiladas e discutidas na etapa nacional. Coordenada pelo Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Justiça/Departamento de Estrangeiros-DEEST, em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério das Relações Exteriores, com o apoio da  Organização Internacional para as Migrações-OIM e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNUD, a conferência teve como objetivo reunir migrantes, profissionais envolvidos na temática migratória, estudiosos, servidores públicos, representações diversas que vivenciam a realidade da migração e do refúgio, para uma reflexão coletiva e elaboração de aportes para a construção da Política e do Plano Nacionais de Migrações e Refúgio27. A construção deste documento busca suprir as deficiências enfrentadas pelos imigrantes diante da realidade brasileira, que conta com uma política “a la carte” de legislações, emitidas por diferentes Ministérios e órgãos federais, pouco preocupados com a acolhida desses “estrangeiros”. O fato é que hoje, o país ainda conta com um Estatuto do Estrangeiro, herança da ditadura militar, um projeto construído à várias mãos com a sociedade civil e um projeto que tramita no Congresso Nacional, de autoria de um parlamentar. Tais documentos serão analisados a seguir, buscando compreender o processo de transição pela qual passa a legislação migratória no Brasil. 3. LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA BRASILEIRA: O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO, O PROJETO DE LEI DE MIGRAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL E O PL 288/2013- POSSÍVEIS AVANÇOS O Brasil, a partir da vigência do Estatuto do Estrangeiro, no início da década de 1980, passou a tratar a questão dos imigrantes como um problema de segurança. O Estatuto do Estrangeiro, a Lei 6815/1980, em vigor ainda hoje, remete ao acervo autoritário da ditadura civil militar brasileira e está alicerçado na doutrina de segurança nacional. Os artigos 106 e 107 da referida lei, proíbem a atividade política pelo estrangeiro e o artigo 110 dá ao Ministro da Justiça a prerrogativa de proibir a reunião de estrangeiros. Já o artigo 65, permite a expulsão do estrangeiro que atentar contra segurança nacional ou que o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais (termos vagos que comportam todo tipo de interpretação). O Estatuto, em um primeiro momento, buscou compilar a legislação vigente BRASIL, Ministério da Justiça. Conferência Nacional sobre migrações e refúgio. Disponível em:>. Acesso em 13 jul. 2015. 27 

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sobre o tema migratório: inicialmente extremamente liberal, permitindo a entrada desordenada de estrangeiros em território nacional, para, posteriormente, nas Constituições de 1934 e 1937, trazer critérios muito mais rígidos, como o estabelecimento de cotas para imigrantes, por exemplo. Em 1938, é editada a primeira consolidação sobre as normas de entrada de estrangeiros em território nacional, e, em 1945, é editada nova regulamentação, um Decreto Lei em defesa ao trabalhador nacional, com a previsão de cotas para imigrantes. Já em 1969, novo Decreto Lei define a situação jurídica do estrangeiro, ao lado de normas esparsas sobre o tema28. Gorczevski29 observa que se trata de uma lei gestada no período não democrático brasileiro, trazendo em seu bojo a marca desse período, o que faz com que receba diversas críticas, como por exemplo, a excessiva concentração de poder sobre entrada, saída e permanência de estrangeiros nas mãos do poder executivo. O autor considera que estas disposições são uma questão de soberania do Estado brasileiro, que pode, por interesse nacional, restringir direitos dos estrangeiros em relação a seus nacionais. Essa visão parece não levar em conta o exercício na soberania do Estado no momento da ratificação de Tratados Internacionais que protegem os direitos dos migrantes, deixando em segundo plano os direitos humanos e fundamentais dessa população. Nas palavras de Deisy Ventura30 esse dispositivo legal dá ao Estado total discricionariedade sobre a condição do estrangeiro, com uma visão baseada no dueto segurança/ insegurança. Lembra a autora que as pessoas cosmopolitas, que circulam livremente, são pessoas que se auto protegem, não necessitando da ajuda o Estado. Já os imigrantes, sobretudo os ilegais e refugiados, ou seja, os forçados são extremamente vulneráveis, fazendo com que a proteção estatal seja condição para uma vida digna. Ademais, o Brasil não possui uma política migratória, esta entendida como o conjunto de ações governamentais para regulação da entrada, permanência e saída de estrangeiros do território nacional, além de ações com vistas a regular a manutenção dos laços entre o Estado e seus nacionais, residentes no exterior31 apresentando uma série de leis e dispositivos esparsos, editados isoladamente e que respondem a questões pontuais para regular a condição do estrangeiro no país. Não que se possa falar em política de criminalização32, com detenções e expulsões sumárias, a exemplo da Europa, mas a GORCZEVSKI, Clóvis. O Estatuto do Estrangeiro. Material disponibilizado na disciplina A fundamentalidade dos Direitos de Participação Política, do Programa de Pós Graduação em Direito- Doutorado, no primeiro semestre de 2015. Santa Cruz do Sul: PPGD UNISC, 2015. 29  Idem. 30  VENTURA, Deisy. Qual a política migratória do Brasil? Le Monde Diplomatique Brasil. Edição eletrônica de 12 de agosto de 2014. Disponível em:. Acesso em: 06 jul. 2015. 31  ZOLBERG, A. R. A Nation by Design - Immigration Policy in the Fashioning of America. New York: Russell Sage Foundation, 2006. 32  STUMPF, Juliet. The crimmigration crisis: immigrants, crime and sovereign power. American University Law Review, 2006. Disponível em: . 28 

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visão da sociedade sobre os migrantes tem essa conotação, e o próprio migrante sente-se nessa condição: após a denúncia de trabalho escravo praticado por uma rede internacional de lojas de vestuário, disseminaram-se notícias de crimes de autoria de estrangeiros, mesmo que banais. Algumas inclusive veiculavam a ideia de que os imigrantes latinoamericanos faziam do centro da cidade de São Paulo um lugar inseguro3334. De todo modo, tendo em vista o fluxo migratório acentuado para o Brasil, as discussões sobre uma nova legislação migratória avançam. Por solicitação do Ministério da Justiça, em 2013, foi criada uma Comissão de Especialistas para elaborar um Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil. Para a redação do anteprojeto, foram realizadas reuniões da Comissão com representantes de órgãos de governo e de instituições internacionais, parlamentares, especialistas e acadêmicos convidados. Ainda, foram promovidas duas Audiências Públicas com a participação de entidades da sociedade civil, e reuniões em diferentes regiões do país, sendo que uma primeira versão do projeto foi apresentada entre março e abril de 2014, e discutida em audiência pública35. Baseado nessa primeira versão, a Comissão recebeu diversas contribuições de entidades públicas e sociais, e individuais de imigrantes e especialistas e, ainda, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. A Comissão também reconheceu as recomendações da 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio, realizada entre maio e junho de 201436. As principais características do Anteprojeto são: Abandono do Estatuto do Estrangeiro, primariamente por necessidade de compatibilidade com a Constituição Federal e com os tratados internacionais de Direitos Humanos vigentes; Mudança de paradigma na política migratória, atualmente subordinada à lógica da segurança nacional e controle documental voltado ao acesso de mercado de trabalho; Abandono da tipologia “estrangeiro”, que tem conotação pejorativa; “migrantes” incluem os brasileiros que deixam o país; Acesso em 09 jul. 2015. 33  VENTURA, Deisy. Ibid. 34  Sobre a reação da sociedade à chegada de imigrantes à procura de trabalho, ver reportagens televisivas: Programa Profissão Repórter: Profissão Repórter mostra jornada de refugiados que chegam ao Brasil exibido em 03 de junho de 2014; Fantástico: Milhares de estrangeiros buscam oportunidades no Brasil exibido em 17 de agosto de 2014 e a série Os Novos Imigrantes disponíveis na página do Jornal Zero Hora. 35  BRASIL. Ministério da Justiça. Entenda o Anteprojeto de Lei de Migrações. Disponível em: >. Acesso em 10 jul. 2015. 36  BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 288 de 2013. Institui a Lei de Migração e regula entrada e estada de estrangeiros no Brasil.

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Incorporação de reivindicações da sociedade civil como a criação de um órgão estatal centralizado para atendimento aos migrantes, em especial para regulamentação; Brasil é um dos únicos países no mundo sem serviço especializado de migrações; Adaptação legislativa à realidade de mobilidade humana e globalização econômica37.

O Anteprojeto é um mecanismo de direitos humanos e não de segurança nacional e a criação de uma autoridade nacional migratória, retirando a responsabilidade dos órgãos governamentais, que terceiriza o trabalho burocrático, é um avanço para a superação do “alto grau de restrição e burocratização da regularização migratória.” Além disso, supera a “discricionariedade absoluta do Estado, a restrição dos direitos políticos e da liberdade de expressão, além de explícita desigualdade em relação aos direitos humanos dos nacionais”38. O quadro a seguir, mostra as principais diferenças entre o Estatuto do Estrangeiro e o Anteprojeto de Lei de Migrações:

Idem. VENTURA, Deisy; REIS, Rossana Rocha. Criação de Lei de migrações é dívida histórica do Brasil. Revista Carta Capital, edição de 21 de agosto de 2014. Disponível em:>. Acesso em 10 jul. 2015. 37  38 

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Lei vigente Considera o estrangeiro um tema de segurança nacional. Dificulta e burocratiza a regularização migratória. É incompatível com a Constituição Federal e os tratados internacionais de direitos humanos. Trata de estrangeiros. Dá ao Estado a possibilidade de decidir ao seu bel-prazer quem pode entrar e permanecer no Brasil. Vincula a regularização migratória ao emprego formal. Fragmenta atendimento a migrante em órgãos estatais diversos.

Anteprojeto Considera os migrantes um tema de direitos humanos. Encoraja a regularização migratória. O migrante regular fica menos vulnerável, tem oportunidade de inclusão social e deixa de ser invisível. Propõe uma das mais avançadas leis migratórias do mundo contemporâneo em matéria de direitos. Trata de migrantes: imigrantes (inclusive o transitório) e emigrantes. Dá direito à residência mediante o atendimento das condições da lei, permitindo inclusive a reunião familiar. Possibilita a entrada regular de quem busca um emprego no Brasil. Estabelece órgão estatal especializado para atendimento dos migrantes.

Tabela 1 - Fonte: Ministério da Justiça

Em maio de 2015, a Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, aprovou o Projeto de Lei 288/2013, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB), que institui uma nova Lei de Migrações no Brasil. O Projeto, aprovado na forma de substitutivo, foi elaborado em conjunto com o Ministério da Justiça, que utilizou algumas das propostas do Anteprojeto de Lei, citado acima. O texto final do Projeto de Lei traz, como princípios norteadores da política migratória brasileira, o repúdio à xenofobia, a não criminalização da imigração, a acolhida humanitária e a garantia de reunião familiar. Além disso, incorpora três princípios gerais dos direitos humanos: interdependência, universalidade e indivisibilidade, como parte dos direitos humanos dos imigrantes. Prevê ainda um conjunto de direitos e garantias aos migrantes, como amplo acesso à justiça e medidas que propiciem a integração social, garantias inexistentes no Estatuto do Estrangeiro39. O texto prevê ainda a redução de entraves burocráticos para a concessão de vistos à investidores, pesquisadores acadêmicos, estudantes e mão de obra especializada no 39 

BRASIL. Ibid.

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país. Faz também menção aos “residentes fronteiriços”, os que trabalham no Brasil, mas residem em países vizinhos, com vistas à integração de fronteiras, e não priorizando a segurança nacional40. Outra inovação trazida pelo Projeto de Lei 288/2013 é a extensão da concessão de visto humanitário para cidadão de países em situação de instabilidade institucional, de conflito armado e de calamidades que ponham em risco ou gerem graves violações aos direitos humanos, contanto que não se enquadrem nas possibilidades de concessão de refúgio41. Entidades da sociedade civil organizada e dos movimentos de migrantes entendem que o Projeto de Lei 288/2013 é um avanço em relação ao Estatuto do Estrangeiro, no entanto, levantam ressalvas em relação à proposta. Mesmo reconhecendo que se trata de uma inovação ao prever garantias de direitos aos migrantes, criticam o fato de não prever a concessão desses direitos às pessoas sem documentação42. As entidades da sociedade civil envolvidas no processo de redação do Anteprojeto de Lei de Migrações, entendem que este seria o modelo mais adequado. Ele foi apenas em parte utilizado na redação do Projeto 288/2013, não incorporando, por exemplo, a criação de uma entidade nacional migratória43, bem como não tratando da participação política do imigrantes, sendo que o Brasil é o único país da América do Sul que não permite o voto do imigrante44. De toda sorte, o Projeto de Lei 28/2013 tem ainda um longo caminho a seguir para sua aprovação: como foi aprovado em caráter terminativo na Comissão do Senado, ele segue para votação na Câmara dos Deputados, dependente ainda de não apresentação de recurso no Plenário do Senado. Passadas as rodadas de negociações, aí sim, segue para a sanção presidencial45. Outro ponto positivo deste projeto é a possibilidade de criação de um ambiente legal mais propício para criação e implementação de políticas públicas para atender os novos fluxos migratórios, evitando a violação aos direitos humanos dos migrantes. Idem. Atualmente os vistos humanitários são concedidos apenas a imigrantes vindos do Haiti, conforme a Resolução de número 97 de 2011. 42  MIGRAMUNDO. Em primeira votação, comissão do Senado aprova Lei de Migrações. Publicado em maio de 2015. Disponível em: < http://migramundo.com/2015/05/22/em-primeira-votacao-comissao-dosenado-aprova-nova-lei-de-migracoes/>. Acesso em 13 jul. 2015. 43  A regularização dos migrantes hoje, é feita com um pedido na Polícia Federal, cuja análise é feita pelo Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça. A permanência no Brasil poderá ser concedida com base nas disposições da Lei nº 6.815/80 e nas Resoluções Normativas do Conselho Nacional de Imigração – CNIg, que estabelecem os critérios para a concessão de residência definitiva àqueles que se encontrem no País. 44  MIGRAMUNDO. Op cit. 45  Idem. 40  41 

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4. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MIGRANTES NO BRASIL: POSSIBILIDADES A PARTIR DO PL 288/2013 Diante de uma nova cultura, uma nova língua, longe de suas raízes, em situação de total vulnerabilidade, sem a proteção do Estado, onde “difunde-se a ideia de que os imigrantes tiram dos nacionais os postos de trabalho, sobrecarregam os serviços sociais e põem em risco a segurança das pessoas”46, resta ameaçada sua cidadania, ou, nas palavras de Hannah Arendt, sua vida activa. Para Winckler47 privar os migrantes de sua cidadania afeta de forma substancial sua condição humana, pois mesmo quando recebem vistos de residência e trabalho, que costumam ser provisórios, encontram grandes dificuldades de integração na vida social e política. Hannah Arendt no fragmento O sentido da Política48, observa que a política é uma necessidade imperiosa ao ser humano, tanto para a vida do indivíduo, quanto para a sociedade. Na medida em que o homem depende de outros para sua existência, a política tem como tarefa e objetivo a garantia da vida em um sentido mais amplo. Dessa forma, para Arendt, a política tem uma estreita relação com a ideia de liberdade, que vai além da faculdade de ir e vir, alcançando a vida política. Anduíza e Bosch49, afirmam que cada pessoa tem diferentes experiências em relação à política, sendo que para alguns essa experiência está mais distanciada já que a preocupação maior é com seus problemas particulares, enquanto que outros participam de forma esporádica, através da assinatura de petições por exemplo. Já outros dedicam boa parte de seu tempo à participação política, de forma ativa, envolvendo-se em organizações ou partidos políticos. Ainda, segundo os autores, para analisar o comportamento político, necessário partir de algumas perguntas fundamentais, quais sejam: de que maneira se participa? Quem participa? Por que se participa? Que consequências tem a participação? Para cada uma dessas perguntas, são elencadas uma série de possíveis respostas, por exemplo, sobre as formas de participação, que podem ser de vários tipos: o ato de votar em eleições; a colaboração em campanhas eleitorais; a participação ativa em algum partido político, a participação em manifestações, etc. Observam que estas formas de participação poWINCKLER, Silvana. Ibid, p. 120. Idem, p. 121. 48  ARENDT, Hannah. O que é Política. Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 49  ANDUIZA; Eva; BOSCH, Agustí. Comportamiento político y electoral. 2ª ed. Bracelona: Ariel, 2007, p. 15. 46  47 

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dem ser exercidas em grau, intensidade e frequências variáveis50. Interessante relembrar que na Constituinte de 1987 a Assembleia Nacional opta pela democracia representativa e participativa na República Federativa do Brasil. Portanto, a Constituição de 1988 altera radicalmente o sentido da participação, não mais atingindo apenas o direito ao voto, mas sim exigindo uma efetiva participação do indivíduo na formação da vontade política do Estado. Participação política não se restringe somente ao comparecimento periódico às urnas para exercer direito de voto. Essa forma de participação vem correspondendo ao modelo de democracia representativa, na qual tem havido sempre maior distanciamento entre o eleitor e o representante político. Na democracia participativa, asseguram-se ao cidadão outras formas de atuação na formação da vontade política do Estado. É claro que esse modelo de democracia exige muito mais do indivíduo51.

A participação da sociedade nas decisões do Estado é fundamental para a consolidação o Estado Democrático de Direito. Assim, a Constituição de 1988 adota o princípio da democracia representativa, bem como da participativa. A democracia representativa é percebida no direito do cidadão de participar das eleições diretamente ou semidiretamente (art. 14, da Constituição Federal de 1988). Já a democracia participativa é verificada diante das novas possibilidades para o exercício do poder político, fazendo com que a sociedade torne-se “presente” nas decisões (caso do orçamento participativo e das audiências públicas que podem ser realizadas pelo Congresso Nacional juntamente com entidades da sociedade civil). Ademais, a Constituição Federal de 1988 faz o uso do termo “participação” em grande número de suas normas, muito embora com significados diferentes. Ante as normas de direitos sociais, a concreção do princípio da democracia participativa enquanto um direito fundamental pode estar ou não prevista no catálogo de direitos fundamentais. Assim, há de se destacar que na linguagem corrente, o direito de participação vincula-se à cidadania ativa, entretanto cumpre chamar a atenção que seu conteúdo é bem mais amplo, pois além de exercer-se a mesma enquanto um direito individual também a participação pode ser objeto de um direito coletivo52. A democracia é o “coração” da atual Constituição Federal juntamente com os direitos fundamentais, conformando a poliarquia, ou democracia política e democratiIdem, p. 16-17. LEDUR, José Felipe. Direitos fundamentais sociais: efetivação no âmbito da democracia participativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 147. 52  Idem. 50  51 

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zando não só o regime político como também a esfera das relações sociais, econômicas e culturais53. Como já trazido à baila, o Projeto de Lei 288/2013, não prevê a participação política dos imigrantes, em relação ao ato de votar. No Brasil, é pressuposto da cidadania o direito ao voto, e, sendo este um direito negado aos imigrantes, sua condição como cidadão que participa integralmente da vida da comunidade onde vive, resta seriamente ameaçada. A participação política é um mecanismo para incidir na tomada de decisões e que, portanto, está relacionado com o poder político. Assim, a participação pode compensar em alguma medida, as desigualdades sociais, o que se daria a através de uma maior participação dos cidadãos menos favorecidos do ponto de vista socioeconômico, para poderem incidir mais na tomada de decisões54. A Plataforma Unidade na Diversidade disponibilizada pela Rede Comunitária do Columbia College, lançou um manifesto (de mesmo nome), assinado por diversos professores de instituições norte americanas e europeias, onde primeiramente reconhece a preocupação de diferentes setores das sociedades democráticas com a questão da imigração em massa para seus países, alertando para a formação de minorias culturais dentro de suas fronteiras. O manifesto aponta para o fato dessa imigração ser responsável pelo surgimento de grupos extremistas, que propagam um discurso de ódio contra essas diferentes culturas55. O manifesto afirma ainda que a discussão sobre o acesso dos imigrantes à cidadania tem sido caracterizada muitas vezes pela oscilação entre ofertas radicais para a assimilação ou para a diversidade ilimitada: o abrir as fronteiras para todos, ou não; ou a responsabilidade pela integração apenas para os recém-chegados, ou os contribuintes; ou todos os recém-chegados devem receber apoio público e ajuda para manter suas culturas, línguas e identidades, ou não; ou todos os imigrantes ilegais devem ser deportados imediatamente ou não deve haver distinção entre imigrantes legais e ilegais56. Por tanto, de acordo com o Manifesto, os Estados democráticos devem ter regras claras e justas para a admissão e acolhida dos imigrantes, incluindo taxas razoáveis para o processo de legalização (quando for o caso). Os requisitos de língua e educação podem ser necessários para a familiarização com o funcionamento do governo democrático, assim como com os elementos de união/identificação da sociedade receptora. SARMENTO, Daniel. A Assembleia Constituinte de 1987/88 e a experiência constitucional brasileira sob a Carta de 88. In: TAVARES, André Ramos; LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.). Estado constitucional e organização do poder. São Paulo: Saraiva, 2010. 54  ANDUIZA; Eva; BOSCH, Agustí. Ibid, p. 18. 55  SASECE. Sociedad Española de Socioeconomia. Manifiesto por la diversidad em la unidad. In: Nomadas: Revista Critica de Ciencias Sociales y Juridicas. Disponível em:< http://pendientedemigracion.ucm.es/ info/nomadas/5/deu.htm>. Acesso em 13 jul. 2015. 56  Idem. 53 

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Porém, aos imigrantes que não completaram seu processo de regularização, poderia ser permitida a investidura em direitos, como o de votar em eleições locais, ou então, atuar em alguma função pública, porque esta seria uma forma de lhes permitir a aquisição da prática cívica, uma vez que uma função pública se torna adequada para a ocupação das minorias57. Como se pode observar, o Projeto de Lei 288/2013 está distante desse esforço de integração dos imigrantes à cidadania brasileira. Lembre-se que, as políticas públicas podem ser consideradas enquanto respostas aos problemas sociais, sendo que, toda política pública aponta para a resolução de um problema público, assim reconhecido na agenda governamental. Ou seja, é a resposta do sistema político administrativo a uma situação social, ou problema social, tido como inaceitável. Desta forma, os sintomas do problema social são o ponto de partida para a “tomada de consciência” e para o debate sobre a necessidade de determinada política pública58. Para Subirats59, a definição de políticas públicas enquanto respostas institucionais a estados sociais em transformação, tidos como problemáticos, em termos de análise, deve ser relativizada, uma vez que, se por um lado, determinadas mudanças sociais não geram necessariamente políticas públicas (por diferentes motivos que vão desde falta de mobilização social em torno da temática até a falta de interesse em colocá-lo na agenda pública), por outro, determinadas políticas podem ser tidas não como uma ação coletiva, para aplacar certo problema social, mas como um simples instrumento para o exercício do poder de dominação de um grupo social sobre outro. Com a crescente escala de intervenção do Estado e a complexidade dos governos, os assuntos públicos não são mais tão simples, e as soluções para estes são multifacetadas. Nesse contexto, as políticas públicas passam a ter um maior debate no meio acadêmico, bem como na prática. Do ponto de vista prático (grupos interessados, agentes políticos e cidadãos), “uma maior compreensão do tema permite uma ação mais qualificada e mais potente”. Do ponto de vista acadêmico, “o interesse pelos resultados das ações governamentais suscitou a necessidade de uma compreensão teórica dos fatores intervenientes e da dinâmica própria das políticas”60. Desta feita, a noção de política pública61 incorpora o conjunto de atividades norSASECE. Sociedad Española de Socioeconomia. Ibid. SUBIRATS, Joan et al. Análisis y gestión de políticas públicas. Barcelona: Planeta, 2012, p. 35. 59  Idem, p. 35-36. 60  SCHMIDT, João P. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS, J.R.; LEAL, R. G.. (org.) Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2308. 61  Schmidt (2008, p. 2315 - 2321) destaca que são 5 as fases das políticas públicas: Fase 1: Percepção e definição do problema; Fase 2: Inserção na agenda política; Fase 3: Formulação (diretrizes, objetivos e metas e atribuição de responsabilidades); Fase 4: Implementação e Fase 5: Avaliação. A principal se dará nas eleições! É o feedback. Nunca é neutra ou puramente técnica. Os aspectos verificados são a eficácia (resultados 57  58 

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mativas e administrativas que tratam de melhorar ou solucionar problemas reais, onde os efeitos desejados dependerão de um conjunto de decisões que emergem dos atores públicos62, com a pretensão de orientar uma população alvo determinada, com objetivo de resolução conjunta de um problema coletivo63. Schmidt64 denota que as políticas públicas65 “são o resultado da política, compreensíveis à luz das instituições e dos processos políticos, os quais estão intimamente ligados às questões mais gerais da sociedade”. Neste sentido, pelo que se tem observado no Brasil, nos últimos anos, mesmo estando presentes discursos em tom discriminatório, onde a tônica está no “medo” de que os imigrantes roubem empregos e sobrecarreguem os serviços de educação e saúde, o tema da migração está na pauta, tanto da sociedade civil, quanto dos governos. A sociedade civil organizada em conjunto com o Ministério da Justiça, elaborou uma alternativa ao Estatuto do Estrangeiro. Por sua vez, o Poder Legislativo também colocou o tema em pauta, acelerando a tramitação de um projeto de lei com a temática migratória. Por outro lado, alguns estados brasileiros tem se mobilizado no sentido de criar políticas inclusivas para a população migrante, independente da aprovação da nova legislação migratória. Em São Paulo, por exemplo, até dezembro de 2014 haviam sido inaugurados o Centro de Referência e Acolhida para Migrantes (CRAI), sob responsabilidade da prefeitura municipal; a Casa de Passagem Terra Nova, gerida pelo governo de São Paulo; e o Centro de Integração e Cidadania do Imigrante (CIC do Imigrante), também no âmbito estadual66. Mas o que se percebe ainda, é que a recepção e acolhida dos migrantes continua sob responsabilidade da Igreja, através da Pastoral do Migrante e da Cáritas, e dos próprios grupos organizados de migrantes que aqui se encontram. É o caso do Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Imigrantes no Brasil que conta com a participação de trinta organizações sociais, que organizaram a Campanha Nacional pelo voto do Migrante, “Aqui Vivo, aqui voto”. Essas organizações afirmam que o acesso à políticas públicas pelos imigrantes é mais difícil, sendo que a demanda pelas políticas envolve duas etapas: “primeiro, que toobtidos) e eficiência (relação entre resultados e custo). A avaliação é um “instrumento democrático” do eleitorado. 62  Subirats (2012) entende como ator tanto um indivíduo, como vários indivíduos, uma pessoa jurídica ou ainda, um grupo social, conceito inspirado em Parsons, para quem a análise de uma ação social passa pela identificação do “unit-act”, ou o ato elementar, central, que é produzido por pelo menos um ator em busca de um objetivo, valendo-se de diferentes meios. Desta forma, a noção de ator faz menção a um indivíduo, ou a um ou vários grupos de indivíduos, ou a uma organização (p. 51/52). 63  SUBIRATS, Joan et al. Ibid, p. 39. 64  SCHMIDT, João P. Ibid, p 2309. 65  Há 3 dimensões para a política: polity (dimensão institucional da política – máquina administrativa), politics (processual – dinâmica política e competição pelo poder: forças políticas e sociais) e policy (material: as políticas públicas propriamente) (SCHMIDT, 2008, p. 2010). 66  MIGRAMUNDO. Ibid.

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das as pessoas sejam reconhecidas como iguais perante a lei; depois, que as necessidades e prioridades de imigrantes sejam identificadas, assim como mecanismos que impedem que eles exerçam seus direitos”67. Lembrando ainda que, ao tratar de políticas públicas, necessário (ou ao menos recomendável) que se observe o ciclo pelo qual passam, ou deveriam passar, as políticas: o da percepção e definição de problemas, a inserção na agenda política, a formulação, a implementação (que é a concretização da formulação) e, finalmente, a avaliação68. Para Piketty69, existe um outro componente a ser observado na construção de políticas públicas no século XXI: a opção pelo tipo de sociedade que os governantes desejam e que a própria sociedade quer. Existem assim, componentes culturais, econômicos e psicológicos que se relacionam com o objetivo de vida dos indivíduos e com as “condições materiais que os diferentes países decidem adotar para conciliar a vida em família e a vida profissional (escolas, creches, políticas de igualdade de gêneros etc).” Nesse sentido, pelo que foi até aqui exposto, aprovado o Projeto de Lei 288/2013, o caminho para a construção de um conjunto de políticas públicas de inserção e concretização da cidadania dos migrantes, encontra-se aberto. A partir das iniciativas já existentes, que devem ser ampliadas, alcançando assim o status de política de Estado, é possível pensar em um novo momento para a política migratória brasileira: do papel, para a vida dos migrantes. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As migrações internacionais estão hoje na pauta das discussões, tendo em vista as novas dinâmicas observadas nos fluxos migratórios, onde países como o Brasil, que tradicionalmente não era destino de migrantes, passa a receber um número crescente de pessoas vindas de diferentes partes do mundo, por diferentes razões: dados do Ministério da Justiça e do IBGE dão conta de que número de imigrantes para o Brasil cresceu mais de 80%, entre os anos de 2002 e 2010. O número dos pedidos de refúgio cresceu 800% entre 2010 e 2014: as solicitações saltaram de 500 em 2010, para 5.200 em 2013, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR. Recentemente, a pedido do Ministério da Justiça brasileiro, um grupo de especialistas elaborou um Anteprojeto de Lei de Migrações, onde foram ouvidos vários CARTENSEN, Lisa. Em São Paulo, imigrantes se mobilizam por políticas públicas e respeito. Publicado em 11 dez. 2013. Disponível em: < http://reporterbrasil.org.br/2013/12/em-sao-paulo-imigrantes-se-mobilizam-por-politicas-publicas-e-respeito/>. Acesso em 13 jul. 2015. 68  SCHMIDT, João P. Ibid. 69  PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Tradução: Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 85. 67 

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setores tanto governamentais, quanto da sociedade civil. Este projeto visa a criação de uma nova dinâmica na recepção e permanência de imigrantes no país, sendo que a principal novidade é a criação de uma autoridade nacional migratória, retirando da Polícia Federal a responsabilidade sobre a recepção dos migrantes. Por outro lado, partiu do Senado Federal, um Projeto de Lei (288/2013), com objetivo de revogar o Estatuto do Estrangeiro e implementar uma nova política migratória no Brasil. Embora seja uma inciativa a ser comemorada, também deve ser vista com ressalvas, afinal, não contou com a participação efetiva da sociedade civil em sua construção, em especial dos migrantes, mesmo que alguns de seus dispositivos tenham sido retirados do Anteprojeto redigido por especialistas. No entanto, deixa de fora temas importantes como a regularização e garantia de direitos dos imigrantes indocumentados, a constituição de uma autoridade nacional migratória e a participação política dos imigrantes, reconhecida no direito ao voto. Não se pode então, perder de vista que, a política pública é uma ação do Estado em consonância com a sociedade e que, por vezes, uma inação pode ser a política adotada. As políticas públicas requerem aceitação social e podem estar divididas em políticas de Estado e de governo, o que não tem necessariamente vinculação com a consolidação democrática dos países. Portanto, necessária uma internalização da política pública a partir de uma legitimação social. No Brasil, ainda é bastante presente o discurso discriminatório em relação aos imigrantes, vistos como um fardo a ser carregado pelo país. Mas a sociedade civil organizada tem demonstrado sua capacidade de mobilização, no sentido de pressionar os poderes públicos para que atendam de forma humana e responsável as demandas dessa população. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer até a aprovação da nova legislação migratória, que pode ampliar sobremaneira as possibilidades de implementação de políticas públicas para os migrantes. Em resposta ao problema formulado neste trabalho, sobre a efetividade do PLS 288/2013, é cedo para fazer afirmações, uma vez que o projeto ainda está em tramitação. Portanto, não há como avaliar os efeitos e resultados produzidos. Do ponto de vista da aceitação social, percebe-se que boa parte da sociedade civil, a academia e os próprios migrantes estão empenhados na consecução desta, que pode ser a diferença entre um país que trata os migrantes como um problema de segurança, para uma nação solidária e preocupada com a efetivação dos direitos humanos de todos, nacionais ou não. REFERÊNCIAS ANDUIZA; Eva; BOSCH, Agustí. Comportamiento político y electoral. 2ª ed. Bracelona: Ariel,

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O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DO TRABALHADOR IMIGRANTE Fernanda Almeida Marcon1 Resumo: O presente estudo visa analisar a adequação da legislação brasileira no que diz respeito à proteção dos direitos dos trabalhadores imigrantes, tendo em vista o atual cenário migratório do país e as principais normas internacionais e regionais sobre o tema. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo. O procedimento adotado é a pesquisa bibliográfica e eletrônica, e a técnica, a pesquisa indireta (doutrinária e documental). Inicialmente aborda-se a migração laboral e as situações jurídicas em que a mesma pode ocorrer. Em seguida, é apresentado um breve panorama da migração internacional por trabalho no Brasil, a fim de evidenciar o tratamento conferido aos trabalhadores imigrantes ao longo da história, bem como a imagem a eles associada até os dias de hoje. Em seguida, discorre-se sobre as mais relevantes normas de proteção ao trabalhador migrante em âmbito internacional e no plano regional. Por fim, analisa-se a coerência da Lei 6.815/1980 ou Estatuto do Estrangeiro, principal lei migratória vigente no país, às necessidades de proteção dos direitos dos trabalhadores imigrantes. Conclui-se pela defasagem e inadequação de tal norma para a efetivação de tais direitos, sobretudo do Direito do Trabalho e, por conseguinte, para a promoção da dignidade humana de todo e qualquer indivíduo, independente de nacionalidade e da situação jurídica. Palavras-chave: Trabalho; Migração Internacional; Convenções Internacionais; Estatuto do Estrangeiro. Abstract: This paper aims to analyse the brazilian legislation regarding the rights of immigrant workers, considering the current migration scenario of the country and the most important international and regional standards on the subject.  The detuctive method was used in this study. The adopted procedure consisted in the bibliographic and electronic research, and the technique, in the indirect research (doctrinal and documental). In the first part of the study, labour migration and its respective legal situations are concerned. Then, a brief overview of international migration for work in Brazil is presented, in order to highlight the treatment given to immigrant workers throughout history, as well as their associated image until the present days.  Furthermore, the most relevant standards of protection for migrant workers at the international and regional levels are analysed. Finally, this study examines the consistency of the Brazilian Statute of the Foreigner (free translation) when it comes to the protection of migrant workers rights. The study confirms the insufficiency of the referred law for the enforcement of such rights and, therefore, for the promotion of human dignity of any individual, regardless of nationality and legal status. Keywords: Labour; International Migration; International Conventions; Brazilian Statute of the Foreigner.

1  Bacharela em Administração Empresarial pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ ESAG) e em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected].

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1 Introdução A migração é fenômeno inerente à natureza humana, cuja maior motivação consiste na procura por condições mais dignas de vida. Assim sendo, evidente que, perante a lógica mundial mercantilista, o migrante busca por trabalho, visto que é por meio deste que possibilita o seu sustento. Portanto, o trabalho e, sobretudo, sua tutela jurídica por meio do Direito, a qual visa assegurar a concessão de remuneração justa e a prestação laboral em condições decentes, são instrumentos basilares de consolidação da dignidade humana. Nesse contexto, o Brasil insere-se como país historicamente marcado pelas migrações internacionais por trabalho. No período imperial propagava-se no exterior a imagem do país como a terra da fartura, onde havia liberdade e oportunidades para todos. Por esse motivo, milhares de trabalhadores estrangeiros vieram para o Brasil, os quais contribuíram de forma essencial para a conformação da sociedade brasileira moderna. Posteriormente, o país também enfrentou um intenso período de emigração, no qual brasileiros rumaram a outras nações à procura de emprego. Hoje, ao mesmo tempo em que se forma um novo fluxo de saída de brasileiros, desta vez com destino a países com políticas de atração de mão de obra qualificada, também chama a atenção o crescente número de estrangeiros que aqui aportam desde os últimos anos, mormente haitianos, sul-americanos e africanos. Ante esse novo cenário, faz-se mister a análise da adequação do tratamento conferido ao trabalhador imigrante pela Lei 6.815/1980 ou Estatuto do Estrangeiro, principal norma nacional sobre o assunto. Com isso, pretende-se verificar se tal lei está, diante da realidade atual, apta à promoção dos direitos do imigrante enquanto trabalhador, especialmente do Direito do Trabalho e, por conseguinte, da dignidade da pessoa humana. Como base para a referida análise, atenta-se para as tendências exaradas nas principais normas internacionais e regionais sobre o tema, as quais se encontram no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Para tal, emprega-se o método dedutivo. Como procedimento, são adotadas as pesquisas bibliográfica e eletrônica, e como técnica, a indireta (doutrinária e documental). 2. A migração laboral e sua situação jurídica As migrações – processos de pôr-se a caminho (indivíduos ou grupos) para

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chegar a um destino – sempre existiram, enquanto deslocamento dos povos, desde o aparecimento da humanidade2. Hoje, no entanto, além de um fenômeno inerente à natureza inquieta do ser humano, as migrações internacionais “[...] constituem um espelho das assimetrias das relações socioeconômicas vigentes em nível planetário. São termômetros que apontam as contradições das relações internacionais e da globalização neoliberal”3. Logo, a migração entre fronteiras é, em sua grande maioria, motivada pela busca por oportunidades de trabalho, de modo que “trabalhadores se movem de áreas com alto percentual de desemprego para regiões em que o trabalho é mais abundante”4. Isto é, “a pobreza, as dificuldades de subsistência humana e a falta de perspectivas são as razões mais comuns para a migração de trabalhadores”5. Dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT6 indicam a existência de aproximadamente 232 milhões de trabalhadores migrantes em todo o mundo nos dias atuais. Tem-se, assim, a “migração laboral”, que consiste no “movimento de pessoas do seu Estado para outro Estado com a finalidade de aí encontrar emprego. A migração laboral está regulada nas leis sobre migração da maioria dos Estados”7. O preenchimento aos requisitos estipulados em tais leis determina a situação jurídica da migração, que constitui fator determinante para a salvaguarda dos direitos do trabalhador imigrante e, consequentemente, para a consolidação da busca por uma vida mais digna. Assim, o processo migratório de trabalhadores pode configurar duas situações: a irregularidade e a regularidade.

2.1 A situação de irregularidade versus a situação de regularidade As migrações constituem um direito humano8, conforme previsto no art. 13 2  ZAMBERLAM, Jurandir et al. Desafios das Migrações: Buscando Caminhos. Porto Alegre: Solidus, 2009. 3  MARINUCCI, Roberto; MILESI, Rosita. Migrações Internacionais Contemporâneas. 2005. Disponível em: . Acesso em: 05 abr. 2015, p. 1. 4  BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; BARBAS, Leandro Moreira Valente. Migração de Trabalhadores para o Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 28 5  LIMA, Firmino Alves. Teoria da Discriminação nas Relações de Trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 272. 6  ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT.  Migração de trabalhadores.  2015. Disponível em: . Acesso em: 07 abr. 2015. 7  ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES - OIM.  Glossário para as Migrações. 2009. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2015, p. 42. 8  Deve-se atentar que alguns autores como Lopes (2009), entendem que o artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos traz um paradoxo, pois prevê um direito à emigração, porém não assegura o correspondente direito à imigração, tendo em vista que a liberdade de estabelecimento e residência fora das

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da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. E, inclusive, garantido pelo inciso XV do art. 5º da Constituição Federal do Brasil de 19889. Todavia “ocorre que este também não é um direito ilimitado, vez que se sujeita a restrições ditadas por outros valores jurídicos, como a segurança e a ordem pública”10. Tais valores são resguardados pelo exercício da soberania estatal, que, portanto, consiste no meio legítimo pelo qual os países controlam os fluxos migratórios. Logo, a situação jurídica da migração está intimamente ligada com a questão da soberania, isto é, ao “poder de decidir em última instância, sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito”11. Assim, em que pese o direito humano de ir e vir, cada pátria soberana possui a faculdade de definir os limites da regularidade da imigração em seu território de acordo com seus interesses nacionais, o que se dá da seguinte maneira: Os ordenamentos estatais apresentam uma série de requisitos exigidos para que a imigração se proceda de modo regular [...]. Aquele que obedeça a tais critérios, terá imigrado em condição de regularidade, sujeitando-se a uma situação jurídica que, via de regra, praticamente o iguala (ou aproxima muito) do nacional do país receptor, do ponto de vista da garantia de direitos e da previsão de obrigações. Por outro lado, aqueles que desobedecem à regulação migratória do país de destino – seja adentrando o território nacional de maneira irregular, seja permanecendo nele com visto inadequado – estarão em situação de irregularidade, sujeitando-se às sanções aplicadas pelo ordenamento jurídico do país em que se encontram12.

Tem-se, assim, a migração em situação regular ou em situação irregular. Sabese que o status de irregularidade está diretamente relacionado ao trabalho informal e, por conseguinte, a toda sorte de opressões13. fronteiras do país de nacionalidade de determinada pessoa não está prevista no referente artigo, sendo apenas uma reivindicação. 9  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; [...] (BRASIL, 1988). 10  LIMA, Firmino Alves. Ibid, p. 87. 11  DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 80. 12  NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. A Condição Jurídica do Trabalhador Imigrante no Direito Brasileiro. São Paulo: Ltr, 2011, p. 26. 13  LIMA, Firmino Alves. Ibid.

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Outra consequência da imigração irregular é a perda da capacidade jurídica, visto que o indocumentado é impedido de exercer os mínimos atos de uma vida civil normal, pois: [...] não pode se expressar politicamente e não tem qualquer direito de representação social formal, muito menos política. Sente-se inibido a tomar qualquer atitude na defesa de seus direitos ou no respeito como pessoa humana, pois ainda que lhe seja favorável a pretensão, certamente será denunciado às autoridades de imigração. Não pode demonstrar livremente seus valores culturais e religiosos, pois estaria sujeito a perseguição dos próprios habitantes locais, com risco de chegar ao conhecimento das autoridades. Também não pode receber assistência médica e social regular em muitos casos, senão aquela mais elementar e preparatória para o ato de deportação e retorno ao país de origem, quando não ocorrer risco de sofrer uma pena restritiva de liberdade14.

Vale destacar que a principal forma de entrada ilícita se dá pela rede internacional de tráfico de pessoas, por meio da qual: [...] os famosos “coiotes” atuam no aliciamento e transporte clandestino com o ingresso irregular em determinada fronteira, frequentemente de forma muito precária e arriscada. O migrante, desejoso de chegar ao território sonhado, muitas vezes aceita esse meio de transporte, adquirindo um “pacote” em que está incluso o transporte, a estadia e a colocação no novo território. No entanto, esse tipo de atividade tem revelado grandes armadilhas aos migrantes e, em muitas delas, o migrante irregular está fadado à mais grave situação de um trabalhador: a exploração desumana de sua capacidade de trabalho15.

Por outro lado, há o trabalhador que consegue satisfazer as exigências legais de admissão e, por conseguinte, alcança a situação de regularidade, podendo desfrutar de forma mais efetiva do direito humano de livre circulação, bem como da proteção justrabalhista. Tal perfil, conforme define o “Glossário para as Migrações”, caracteriza o “migrante qualificado”: Trabalhador migrante a que, devido às suas qualificações, geralmente é concedido um tratamento preferencial relativamente à admissão num país de acolhimento (e, consequentemente, está sujeito a menos restrições no que se refere à duração da estadia, à 14  15 

LIMA, Firmino Alves. Ibid, p. 280. LIMA, Firmino Alves. Ibid,p. 277.

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mudança de emprego e ao reagrupamento familiar)16.

Sendo assim, a situação da imigração, condição que determinará a proteção trabalhista recebida pelo imigrante, depende de suas condições em perfazer os requisitos de admissão no território de um país, bem como da complexidade e burocracia envolvidas nesse processo. Com isso em mente, passa-se a um breve panorama da imigração de trabalhadores no Brasil, estudo importante para a compreensão da percepção brasileira com relação ao trabalhador estrangeiro, bem como do tratamento a ele conferido no decorrer do tempo. 3 Breve panorama da migração internacional de trabalhadores no brasil Na literatura, a história da imigração no Brasil é tradicionalmente retratada a partir do século XIX, com a chegada dos trabalhadores imigrantes europeus. Isso ocorre em função do conceito estrito de imigrante, que envolve, além do deslocamento humano entre fronteiras com o intuito de permanência – o que o difere do simples estrangeiro, que não tem o ímpeto de se estabelecer no local de destino –, a ideia de enfrentamento das barreiras políticas e normas de admissão de outra nação já consolidada, bem como a participação no processo decisório pela migração17. Os primeiros estrangeiros que aqui chegaram com a finalidade específica de trabalhar foram os africanos escravizados, os quais eram tratados como meras mercadorias, não possuindo, portanto, direito algum. Além disso, não são eles considerados imigrantes, pois lhes faltava a condição da mobilidade, de modo que não possuíam participação na tomada de decisão pela migração, não sendo tratados como sujeitos da mesma18. Fatores como a necessidade de povoamento do território brasileiro, o fortalecimento da produção cafeeira e, posteriormente, o fim da escravidão, levaram o país à prática de políticas de imigração subsidiada, que resultaram na vinda de milhares de trabalhadores estrangeiros. Apesar das promessas de melhoria de vida, em muitos casos, os imigrantes que aqui chegavam eram submetidos, nas fazendas de café, a sistemas de trabalho desonestos, que promoviam a exploração de sua mão de obra como se escrava fosse19. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES. Ibid,p. 45. NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid. 18  VAINER, Carlos B. As Novas Categorias de uma Sociologia dos Deslocamentos Compulsórios e das Restrições Migratórias. In Migrações Internacionais Contribuições para Políticas. CNPD. Brasília: 2001. 19  COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. São Paulo: Saraiva, 2002. 16  17 

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Com a industrialização do País, mais imigrantes vieram em busca dos postos de trabalho gerados. Durante o século XX, inspirados em ideologias de cunho anárquico e socialista trazidas consigo da Europa, operários imigrantes iniciaram movimentos de luta por melhores condições de trabalho, que resultaram no efetivo início do Direito do Trabalho no país. Todavia, também ocasionaram uma inversão nas políticas de estímulo à imigração, que passaram a restringir a admissão de estrangeiros no Brasil. Posteriormente, o cenário migratório no Brasil passou a tomar um novo rumo: a emigração. Elucidam Irigaray, Freitas e Filardi20, que: [...] a grave crise econômica que atingiu o país durante a década de 1980 levou muitos brasileiros a emigrar para os Estados Unidos e Europa. Estima-se que, aproximadamente, 3,2 milhões de brasileiros emigraram para estes países entre 1982 e 2006. Em 2008, outra severa crise econômica ocorre, só que desta vez, os países mais atingidos foram justamente aqueles que receberam nossos emigrantes, e estes brasileiros optam por retornar à pátriamãe, agora vislumbrada como “país emergente”, terra de oportunidades e pleno emprego.

Assim, vive-se no Brasil atual a diversificação dos fluxos e a ocorrência simultânea de emigração e imigração. Ao mesmo tempo em que a migração de retorno ganha força, nota-se o início de um novo fluxo de brasileiros ao exterior: a busca por destinos com políticas de atração de mão de obra qualificada. É o caso da Austrália e do Canadá, países que “não escolhem imigrantes a esmo: lançam listas buscando profissionais qualificados em áreas específicas”21. Enquanto muitos brasileiros retornam e outros iniciam uma nova corrente emigratória, milhares de estrangeiros enxergam o Brasil como uma terra de oportunidades. O Relatório do Observatório das Migrações Internacionais – OBMigra, publicado em 2014, aponta que o número de trabalhadores imigrantes formais no Brasil cresceu 50,9% entre 2011 e 2013, procedentes principalmente do Haiti, Argentina, Bolívia e Paraguai22. IRIGARAY, Hélio Arthur Reis; FREITAS, Maria Ester de; FILARDI, Fernando. Diáspora Brasileira e os Trabalhadores Retornados do Exterior: Quando a Fantasia Encontra a Realidade. 2013. XXXVII Encontro da Anpad. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2015, p. 1. 21  PÁDUA, Luciano. A nova rota dos brasileiros no exterior. Veja, São Paulo, 07 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2015. 22  CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasília: Cadernos do Observatório das Migrações Internacionais, 2014. 20 

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Destaque para a população haitiana23 no país, que de pouco mais de 814 pessoas no ano de 2011, passou para 14.579 empregados no mercado de trabalho em 2013. Atenta-se que tais números abarcam apenas os haitianos com vínculo formal de emprego24. Importante observar que o mercado de trabalho nacional está absorvendo imigrantes nos dois extremos, no topo e na base. Entre 2011 e 2013, Os grupos ocupacionais que tiveram um maior aumento de imigrantes refletem essa dinâmica: trabalhadores da produção de bens e serviços industriais (163,8%); profissionais das ciências e das artes (100%); trabalhadores qualificados agropecuários, florestais e da pesca (95,6%) e trabalhadores em serviços de reparação e manutenção (45,4%). Deste modo, o país tem demandado trabalhadores para atividades altamente qualificadas e, devido às dificuldades de oferta de mão de obra em algumas ocupações em determinadas áreas da região sul, começa a necessitar de imigrantes para atividades que exigem pouca qualificação. Assim, observamos um aumento significativo dos imigrantes no sul do país, nos setores da construção civil e no setor de produção de bens industriais, sobretudo em trabalhos pesados, como, por exemplo, os trabalhos nas fábricas de conservas, nos abatedores de carne e frango [...]. Trabalhos que são realizados em condições duras e difíceis que os locais evitam realizar25.

No que diz respeito aos trabalhadores da base do mercado formal, dado importante trazido pelo relatório da OBMigra é que não necessariamente são de baixa qualificação: aproximadamente 38% e 30% dos imigrantes no país possuem nível superior e ensino médio completo, respectivamente26. Ocorre, assim, uma grande disparidade entre formação, atuação profissional e renda, pois: Na sua maioria, os imigrantes contam com uma formação profissional superior, mas no momento de incorporação no mercado de trabalho descendem na escala laboral e, portanto, social. Assim os imigrantes se inserem no mercado de trabalho em uma posição inferior em relação ao seu grau de especialização, sua forOs haitianos recebem o denominado Visto Humanitário, que é uma modalidade específica de visto permanente concedida a eles pela Resolução 97 de 12 de janeiro de 2012 do Conselho Nacional de Imigração – CNig. O motivo são razões humanitárias, que, de acordo com o art. 1º, parágrafo único da resolução são aquelas “[...] resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010” (BRASIL, Conselho Nacional de Imigração, 2012). 24  CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). Ibid. 25  CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). Ibid,p. 19. 26  CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). Ibid. 23 

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mação acadêmica e a sua experiência laboral prévia. [...] há uma inconsistência de status na medida em que exercem atividades aquém das suas formações e experiências nos países de origem. Esse é o caso de dentistas, médicos, jornalistas, engenheiros que estão trabalhando na construção, na indústria pesada, nos abatedouros de frangos e carnes, entre outras atividades27.

Evidente que, ao exercerem ocupações que demandam menor grau de instrução, sua faixa de renda também não corresponde ao seu grau de formação. Assim, “em torno de 53% dos imigrantes recebem entre 1 e 3 salários mínimos. E a população imigrante que recebe somente entre 1 e 2 salários mínimos fica na casa dos 40%”28. O trabalho desses imigrantes é, portanto, desvalorizado, pois ainda que tecnicamente tenham uma formação específica, socialmente são considerados obreiros sem qualificação29. Importante frisar que o relatório aqui utilizado para traçar as características do atual trabalhador imigrante no Brasil lida com dados do mercado de trabalho formal. Logo, a complexidade do atual cenário da imigração laboral no País é ainda muito maior se considerarmos os estrangeiros envolvidos em relações informais de trabalho, cuja quantificação é praticamente inviável. São esses os trabalhadores que mais sofrem com a exploração abusiva de sua força de trabalho30. O caso da indústria têxtil em São Paulo é paradigmático. Em pequenas confecções localizadas na capital paulista, diversos trabalhadores imigrantes, em sua maioria oriundos da Bolívia, Paraguai e Peru, trabalham em jornadas de mais de 14 horas, em troca de valores próximos ao salário mínimo ou até mesmo abaixo deste, sem as menores condições de segurança e saúde31. Nota-se, por todo exposto, que, em muitos casos, o trabalhador estrangeiro no Brasil, inclusive na época em que sua vinda era incentivada, foi submetido à exploração e à desvalorização de seu trabalho. Do mesmo modo, os imigrantes hodiernos ainda sofrem com a associação histórica à escravidão e com a depreciação de sua mão de obra, considerada como de menor qualidade32. Isso ocorre até mesmo quando inseridos no mercado formal de trabalho, conforme demonstram as referidas situações de disparidade entre formação, atuação profissional e renda.

27  28  29  30  31  32 

CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). Ibid,p. 15. CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). Ibid,p. 16. CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). Ibid, p. 16. LIMA, Firmino Alves. Ibid. BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego, 2012. LIMA, Firmino Alves. Ibid.

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4 As principais normas internacionais e regionais de proteção ao trabalhador migrante33 Diante do aumento do fluxo migratório de trabalhadores não só no Brasil, como em todo o mundo, “tratados ou convenções internacionais atuais já apresentam medidas protetivas e garantias mínimas dos imigrantes, ainda que irregulares”34. Logo, é fundamental atentar para o conteúdo dessas normas que, no tocante à salvaguarda do trabalhador migrante são: as Convenções 97 e 143 da OIT; a Convenção Internacional Sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias da ONU; e as normas regionais no âmbito do MERCOSUL.

4.1 Âmbito da OIT Foi com a idealização da Convenção nº 97, já em 1939, que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) firmou seu pioneirismo com relação à questão dos trabalhadores migrantes, visto que, assim, “antes mesmo da criação da ONU e do advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a OIT já havia se debruçado sobre o tema [...]”35. No entanto, o texto convencional passou por uma revisão dez anos depois, entrando em vigor no ordenamento internacional no ano de 195236. O Brasil tornou-se signatário em 1965 pelo Decreto Legislativo nº 20 do Congresso Nacional. No tocante ao conteúdo da Convenção nº 97, destaca-se a previsão de uma série de direitos ao trabalhador migrante, dentre os quais merece realce o princípio da não discriminação, nos termos do art. 6º: 1. Todo Membro para o qual se ache em vigor a presente convenção se obriga a aplicar aos imigrantes que se encontrem legalmente em seu território, sem discriminação de nacionalidade, raça, religião ou sexo, um tratamento que não seja inferior ao aplicado a seus próprios nacionais com relação aos seguintes Vale esclarecer que, ao invés da expressão “imigrante”, aqui se adota a denominação “migrante”, pois é esta a mais utilizada pela legislação internacional para designar o indivíduo que transita de um país a outro em busca de trabalho, tendo em vista que tais normas não dizem respeito à imigração em um país determinado, e sim, trata da migração laboral de modo geral na comunidade internacional. No entanto, quando, no presente artigo, se faz referência ao trabalhador estrangeiro no Brasil, parece mais adequado o uso da expressão “trabalhador imigrante”. 34  LIMA, Firmino Alves. Ibid,p. 283. 35  LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito de Imigração: O Estatuto do Estrangeiro em uma perspectiva de direitos humanos. São Paulo: Núria Fabris, 2009, p. 225. 36  LIMA, Firmino Alves. Ibid. 33 

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assuntos: [...]37[grifei].

Todavia, tais direitos conferidos pela Convenção nº 97 não se aplicam a todo e qualquer trabalhador migrante, visto que a mesma não protege o imigrante em condição de irregularidade, como também “estão excluídos de sua proteção os trabalhadores fronteiriços, os que ingressaram por curto período exercendo uma profissão liberal, artistas e trabalhadores marítimos”38. Ainda, a Convenção 97 é criticada por apresentar uma defasada compreensão política das migrações: Suas disposições apostam num modelo de imigração pública, devidamente negociada entre os correspondentes países emissor e receptor de mão de obra. Tanto é assim que estabelece constituir responsabilidade dos Estados propiciar condições para uma viagem adequada e com condições de assistência médica (artigos 4º e 5º). A ideia é a do trabalho em parceria entre Estados emissores e receptores39 [grifo da autora].

Sabe-se que os movimentos migratórios não mais ocorrem tão somente para suprir necessidades de mão de obra, por meio de acordos entre os governos dos países40. Razões como essas motivaram a criação da Convenção da OIT de nº 143. A Convenção nº 143 foi aprovada em 1975 e passou a vigorar na ordem internacional a partir de 1978. Diferentemente da Convenção nº 97, a norma convencional de nº 143: [...] está voltada para movimentos migratórios não assistidos por entidades governamentais, bem como a existência de tráficos ilícitos ou clandestinos de mão de obra, ao entender como conveniente novas medidas contra tais práticas. Fica claro, comparando-se com a Convenção nº 97, que a entidade debruçou especial atenção sobre os movimentos migratórios clandestinos41.

Ademais, de acordo com Nicoli42, em função do emprego da expressão “todos”, “[...] do artigo inaugural da Convenção nº 143 já se depreende aquele que é seu grande ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT. Convenção nº 97. 1949. Disponível em: . Acesso em: 09 maio 2015. 38  LIMA, Firmino Alves. Ibid, p. 284. 39  LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid, p. 228. 40  LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid. 41  LIMA, Firmino Alves. Ibid, p. 286. 42  NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid, p. 61. 37 

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diferencial: a inclusão dos imigrantes em condição de irregularidade no amplo grupo de trabalhadores a serem protegidos”. O art. 8º traz outra garantia ao trabalhador migrante no tocante à irregularidade, ao estabelecer que este “[...] não poderá ser considerado irregular e suspensa sua autorização caso venha a perder o emprego, possuindo chance como qualquer nacional de procurar outro emprego”43. Em seguida, o art. 9º também demonstra que o trabalho prestado pelo imigrante, mesmo que em situação irregular, deve ser juridicamente protegido. Prevê esse artigo que mesmo nos casos em que a condição do imigrante não possa ser regularizada, deve este receber tratamento igual aos nacionais quanto aos direitos desinentes de empregos anteriores, no que diz respeito à remuneração, à segurança social e outras vantagens44. Assim, a Convenção nº 143 da OIT representou um significativo progresso ao abarcar a proteção jurídica do trabalho do imigrante irregular, bem como dispor sobre igualdade de tratamento e reunião familiar, entre outros aspectos referentes aos direitos humanos. Ademais, ao abandonar a concepção de migração ordenada e em caráter oficial da Convenção nº 97, a Convenção 143 aproxima-se de um cenário muito mais similar ao atual45. Entretanto, “a Convenção nº 143 enfrenta problemas acentuados de aceitação entre os países do globo [...]”46, sendo o Brasil um dos países que ainda não ratificou a mesma.

4.2 Âmbito da ONU Em 1990 a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a Convenção Internacional Sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias da ONU. Porém, a norma entrou em vigor somente em 2003, ano em que finalmente alcançou o mínimo necessário de ratificações para tal47. O referido diploma estabelece um patamar mínimo de direitos a serem observados pelos Estados-partes com relação aos trabalhadores migrantes e seus familiares, independente do status de sua situação migratória48. Assim, LIMA, Firmino Alves. Ibid, p. 286, ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Ibid, 2015a. 45  LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid. 46  NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid, p. 62. 47  LIMA, Firmino Alves. Ibid. 48  PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2011. 43  44 

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Dentre os direitos enunciados pela Convenção a todos os trabalhadores migrantes e membros de sua família, independentemente de status migratório, destacam-se os direitos à vida; a não ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; a não ser constrangido a realizar um trabalho forçado; à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; à liberdade de expressão; à vida privada e familiar; à liberdade e à segurança pessoal; a ser tratado com humanidade, dignidade e respeito à sua identidade cultural, quando privados de liberdade; à proibição de medidas de expulsão coletiva; à proteção e à assistência das autoridades diplomáticas e consulares do seu Estado de origem; ao reconhecimento da sua personalidade jurídica, em todos os lugares; a um tratamento não menos favorável que aquele concedido aos nacionais do Estado de emprego em matéria de retribuição49.

Por meio do reconhecimento de seus direitos humanos fundamentais, a Convenção visa desencorajar o emprego de imigrantes irregulares. Outrossim, procura harmonizar as condutas dos Estados e estimular a criação de medidas adequadas para prevenir e eliminar o tráfico e o recrutamento clandestinos de trabalhadores50. O primeiro artigo da Convenção traz o princípio da não discriminação, vedando qualquer tipo de distinção, incluindo o critério da “nacionalidade”. Em seguida, o art. 2º “distingue categorias de trabalhadores, de acordo com o motivo ou características da estância [...]”51. Com isso, pretende-se proteger a todo e qualquer trabalhador migrante, de modo que estão abarcados pela norma convencional os trabalhadores fronteiriços, os profissionais liberais de temporada, os marítimos, entre outras categorias. Assim sendo, A convenção é importante por estabelecer uma codificação universal dos direitos dos trabalhadores migrantes no âmbito da ONU, mais atualizada que as convenções da OIT. Estabelece garantia de mínimos e inclui os familiares até no seu nome, razão pela qual entendemos que o direito à reunificação familiar deve ser entendido como direito – e não como recomendação – no campo deste instrumento jurídico52.

Além disso, tal série de direitos mínimos prevista pela Convenção pode au49  50  51  52 

PIOVESAN, Flávia.  Op. Cit., p. 276. PIOVESAN, Flávia.  Op. Cit. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid, p. 242. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Op. Cit., p. 242.

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xiliar a limitar a ‘potestade’ dos Estados-Parte na elaboração de política de migração53. Entretanto, talvez seja este um dos principais motivos para o baixo grau de adesão da norma, que conta atualmente com 38 signatários e 48 Estados-partes54. Tal número é pouco representativo, tendo em vista que a ONU é formada por 193 países. Vale notar que o Brasil é o único país do MERCOSUL que ainda não ratificou a referida Convenção.

4.3 Âmbito do MERCOSUL O Mercado Comum do Sul - MERCOSUL foi fundado em 1991 por meio da assinatura do Tratado de Assunção pelos seguintes países: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Em 2012 a Venezuela ingressou definitivamente como Estado-parte do bloco e, desde o mesmo ano, a Bolívia encontra-se em processo de adesão55. Além disso, o MERCOSUL tem como Estados associados: o Chile (desde 1996), o Peru (desde 2003), a Colômbia, o Equador (ambos desde 2004), a Guiana e o Suriname (ambos desde 2013). Assim sendo, todos os países da América do Sul participam do bloco, seja como Estado-parte, seja como associado56. O objetivo da criação do MERCOSUL, como o próprio nome evidencia, é a consolidação de um Mercado Comum, porém ainda hoje tal estágio não foi consolidado, sendo o bloco classificado atualmente como uma União Aduaneira Imperfeita. O maior desafio à concretização do Mercado Comum consiste no estabelecimento do livre trânsito de pessoas. Assim, o MERCOSUL ainda é considerado por muitos como uma mera zona de cooperação, na qual ocorrem processos imigratórios comuns, e não como uma zona de integração, onde mecanismos jurídicos afrouxam as fronteiras, facilitando o trânsito de pessoas, a fixação de residência e o acesso ao trabalho em condições dignas nos Estados pertencentes ao bloco57. No entanto, alterações paulatinas no ordenamento jurídico do referido bloco vêm buscando a transformação desse quadro. Merece realce a realização do Acordo Sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL, Bolívia e Chile, firmado em 2002 e promulgado no Brasil pelos Decretos nº 6.964 e nº 6.975, ambos LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Op. Cit. Em junho de 2015, conforme consulta no sítio da ONU. Disponível em: < https://treaties.un.org/ pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-13&chapter=4&lang=en> Acesso em 11 de junho de 2015. 55  BRASIL. MERCOSUL. Saiba mais sobre o MERCOSUL. 2015d. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2015. 56  BRASIL. Op. Cit., 2015d. 57  NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid. 53  54 

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de 2009. Já em seus dispositivos iniciais, o instrumento normativo demonstra sua preocupação com o aprofundamento da integração entre os membros do bloco, sobretudo com a política de livre circulação de pessoas. Em seu art. 1º, o acordo traz a possibilidade de residência legal de qualquer nacional dos Estados-partes do MERCOSUL em outro Estado pertencente ao bloco, bastando, para tal, a comprovação da nacionalidade e dos requisitos exigidos no art. 4º. Este também prevê a simplificação da legalização de documentos, bastando a notificação de sua autenticidade58. Na sequência, o art. 5º permite a transformação da residência temporária em permanente, mediante a apresentação do peticionante perante a autoridade migratória do país de recepção, noventa dias antes do vencimento da mesma, acompanhado da documentação listada59 Outro importante dispositivo do Acordo é o art. 9º, que prevê diversos direitos aos imigrantes e membros suas famílias, de forma que: São assegurados, ainda, o tratamento igualitário com os nacionais do país de acolhida, o direito de reunião familiar (hipótese aplicável caso existam membros da família que não tenham a nacionalidade de um do Estados-partes) e o direito a transferir renda pessoal ao seu país de origem60 .

Assim, “o Acordo de Residência resolve definitivamente a questão migratória entre cidadãos do MERCOSUL, instituindo verdadeiro regime de igualdade jurídica que poderá solucionar muitas das questões migratórias atuais”61. Todavia, as diferenças econômicas e sociais entre os países do bloco ainda geram entraves à aplicação plena dos instrumentos regionais de proteção ao trabalhador migrante, mormente do avançado Acordo. Assim, a implementação da livre circulação de trabalhadores e de sua proteção jurídica no MERCOSUL ainda depende do fortalecimento deste como instituição supranacional, a fim de que seus instrumentos sejam plenamente efetivados pelos Estados-partes através da implementação de ações políticas em seus âmbitos domésticos. Após essa análise da normativa internacional e regional, percebe-se que há uma tendência pela regularização da questão da migração laboral pelo viés dos direitos humanos, em detrimento da primazia da soberania estatal e de conceitos como a segurança nacional. Logo, resta saber como a legislação interna trata a questão. Por isso, a seguir 58  59  60  61 

LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid. BRASIL. Op. Cit., 2015d. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid, p. 536. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Op. Cit, p. 534.

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passa-se a apreciação dos aspectos que se relacionam ao trabalho imigrante contidos na mais importante norma referente ao tratamento dos estrangeiros no Brasil: o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815 de 1980). 5 O Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815 de 1980) e mas Correlatas

Nor-

Como já referido, o Brasil foi, por muitos anos, um país de imigração subsidiada, porém os movimentos operários impulsionados pelos ideais dos imigrantes provocaram o surgimento de restrições à entrada de estrangeiros nas políticas imigratórias nacionais. Além disso, nos anos de 1970 iniciou-se nos países em desenvolvimento uma tendência de criação de políticas de proteção e incentivo ao crescimento dos meios de produção internos62. Assim, em meio a uma ditadura militar autoritária e desenvolvimentista, e, “por estar na linha dessas políticas governamentais de proteção da indústria nacional é que a imigração passa a ser pautada por objetivos de transferência e assimilação de tecnologia”63. É neste contexto que se elaborou a Lei nº 6.815 de 1980 ou Estatuto do Estrangeiro, norma que transformou drasticamente a tutela jurídica dada pelo Estado brasileiro à questão da imigração: De um país que permitia a entrada de qualquer imigrante, oferecendo até estímulos à vinda mediante programas de imigração dirigida, a sistemática da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, fechou, quase que por completo, as portas do mercado de trabalho do Brasil para os estrangeiros64.

Nota-se, já em seus artigos iniciais, o caráter restritivo da lei, visto que a entrada e permanência no país (art. 1º), bem como a concessão, prorrogação ou transformação do visto (art. 3º) dependem dos interesses nacionais. Ainda, o art. 2º traz como prioridade na aplicação da lei a realização da segurança nacional, da organização institucional e de interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil, assim como da defesa do trabalhador nacional. Com isso, vê-se a noção do estrangeiro como ameaça à segurança, às instituições e aos interesses do país, como também um reforço às polêmicas disposições de nacionalização do trabalho da CLT. 62  63  64 

BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; BARBAS, Leandro Moreira Valente. Ibid,2013. BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; BARBAS, Leandro Moreira Valente. Op. Cit., p. 33. BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; BARBAS, Leandro Moreira Valente. Op. Cit., p. 34.

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O novo objetivo da imigração, agora não mais voltado ao povoamento do território ou ao branqueamento da população e, sim, à assimilação de novas tecnologias e de mão de obra qualificada, foi expresso no parágrafo único do artigo 16 da mesma lei, nos seguintes termos: Parágrafo único. A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão de obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos (Redação dada pela Lei nº 6.964, de 09/12/81)65.

Com isso, a lei não demonstra qualquer preocupação com os direitos humanos dos imigrantes, tendo em vista apenas objetivos econômicos, de modo que: [...] passa a só poder ingressar no Brasil, na condição de imigrante (entendido como aquele que deseja a entrada para que possa trabalhar no País), aquele que puder oferecer à economia nacional um serviço especializado, não desempenhável por qualquer trabalhador nacional, ou de oferta escassa no mercado interno. E o objetivo da entrada desse estrangeiro especializado é primordialmente a assimilação de tecnologia pela indústria nacional, caracterizada pela transmissão de conhecimento especializado, partida do estrangeiro, aos trabalhadores nacionais. Assim, só estrangeiros que sejam capazes de cumprir esses requisitos impostos pela lei poderão ingressar no território brasileiro e nele se fixar66.

Tais requisitos de admissão são estipulados pelo Conselho Nacional de Imigração – CNIg, órgão colegiado vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, instituído pela Lei nº 6.815/1980 com a finalidade de formular a política de imigração. Dentre suas atribuições está a criação de normas para a seleção de imigrantes, conforme dispõe o art. 17 do Estatuto. Logo, O CNIg é o órgão deliberativo responsável pela definição dos critérios para expedição de vistos (e precipuamente vistos de trabalho, que são os que efetivamente interessam em matéria de proteção ao trabalhador nacional, ou atração de mão de obra qualificada), cumprindo nesse particular o mister de definir a poBRASIL Estatuto do Estrangeiro: Lei nº 6.815/1980. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2015b. 66  BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; BARBAS, Leandro Moreira Valente. Ibid,2013, p. 35. 65 

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lítica migratória brasileira67.

Assim, a admissão em território brasileiro depende da concessão de um visto, cujo tipo varia conforme o propósito da vinda ao país. Os possíveis casos de admissão de estrangeiros com a finalidade laboral no Brasil são explanados a seguir.

5.1 A admissão de trabalhadores estrangeiros no brasil: os vistos e as autorizações de trabalho O Estatuto do Estrangeiro prevê, em seu art. 4º, sete diferentes modalidades de visto. Todavia, para os casos de migração laboral, interessa detalhar somente os aspectos dos vistos de tipo temporário (art. 4º, III) e permanente (art. 4º, IV). Antes, no entanto, faz-se necessário esclarecer brevemente a burocrática estrutura de funcionamento do processo de admissão de estrangeiros no país: Atualmente, a gestão da entrada de estrangeiros no Brasil é de responsabilidade de três pastas governamentais: o Ministério das Relações Exteriores (MRE) - responsável pela emissão dos diversos vistos, temporários ou permanentes, em caso de viagem, na condição de artista, desportista ou estudante, entre outros. Além disso, é o órgão responsável pela emissão de vistos, nas Unidades Consulares no exterior, para aqueles que pretendem se estabelecer no Brasil. O Ministério da Justiça (MJ), por sua vez, é responsável pelos procedimentos de documentação e regularização da situação migratória dos estrangeiros no Brasil (por exemplo: pedidos de refúgio, união estável, entre outros). E, ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), cabe à emissão das autorizações de trabalho para estrangeiros, que desejam exercer alguma atividade laboral no Brasil68 [grifo dos autores].

Além disso, esse processo também envolve a participação da Polícia Federal, que recebe funções delegadas do Ministério da Justiça69 A obtenção de vistos temporários e ou permanentes para fins específicos de labor no Brasil, portanto, depende das autorizações de trabalho do MTE, que consistem em: Atos administrativos, de competência do Ministério do TrabaLOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid, p. 598. CAVALCANTI, Leonardo; TONHATI, Tânia; OLIVEIRA, Antônio Tadeu (Orgs.) Autorizações concedidas a estrangeiros. Brasília: Relatório, 2015, p. 4. 69  BARALDI et al, 2011. 67  68 

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lho e Emprego, exigidos pelas autoridades consulares brasileiras, para efeito de concessão de vistos permanentes e/ou temporário a estrangeiros que desejam permanecer no Brasil por motivos de trabalho70.

Tais autorizações são concedidas conforme o atendimento aos requisitos previstos nas resoluções normativas do CNIg, dentre as quais se destacam a Resolução nº 104, de 16 de maio de 2013, e a de nº 99, de 12 de dezembro de 2012. Ambas tratam da vinda de trabalhadores que já possuam prévia contratação no Brasil, de maneira que, regra geral, inexiste a possibilidade de entrada de um estrangeiro para aqui procurar trabalho. Ainda, as exigências trazidas pelas referidas resoluções são bastante elevadas, de modo que para o estrangeiro que aqui venha por conta própria não exista oportunidade de entrada regular, e somente trabalhadores altamente qualificados consigam obter as autorizações de trabalho e, por conseguinte, os vistos necessários. Para fins de ilustração tem-se os requisitos do art. 2º da Resolução Normativa nº 99. Primeiramente, esclarece-se que tal resolução versa sobre a hipótese do inciso V do art. 13 do Estatuto, comumente denominada “visto temporário de trabalho”, pois é a modalidade pela qual o trabalho, de forma genérica, constitui a finalidade da vinda do estrangeiro ao Brasil71. Assim, o art. 2º da Resolução nº 99 determina ser necessária a compatibilidade entre a qualificação e a experiência profissional do estrangeiro e a atividade que virá exercer no país. E, em seu parágrafo único, o mesmo artigo traz elevados requisitos para a comprovação de tal compatibilidade, que cumulam nível de escolaridade com experiência profissional: Parágrafo único. A comprovação da qualificação e experiência profissional deverá ser feita pela entidade requerente por meio de diplomas, certificados ou declarações das entidades nas quais o estrangeiro tenha desempenhado atividades, demonstrando o atendimento de um dos seguintes requisitos: I – escolaridade mínima de nove anos e experiência de dois anos em ocupação que não exija nível superior; ou II – experiência de um ano no exercício de profissão de nível superior, contando esse prazo da conclusão do curso de graduação que o habilitou a esse exercício; ou III – conclusão de curso de pós-graduação, com no mínimo 360 horas, ou de mestrado ou grau superior compatível com a ativi70  71 

CAVALCANTI, Leonardo; TONHATI, Tânia; OLIVEIRA, Antônio Tadeu (Orgs.). Ibid, p. 5. NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid.

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dade que irá desempenhar; ou IV – experiência de três anos no exercício de profissão, cuja atividade artística ou cultural independa de formação escolar72.

Há a relativização de tais requisitos apenas no caso de pedido realizado por nacional de país sul-americano “ou ainda, excepcionalmente, quando a compatibilidade do perfil profissional do estrangeiro com a função a ser desempenhada no Brasil possa ser demonstrada por outros meios”, conforme estabelece o art. 3º da mesma resolução73. A exceção aos sul-americanos representa um avanço, pois parece demonstrar uma preocupação em adequar a política migratória nacional às tentativas de integração no âmbito do MERCOSUL, como o já referido Acordo de Residência. Com relação à obtenção de visto permanente, definido pelo art. 16 da Lei 6.815/1980 como aquele necessário ao estrangeiro que pretenda se fixar definitivamente no Brasil, os critérios são ainda mais específicos. Conforme dispõe o art. 17, devem ser observadas as “exigências de caráter especial previstas nas normas de seleção de imigrantes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Imigração”74. Assim, diversas são as resoluções do CNIg que regulam a concessão do visto permanente, as quais variam de acordo com a função a ser exercida pelo estrangeiro no Brasil. Constata-se que as hipóteses de concessão de visto permanente atualmente previstas estão mais relacionadas com a vinda de profissionais como investidores e altos executivos do que com a imigração estritamente laboral75. Prova disso, é que um dos casos que mais geram autorizações de trabalho para o Brasil é o dos executivos e gestores de empresas transnacionais76 . Verifica-se, portanto, que: Os anseios da Lei são completamente distintos dos anseios dos trabalhadores que buscam nossas fronteiras, geralmente com pouca qualificação. Se não possuírem qualquer qualificação profissional e contrato de trabalho previamente celebrado, não terão a menor chance de obter uma aprovação do Ministério do Trabalho para uma qualificação não encontrada no mercado nacional77. BRASIL. Conselho Nacional de Imigração. Resolução Normativa nº 99, de 12 de dezembro de 2012b. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. 73  BRASIL. Op. Cit. 74  BRASIL. Ibid, 2015b. 75  LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid. 76  LOPES. Op. Cit. 77  LIMA, Firmino Alves. Ibid, p. 295. 72 

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Ainda sobre a admissão de estrangeiros no Brasil, é importante ressaltar que, em razão do caput do art. 26 do Estatuto78, “a concessão do visto não é ato vinculado, ou seja, não basta que o pedido perfaça os requisitos legalmente previstos para que a permissão de trabalho seja obtida”79. Dentre as hipóteses de não concessão do visto previstas no art. 7º, chama a atenção a do inciso II, que, ao tratar do indivíduo considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais, exalta, mais uma vez, a preocupação com a segurança nacional. O enquadramento do estrangeiro que aqui pretende adentrar ao caso do referido inciso envolve uma avaliação de extrema subjetividade por parte das autoridades de imigração. Assim, Na medida em que a obtenção do visto se apresenta como mera expectativa de direito, o estrangeiro interessado em sua concessão pode ver seu pedido ser indeferido, ainda que compareça ao consulado munido de todos os documentos exigidos80.

Além disso, também se sofre com a ausência de previsão de concessão de visto para um período destinado à busca de outro emprego. Com isso, tendo em conta que nos casos de vistos temporários de trabalho, estes são concedidos para um emprego específico e por prazo determinado, “caso perca o seu emprego, o trabalhador deve deixar o país, ou requerer nova autorização de trabalho para novo emprego. Durante o tempo em que estiver desempregado, estará em situação irregular”81. As formas de se encontrar em situação de irregularidade (no sentido amplo do termo) estão dispostas no art. 125 do Estatuto. São elas: Quanto à entrada, estará em condição de irregularidade migratória aquele estrangeiro que não portar o visto adequado ao adentrar o território nacional. A este primeiro grupo o Estatuto do Estrangeiro denomina imigrante “clandestino” (cf. art. 125, I, do Estatuto). Em relação à permanência, a irregularidade se verificará quando o imigrante não portar visto algum ou, uma vez vencido o prazo de seu visto, permanecer no país. A estes Art. 26. O visto concedido pela autoridade consular configura mera expectativa de direito, podendo a entrada, a estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo qualquer dos casos do artigo 7º, ou a inconveniência de sua presença no território nacional, a critério do Ministério da Justiça (BRASIL, 1980) [grifei]. 79  BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; BARBAS, Leandro Moreira Valente. Ibid,2013, p. 38. 80  FREITAS, Vladimir Passos de (Coord). Comentários ao estatuto do estrangeiro e opção de nacionalidade. Campinas: Millennium, 2006, p. 9. 81  BARALDI et al, 2011, p. 40. 78 

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a Lei denomina “irregulares” (art. 125, XII). Por fim, também se considera irregular aquele que exerce atividade incompatível com o tipo de autorização que lhe garante seu visto, como, por exemplo, o portador de visto de turista que executa atividade remunerada. São os chamados “impedidos”, conforme texto da Lei nº 6.815/1980 (vide, por exemplo, art. 125, VII)82.

Logo, infelizmente, ao estrangeiro que já possui dificuldades para a obtenção de autorizações e vistos de trabalho, é comum adentrar na situação de irregularidade, seja pela entrada, permanência ou exercício de atividade incompatível. E, na maior parte dos casos, não há possibilidade de regularização posterior à entrada no Brasil, em razão do art. 38 do Estatuto, que dispõe: “Art. 38. É vedada a legalização da estada de clandestino e de irregular, e a transformação em permanente, dos vistos de trânsito, de turista, temporário (artigo 13, itens I a IV e VI) e de cortesia”83. Isso significa que: O imigrante deve estar em posse do visto temporário ou permanente antes de ingressar no território brasileiro. Somente para os nacionais do MERCOSUL e associados existe a possibilidade de regularização e obtenção de residência temporária de 2 anos a qualquer momento e independente da condição em que entrou no país. Além destes, os que possuem filhos ou cônjuge brasileiro podem fazer pedido de reunião familiar e obter residência permanente. Para os que não se enquadram em nenhum destes casos, a única possibilidade de regularização são as anistias ou a saída do país e obtenção de um visto após o cumprimento de todos os requisitos necessários84 [grifei].

Além disso, o Estatuto do Estrangeiro traz, ainda, outras dificuldades ao trabalhador imigrante: as sanções.

5.2 As sanções previstas no Estatuto do Estrangeiro Dentre as sanções previstas no Estatuto, interessa de maneira especial ao objeto do presente estudo a deportação. Conceitua o art. 58 do Estatuto que “a deportação consistirá na saída compulsória do estrangeiro”85. Tal sanção será aplicada: [...] nos casos de entrada ou de estada irregular, sem retirada vo82  83  84  85 

NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid,p. 122. BRASIL. Ibid, 2015b. BARALDI et al, 2011, p. 43. BRASIL. Ibid, 2015b.

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luntária (art. 57). Deporta-se, também, o trabalhador fronteiriço que passe a residir irregularmente no país (art. 21, § 2º), o estrangeiro que tente burlar a inspeção de entrada (art. 24) ou que desempenhe atividade vedada para o tipo de visto que porta (art. 98 e seguintes)86.

Além disso, há a possibilidade de prisão por 60 dias do estrangeiro enquanto não se efetivar a deportação, de acordo com o art. 61 da mesma lei. Conforme já dito, é cediço que o trabalho irregular está intimamente relacionado com abusos de toda sorte. Diante dessa realidade, a previsão da pena de deportação em função do status de irregularidade torna-se mais severa do que parece, pois: O imigrante ilegal encontra-se entre dois problemas igualmente graves: caso denuncie as condições de trabalho irregulares, sofre o risco, quase certo, de deportação ou outra forma de expulsão; se não faz a denúncia, continua a trabalhar em condições degradantes. Ainda que se lhe reconheça o direito a propor ação trabalhista, no Brasil, para buscar receber os valores que lhe foram sonegados, teria que comparecer pessoalmente às audiências agendadas, e sua carência econômica, somada à distância, acabam por impedir o acesso à justiça87.

O empregador dessa mão de obra irregular, além de já se beneficiar do temor do trabalhador explorado em sofrer deportação ao tentar denunciá-lo, também é favorecido pela branda sanção que o Estatuto prevê: Ao empregador que admitir trabalho em condição irregular somente é aplicável uma multa de 30 vezes o maior valor de referência por trabalhador (art. 125, IV), ou seja, uma penalidade completamente desproporcional em função da gravidade da pena de deportação aplicada ao estrangeiro, praticamente sem qualquer efeito repressor diante do baixo valor da multa. O trabalho prestado sem registro em carteira profissional importa em penalidade criminal prevista no art. 337-A do Código Penal, no entanto, como é de amplo conhecimento, são muito raras tais punições88.

NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid, p. 123. SALADINI, Ana Paula Sefrin. Direitos Humanos, Cidadania e o Trabalhador Imigrante Ilegal no Brasil. Revista Direito Unifacs, Salvador, v. 128, p.1-22, 2011. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2015, p. 16. 88  LIMA, Firmino Alves. Ibid,p. 295-296. 86  87 

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Importante esclarecer que, “não se pretende, por óbvio, que não existam sanções migratórias. A crítica que se faz, todavia, é ao tratamento exclusivamente repressor, aliado aos já analisados requisitos para a obtenção de vistos”89 (NICOLI, 2011, p. 124). No que tange às sanções concernentes aos direitos trabalhistas em razão da irregularidade o Estatuto do Estrangeiro é omisso. Por esse motivo, assevera Nicoli que “as sanções que a legislação migratória prevê são adstritas à questão da condição da própria imigração, não se impondo a privação de direitos trabalhistas como forma de punição à irregularidade migratória, ou mesmo política de inibição”. Todavia, tal entendimento não é unânime. Há muita discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da validade dos contratos de emprego celebrados por imigrantes indocumentados, justamente em função da ausência de normatização desse aspecto pelo Estatuto e, também, em razão da primazia do princípio da igualdade e salvaguarda dos direitos trabalhistas pela atual Constituição Federal. Assim, alguns defendem que tais contratos possuem de vício de validade, sendo, portanto, absolutamente nulos. Decisões de tribunais do trabalho nesse sentido não reconhecem o direito ao recebimento de nenhuma verba pelo labor no período. Em outros casos, há o reconhecimento restrito às verbas, porém com exclusão de direitos como o seguro desemprego por se tratar de estrangeiro. Ainda, há aqueles que advogam o pagamento de todos os direitos referentes a todo o período trabalhado, permitindo, inclusive, a continuidade do vínculo, com reconhecimento de relação empregatícia e todas as verbas decorrentes90. Em meio a tais controvérsias permanece prejudicada a proteção trabalhista dos imigrantes em situação de irregularidade e resta demonstrado o descompasso da Lei 6.815/1980 com relação às tendências protetivas da normatização internacional e regional, bem como sua insuficiência para efetivar o Direito do Trabalho e, por conseguinte, promover a dignidade humana de todo e qualquer indivíduo, independente de nacionalidade e da situação jurídica na qual se encontre. Deve-se anotar que, há uma exceção, que consiste na regulação referente ao trabalhador fronteiriço, expressa no art. 21 da Lei 6.815/198091, visto que esta não NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Ibid, p. 124. SALIBA, Graciane Rafisa; RIBEIRO, Márcia Regina Lobato Farneze.  Reconhecimento dos Direitos Trabalhistas dos Imigrantes na Condição de Ilegais: Instrumento de Humanização do Direito e Horizontalização da Justiça. 2012. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2015. 91  Art. 21. Ao natural de país limítrofe, domiciliado em cidade contígua ao território nacional, respeitados os interesses da segurança nacional, poder-se-á permitir a entrada nos municípios fronteiriços a seu respectivo país, desde que apresente prova de identidade. § 1º Ao estrangeiro, referido neste artigo, que pretenda exercer atividade remunerada ou frequentar estabelecimento de ensino naqueles municípios, será fornecido documento especial que o identifique e caracterize a sua condição, e, ainda, Carteira de Trabalho e Previdência Social, quando for o caso. 89  90 

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condiciona o estrangeiro à irregularidade migratória, bem como assegura os direitos trabalhistas, estando de acordo com as disposições internacionais e regionais acerca do tema. Entretanto, é possível concluir que, em geral, o Estatuto do Estrangeiro, no que diz respeito aos direitos do imigrante e a sua tutela trabalhista é, ainda, muito restritivo, em função de conceitos defasados como o da segurança nacional. Assim, Não se verifica na atual legislação qualquer intenção mais destacada de proteção da pessoa humana do estrangeiro no nosso país, muito menos do trabalhador irregular. Ao contrário, a intenção da norma é priorizar o trabalho do nacional sobre o trabalho estrangeiro, encaminhando-o para uma situação de exclusão social, principalmente o irregular, gerando um cenário ideal para violação de direitos humanos de forma sistemática e impune92.

Logo, “esse aparato legal-burocrático, sem razão alguma de persistir nos dias atuais, somente encaminha o trabalhador migrante para uma situação: o ingresso no país para trabalho em situação irregular”93. Isto é, as normas de admissão e as elevadas exigências para a concessão de um visto temporário ou permanente para fins de trabalho praticamente condenam o imigrante à condição de irregularidade, pois este se vê obrigado a burlar as fronteiras políticas do País como única maneira de consolidar sua busca por melhores condições de trabalho e sobrevivência. Paradoxalmente, a inserção do imigrante no mercado informal submete-o a condições laborais degradantes, de modo que mesmo que não haja, no Estatuto, sanções específicas de privação aos direitos trabalhistas, o receio da deportação somado à sua carência econômica impedem-no de gozar dos mesmos. Sobre o assunto, sintetiza Lima94: O sistema legal vigente de admissão do trabalho estrangeiro no Brasil não atende às necessidades de uma política mais humana de tratamento ao trabalhador migrante, com mais permissibilidade e com penalidades maiores e mais efetivas para a exploração do trabalho irregular. Nosso sistema de admissão de trabalho estrangeiro não está adequado a uma política internacional de proteção da pessoa humana do trabalhador migrante. O reiterado reconhecimento dos direitos dos trabalhadores migrantes em di§ 2º Os documentos referidos no parágrafo anterior não conferem o direito de residência no Brasil, nem autorizam o afastamento dos limites territoriais daqueles municípios (BRASIL, 1980). 92  LIMA, Firmino Alves. Ibid,p. 296. 93  LIMA, Firmino Alves. Op. Cit., p. 295. 94  LIMA, Firmino Alves. Ibid,p. 296.

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versos documentos internacionais, de cunho geral ou específico, vem inserir a proteção humana do migrante no rol de direitos humanos que integram uma consciência jurídica universal. [grifo do autor].

Logo, o Estatuto do Estrangeiro precisa ser adequado a fim de favorecer a imigração legal, pois esta é a melhor forma de assegurar os direitos humanos e trabalhistas dos imigrantes, bem como sua integração social, contribuindo para aumentar o caráter globalmente positivo da migração. Afinal, a situação migratória irregular e a existência de mercados de trabalho informais apenas geram condições de tráfico e exploração dos imigrantes95. Por todas essas razões, movimentos em prol dos direitos humanos dos migrantes têm exigido das autoridades a elaboração de uma nova lei de migrações no Brasil. Assim, surgiram algumas propostas como o Projeto de Lei nº 5.655 de 2009, o Projeto de Lei do Senado nº 288/2013 e o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, de 2014. No entanto, para que o Brasil consolide a criação de uma lei mais adequada, tais propostas ainda deverão ser discutidas por um longo período. 6 Considerações Finais Diante da realidade atual de desigualdades intercontinentais, trabalhadores de regiões menos favorecidas encontram na migração internacional a única esperança de uma vida mais digna. Entretanto, para que esta seja concretizada, os direitos dos trabalhadores migrantes devem ser protegidos independentemente de sua situação migratória, o que raramente ocorre. No Brasil, em que pese a relevância social e histórica da migração internacional para o país, o trabalhador migrante que para cá se destina ainda sofre com a associação de sua mão de obra ao trabalho escravo e de menor qualidade. Da análise das convenções internacionais no âmbito da OIT e da ONU, depreende-se que há uma tendência global de regularização do trabalho do imigrante pelo viés dos direitos humanos – sobretudo da não discriminação e da igualdade de oportunidades e de tratamento em relação ao obreiro nacional – em detrimento da primazia da soberania. Assim, as convenções nº 143 da OIT e a Convenção pertinente em âmbito da ONU abarcam, inclusive, a proteção trabalhista ao imigrante indocumentado. No entanto, ambas possuem baixo índice de adesão perante a ordem internacional e ainda não foram ratificadas pelo Brasil. 95 

LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.  Ibid.

Fernanda Almeida Marcon| 195

No âmbito do MERCOSUL, a celebração do Acordo Sobre Residência representa enorme avanço para a questão migratória entre cidadãos do bloco. No entanto, as disparidades existentes entre os mercados de trabalho dos Estados Partes ainda promovem legislações internas restritivas à abertura das fronteiras. Na seara interna, tem-se que a Lei 6.815/1980 ou Estatuto do Estrangeiro, norma elaborada no período da Ditadura Militar no Brasil, promove o fechamento das fronteiras aos trabalhadores estrangeiros de menor qualificação, através do estabelecimento de elevados requisitos de admissão pelas resoluções do CNIg, que complementam o Estatuto. As difíceis exigências de entrada trazidas pelas referidas resoluções, aliadas à inexistência da possibilidade de admissão regular sem contratação prévia, isto é, para a busca de emprego por conta própria no Brasil, bem como à ausência de regularização posterior ao ingresso no país e à estrutura organizacional burocrática e complexa dos órgãos responsáveis pela imigração, criam um cenário em que o trabalhador migrante de baixa qualificação encontra-se fadado à situação de irregularidade. Assim, a concessão de autorizações de trabalho no país predomina radicalmente para estrangeiros de alta qualificação. A Lei 6.815/1980 ainda prevê a deportação como sanção aos indocumentados e, por conseguinte, o imigrante irregular explorado no mercado informal de trabalho se vê privado do exercício de seus direitos, pois corre o risco de ser deportado caso denuncie as condições degradantes de trabalho às quais é submetido. Assim sendo, mesmo que no Estatuto não haja sanções específicas de privação aos direitos trabalhistas em função da irregularidade migratória, o receio da deportação impede o imigrante de exigi-los e, consequentemente, beneficia o empregador irregular, que, “isento” do pagamento dos encargos trabalhistas, vê no tráfico de pessoas o melhor custo-benefício para seus negócios. Logo, ainda que alguns doutrinadores e tribunais defendam a validade dos contratos de trabalho celebrados por imigrantes indocumentados, entende-se que permanece prejudicada a proteção trabalhista dos imigrantes em situação de irregularidade em virtude da ausência de garantias legais expressas nesse sentido, bem como do receio da deportação. Assim, conclui-se pela insuficiência e inadequação da regulação interna atual para efetivar os direitos do trabalhador migrante, sobretudo o Direito do Trabalho e, por conseguinte, promover a dignidade humana de todo e qualquer indivíduo, independente de nacionalidade e situação jurídica. Somente aos estrangeiros que conseguem adentrar regularmente no país é que se assegura o tratamento igualitário em relação aos nacionais, conforme preza a política internacional de proteção da pessoa humana do

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trabalhador migrante. Apesar de já existirem algumas propostas nesse sentido, ainda há muito a ser discutido para que se concretize uma nova lei de migrações no país. Desse modo, a sociedade brasileira segue na espera por uma maior coerência sistêmica em matéria de regularização migratória no ordenamento jurídico pátrio, tanto em relação à Constituição Federal, como quanto às tendências globais de proteção ao trabalhador migrante. REFERÊNCIAS BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; BARBAS, Leandro Moreira Valente. Migração de Trabalhadores para o Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. Conselho Nacional de Imigração. Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012a. Disponível em: < http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC8820135687F345B412D/ RESOLU%C3%87%C3%83O%20NORMATIVA%20N%C2%BA%2097.pdf >. Acesso em: 10 jun. 2015. _______. Conselho Nacional de Imigração. Resolução Normativa nº 99, de 12 de dezembro de 2012b. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. _______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2015a. _______. Estatuto do Estrangeiro: Lei nº 6.815/1980. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2015b. _______. Lei nº 6.964, de 9 de dezembro de 1981. Disponível em: . Acesso em 15 jun. 2015c. _______. MERCOSUL. Saiba mais sobre o MERCOSUL. 2015. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2015d. _______. Ministério do Trabalho e Emprego. Trabalho Escravo no Brasil em Retrospectiva: Referências para estudos e pesquisas. Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2015e. CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasília: Cadernos do Observatório das Migrações Internacionais, 2014. CAVALCANTI, Leonardo; TONHATI, Tânia; OLIVEIRA, Antônio Tadeu (Orgs.) Autorizações concedidas a estrangeiros. Brasília: Relatório, 2015. COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. São Paulo: Saraiva, 2002. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. FREITAS, Vladimir Passos de (Coord). Comentários ao estatuto do estrangeiro e opção de naciona-

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198 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2011. SALADINI, Ana Paula Sefrin. Direitos Humanos, Cidadania e o Trabalhador Imigrante Ilegal no Brasil. Revista Direito Unifacs, Salvador, v. 128, p.1-22, 2011. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2015. SALIBA, Graciane Rafisa; RIBEIRO, Márcia Regina Lobato Farneze. Reconhecimento dos Direitos Trabalhistas dos Imigrantes na Condição de Ilegais: Instrumento de Humanização do Direito e Horizontalização da Justiça. 2012. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2015. VAINER, Carlos B. As Novas Categorias de uma Sociologia dos Deslocamentos Compulsórios e das Restrições Migratórias. In Migrações Internacionais Contribuições para Políticas. CNPD. Brasília: 2001. ZAMBERLAM, Jurandir et al. Desafios das Migrações: Buscando Caminhos. Porto Alegre: Solidus, 2009.

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A Aplicação do Estatuto do Estrangeiro e as Propostas de Novas Leis Migratórias Eduardo de Oliveira Soares Real1 Resumo: O Estatuto do Estrangeiro é a principal legislação do migrante no Brasil. Ele foi instituído pela Lei 6815/80, em pleno Regime Militar, tendo como principal objetivo a segurança nacional e a proteção do trabalhador brasileiro. O presente trabalho aborda os conflitos existentes entre o Estatuto do Estrangeiro em relação a Constituição Federal de 1988 e os tratados de direitos humanos. São analisados no presente trabalho, primeiramente os dispositivos da Lei 6815/80 e os do Decreto 86.715/81(Regulamento do Estatuto do Estrangeiro). Após a análise do estatuto e seu regulamento, são abordados os dispositivos constitucionais e dos tratados de direitos humanos que tratam do migrante. Posteriormente, é verificada a compatibilidade dos dispositivos do estatuto em relação à Carta de 1988 e os tratados de direitos humanos. Também serão abordados no presente trabalho as propostas que atualmente estão sendo discutidas que são: o PL 5655/09, o PLS 288/2013 e o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos do Migrante. A verificação da compatibilidade dos projetos com os tratados de direitos humanos e com a Constituição Federal também será analisada com todos os projetos, a fim de concluir qual a melhor proposta de Lei Migratória para o Brasil. Palavras-chaves: Estrangeiro; Direitos Humanos; Migrante. Abstract: The Foreigner Statute is the main migrant legislation in Brazil. It was established by Law 6815/80, in the military regime, with the primary objective of national security and the protection of Brazilian workers. This paper discusses the conflicts between the Foreigners’ Statutes in relation to the 1988 Federal Constitution and human rights treaties. In this paper first are analyzed the provisions of Law 6815/80 and Decree 86.715/81 (Foreigner Statute Regulation). After analyzing the statute and its regulations, the constitutional text and human rights treaties that deal with migrant devices are considered. Subsequently, it is checked the compatibility of these devices in relation to the 1988 Constitution and human rights treaties. In this study the following proposals currently being discussed will be analyzed: the PL 5655/09, the PLS 288/2013 and the Draft Law on Migration and Promotion of Migrant Rights. The compatibility of these projects with human rights treaties and the Constitution will also be examined on all projects in order to conclude which is the best proposal of Migration Law to Brazil. Key-words: Foreigner; Human Rights; Migrant.

1  Estudante de Direito da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), membro do Grupo de Estudos em Políticas Migratórias e Direitos Humanos (GEMIGRA). E-mail: [email protected].

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1 Introdução Atualmente, os jornais, telejornais e a Internet têm noticiado diversos problemas migratórios no mundo. Vários imigrantes africanos e árabes tem migrado para a Europa, em busca de melhores condições de vida, devido principalmente a crises políticas e econômicas nos seus países de origem. Grande parte destes imigrantes acaba, portanto, realizando imigrações ilegais, conduzidas por “coiotes” que são espécies de atravessadores, que exploram os migrantes para conduzi-los aos seus destinos. Estas travessias ilegais muitas vezes acabam em naufrágio de embarcações e quando conseguem atingir o seu destino acabam sendo presos, expulsos ou deportados devido às polêmicas políticas migratórias europeias. O Brasil nos últimos anos tem recebido grande quantidade de haitianos e senegaleses, porém o Brasil não possui uma política migratória, visto que a aplicação do Estatuto do Estrangeiro na atualidade é muito questionada. Este trabalho busca analisar a aplicação do Estatuto do Estrangeiro nos dias atuais e comparar com os novos projetos de leis migratórias que estão sendo discutidos no Congresso Nacional. Foi utilizado o método de pesquisa bibliográfica, através de livros e artigos, para que fosse atingido o objetivo do presente trabalho. O artigo inicialmente fará uma análise histórica das políticas migratórias brasileiras, desde a época do Império até a promulgação do Estatuto do Estrangeiro em 1980. Concluída a análise histórica, serão tratados todos os institutos, direitos e deveres do estrangeiro previstos no estatuto. A segunda parte tratará da influência dos tratados de direitos humanos e da Constituição Federal de 1988 na política migratória brasileira. Será feita uma análise dos dispositivos da Constituição Federal e dos tratados de direitos humanos que tratam do estrangeiro. Após isto, será verificado a compatibilidade dos dispositivos do atual estatuto em relação a Constituição e aos tratados de direitos humanos, através de opiniões de diversos doutrinadores de direitos humanos. A terceira parte tratará dos projetos de novas leis migratórias que foram apresentados após a Constituição. Analisando as críticas dos doutrinadores acerca das propostas que estão sendo discutidas no Congresso Nacional. 2 Estatuto do Estrangeiro Atual

2.1 Aspectos Históricos A migração é um fenômeno muito presente, atualmente no mundo. Segundo

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a International Organization For Migration2 tem-se que uma em cada 33 pessoas vive em um país diverso do que nasceu. Isto fez com que estes indivíduos contribuissem para a vida social, econômica, cultural dos países. Contudo, quando os países baseiam suas políticas migratórias com base na segurança nacional ao invés de priorizar os direitos humanos, isto acaba gerando graves consequências para os migrantes3. No século XIX, diversos países não adotavam diferenças entre os direitos dos nacionais e os dos estrangeiros4. No Brasil até 1820 a entrada de estrangeiros era praticamente livre, quando se estabeleceu um decreto que determinava a exigência de passaporte de toda pessoa que entrasse no país ou saísse dele. A Constituição de 1824, nada estabeleceu acerca da imigração, pois o art.179 que continha os direitos civis e políticos, abrangia somente os brasileiros. Após a proclamação da República, o Governo Provisório instituiu o Decreto nº 212/1890, revogando a legislação que exigia o passaporte para a entrada no Brasil, em tempos de paz5. A Constituição de 1891 manteve a dispensa do passaporte em tempos de paz conforme disposto no art.72, §10, isto perdurou até 1926 quando por meio de uma revisão constitucional, foi definido que por meio de lei ordinária poderia ser restabelecido a exigência do passaporte6. Na primeira metade do século XX, devido as duas Guerras Mundiais que ocorreram respectivamente entre 1914 à 1918 e entre 1939 à 1945, houve um retrocesso mundial em relação aos direitos do migrante7. No Brasil, a situação não foi diferente, as Constituições de 1934 e de 1937 trazem estas políticas. A primeira estabeleceu um sistema de cotas limitando as correntes migratórias, a 2% do número total de nacionais do país de emigração que haviam imigrado para o Brasil nos últimos cinquenta anos (Art. 121 §6º da CF/34). A segunda era ainda mais rígida, limitando a entrada no país a determinadas raças ou origens (Art. 151 CF/37 c/c Art1º Decreto-lei 406/38). Durante a vigência da CF/37 foi editado o Decreto-lei 383/38 que vedava os direitos políticos dos imigrantes8. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, os direitos humanos começaram a ser fortemente debatidos, para que os terríveis acontecimentos que ocorreram nas Guerras Mundiais não se repetissem. Com isto, é editado o Decreto-lei nº 7967/45, que parece ser um avanço nas políticas migratórias trazendo no Art.1º a seguinte redação: “Todo 2  VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Estatuto do estrangeiro ou lei de imigração. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, p. 14-15, ago. de 2010. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015. 3  VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Op. Cit. . 4  MILESI, Rosita. Por uma nova Lei de Migração: a perspectiva dos Direitos Humanos. Leis e políticas migratórias: o desafio dos direitos humanos. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2015. 5  FRAGA, Mirtô. O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. 6  FRAGA, Mirtô. Ibid. 7  MILESI, Rosita. Ibid. 8  MILESI, Rosita. Ibid.

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estrangeiro poderá entrar no Brasil, desde que satisfaça as condições da desta lei”. Porém, não podemos considerá-lo bom, pois dispõe que é necessário preservar as características mais convenientes de sua ascendência europeia, discriminando os imigrantes não europeus, mas traz uma política migratória melhor que a do Decreto-lei 406/389. O primeiro Estatuto do Estrangeiro surge com o Decreto-lei 941/69, sendo regulamentado pelo Decreto 66.689/70. É importante ressaltar que este estatuto foi editado na época do Regime Militar, período em que a prioridade era a segurança nacional, podendo o alto comando, por livre arbítrio, mudar as normas de ingresso dos imigrantes ao território nacional. Ainda durante o Regime Militar, foi editada a Lei 6815/80 trazendo o atual Estatuto do Estrangeiro, possuindo como prioridade a segurança nacional, a organização institucional, os interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil, assim como a defesa do trabalhador nacional nos termos do seu art.2º10. O objetivo do Estatuto do Estrangeiro em 1980, era combater principalmente os imigrantes de origem de países socialistas como a União Soviética e Cuba. O governo brasileiro acreditava na época, que a finalidade da vinda deles para o Brasil era a subversão da ordem nacional e que influenciariam o Brasil a se tornar um país socialista11.

2.2 O Atual Estatuto Segundo Mirtô Fraga, estrangeiro é toda pessoa que não possui nacionalidade do território em que se encontra12. O Estatuto do Estrangeiro13 trata nos seus três primeiros dispositivos da sua aplicação, trazendo como prioridade a segurança nacional e a defesa do trabalhador brasileiro (art.2º), condicionando a concessão de visto, sua prorrogação ou a sua transformação aos interesses nacionais (art.3º) e vedando a entrada ou permanência de estrangeiro em tempo de guerra (art.1º). 2.2.1 Da admissão do estrangeiro no Brasil O Estatuto dispõe que para que algum estrangeiro seja admitido no país é MILESI, Rosita. Op. Cit. . MILESI, Rosita. Op. Cit. 11  MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da ditadura militar no Brasil. Rev. Bras. Hist. Vol. 17 nº 34. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2015. 12  FRAGA, Mirtô. Ibid. 13  BRASIL. Estatuto do Estrangeiro – Lei nº 6815 de 19 de agosto de 1980. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013a. 9 

10 

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necessário que possua o visto em regra, o Ministério das Relações Exteriores traz uma tabela com os países que possuem dispensa ou isenção de vistos. Segundo Mirtô Fraga14: “Visto é uma autorização de ingresso no País, sem, entretanto, constituir garantia de entrada”. O art. 4º traz sete espécies de visto, são os seguintes: de trânsito, de turista, temporário, permanente, de cortesia, oficial e diplomático. É importante ressaltar que o visto é mera expectativa de direito, podendo ser o imigrante impedido de entrar no país se for constatado que o visto foi concedido de modo irregular (art.7º da Lei 6815/80), ou se o Ministério da Justiça acreditar que a sua presença em território brasileiro é inconveniente. O visto de trânsito poderá ser concedido ao estrangeiro que para atingir o país destino, necessite entrar em território nacional (art.8º caput). Para obter visto de trânsito, o estrangeiro deve apresentar (art.15 Decreto nº 86.715/81): passaporte ou documento equivalente, certificado internacional de imunização quando necessário e bilhete de viagem para o país destino. Ele terá validade para uma estada de 10 dias improrrogáveis e uma só entrada (art.8º §1º). O visto de trânsito não será exigido do estrangeiro em viagem contínua que só se interrompa em escalas obrigatórias do meio de transporte utilizado. O visto de turista poderá ser concedido ao estrangeiro que venha ao Brasil em caráter de visita, desde que não tenha finalidade imigratória, nem intuito de exercício de atividade remunerada (art. 9º). Poderá ser dispensada a exigência de visto, ao turista nacional de país que dispense ao brasileiro, tratamento idêntico (art. 10, caput), a reciprocidade referida será estabelecida em acordo internacional que observará o prazo de turista fixada nesta Lei (art.10 Parágrafo Único). Para obter o visto de turista o estrangeiro deve apresentar (art.17 Decreto 86.715/81): passaporte ou documento equivalente, certificado internacional de imunização quando necessário e prova de meios de subsistência ou bilhete de viagem que o habilite a entrar no território nacional e dele sair. O turista isento de visto deverá apresentar no momento da entrada no território nacional (art.20 Regulamento): passaporte, documento equivalente ou carteira de identidade, esta quando admitida. O prazo de validade do visto de turista será de até 5 anos, fixado pelo Ministério das Relações Exteriores, dentro dos critérios de reciprocidade e proporcionará múltiplas entradas no país, com estadas não superiores a 90 dias, prorrogáveis por igual período, totalizando o máximo de 180 dias por ano. O visto temporário poderá ser concedido ao estrangeiro que pretenda vir ao Brasil (art.13 caput): em viagem cultural ou em missão de estudos (art.13 I), em viagem de negócios (art.13 II), na condição de artista ou desportista (art.13 III), na condição 14 

FRAGA, Mirtô. Ibid.

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de estudante (art.13 IV), na condição de cientista, professor, técnico ou profissional de outra categoria, sob regime de contrato ou a serviço do Governo brasileiro (art.13 V), na condição de correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agência noticiosa estrangeira (art. 13 VI) e na condição de ministro de confissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação ou ordem religiosa (art.13 VII). Para obter o visto temporário o estrangeiro deve apresentar (art 23 Regulamento): passaporte ou documento equivalente, certificado internacional de imunização, quando necessário, prova de meios de subsistência e atestado de antecedentes penais ou documento equivalente, este a critério da autoridade consular. Os prazos de estada no Brasil, nos casos dos incisos II e III do art.13, será de até 90 dias, no caso do inciso VII, de até 1 ano e nos demais, salvo no caso do item IV que o prazo será de até 1 ano prorrogável, quando for o caso, mediante prova de aproveitamento escolar e da matrícula, o correspondente a duração da missão, do contrato, ou da prestação de serviços comprovada perante a autoridade consular, observado o disposto na legislação trabalhista (art. 14 caput e Parágrafo único). O visto de permanente poderá ser concedido ao estrangeiro que pretenda se fixar definitivamente no Brasil (art.16 caput), sendo que a imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão de obra especializada, aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os seus aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos (art.16 Parágrafo único). Para obter o visto permanente o estrangeiro deverá satisfazer as exigências de caráter especial, previstas nas normas de seleção de imigrantes, estabelecidas pelo Conselho Nacional de Imigração, e apresentar (art 27 do Regulamento): passaporte ou documento equivalente, certificado internacional de imunização, quando necessário, atestado de antecedentes penais ou documento equivalente, a critério da autoridade consular, prova de residência, certidão de nascimento ou de casamento e contrato de trabalho visado pela Secretaria de Imigração do Ministério do Trabalho. O Conselho Nacional de Imigração a que o Regulamento se refere foi instituído pelo Estatuto do Estrangeiro e é responsável pela política migratória brasileira. O Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) no seu Dossiê Especial “A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro” conceitua o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) como sendo: Um órgão colegiado quadripartite, composto por 20 representantes divididos entre Governo Federal, Trabalhadores, Empregadores e Sociedade Civil. São representantes do Governo: o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Ministério da Justiça

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(MJ), o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Ministério da Ciência e Tecnologia, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), o Ministério da Saúde (MS), O Ministério da Educação (MEC) e o Ministério do Turismo (MTUR). São representantes dos trabalhadores: a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Força Sindical (FS) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT). São representantes dos empregadores: a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional do Comércio (CNC), e a Confederação Nacional dos Transportes (CNT). É representante da Comunidade Científica e Tecnológica: a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)15.

O OBMigra afirma que o Conselho Nacional de Imigração instituído pela Lei 6815/80, está vinculado ao MTE desde 1993, contando com o apoio da Coordenação Geral de Imigração (CGIg) que é uma unidade administrativa do MTE e sua principal tarefa é executar uma parte da política migratória, estabelecida pelo CNIg e relacionada às autorizações de trabalho para estrangeiros, cabendo a CGIg a decisão sobre estas solicitações. Dentre suas funções, o CNIg é responsável por formular a política migratória brasileira, a partir da normatização das questões migratórias e edição das Resoluções Normativas endereçadas a três Ministérios: Trabalho e Emprego, Justiça e Relações Exteriores16. Em 2012 o CNIg editou a Resolução Normativa nº 97 que dispõe sobre a concessão de visto permanente do art.16 da Lei 6815/80 a nacionais do Haiti, por razões humanitárias, condicionada ao prazo de 5 cinco anos, nos termos do art. 18 desta mesma Lei, circunstância que constará na Cédula de Identidade do Estrangeiro (art.1º caput RN nº 97). A Resolução Normativa nº97 considerou razões humanitárias, aquelas que resultaram no agravamento das condições de vida da população haitiana, em face do terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010 (art1º Parágrafo único). A competência da concessão deste visto é do Ministério das Relações Exteriores (art 2º). É necessário para a concessão desse visto que o haitiano comprove a situação laboral para fins de convalidação de permanência no Brasil e expedição de nova Cédula de Identidade do Estrangeiro (art.3º). O referido visto ficou conhecido como humanitário. A concessão de visto permanente poderá ficar condicionada, por prazo não superior a 5 anos, ao exercício de atividade certa e à fixação em região determinada do CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Cadernos OBMigra, Ed. Especial, Brasília, 2015, p. 12. 16  CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). Op. Cit. . 15 

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território nacional (art 18 do Estatuto do Estrangeiro). O visto oficial poderá ser concedido a autoridades e funcionários estrangeiros e de organismos internacionais que viajem ao Brasil em missão oficial de caráter transitório ou permanente17. O visto diplomático poderá ser concedido a autoridades e funcionários estrangeiros de missões diplomáticas ou repartições consulares estrangeiras acreditadas junto ao Governo Brasileiro e de organismos internacionais que tenham status diplomático e viajem ao Brasil em missão diplomática. Os vistos oficiais e diplomáticos poderão ser concedidos ao cônjuge ou companheiro do interessado e aos descendentes do casal, desde que menores de 21 anos, para fins de reunião familiar18. Aos demais dependentes do interessado e os seus serviçais, pode ser autorizada a entrada em território nacional através do visto de cortesia19. A competência para prever as situações em que os vistos de cortesia, oficiais e diplomáticos poderão ser concedidos, prorrogados ou dispensados, bem como para estabelecer os seus requisitos será do Ministério das Relações Exteriores. A entrada no Brasil somente poderá ser realizada pelos locais em que houver os órgãos fiscalizadores do Ministério da Justiça, do Ministério da Fazenda e do Ministério da Saúde (art.22). O estrangeiro que estiver na condição de permanente, de temporário ou asilado é obrigado a registrar-se no Ministério da Justiça, dentro dos 30 dias seguintes à entrada ou concessão do asilo e identificar-se pelo sistema datiloscópico (art.30). A estada do estrangeiro temporário, turista, asilados e os titulares de visto de cortesia poderão ter a prorrogação do prazo de estada. A Lei 6815/80 traz hipóteses de transformação do visto temporário do Art.13 V e VII em visto permanente (art.37). O art. 38 desta Lei veda a legalização da estada de clandestino e de irregular e a transformação do visto de permanente em visto de turista, temporário, de trânsito e de cortesia. Clandestino é o imigrante que entra no território nacional sem estar autorizado, não pode obter visto pois este é concedido no exterior, não pode obter prorrogação de prazo, porque não lhe foi concedido nenhum e não pode requerer transformação, pois não tem visto a ser transformado20. Irregular é o imigrante que permanece no território nacional, esgotado o prazo legal de estada. Este possuiria o direito de prorrogar a sua estada ou de transforFREITAS, Vladimir Passos de. Comentários ao Estatuto do Estrangeiro e Opção de Nacionalidade. Campinas: Millennium, 2006. 18  FREITAS, Vladimir Passos de. Op. Cit. 19  FREITAS, Vladimir Passos de. Op. Cit. 20  FRAGA, Mirtô. Ibid, p. 121. 17 

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mar seu visto, se não tivesse esgotado o prazo legal previsto no seu visto21.

O art.39 diz que o visto diplomático pode ser transformado em temporário ou permanente desde que ouvido Ministério das Relações Exteriores e respeitada da lei, os benefícios do visto diplomático serão perdidos após a sua transformação. O Estatuto regulamenta a saída e o retorno, nesta hipótese regra geral, dispensa-se o visto para quem quiser sair do país, porém se houver motivos de segurança o Ministro da Justiça poderá determinar que o visto de saída seja exigido (art.50). 2.2.2 Dos direitos e restrições O Título X do Estatuto do Estrangeiro trata dos direitos e deveres do estrangeiro, o art.95 prevê que o estrangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros nos termos da Constituição e das leis. Porém, podemos observar que o restante dos artigos deste título trazem uma série de restrições. Entres estes artigos, talvez o art.107 seja um dos mais polêmicos. Pois este, veda os direitos políticos ao estrangeiro (art. 107 caput), não sendo permitido ao imigrante: criar sociedades de caráter político ainda que seja apenas para propaganda, exclusivamente entre compatriotas, de ideias, programas ou normas de ação de partido político do país de origem (art. 107 I), exercer ação individual, junto a compatriotas ou não, no sentido de obter, mediante coação ou constrangimento de qualquer natureza, adesão a ideias, programas ou normas de ação de partidos ou facções políticas de qualquer país (art. 107 II), organizar desfiles, passeatas, comícios ou reuniões de qualquer natureza, ou deles participar com os fins a que se referem os itens I e II deste artigo ( art.107 III). Aos portugueses beneficiários do Estatuto de Igualdade e que tiverem seus direitos políticos reconhecidos, não se aplica o disposto no caput deste artigo (art.107 Parágrafo Único). O Título XI da Lei 6815/80 trata da naturalização, sendo a concessão nos termos do Estatuto do Estrangeiro, faculdade exclusiva do Poder Executivo e far-se-á mediante portaria do Ministro da Justiça (Art. 111).22

21  22 

FRAGA, Mirtô. Op. Cit., p. 121. A naturalização não será tratada aqui, pois este trabalho busca tratar da situação do imigrante no Brasil.

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3 Tratamento Reservado ao Migrante na Constituição Federal de 1988 e nos Tratados de Direitos Humanos

3.1 Constituição Federal de 1988 Após o fim da Ditadura Militar, com a redemocratização, surgiu a necessidade de uma nova Constituição, pois a vigente na época havia surgido em 1967, em pleno Regime Militar, período em que a prioridade no país era a segurança nacional. Então no dia 5 de outubro de 1988 surgia a nova Constituição Federal. Esta, estava norteada por princípios e valores fundamentados no respeito à dignidade humana (art.1º III), à cidadania (art.1ºII) e na prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (art.4º II). Ela trouxe entre seus objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa e solidária (art.3º I) e promover o bem de todos, sem preconceito origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3º IV), contudo para a política migratória brasileira, o mais importante é o artigo 5º caput que traz a seguinte redação: Todos são iguais perante à lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,à igualdade, à segurança e a propriedade nos termos seguintes (...).

Segundo Rosita Milesi23 a promulgação da atual Constituição deixaria, portanto, o Estatuto do Estrangeiro sem qualquer base constitucional para sustentá-lo. 3.1.1 A dignidade humana Kant24 na sua obra intitulada a Metafísica dos Costumes ele traz o seguinte conceito de dignidade: No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não tem um equivalente, então tem uma dignidade. MILESI, Rosita. Ibid. KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003. Disponível em: . Acesso em: 3 de ago. 2015. 23  24 

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A Constituição no seu art.1º III garantiu que todas as pessoas tem dignidade. Segundo José Afonso da Silva: “A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”25. O STF concedeu uma ordem para que não fosse substituído a pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos a um estrangeiro não residente no país. Inicialmente o STF entendeu que o fato do estrangeiro não possuir domicílio, não afastaria por si só, o benefício da substituição da pena.(...), pois o art.5º caput não deveria ser interpretado de forma literal, pois por esta interpretação, o estrangeiro não residente no país não estaria protegido pelos direitos e garantias fundamentais e isso não ocorrendo há violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (art.1ºIII CF) ( HC 94.477, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 6/9/2011, Segunda Turma26). 3.1.2 A cidadania Segundo José Afonso da Silva (2012) a cidadania referida no art.1º II da Constituição, vai além do conceito da pessoa que possui direitos políticos, considerando cidadão o participante da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa reconhecida na sociedade estatal (art.5º LXXVII CF/88). Isto significa que o funcionamento do Estado está submetido à vontade popular. Portanto, podemos vincular a cidadania com o conceito de soberania popular (art.1º Paragráfo único CF/88), com o de direitos políticos (art.14 CF/88) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art.1º III CF/88), com os objetivos da educação (art.205), como base e meta essencial do regime democrático27. A Constituição brasileira, considera tanto os nacionais como os estrangeiros como cidadãos, porém a cidadania do primeiro é exercida de maneira mais plena que a do segundo. Pois certos atos de cidadania só cabem aos brasileiros, como o direito de votar e ser votado, salvo o português beneficiado pelo Estatuto de Igualdade. Porém, poderá estrangeiro, por exemplo: requerer informações dos órgãos públicos do seu interesse particular ou de interesse coletivo (art.5º XXXIII) e peticionar ao Poder Público em defesa de seus direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (art.5º XXXIV, a) entre outros. A Lei 9265/96 regulamenta os atos de cidadania gratuitos previstos no art.5º LXXVII da CF/88. Em posição contrária, Cristiane Lopes (2009) afirma que o conceito de cidaSILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 105. 26  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A Constituição e o Supremo. 4ª ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2015. 27  SILVA, José Afonso da. Ibid. 25 

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dão no Brasil é a pessoa portadora de título eleitoral, pois o art.1º §3º da Lei da Ação Popular (Lei 4717/65), dispõe que a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou documento a que ele corresponde. Como o imigrante não possui direitos políticos, logo não possui título eleitoral, portanto não poderá ser considerado cidadão.

3.2 Tratados de Direitos Humanos A Constituição Federal prevê no art.5º §2º que os direitos e garantias previstos nela, não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Sendo assim, o Estatuto do Estrangeiro necessita respeitar também os direitos e garantias fundamentais, previstos nos tratados de direitos humanos, já que estes tem pelo menos força supralegal segundo o STF (RE 349703), salvo os referidos no art.5º §3º que terão força de emenda constitucional. A Constituição Federal no seu art.4º II assegura a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais. O Estatuto do Estrangeiro contraria claramente este princípio constitucional, já no seu art.2º, pois este diz que atenderá precipuamente a segurança nacional. Dentre os tratados de direitos humanos28 que o Brasil faz parte optou-se por trabalhar com os seguintes: a Declaração Universal dos Direitos Humanos29, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Escolheu-se trabalhar com estes tratados, pois doutrinadores de direitos humanos como Deisy Ventura e Rosita Milesi analisam o Estatuto do Estrangeiro através deles. 3.2.1 A Declaração Universal de Direitos Humanos A Declaração Universal de Direitos Humanos foi apresentada em 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas. Com o objetivo de garantir os direitos humanos a todas as pessoas, para que as catástrofes que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial não se repetissem, conforme prevê o preâmbulo da declaração (Resolução A Convenção para a Proteção de todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares também é um tratado de direitos humanos, porém ainda não foi ratificada pelo Brasil. 29  A Declaração Universal de Direitos Humanos não é um tratado de direitos humanos, mas uma resolução da ONU. 28 

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217-A/48 da Organização das Nações Unidas)30. A Declaração Universal de Direitos Humanos se diferencia das declarações anteriores a ela, pois foi a primeira a garantir a todos os direitos sociais, econômicos e culturais, enquanto as outras tratavam apenas de direitos civis e políticos (CASTILHO, 2013). A partir dela, surgiram tratados para esclarecer como os direitos previstos na declaração seriam exercidos, temos como exemplo: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica). A Declaração Universal de Direitos Humanos afirma no seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...) e que os estados-membros se comprometem a promover em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais” (Resolução 217-A de 1948 da Organização das Nações Unidas31). O Artigo XIII, prevê que todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado e tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar. O Artigo XV assegura a toda pessoa o direito a uma nacionalidade e de não ser privado arbitrariamente de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade (Resolução 217-A de 1948 da Organização das Nações Unidas)32. 3.2.2 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos O Pacto Internacional de Direitos Civis foi assinado na ONU em 1966. Contudo, o Brasil o incluiu na sua legislação somente em 1992. Isto se deu, porque o Brasil encontrava-se em plena Ditadura Militar (1964-1985) que era um regime autoritário e que, portanto, não possuía interesse em tratados de direitos humanos. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, levando em consideração os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento a dignidade inerente a todos os membros da família humana, e dos seus direitos iguais e inalienáveis em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promove a proteção dos direitos civis e políticos em consonância com o novo paradigma de Direitos Humanos. O art.12 fala que toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado terá o direito de nele livremente circular e escolher sua residência e terá o direito 30  ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos – Resolução 217- H/48. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013. 31  MILESI, Rosita. Ibid. 32  MILESI, Rosita. Op. Cit..

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de sair livremente de qualquer país, inclusive do seu próprio país (Decreto 592/1992)33. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos veda a distinção entre os cidadãos, de modo que tanto o cidadão nacional como o estrangeiro tem de possuir os mesmos direitos (art. 25 c/c art.2º), neste aspecto o Estatuto do Estrangeiro contraria este tratado, pois traz esta distinção quando veda os direitos políticos do cidadão estrangeiro (art.107 do Estatuto do Estrangeiro). 3.2.3 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) A Convenção Americana de Direitos Humanos foi assinada em 1969 na cidade de São José, capital da Costa Rica. Contudo, o Brasil a incorporou no seu ordenamento jurídico somente em 1992 pelos mesmos motivos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. O Pacto de São José da Costa Rica criou um novo paradigma dos direitos humanos dispondo no seu preâmbulo que: Os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ela ser nacional de determinado estado, mas sim de ter como fundamento os atributos da pessoa humana razão porque justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos estados americanos (Decreto 678/1992)34.

O Pacto de São José da Costa Rica no seu art.2235, dispõe que: Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais (§1º), assim como dele sair (§2º), sendo vedada a expulsão do estrangeiro sem fundamento legal (§6º).

3.2.4 Convenção Internacional para Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes seus Familiares A Convenção Internacional para Proteção dos Direitos de todos os TrabalhaMILESI, Rosita. Ibid. MILESI, Rosita. Op. Cit. 35  BRASIL. Pacto de São José da Costa Rica – Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013c. 33  34 

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dores Migrantes seus Familiares foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1990, defende e protege os direitos dos trabalhadores migrantes e membros de suas famílias, que abre um novo capítulo na história das migrações internacionais, reconhecendo e protegendo sua dignidade independentemente da condição migratória36. Deisy Ventura e Paulo Illes criticam o fato do Brasil não ter incorporado este tratado até hoje, no seu ordenamento jurídico e manter o atual Estatuto do Estrangeiro que segundo eles é um florão da Guerra Fria e um legado amargo do regime militar37.

3.3 Estatuto do Estrangeiro x Constituição Federal e Tratados de Direitos Humanos A Constituição Federal estabelece como regra a igualdade, portanto não se poderia restringir as liberdades de manifestação de pensamento (art.5º, IV), de expressão de atividade intelectual ou comunicação (art.5º, IX), reunião pacífica (art.5º, XVI) associação para fins lícitos (art.5º, XVII), sem um bom argumento. Entende-se que alguns dispositivos do Estatuto do Estrangeiro ofendem as garantias constitucionais referidas38. As restrições aos direitos fundamentais dos estrangeiros devem respeitar os direitos humanos, os valores de reciprocidade da comunidade internacional, a proibição do retrocesso histórico, a razoabilidade, a proporcionalidade e o direito ao pertencimento de todo cidadão do mundo. Através destes argumentos, a restrição ao direito fundamental ao trabalho do estrangeiro tem sido frequentemente justificada, pois o trabalho é um bem escasso na atualidade e a maioria dos países deseja garantir este direito primeiramente ao nacional. Cristiane Lopes defende que esta justificativa é político-econômica razoável para a formulação de restrições legais ao direito fundamental ao trabalho do estrangeiro, contudo na hipótese das restrições ao direito de reunião, associação, manifestação, sindicalização e greve, ela afirma que não existem razões político-econômicas que justifiquem, validamente quaisquer restrições39. Há de ser reconhecido que a justificativa das restrições aos direitos referidos é condenável, pois visa o desejo de permanência no poder e a eliminação de dissidências

MILESI, Rosita. Ibid. VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Ibid. 38  LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito de Imigração O Estatuto do Estrangeiro em uma Perspectiva de Direitos Humanos. Porto Alegre: Nuris Fabris, 2009. 39  LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Ibid. 36  37 

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políticas40. O Código de Bustamante41 no seu art.1º estabeleceu que: “a concessão de direitos civis independe da nacionalidade”, o mesmo estabelece o art.22 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. A Convenção Internacional para Proteção de todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares, ainda não ratificada pelo Brasil também garante expressamente o direito de reunião e ampla participação nas atividades sindicais por parte dos trabalhadores migrantes (art.26)42. Devemos, portanto, considerar inconstitucional o inciso VII do art.106 da Lei 6815/80, que veda o estrangeiro participar da administração ou representação de sindicato ou associação profissional, bem como de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada. Esta proibição era justificável na época em que foi instituído a Lei 6815/80. Segundo Cristiane Lopes43, as demais proibições do art.106 podem ser justificadas em uma sociedade democrática, no interesse da segurança nacional. O art.107 do Estatuto do Estrangeiro, é mais um dispositivo que perdeu sua fundamentação, pois veda o direito de associação política44. Este dispositivo também contraria o art.17 da Constituição Federal estipulou a liberdade partidária, e na sua redação não há restrição do estrangeiro dela participar, além de contrariar o art.5º IV que assegura a todos a livre manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato45. O art.108 da Lei 6815/80, traz as hipóteses das associações que o estrangeiro poderá participar, são elas: “as que possuírem fins culturais, religiosos, recreativos, beneficientes ou de assistência, clubes sociais e desportivos”. Este artigo também traz a única hipótese de permissão de associação política, que é na hipótese de participar de reunião comemorativa de datas nacionais ou acontecimentos de significação patriótica. O art.19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos também trata da liberdade de expressão, afirmando que: “(...) Este direito compreende liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda espécie, sem consideração de fronteiras(...)”. Podemos perceber que o rol das restrições políticas, estabelecidas pelo Estatuto do Estrangeiro é muito maior que o previsto na Constituição que proíbe apenas o direito de votar e ser votado. A vedação ao direito ao sufrágio ativo e passivo aos imigrantes é tradicional na legislação constitucional brasileira. As Constituições de 1934,1937,1946 e 1967, esta40  41  42  43  44  45 

LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Op. Cit. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Op. Cit. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Op. Cit. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Op. Cit. A redação do art.107 se encontra no Capítulo anterior. FREITAS, Vladimir Passos de. Ibid.

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beleceram que para ser eleitor é preciso ser brasileiro, maior de 18 anos, e estar alistado eleitoralmente. A Carta de 1891, apesar de ser considerada inclusiva em relação aos imigrantes, ela trazia que os direitos políticos só poderiam ser exercidos pelo cidadão46. O mundo de modo geral possuía sem problemas as restrições ao direito ao sufrágio ativo e passivo, o Código de Bustamante reconhece esta restrição também, contudo isto mudou com as migrações em tempos de paz, e hoje muitos países concedem o direito de votar e ser votado ao imigrante47. No século XX o conceito de cidadania passou por modificações significativas. Contudo, o Brasil segundo Cristiane Lopes48 mantém um critério jurídico-formal que para ela é uma concepção simplista, pois traz a ideia de ou se é ou se não é cidadão. Esta concepção leva a discriminação, pois cria esta divisão em cidadãos e não-cidadãos. Sendo assim, o Brasil deveria alterar a redação do art.14 da Constituição Federal, para permitir aos estrangeiros residentes no país que restão no Brasil a um determinado tempo, que exerçam o direito de votar e ser votado49. Há uma campanha, chamada “Aqui Vivo, Aqui Voto” que surgiu em 30/03/2014 organizada pelo Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil que busca a alteração da Constituição, para que o imigrante tenha direitos políticos, para atingir a cidadania plena. Acredita-se que o fato de os migrantes não terem direito ao sufrágio ativo e passivo, faz com que os nacionais “falem” por eles e isto como já referimos foi superado por diversos países, sendo a lei brasileira ultrapassada neste aspecto. 4 Projetos de Novas Leis Migratórias

4.1 Aspectos Históricos Como já referido no item anterior, o fim da Ditadura Militar e a promulgação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988, fizeram com que surgisse necessidade de um novo Estatuto do Estrangeiro já que o vigente não era mais compatível com a nova Constituição Federal, nem com os tratados de direitos humanos que o Brasil passou a incluir no seu ordenamento jurídico a partir da década de 1990, como o Pacto de São José da Costa Rica e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso enviou ao Congresso Nacional, na época em que exercia o referido cargo, a proposta de uma Nova 46  47  48  49 

LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Ibid. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Op. Cit. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Op. Cit. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Op. Cit.

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Lei Migratória, contudo o Projeto de Lei ficou parado durante muitos anos, recebeu dezenas de emendas, e acabou sendo retirado. Entretanto, o CNIg vem formulando a política de imigração e opinando sobre alteração da legislação relativa a imigração50. Recentemente o CNIg, por meio de suas portarias e resoluções, tem procurado criar uma política migratória mais protetiva51, como exemplo temos a Resolução Normativa nº 97/2012 que cria o visto de permanência por razões humanitárias à população haitiana. Em setembro de 2005, por iniciativa do Governo Federal, uma versão inicial de anteprojeto para uma Nova Lei Migratória foi colocada para consulta pública. Na ocasião, foi instituído um grupo de trabalho reunindo a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e mais 16 instituições de estudo e apoio a migrantes. Após isto, o processo parou por 4 anos. Foi apenas em 2009 que a negociação pelo texto do projeto de lei foi retomada52.

4.2 Projeto de Lei 5655/200953 Em 20/07/2009 o Projeto de Lei 5655 foi encaminhado ao Congresso Nacional, acompanhada de uma Exposição de Motivos assinada pelo Ministro Tarso Genro que afirma que, enquanto o atual Estatuto do Estrangeiro tem como base a segurança nacional, na proposta do Governo “ a migração é tratada como direito do homem” e “a regularização migratória é o caminho mais viável para inserção do imigrante na sociedade”. Acerca da consulta pública, afirma que “as mensagens com sugestões foram todas, cuidadosamente analisadas, algumas delas acatadas na íntegra e outras adaptadas à realidade legal e fática54 . Deisy Ventura e Paulo Illes discordam desta afirmação feita pelo Ministro Tarso Genro, pois em primeiro lugar afirmam que o PL 5655/2009, não é a tradução jurídica da Política Nacional de Imigração, pois o Ministério da Justiça insiste em editar uma nova lei de “estrangeiros”, enquanto o CNIg visa ao “trabalhador migrante”. Em segundo lugar ainda que o referido projeto, contenha de fato alguns avanços, como a supressão da referência à segurança nacional, impressionam tanto o viés burocrático como o ranço autoritário do PL 5655/0955. Rosita Milesi afirma que, o Brasil não tem uma lei migratória, mas uma lei de SPRANDEL, Marcia Anita. Políticas Migratórias no Brasil no século XXI. Seminário Internacional Desigualdades e Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2015. 51  SPRANDEL, Marcia Anita. Op. Cit. 52  SPRANDEL, Marcia Anita. Op. Cit. 53  BRASIL. Projeto de Lei nº 5655 de 20 de julho de 2009. Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015b. 54  SPRANDEL, Marcia Anita. Ibid. 55  VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Ibid. 50 

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estrangeiros, promulgada em 1980 em plena Ditadura Militar. Segundo ela, a palavra estrangeiro reforça o conceito de alienação, de estranho, afastando a ideia de concepção de proximidade, de família universal formada por seres da mesma espécie humana, de solidariedade, de dignidade e respeito aos direitos humanos56. O PL 5655/2009 mantém em pleno regime democrático, a vedação dos direitos políticos aos migrantes (art.8º), salvo os portugueses sujeitos ao Estatuto de Igualdade regulamentado pelo Tratado de Amizade57. O prazo de residência ininterrupta para adquirir a naturalização que é atualmente de 4 anos (art.112 da Lei 6815/80), passaria a ser de 10 anos (art.87 PL 5655/09). Apesar de as rádios comunitárias serem importantes para os imigrantes, continuaria não sendo permitido eles serem proprietários de empresas jornalísticas e de radiodifusão, bem como ser responsável pelo conteúdo editorial e atividades de seleção e direção da programação veiculada em qualquer meio de comunicação social (art.7º II e III do PL 5655/2009)58. O Fórum Social pela Integração e Direitos Humanos dos Migrantes no Brasil entende que no projeto, os procedimentos administrativos continuam extremamente burocratizados e o interesse e a segurança nacional ainda prevalecem sobre os direitos humanos. Eles acreditam também que é necessário a criação de um órgão civil responsável pelas políticas migratórias e um serviço público de imigração, ao invés da Polícia Federal exercer esta função59. Em maio de 2010, sob a coordenação do CNIg, reuniram-se representantes do governo, acadêmicos, centrais sindicais de empregadores e trabalhadores e a sociedade civil para apresentar, a “Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador Migrante”, porém o texto da política não foi sancionado, pois o Ministério da Justiça quis reexaminar o texto60. Em maio de 2012, no Rio de Janeiro foi apresentado o seminário “O Direito dos Migrantes no Brasil”, promovido pelos Ministérios: do Trabalho e Emprego, das Relações Exteriores, e da Justiça. O subtítulo do seminário era “O Novo Estatuto do Estrangeiro como uma Lei de Migração”. O seminário reuniu os três ministérios de mérito, a fim de desenvolver políticas públicas de migração; reuniu basicamente todos os setores do governo, sociedade civil e academia interessados no tema e debateu o PL 5655/09. No final da apresentação o próprio governo convenceu-se que o texto do projeto não era o ideal61. 56  57  58  59  60  61 

MILESI, Rosita. Ibid. VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Ibid. VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Op. Cit. SPRANDEL, Marcia Anita. Ibid. SPRANDEL, Marcia Anita. Ibid. SPRANDEL, Marcia Anita. Op. Cit.

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4.3 Projeto de Lei do Senado 288/201362 Em 2013 foi apresentado pelo Senado Federal o PLS nº 288/2013 que institui a Lei de Migração. O projeto apresentou nas justificativas que seu objetivo não é criar um novo Estatuto do Estrangeiro, mas reformar o modelo atual que “define a situação jurídica do estrangeiro e institui o Conselho Nacional de Imigração”. Como já foi referido anteriormente, o fato de a lei atual regulamentar a situação do estrangeiro no Brasil, ainda é um resquício da Ditadura Militar. Pois o termo estrangeiro, segundo a justificativa do projeto nos remete a ideia de um perigo externo, sendo assim o PLS nº 288/2013 institui a Lei de Migração e regula a entrada e estada de migrantes no Brasil. O projeto então passaria a ter como objetivo principal tratar do migrante e não mais do estrangeiro. Segundo a proposta: “imigrante é todo estrangeiro que transite, trabalhe ou resida e se estabeleça transitória, temporária ou definitivamente no país” (art.1º §1º). O projeto traz o direito do migrante de associar-se e reunir-se livremente para fins lícitos (art.3º VI e VII), o que pela lei atual possui várias restrições, conforme disposto no art.107 e 108 da Lei 6815/80. Quanto ao direito a associação sindical do imigrante, apesar de não estar citado expressamente, o projeto atual dispõe que “os direitos e garantias fundamentais previstos nela não excluem outros previstos nos tratados internacionais e na Constituição Federal” (art.3º Parágrafo Único), como a nossa Lei Maior prevê como direito de todos a associação sindical (art.8º CF/88). Segundo o PLS 288/2013 o estrangeiro poderá ser retirado compulsoriamente do país, através da repatriação, deportação e da expulsão. A primeira é um instituto novo, que consiste no impedimento de ingresso de estrangeiro, que esteja sem documentação adequada à entrada ou estada no território nacional que esteja em área de aeroporto, porto, posto de fronteira, mediante despacho da autoridade competente pela respectiva área de fiscalização (art.26 caput). Este instituto não é aplicável aos refugiados, apátridas e a situações humanitárias nos termos do projeto (art.26 §2º)63. O instituto da extradição, não se encontra no projeto, pois na justificativa deste foi declarado que este instituto deveria ser regulamentado por uma lei de cooperação judiciária e não por uma lei migratória. Neste sentido, o PLS 288/2015 estabelece que a extradição continuaria sendo regulamentada pelo Estatuto do Estrangeiro nos termos do art.64 do projeto. O Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Imigrantes do Brasil, elogiou o fato do projeto prever os direitos e garantias dos imigrantes, mas criticou o BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 288 de 11 de julho de 2013. Senado Federal. Disponível em: . Acessado em 16 jul. 2015a. 63  BRASIL. Ibid, 2015a. 62 

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fato de ele negar estes direitos ao imigrante irregular. Isto, porque ao mesmo tempo que o projeto diz que tem como objetivo a promoção da regularização migratória (art. 2º V), também afirma que caso a documentação do imigrante esteja inadequada, se procederá a deportação, devendo a autoridade competente notificar o imigrante irregular que se retire do território nacional pelo prazo mínimo de 3 dias e máximo de 8 dias (art.27, caput c/c §1º). Portanto, ao invés de auxiliar o imigrante a regularizar a situação, o PLS 288/2013 optou para que ele saísse compulsoriamente do país. O PLS 288/2013 foi aprovado pelo Senado e será encaminhado à Câmara dos Deputados, conforme noticiou o site Migra Mundo no dia 22 de maio de 2015, sendo a última notícia da situação do projeto64.

4.4 Conferência Nacional Sobre Migrações e Refúgio (COMIGRAR) Em 2014 foi organizado pelo governo a 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (COMIGRAR). O processo da COMIGRAR foi composto por etapas preparatórias com debates temáticos, propostas e indicação de delegados para a etapa nacional. A primeira etapa poderiam ser Conferências Estaduais, Conferências Municipais, Conferências Livres e Conferências Virtuais, sendo que as duas últimas poderiam ser organizadas por qualquer interessada. O Grupo de Estudos em Políticas Migratórias e Direitos Humanos (GEMIGRA) da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), decidiu participar da COMIGRAR e organizou a Conferência Livre dos Migrantes da Fronteira Sul, que ocorreu em março de 2014 e contou com a participação de professores, acadêmicos, imigrantes e pessoas interessadas no tema. Em maio do mesmo ano, ocorreu a etapa nacional na cidade de São Paulo, em que todas as propostas foram reunidas em um caderno, a partir do qual foi criado um anteprojeto que foi enviado ao Governo Federal.

4.5 Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil O Ministério da Justiça por meio da Portaria 2162/2013 criou uma comissão de especialistas com a finalidade de apresentar uma proposta de um Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil. A Comissão apresentou em abril de 2014 a primeira versão do anteprojeto e em seguida discutida em audiência 64 

BRASIL. Op. Cit.

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pública. Com base nesta versão, a Comissão recebeu contribuições escritas de entidades públicas e sociais, e também individuais de migrantes e especialistas. Enfim, a Comissão tomou conhecimento das recomendações da 1ª COMIGRAR ocorrida entre 30 de maio e 1º de junho de 201465. O anteprojeto institui a Lei de Migração e cria a Autoridade Nacional Migratória. O art.1º traz os conceitos de migrante (art.1º §1º I) imigrante (art.1º §1º II), imigrante transitório (art.1º§1ºIII), emigrante (art.1º §1ºIV), trabalhador fronteiriço (art.1º §1º V) e apátrida(art.1º VI). O anteprojeto estabelece o direito de livre reunião e associação para fins lícitos, inclusive prevê a associação sindical (art.4º VI e VII). Quanto à saída compulsória o anteprojeto prevê a repatriação, a deportação e a expulsão. Diferente do PLS 288/2013, o anteprojeto dá oportunidade ao imigrante que se encontrar com a documentação inadequada de se regularizar no país, respeitado o prazo que lhe for determinado (art.34 §1º). O anteprojeto passa a dispor sobre a proteção do apátrida, o que não é regulamentado pela lei atual. O anteprojeto já foi enviado ao Congresso Nacional, porém ainda não foi apresentado como projeto de lei, conforme a última notícia divulgada pelo Ministério da Justiça em 7/01/2015. 5 Considerações Finais Este trabalho, buscou através da atual Constituição Federal e dos tratados de direitos humanos que o Brasil faz parte verificar a aplicabilidade do Estatuto do Estrangeiro atualmente, já que ele foi instituído durante a Ditadura Militar, época em que a prioridade era a segurança nacional do país, e que se acreditava que o estrangeiro era uma ameaça ao Brasil. Pesquisou-se na doutrina e na jurisprudência e verificou-se que diversos dispositivos do Estatuto do Estrangeiro são inconstitucionais e incompatíveis com os tratados de direitos humanos que o Brasil faz parte. Portanto, a partir da Constituição Federal de 1988 surgiu a necessidade de instituir uma nova Lei Migratória compatível com o nosso ordenamento jurídico. Então, no decorrer do trabalho vimos várias tentativas de instituir uma nova lei migratória entre elas, está a proposta de lei migratória apresentada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990. Atualmente existem dois projetos e um anteprojeto de Leis Migratórias, que estão sendo discutidos. COMISSÃO DE ESPECIALISTAS. Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes. Brasília, 31 de julho de 2014. Disponível em: www.fes.de/. Acesso em: 26 jul. 2015. 65 

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A primeira proposta é o PL 5655/2009, que é altamente criticado por diversos doutrinadores de direitos humanos, como Deisy Ventura e Rosita Milesi. Concorda-se com a posição delas, porque este projeto afirma que atenderá precipuamente aos direitos humanos e a política migratória brasileira, mas na verdade traz um texto semelhante a lei atual, que tem como principal objetivo a segurança nacional, logo também poderia ser considerado inconstitucional. A segunda proposta é o PLS 288/2013 já é considerado um avanço em relação ao Estatuto do Estrangeiro. Contudo, também recebe críticas, pois os vários direitos e garantias previstos nele só seriam previstos para o migrante documentado visto que uma vez constatada a ausência de documentação, poderá ser deportado do Brasil, sem receber a oportunidade de regularizar a sua situação. Outra crítica, feita ao PLS 288/2013 é por manter a Lei 6815/80 em vigência, pelo projeto o Estatuto do Estrangeiro seria transformado em uma Lei de Extradição, contudo entende-se que alguns dispositivos que tratam da extradição no Estatuto do Estrangeiro são inconstitucionais, como o que afirma que o Ministro da Justiça tem a faculdade de decretar a prisão do extraditando. A terceira proposta é o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, elaborado por uma Comissão de Especialistas nomeada pelo Ministério da Justiça que recebeu contribuições de diversas entidades públicas e sociais e dos migrantes. A Comissão de Especialistas também incorporou no anteprojeto as propostas da COMIGRAR. Este anteprojeto, diferente do PLS 288/2013 e do PL 5655/2009, busca auxiliar o imigrante que não possui a sua documentação adequada, concedendo a oportunidade de regularizar a situação. Este anteprojeto, portanto é o que traz a melhor política migratória. Pois, busca garantir os direitos humanos a todos os migrantes, independentemente de documentação. Porém, apesar de ser a proposta mais benéfica, ela não se refere expressamente aos direitos políticos dos migrantes, não prevendo a cidadania plena. Acredita-se que primeiramente para atingir a cidadania plena, teria de ser aprovada uma Emenda Constitucional, visto que a vedação dos direitos políticos ao migrante está prevista expressamente na Constituição Federal no art.14 §2º para, posteriormente, a Lei Migratória prevê-los. Referências BRASIL. Estatuto do Estrangeiro – Lei nº 6815 de 19 de agosto de 1980. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013a. BRASIL. Lei da Ação Popular - Lei 4717. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013b.

222 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas BRASIL. Pacto de São José da Costa Rica – Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013c. BRASIL. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – Decreto nº 592 de 6 de julho de 1992. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013.d BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 288 de 11 de julho de 2013. Senado Federal. Disponível em: . Acessado em 16 jul. 2015a. BRASIL. Projeto de Lei nº 5655 de 20 de julho de 2009. Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015b. BRASIL. Regulamento do Estatuto do Estrangeiro – Decreto nº 86.715 de 10 de dezembro de 1981. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013e. BRASIL. Resolução Normativa nº 97. Conselho Nacional de Imigração. Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: < http://portal.mte.gov.br>. Acesso em: 03 ago. 2015c. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 349703 / RS. Recorrente: Banco Itaú. Recorrido: Armando Luiz Segabinazzi. Relator: Min. Carlos Britto. Brasília, 3 de dezembro de 2008. CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. 3ªed. São Paulo: Saraiva, 2013. (Coleção Sinopses Jurídicas, 30). CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Cadernos OBMigra, Ed. Especial, Brasília, 2015. COMISSÃO DE ESPECIALISTAS. Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes. Brasília, 31 de julho de 2014. Disponível em: www.fes.de/. Acesso em: 26 jul. 2015. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE OS DIREITOS HUMANOS. Declaração Universal de Viena. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013. FRAGA, Mirtô. O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. FREITAS, Vladimir Passos de. Comentários ao Estatuto do Estrangeiro e Opção de Nacionalidade. Campinas: Millennium, 2006. KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003. Disponível em: . Acesso em: 3 de ago. 2015. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito de Imigração O Estatuto do Estrangeiro em uma Perspectiva de Direitos Humanos. Porto Alegre: Nuris Fabris, 2009. MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da ditadura militar no Brasil. Rev. Bras. Hist. Vol. 17 nº 34. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2015. MILESI, Rosita. Por uma nova Lei de Migração: a perspectiva dos Direitos Humanos. Leis e políticas migratórias: o desafio dos direitos humanos. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2015.

Eduardo de Oliveira Soares Real| 223 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Ministério da Justiça amplia atuação na promoção de direitos dos migrantes. Brasília, jan. de 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2015. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos – Resolução 217- H/48. Legislação de Direito Internacional 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2013. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. SPRANDEL, Marcia Anita. Políticas Migratórias no Brasil no século XXI. Seminário Internacional Desigualdades e Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2015. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A Constituição e o Supremo. 4ª ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2015. VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Estatuto do estrangeiro ou lei de imigração. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, p. 14-15, ago. de 2010. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015.

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O Direito de Asilo e o Sistema de Proteção dos Refugiados no Brasil: uma distinção necessária Priscilla Camargo Santos1 Rafael de Miranda Santos2 Resumo: O presente artigo pretende desfazer o equívoco conceitual muitas vezes empreendido entre os institutos do asilo e refúgio. Pretende-se demonstrar que o asilo e o refúgio além de apresentarem origens históricas diversas também têm em seus fundamentos e estrutura distinções bem marcadas. A análise tem como foco principal as diferenças entre os institutos no direito brasileiro. Palavras-chave: Asilo; Asilo diplomático; Asilo territorial; Refugiado. Abstract: This article seeks to undo the conceptual mistake often undertaken between asylum and refuge institutes. It is intended to demonstrate that the asylum and refuge besides presenting various historical sources also have on their fundamentals and structure distinctions well marked. The analysis focuses primarily on the differences between the institutes in Brazilian law. Keywords: Asylum; Diplomatic asylum; Territorial asylum; Refugee.

1  Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora substituta na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:[email protected] 2  Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO O conceito de asilo muitas vezes se confunde com o conceito de refúgio e não são raras as vezes em que são abordados como se fossem o mesmo instituto. Pode-se afirmar que o objeto de proteção, qual seja, o ser humano que se encontra com sua vida ou liberdade em risco devido a perseguições em seu Estado de residência ou nacionalidade e que procura a proteção e o acolhimento em outro Estado, coincide nos seus objetivos, contudo, as semelhanças param por aí. O objetivo do presente artigo é discutir algumas distinções entre o asilo e o refúgio,notadamente no direito brasileiro. Isso obviamente, não exclui referências aos institutos no plano internacional limitando-se a apontar os regramentos que os regem até mesmo para entender que suas diferenças estão também nas suas origens.Em termos metodológicos deve ser classificado como qualitativo e descritivo. Como método de coleta de dados, foi utilizada exclusivamente a pesquisa bibliográfica. Desse modo o trabalho foi dividido em duas grandes partes principais, na primeira apresenta-se o direito de asilo, diferenças terminológicas, seu reconhecimento no direito internacional e perante a legislação brasileira. Na segunda parte apresenta-se o refúgio, o reconhecimento da condição de refugiado no plano internacional, bem como os tratados internacionais que tratam do assunto, e posteriormente a condição de refugiado no Brasil. Ao final traçam-se as distinções observadas entre os dois institutos principalmente no direito brasileiro. 2 O DIREITO DE ASILO: QUESTÕES TERMINOLÓGICAS PRELIMINARES, O ASILO TERRITORIAL E O ASILO DIPLOMÁTICO O asilo em sentido amplo compreende os institutos que asseguram o acolhimento do estrangeiro que, em virtude de perseguição sem justa causa, não pode permanecer ou retornar ao local de residência ou nacionalidade. Tem como espécies o asilo político, que se subdivide em asilo diplomático e asilo territorial e, o refúgio.3 O asilo político, portanto, compreende o asilo territorial e o asilo diplomático. O asilo territorial é a proteção dada pelo Estado, em seu território, a pessoa que se encontra com a vida ou liberdade ameaçada pelas autoridades de seu país de origem, tendo deixado seu país para se livrar de perseguição política, portanto, é necessária a entrada da pessoa perseguida no território de outro Estado para que possa se solicitar o asilo. Essa proteção no território estrangeiro é chamada de asilo territorial. 3  RAMOS, André de Carvalho. Asilo e Refúgio: semelhanças, diferenças e perspectivas. In: RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de, (orgs.). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011.

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Já o asilo diplomático consiste no acolhimento do estrangeiro, que sofre perseguição política, nas instalações da Missão Diplomática. O Estado de acolhida do perseguido político exige um salvo conduto ao Estado que recebe a Missão Diplomática para assegurar a saída protegida do perseguido em seu território.4 É um ordenamento especial de formação e vigência regional, uma vez que se desenvolveu no contexto da América Latina. Tendo em vista as contingências históricas de instabilidade política na região, marcada por revoltas e golpes de Estado, paulatinamente foi se desenvolvendo a prática de acolhimento a perseguidos políticos pelas Missões Diplomáticas. Segundo André de Carvalho Ramos a origem do asilo diplomático está associado à antiga sacralidade das missões diplomáticas, que não podiam sofrer embaraços ao seu funcionamento (ne impediaturlegatio), o que gerou o ultrapassado entendimento de que a Missão Diplomática era “território estrangeiro”. Se a Missão era “território estrangeiro” poderia, consequentemente, até mesmo conceder asilo a perseguidos políticos.5

O asilo diplomático, portanto, tem como fundamento a regra da imunidade das legações e a inviolabilidade, não obstante, convém observar que a teoria da extraterritorialidade, segundo a qual os edifícios das legações são considerados prolongamentos do solo da pátria que representam, está totalmente abandonada. É comum confundir-se o asilo diplomático com o asilo territorial e tratá-los como se fossem o mesmo instituto, contudo, conforme visto, diferenciam-se não só pela sua origem, mas também em sua estrutura. Note-se que o asilo diplomático é um instituto difundido na América Latina, razão pela qual não precisa ser observado por Estados que não tenham celebrado tratados sobre o tema ou ainda que não reconheçam o princípio latino-americano. Há de se ter certos cuidados, portanto, na utilização do termo asilo, ainda que em seu sentido amplo, enquanto gênero signifique o acolhimento do estrangeiro que sofre perseguição política, suas espécies não têm o mesmo significado, sendo institutos diferentes, desenvolvidos de maneiras diferentes em contextos históricos também diferentes. Resolvida essa questão terminológica, passa-se ao exame do desenvolvimento do direito de asilo no direito internacional.

4  5 

Ibid. Ibid. p. 10.

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2.1 O Asilo no Direito Internacional O direito de asilo tem como pressuposto dar proteção ao estrangeiro perseguido por motivos políticos e que por essa razão não pode permanecer ou retornar ao território de sua nacionalidade ou residência. Tem sua origem na Antiguidade Clássica, sendo seu vocábulo asylun de origem gregaque significa sítio ou lugar inviolável. Para os gregos o asilo significava um lugar inviolável no qual o beneficiário poderia ficar a salvo e sem receio de retornar ao local onde sua vida corria perigo.6 Ao longo da história o asilo serviu para a proteção daqueles que sofriam perseguições em seu Estado de origem e até o século XIX era concedida inclusive aos fugitivos de crimes comuns. A partir de século XIX foi se desenvolvendo a aplicação dos princípios relativos à extradição na qual os perseguidos por crimes comuns são entregues aos Estados originários para que sejam processados e julgados. Com isso, o asilo foi tomando os contornos estabelecidos no século XVII por Hugo Grotius, que entendia que o asilo só poderia ser concedido pelo Estado para aqueles que sofressem perseguições de cunho religioso ou político, não podendo ser concedido a criminosos comuns.7 Ao longo do século XXfoi se consolidando a ideia de asilo somente para as pessoas que se encontrassem em situação de perseguição por crimes políticos, passando também de um caráter individual para um direito do Estado, cabendo ao Estado deliberar sobre sua concessão ou não. As discussões ganharam novo fôlego com a Carta da ONU e a Declaração Universal de Direitos Humanos, documentos que reconhecem o homem como sujeito de direito internacional, apresentando o asilo como um corolário do princípio da proteção e respeito aos direitos humanos, razão pela qual não deve ser entendido como atuação discricionária do Estado. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 em seu artigo XIV confere o direito de asilo em outros países a toda pessoa vítima de perseguição, desde que a perseguição não seja motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Outro documento internacional universal firmado no mesmo ano é a Declaração Americana de Direitos e Deveres dos Homem – Declaração de Bogotá de 1948 – que assegura o direito de toda pessoa procurar e receber asilo o território estrangeiro, desde que não se trate de perseguição motivada por crimes comuns, de acordo com a legislação de cada país e convenções internacionais. Em âmbito regional, mais precisamente na América Latina foram realizadas 6  VIEIRA, Ligia Ribeiro. Refugiados Ambientais: desafios à sua aceitação pelo direito internacional. 2012. 203f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina. 7  Ibid.

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várias Convenções que contemplam o direito de asilo, o Congresso Internacional de Montevidéu em 1889 foi a primeira normatização jurídica que consagrou o asilo diplomático e territorial em seus artigos 15, 16, 17 e 18. Também se pode mencionar a Convenção sobre Asilo de Havana em 1928, a Convenção sobre Asilo Político de Montevidéu em 1933, o Tratado sobre Asilo e Refúgio Político de Montevidéu em 1939 e a Convenção Interamericana sobre Asilo Territorial de Caracas em 1954, ocasião que também foi assinada a Convenção sobre Asilo Diplomático. A normatização internacional do direito de asilo aponta para uma mudança ainda incipiente, mas significativa na questão da discricionariedade plena do Estado na concessão ou denegação do asilo, uma vez que o Direito Internacional passa a reconhecer o direito de solicitar asilo como parte integrante das garantias de defesa de direitos humanos.8Isso significa que a decisão sobre o asilo não pode ser considerada apenas como um assunto de domínio reservado do Estado, haja vista que os tratados de direitos humanos sobre a matéria passam a regrar a total discricionariedade estatal podendo sua fundamentação ser rechaçada por órgãos internacionais.

2.2 O Direito de Asilo na Legislação Brasileira A Constituição Federal de 1988 em seus primeiros quatro artigos traz os princípios fundamentais do Estado brasileiro, alicerçando as bases de um Estado Democrático de Direito, no art. 4º de forma inédita elencou como princípio das relações internacionais, entre outros, a concessão de asilo político. A Constituição de 88 também em seu art. 5º, LII, dispõe que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”, assegurando assim a permanência em território brasileiro de estrangeiros perseguidos por suas convicções políticas, excetuando-se a perseguição criminal baseada na legislação penal comum. O asilo no Brasil também é regido pela Lei 6.815/80, Estatuto do Estrangeiro, em seus arts. 28 e 29, quetratam da condição do asilado. O art. 28 dispõe que “o estrangeiro admitido no território nacional na condição de asilado político ficará sujeito, além dos deveres que lhe forem impostos pelo Direito Internacional, a cumprir as disposições da legislação vigente e as que o Governo brasileiro lhe fixar”, reconhecendo as obrigações internacionais decorrentes do instituto do asilo. A Constituição de 1988 consagrou os direitos humanos como matéria de ordem internacional, isso implica tanto no engajamento de políticas internas de proteção aos direitos humanos como a adoção de uma postura internacional de proteção aos direi8  RAMOS, André de Carvalho. Asilo e Refúgio: semelhanças, diferenças e perspectivas. In: RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de, (orgs.). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011.

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tos humanos, seja ratificando os tratados internacionais de direitos humanos, seja pelo comprometimento de se posicionar politicamente contrário aos Estados da sociedade internacional que não observam os princípios de proteção dos direitos humanos.9 Nesse contexto também ratificou em 1992 a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica de 1969) que preceitua em seu art. 22.7 que “toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos, de acordo com a legislação de cada Estado e com as Convenções internacionais.” Assim, o asilo pertence ao rol de direitos fundamentais da pessoa humana, com amparo ainda no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, que dispõe serem os direitos nela elencados não excludentes de outros decorrentes de tratado internacional, como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos.10 Outros tratados internacionais também regem o direito de asilo no Brasil, a Convenção sobre Asilo em Havana de 1928, a Convenção sobre Asilo Político em Montevidéu de 1933 e ainda a Convenção sobre Asilo Territorial de 1954, todas já ratificadas pelo Brasil e que estabelecem em face dos estrangeiros oriundos dos estados contratantes, normas de concessão de asilo e os direitos e deveres dos asilados.11 Na seara das distinções, o Brasil admite tanto o asilo territorial como o asilo diplomático. O asilo territorial é concedido pelo Brasil no próprio Estado por delegação do Presidente da República ao Ministro da Justiça. Concedido o asilo, o asilado presta compromisso de cumprir as leis do Brasil e as normas de direito internacional, conforme o art. 28 do Estatuto do Estrangeiro. 3 O SISTEMA DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DE REFUGIADOS O sistema de proteção internacional dos refugiados foi desenvolvido quase dois anos após a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, com a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que atualmente é o órgão subsidiário permanente da Assembleia Geral das Nações Unidas, sediado em Genebra, na Suíça. O ACNUR foi criado inicialmente para reassentar refugiados europeus que ainda estavam sem lar como consequência da 2ª Guerra Mundial. O ACNUR visa garantir que qualquer pessoa possa exercer o direito de buscar e obter refúgio em outro país ou retornar ao país de origem. 9  WACHOWICZ, Marcos. O direito de asilo como expressão dos direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. 10  ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G.E. do.; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2012. 11  Ibid.

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No ano de 1951 foi aprovada a Convenção Internacional sobre Refugiados que designou com status de refugiado todos aqueles que em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de janeiro de 1951 e temendo serem perseguidos por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontram fora do país de sua nacionalidade e que em virtude desse temor não podem retornar. O conceito de refugiado está relacionado com a condição de que opostulantedo refúgio demonstre um fundado temor de perseguição no país de sua nacionalidade. Os elementos de perseguição fixados pela Convenção de 1951 são: raça; religião; nacionalidade; grupo social; ou opiniões políticas. A expressão “fundado temor de perseguição” é o elemento chave da definição, refletindo o ponto de vista dos autores da declaração em relação aos elementos constitutivos do conceito de refugiado. Com ela, substitui-se o método anterior de definição de refugiado por categorias (i.e., pessoas de uma certa origem não gozando da proteção do seu país) pelo conceito geral de “temor” em razão de um motivo relevante. Por se tratar de conceito subjetivo, a definição contempla um elemento subjetivo que deve ser considerado a partir da pessoa solicitante de refúgio. Assim, a determinação da condição de refugiado fundamentar-se-á, principalmente, não em um julgamento da situação objetiva do país de origem do solicitante, mas na avaliação das declarações por ele prestadas12.

A característica fundamental que diferencia a perspectiva da definição de refugiado é que a Convenção individualiza o refugiado, transformando-o em um ser concreto, com uma raça, uma crença, uma nacionalidade, pertencente a um grupo social com determinadas opiniões políticas, que em razão disso se vê perseguido ou teve negada sua proteção em seu estado de origem.13 Ademais, a Convenção transforma o temor numa categoria jurídica, uma vez que a perseguição não precisa ser efetiva, mas a ameaça real e o temor já justificam a proteção internacional daquela pessoa.14 Outro destaque da Convenção dos Refugiados está diretamente relacionada com a sua limitação temporal, uma condição objetiva que autoriza a postulação ao status ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado: de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. Genebra: ACNUR, 2011 13  CARNEIRO, Wellington Pereira. A Declaração de Cartagena de 1984 e os desafios da proteção internacional dos refugiados, 20 anos depois. In: SILVA, César Augusto S. da. (org.) Direitos Humanos e Refugiados. Dourados: Ed. UFGD, 2012. 14  Ibid. 12 

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de refugiado se o fundado temor de perseguição ocorresse antes dos acontecimentos de 1951. De acordo com André de Carvalho Ramos, isso se deve porque a Convenção “[...] era aplicávelaos fluxos de refugiados ocorridos antes de 1951. Além disso, os Estados,querendo, poderiam estabelecer uma “limitação geográfica” e só aceitar aplicar oEstatuto dos Refugiados a acontecimentos ocorridos na Europa.”15 Em razão da limitação temporal foi aprovado em 1967 o Protocolo Adicional à Convenção sobre Refugiados e, no âmbito dos sistemas regionais de proteção, foram criadas a Convenção da Unidade Africana em 1969 e a Declaração de Cartagena, da OEA em 1984. A Convenção da Unidade Africana de 1969 foi a primeira a criar uma definição mais ampla de refugiado, considerando como refugiado aquele que, em virtude de um cenário de graves violações de direitos humanos, foi obrigado a deixar sua residência habitual para buscar refúgio em outro Estado.16

Seguindo a mesma linha, a Declaração de Cartagena de 1984 não só acolheu a ampla definição de refugiado já prevista na Convenção de 1969, como a alargou significativamente, conforme consta no item III da Carta de 1984, passando a considerar também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública. Na Declaração de Cartagena foi adotada a terminologia de refugiados, conforme estabelecido na Convenção de 1951, bem como no Protocolo Adicional de 1969, para diferenciar os “refugiados” de outras categorias de migrantes, também atendidas pelo ACNUR. Entre os propósitos da Declaração de Cartagena de 1984 está o compromisso que a ACNUR tem enquanto agência internacional de dar suporte aos países membros para que atendam aos refugiados da melhor maneira possível, resguardando os seus direitos fundamentais em atenção à sua dignidade humana. E não apenas isso, é conferido ao ACNUR prestar assistência e suporte aos países acolhedores de grupos e pessoas refugiadas. Por certo que já é bastante traumatizante ao indivíduo precisar postular ou estar na condição de refugiado, devendo retirar-se do seu país de origem, de sua nacionalidade, do seu ambiente cultural para refugiar-se, por razão de proteção, em outros países, com outros costumes, outros idiomas. Os percalços culturais por vezes são os grandes vilões para os refugiados e não raras vezes acabam estes sofrendo novas modalidades de 15  16 

RAMOS, André de Carvalho. Op. cit., p. 26. Ibid.

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violação de direitos humanos, que materializam-semuitas vezes na xenofobia, no racismo, e em novos processos de discriminação, em suas variadas formas. Por isso, a Declaração de 1984 tem por objetivo estabelecer regras para evitar situações como as descritas no parágrafo anterior. É de extrema importância, e a Carta ressalta isso, que sejam fortalecidos os programas de proteção e assistência aos refugiados, principalmente no que concerne aos direitos de saúde, educação, trabalho e segurança. Que sejam estabelecidos programas e projetos sociais envolvendo o ACNUR e o país receptor para garantir a autossuficiência dos refugiados. Que cada Estado se comprometa a capacitar seus funcionários para a proteção e assistência aos refugiados em colaboração com o ACNUR e/ou outros organismos internacionais. E mais, que haja engajamento dos países receptores e do ACNUR para que, havendo possibilidade, a repatriação ocorra de maneira voluntária, sendo manifestada de forma individual e com a fiscalização de uma Comissão Tripartite – composta por membros do Estado de origem, do Estado receptor e do ACNUR. A Declaração de Cartagena de 1984 se consubstancia num importante instrumento de proteção internacional, no âmbito regional, para os refugiados na América, reiterando o compromisso que os países devem assumir a fim de preservar os direitos humanos dos refugiados, desenvolvendo projetos destinados a sua autossuficiência e integração na sociedade que os acolhem, tomando os devidos cuidados para que os acampamentos e instalações de refugiados, por exemplo, localizem-se fora de zonas fronteiriças. Ressalta-se que na América Latina, além da Declaração de Cartagena de 1984, existem outros instrumentos jurídicos internacionais de proteção aos refugiados, como a Declaração de San José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, de 1994 e a Declaração e Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina, de 2004. Todos estes instrumentos de proteção aos refugiados são complementares as regras editadas na Convenção sobre Refugiados de 1951 de seu Protocolo Adicional de 1967, compondo um emaranhado de regras e diretrizes que devem nortear a política e a proteção internacional aos direitos humanos de refugiados.

3.1 O Sistema de Proteção dos Refugiados no Brasil A Convenção de 1951 foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 50.215/1951, contudo o Brasil estabeleceu a chamada “limitação geográfica”, aceitando receber somente refugiados do continente europeu. Em 1972 foi ratificado o Protocolo de 1967, mantendo-se a limitação geográfica, que só foi abandonada em 1989 por meio

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do Decreto 98.602/1989.17 Em 1977 o ACNUR instalou-se no Brasil como missão permanente assumindo um papel de relevo na implementação das convenções internacionais sobre refugiados, bem como no suporte para a implementação da lei 9.474/97 que disciplinou o estatuto do refugiado no país.18 A lei 9.474/97 estabelece em seu artigo 1º que será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

A lei adotou a definição de refugiado estabelecida pela Convenção de 1951 e o Protocolo Adicional de 1967, em seu inciso I, bem como a definição ampla de refugiado estabelecida pela Declaração de Cartagena, em seu inciso III. Ademais, estendeu os efeitos da condição de refugiado a todos os membros do grupo familiar que dependam economicamente e estejam em território nacional. A lei 9474/97 em seu art. 11 criou o Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE – órgão de deliberação coletiva, pertencente ao Ministério da Justiça, que tem como funções a análise das solicitações de refúgio com o reconhecimento da condição de refugiado, a análise da cessação ou a perda da condição de refugiado, a orientação e coordenação das ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados, bem como a aprovação de instruções normativas para a execução da lei. O art. 14, que trata de sua estrutura e funcionamento, estabelece como membros natos: um representante do Ministério da Justiça; um representante do Ministério das Relações Exteriores; um representante do Ministério do Trabalho; um representante do Ministério da Saúde; um representante do Ministério da Educação e do Desporto; um representante do Departamento de Polícia Federal; um representante de organização não governamental, que se dedique as atividades de assistência e proteção de 17  18 

RAMOS, André de Carvalho. Op. cit. Ibid.

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refugiados no país. Qualquer membro do ACNUR poderá ser convidado a participar das reuniões com direito a voz. Da decisão negativa da solicitação de refúgio pelo CONARE cabe direito de recurso ao Ministro de Estado da Justiça, no prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificação. Permanecendo a recusa pelo Ministro do Estado da Justiça, ficará o solicitante sujeito à legislação de estrangeiros no país, ou seja, a lei 6.815/1980. Assegurou, ainda, a lei, o princípio do non-refoulement, ao não permitir a transferência do solicitante de refúgio para o país de nacionalidade ou de residência habitual, enquanto permanecerem as circunstâncias que põem em risco sua vida, integridade física e liberdade. O princípio do non-refoulement está previsto no art. 33 da Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiados de 1951 ese mostra como a pedra angular da proteção internacional dos refugiados, uma vez que se funda no fato de que um Estado não deve expulsar ou rechaçar, de forma alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios onde sua vida ou sua liberdade estejam em risco ou ameaçadas, ainda que tenha ingressado no território de forma ilegal. Esse princípio também foi contemplado na Declaração de Cartagena de 1984 que reitera a importância e a significação do princípio donon-refoulement(incluindo a proibição da rejeição nas fronteiras), como alternativa para proteger o refugiado de decisões do próprio Estado receptor que deseja devolvê-lo à situação que o exponha a risco e/ou a violações de direitos humanos. O art. 48 da lei também dispõe que seus preceitos deverão ser interpretados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido. 4 CONCLUSÃO Em que pese o asilo e o refúgio servirem para a proteção de direitos humanos, uma vez que procuram garantir o acolhimento e a segurança daqueles que sofrem perseguição em seu território de residência ou nacionalidade, são institutos distintos não só em sua origem como em seus fundamentos. O asilo em sentido amplo compreende o asilo político e o refúgio. Já o asilo político subdivide-se em asilo territorial e asilo diplomático. O asilo territorial é concedido pelo estado no próprio território nacional, é ação discricionária do Chefe de Estado que no Brasil delega a concessão ou denegação do

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asilo territorial ao Ministro da Justiça. O asilo diplomático é concedido na representação diplomática no exterior, ou seja, na Missão Diplomática a qual o estrangeiro foi buscar proteção. O asilo político refere-se apenas a situações de perseguição política, exige a atualidade da perseguição, ou seja, um fundado temor não tem o condão de autorizar o direito de asilo.É regulado precipuamente pelo costume internacionale por tratados regionais na América Latina, no Brasil é regido pelo Estatuto do Estrangeiro, cabendo ao Ministro da Justiça concedê-lo ou denegá-lo, não possui um órgão de análise e julgamento das solicitações, permitindo um maior grau de discricionariedade do Estado na sua concessão. O refúgio refere-se a várias formas de perseguição, inclusive situações de violações generalizadas de direitos humanos, também pode ser concedido apenas se houver um fundado temor de perseguição. É regido por tratados universais e no Brasil foi regulado pela Lei 9474/97 que instituiu um órgão administrativo para análise e julgamento das solicitações. Esse último ponto traz consequências diretas na estrutura do instituto do asilo que o diferencia sobremaneira do refúgio, o fato do asilo não ter um órgão próprio de julgamento, nem tampouco uma organização internacional de supervisão e capacitação como o ACNUR, acaba confirmando o direito de asilo como um direito de Estado e não do indivíduo, em que pese os esforços para situá-lo como um direito humano, na prática dos Estados a decisão ainda se reveste de um caráter discricionário de política doméstica estatal. Por outro lado o refúgio gera direitos ao solicitante de refúgio, podendo ingressar e permanecer no território enquanto sua solicitação é analisada e julgada por um órgão específico que é o CONARE, cabendo inclusive recurso da decisão denegatória do refúgio. Finalmente, pode-se concluir que o refúgio trata-se de um instituto mais amplo que o asilo, abarcando outras situações não contempladas pelo asilo, além de possuir um notável caráter de efetivação de direitos humanos. REFERÊNCIAS ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado: de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. Genebra: ACNUR, 2011. ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G.E. do.; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2012. AGUIAR, Renan. Lei 9.474/97: cláusulas de inclusão e exclusão. In: ARAÚJO, Nádia de; ALMEI-

Priscilla Camargo Santos e Rafael de Miranda Santos| 237 DA, Guilherme Assis de. (coords.) O direito internacional dos refugiados: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. ANNONI, Danielle. O direito humano de acesso à justiça no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 1ed, vol. 1. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. CARNEIRO, Wellington Pereira. A Declaração de Cartagena de 1984 e os desafios da proteção internacional dos refugiados, 20 anos depois. In: SILVA, César Augusto S. da. (org.) Direitos Humanos e Refugiados. Dourados: Ed. UFGD, 2012. CASELLA, Paulo Borba. Refugiados: conceito e extensão. In: ARAÚJO, Nadia; ALMEIDA, Guilherme Assis de. (coord.) O direito internacional dos refugiados: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. DERDERIAN, Katharine  and  SCHOCKAERT, Liesbeth. Responding to “mixed” migration flows: a humanitarian perspective.Sur, RevistaInternacionalDireitoshumanos. [online]. 2009, vol.6, n.10, pp. 116-119. JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007. LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 5 reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. LUI, Aline; YAKABI, Talita. O caso dos refugiados haitianos após o terremoto de 2010 e a atuação do Brasil. In: ANNONI, Danielle (org. et. al.)Democracia e Direitos Humanos: anais da Segunda Semana de Direitos Humanos da UFSC. Curitiba: Multideia, 2012. MURILLO, Juan Carlos. Os legítimos interesses de segurança dos Estados e a proteção internacional de refugiados.Sur Revista Internacional de Direitos Humanos. Ano 6. N. 10. Rede Universitária de Direitos Humanos, 2009. PAULA, Bruna Vieira de. O princípio do non-refoulement, sua natureza jus gogens e a proteção internacional dos refugiados. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v. 7, p. 51-67, 2007. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/r28151.pdf PIOVESAN, Flávia. O direito de asilo e a proteção internacional dos refugiados. In: ARAÚJO, Nádia de; ALMEIDA, Guilherme Assis de. (coords.) O direito internacional dos refugiados: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. PIOVESAN, Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. EOS. Revista Jurídica da Faculdade de Direito. v. 2, n. 1, Curitiba: Dom Bosco, 2008. RAMOS, André de Carvalho. Asilo e Refúgio: semelhanças, diferenças e perspectivas. In: RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de, (orgs.). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011. VIEIRA, Ligia Ribeiro. Refugiados Ambientais: desafios à sua aceitação pelo direito internacional.

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OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E A GRAVE E GENERALIZADA VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DO ARTIGO 1º, INCISO III, DA LEI N. 9.474/97 Tiago Scher Soares de Amorim1 Resumo: O presente artigo analisa a concessão do status jurídico de refugiado aos refugiados ambientais que sofram grave e generalizada violação de direitos humanos. O artigo 1º, inciso III, da lei n. 9.474/97 prevê a concessão do refúgio para vítimas de grave e generalizada violação de direitos humanos. O governo brasileiro tem interpretado esse artigo de forma restritiva, vedando a concessão do refúgio para indivíduos provenientes de países com graves distúrbios ambientais. Todavia, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito fundamental previsto constitucionalmente. O inciso III encontra inspiração na Declaração de Cartagena de 1984, documento responsável por ampliar as hipóteses de concessão de refúgio. Quando determinado Estado não protege o meio ambiente ou o faz de maneira deficiente, acarretando em graves distúrbios ambientais, há grave violação de direitos humanos, de modo que se faz necessária a concessão do refúgio com base no artigo 1º, inciso III, da lei n. 9.474/97. Palavras-chave: Refugiados Ambientais; Violação; Direitos Humanos. Abstract: This paper analyses the concession of refugee legal status to the environmental refugees suffering serious and widespread violations of human rights. The 1st article, section III, of law number 9.474/97 grants the concession of refuge to the victims of severe and widespread violations of human rights. The Brazilian government has been adopting a restrictive interpretation of this article, sealing the granting of refuge to individuals originating from countries with serious environmental disturbances. However, the right to an ecologically balanced environment is a fundamental right under the Constitution. The section III finds inspiration in the Cartagena Declaration on Refugees (1984), document responsible for the enlarging the refuge concession hypothesis. When a State does not protect the environment or does it in a defective way, resulting in serious environmental disturbance, serious human rights violations ensue, so that is necessary to grant the concession of refuge based on article 1º, section III, of law number 9.474/97. Keywords: Environmental Refugees; Violation; Human Rights.

1  Bacharelando em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Endereço eletrônico: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO Hodiernamente, a temática dos refugiados é notícia constante em todo o mundo. Segundo o mais recente relatório publicado pelo ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o deslocamento forçado de pessoas atingiu o maior nível da história em 2014, com 59,5 milhões de pessoas deslocadas em todo o mundo, em virtude de perseguições, conflitos, violência generalizada ou violações de direitos humanos. Mais da metade desses refugiados são crianças, o que agrava ainda mais a crise humanitária em âmbito global.2 O tema vem ganhando mais relevância também no cenário brasileiro. Até junho de 2015, havia 7.948 refugiados no Brasil, além de milhares de pessoas com o julgamento de suas solicitações de refúgio pendente.3 Em 2014, o país recebeu o maior número de solicitações entre as nações da América Latina, com 25.996 solicitações, um aumento de 2.131% em comparação com o ano de 2010.4 Um dos motivos ensejadores de deslocamentos forçados que vem sendo amplamente discutido nas últimas décadas é o que ocorre em virtude de distúrbios ambientais, ocasionados por diversos fatores, desde catástrofes naturais à desertificação do solo pela ação humana. Não obstante a ausência de documentos internacionais que protejam especificamente os “refugiados ambientais” (como são comumente chamados os deslocados por fatores ambientais), todo ser humano tem direito a receber tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana e com a proteção internacional dos direitos humanos já existente. Apesar do nível alarmante dos deslocamentos forçados e dos diversos motivos que provocam estes deslocamentos, a proteção normativa internacional dos refugiados, no âmbito das Nações Unidas, é a mesma há mais de 60 anos, proveniente da Convenção de 1951, que foi posteriormente alterada pelo Protocolo de 1967. Segundo tais documentos, aplica-se o termo refugiado para qualquer pessoa que sofre perseguição em virtude de sua raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Com o natural desenvolvimento histórico, os motivos ensejadores do refúgio ficaram com uma defasagem normativa própria do tempo, ou seja, já não atendem à nova realidade 2  UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. UNHCR Global Trends – forced displacement in 2014. UNHCR, 2015. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015. 3  SANCHES, Mariana. Brasil vai investir em dados sobre refugiados e aumentar estrutura do órgão que avalia pedidos. O Globo, Rio de Janeiro, 22 jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015. 4  FRANCO, Marina. Pedido de refúgio no país aumentou 2.131% em 5 anos, diz ministério. G1, São Paulo, 3 jun. 2015. Disponível em: < http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/06/brasil-abriga-7700-refugiados-de-81-nacionalidades.html>. Acesso em: 22 jun. 2015.

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global.5 A necessidade de atualização da definição de refugiado é tão nítida que, desde a Convenção da OUA de 1969, a conceituação de refugiado já contempla outras causas motivadoras de deslocamentos forçados no âmbito do continente africano. Na mesma linha, a Declaração de Cartagena de 1984 ampliou a definição de refugiados na América Latina, acolhendo também indivíduos que necessitam de imediata proteção, como aqueles que sofrem com violações maciças e sistemáticas de direitos humanos. O Brasil é um país internacionalmente reconhecido como exemplo no acolhimento de refugiados. Além da tradição humanitária do país, a lei n. 9.474/97, que aborda a temática do refúgio, é considerada vanguardista, já que adotou não só o conceito clássico de refugiado, cunhado pela Convenção de 1951, mas também a definição ampliada, inspirada na Declaração de Cartagena de 1984. Segundo o artigo 1º, inciso III, da lei 9.474/97, será reconhecido como refugiado todo indivíduo que, “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. Não obstante, quando se trata de solicitante de refúgio proveniente de regiões com graves distúrbios ambientais, o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) considera que tais indivíduos não se enquadram na hipótese legal, negando assim a concessão do refúgio aos refugiados ambientais. Nessa esteira, torna-se necessário analisar o instituto do refúgio ambiental, caracterizado pelos refugiados ambientais, e apresentar as razões pelas quais estes indivíduos sofrem grave e generalizada violação de direitos humanos. Com base nesta abordagem, entendemos ser equivocada a interpretação realizada pelo CONARE nos casos dos refugiados ambientais que solicitam refúgio com base no artigo 1º, inciso III, da lei n. 9.474/97, já que há uma evidente restrição a proteção da pessoa humana, deturpando o real sentido do inciso legal. 2 DEFINIÇÃO DE REFUGIADOS AMBIENTAIS A expressão refugiados ambientais foi publicada pela primeira vez por Lester Brown, do World Watch Institute, na década de 19706, mas só ganhou notoriedade global quando utilizada pelo pesquisador egípcio Essam El-Hinnawi, em virtude de um trabalho de pesquisa realizado para o PNUMA em 1985. Apesar das variações as quais o termo foi (e ainda é) submetido, a base conceitual pensada por El-Hinnawi permanece 5  RAIOL, Ivanilson Paulo Correa. Ultrapassando fronteiras: a proteção jurídica dos refugiados ambientais. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2010, p. 176. 6  BLACK, Richard. Environmental refugees: myth or reality? Working Paper n. 34, Brighton, 2001, p.1. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2015.

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a mesma nas definições dos demais autores. Segundo o autor, os refugiados ambientais são pessoas que são forçadas a deixar o seu local de moradia, “temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante perturbação ambiental que colocou em risco sua e/ou afetou seriamente sua qualidade de vida.” (tradução nossa).7 A partir da definição trazida por El-Hinnawi, é possível analisar três elementos que seriam essenciais para caracterizar o indivíduo que é refugiado ambiental. Primeiramente, o refugiado ambiental é um tipo específico de refugiado, mas a quem se aplicam as considerações gerais de refugiado por algum dos motivos clássicos. Em segundo lugar, essa “perturbação ambiental” seriam mudanças no ecossistema que o tornasse inadequado para sustentar a vida humana. Por fim, esse distúrbio ambiental tem que colocar em risco a existência humana, ou afetar seriamente a qualidade de vida dos que vivem no local.8 No ano de 1995, o cientista ambiental Norman Myers trouxe uma definição mais ampliada do termo refugiados ambientais. A principal novidade na conceituação de Myers decorre da inclusão dos impactos das mudanças climáticas como fator ambiental passível de gerar deslocamentos. O autor também analisou os fatores que extrapolam os problemas ambientais, mas que têm relação com eles, por exemplo, a fome, doenças, pandemias, pobreza generalizada e até mesmo o crescimento populacional.9 É possível notar também uma tentativa de diferenciar os refugiados em virtude de fatores ambientais daqueles impelidos por fatores econômicos, reconhecendo, contudo, ser essa uma distinção complexa.10 Alguns autores já sugeriram termos alternativos para caracterizar os refugiados ambientais. Uma expressão que ganhou notoriedade foi a “ecomigrantes”, cunhada pelo geógrafo William B. Wood. O autor propõe o seu uso em caráter substitutivo ao termo refugiados ambientais. Com essa nova nomenclatura, seria corrigida a impropriedade jurídica de chamar de refugiado quem não é contemplado pelo Direito Internacional do Refugiados, além de acrescentar à definição as pessoas que se deslocam por aspectos econômicos, por meio da partícula “eco”, já que haveria semelhança entre ambos e, frequentemente, possuiriam os mesmos elementos.11 Todavia, a expressão “ecomigrantes” pode causar uma confusão terminológica, 7  “Those people who […] temporarily or permanently, because of a marked environmental disruption that has jeopardized their existence and/or seriously affected the quality of their life”. EL-HINNAWI, Essam apud MYERS, Norman.; KENT, Jennifer. Environmental exodus: an emergent crisis in the global arena. Washington D.C.: Climate Institute, 1995, p.17. 8  RAIOL, 2010, p. 159-161. 9  MYERS; KENT, 1995, p. 18. 10  Ibid., p. 17-18. 11  WOOD, William B. apud PEREIRA, Luciana Diniz Durães. O direito internacional dos refugiados: análise crítica do conceito de refugiado ambiental. 2009. 171 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Faculdade Mineira de Direito da Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009, p. 107.

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visto que, ao conjugar o conceito de migrantes econômicos com o de migrantes ambientais, evidencia-se uma sobrecarga no termo, dificultando inclusive uma proteção internacional mais eficaz.12 Outrossim, em que pese as migrações econômicas e ambientais tenham aspectos em comum, elas não se confundem, já que nem todo migrante ambiental é um migrante econômico, e vice-versa. Importante distinguir também a expressão “refugiados climáticos” do termo refugiados ambientais. A autora Jane McAdam, ao analisar o conceito de “refugiados climáticos”, afirma que as alterações climáticas e a interação com fatores pré-existentes é que determinam se e quando as pessoas vão se deslocar.13 No entanto, não apresenta definição que diferencie as duas expressões, afirmando inclusive que, em alguns aspectos, os deslocamentos climáticos “[...] representam um remodelamento do amplo debate da década de 1990 sobre o deslocamento ambiental.” (tradução nossa). 14 Cumpre acrescentar que a expressão “refugiados climáticos” está englobada no conceito de refugiados ambientais. As alterações climáticas, muito embora tenham “contribuído para o aumento da quantidade dessa categoria de migrantes em escala global”15, não são o único fator que levam às migrações de natureza ambiental. 3 O MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DE TERCEIRA GERAÇÃO Os direitos fundamentais de terceira geração são aqueles que não se destinam especificadamente a proteger os interesses do ser humano enquanto indivíduo. Segundo Bonavides, esses direitos “tem primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.”16 São, portanto, direitos que se caracterizam pela titularidade difusa ou coletiva, como o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente e à conservação do patrimônio histórico e cultural.17 No que tange ao direito ao meio ambiente, a sua positivação no ordenamento internacional ocorreu, primeiramente, na Conferência de Estocolmo de 1972, que deRAMOS, Érika Pires. Refugiados Ambientais: em busca do reconhecimento pelo direito internacional. 2011. 150 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2011, p. 80. 13  MCADAM, Jane. Climate change, forced migration, and international law. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 21. 14  “[...] repacking of the broader debate in the 1990s about environmental displacement”. Ibid., p. 12. 15  CLARO, Carolina de Abreu Batista. Refugiados ambientais. Mudanças climáticas, migrações internacionais e governança global. 2012. 113 f. Dissertação (Mestrado) – Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2012, p. 40. 16  BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 569. 17  MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocência Mártires. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 268. 12 

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clarou, em seu princípio primeiro, que “o homem tem o direito fundamental à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna [...].”18 Vinte anos após a Conferência de Estocolmo, o direito ao meio ambiente foi novamente discutido na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92). No “princípio 1” da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, foi previsto que: “os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a Natureza.” 19 Diante disso, constata-se que o direito ao meio ambiente, a partir da década de 1970, foi erigido “à condição de direito fundamental, inerente, assim, à pessoa humana.”20 Esse período coincide com o de cristalização dos direitos fundamentais da terceira geração21, que a partir do final do século XX foram definitivamente reconhecidos pela doutrina e pelo direito internacional como direitos fundamentais da pessoa humana. O Supremo Tribunal Federal, por meio do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, também entendeu ser o direito ao meio ambiente típico da terceira geração que contempla todo o gênero humano, “circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao estado e à própria coletividade – de defende-lo e preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações.22 Em consonância com a comunidade internacional, o Brasil consagrou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental constitucional, nos termos do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. É direito fundamental que integra os valores permanentes e indisponíveis, pois, como justifica Barroso, “é a partir do núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana que se irradiam todos os direitos materialmente fundamentais, que devem receber proteção máxima.”23 Segundo Milaré, o texto do artigo 225 da Constituição contém um novo direito fundamental da pessoa humana, que é o “princípio transcendental de todo o ordenamento jurídico ambiental, ostentando o status de verdadeira cláusula pétrea.24 Em 18  ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. 1972, princípio primeiro. 19  Id. Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92). 1992, princípio “1”. 20  RAIOL, 2010, p. 203. 21  BONAVIDES, 2004, p. 569. 22  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. MS 22164-S, 30 out. 1995. Relator: Min. Celso de Mello. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. 23  BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 178-179. 24  MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 9ª ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 260-261.

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verdade, a moderna doutrina constitucional entende que não só os direitos individuais são considerados cláusula pétrea, mas também as demais categorias de direitos constitucionais, desde que dotados de fundamentalidade material.25 Portanto, o direito ao meio ambiente é direito fundamental, ensejando ações estatais positivas e negativas para que se efetive um meio ambiente equilibrado e que permita aos indivíduos condições de vida compatíveis com a dignidade humana. 4 O ARTIGO 1º, INCISO III, DA LEI N. 9.474/97 E A INSPIRAÇÃO ORIUNDA DA DECLARAÇÃO DE CARTAGENA DE 1984 Representando um verdadeiro marco humanitário de proteção aos refugiados, a Declaração de Cartagena de 1984 ampliou as hipóteses de reconhecimento do status de refugiado no âmbito da América Latina, trazendo uma abordagem que denota uma visão mais humana à proteção internacional dos refugiados. Apesar do seu caráter não vinculante, vários países latino-americanos incorporaram o conceito da Declaração de Cartagena aos seus ordenamentos jurídicos internos, dentre eles o Brasil, por meio da lei n. 9.474/9726, em seu artigo 1º, inciso III, que reconhece como refugiado todo indivíduo que, “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. A inclusão do inciso III ao artigo 1º foi fruto de intensa defesa realizada pela sociedade civil e pela ACNUR, quando da tramitação do projeto de lei no Congresso Nacional.27 À época, o relator do projeto de lei, o deputado Flávio Arns, defendeu a ampliação da definição de refugiado como um posicionamento em prol dos direitos humanos, condizente com o interesse da sociedade civil e com o discurso diplomático do Brasil no exterior, no sentido de alcançar soluções mais flexíveis e legislações nacionais adequadas aos mecanismos regionais.28 Em verdade, a escolha do legislador brasileiro pela definição ampliada de refugiado tem sentido ainda mais amplo, já que é a que mais coaduna com os princípios constitucionais de proteção à pessoa humana. Por isso, o Brasil seguiu o “Espírito de Cartagena”, adequando o instituto do refúgio à evolução do direito internacional dos BARROSO, op. cit. REDIN, Giuliana; MINCHOLA, Luis Augusto Bittencourt. Proteção dos refugiados na Declaração de Cartagena de 1984: uma análise a partir do caso dos haitianos no Brasil. Revista de Estudos Internacionais (REI), volume 4 (1), 2013, p. 33. 27  . MOREIRA, Júlia Bertino. Política em relação aos refugiados no Brasil (1947-2010). 2012. 351 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2012, p. 178 e ss. 28  Ibid., p. 194-195. 25  26 

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direitos humanos, num sentido de ampla garantia de exercício dos direitos humanos.29 O artigo 48 da lei n. 9.474/97 determina, de maneira clara, que a interpretação da lei deve ser feita em harmonia com os instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos; resta clara, portanto mais uma influência explícita da Declaração de Cartagena de 1984. O texto da Constituição Federal de 1988 demonstra o começo da incorporação do “Espírito de Cartagena” desde a sua promulgação. Destaca-se, inicialmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, que simboliza “verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido.”30 Importante também destacar as previsões do artigo 4º, que elenca os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, como o da prevalência dos direitos humanos, no artigo 4º, inciso II, da Carta Magna. 5 AS DIRETRIZES IMPLEMENTADAS PELO CONARE NA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 1º, INCISO III, DA LEI N. 9.474/97 O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) é o órgão responsável pela concessão do status jurídico de refugiado no Brasil. Vinculado ao Ministério da Justiça, tem composição multifacetada, com representantes governamentais e da sociedade civil, que decidem, colegiadamente, os pedidos de refúgio, declarando ou não o seu reconhecimento. A partir da prática jurisprudencial nas decisões de refúgio fundamentadas no artigo 1º, inciso III, o CONARE passou a adotar uma interpretação deste inciso legal, considerando três relevantes condições, que devem ser especialmente consideradas para a materialização da “grave e generalizada violação de direitos humanos.”31 Primeiramente, o Estado de origem do solicitante de refúgio deve ter total incapacidade de ação, ou a inexistência de entes formadores de um Estado Democrático de Direito, ou até mesmo a dificuldade de se identificar a existência daquele Estado, de acordo com as normas de Direito Internacional Público. Em segundo lugar, deve haver a observação da falta de uma paz estável e durável naquele Estado. Por fim, deve haver o CURRALADAS, Marilu Aparecida Dicher Vieira da Cunha Reimão. Os direitos dos refugiados e os “refugiados ambientais”: caminhos históricos e teóricos para uma proteção homóloga. 2013. 218 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – UNIFIEO – Centro Universitário FIEO, Osasco, 2013, p. 201. 30  PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14ª ed., ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 93. 31  CONARE. Resposta Requerimento de informações sobre os haitianos. Ofício n. 42, 3 fev. 2012. Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2015. 29 

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reconhecimento, por parte da comunidade internacional, de que esse Estado se encontra em uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos.32 Preenchidas todas estas condições, o CONARE ainda entende ser necessário um vínculo entre a situação vivida pelo solicitante e “um fundado temor de perseguição causado pelo Estado de origem em função de sua raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.”33 Ou seja: é necessário que se preencha o fundado temor de perseguição prevista no inciso I do artigo 1º. Segundo Leão, à luz de reiterados posicionamentos do Pleno do CONARE sobre a definição ampliada de refugiado contida no inciso III do artigo 1º, é essencial, para a configuração do refúgio, a perseguição materializada e/ou o fundado temor de perseguição.34 Tal exigência já é consolidada na jurisprudência do órgão.35 A exigência de perseguição e/ou seu fundado temor para a concessão do refúgio com base na “grave e generalizada violação de direitos humanos” não encontra qualquer amparo legal. O artigo 1º da lei n. 9.474/97 elencou três hipóteses distintas para o reconhecimento de um indivíduo como refugiado. Suficiente, portanto, que uma das três hipóteses se concretize para conceder o status de refugiado a alguém. Se o fundado temor de perseguição já é causa suficiente per si para a concessão do refúgio, não há porque exigir essa causa quando do reconhecimento do refúgio com base na grave e generalizada violação de direitos humanos. Ao analisar o caso dos milhares de haitianos que solicitaram refúgio no Brasil após o terremoto de 2010 que assolou o Haiti, o CONARE não os reconheceu como refugiados com base no inciso III, alegando que o solicitante deveria demonstrar que existe ameaça contra sua vida, liberdade ou segurança, bem como necessitaria preencher o requisito do fundado temor de perseguição.36 Não obstante, importante a colocação de Redin e Minchola, que destacam o fato de não haver previsão normativa do fundado temor de perseguição como condição para a aplicação do inciso III.37 Compartilha deste posicionamento Curraladas, entendendo que a definição ampliada de refugiado prevista em lei quis ir “além da definição calcada no elemento ‘perseguição’, colocando paralelamente ao ‘clássico’ o conceito de refugiaIbid. Ibid. 34  LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. Memória anotada, comentada e jurisprudencial do Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE. Brasília: Ministério da Justiça/CONARE, 2006, p. 21. 35  Id. O reconhecimento do refugiado no Brasil no início do século XXI. In: ACNUR. Refúgio no Brasil: a proteção brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas. Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto (Org.). 1. ed. Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010, p. 84. 36  GODOY, Gabriel Gualano de. O caso dos haitianos no Brasil e a via de proteção humanitária complementar. In: ACNUR. 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gabriel; ALMEIDA, Guilherme Assis de (Org.). São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011, p. 62. 37  REDIN; MINCHOLA, 2013, p. 35. 32  33 

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do que abarca a grave e generalizada violação de direitos humanos.”38 Seguimos entendimento contrário ao do CONARE por diversos motivos. Primeiramente, entendemos que as três condições exigidas pelo órgão para a materialização da “grave e generalizada violação de direitos humanos” resultam numa interpretação restritiva do inciso legal, que só exigiu que o indivíduo comprovasse uma situação de violação de direitos humanos grave e generalizada. Mais grave ainda nos parece a exigência do fundado temor de perseguição para a concretização da definição contida no inciso III. Como bem pontua Curraladas, o conceito de refugiado em sua acepção clássica tinha como objetivo proteger as vítimas da crise humanitária pós-Segunda Guerra Mundial, medida que foi suficiente para superar a crise de efetivação dos direitos humanos à época, o que não mais se faz suficiente hoje.39 Nessa esteira, a Declaração de Cartagena de 1984 modernizou o conceito de refúgio, adequando-o à realidade moderna, ampliando a garantia de exercício dos direitos humanos. Se o objetivo da Declaração foi abrir espaço “para outros indivíduos além daqueles já protegidos, interpretá-la em dependência dos antigos critérios rompe com seu caráter inovador.”40 Com a interpretação do CONARE, o inciso III da lei de refúgio brasileira, que incorporou o “Espírito de Cartagena”, perde completamente o seu real sentido, de alargamento da proteção à pessoa humana. Por fim, o CONARE exigiu a demonstração, por parte do solicitante, que sua vida, liberdade ou segurança estariam em perigo no país de origem. Mais uma vez, constata-se que a exigência extrapola o interesse do legislador, restringindo a interpretação do artigo da lei, tornando ainda mais difícil a vida do solicitante. 6 O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE (UNTERMASSVERBOT) E A “GRAVE E GENERALIZADA VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS” Ao longo do seu desenvolvimento histórico, os Estados de direito foram se moldando com o objetivo de concretizar as promessas trazidas nas suas Constituições. O simples reconhecimento das liberdades e dos direitos não eram suficientes para que as garantias se tornassem realidade. Portanto, havia a necessidade do Estado não só reconhecer formalmente esses direitos, mas também os garantir materialmente, devendo assim proteger ativamente o direito fundamental contra ameaças de violação, o que é 38  39  40 

CURRALADAS, 2013, p. 202. Ibid., p. 201. REDIN; MINCHOLA, 2013, p. 37.

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denominado pela doutrina de “dever estatal de tutela.”41 Nessa esteira, o indivíduo tem direito a exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de terceiros (poder público, particulares, outros Estados), ou seja, há um direito à proteção, com o fim de garantir, de forma efetiva, a fruição dos direitos fundamentais. O dever de proteção é diretamente proporcional à posição ocupada pelo bem jurídico que se busca proteger.42 Segundo Robert Alexy, os “direitos à proteção” se caracterizam por direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado, para que haja a devida proteção estatal contra intervenções de terceiro. Tal proteção não se restringe à vida e a saúde dos titulares, mas engloba tudo que seja objeto de proteção sob a ótica dos direitos fundamentais, aqui incluídos a dignidade, a liberdade, a família e a propriedade.43 É importante que o Estado verifique a situação e, constatado um fato merecedor de proteção, cumpra com sua obrigação de proteger, sob pena de violação de direitos fundamentais de um ou de vários indivíduos. Em verdade, o dever estatal de tutela decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, que tem caráter geral e absoluto.44 Essa é uma realidade não só na Constituição Brasileira, mas também no âmbito internacional. A dignidade da pessoa humana “é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana simboliza, desse modo, verdadeiro superprincípio constitucional.”45 No entendimento de Streck, o princípio da proporcionalidade se subdivide em dois: uma das faces é a de proteção positiva estatal; a outra, de proteção de omissões estatais.46 Assim, a estrutura deste princípio não visa tão somente um garantismo negativo, de proteção contra os excessos estatais, mas também para um garantismo positivo, quando o Estado deixa de proteger de maneira suficiente determinado direito fundamental, conceito este trazido pela doutrina alemã, denominado de “proibição de proteção deficiente” (Untermassverbot).47 Segundo Pieroth e Schlink, o Estado fere um dever de proteção quando age de DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 112-113. 42  SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 190. 43  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 450. 44  PIOVESAN, 2013, p. 93. 45  Ibid. 46  STRECK, Lenio Luiz Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2015. 47  Ibid. 41 

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maneira insuficiente para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços. Se há uma obrigatoriedade de o Estado não interferir em excesso nos direitos fundamentais como direitos de defesa, faz-se igualmente necessário o respeito aos “direitos fundamentais como deveres de proteção, ao não se satisfazer com uma proteção abaixo da medida.”48 Logo, não se pode considerar a noção de proporcionalidade somente sobre o prisma da proibição de excesso, mas também como “um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros.”49 A proibição da proteção deficiente é, pois, um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais que visa coibir a prática de condutas omissivas pelo Estado, que gerem a violação de determinados bens jurídicos. A aplicação deste critério pode determinar se há violação de um direito fundamental de proteção quando há a conduta omissiva do Estado. A grave e generalizada violação de direitos humanos prevista na lei de refúgio brasileira pode, à luz do princípio da proibição da proteção deficiente, ser interpretada de maneira mais condizente com a proteção da pessoa humana. Ao analisar uma solicitação de refúgio com base no artigo 1º, inciso III da lei n. 9.474/97, o CONARE pode interpretar que o indivíduo vem sofrendo violação de direitos humanos não só por perseguição, mas também em virtude de graves omissões estatais, que levam a grave perturbação da ordem pública ou a situações calamitosas de ausência de garantias fundamentais ao ser humano. Ao exigir o fator perseguição para a concessão do refúgio com base no artigo 1º, inciso III, da lei 9.474/97, o CONARE realiza o total esvaziamento do inciso legal, que foi implementado com o objetivo de ampliar as hipóteses de concessão de refúgio à luz dos direitos humanos. Ao invés de realizar a interpretação caso a caso, utilizando-se de princípios norteadores de uma interpretação mais humana (como o princípio da proibição da proteção deficiente), o órgão prefere incluir exigência ilegal e desarrazoada, visto que o fator perseguição já é motivo per se para a concessão do refúgio, nos termos do artigo 1º, inciso I da mesma lei, sendo, portanto, inexigível para a concessão do refúgio com base na “grave e generalizada violação de direitos humanos”.

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 110. SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2015. 48  49 

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7 O REFUGIADO AMBIENTAL SOFRE GRAVE E GENERALIZADA VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS? Após analisarmos o conceito de refugiado ambiental e a interpretação do artigo 1º, inciso III da lei n. 9.474/97, resta saber se os indivíduos considerados refugiados ambientais poderiam ter o status de refugiado reconhecido pelo governo brasileiro, sob o argumento de que eles sofreriam grave e generalizada violação de direitos humanos. Segundo Raiol, essa é a questão que demanda mais atenção na lei de refúgio brasileira, tendo em vista o seu caráter inovador, que representa uma nova era no tratamento dos refugiados no território nacional, já que “todos aqueles que sofreram ‘grave e generalizado’ ataque à integridade de seus direitos inerentes à sua condição humana, poderão, agora, recorrer à proteção da nação brasileira.”50 Há necessidade de delimitar a amplitude do termo “ambientais” no contexto do deslocamento: quais são as causas ambientais aptas a gerar deslocamento externo, com a consequente solicitação de refúgio? Segundo entendimento de Myers, essas causas são a seca, a desertificação, o desmatamento, a erosão do solo, a escassez de água e as mudanças climáticas, além de desastres naturais (ciclones, tempestades e inundações).51 Os fatores ambientais acima descritos, todavia, não representam os únicos fatores que geram o deslocamento. Assim, qualquer movimento migratório não decorre só de um fator, mais de vários que convergem. O “desequilíbrio ambiental está sempre misturado com outras causas, que podem incluir escassez econômica ou de oportunidades, redes sociais, contexto político, etc.” (tradução nossa).52 Logo, o fator preponderante deve ser o ambiental, mas é inevitável que existam outros fatores que levem o refugiado ambiental a migrar. Importante destacar também que o deslocamento de indivíduos em virtude de algum desequilíbrio ambiental é mais propenso a ocorrer em contextos já deteriorados por conflitos sociais, desordem política ou crises econômicas. Nestes casos, o desequilíbrio ambiental tem um peso muito maior, ou seja, tem um efeito multiplicador que vilipendia ainda mais a dignidade das pessoas que nesses locais habitam.53 Os refugiados ambientais procuram o refúgio em outros países quando não há mais alternativa em seu país de origem. Quando o Estado já é desestruturado e não consegue atender as necessidades básicas da população, a situação caótica e vilipendiadora RAIOL, 2010, p. 203. MYERS; KENT, 1995, p. 18-19. 52  “Environmental stress is always mixed with other causes, which may include economic constraints or opportunities, social networks, political context, etc”. PIGUET, Etienne; PÉCOUD, Antoine; GUCHTENEIRE, Paul de. Migration and Climate Change: an Overview. Centre of Migration, Policy and Society, Working Paper No. 79. Oxford: University of Oxford, 2010, p. 9. 53  Ibid. 50  51 

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da dignidade humana em que vivem estes indivíduos se torna insustentável quando conjugada com o distúrbio ambiental, levando as pessoas a saírem do local onde vivem “buscando condições mínimas de sobrevivência, ainda mais quando o Estado, que deveria resolver esta situação, pouco pode fazer.”54 Cumpre destacar que o direito ao meio ambiente equilibrado, que permita uma vida digna aos indivíduos, é direito fundamental de terceira geração, garantido pela Constituição Federal de 1988 e por Conferências da ONU. É importante que o Estado proteja os direitos fundamentais de maneira equitativa, sejam eles individuais ou coletivos, já que todos devem ser analisados num contexto de unidade e indivisibilidade.55 Portanto, os refugiados ambientais sofrem “grave e generalizada violação de direitos humanos” quando não há capacidade ou atuação positiva do Estado de origem para resolver situações de desequilíbrio ambiental que ameaçam a existência ou a qualidade de vida destes indivíduos, quando necessitados de proteção para manter o mínimo de dignidade humana. Na sua condição de direito fundamental inerente à pessoa humana, o direito ao ambiente precisa ser minimamente preservado pelo Estado, sob pena do distúrbio ambiental ganhar proporções tão graves que coloquem em risco a existência humana, levando ao deslocamento forçado de seres humanos. Quando pessoas tem direitos humanos violados, faz-se indispensável a proteção integral desses indivíduos por qualquer Estado de direito. Nessa esteira, o Estado brasileiro tem o dever de proteger os indivíduos que tem seus direitos fundamentais violados de maneira grave e generalizada, em conformidade com o artigo 1º, inciso III, da lei n. 9.474/97, inclusive em situações de desastres ambientais. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS A lei n. 9.474/97, em seu artigo 1º, inciso III, contém uma hipótese legal de concessão do status jurídico de refugiado com clara inspiração na Declaração de Cartagena de 1984. Ao decidir pela implementação do inciso, a vontade do legislador era ampliar as hipóteses de concessão para além do previsto na Convenção da ONU de 1951 e no Protocolo de 1967, onde só é possível conceder o status à indivíduos que sofram algum tipo de perseguição. Portanto, a “grave e generalizada violação de direitos humanos” como motivo para a concessão do refúgio não pode ser interpretada à luz dos dispositivos internacionais clássicos, já que seu objetivo é consagrar uma definição ampliada de refugiado, condizente com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e com o 54  55 

REDIN; MINCHOLA, 2013, p. 42. MENDES; BRANCO; COELHO, 2009, p. 268.

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direito internacional dos direitos humanos. Esse é, inclusive, o entendimento contido no artigo 48 da mesma lei, que prevê a interpretação dos preceitos contidos na lei n. 9.474/97 em harmonia com todo instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido. É preciso que analise, à luz da dignidade da pessoa humana, qualquer solicitação de refúgio. O CONARE, enquanto órgão brasileiro responsável pela análise individual das solicitações de refúgio, não pode fazer uma interpretação restritiva do inciso III do artigo 1º da lei n. 9.474/97, subordinando-o ao conceito clássico e ortodoxo de refugiado, pois tal inciso fica sem efeito, já que o seu real objetivo era ampliar o conceito clássico. A real intenção do artigo 1º, inciso III, da lei 9.474, era garantir o direito de refúgio às vítimas de grave e generalizada violação de direitos humanos, mesmo diante da ausência de qualquer perseguição. O “fundado temor de perseguição” deve estar presente na concessão do refúgio com base no inciso I do artigo 1º; no inciso III, o “fundado temor” é de violação de direitos humanos. Reduzir a aplicação do inciso III e vincular o seu uso à definição clássica, que já consta do inciso I, é medida ilegal e violadora do princípio da dignidade da pessoa humana. Faz-se necessário, pois, que se conceda o refúgio toda vez que se caracterize a grave e generalizada violação de direitos humanos, inclusive para os indivíduos que solicitam o refúgio em virtude de distúrbios ambientais. Cumpre reafirmar a condição fundamental do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, inerente à pessoa humana, constitucionalmente previsto no artigo 225º, bem como em declarações internacionais. Naturalmente, a concessão do refúgio não é automática. A análise individual das solicitações de refúgio (incluídos o depoimento do solicitante, possíveis provas apresentadas e a análise da situação do país de origem) é imprescindível para que não haja a concessão do status jurídico de refugiado para indivíduos que não se enquadrem em uma das três hipóteses legais. Conforme abordagem realizada neste trabalho, o princípio da proibição da proteção deficiente pode servir de base nas análises de solicitação de refúgio por “grave e generalizada violação de direitos humanos”. Quando há uma situação de violação de direito fundamental (por exemplo, um grave distúrbio ambiental) e o Estado se omite diante do seu dever de proteção, ou age de modo insuficiente para atingir uma proteção eficaz e humana, o indivíduo, desprotegido e violado em sua condição mais fundamental, é obrigado a se deslocar para garantir a sua sobrevivência, a sua dignidade. Portanto, esse indivíduo, ao solicitar o refúgio ao Governo brasileiro com base no artigo 1º, inciso III, da lei n. 9.474/97, não pode ter seu pedido negado, já que preenche perfeitamente

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a exigência legal, à luz da dignidade da pessoa humana. Conclui-se, por fim, que a concessão do status jurídico de refugiado com base na “grave e generalizada violação de direitos humanos” deve ocorrer com plena observância do princípio da dignidade humana; destarte, o refugiado ambiental que tem o seu direito fundamental ao meio ambiente violado, diante de um contexto de distúrbio ambiental de graves proporções, sofre grave e generalizada violação de direitos humanos, já que a sua própria existência ou a vida digna estão ameaçadas. Assim, imperiosa a concessão status jurídico de refugiado a estes indivíduos, sendo necessário que o CONARE reveja a interpretação do artigo 1º, inciso III, da lei n. 9.474/97, que, com a devida vênia, atualmente se encontra distanciada do princípio da dignidade da pessoa humana. REFERÊNCIAS ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009. BLACK, Richard. Environmental refugees: myth or reality? Working Paper n. 34, Brighton, 2001. Disponível em: . Acesso em: 30 de março de 2015. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. ______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. MS 22164-S, 30 out. 1995.. Relator: Min. Celso de Mello. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2015. CLARO, Carolina de Abreu Batista. Refugiados ambientais. Mudanças climáticas, migrações internacionais e governança global. 2012. 113 f. Dissertação (Mestrado) – Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2012, p. 40. CURRALADAS, Maria Aparecida Dicher Vieira da Cunha Reimão. Os direitos dos refugiados e os “refugiados ambientais”: caminhos históricos e teóricos para uma proteção homóloga. 2013. 218 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – UNIFIEO – Centro Universitário FIEO, Osasco, 2013. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. EL-HINNAWI, Essam. Environmental Refugees. Nairobi: United Nations Environmental Programme, 1985. FRANCO, Marina. Pedido de refúgio no país aumentou 2.131% em 5 anos, diz ministério. G1, São Paulo, 3 jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015. GODOY, Gabriel Gualano de. O caso dos haitianos no Brasil e a via de proteção humanitária com-

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Fluxos migratórios e as novas categorias de refugiados: Os refugiados ambientais e os refugiados econômicos Thiago Giovani Romero1 Resumo: O presente artigo tem como objetivo abordar as novas categorias de refugiados: refugiados econômicos e refugiados ambientais. Buscar-se-á um diálogo destas novas categorias em relação ao sistema de tutela e proteção dos refugiados no âmbito internacional, de acordo com a Convenção dos Refugiados de 1951 e o Protocolo adicional sobre a mesma matéria de 1967. Abordará a necessidade de ampliação do conceito legal de refugiado, tendo em vista as novas realidades fáticas e sociais, no âmbito econômico e de alterações climáticas. A justificativa do tema está na abordagem da definição trazida pelo Estatuto do Refugiado de 1951, por não ser estendida aos novos refugiados, que ficam à margem da proteção internacional dos direitos humanos. Optou-se na construção do trabalho pelo método dedutivo, por meio de uma revisão bibliográfica. Portanto, diante do crescimento dos fluxos migratórios entre as fronteiras, os refugiados econômicos e ambientais devem ter garantias mínimas, suportadas pelo sistema de proteção de direitos humanos. Palavras-chave: Refugiados; Refugiados Econômicos; Refugiados Ambientais; Direitos Humanos. Abstract: This article aims to address the new categories of refugees, economic refugees and environmental refugees. Search It will be a dialogue of these new categories in relation to the guardianship system and refugee protection at the international level, according to the Convention of Refugees of 1951 and the Additional Protocol on the same subject in 1967. It will address the need for enlargement legal concept of refugee, in view of the new factual and social realities in the economic and climate change. The issue justification is in defining the approach brought by the Refugee Status, 1951, for not being extended to new refugees, who are on the margins of human rights international protection. We chose to work in the construction of the deductive method, through a literature review. Therefore, given the growth of migration flows across borders, the economic and environmental refugees must have minimum guarantees, supported by the human rights protection system. Keywords: Refugees; Economic Refugees; Environmental Refugees; Human Rights.

1  Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade “Júlio de Mesquita Filho” - Faculdade de Ciência Humanas e Sociais – UNESP/Franca. Especialista em Direito Internacional pela PUC/ SP. Advogado. Email: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO Nos últimos anos, acompanhamos a questão das migrações humanas e a sua discussão acerca do direito internacional, por meio dos organismos internacionais. Os fluxos migratórios destacam-se em razão das pessoas abandonarem seus países, em decorrência de problemas climáticos ou de ordem econômica. Estas pessoas, para a legislação internacional, ao atravessarem as fronteiras dos seus Estados, buscando novos horizontes e garantias, são denominadas refugiados. Em seu conceito clássico, os refugiados são definidos por fugirem de seus países de origem em razão de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, filiação a determinado grupo social ou opiniões políticas. Conforme já mencionado, o presente artigo tem por escopo, abordar o surgimento das novas categorias de refugiados: os refugiados econômicos e ambientais. Isto porque, tornou-se um tema contemporâneo, ligado diretamente às mudanças climáticas que o mundo vem sofrendo e o esfacelamento do sistema econômico, logo é um tema novo e pouco discutido. Vale salientar que a movimentação de pessoas entre as fronteiras não é um assunto da atualidade, pois sempre houve relatos de indivíduos que transitavam pelos Estados em razão dos mais variados motivos, seja de cunho econômico, pessoal, ideológico ou de segurança. Importante destacar que os refugiados são tratados como uma ameaça pelas políticas internas dos Estados, mas indiscutivelmente, aqueles são protegidos pelos direitos e garantias inerentes as condições humanas, ou seja, são protegidos pelo sistema internacional de direitos humanos. A problemática dos refugiados econômicos e ambientais é relevante, pois o conceito clássico de refugiado que vislumbramos no Estatuto de 1951 e no Protocolo Adicional, não os aborda. Logo, verificamos a necessidade emergencial destas novas categorias de refugiados serem amparadas e inseridas no ordenamento jurídico internacional. No tocando dos refugiados ambientais, a justificativa para a criação desta categoria encontra suporte pelas constantes alterações climáticas e o uso desenfreado dos recursos naturais. Já, sobre os refugiados econômicos, são aquelas pessoas que poderiam, ao menos em tese, subsistirem em seu país de origem, mas, insatisfeitos com as condições locais, se deslocam para outra região, em busca de melhores perspectivas de vida2. Estamos diante de uma nova perspectiva no cenário internacional, carente de definição e principalmente, falta de amparo legal que os Estados deveriam promover 2  COSELLA, Paulo Borba. Refugiados: conceito e extensão, IN:. O Direito internacional dos Refugiados: Uma perspectiva Brasileira, Coordenadores: Nadia de Araujo e Guilherme Assis de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 24.

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através de políticas publicas, visando garantir condições mínimas de direitos básicos, tanto aos seus nacionais, antes de deixarem seus países de origem, bem como os países que recepcionam os imigrantes na condição de refugiados. Nesta seara, visamos apresentar definição clássica do instituto dos refugiados, e a importância de construirmos uma ampliação conceitual que represente as novas categorias de refugiados: econômicos e ambientais; que não pode ficar a margem do sistema de proteção de direitos humanos. 2 HANNAH ARENDT E A QUESTÃO DOS REFUGIADOS Inicialmente, Hannah Arendt traz uma terminologia humanista para ser usada no lugar de “refugiados”, ou seja, trata-os chamando de “recém-chegados” ou “imigrantes”. Assim, tínhamos um refugiado como uma pessoa que se vê obrigada a buscar refúgio em razão de algum acto cometido ou posicionamento político. Em um conceito mais atual, os refugiados são pessoas que deixaram seu país de origem e chegaram a um novo, sem nenhuma infraestrutura, sendo auxiliados pelos Comitês de Refugiados3. Arendt, em um contexto pós-2ª Guerra, aborda a questão dos apátridas, resultante dos processos de desnacionalização, retratando o sentimento de inferioridade que estas pessoas sofrem por não se sentirem inclusas à parte alguma. Isto porque, a nacionalidade é responsável pela formação de identidade da pessoa em razão do seu país. Segundo Olivia Fürst Bastos4: A realidade dessas populações, obrigadas a deixar seus países de origem e sem perspectiva de voltar ao lar, trouxe à tona o difícil problema dos apátridas: indivíduos que, ao deixarem seu Estado, perdiam sua nacionalidade e, em conseqüência, todos os demais direitos, passando a formar um grupo que não fazia parte de nenhum país. Arendt coloca em evidencia o sofrimento destes grupos, aos quais, subitamente, já não se aplicavam as regras do mundo que os rodeava.

Verificamos que no último século, em decorrências das grandes guerras, nos deparamos com a figura dos refugiados, e principalmente, sobre as questões que envolvem os imigrantes ilegais. Esta temática é tratada pelo Direito Internacional, através da 3  ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. Covilhã: LusoSofia:press, 2013, p. 7. Disponível em: http:// www.lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf. Acesso em: 21 jun. 2015, p. 7. 4  BARROS, Olivia Fürst. Hannah Arendt e o tema dos refugiados, IN:. O Direito internacional dos Refugiados: Uma perspectiva Brasileira, Coordenadores: Nadia de Araujo e Guilherme Assis de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 304.

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Convenção dos Refugiados de 1951, que traz a seguinte definição por Cosella5: A expressão refugiados se aplica a qualquer pessoa que, em virtude de fundado medo de sofrer perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, participação em determinado grupo social ou convicção política, se encontra fora do país da qual é nacional e está impossibilitada ou, em virtude, desse fundado medo, não deseja entregar à proteção deste país.

Logo, em virtude da desnacionalização, surge um alto contingente de pessoas sem Estado, buscando um novo país. Estes, por sua vez, encontram dificuldades em receber estas massas populacionais, tentando repatriá-los ou deportando-os aos países de origem, independentemente, se estes querem ou não recebê-los. Notório, que estamos diante de um fluxo sem controle de pessoas, que se soma com carência de tratamento pelos países receptores, resulta no esfacelamento do direito de asilo, considerado um marco das lutas pelos Direitos Humanos6. Assim, nos deparamos com a chamada obrigação de solidariedade, que segundo Marcio Pereira Pinto Garcia7 é o “dever de assistir quem dele necessita, o dever de solidariedade de todos nós para com a dor do ser humano forçado a deixar sua terra natal, sua pátria”. Hannah Arendt traz um questionamento importante, quando aborda o direito a ter direito ou o direito que cada indivíduo tem de pertencer à humanidade, que no âmbito da temática proposta dos refugiados, devemos observar nas suas próprias palavras que o garantidor é a população mundial8, segue: Humanidade, que para o século XVIII... nada mais significava do que uma idéia reguladora, hoje se tornou um fato do qual não se pode escapar. Essa nova situação, na qual [a]” humanidade” assumiu de fato o papel anteriormente prescrito à natureza ou história, significaria neste contexto que o direito a ter direitos ou o direito que cada indivíduo tem de pertencer à humanidade, deve ser garantido pela própria humanidade. COSELLA, Paulo Borba. Ibid, p. 19-20. B BARROS, Olivia Fürst. Hannah Arendt e o tema dos refugiados, IN:. O Direito internacional dos Refugiados: Uma perspectiva Brasileira, Coordenadores: Nadia de Araujo e Guilherme Assis de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001. 7  GARCIA, Marcio Pereira Pinto. Refugiado: o dever de solidariedade, IN:. O Direito internacional dos Refugiados: Uma perspectiva Brasileira, Coordenadores: Nadia de Araujo e Guilherme Assis de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 148. 8  MICHELMAN, Frank I. Draft: A right to have Rights: Jurisprudential and Logical Analysis. s, vol. 3, issue 2, 1995, p. 14. 5  6 

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Podemos utilizar uma indicação de Celso Lafer9, que trata da reconstrução dos Direito Humanos por intermédio da obra de Hannah Arendt, para evidenciar uma garantia aos refugiados, onde devemos “ver na cidadania o direito a ter direitos, uma vez que a igualdade não é um dado, mas uma consciência coletiva construída que requer por isso espaço público”. Diante das breves indicações sobre o pensamento de Hannah Arendt, a questão dos refugiados está diretamente ligada à forma que deve ser valoriza as condições homem, compreendendo a sua totalidade e utilizando o direito, conseguiremos construir um mundo equilibrado. 3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Evolutivamente, ao tratar da proteção dos direito humanos, nos lembramos do ensinamento de Hannah Arendt10, que consiste em dizer que os direitos humanos não são um dado, mas uma invenção humana em um processo constante de construção e reconstrução. Ao encontro do entendimento de Arendt, afirma Ignacy Sachs11: Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos.

Não menos importante, Noberto Bobbio12 retrata a condição dos direito humanos em seu livro “Era dos Direitos”, como: Os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. LAFER, Celso. Hannah Arendt, pensamento, persuasão e poder. São Paulo. Paz e Terra. 1979, p. 308. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. 11  SACHS, Ignacy. Desenvolvimento, direitos humanos e cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p. 156. 12  BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988, p. 30. 9 

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Não há dúvidas sobre a ascensão da internacionalização dos direitos humanos, principalmente a partir do final da 2ª Guerra Mundial, que trouxe a figura do sistema internacional de proteção. O movimento de internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Se a 2ª. Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea13.

Em 1945, a carta da Organização das Nações Unidas (ONU) entrou em vigor, com a ideia de um governo mundial, tendo como objetivo a paz entre os Estados e mobilizar a comunidade internacional para combater o desrespeito e promover os direitos humanos14. A Assembleia Geral da ONU, em 1948, elaborou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de modo que introduziu uma concepção contemporânea sobre os direitos humanos, revestida com características de universalidade e indivisibilidade. Universalidade porque a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos, sendo a dignidade humana o fundamento dos direitos humanos.Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais15.

Notamos que foi com o advento da Declaração de 1948, que houve o início do direito internacional sobre os direitos humanos, ou seja, um processo de universalização de direitos para a formação de um sistema internacional de proteção, suportado pela ONU. Neste contexto, a problemática dos refugiados deve ser abordada no âmbito dos direitos humanos, por haver uma inter-relação, afinal o refúgio está amparado com as PIOVESAN, Flávia Cristina. Sistema internacional de direitos humanos. I Colóquio Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, Brasil, 2001. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2015, p. 1-2. 14  HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional. 10ª Ed. São Paulo: Ltr. 2010, p. 214. 15  PIOVESAN, Flávia Cristina. Op cit., p. 2. 13 

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normas de preservação da vida humana, expressas na Declaração de 194816 (Conclusão nº. 56). Nota-se que o sistema de proteção para os direitos humanos é efetivado por tratados internacionais, fundamentados em um consenso ético e assecuratório que compartilham os Estados.Portanto, a participação crescente dos Estados-partes nestes tratados configura um grau de alinhamento internacional sobre a preservação da vida humana, através dos direitos humanos17. Não menos importante, Antonio Augusto Cançado Trindade18, evidencia a problemática do monismo e dualismo, em razão da participação dos Estados em senso comum de proteção internacional dos direitos humanos, que devem efetivar prioritariamente os direitos inerentes da pessoa humana, independente da primazia do direito internacional ou do seu direito interno. Vejamos: Desvencilhamo-nos das amarras da velha e ociosa polêmica entre monistas e dualistas; neste campo de proteção, não se trata de primazia do direito internacional ou do direito interno, aqui em constante interação: a primazia é, no presente domínio, da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma de direito internacional ou de direito interno.

Arrematando o que foi exposto por Trindade, Flávia Piovesan19 menciona que os “direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional”. Evidentemente, podemos concluir que os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos exigem dos Estados-partes uma redefinição interna do conceito de cidadania. Afinal, o Estado que ratifica um tratado internacional de direitos humanos deve manter um diálogo paralelo com a sua legislação interna, para que não haja contradições que possam prejudicar os direitos e garantias fundamentais do seu povo, em consequência ao bom funcionamento do sistema de proteção internacional. É fundamental a interação entre o catálogo de direitos nacionalmente previstos e o catálogo de direitos internacionais, com vistas a assegurar a mais efetiva proteção aos direitos humanos. ACNUR. Conclusiones sobre la proteccion internacional de los refugiados. Genebra, 1990. PIOVESAN, Flávia Cristina. Ibid, p. 3. 18  TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. 1. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997. 19  PIOVESAN, Flávia Cristina. Ibid., p. 4. 16  17 

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Impõe-se ainda ao Estado o dever de harmonizar a sua ordem jurídica interna à luz dos parâmetros mínimos de proteção dos direitos humanos – parâmetros estes livremente acolhidos pelos Estados20.

Nota-se na doutrina clássica a existência de três vertentes que assistem a proteção internacional dos direitos humanos: Direitos Humanos, Direito Humanitário e Direito dos Refugiados. Mas, atualmente, esta visão segmentada encontra-se em desuso, pois se busca ampliar as normas de garantia visando assegurar os direitos inerentes ao homem em todos os campos21. Inicia-se um movimento de internacionalização dos direitos humanos, amparada por Richard B. Bilder22: É baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas, procedimentos e instituições internacionais desenvolvidos para implementar esta concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países, no âmbito mundial.

Ao tratarmos sobre o direito internacional dos refugiados, constatamos que o seu objetivo é garantir e estabelecer os direitos humanos mínimos aos indivíduos que saem dos seus países de origem, deixando tudo para trás, buscando um novo meio social23. Segundo Cançado Trindade, Geràld Peytrignet e Jaime Ruiz de Santiago 24, a problemática acerca dos refugiados surge em razão das violações dos direitos humanos básicos, que deveriam ser respeitados em todo o processo de solicitação de asilo ou refúgio. PIOVESAN, Flávia Cristina. Op cit, p. 4. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEYTRIGNET, Gérard; SANTIAGO, Jaime Ruiz. As Três vertentes da proteção internacional dos Direitos da Pessoa Humana. San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996. Disponível em: http://www.icrc.org/web/ por/sitepor0.nsf/iwpList104/9A61705B9AD3183303256E7E00617187. Acesso em: 23 jun. 2015. 22  BILDER, Richard. An overview of international human rights law, IN: Hurst hannum, guide to international rights practice. 2. ed., Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992, p. 3-5. 23  SAADEH, Cyro; EGUCHI, Mônica Mayumi. Convenção relativa ao estatuto dos refugiados: protocolo sobre o estatuto dos refugiados. São Paulo, 1998. Disponível em: . Acesso em 23 jun. 2015. 24  TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEYTRIGNET, Gérard; SANTIAGO, Jaime Ruiz. Ibid. 20  21 

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Os mesmos autores25 traz o seguinte entendimento: O direito internacional dos refugiados está intimamente vinculado ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário, sobretudo com a normativa internacional sobre Direito Humanos, na medida em que esta se aplica a toda pessoa humana, independentemente de sua condição ou origem.

O direito internacional é o instrumento capaz de garantir a proteção dos direitos humanos, nos âmbitos global e interno de cada Estado, a todo ser humano. Em especial, nota-se que a garantia dos direito dos refugiados não se aplica a todos os homens, pois é necessário o exame de algumas circunstâncias especiais26. Portanto, em uma visão contemporânea a respeito dos direitos humanos, conclui-se que o direito humanitário e o direito dos refugiados são peças fundamentais, existentes dentro do sistema de proteção internacional, buscando estabelecer um núcleo garantidor: a preservação da vida humana, por meio se assegurar direitos básicos de subsistência. Conforme menciona Cançado Trindade27: “O ser humano passa a ocupar, em nossos dias, a posição central que lhe corresponde, como sujeito de direito tanto interno quanto internacional”. 4 O ESTATUTO DOS REFUGIADOS DE 1951 E O PROTOCOLO ADICIONAL DE 1967 Para compreendermos o instituto dos refugiados, a doutrina traça o seguinte parâmetro, a partir do direito de asilo, que é gênero e o refúgio é a espécie. Ou seja, a origem da palavra grega asilo, traz o conceito que seja qualquer local inviolável, refúgio ou expressa imunidade28. No âmbito da legislação internacional, verificamos que na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 14, demonstra a ligação entre os institutos de asilo e refugio. Vejamos: “Toda pessoa em caso de perseguição, tem o direito de buscar asilo e de desfrutá-lo em outro país.”

Idem, p. 230. SAADEH, Cyro; EGUCHI, Mônica Mayumi. Ibid, p. 129. 27  TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Ibid, p. 112. 28  BALDI, Augusto Cesar (org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 223. 25  26 

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No refúgio se abriga quem procura se furtar do perigo que lhe ameaça, sendo que, quem o concede apenas oferece o abrigo até que tal estado de perigo se cesse, não lhe assegurando a proteção. De outro norte, o asilo é a proteção que se busca para se livrar da perseguição de quem tem a maior força, sendo que o asilador torna-se protetor do asilado para defendê-lo e livrá-lo da perseguição29.

Não obstante, o artigo 1º do Estatuto dos Refugiados de 1951, cunha uma definição mais especifica do que a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, visando uma limitação ao aplicar somente as características de refugiados as pessoas que em razão de fundados temores de ser perseguida por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora do país de origem e que não pode ou não quer valer-se da proteção desse país. Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país30.

Entretanto, após o advento de um instrumento internacional sobre a questão dos refugiados, a crítica consiste na limitação temporal que o Estatuto assegura aos refugiados a partir de 1º de janeiro de 1951, ou seja, os protagonistas eram as pessoas que se movimentaram entres as fronteiras por força da 2ª Guerra Mundial31. A Convenção de Genebra, de 1951, sobre o Estatuto dos Refugiados, constitui a Carta Magna para determinar a condição de refugiado, bem como para entender seus direitos e deveres, e é em conformidade com essa Convenção que se tem determinado a situação de mais de 20 milhões de pessoas que, atualmente, possuem a condição de refugiados em todo o mundo32. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Forense, v. 4, 1984, p. 64-65. ONU. ACNUR. Estatuto dos Refugiados. Genebra, 1992. Disponível em: Acesso em: 21 jun. 2015. 31  PINTO, Anne Fernanda Rocha da Silva. Refugiados ambientais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 71, dez 2009. Disponível em: . Acesso em: 23 jun 2015. 32  TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEYTRIGNET, Gérard; SANTIAGO, Jaime Ruiz. As Três vertentes da proteção internacional dos Direitos da Pessoa Humana. San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996. Disponível em: http://www.icrc.org/web/ por/sitepor0.nsf/iwpList104/9A61705B9AD3183303256E7E00617187. Acesso em: 23 jun. 2015. 29  30 

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Conforme mencionado acima, a definição fixada pela Convenção de Genebra de 1951 apresentava além da limitação temporal, uma limitação geográfica, ou seja, fazia permissão de ser restrita apenas aos acontecimentos recentes na Europa, pós-2ª Guerra. A respeito da limitação temporal, verificamos que a alteração aconteceu com a ratificação e introdução do Protocolo Adicional em 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados, que proporcionou a sua utilização para as novas movimentações populacionais entre países. Segundo Pinto33, na década de 1960, houve um crescimento acentuado nos fluxos de pessoas, trazendo como exemplo o processo de descolonização do continente africano, sendo este o pontapé inicial que a comunidade internacional começa a identificar a incapacidade compreender que estas pessoas necessitam de proteção internacional. Em suma, verifica-se que as pessoas integrantes destes fluxos migratórios, para serem amparados por outros países, precisam atender aos requisitos impostos pelo arcabouço jurídico sobre os refugiados, conforme determina o artigo 1º da Convenção de Genebra de 195134. Ou seja, as novas categorias de refugiados, os econômicos e ambientais, não fazem parte desta sistemática, por isso a importância de uma ampliação do conceito, para que os novos refugiados possam ter seus direitos básicos garantidos, por meio de um instrumento especial (Estatuto dos Refugiados e Protocolo Adicional). 5 UMA NOVA VISÃO SOBRE OS REFUGIADOS Uma visão ampliada dos conceitos trazidos pelos principais diplomas a respeito dos refugiados, Convenção de Genebra de 1951 e seu Protocolo Adicional, passa a ser indiscutível, diante dos fatores climáticos, econômicos e do fenômeno da globalização. Verificamos a pertinência em defender uma ampliação dos conceitos em razão do que a Convenção da Organização de Unidade Africana de 1969 e a Declaração de Cartagena de 1984, que adicionaram em seu texto legal outras formas de perseguição, tais como: agressão externa, ocupação, domínio estrangeiro e acontecimentos que perturbam gravemente a ordem pública35. Portanto, para melhorar esclarecimento, vejamos o que traz a Declaração de Cartagena sobre os Refugiados de 1984, em sua terceira conclusão determinando: Terceira - Reiterar que, face à experiência adquirida pela afluência em massa de refugiados na América Central, se toma necessário 33  34  35 

PINTO, Anne Fernanda Rocha da Silva. Ibid. COSELLA, Paulo Borba. Ibid, p. 17-26. PINTO, Anne Fernanda Rocha da Silva. Ibid.

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encarar a extensão do conceito de refugiado tendo em conta, no que é pertinente, e de acordo com as características da situação existente na região, o previsto na Convenção da OUA (artigo 1., parágrafo 2) e a doutrina utilizada nos relatórios da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública36.

Nesta mesma seara, a Convenção da Organização de Unidade Africana de 1969 estabeleceu, em seu artigo 1º, uma ampla definição sobre as pessoas denominadas refugiadas. Vejamos: Artigo I: Definição do termo Refugiado: 1 - Para fins da presente Convenção, o termo refugiado aplica-se a qualquer pessoa que, receando com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país da sua nacionalidade e não possa, ou em virtude daquele receio, não queira requerer a protecção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país da sua anterior residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude desse receio, não queira lá voltar. 2 - O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade37.

Isto posto, vimos que a Declaração de Cartagena e a Convenção da Organização ACNUR. Declaração de Cartagena, Adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”, realizado em Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de Novembro de 1984. Disponível em: < http://www.acnur.org/t3/fileadmin/ Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf?view=1>. Acesso em: 23 jun. 2015. 37  ACNUR. Convenção da Organização de Unidade Africana, Adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”, realizado em Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de Novembro de 1984. Disponível em: http://goo.gl/ ZPbVzh. Acesso em: 23 jun. 2015. 36 

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da Unidade Africana são pioneiras e garantidoras de direitos mínimos para com as pessoas que deixam seus países na expectativa de uma vida melhor. Ao ampliarem o conceito, verifica-se a importância de uma atualização jurídica diante do crescimento dos fluxos migratórios, em razão dos mais variados fatores. Estes instrumentos são prova de que para o reconhecido como refugiado, não é necessário o fundamento no receio de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, filiação a determinado grupo social ou opiniões políticas, conforme dispõe a Convenção de 1951 e o seu Protocolo Adicional. 6 OS REFUGIADOS ECONÔMICOS O fluxo migratório das pessoas entre as fronteiras é comum em diversos momentos da história e acontecem pelos mais variados motivos como a necessidade econômica, a fuga de conflitos armados em determinada região, até mesmo por sofrerem perseguições ideológicas38. Portanto, diante do crescimento destes fluxos e visando uma garantia de direitos básicos, o Estatuto do Refugiado de 195139, traz em seu artigo 1º a definição sobre quem será considerado refugiado. Vejamos: Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

De acordo com Sousa e Bento40, esta definição apresentada pelo artigo 1º do Estatuto do Refugiado não é capaz de enquadrar as novas categorias de pessoas que abandonam seus países de origem, porque a definição abarca aquelas pessoas que sofrem os temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, não abrangendo outros motivos que se relacionam diretamente com as demais questões que envolvem os direitos humanos. SOUSA, Mônica Teresa Costa; BENTO, Leonardo Valles. Refugiados econômicos e a questão do direito ao desenvolvimento. Cosmopolitan Law Journal, v. 1, n. 1, dez. 2013, p. 25. 39  ONU. ACNUR. Ibid. 40  Idem, p. 27. 38 

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Nesta linha de pensamento, encontramos as margens da garantia dos refugiados as chamadas novas categorias, formadas pelos refugiados ambientais e os refugiados econômicos. Os refugiados econômicos, segundo a definição de Paulo Borba Cosella41 é aquele que “se vê diante da impossibilidade total de satisfazer suas necessidades vitais no país do qual é nacional”. Nesta linha, importante esclarecer a figura do migrante econômico, que nas palavras do mesmo autor42 é aquele que “poderia, ao menos em tese, subsistir em seu país natal, mas, insatisfeito com as condições locais, se desloca para outra região, em busca de melhores perspectivas”. Portanto, o migrante econômico é revestido de voluntariedade na sua migração; antagonicamente é o refugiado econômico, que é forçado a sair de seu país de origem, por não haver possibilidade de satisfação das necessidades básicas43. Os refugiados econômicos carecem de proteção internacional, pois seu fluxo migratório éforçado, como foi citado acima. Merece destaque Jean Ziegler, relator da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, que defende esta categoria de refugiados, abaixo44: Necessidade de reconhecer como autênticos refugiados aqueles indivíduos que deixam seus países de origem ou de nacionalidade por conta de graves crises alimentares que põem em risco a vida de milhares de cidadãos. Contudo, consoante este pensador, a proteção político-jurídica deveria ser temporária, isto é, enquanto durasse a crise alimentar por que passa o país de origem.

Infelizmente, os refugiados econômicos não são reconhecidos e estão sem garantias de proteção que traz a Convenção de 1951. Por isso, é necessária uma ampliação do conceito elencado no artigo 1º do Estatuto. Estes, não podem ficar a margem do ordenamento jurídico de proteção à dignidade da pessoa humana. Sabe-se que o Estado de origem é responsável garantidor, devendo estabelecer e alinhar políticas públicas para que os seus nacionais possam ter condições dignas de sobrevivência45. Concluímos que a Convenção dos Refugiados não ampara em seu texto legal as novas categorias de pessoas, mas que indiscutivelmente, necessitam da proteção interCOSELLA, Paulo Borba. Ibid, p. 24. Idem, p. 24. 43  CUNHA, Ana Paula da. O direito internacional dos refugiados em xeque: refugiados ambientais e econômicos. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.8, n.8, jul/dez. 2008, p. 192. 44  Idem, p. 193. 45  SOUSA, Mônica Teresa Costa; BENTO, Leonardo Valles. Ibid, p. 44. 41  42 

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nacional dos seus direitos básicos, já que seus países de origem não oferecem condições dignas de subsistir. Logo, estas pessoas esperam através do auxílio de outros países a efetivação dos direitos humanos, os quais são protagonistas. 7 OS REFUGIADOS AMBIENTAIS Segundo Marilu Dicher46 buscar uma definição sobre quem são os refugiados ambientais passa a ser uma tarefa complexa, pois é importante observar as circunstâncias para que estas pessoas sejam enquadradas nesta categoria, viabilizando os processos de identificação e classificação. Assim, compreende-se como refugiados ambientais, o conceito cunhado por Essam El-Hinnawi47: Pessoas que fogem ou deixam sua terra natal em função de ameaças de vida e segurança provocadas pelo ambiente, dentre essas ameaças quaisquer mudanças físicas, químicas e biológicas nos ecossistemas ou diretamente nos recursos naturais que o transformam tornando o ambiente impróprio para manter ou reproduzir a vida humana.

Não menos importante, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), traz também o seu conceito para definir esta nova categoria de refugiados. Vejamos: São pessoas que foram obrigadas a abandonar temporária ou definitivamente a zona onde tradicionalmente vivem, devido ao visível declínio do ambiente perturbando a sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência dessas pessoas entra em perigo48.

O surgimento desta categoria de refugiados somente aconteceu em razão às drásticas alterações no meio ambiente, ou seja, é imprescindível o reconhecimento das causas ensejadoras desse fluxo migratório, que a partir de então, poderemos classificar os DICHER, Marili. O termo “refugiado ambiental” e a problemática de sua definição. 2013. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=dbe1a0a2c9bd9241. Acesso em: 23 jun. 2015, p. 2. 47  EL-HINNAWI,Essam.  Environmental Refugees.  United Nations Environmental Program, Nairobi, 1985. 48  PNUMA, Environmental Refugees. 1985 . Disponível em: http://www.liser.org/liser_portugesa.htm. Acesso em 23 jun. 2015. 46 

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distúrbios ambientais em três modalidades: natural, inatural e provocado por pessoa49. Sobre os distúrbios naturais, os mesmos autores50 retratam que são as mudanças capazes de tornar, mesmo que temporariamente, o ecossistema em um lugar inadequado para o sustento da vida humana. A respeito do distúrbio ambiental inatural, são aqueles eventos que ocorrem de maneira normal, mas cujos efeitos são agravados pela intervenção humana nos mais diversos ecossistemas51. Por fim, o distúrbio provocado por pessoa, consiste naquele evento que pode ser atribuído exclusivamente à atividade do homem sobre o planeta52. Conforme já mencionado, o conceito para os refugiados ambientais deve ser ampliado para assistir os novos movimentos migratórios, em especial, por conta das alterações climáticas que causam significantes impactos no mundo53. Portanto, no caso dos refugiados ambientais, verificamos o mesmo problema que ocorre com os refugiados econômicos, ou seja, o conceito clássico de refugiado merece ampliação, tendo em vista o crescente número de refugiados que saem dos seus países de origem, em razão de tragédias naturais, para que seus direitos e garantias sejam preservados e protegidos. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo tem como objetivo trazer a relevância sobre o reconhecimento das novas categorias de refugiados: econômicos e ambientais. Isto porque, a definição expressa no arcabouço jurídico sobre os refugiados versa apenas sobre o fluxo migratório forçado entre as fronteiras. As novas categorias merecem destaque, pois os novos fluxos são resultados do uso desenfreado dos recursos naturais e condições climáticas, bem como a falta de suporte econômico nos países. Para alcançar a extensão do conceito de refugiado, é necessário um equilíbrio da legislação com a atual realidade dos fluxos migratórios. Portando, o status de refugiados econômicos e ambientais, indiscutivelmente, mereceria ser incluído no Estatuto, com o objetivo de assistir direitos mínimos inerentes aos homens, conforme prega o sistema SOUZA, Carlos Eduardo Silva e; MARQUES, Taiana Cristina Marques. Refugiados ambientais: realidade vivenciada e proteção necessária no cenário das mudanças climáticas. Revista Jurídica da Unic: Emam - v. 1 - n. 1 - jul./dez. 2013. Disponível em: http://emam.org.br/arquivo/documentos/a531c7cd-28a54552-8e62-999509e7ab91.pdf. Acesso em: 24 jun. 2015, p. 21. 50  Idem, p. 22. 51  JACOBSON, Jodi L. Environmental Refugees: a yardstick of habitability. Worldwatch Paper 86. Washington, D.C.: Worldwacht Institute, 1998, p. 16. 52  SOUZA, Carlos Eduardo Silva e; MARQUES, Taiana Cristina Marques. Refugiados. Op cit., p. 26. 53  PINTO, Anne Fernanda Rocha da Silva. Ibid. 49 

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internacional de proteção dos direitos humanos. Vislumbra-se que a Convenção de Genebra deveria ter um novo protocolo adicional, que abrangesse os refugiados econômicos e ambientais, visando proporcionar um reconhecimento internacional de amparo e solidariedade. Ou seja, faz-se necessário um reconhecimento jurídico da atual situação destas pessoas, para que sejam considerados refugiados pela legislação internacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACNUR. Conclusiones sobre la proteccion internacional de los refugiados. Genebra, 1990. ACNUR. Convenção da Organização de Unidade Africana, Adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”, realizado em Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de Novembro de 1984. Disponível em: http://goo.gl/ZPbVzh. Acesso em: 23 jun. 2015. ACNUR. Declaração de Cartagena, Adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”, realizado em Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de Novembro de 1984. Disponível em: < http://www.acnur. org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_ Cartagena.pdf?view=1>. Acesso em: 23 jun. 2015. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. Covilhã: LusoSofia:press, 2013, p. 7. Disponível em: http:// www.lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf. Acesso em: 21 jun. 2015. BARROS, Olivia Fürst. Hannah Arendt e o tema dos refugiados, IN:. O Direito internacional dos Refugiados: Uma perspectiva Brasileira, Coordenadores: Nadia de Araujo e Guilherme Assis de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001. BALDI, Augusto Cesar (org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. BILDER, Richard. An overview of international human rights law, IN: Hurst hannum, guide to international rights practice. 2. ed., Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992. BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988. CASELLA, Paulo Borba. Refugiados: conceito e extensão, IN:. O Direito internacional dos Refugiados: Uma perspectiva Brasileira, Coordenadores: Nadia de Araujo e Guilherme Assis de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001. CUNHA, Ana Paula da. O direito internacional dos refugiados em xeque: refugiados ambientais e econômicos. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.8, n.8, jul/dez. 2008. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Forense, v. 4, 1984.

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O RECENTE CASO DO PEDIDO DE “REFÚGIO CLIMÁTICO” NA NOVA ZELÂNDIA E SEU CONTEXTO INTERNACIONAL Giulia Manccini Pinheiro1 Mariana de Almeida Tavares2 Resumo: A migração de pessoas afetadas por problemas ambientais em busca de um lugar seguro para viver é uma crescente realidade. Entretanto, não há amparo jurídico internacional sobre o tema e essas pessoas possuem apenas a proteção de organizações não governamentais e organizações internacionais. O objetivo desse artigo é fazer um estudo sobre o crescente fenômeno dos “refugiados ambientais” na atualidade e usá-lo como base para a análise do recente caso de um demandante de “refúgio ambiental” em uma corte nacional. O Kiribati é um arquipélago do Pacífico Sul que sofre com diversos fenômenos climáticos e possui previsão de desaparecimento devido ao aumento do nível do mar no futuro próximo. Ioane Teitiota, habitante desse país, demandou na Alta Corte da Nova Zelândia o status de “refugiado climático” para poder permanecer no país e não ser obrigado a retornar às precárias condições ambientais do arquipélago. Os argumentos jurídicos utilizados por Teitiota seguem o caminho das discussões acerca da definição de “refugiado ambiental”, sendo o “refugiado climático” uma categoria deste. Ainda que o pedido tenha sido negado devido a falta de instrumentos jurídicos internacionais sobre o tema, a análise feita pela Alta Corte da Nova Zelândia sobre o fenômeno das migrações causadas por fatores ambientais corrobora com os principais estudos e debates sobre o tema e alerta para a necessidade de uma atitude dos Estados em relação ao tema. Palavras chave: Refugiados ambientais; Refugiados Climáticos; Kiribati; Refúgio; Problemas Ambientais. Abstract: People who suffer with environmental problems and have to migrate to seek for a safe place to live is a growing reality. There is no international legal protection to people on this situation and their only protection is in non-governmental organizations and international organizations programs. The aim of this article is to study the growing phenomenon of “environmental refugees” nowadays and using this study as a source to analyze the case of the first people in the world to plead the environmental refugee status in a national court. Kiribati is an archipelago on South Pacific that experience several climate related problems and it is bound to disappear on the near future. Ioane Teitiota, Kiribati inhabitant, has claimed on the New Zealand High Court the “environmental refugee” status to be able to stay in New Zealand and to not be send back to his country, where he alleged to suffer from serious environmental problems. The legal arguments alleged by Teitiota are on the same sense as the main studies about the “environmental refugee” category. Although his claim has been denied due to the lack of legal prevision of “environmental refugees”, the analysis made by the High Court contributes to the studies and discussions about the general situation. And it also points to the need of an attitude from States to solve the lack of international legal protection about the problem. Keywords: Environmental Refugees; Climate Refugees; Kiribati; Refuge; Environmental issues.

1  Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Email: giuliamanccini@gmail. com 2  Acadêmica do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Email: mari. [email protected]

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1 INTRODUÇÃO Migrações motivadas por fatores ambientais são uma constante na história da humanidade. Contudo, os graves problemas ambientais que se enfrenta na atualidade, induzidos ou acelerados muitas vezes pelo padrão internacional de consumo e pela produção industrial, acarretaram em um novo debate para o direito internacional: a migração em massa de pessoas de seu habitat de origem em razão da degradação e destruição deste por problemas ambientais exacerbados pelas mudanças climáticas. A Organização das Nações Unidas divulgou estudos que demonstram que uma das mais graves consequências resultantes das alterações climáticas são o aumento do fluxo de migrantes. Esses estudos prevêem que os desastres ambientais serão a principal causa de migrações involuntárias no futuro, ultrapassando-se as motivações clássicas de refúgio definidas pela Convenção sobre Refugiados de 1951. A temática de migrações ambientais vem ganhando destaque na mídia, sociedade civil e nos debates das organizações internacionais em função de sua grande proporção, tanto no âmbito interno dos Estados atingidos quanto no cenário internacional. Entretanto, o fenômeno ainda não possui uma definição jurídica internacional em razão da falta de consenso de estudiosos do tema e das autoridades estatais acerca das características do fenômeno e do alcance da proteção devida a essas pessoas, além da falta de vontade estatal em aceitar em seu território outros tipos de migrantes. A falta de consenso na definição dos movimentos migratórios reflete nas diversas nomenclaturas usadas pelos estudiosos e nomes como “deslocados ambientais”, “migrantes climáticos”, “migrantes induzidos pelo meio ambiente”, “ecomigrantes”. Contudo, adotou-se a opção “refugiados ambientais” nesse artigo visando a comparação do instituto do refúgio em seu contorno atual e seus alcances possíveis. O presente artigo analisará o por quê da negativa da Alta Corte de Justiça da Nova Zelândia em conceder o status de “refugiado ambiental” ao habitante do Kiribati, mesmo tendo assumido que o país sofre com diversos problemas climáticos e que desaparecerá nos próximos 40 anos. Esse se divide em três sessões que seguem a linha de argumentação utilizada na decisão da Corte. A primeira sessão foca na evolução do conceito de refugiados no direito internacional e sua proteção. A segunda discorre sobre os nascimento e os debates sobre a categoria dos “refugiados ambientais” e a terceira analisará o caso específico do arquipélago do Kiribati e as questões de direito relativas ao tema que foram analisadas pela Corte.

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2 O DIREITO DOS REFUGIADOS A proteção jurídica internacional dos refugiados, vigente na atualidade, pode ser entendida como uma consequência direta da internacionalização dos direitos humanos após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)3 . Para Betts4, o Regime Internacional dos Refugiados pode entendido como o “conjunto de normas, regras, princípios e procedimentos de tomada de decisão que regulam as respostas dos Estados à proteção dos refugiados”. Neste contexto, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tem como objetivo a proteção de refugiados e, atualmente, abarca também outras categorias de indivíduos como apátridas e deslocados internos. A organização tem como base de atuação a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e o Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967, que são os únicos instrumentos vinculantes globalmente aceitos e aprovados no âmbito da Organização das Nações Unidas. No plano regional, desenvolveram-se sistemas próprios para a determinação do status de refugiado com definições ampliadas do conceito e características específicas para a proteção desses indivíduos. Em África, a Organização da Unidade Africana definiu refúgio na Convenção para Tratar dos Aspectos Específicos do Problema dos Refugiados na África (1969). Na região americana, a Organização dos Estados Americanos (OEA) adotou a Declaração de Cartagena sobre os Refugiados em 1984 para a determinação da temática no continente. Nesta primeira seção temos como objetivo discutir, inicialmente, a evolução histórica do conceito de refúgio e, posteriormente, analisar o atual Regime Internacional para Refugiados e as modificações provenientes dos Sistemas Regionais para a proteção destes indivíduos.

2.1 Conceito de refugiados no Direito Internacional A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 foi o primeiro tratado internacional de grande importância acerca deste instituto. Segundo esta, o termo refugiado se aplica a qualquer indivíduo que temendo ser perseguido em razão de sua raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, se encontre fora de seu Estado de nacionalidade e que não possa ou, em razão deste receio, não queira valer-se da proteção deste Estado, ou que, se não possuir nacionalidade e se encontra fora de seu Estado de residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou 3  LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 4  BETTS, Alexander. International Cooperation in the Global Refugee Regime, p. 5.

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devido ao já referido temor, não quer voltar a ele5 . Os principais elementos contidos na definição clássica de refugiados são a perseguição ou o fundado temor de perseguição,o motivo específico e a falta de proteção do seu país6.  Entende-se a existência de perseguição quando existir uma falha sistemática e contínua na defesa de direitos do núcleo duro dos direitos humanos, violação de direitos essenciais sem risco à sobrevivência do Estado e a suspensão de direitos programáticos ademais da disponibilidade de recursos para a prestação destes7.   A Convenção, em seu texto inicial, contém a possibilidade de realização de uma reserva geográfica, na qual os Estados considerariam refugiados somente aqueles indivíduos provenientes da Europa, caso a elegessem. Além disto, quando a Convenção restringe o status de refugiado para os deslocados antes de 1951, percebe-se a crença de que o problema dos deslocados em razão de perseguição era uma questão momentânea da Segunda Guerra Mundial. Com a finalidade de se adequar melhor as transformações dos fluxos migratórios, especialmente ao surgimento de novos grupos de refugiados não compreendidos na definição da Convenção de 1951, adotou-se o Protocolo de 1967, o qual invalidou as reservas temporal e geográfica8 contidas no documento, buscando lhe conferir uma definição do termo refugiado mais abrangente. Apesar de sua definição restritiva, a Convenção de 1951 estabeleceu em seu artigo 33 um dos principais preceitos para a proteção dos refugiados, o principio do  non -refoulement (ou não devolução). Segundo ele, os indivíduos solicitantes do status de refugiado não podem ser transferidos para um Estado em que possam sofrer perseguição ou tenham sua integridade física, ou sua vida, postas em risco. A importância desse princípio é a garantia de segurança dos solicitantes de refúgio nos territórios em que buscam abrigo. Mas ele representa, por outro lado, o maior empecilho para a aceitação da Convenção, pois os Estados não querem ser obrigados a manter em seu território pessoas que ali chegaram irregularmente. Esse princípio também é, na atualidade, um dos motivos para os Estados não reconhecerem o refúgio ambiental. Como a Convenção de 1951 e o Protocolo Adicional de 1967 possuíam uma definição restrita de refugiado, buscou-se ampliar e adaptar a proteção a essas pessoas no âmbito regional com a finalidade de incorporar motivações relacionadas à realidade 5  RAMOS, Érika Pires. Refugiados Ambientais: em busca de reconhecimento pelo direito internacional. 2011. 2011, p.104. 6  Ibidem, p.105. 7  JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos Refugiados e sua Aplicação no Ordenamento Jurídico Brasileiro.São Paulo: Editora Método, 2007, p.46. 8  Somente europeus (reserva geográfica) que saíram de seu território antes de 1 de janeiro de 1951 (reserva temporal).

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desses continentes. Em África, adotou-se, em 1969, a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA) que rege os aspectos específicos dos problemas dos refugiados do continente. Esta foi idealizada como um complemento ao corpo normativo universal já vigente e define que: O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade9.

Nota-se que o documento buscou contemplar os diferentes aspectos dos problemas da região, em especial os refugiados provenientes dos conflitos armados de descolonização no continente. Ademais, o conceito definido pela OUA estendeu o alcance geográfico da definição universal, ao incluir no seu âmbito de proteção àqueles indivíduos afetados por conflitos “em parte ou na totalidade do seu país de origem” possibilitando o reconhecimento do status de refugiado por conflitos de caráter regionais, não somente de caráter nacional e generalizado. No continente americano,sob o contexto dos processos de abertura política e queda de governos autoritários, adotou-se a mais recente ampliação da definição de refugiados. A Declaração de Cartagena de 1984 define o refugiado como: (...) as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública10.

Observa-se que em se procurou agregar na Declaração a conjuntura enfrentada pela região neste período. Esta abrigava um grande número de refugiados em razão dos regimes ditatoriais que anteriormente eram vigentes na região, concomitantes a Estados com conflitos internos. Ademais, seguindo o precedente estabelecido pela Convenção da OUA o documento ampliou o seu conceito de refugiado com a finalidade de complementar o Regime Internacional dos Refugiados para o seu contexto regional. OUA. Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos. 1969, p.2. ACNUR. Declaração de Cartagena, p.3. Disponível em: Acesso em: 25 de julho de 2015. 9 

10 

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O estudo da evolução do conceito de refugiados no Direito Internacional fazse importante para a percepção que o instituto do refúgio foi criado para resolver um problema local e que ampliações foram feitas, em âmbito regional, para adaptar esse instituto às duas necessidades. No entanto, há ainda muitas pessoas que se deslocam e estão desprotegidas pelo ordenamento jurídico internacional. As migrações impulsionadas por fatores ambientais têm tomado grandes proporções na atualidade em razão da degradação ambiental resultante do advento da sociedade de massa e do aumento das atividades industriais e tecnológicas. Doutrinadores chamam as pessoas que migram motivadas por problemas ambientais de “refugiados ambientais”, contudo, muito se discute sobre a extensão da sua definição e sobre as consequências jurídicas do seu reconhecimento pelo direito internacional. Na próxima sessão revisaremos o surgimento do conceito “refugiados ambientais” e algumas discussões sobre o tema, com o intuito de analisarmos, em uma terceira parte, o caso dos “refugiados ambientais” de Kiribati. 3 REFUGIADOS AMBIENTAIS E SEU CONTEXTO Migrações impulsionadas por fatores ecológicos são situações comuns. Contudo, na atualidade, a ocorrência cada vez mais freqüente de desastres ambientais e a progressiva degradação de recursos naturais essenciais atingem níveis alarmantes e impedem grandes comunidades de sobreviverem em seus habitats de origem. Essas comunidades se movem dentro de um mesmo país ou atravessam fronteiras em busca de melhores condições ambientais. Contudo, deparam-se com grandes dificuldades de inserção em outros locais e encontram pouca ou nenhuma proteção estatal ou internacional. No passado, as ameaças ambientais eram restritas a determinados indivíduos e grupos, enquanto no presente, a sociedade globalizada gera perigos transnacionais e mundiais como poluição atmosférica, enchentes, alterações climáticas com conseqüente derretimento das calotas polares e aumento do nível do mar, deterioração agrícola e esgotamento dos solos, desmatamentos, extinção da vida animal e vegetal e contaminação química de grandes áreas11. Esses problemas se intensificaram e somaram-se as chamadas catástrofes naturais como terremotos, tsunamis, maremotos e erupções “Cada vez mais países estão encontrando a sua segurança comprometida por ameaças ambientais provenientes de outras nações, tais como poluentes que fluem de suas fronteiras através do ar ou da água, ou enchentes catastróficas desencadeadas por bacias desmatadas para longe de suas fronteiras. Em escala global, alterações climáticas, destruição da camada de ozônio, deterioração da base agrícola e o desmatamento são enormes desafios para a segurança e o bem-estar de toda uma raça. As ameaças ambientais com potencial para minar a habitabilidade do planeta estão forçando a humanidade a considerar a segurança nacional em termos muito mais amplos do que a garantia apenas pelas forças armadas”. RAMOS, Érika Pires. Refugiados Ambientais: em busca de reconhecimento pelo direito internacional. 2011. 133f. (Tese de Direito) – Universidade de São Paulo. 2011, p.40. 11 

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vulcânicas, resultando em grandes fluxos de migrações humanas em busca de locais seguros e ambientalmente adequados para viver. Ressalta-se que a insegurança ambiental frequentemente é somada à falta de amparo estatal como fator motivador para desencadear corrente migratórias de grandes comunidades. Quando perturbações ambientais ocorrem em países com dificuldades financeiras, o governo e as autoridades locais não conseguem responder de forma eficaz para evitar os prejuízos dos fenômenos e milhares de pessoas perdem tudo e encontram sua qualidade de vida e mesmo sua existência comprometida. De modo que ainda que inicialmente causada por um problema ambiental, a falta de recursos financeiros e auxílio estatal são fatores decisivos na opção pela migração. Nesse contexto, enquanto o fenômeno das migrações impulsionadas por faotres ambientais é uma realidade indiscutível, a solução jurídica para o amparo a essas populações que se deslocam em busca de segurança ambiental é bastante controversa. Essa categoria de pessoas é chamada de “refugiados ambientais” por estudiosos do tema, mas há ainda muitas discussões sobre suas características e o seu reconhecimento pelo direito internacional. No próximo tópico será visto como nasceu o conceito de refugiados ambientais na literatura internacional.

3.1 O nascimento do conceito O termo “refugiado ambiental” surgiu na década de 1970 em um estudo do Worldwatch Institute realizado por Lester Brown sobre o aumento da quantidade de migrações impulsionadas por fatores ambientais como desertificação, enchentes, tempestades internas, escassez de recursos hídricos e excesso de poluentes no meio ambiente. Em seu estudo, Brown fez um alerta sobre a futura situação das populações habitantes de países insulares que seriam forçadas a deixar suas casas em razão do aumento do nível do mar12. Apesar desse estudo inicial, a expressão “refugiado ambiental” começou a ser mais freqüentemente utilizada após a publicação dos estudos científicos de Essam El-Hinnawi (1985), do Egyptian National Research Center e da americana Jodi L. Jacobson (1988)13. Em uma conferência das Nações Unidas realizadas no ano de 1985 CLARO. Caroline de Abreu Batista. O aporte jurídico do direito dos refugiados e a proteção internacional dos “refugiados ambientais”. In RAMOS, André de Carvalho, RODRIGUES, Gilberto e ALMEIDA, Guilherme Assis (org). 60 Anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo, 2011, p.244. 13  Definição de “refugiados ambientais” feita por Jodi L. Jacobson em seu estudo feito para o World Watch Institute em 1988: “Those people temporarily displaced due to local environmental disruption, such as an avalanche or an earthquake; those who migrate because environmental degradation has undermined their livelihood or poses unacceptable risks to health; and those who resettle because land degradation has resulted in desertification or because of other permanent changes in habitat.” JACOBSON, Jodi L. Environmental Refugees: A Yardstick of Habitability. Worldwatch Paper 86. Washington, D.C.: Worldwatch Institute, November, 1988, p. 37-38 e p. 07 12 

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em Nairobi na África, El-Hinnawi definiu o que seriam os “refugiados ambientais”: Refugiados ambientais são definidos como aquelas pessoas forçadas a deixar seu habitat natural, temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante perturbação ambiental (natural e/ou desencadeada pela ação humana), que colocou em risco sua existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida. Por “perturbação ambiental”, nessa definição, entendemos quaisquer mudanças físicas, químicas, e/ou biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que o tornem, temporária ou permanentemente, impróprio para sustentar a vida humana.14.

Essa primeira definição foi importante para chamar atenção para o problema das migrações motivadas por fatores ambientais e suscitar as primeiras características desse fenômeno. El-Hinawwi sugeriu a classificação dos refugiados em três categorias de acordo com o nível de perturbação ambiental. A primeira seriam os deslocados temporariamente por causa de uma situação momentânea, mas que voltariam para seu território. A segunda categoria compreenderia os foram obrigados a se deslocar permanentemente e a se fixar em um novo território. E a terceira, por fim, seriam os refugiados que optaram migrar, temporária ou permanentemente, no interior das suas fronteiras ou ara o exterior, em busca de melhor qualidade de vida. Apesar de importante para a época, essa definição pouco mencionou e distinguiu a origem da perturbação ambiental, a voluntariedade da migração e o alcance do deslocamento. Dessa forma, quase todas as pessoas poderiam se enquadram na definição de refugiado ambiental, em algum momento. Mayer destacou a necessidade de classificação de pessoas deslocadas por mudanças climáticas, catástrofes naturais e perturbações ambientais causadas pelo homem, assim como se os indivíduos foram forçados a se deslocar, ou seja, se se pôde optar entre migrar ou não, bem como sobre a temporariedade das migrações15. “In a broad sense, all displaced people can be described as environmental refugees, having been forced to leave their original habitat (or having left voluntarily) to protect themselves from harm and/or to seek a better quality of life. However, for the purpose of this book, environmental refugees are defined as those people who have been forced to leave their traditional habitat, temporarily or permanently, because of a marked environmental disruption (natural and/or triggered by people) that jeopardized their existence and/ or seriously affected the quality of their life. By “environmental disruption” in this definition is meant any physical, chemical and/or biological changes in the ecosystem (or the resource base) that render it, temporarily or permanently, unsuitable to support human life. According with this definition, people displaced for political reasons or by civil strife and migrants seeking better jobs purely on economics ground are not considered environmental refugees..” EL-HINNAWI, Essam. Environmental Refugees. Nairobi: United Nations Environment Programme (UNEP), 1985, p. 04-05. 15  MAYER. Benoit. The International Challenges of Climate-Induced Migration: Proposal for an International Legal Frameworl. Colorado Natural Resources, Energy & Environmental Law Review, vol.22, no.3, 2011, annual. p. 368. 14 

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A maior parte dos doutrinadores e pesquisadores do tema reconhece que a nova categoria de “refugiado ambiental” se afasta da definição de refugiado elencada na Convenção dos Refugiados de 1951 e no seu Protocolo adicional de 1967. O principal motivo é a falta de um fundado temor de perseguição, uma vez que a perseguição é realizada por um agente estatal ou um grupo dominante de certa parte do Estado, pela definição da União Africana. Ademais, a perseguição deve ser individual e por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou por suas opiniões políticas. Por fim, há o imperativo que a pessoa encontre-se em outro país para a atribuição do status de refugiado. Conclui-se, assim, que não há como enquadrar o “refugiado ambiental” diretamente na categoria de refugiados pelos instrumentos de Direito Internacional vigentes, pois faltam três características essenciais: (1) o fundado temor de perseguição, uma vez que o meio ambiente não poderia ser entendido como agente persecutor; (2) a extraterritorialidade, tendo em vista que muitos dos “refugiados ambientais” deslocam-se dentro dos limites da fronteira de um Estado e; (3) o fator individual, visto que o reconhecimento atual do status de refugiado é individual enquanto os problemas ambientais atingem comunidades inteiras indiscriminadamente. Por fim, ainda que se reconhecesse os problemas ambientais como perseguidores16 e se ignorasse os cinco motivos elencados na Convenção de 1951, a falta de nexo de causalidade entre o problema ambiental e o motivo da migração é controversa, dando-se abertura para questionamentos sobre outros motivos desencadeadores das migrações como fatores político, econômico e social. A principal crítica feita sobre a emergente categoria dos “refugiados ambientais” relaciona-se com a multicausalidade do fenômeno migratório e a dificuldade em separar os fatores ambientais dos econômicos na hora da opção pela migração. Richard Black17 afirma que não há um nexo de causalidade suficiente entre a degradação ambiental e a decisão pela migração, de modo que qualquer tentativa de criação de uma categoria jurídica será falha, apesar dos esforços da academia. Uma vez que um mesmo fenômeno “ Há quem argumente a favor da aplicação do termo ―perseguição‖ não só para as situações de ordem civil e política, mas a despeito das motivações ambientais. Andrew Simms, diretor do London‘s New Economics Foundation, assevera que o fator persecutório também deve ser atrelado àqueles que são ―forçados a viver em situação de pobreza extrema em um local que, inesperadamente, possa sofrer uma enchente ou secar completamente‖.155 Desta forma, ainda que o meio ambiente não figure como um agente persecutor propriamente dito, a gravidade dos problemas ambientais faz com que este seja considerado um motivo deveras persuasivo para a constatação do refúgio ambiental”. VIEIRA, Lígia Ribeiro. Refugiados Ambientais: Desafios à sua aceitação pelo direito internacional. 2012. 203 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2015. p.87. 17  Destaca-se como principal critico o autor Richard Black em seu artigo publicado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados em Março de 2001: Environmental Refugees: myth or reality? 16 

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ambiental pode ter diferentes impactos e conseqüências dependendo da localidade em que ele acontece e da capacidade de resposta dada pelo Estado para os atingidos. Castles 18 corrobora com a argumentação de Black destacando que as definições propostas até hoje focam os problemas ambientais como única causa dos deslocamentos, situação que raramente pode ser constatada na prática. No contexto destes debates, William B. Wood, geógrafo do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América, propôs a troca da terminologia refugiado ambiental pela expressão “ecomigrantes”, conceito que seria aplicado a qualquer pessoa cujo motivo originário da migração fosse influenciado por fatores de cunho ambiental. Para Wood, a situação fática em que os migrantes ambientais são encontrados é extremamente similar a dos migrantes forçados por questões econômicas, assim o uso do prefixo “eco” em “ecomigrantes” faria uma referência tanto às questões ecológicas, motivadores do deslocamento humano forçado, como à natureza econômica desse fluxo migratório19. Ainda que a definição de Wood tenha sido inovadora no sentido de destacar a multicausalidade das migrações chamadas ambientais, o autor não definiu os critérios específicos e seu conceito de “ecomigrantes” ficou muito vago. Toda discussão sobre as especificidades da categoria dos refugiados ambientais não se dá por preciosismo acadêmico. Em 2005, a Organização das Nações Unidas (ONU) por meio de seus organismos e agências especializadas alertou que os “refugiados ambientais” fazem parte de uma nova categoria em franca expansão e que necessitam de assistência. Especialistas da Universidade das Nações Unidas (UNU) estimam que, até o ano de 2050, poderão ser 200 milhões de pessoas que tiveram que abandonar os seus lares em razão de processos de degradação e desastres ambientais, especialmente em virtude das mudanças climáticas20. Já em 2007, a mídia voltou sua atenção para o problema com a divulgação do relatório do 4º Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), no qual previu cenários preocupantes de mudanças ambientais CASTLES, Stephen. Environmental chance and forced migration: making sense of the debate. UNHCR Working Paper, n.70, Geneva, Oct. 2002. Disponível em . Acesso em 20/04/2015. 19  GODOY, Gabriel Gualano de. O caso dos haitianos no Brasil e a via de proteção humanitária complementar. In: RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de. (orgs). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: Editora CL-A cultural, 2011. p. 51. 20  Nesse sentido, é o alerta da UNU: “Ao contrário de vítimas da turbulência política e violência, que têm acesso através de governos e organizações internacionais de assistência, tais como subsídios financeiros, alimentos, ferramentas, abrigos, escolas e clínicas, “refugiados ambientais” ainda não são reconhecidos nas convenções internacionais. [...] Essa é uma questão altamente complexa, com organizações mundiais já sobrecarregadas por demandas dos refugiados reconhecidos, como definido originalmente em 1951. Devemos nos preparar agora para definir, aceitar e acolher esta nova espécie de “refugiado” nos instrumentos internacionais [...]”. United Nations University - Institute for Environment and Human Security [UNU EHS]. As Ranks of “Environmental refugees” swell worldwide, calls grow for better definition, recognition, support. World day for disaster reduction (press release). Bonn: October 11, 2005, p. 01-02 18 

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globais em menos de cem anos21. Desse modo, é de extrema importância a definição precisa da categoria de “refugiados ambientais” para a busca de uma possível solução que seja aceita por todos os Estados. Nessa corrente, a Organização Internacional para as Migrações – OIM, em 2007, trouxe a terminologia de “migrantes induzidos pelo meio ambiente” para definir aqueles que: [...] por motivos de mudanças súbitas ou progressivas no meio ambiente, que venham a afetar negativamente suas vidas ou condições de vida, são obrigados ou escolhem abandonar seus locais de residência habitual, seja de forma permanente ou temporária, deslocando-se dentro do próprio território de seu país ou transpondo fronteiras22.

Embora a tentativa de mudança de nomenclatura para um maior aceite da comunidade internacional tenha surgido poucos efeitos, os estudos feitos na área são de grande valor acadêmico e político para o avanço dos debates e mobilização mundial. Por exemplo, a organização estimou, em 2009, que o número de “refugiados ambientais” que se enquadra em sua definição será entre 200 milhões e 1 bilhão de pessoas em 205023, chamando atenção da mídia e da opinião publica para a situação.

3.2 Fatores ambientais Os números divulgados pelos estudos das organizações internacionais relativas ao meio ambiente e direitos humanos são alarmantes e impulsionam o debate sobre a diversidade de fatores que causam as migrações. A Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente, Migração Forçada e Vulnerabilidade, ocorrida entre 9 e 11 de outubro de 2008 na cidade alemã de Bonn, promovida pela Universidade das Nações Unidas (UNU, na sigla em inglês), lançou os Pontos de Bonn24, nos quais sugere a seguinte classificação: (i) “migrantes ambientais de emergência”, referindo-se aquelas pessoas que fogem dos piores impactos ambientais para salvar suas vidas, (ii) “migrantes ambientalmente forçados”, relativa às pessoas eu RAMOS, Érika Pires. Refugiados Ambientais: em busca de reconhecimento pelo direito internacional. 2011. São Paulo, 2011. p.22. 22  IOM – INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. Discussion Note and the Environment. MC/INF/288. 94 session, 1 November 2007. 23  INTERNACIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. Migration, Environment and Climate Change: assessing the evidence. Geneva: IOM, 2009, pp.05. 24  Disponível em . Acesso em 20 jul. 2015. 21 

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precisam migrar para evitar graves conseqüências da degradação ambiental; e (iii) “migrantes ambientalmente motivados” que têm a possibilidade de deixar um ambiente de contínua degradação prevenindo o pior para sua sobrevivência. Observa-se que o foco das discussões nesse encontro foi a voluntariedade do deslocamento, contrastando-se aqueles que fogem de catástrofes e perdem tudo com outros que decidem deixar seu território prevendo um futuro problema ambiental, presente uma categoria intermediária de pessoas que já sofrem as conseqüências da degradação ambiental e buscam melhor qualidade de vida. Por sua vez, Michel Prieur25 enfatiza os tipos de causas ambientais, separando-as em: as naturais, as decorrentes de degradação progressiva e as causadas por desastres tecnológicos. O jurista francês defende a utilização do termo “deslocados ambientais” para incluir tanto os que atravessam fronteiras quanto os que migram dentro do próprio território. Entretanto, apesar de mais detalhada, essa classificação ainda não esgota a questão da concorrência de fatores políticos e econômicos como impulsionadores da migração. Na esteira da discussão acerca das causas ambientais, Astri Suhrke, aponta seis eventos da natureza que podem ocasionar a necessidade de indivíduos ou grupamentos humanos deslocarem-se de seu lugar de origem ou residência habitual para irem viver em outro local, sendo estes: o desmatamento; o aumento do nível do mar; a desertificação; a ocorrência de secas; a degradação do solo; tornando-o inutilizável; a degradação do ar e a degradação da águas. Para a autora, a maioria dos eventos motivadores de deslocamentos desta natureza são indiretamente provocados pelo homem, visto ser este o principal agente poluidor e degradante dos recursos naturais, como, por exemplo, nas ações de depredação e queimada de florestas que levam ao desmatamento. Suhrke destaca, ainda, que estes seis elementos podem atuar, isoladamente ou em conjunto, em relação à criação de circunstâncias e fatores que, com o tempo, tornam insuportável a vida em determinado local, levando os seres humanos à necessidade irremediável de emigrar. A importância da definição se Suhrke é o destaque dado ao ser humano como grande causador dos problemas ambientais que impulsionam o deslocamento, sendo de grande relevância para os fins desse artigo. Uma vez que os estudos realizados pelas principais organizações internacionais, bem como grande parte dos pesquisadores, apontam que a elevação da temperatura global e o conseqüente aumento no nível dos oceanos é causado pelas atividades poluidores do homem. Pode-se dizer que a maior parte das controvérsias em relação à definição dos refugiados ambientais giram em torno de (i) abrangência da categoria: considera-se PRIEUR, Michel. Le Conseil de l’Europe, les catastrophes et les droits de l’homme. Vertigo - La revue électronique en sciences de l’environnement, numéro hors série (8), octobre 2010. Disponível em: < http:// vertigo.revues.org/10270> . Acesso em: 13 jul. 2015 25 

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refugiados apenas aqueles que atravessam fronteiras ou também aqueles que se deslocam nos limites de um mesmo território; (ii) concausalidade de fatores motivadores do deslocamento: ambiental, econômico, social, político e humanitário; (iii) nível de interferência do ser humano no desencadeamento do problema ambiental que causa a imigração. Nesse contexto, o objeto de estudo desse artigo serão as pessoas que deixam seu país devido a elevação dos níveis dos mares e conseqüente perda de território (e futura inexistência do país), a qual é causada pelo aquecimento global, também chamadas de “refugiados climáticos”. Mais precisamente, abordaremos o caso da população de Kiribati, país insular localizado no oceano Pacífico que vêm constantemente perdendo território para o mar e possui previsão de desaparecimento do território do país em um futuro próximo. 4 REFUGIADOS CLIMÁTICOS Como visto na parte anterior,o reconhecimento da categoria de “refugiados ambientais” e a delimitação de suas características, pelo Direito Internacional é bastante controverso. Dentre os motivos ambientais impulsionadores de deslocamentos e conseqüentes pedidos de refúgio, as mudanças climáticas são uma parte representativa e diversos autores nomeiam as pessoas que migram motivadas por esses fatores como “refugiados climáticos”. Essa categoria merece atenção especial por atingir territórios especialmente debilitados que possuem poucos recursos para remediar os desastres. O principal alvo dessa categoria e objeto de estudo desse artigo são as Ilhas do Pacífico Sul, consideradas pela ONU como uma das regiões mais vulneráveis do mundo em termos de intensidade e freqüência de desastres naturais e ambientais e seu crescente impacto. Essas ilhas sofrem desproporcionalmente as grandes conseqüências econômicas, sociais e ambientais dos desastres, fato que agrava outros problemas que os países em desenvolvimento geralmente enfrentam como a dependência energética, a falta de água potável, a degradação do solo, a gestão do lixo e a biodiversidade. Os fenômenos climáticos se dividem entre processos climáticos e eventos climáticos. Os primeiros ocorrem de forma gradual e normalmente dão a opção para a pessoa de emigrar ou não. Dentre esses, encontram-se o aumento do nível do mar, a salinização da terra agriculturável, a desertificação, a escassez de água e a insegurança alimentar. Já os segundos, os eventos climáticos, são acontecimentos rápidos e inesperados que forçam as pessoas a se deslocarem de maneira súbita, como tempestades, furacões, tufões e

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inundações provocadas pelo derretimento imprevisto de glaciais26. As Ilhas do Pacífico Sul sofrem de ambos os fenômenos climáticos e já é reconhecido pelos principais pesquisadores do tema, tribunais nacionais e internacionais27 e pela Organização das Nações Unidas na sua Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas de 2007 que essas ilhas perderão parte significativa de seu território nos próximos anos e, até o fim do século, muitas terão desaparecido. A crítica afirma, entretanto, que os danos ambientais causados tantos pelos eventos como pelos processos climáticos não são a única causa da migração, pois os fatores econômicos e sociais também influenciam fortemente a tomada da decisão. Essa corrente é chamada de minimalista e defende principalmente a falta de relação linear e nexo causal entre as mudanças climáticas antropogênicas e a migração28. A corrente que se contrapõe a essa é a chamada maximalista e defende que a migração é um resultado direto da degradação ambiental29 e os outros fatores possuem uma influência pouco decisiva. 5 A situação de Kiribati A importância do caso de Kiribati em específico se dá por representar uma tendência das Cortes Nacionais em relação ao tema. Além do fato do Kiribati se localizar em uma região que reconhecidamente sofre com diversos problemas ambientais e o país respondente, no caso, ter sido a Nova Zelândia que também é um grande receptor de imigrações com essas motivações. Mesmo o pedido tendo sido negado pelo Tribunal da Nova Zelândia, esse caso despertou novamente a atenção da mídia e da opinião pública internacional para o problema, forçando autoridades a se posicionarem sobre a situação. Kiribati é um grupo de ilhas situado no sudeste do Oceano Pacífico. As ilhas circundam a linha do equador e se espalham por aproximadamente 3.5000 km² no oceano. Há 32 atóis e um recife de corais (Banaba). O grupo de ilhas, nomeado Gilbert Islands depois que o capitão britânico foi o primeiro europeu a avistá-las, se tornou um KALIN, Walter. Conceptualizing Climate-Induced Displacement. In: MC ADAM, Jane (ed.). Climate Change and Displacement: multidisciplinary perspectives. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2010. p. 85. 27  Teitiota v Ministry of Business Innovation and Employment [2015] NZSC 107 (20 July 2015). p.6; [18] Disponível em < http://www.nzlii.org/nz/cases/NZSC/2015/107.html>. Acesso em 30 jul. 2015. 28  VIEIRA, Lígia Ribeiro.  Refugiados Ambientais:  Desafios à sua aceitação pelo direito internacional. 2012. 203 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2015. p.107. 29  A diferença entre as duas correntes e seus principais defensores pode ser encontrada no artigo da autora Astri Suhrke entitulado “Pressure Points: Environmental degradation, migration and conflict”. Publicado pela American Academy of Arts and Scientces em 1993. 26 

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protetorado britânico juntamente à Ellice Islands em 1892 e eram administradas por Fiji. Gilbert Islands e Ellice Islands se tornaram colônias britânicas em 1916. A maioria das ilhas foi ocupada pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial e Taeawa foi o cenário de uma batalha extremamente sangrenta em novembro de 1943, quando a Marinha dos Estados Unidos invadiram a ilha para expulsar os japoneses. Durante os anos 1950 e no início dos anos 1960 algumas das ilhas foram usadas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido para testarem bombas de hidrogênio. Em sua independência, em 1978 e 1979, o grupo Gilbert Island ficou conhecido como Kiribati enquanto as Ellice Islands se tornaram Tuvalu30. O arquipélago possui aproximadamente 100 mil habitantes que vivem nos 32 atóis e ilhas de corais. A área de terra se espalha por 726km² e é situada a aproximadamente 1,5 metros acima do nível do mar. Kiribati é visto como um dos estados mais pobres na região com um PIB per capta de menos de $2.000,00 e é economicamente dependente de investimentos estrangeiros na forma de licenças de pescas estrangeiras assim como de ajuda internacional. Nas últimas décadas, inundações obrigaram os habitantes a se realocarem na ilha principal, o que tem levado a situação de superpopulação, poluição da água e diminuição da qualidade da saúde e da expectativa de vida31. Aliado a essa situação, os habitantes de Kiribati vivem com a previsão de serem obrigados a deixar suas ilhas por causa do aumento do nível dos oceanos e da degradação ambiental. Diante dessa situação, muitos habitantes de Kiribati migram para outros territórios em busca de segurança ambiental e qualidade de vida. Em 2013, o habitante de Kiribati Ioane Teitiota, após ter seu visto vencido na Nova Zelândia, ingressou com uma demanda de refúgio no Tribunal da Nova Zelândia, alegando ser um “refugiado ambiental”. Destaca-se que as principais autoridades do país não querem que seus habitantes sejam reconhecidos como refugiados, pois alegam que atribuindo status de refugiado a uma pessoa, você coloca o estigma na vítima e não nos seus causadores. O presidente do Kiribati à época, Anote Tong explicou que Nós não queremos perder nossa dignidade. Nós já estamos nos sacrificando muito tendo que migrar. Então nós não queremos perder aquilo de dignidade que tenha restado. Portanto, a última coisa que nós queremos é ser chamado “refugiado”. Nós queremos que esse deslocamento seja uma questão de direito que nós merecemos, porque eles já tiraram todo o resto que nós Teitiota v Ministry of Business Innovation and Employment NZSC 107 (20 July 2015). p. 4. Disponível em < http://www.nzlii.org/nz/cases/NZSC/2015/107.html>. Acesso em 30 jul. 2015. 31  Donner, S, “Obstacles to climate change adaptation decisions: a case study of sea-level rise and coastal protection measures in Kiribati” (2014) 9 Sustainability Science 3, pp. 331-345, p. 334. 30 

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tínhamos32.

A declaração do antigo presidente do Kiribati coloca em evidência o fato de que os países dos arquipélagos do pacífico não são os principais causadores das mudanças climáticas que causam o aumento no nível dos oceanos. Por isso, a migração para territórios ambientalmente seguros não deve ser vista como um favor, mas sim como um direito adquirido por serem esses os países que mais sofrem com a poluição causada por outros Estados. Apesar de comovente, a opção jurídica mais favorável a necessidade que essa população possui ainda é o reconhecimento pela comunidade internacional dos refugiados ambientais.

5.1 O caso Ioane Teitota vs. The Chief Executive of the Ministry of Business Innovation and Employement na Alta Corte da Nova Zelândia de Auckland. Nesse contexto, o habitante do Kiribati Ioane Teitiota pediu o status de refugiado climático na Alta Corte da Nova Zelândia de Auckland, após ter seu visto vencido e seu pedido negado pelas instâncias inferiores. Dentre as questões alegadas pelo apelante, algumas de cunho legal33 merecem destaque: Teitiota alega que os causadores do aumento do nível do mar e das mudanças climáticas são os gases do efeito estufa que são jogados na atmosfera por pessoas, de modo que a causa do deslocamento é de forma indireta uma atitude humana. O apelante alega, também, que não são todos os habitantes de Kiribati que sofrem com o aquecimento global da mesma maneira, de forma que seu pedido de refúgio possui caráter individual, como previsto pela Convenção dos Refugiados de 1951, ratificada pela Nova Zelândia em 2009. Em sua sentença, a Alta Corte da Nova Zelândia faz uma retrospectiva do contexto da criação da Convenção dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo Adicional de 1967, além de uma análise da legislação interna sobre o tema. Posteriormente, ela analisa o refúgio de uma forma que merece destaque: Do original “We don’t want to lose our dignity. We’re sacrificing much by being displaced, in any case. So we don’t want to lose that, whatever dignity is left. So the last thing we want to be called is ‘refugee’. We’re going to be given as a matter of right something that we deserve, because they’ve taken away what we have”. GORAL, Lana. Climate Change and State Responsibility – Migration as a Remedy? 2014. 75f. Tese (Mestrado em Direito) – Lund University outono de 2014. p.14. 33  As outras alegações fazem referência a situação específica de Ioane Teitiota e sua família, como o fato de terem tido dois filhos na Nova Zelândia que não são considerados cidadãos Neozelandeses e foram julgados juntamente a família. 32 

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Uma pessoa pode ser descrita propriamente como refugiado por outras razões além do fundado temor de perseguição causado por um dos cinco motivos da convenção. Desastres naturais como terremotos, erupções vulcânicas, eventos climáticos severos e tsunamis podem deixar pessoas como refugiados. Bem como conflitos. [...] Esses refugiados por motivos não descritos na convenção merecem proteção e auxílio da comunidade internacional como o Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas e organizações não governamentais. Mas é extremamente claro que o deslocamento desses refugiados não foi causado por perseguição. Nem eles se tornaram refugiados por causa de perseguição causada por um dos cinco motivos estipulados na Convenção de Refugiados de 1951. (grifo nosso)34.

Dessa forma a Alta Corte da Nova Zelândia reconheceu que uma pessoa pode ser considerada como “refugiado ambiental” e ser merecedora de ajuda internacional. Entretanto, ainda que o aumento do nível do mar seja indiretamente causado pelo ser humano, essa possibilidade não está prevista na Convenção de 1951 e seu Protocolo Adicional de 1967, que são os únicos instrumentos globalmente vinculantes sobre o tema, de forma que o demandante não pode pleitear os mesmos direitos concedidos aos refugiados nesses documentos. Com essa argumentação, a Corte demonstra que mesmo que os pontos levantados por Teitiota fossem aceitos, eles ainda sim não se enquadrariam na definição da Convenção dos Refugiados. A Corte, entretanto, faz uma importante consideração sobre o tema. Ela reconhece que problemas ambientais podem levar a conflitos armados e estes gerarem situações de vulnerabilidade e perseguição a certos grupos – adequando-se, assim, a Convenção de 1951. Uma vez que a Convenção não discorre sobre as causas do conflito, mas No original: “A person may properly be described as a refugee for reasons other than a well-founded fear of persecution on one of the five convention grounds. Natural disasters such as earthquakes, volcanic eruptions, severe weather events, and tsunamis can turn people into refugees. So too can warfare. And arguably, so too might climate change. Increased aridity of agricultural land on the fringe of deserts; the reduction or contamination of water tables; and the effect of rising sea levels and violent weather over decades on coastal lands and islands; all have the capacity to drive people from their traditional or historic homes. Such refugees of this non-convention variety at times are worthy objects of assistance and relief by the international community, the United Nations High Commissioner for Refugees, and non-government organisations. But it is abundantly clear that the displacement of such refugees has not been caused by persecution. Nor, importantly, have they become refugees because of persecution on one of the five stipulated Refugee Convention grounds. A person who becomes a refugee because of an earthquake or growing aridity of agricultural land cannot possibly argue, for that reason alone, that he or she is being persecuted for reasons of religion, nationality, political opinion, or membership of a particular social group”. Teitiota v Ministry of Business Innovation and Employment NZSC 107 (20 July 2015). p.4 [10] e [11]. Disponível em < http://www.nzlii. org/nz/cases/NZSC/2015/107.html>. Acesso em 30 jul. 2015. 34 

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sim sobre os motivos que levam a perseguição, e um grupo discriminado diante de um conflito por recursos naturais se enquadra a previsão do artigo 1º de dito instrumento. Em relação à alegação de seu pleito ser individual, tendo em vista que as mudanças climáticas não atingem a todos os habitantes da mesma forma, respondeu-se que o simples fato de Ioane Teitiota não ter omitido seu nome no caso demonstra que não há possibilidade de uma possível retaliação à família ou perseguição das autoridades locais caso o demandante volte ao seu país. Esse simples fato já demonstra que sua definição não se enquadra a definição clássica e vigente no direito internacional. Apesar da negativa da concessão do status de “refugiado climático” ao habitante de Kiribati, a importância dessa decisão se traduz no reconhecimento de que problemas ambientais causam a migração de várias populações, ainda que não se tenha discutido em que medida outros fatores interferem nessa decisão. O julgamento alerta, por fim, para a necessidade de um instrumento jurídico internacional que reconheça e legisle sobre os “refugiados ambientais” como única forma de segurança jurídica em futuros pleitos internacionais. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O aumento das migrações influenciadas por fatores ambientais têm gerado grandes debates sobre a definição da categoria jurídica de “refugiados ambientais” e sua proteção pelo direito internacional. O estudo do instituto do refúgio, do seu surgimento aos moldes atuais, é importante para demonstrar a sua transformação ao longo da história e indagar os próximos passos desse instituto. A primeira codificação internacionalmente aceita sobre o tema individualizou a atribuição do status de refugiado para os europeus que fugiam de seus países durante a Segunda Guerra Mundial por serem perseguidas em razão de suas crenças, opiniões políticas, raça, nacionalidade ou pertencimento a um grupo social. Mesmo o Protocolo Adicional de 1967 tendo retirado a restrição temporal e regional, este instrumento manteve as características para a atribuição do status de refugiado de acordo com a definição anterior e limitada a conflitos estatais. Posteriormente, algumas organizações regionais adaptaram o instituto do refúgio de acordo com suas realidades, mas esses instrumentos possuem apenas alcance regional e nem sempre tiveram uma grande recepção. Essa análise demonstra que os chamados “refugiados ambientais” dificilmente se enquadrarão a definição tradicional, sendo necessárias outras medidas internacionais para a sua proteção. No âmbito da definição dos “refugiados ambientais” há pouco consenso entre os autores. A principal razão é em que medida outros fatores como a economia, a estrutura política e social de um país influenciam na decisão por migrar, além do fator ambiental.

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Enquanto se reconhece internacionalmente que cada vez mais pessoas migram motivadas por fatores ambientais e essas pessoas precisam de proteção internacional, os Estados demonstram pouca vontade política para resolver o problema e os doutrinadores intensificam suas pesquisas de forma a encontrar uma definição aceita pela maioria dos países. Como o status de refugiado gera obrigações para o país receptor, como o direito de não retornar o refugiado, as autoridades estatais não querem ser obrigadas a aceitar a massiva onda de migrantes econômicos que poderiam se aproveitar da oportunidade. De forma que a voluntariedade, o alcance do deslocamento, o problema ambiental em si e a intensidade do problema são importantes fatores que devem ser bem definidos na solução jurídica encontrada para restringir oportunistas e buscar a aceitação internacional. Quanto ao caso específico de Kiribati, percebe-se que o problema ambiental é um fator decisivo na opção pela imigração, pois além de graves desastres diminuírem radicalmente a qualidade de vida da população, a previsão de desaparecimento do território em virtude do aumento do nível do mar é alarmante e precisa de uma rápida solução. Entretanto, pode-se argumentar que o fato do governo ter poucos recursos econômicos para lidar com os problemas ambientais agrava a situação e influencia grande parte das opções pela migração. O caso na Alta Corte da Nova Zelândia de Ioane Teitiota, habitante do Kiribati que demandou o status de “refugiado ambiental” no país chamou a atenção do mundo para o problema e também demonstrou a tendência conservadora do alcance da definição do instituto do refúgio. O foco dado a discussão foi o enquadramento da situação do demandante aos instrumentos vigentes (Convenção de 1951 e Protocolo Adicional de 1967), ainda que a Corte tenha reconhecido que migrações (inclusive forçadas) motivadas por fatores ambientais acontecem e merecem proteção internacional. No entanto, o papel do órgão mencionado é adequar o caso as normas vigentes e uma possível interpretação extensiva da definição de refugiado poderia causar grandes impactos na política migratória do país, mas teria pouco efeito no âmbito internacional, ou seja, caso Ioane Teitiota fosse aceito como um “refugiado ambiental”, muitos outros habitantes das ilhas do Pacífico que sofrem com problemas ambientais passariam a demandar esse status na Nova Zelândia, mas nenhum outro Estado mudaria necessariamente sua posição quanto ao assunto. Conclui-se, assim, a urgência de uma tomada de atitude pela comunidade internacional, preferencialmente de forma vinculante para a proteção dessa crescente onda de migrações motivadas por fatores ambientais, uma vez que os instrumentos vigentes sobre o refúgio não abarcam essa categoria de forma direta.

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RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL PELOS REFUGIADOS AMBIENTAIS: Anomia, soft law e o caso do arquipélago de Tuvalu Paola Durso Angelucci1 Mário Cesar Andrade2 Resumo: O presente trabalho investiga a ausência de tutela específica dos refugiados ambientais perante o direito internacional, visando à ampliação do marco de responsabilização dos Estados face à sua omissão no tocante ao amparo destes indivíduos. Neste sentido, são abordadas alternativas de normatização do instituto e a possibilidade de responsabilização internacional objetiva dos Estados quando se trata de dano ambiental. Para tanto, são apresentados dados quantitativos e geográficos sobre os refugiados, em plano global, bem como acerca das mudanças climáticas e da pobreza como fatores de influência nos fluxos migratórios. Estuda-se, também, a ligação entre o refúgio ambiental e a proteção aos direitos humanos. Por fim, é apresentado o caso do arquipélago de Tuvalu, o qual exemplifica alguns dos pontos abordados no decorrer deste estudo. Palavras-chave: Refúgio Ambiental; Mudanças Climáticas; Responsabilidade Internacional. Abstract: This study investigates the lack on specific protection for environmental refugees under international law, aiming to increase the responsibility of the governments considering their omission when it is about the protection of these individuals. Therefore, alternatives to regulate the institute are discussed, as well as the possibility of civil liability of the State when it comes to environmental damage. Besides, the study includes quantitative and geographical facts about refugees, in a global level, as well as climate change and poverty as factors of influence on migration. It also presents the link between environmental refugees and human rights protection. Finally, it exposes the case of Tuvalu archipelago, which exemplifies some of the points which were mentioned on this study. Keywords: Environmental Refuge; Climate Change; International Responsibility.

1  Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Professora da Faculdade do Sudeste Mineiro. E-mail: . 2  Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Ex-Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF. E-mail: .

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1 INTRODUÇÃO Atualmente, problemas antes atinentes somente à esfera local de um Estado adquiriram dimensões globais. Esse é o caso dos danos ambientais, que podem ultrapassar fronteiras nacionais e causar efeitos sobre vidas em localidades distantes, mesmo muito depois da ocorrência do evento causador.  O crescente número de refugiados ambientais tem demandado postura mais ativa da comunidade internacional para com aqueles que são obrigados a deixar sua localidade de origem devido a transformações significativas no meio ambiente. A partir de referenciais teóricos construtivistas e neokantianos das Relações Internacionais e sua ênfase na valorização e proteção do indivíduo, defende-se a ampliação do marco de responsabilização do Estado por omissão em relação ao amparo a refugiados ambientais. Nesse sentido, revela-se necessária a superação da ausência de disciplina normativa adequada à proteção dessa espécie de refugiado. A ausência de norma internacional regulamentadora do refúgio ambiental tem servido de impedimento à responsabilização objetiva dos Estados causadores de danos ao meio ambiente. Porém, defende-se que os refugiados ambientais podem ser beneficiados pela aplicação da teoria do risco à ocorrência de dano ambiental causado por países poluidores. A presente pesquisa qualitativa tem caráter jurídico-propositivo e vale-se de fontes juspositivas e bibliográficas, além de buscar ilustrar a atual importância da discussão empreendida com a análise do problema ambiental enfrentado pelo arquipélago de Tuvalu. Primeiramente, ressalta-se a necessidade de revisão da conceituação tradicional do instituto internacional do refúgio para a admissão de outras causas de migração forçada, e busca-se a delimitação do conceito de refugiado ambiental. Em seguida, analisa-se a situação dos refugiados no cenário internacional atual, destacando-se, exemplificativamente, o problema enfrentado pelo arquipélago de Tuvalu. Posteriormente, são expostas as causas e efeitos das mudanças climáticas na atualidade. Por fim, são analisadas as formas de responsabilidade internacional do Estado, buscando-se identificar a melhor alternativa para efetivar essa responsabilidade a despeito da ausência de regulamentação do instituto do refúgio ambiental.

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2 REFUGIADOS: CONCEITO E TUTELA NO DIREITO INTERNACIONAL

2.1 Instituto Internacional do Refúgio O instituto do refúgio tem suas normas elaboradas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e possui como textos magnos, em plano global, a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966), sendo que esse último ampliou a definição elaborada em 1951, eliminando limites referentes a datas e espaços geográficos. No Brasil, o refúgio é regulado pela Lei nº 9.474, de 1997, a qual cuida da implantação, em âmbito nacional, do Estatuto dos Refugiados, de 19513. Em consonância com as normas internacionais, o art. 1º da Lei nº 9.4744 estabelece os requisitos para o reconhecimento da condição de refugiado. Segundo esse dispositivo legal, o reconhecimento como refugiado decorre de perseguição por motivos de etnia, religião ou nacionalidade, ou por pertencer a específico setor social, distinguindo-se da natureza política ou de opinião do asilo. Diplomas regionais podem ampliar as hipóteses de concessão de refúgio, como fez a Declaração de Cartagena sobre os Refugiados, de 1984, que incluiu as hipóteses de ameaça de violência generalizada, agressão interna e violação massiva de direitos humanos5. Nesse sentido, a Lei nº 9474/97 (art. 1º, inc. III) prevê a possibilidade de reconhecer como refugiado aquele que, devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar abrigo em outro Estado. Assim, a lei brasileira, mais recente que o Protocolo de 1966 e a Convenção de 1951, adota definição mais amplia de refugiado, indo além dos casos de perseguição por motivo de etnia, religião e nacionalidade. Ao contrário do asilo e de outros institutos do direito internacional aplicados aos casos de natureza política ou ideológica, de caráter mais individual, o refúgio é demandado por questões coletivas, como situações de grande penúria. No refúgio propriamente dito, vários indivíduos são obrigados a se deslocar a partir de seus Estados de origem em direção a outro local onde possam 3  BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. 4  BRASIL. Op Cit. 5  ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Declaração de Cartagena sobre os Refugiados, de 22 de novembro de 1984. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2015.

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viver sob melhores condições6.

Todavia, considerando que a Convenção trata somente dos eventos anteriores à data de 1º de janeiro de 1951 e confere proteção apenas a refugiados provenientes da Europa, fez-se necessária a elaboração de Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, o qual foi preparado e apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1966, a fim de tutelar os fluxos de refugiados emergentes de novas situações geradoras de conflitos e perseguições. O Protocolo entrou em vigor em 4 de outubro de 1967. A partir de sua ratificação, as limitações anteriores desapareceram, e os dispositivos passaram a ser aplicados a casos futuros, bem como a refugiados oriundos de qualquer continente. Embora relacionado com a Convenção, o Protocolo é instrumento normativo independente, cuja aplicação não está restrita aos Estados signatários da Convenção de 19517. Atualmente, 148 (cento e quarenta e oito) Estados constam como signatários da Convenção e/ou do Protocolo de 1967, sendo Nauru o mais recente signatário (desde junho de 2011)8. Nos art. 2º e 3º da Lei nº 9.4749 a delimitação de quem será considerado refugiado se dá através de hipóteses de extensão e de exclusão. A lei traz especificações sobre os direitos e deveres dos refugiados, o ingresso no território nacional e o pedido de refúgio. Ela disciplina, também, os processos de extradição, expulsão e perda da condição de refugiado e das chamadas soluções duráveis, que consistem na repatriação, integração local e reassentamento do refugiado. A lei criou, ainda, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão de deliberação colegiada, no âmbito do Ministério da Justiça. Portanto, em relação ao direito positivado, afere-se que o refugiado, conta com significativa proteção nacional e internacional. Todavia, essa proteção não contempla um caso especial: o refugiado ambiental.

2.2 Refugiados Ambientais, Ecológicos ou Climáticos: conceito e reconhecimento jurídico O termo refugiado ambiental foi popularizado a partir de publicação do profes6  JUBILUT, Liliana Lyra; APOLINÁRIO, Silvia Menicucci O.S. A necessidade de proteção internacional no âmbito da migração. Revista Direito GV, v. 6. São Paulo: FGV, 2010, p. 275-294. 7  ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. O que é a Convenção de 1951? Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. 8  ACNUR. Ibid, 2015c. 9  BRASIL. Ibid, 1997.

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sor Essam El-Hinnawi, do Egyptian National Research Centre, em 1985. A definição foi aplicada aos indivíduos forçados a deixarem seu habitat natural, de forma temporária ou permanente, em função de significativa perturbação ambiental (natural e/ou desencadeada pela ação humana) que tenha colocado em risco sua existência e/ou afetado seriamente sua qualidade de vida10. Perturbação ambiental deve ser entendida como quaisquer mudanças físicas, químicas, e/ou biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que o tornem, temporária ou permanentemente, impróprio para a vida humana. Assim, desastres ambientais podem gerar a necessidade de grandes deslocamentos populacionais, o que permite classificar este tipo específico de deslocamento forçado como refúgio ambiental, climático ou ecológico11. Essa nova espécie de refúgio é defendida por Muinul ISLAM12: Conceitualmente, estes refugiados são denominados, de forma variada, como “migrantes econômicos”, “migrantes de socorro” ou “migrantes obrigados”, mas a pressão constante das circunstâncias torna-se tanto uma questão de vida ou morte para os refugiados da devastação das catástrofes naturais que eles normalmente não têm escolha, a não ser migrar. Portanto, o termo “refugiado” é mais apropriado do que o termo “migrante”. (tradução nossa)13

Esse autor defendeu a extensão da condição de refugiado às populações obrigadas a migrar em decorrência de calamidades naturais após identificar as principais causas de migração forçada em Bangladesh14: (...) os refugiados de Bangladesh são arrancados de suas casas no campo por um conjunto de fatores econômicos, sociais, institucionais e políticos, bem como por ataques consecutivos de desastres naturais como inundações, ciclones, erosões fluviais etc. MORRISSEY, James. Rethinking the ‘debate on environmental refugees’: from ‘maximilists and minimalists’ to ‘proponents and critics’. Journal of Political Ecology, vol. 19, 2012. Oxford: University of Oxford. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. 11  MORRISSEY, James. Op Cit. 12  ISLAM, Muinul. Natural calamities and environmental refugees in Bangladesh. Refugee, vol. 12, n. 1, jun., 1992. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2015, p. 06. 13  No original: “Conceptually, these refugees are variously termed as ‘economic migrants’, ‘distress migrants’ or ‘compelled migrants’, but the compulsive push of circumstances becomes so much a matter of life and death for the refugees fleeing the ravages of natural disasters that normally they have no choice but to migrate. Therefore, the term refugee is more appropriate than the term ‘migrant’.” 14  ISLAM, Muinul. Ibid, p. 06. 10 

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(tradução nossa)15

A grave situação de vulnerabilidade dos migrantes forçados dessa parte da Índia demandou reconhecê-los como vítimas carecedoras de proteção internacional. No mesmo sentido, Norman MYERS16 define os refugiados ambientais: Estas são pessoas que já não podem ganhar uma vida segura em sua terra natal por causa da seca do solo, erosão, desertificação, desmatamento e outros problemas ambientais, juntamente com problemas associados de pressões populacionais e de pobreza profunda. Em seu desespero, essas pessoas sentem que não têm alternativa senão buscar refúgio em outros lugares, mesmo que esta seja uma perigosa tentativa. Nem todos eles fugiram dos seus países, muitos sendo deslocados internos. Mas todos têm abandonado suas terras de modo permanente ou semi-permanente, com pouca esperança de um retorno previsível. (tradução nossa)17

Ainda que, tradicionalmente, o termo refugiado esteja associado a guerras, repressão política, conflito civis, fome e epidemias, o que parece ter estereotipado o conceito, ISLAM18 ressalta a crescente urgência na ampliação de seu significado para incluir o refugiado ambiental como objeto de tutela internacional. Atualmente, em razão da ausência de disciplina própria, os refugiados por conta de desastres naturais ou mudanças climáticas são tratados como migrantes comuns. A maior dificuldade enfrentada pelos refugiados ambientais é a falta de reconhecimento oficial, quer por parte dos governos ou de agências internacionais. Contudo, a inexistência de via institucionalizada para lidar com esta espécie de refugiado não deve servir de óbice ao seu reconhecimento19. Nesse cenário, cessando a atenção midiática pelo desastre natural, cessa também a comoção pública e o suporte oferecido aos deslocados, haja vista ausência de disciplina internacional de políticas duradouras de No original: “(…) the refugees of Bangladesh are uprooted from their rural homes by an amalgam of economic, social, institutional and political factors, as well as by consecutive onslaughts of natural disasters like floods, cyclones, river erosions, etc.” 16  MYERS, Norman. Environmental refugees: our latest understanding, philosophical transactions of the Royal Society. (2001) Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2015. 17  No original: “These are people who can no longer gain a secure livelihood in their homelands because of drought, soil erosion, desertification, deforestation and other environmental problems, together with associated problems of population pressures and profound poverty. In their desperation, these people feel they have no alternative but to seek sanctuary elsewhere, however hazardous the attempt. Not all of them have fled their countries, many being internally displaced. But all have abandoned their homelands on a semi-permanent if not permanent basis, with little hope of a foreseeable return.” 18  ISLAM, Muinul. Ibid, p. 07. 19  MYERS, Norman. Ibid, 2001. 15 

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assistência20. Porém, a nova categoria ainda é controversa. Em relatório publicado, em 2011, pelo The Government Office for Science do Reino Unido, a nova classificação é considerada inapropriada. Embora reconheça a existência de lacunas na proteção de populações vítimas de deslocamento forçado por mudanças ambientais, o relatório considera que tais fluxos migratórios são fenômenos multicausais, tornando os qualificativos ambientais ou climáticos inadequados21. Todavia, a classificação sugerida por Myers e Islam não desconsidera os demais fatores capazes de influenciar a migração em questão; somente reconhece que o principal fator deriva de mudanças nas condições ambientais, a ensejar proteção específica, direcionada às necessidades especiais dos refugiados nestas condições. Apesar da divergência conceitual, o referido relatório sugere algumas vias para lidar com as lacunas normativas em relação aos migrantes forçados por causas ambientais. Segundo o relatório, há diversos institutos internacionais que podem ser mobilizados, como os instrumentos de soft law, os princípios orientadores de deslocamento interno e os princípios Nansen, que oferecem diretrizes para o trabalho relacionado às vítimas de mudanças climáticas. Essas alternativas permitem abordagens mais adaptáveis aos diferentes Estados, colaborando para a produção de consensos internacionais22 . Embora não possuam status de norma jurídica, as normas de soft law representam uma obrigação moral do Estado e têm dupla finalidade: (1) fixar metas para futuras ações políticas nas relações internacionais e (2) recomendar aos Estados que adequem as normas de seu ordenamento interno às regras internacionais contidas na soft law. Exemplo desse tipo de norma é a Agenda 21, adotada ao final da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), na qual foram estabelecidos planos de ação para a proteção internacional do meio ambiente no século XXI. O exemplo da soft law evidencia que, em muitos casos, a solução pode não estar num sistema de proteção formal (rígido), mas em sistemas mais fluidos, evitando problemas de adequação de tratados entre partes reservantes e não reservantes, ou com países que tenham rejeitado eventual acordo de emenda. Assim, a princípio, a tutela do refugiado ambiental pode não ser alcançada globalmente, mas regionalmente. Em razão de particularidades envolvidas, um sistema regional pode ser mais capaz de proteger o refugiado ambiental, do que um tratado universal que aborde o tema de maneira demasiado generalizada, não prevendo necessárias ISLAM, Muinul. Ibid, p. 07. REINO UNIDO. The Government Office for Science. Migration and global environmental change: future challenges and opportunities. Final project report. Londres: The Government Office for Science, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. 22  REINO UNIDO. Ibid. 20  21 

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formas de tutela específica e de suporte. Afinal, a acentuada generalidade das normas internacionais é estratégia comum para englobar e atrair o maior número de países.

2.3 Diferenças entre Migração e Deslocamento A precisa identificação dos refugiados ambientais carecedores da tutela internacional depende da prévia diferenciação entre migração e deslocamento. No citado relatório23, o gênero migração é dividido nas espécies migração voluntária e deslocamento involuntário. A migração voluntária ocorre quando indivíduos transferem sua residência, por vontade própria, cruzando fronteiras internacionais (migração internacional) ou quando o fazem dentro dos limites do país onde vivem, mudando para outra região, distrito ou município (migração interna). Normalmente, são considerados migrantes aqueles que permanecerem fora de sua localidade original por período de, ao menos, três meses. Já no deslocamento involuntário, os indivíduos são compelidos a mudar. Quando isso ocorre dentro do país de origem do indivíduo, dá-se um deslocamento interno; quando as pessoas são forçadas a migrar para outro país, existe a possibilidade de se tornarem refugiados, embora na legislação internacional, este termo seja reservado para aqueles que se encaixam na definição da Convenção dos Refugiados de Genebra (1951), bem como em seu protocolo (1967) e são, ainda, reconhecidos como refugiados pelo Estado que os abriga ou pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Dessa forma, embora ainda não contemplados pela legislação internacional, são considerados refugiados ambientais aqueles que, por razões relacionadas ao desequilíbrio do meio ambiente, são forçados a migrar para além das fronteiras de seu país de origem. 3 REFUGIADOS NO MUNDO ATUAL

3.1 Diagnóstico do nosso tempo Segundo o ACNUR24, as causas de deslocamento forçado não mais se restringem a conflitos e perseguições, mas abrangem situações de extrema pobreza e de impacto das mudanças climáticas nas mais diversas regiões do planeta. A mais recente edição do relatório Tendências Globais, de 18 de junho de 2015, REINO UNIDO. Ibid. ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Relatório tendências globais. p. em 18 de junho de 2015. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015. 23  24 

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registra um crescimento recorde no número de refugiados no mundo. A uma década, esse número era de 37,5 milhões de pessoas. Em 2013, ele passou para 51,2 milhões; alcançando, em 2014, o recorde de 59,5 milhões de pessoas25. Pelos dados divulgados pelo ACNUR em 09 de julho de 2015, na Síria, mais de 4 (quatro) milhões de pessoas fugiram do país desde o começo dos conflitos internos em 2011. O aumento desse fluxo impressiona: 10 (dez) meses antes, o número de refugiados do conflito sírio era 3 (três) milhões. Para o ACNUR, essa é a pior crise em quase um quarto de século26. Na Somália, mais de 170 (cento e setenta) mil pessoas fugiram, entre janeiro e julho de 2011, para países próximos, em decorrência de seca, fome e insegurança. Na Líbia, no mesmo período, cerca de 1 (um) milhão de pessoas teriam abandonado o país, entre refugiados, solicitantes de refúgio e migrantes econômicos (ONUBR, 2011). Por conta da seca na África Oriental, cerca de 450 (quatrocentos e cinquenta) mil refugiados somalis foram deslocados para o Quênia, Etiópia e Djibuti. Já o fluxo de migração proveniente da Líbia tem sido acolhido por Tunísia e Egito27. Os 27 (vinte e sete) países membros da União Europeia receberam em torno de 243 (duzentos e quarenta e três) mil pedidos de refúgio em 2010, o que representava, em porcentagem, o equivalente a quase 29% (vinte e nove por cento) do total mundial (ONUBR, 2011). Já nos primeiros seis meses de 2015, a Europa recebeu cerca de 137 mil pessoas que cruzaram o Mar Mediterrâneo por conta de guerras, conflitos e perseguições28. Em relação ao caso específico dos refugiados ambientais, o cenário é igualmente alarmante. Estima-se que, em 1995, eles totalizavam 25 (vinte e cinco) milhões de pessoas, enquanto, na mesma época, 27 (vinte e sete) milhões eram refugiados vítimas de repressão política, perseguição religiosa e conflitos étnicos. Segundo Myers29, esse número de refugiados ambientais duplicou na última década e tende a aumentar: Enquanto o planeta passa por um processo de aquecimento, até 200 (duzentos) milhões de pessoas poderão sofrer com a ruptura dos sistemas de monções e outros regimes de chuvas, bem como com secas de gravidade e duração sem precedentes, além de eleACNUR. Op Cit. ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. ACNUR: Refugiados sírios já passam dos 4 milhões. p. em 09 de julho de 2015. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015. 27  ONUBR. Organização das Nações Unidas no Brasil. ACNUR comemora 60 anos da convenção de 1951 para refugiados. p. em 28 de julho de 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2015 28  ACNUR. Ibid. 29  MYERS, Norman. Ibid, 2001. 25  26 

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vações no nível do mar e inundações costeiras.

Dos estimados 25 (vinte e cinco) milhões de refugiados ambientais, cerca de 5 (cinco) milhões estariam no Sahel africano, fugindo de secas. Em outras regiões da África subsaariana, onde 80 (oitenta) milhões de pessoas são consideradas semifamintas, por conta, especialmente, de fatores ambientais, 7 (sete) milhões de pessoas foram obrigadas a migrar para obter alimento. Nos primeiros meses do ano 2000, no Sudão, 8 (oito) milhões de pessoas foram oficialmente consideradas em risco de fome; na Somália e no Quênia, 3 (três) milhões. Para Myers30, considerável parte desses migrantes pode ser caracterizada como refugiados ambientais, visto que a fome foi provocada por condições ambientais. Os sudaneses formam o único grupo de refugiados amplamente reconhecido como ambientais. Apesar de a justificativa para a concessão do refúgio basear-se na guerra civil que durou 22 anos (1983-2005), a degradação do meio ambiente é aceita como a origem dos conflitos. Juntando fatores como a elevação do índice populacional, o aumento da desertificação no norte do país e a escassez de recursos naturais, a maioria árabe e muçulmana que habitava aquela região foi levada a se deslocar para a região sul, onde os negros cristãos permaneciam como dominantes. A guerra causou 300 mil mortes e forçou a migração de 2,7 milhões de pessoas. Todavia, Myers considerou conservadora a estimativa que apontava 25 milhões de refugiados ambientais. O autor argumenta que, nos países em desenvolvimento, há cerca de 135 milhões de pessoas ameaçadas pela desertificação grave e 550 milhões de pessoas sujeitas à escassez crônica de água. Embora parte destes números tenha sido incluída nos 25 milhões, muitos indivíduos poderiam ter migrado sem serem contados como refugiados ambientais. Myers ressalta, ainda, que dos quase um bilhão de pessoas adicionadas à população mundial durante os anos 90, parcela significativa seria parte de comunidades com renda de US$ 1,00 (um dólar) por dia ou menos. Assim, um grande contingente populacional estaria mais suscetível, tentando sobreviver em ambientes muito úmidos, secos ou íngremes para a agricultura sustentável. Na África subsaariana e na Índia, houve um acréscimo de 150 milhões de pessoas durante a década de 199031. De acordo com o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), denominado Mudanças Climáticas 2014: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade, por volta do ano de 2001, 50 milhões de pessoas já seriam consideradas refugiadas devido a causas ambientais e, provavelmente, este número chegará a 1 bilhão até o ano 2050. O referido estudo da ONU destaca, ainda, que, se as previsões de 30  31 

MYERS, Norman. Ibid, 2001. MYERS, Norman. Op Cit.

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elevação do nível dos oceanos se concretizarem, há também o risco de algumas nações desaparecerem32. Em seus relatórios, o Government Office for Science do Reino Unido questiona a ambiguidade na relação entre aqueles que são considerados em risco por conta de fatores ambientais e os que, dentre estes, virão, de fato, a migrar. Embora as metodologias utilizadas reconheçam a diferença entre suscetibilidade e capacidade de adaptação, elas parecem negar a habilidade dos mais pobres em lidar com problemas ambientais e se adaptarem, apresentando uma conexão relativamente determinista entre risco e migração. Os relatórios britânicos ressaltam que, ao tentar calcular aqueles que migram, os que resistem a abandonar seu lugar de origem ou ficam presos nas áreas de risco acabam negligenciados pelas políticas públicas, apesar de permanecerem em situação extremamente vulnerável.

3.2 Caso do Arquipélago de Tuvalu A situação enfrentada pelos habitantes do arquipélago de Tuvalu exemplifica a amplitude do problema atual dos refugiados ambientais. Tuvalu é um país composto por nove ilhas de clima tropical, tendo como capital Funafuti e estando localizado na Oceania, mais precisamente no Pacífico Sul, entre o Havaí e a Austrália33. Tuvalu foi colônia espanhola até o século XIX, quando milhares de seus habitantes foram levados ao Peru e à Bolívia como escravos. Posteriormente, tornou-se colônia britânica, sendo que diferenças étnicas entre os habitantes das colônias britânicas Gilbert e Ilhas Ellice fizeram com que, em 1974, os polinésios das Ilhas Ellice votassem pela sua separação de Gilbert. No ano seguinte, as Ilhas Ellice se tornaram a colônia separada britânica de Tuvalu. A independência foi reconhecida em 197834. O Estado de Tuvalu possui uma área total de 26 km² que, até 2012, possuía uma população de cerca de 10.000 pessoas. O solo das ilhas de Tuvalu é considerado geologicamente pobre e não possui recursos minerais conhecidos; as principais atividades econômicas são a agricultura de subsistência e a pesca35. ONU. Organização das Nações Unidas. Painel intergovernamental sobre mudanças climáticas. Mudanças climáticas 2014: impactos, adaptação e vulnerabilidade. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. 33  SIDS. The small island developing states network. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2015. 34  TUVALU ISLANDS. Basic information and electoral history. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2015. 35  UNESCO. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. The EFA 2000 Assessment: country reports. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2015. 32 

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Em Tuvalu, oportunidades de trabalho são escassas e trabalhadores do setor público compõem a maioria dos empregados. Parcela significativa da população adulta masculina trabalha como marinheiro em navios mercantes extrangeiros e as remessas são uma fonte vital de renda36. Renda substancial é recebida anualmente do Fundo Fiduciário Tuvalu (Tuvalu Trust Fund ou TTF), fundo de confiança internacional criado em 1987 por Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido, com apoio de Japão e Coréia. Pagamentos do governo norte-americano referentes ao Tratado de 1988 sobre pesca também constituem importante fonte de receita para Tuvalu37. O ponto mais elevado das ilhas localiza-se apenas a cinco metros acima do nível do mar, o que as torna extremamente sensíveis às variações da maré. Por isso, questões como o efeito estufa e sua possível influência no derretimento das calotas polares constituem preocupação essencial para Tuvalu (ILO, 2010). Nesse sentido, Tuvalu ratificou o Protocolo de Kyoto e a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar38. Dentre as 12 (doze) nações-arquipélago da região, Kiribati e Tuvalu são as mais ameaçadas pelo aumento no nível dos oceanos. As frequentes inundações, especialmente as do período de marés mais altas, entre janeiro e março, arrasam plantações e salgam a terra, destruindo a vegetação. Ademais, a região é caracterizada pela alta incidência de ciclones tropicais e a pequena extensão territorial da ilha, somada à sua composição majoritária de corais reduz consideravelmente as possibilidades de fuga da população dentro do próprio território39. Estima-se que o país deve desaparecer totalmente nos próximos 40 ou 50 anos, encoberto pelo oceano. Diante desse quadro, já em 2007, os habitantes das Ilhas do Pacífico Sul começaram a abandonar seus lares40. Porém, a acolhida internacional dos refugiados de Tuvalu tem sido errática. A Nova Zelândia, por exemplo, fixou a cota de 75 refugiados que podem ingressar, anualmente, no país. Logo, seriam necessários 1.200 anos para que toda a população das duas ilhas mais gravemente afetadas consiga evacuar suas regiões de origem41. O refúgio ambiental também tem importantes consequências culturais. Os refuILO. International Labour Organization. Decent work country programme. (2010) Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2015 37  TUVALU ISLANDS. Ibid. 38  NOVA ZELÂNDIA. New Zealand Ministry of Foreign Affairs and Trade. Tuvalu. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2015. 39  UNESCO. Ibid. 40  STUHLER, Elmar A.; MISRA, Shalini. Across disciplinary boundaries towards a sustainable life: psychodynamic reflection on human behaviour. (2008) Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2015. 41  NOVA ZELÂNDIA. Ibid. 36 

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giados sofrem a brusca alteração de seus estilos de vida: antes típicos nativos praianos, com rotinas pacatas e dedicadas a subsistência, são abruptamente submetidos à pressão competitiva da complexa vida urbana. Ademais, a ausência de expectativa de retorno ao país de origem ou mesmo do desaparecimento de determinadas ilhas, agrava a desterro sociocultural dos refugiados de Tuvalu. Percebe-se a situação crítica de Tuvalu diante das mudanças climáticas, tendo a sua própria existência comprometida. A ironia cruel desse cenário é que países pequenos como Tuvalu não são poluidores relevantes, não contribuindo significativamente para o aquecimento global. Em contraponto, os grandes poluidores tem sido resistentes à elaboração de um coerente plano de concessão de refúgio ambiental, ficando a margem de qualquer responsabilização pelas consequências dos anos de desenvolvimentismo poluidor. 4 CAUSAS E EFEITOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO PLANETA O citado IPCC estima um aumento da temperatura do planeta entre 2 a 4 °C, tornando inevitável a remoção da população de algumas regiões do mundo, devido às mudanças na disponibilidade de água, nos ecossistemas, na produtividade rural, no risco de desastres e no nível dos oceanos. Esse aumento na temperatura implicaria na mudança de uma em cada 45 (quarenta e cinco) pessoas no mundo, forçadas a deixar o lugar onde vivem por conta dos fenômenos climáticos42. Edições anteriores do referido Painel, em especial a primeira, de 1990, sofreram severas críticas da comunidade científica, devido a supostos erros nos relatórios, previsões não confirmadas e até mesmo fraude nas pesquisas. Há controvérsia na comunidade científica sobre as causas do aumento da temperatura média da Terra, que subiu 0.8 °C no século passado. Para os defensores da tese do aquecimento global, a elevação da temperatura da Terra está relacionada à emissão de CO2, produzido, principalmente, pela queima de combustíveis fósseis, logo, a ação humana seria a principal responsável. Já para os cientistas contrários a essa tese, o aumento da temperatura é causado pelo ciclo natural de aquecimento e resfriamento da Terra, sendo o vapor d´água (e não o CO2) o principal responsável pelo efeito estufa43. De acordo com o IPCC, que encampa a tese do aquecimento global, a temperatura média global aumentará entre 1,8 e 4 °C até o fim deste século. Como consequência, ocorrerão enchentes, secas, incêndios florestais, derretimento de geleiras e aumento ONU. Ibid, 2014. FELÍCIO, Ricardo Augusto. “Mudanças climáticas” e “aquecimento global”: Nova formatação e paradigma para o pensamento contemporâneo? Revista do Centro de Ciências Naturais e Exatas – UFSM, v. 36. Santa Maria: Ciência e Natura, 2014, p. 257–266. 42  43 

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no nível dos oceanos. Com a prevista elevação do nível dos oceanos em 38 cm (em média, podendo chegar a 59 cm), haverá inundações em série, com destruição de ilhas e cidades costeiras (ONU, 2014). Porém, os críticos afirmam que as oscilações de temperatura ocorridas nos séculos XX e XXI não foram excepcionais e que já houve, inclusive, períodos mais quentes do que o presente. Para este grupo, não há metodologia suficientemente precisa para prever, com segurança, o ritmo de aquecimento do planeta44. Os dois grupos de cientistas discordam, ainda, do estado das geleiras. Para o IPCC, o derretimento progressivo das geleiras afetaria a disponibilidade de água doce, aumentando o nível do mar e interrompendo o ciclo de vida da fauna e da flora45. Já os críticos consideram impossível prever o ritmo de diminuição das geleiras, uma vez que estas permanecem em constante expanão e contração46. Os relatórios do IPCC constituem o maior conjunto de informações já produzido acerca de fenômenos climáticos, tendo sido elaborados por três mil cientistas, de diversos países. Já os críticos fundamentam suas conclusões em registros geológicos e paleontológicos, que mostrariam que o planeta já teria passado por, pelo menos, quatro outros períodos de aquecimento similares ao que ocorre agora, nos últimos 650 mil anos. O relatório Climate Change Reconsidered: 2011 Interim Report of the Nongovernmental Panel on Climate Change (NIPCC), produzido por três organizações sem fins lucrativos sediadas nos Estados Unidos (The Heartland Institute, Center for the Study of Carbon Dioxide and Global Change e Science and Environmental Policy Project), contraria as previsões do IPCC elaborado pela ONU. Segundo este estudo, causas naturais e não derivadas da ação humana seriam as principais responsáveis pelas mudanças climáticas ocorridas entre os séculos XX e XXI. Embora não negue que a produção de CO2 por atividades humanas possa produzir aquecimento, o relatório afirma que este fator não assume papel significativo na atualidade. Ele alega que os modelos metodológicos usados pela ONU para estimar a elevação da temperatura global durante o século XX atentam unicamente para os processos físicos, ignorando os químicos e biológicos, que podem ser tão importantes quanto aqueles47. Ressalte-se a recorrente acusação de que alguns críticos da tese do aquecimento global estariam a serviço de interesses empresariais, receosos dos eventuais prejuízos advindos das políticas de combate à degradação ambiental, em especial, à produção de CO2 pela queima de combustíveis fósseis. FELÍCIO, Ricardo Augusto. Ibid. ONU. Ibid, 2014. 46  FELÍCIO, Ricardo Augusto. Ibid. 47  NIPCC. Nongovernmental International Panel on Climate Change. Craig D. Idso; Robert M. C.; S. Fred Singer (org.). Climate change reconsidered: 2011 interim report of the nongovernmental panel on climate change. Chicago: The Heartland Institute, 2011. 44  45 

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Diante dos diferentes posicionamentos abordados, pode-se concluir que estão em curso mudanças climáticas que afetam a vida de todo o planeta, embora as causas dessas mudanças sejam objeto de controvérsia na comunidade científica. A melhor estratégia de ação parece ser a precaução, através da busca por novas tecnologias na construção do chamado desenvolvimento sustentável, pelo qual todos os Estados nacionais devem ser responsáveis. Nesse sentido, a responsabilidade por dano ambiental está intimamente ligada aos princípios da prevenção e precaução. O princípio da precaução, expresso na Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, preceitua que “onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis não será utilizada a falta de certeza científica total como razão para o adiamento de medidas eficazes em termos de custo para evitar a degradação ambiental.”48. 5 RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS POR DANO AMBIENTAL

5.1 Responsabilidade Civil Internacional Objetiva e Subjetiva O instituto da responsabilidade civil trata da obrigação de reparação de danos imputada a alguém por conta de uma ação ou omissão. Esse instituto foi muito negligenciado pela comunidade internacional por não haver um poder central global, o que dificultaria a imposição da obrigação de reparação ao Estado responsável pelo dano. Alega-se que tal imposição afrontaria a soberania nacional do Estado responsável pelo dano49 . Todavia, o Direito internacional contemporâneo tem revisto essa interpretação, devido ao maior destaque dado ao direito de cooperação. Atualmente, percebe-se que certas situações, ainda que ocorridas dentro dos limites territoriais nacionais, podem ter repercussões globais, não podendo, portanto, estarem sob a absoluta discricionariedade estatal, sendo passíveis de interferência pela comunidade internacional50. Porém, a multinacionalização das cadeias produtivas e a internacionalização do comércio podem dificultar a identificação dos verdadeiros responsáveis pela obrigação de reparar os danos ambientais. ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração do Rio sobre meio ambiente e desenvolvimento, de 3 a 14 de junho de 1992. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2015. 49  REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Responsabilidade internacional do estado por dano ambiental. São Paulo: Campus Jurídico, 2010. 50  REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Op Cit. 48 

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A doutrina internacionalista elenca três elementos que devem estar presentes para a possibilidade de responsabilização internacional subjetiva do Estado: (1) o ato ilícito internacional; (2) a imputabilidade; e (3) prejuízo ou dano a outro Estado51. O ato ilícito consiste na violação de norma de Direito Internacional por ação ou omissão. A imputabilidade é a possibilidade de o ato antijurídico ser imputável ao Estado enquanto sujeito de Direito Internacional Público. O Estado tem, portanto, deveres pelos quais responde em caso de dano ao direito de outro, devendo-lhe ser imputada a respectiva obrigação de reparação. Em relação ao dano sofrido, ele pode ser material ou moral. Tem-se entendido que somente o sujeito de direito vítima do dano pode requerer a reparação. Porém, como afirma Reis52, é necessário destacar que não há, no âmbito da responsabilidade civil internacional do Estado por ato ilícito, qualquer regulamentação em vigor adotada pelos países. Assim, a autora opta por se orientar por um Draft de artigos sobre o tema que foi aprovado pela Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU. Ainda que não esteja em vigor e permaneça pendente de assinaturas, o Draft reúne importantes opiniões doutrinárias sobre o assunto, além de considerar a evolução da jurisprudência internacional. Já a responsabilidade civil por ato lícito deriva de tratados internacionais. Em se tratando de questões ambientais, a violação dessas normas expressas permite a responsabilização objetiva, com a aplicação da chamada teoria do risco. A doutrina objetivista da teoria do risco defende que, para a responsabilização civil do Estado, basta a violação de norma internacional referente a direitos humanos ou preservação do meio ambiente. Essa doutrina não perscruta as razões ou circunstâncias fáticas que levaram o Estado ao descumprimento da norma internacional53. Para a teoria objetivista, a responsabilidade do Estado surge a partir do momento em que se verifica a existência de nexo de causalidade entre o ato imputável ao Estado e o dano produzido, sendo indiferente para a caracterização da responsabilidade o elemento psicológico do causador do dano. Não se se discute culpa, importando apenas o risco assumido pelo Estado ao praticar o ato com potencialidade de causar dano. Trata-se de responsabilidade por risco, cujo aparecimento na seara internacional se deu a partir da segunda metade do séc. XX. Assim, eventos lícitos, mas causadores de risco iminente e excepcional, como BEDRAN, Karina Marcos; MAYER, Elizabeth. A responsabilidade civil por danos ambientais no direito brasileiro e comparado: teoria do risco criado versus teoria do risco integral. Veredas do Direito, jan./jun. de 2013, v.10, n.19. Belo Horizonte: ESDHC, p. 45-88. 52  REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Ibid. 53  BEDRAN, Karina Marcos; MAYER, Elizabeth. Ibid. 51 

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testes nucleares e poluição marítima por hidrocarbonetos, podem acarretar a responsabilização internacional do Estado. Todavia, a responsabilidade objetiva depende de expressa previsão em tratado. Daí a importância da prévia admissão da categoria de refugiado ambiental no âmbito do Direito Internacional, pois sem norma que o regule (seja soft law, seja tratado de alcance universal ou apenas acordo regional), não há como aplicar aos casos concretos a responsabilidade objetiva. Aplicando-se o sistema da responsabilidade objetiva, o Estado somente será responsável quando existir previsão normativa internacional descrevendo a conduta (lícita) e as medidas que devem ser tomadas caso esta venha a causar dano a outrem. O dano ambiental pode transcender fronteiras e seus efeitos tendem a se prolongar no tempo, ainda que possam aparecer mais ostensivamente apenas após certo lapso temporal. Tais características dificultam a identificação do causador e a avaliação da extensão do prejuízo. Além disso, o meio ambiente possui um valor intrínseco, difícil de ser apurado em termos econômicos para fins de indenização ou reparo54. A Comissão de Direito Internacional da ONU (CDI), enquanto corpo jurídico especializado com a atribuição de preparar projetos de convenções sobre temas ainda não regulamentados pela legislação internacional e de codificar as regras do direito internacional nos campos onde já existe uma prática do Estado, pretende dispensar a aferição de culpa até mesmo para atos ilícitos, por entender que o importante para a responsabilização do Estado é a previsão em norma jurídica. Nesse sentido, o art. 2º do Projeto da CDI sobre Responsabilidade Internacional do Estado55: Artigo 2. Elementos de um ato internacional ilícito de um Estado. Há um ato internacionalmente ilícito de um Estado quando a conduta consiste em ação ou omissão: (a) atribuível ao Estado no Direito Internacional, e (b) constitutiva de violação de uma obrigação internacional do Estado.56

A teoria objetiva é a que confere maior segurança diante da complexidade e pluralidade de fatores e agentes que envolvem as relações internacionais. No atual cenário REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Ibid, p. 27-28. ONU. Ibid, 1992, p. 12. 56  No original: “Article 2. Elements of an internationally wrongful act of a State. There is an internationally wrongful act of a State when conduct consisting of an action or omission: (a) is attributable to the State under International Law; and (b) constitutes a breach of an international obligation of the State.”. 54  55 

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globalizado, a dificuldade na aferição da culpa pode, por vezes, impossibilitar a atribuição de responsabilidade e a reparação do dano. No entanto, a teoria subjetiva tem prevalecido na jurisprudência internacional, o que pode ser explicado pela conveniência em fazer a responsabilização do Estado depender da prova do elemento psicológico57. Portanto, a aplicação da teoria objetiva aos refugiados ambientais garantiria a tutela desse grupo de vulneráveis diante dos danos causados pela conduta poluidora dos Estados.

5.2 Proteção Internacional ao Meio Ambiente e os Direitos Humanos A Declaração de Estocolmo (1972) foi o primeiro grande marco do direito internacional para a defesa do meio ambiente. A partir dela, surgiram outros tratados sobre o tema e difundiu-se a consciência de que “questões ambientais não se restringem à esfera local, afetam o tempo presente e futuro e ultrapassam limites territoriais”58. Nesse sentido, estabelecem os Princípios 21 e 22 da Declaração59: 21 - De acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos, de acordo com a sua política ambiental, desde que as atividades levadas a efeito, dentro da jurisdição ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional. 22 - Os Estados devem cooperar para continuar desenvolvendo o direito internacional, no que se refere à responsabilidade e à indenização das vítimas da poluição e outros danos ambientais, que as atividades realizadas dentro da jurisdição ou sob controle de tais Estados, causem às zonas situadas fora de sua jurisdição.

Seguindo o proposto na Declaração de Estocolmo, a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados das Nações Unidas (1974) consolidou, em seu artigo 3º, que a proteção e preservação do meio ambiente para gerações presentes e futuras é responsabilidade de todos os Estados. Já em 1980, a Assembleia-Geral da ONU manifestou-se no mesmo sentido, afirmando a responsabilidade dos Estados diante das questões ambientais e de maneira global. Logo, a preservação do meio ambiente não mais pode ser REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Ibid, p. 39. REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Op Cit, p. 08. 59  ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração da Conferência de ONU no Ambiente Humano, Estocolmo, 5-16 de junho de 1972. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2015. 57  58 

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considerada pelos Estados como um dever de caráter nacional60. Dessa forma, podemos concluir que o desenvolvimento de um sistema de proteção ambiental está ligado à proteção dos direitos humanos. Embora o rol da Declaração de Direitos Humanos (1948) não inclua expressamente o direito ao meio ambiente, a efetivação dos direitos à vida, à saúde, ao bem-estar e à existência digna, depende de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Os direitos civis e políticos resultaram dos ideais defendidos pela Revolução Francesa, tendo sido consolidados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Mais tarde, resultantes da influência de ideais socialistas do século XIX, surgiram os direitos econômicos, sociais e culturais, os quais primavam pelo bem-estar econômico e social dos indivíduos, na tentativa de se contrapor aos abusos decorrentes dos direitos de primeira geração, que acabaram gerando graves desigualdades sociais durante os séc. XIX e XX. Por fim, surgiram, nos anos 1970, como consequência dos avanços e danos gerados pelo desenvolvimento tecnológico e científico, os direitos difusos, em virtude da impossibilidade de identificação concreta dos afetados pelos danos. Esses direitos foram também denominados direitos de solidariedade, uma vez que, por sua complexidade, não apenas o Estado, mas todos, inclusive a comunidade internacional, possuem a responsabilidade de zelar pelos mesmos. São direitos de solidariedade o direito à paz, ao desenvolvimento e ao meio ambiente sadio61. Constatando que, recorrentemente, as exigências desenvolvimentistas nacionais entram em conflito com a necessidade de preservação ambiental, o Relatório Brundtland (também conhecido como Nosso Futuro Comum), difundiu o conceito de desenvolvimento sustentável, definido como o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazer suas próprias necessidades62. Em 1992, a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento foi outro marco, definindo em seu Princípio 2 que os Estados têm a responsabilidade de assegurar que as atividades exercidas dentro de sua jurisdição e controle não gerem danos ao meio ambiente de outros Estados63.

REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Ibid, p. 08-09. REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Ibid, p. 10. 62  ONUBR. Organização das Nações Unidas no Brasil. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. (1987) Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2015. 63  ONU. Ibid, 1992. 60  61 

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5.3 Soft law como alternativa Em geral, a celebração de tratados internacionais demanda vários anos de negociações em busca de consenso. O processo é dificultado pelas diferenças culturais, econômicas e sociais, e pela possibilidade de ser responsabilizado por eventual descumprimento do tratado ratificado. Em contraponto, os problemas ambientais, cada vez mais frequentes e danosos, demandam respostas céleres e eficazes. Em resposta a esse cenário, aventa-se a soft law. Em relação ao direito ambiental, verifica-se forte tendência à adoção de convenções-quadro (umbrella conventions). Este instrumento funciona da seguinte forma: primeiramente, é estabelecida uma convenção de caráter muito geral e com natureza de soft law, prevendo os princípios, resoluções e/ou códigos de conduta; uma vez assinada esta convenção geral, cabe a protocolos específicos a regulamentação dos assuntos apontados na convenção. Após assinados, esses protocolos são dotados de poder vinculativo e coercitivo. Nesse sentido, o Protocolo de Kyoto complementa a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas64. Nas normas de soft law, não há estabelecimento de prazos ou condições obrigatórias para o cumprimento do que foi pactuado. É justamente a ausência de obrigações claramente definidas que confere a este instrumento maior efeito agregador no âmbito internacional. Nas palavras de REIS65 : (...) a maior adesão dos Estados a tais instrumentos ocorre porque o descumprimento da soft law não gera, em regra, a possibilidade de responsabilização internacional, como ocorre quando descumpridas as disposições de um tratado. Ademais, o modo de produção da soft law é bem mais simplificado, dispensando formalidades por vezes exigidas pelos direitos internos dos Estados para a assinatura de tratados.

Para a autora, a soft law constitui norma jurídica de conteúdo programático. Assim, além de representar deveres morais e políticos, ela prescreve a adequação das leis e políticas internas dos Estados ao seu conteúdo. Apesar da regra de impossibilidade de responsabilização internacional por descumprimento de soft law (já que não gera direitos ou obrigações específicas), essa responsabilização pode ocorrer quando, no caso concreto, o descumprimento do pactuado causar danos a terceiros. Esta possibilidade se coaduna com os princípios da precaução e da boa-fé, haja vista a legítima expectativa 64  65 

REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Ibid, p. 17-21. REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Op. Cit., p. 20.

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que os Estados respeitem as diretrizes internacionais assumidas. Porém, no contexto internacional, não há uma autoridade central competente para edição de normas. As normas internacionais derivam de uma autoridade conjunta e seus atores estão juridicamente em pé de igualdade, o que dificulta ou mesmo inviabiliza a imposição da obrigação de reparar o dano causado. Para o estabelecimento de uma adequada e eficaz rede de proteção aos vitimados por danos ambientais, os sistemas de responsabilidade por ato ilícito e por atos não proibidos (lícitos) não são obrigatoriamente excludentes. Pelo contrário, esses sistemas podem se complementar, pois, ainda que a possiblidade de responsabilização por ato ilícito tenha precluído, o Estado permanece passível de ser responsabilizado pela reparação do dano ambiental causado e/ou de socorro às vítimas, como os refugiados ambientais. Tradicionalmente, a responsabilidade objetiva ou por risco decorre sempre de convenções internacionais sobre matérias específicas, como as sobre danos nucleares ou espaciais e poluição marinha. No entanto, a CDI tem defendido que essa responsabilidade pode decorrer de uma codificação genérica, por antever que a vastidão do tema dificultaria a produção rápida de uma regulamentação que abarcasse a totalidade das diferentes situações envolvendo o tema66. Essa dificuldade de adesão dos Estados não pode significar a absoluta irresponsabilidade com o meio ambiente, bem como para com os vitimados por danos nesse nicho de interesse de toda de a comunidade internacional. Contudo, cumpre ressaltar que o dever de diligência é relativizado conforme o grau de desenvolvimento do Estado. Assim, não será exigido de um Estado menos desenvolvido que seus sistemas de prevenção obtenham a mesma eficácia dos elaborados por Estados mais desenvolvidos67. Essa adequação do dever de vigilância coaduna-se com o Princípio 7 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, segundo o qual os Estados têm responsabilidades comuns, mas diferenciadas68: Os Estados cooperarão em espírito de parceria global para conservar, proteger e recuperar a saúde e a integridade do ecossistema da Terra. Tendo em conta os diferentes contributos para a degradação ambiental global, os Estados têm responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Os países desenvolvidos reconhecem a responsabilidade que lhes cabe na procura do desenvolvimento sustentável a nível internacional, considerando as pressões exercidas pelas suas sociedades sobre o ambiente global e as tecnologias e os recursos financeiros de que dispõem. 66  67  68 

REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Ibid, p. 97-98. REIS, Alessandra de Medeiros Nogueira. Op. Cit., p. 98-99. ONU. Ibid, 1992.

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No mesmo sentido, o Princípio 15 da Declaração do Rio prevê que medidas preventivas devem ser empreendidas pelos Estados “de acordo com suas capacidades”69. Portanto, a responsabilização do Estado por danos ao meio ambiente, principalmente em relação à imposição de medidas de reparação, deve considerar seu estágio de desenvolvimento socioeconômico. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, resta patente a adequação do termo refugiado ambiental aos indivíduos forçados a abandonarem seus países de origem por causas ambientais. Tais indivíduos são mais do que meros migrantes, necessitando de proteção semelhante aos refugiados políticos ou religiosos. Assim como os tipos clássicos de refugiados, o ambiental encontra-se fora de seu país de origem, estando desamparado e sem poder regressar. Apesar de os fluxos migratórios serem fenômenos multicausais, a caracterização do refúgio como ambiental justifica-se por ser o desequilíbrio ambiental o principal fator causante das condições que forçam o deslocamento populacional. Esse é o caso das ilhas de Tuvalu, em que as maiores ameaças à população são a elevação no nível do oceano e suas consequências, como destruição da vegetação, enchentes, erosão do solo, sendo, portanto, o fator ambiental a causa essencial do deslocamento dos nacionais para países vizinhos. A ausência de normas internacionais reguladoras do refúgio ambiental tem dificultado extremamente a assistência aos refugiados e obstado a responsabilização dos Estados. Uma alternativa para a disciplina dessa responsabilização seria a abordagem oferecida pelas normas de soft law. Mesmo sem o status de norma jurídica, imperativa e vinculante, tais normas representam uma obrigação moral do Estado, fixando metas para futuras ações políticas nas relações internacionais e demandando coerência dos Estados, que devem adequar seus ordenamentos internos a essas normas internacionalmente pactuadas. Assim, a princípio, a solução pode não estar num sistema de proteção formal, mas em sistemas mais maleáveis, que evitem problemas de consenso e adequação entre os interesses de todas as partes e que, por serem menos burocráticos e coercitivos, recebam maior adesão de Estados. Portanto, princípios, resoluções ou códigos de conduta em uma convenção-quadro (com natureza de soft law) já possibilita cobrar responsabilidade internacional pelos 69 

ONU. Op. Cit.

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refugiados ambientais, ainda a adesão dos Estados forneça substrato mais consistente e vinculante. Da mesma forma, a tentativa de um tratado regional acerca do tema pode obter mais resultados que em âmbito global, uma vez que envolve o consenso de um número menor de países e permite regulamentações mais específicas, oferecendo suporte mais adequado e imediato aos refugiados ambientais. Quando se trata da responsabilidade objetiva por atos lícitos praticados pelos Estados, a responsabilização é sempre resultado de normas escritas sobre matérias prédeterminadas, como é o caso de alguns tipos de dano ambiental. Todavia, a melhor proteção parece ser a proposta pela CDI de uma codificação genérica das regras sobre responsabilidade estatal por dano ambiental, uma vez que a amplitude do tema tem dificultado o consenso em torno de normas que abarquem toda a variedade de situações fáticas possíveis. Essa estratégia evitaria que um dano ambiental deixe de ser reparado pela ausência de previsão específica, sanando a atual lacuna normativa. Em relação à prevenção de danos transfronteiriços, o Estado em cujo território ou sob cuja jurisdição é exercida a atividade potencialmente danosa ao meio ambiente tem o dever de tomar todas as medidas de prevenção bem como de minimização de danos. Porém, este dever de diligência deve ser adequado ao grau de desenvolvimento socioeconômico do Estado. Não é exigível de Estados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento os mesmos sistemas de prevenção possíveis aos desenvolvidos. Assim, o Estado deve ser internacionalmente responsabilizado pelos danos ambientais por ele causados na medida da negligência em relação a seu dever de diligência, logo, sempre proporcionalmente à sua capacidade. O caso de Tuvalu evidencia o descaso com que a situação emergencial dos refugiados ambientais tem sido normativamente tratada pela comunidade internacional. Sabendo-se que, em geral, os países mais atingidos pelas mudanças climáticas são os que menos colaboram para o efeito estufa, enquanto os grandes poluidores permanecem a margem das consequências imediatas dessas mudanças, revela-se necessária a regulamentação do refúgio ambiental, a fim de que os povos forçados a migrar possam contar com o amparo da comunidade internacional. Portanto, faz-se urgentemente necessária a normatização do refúgio ambiental através da ampliação do alcance das normas internas existentes, da elaboração de tratados sobre o tema ou de normas de soft law específicas. Com essa normatização, seria possível a responsabilização objetiva dos Estados pelos danos ambientais causadores de deslocamento forçado, estabelecendo uma rede internacional de amparo às vítimas das consequências de processos poluidores que são globais e, portanto, de responsabilidade de toda a comunidade internacional.

324 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas

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Um Dia sem Mexicanos – ou – Sobre o não-lugar do migrante econômico Márcia Letícia Gomes1 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger2 ¿Dónde esta José? ¿Donde se metió? ¿Donde se escondió? Con el mexicano Que le hiciera un paro Cambiándole el nombre Con otro papel se fue José Yo soy José Sobrevivi, Y dicen que los gûeros, A mi me confundieron Con un jabalí, (Culeros) Pero no morí Sigo por ahí Buscando pareja Haber si se deja Ya me fueron, me largaron, Pero vine y no me fui. Oye José, Los de la migra me siguen buscando, cosando, alcanzando. Oye José, 1  Doutoranda, FURG. Possui licenciatura em Letras - Faculdades Integradas de Cacoal (2004) e bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Rondônia (2007). Especialização em Gramática Normativa da Língua Portuguesa e Didática do Ensino Superior. Mestrado em Letras - UNIR (2012).marcialeticia200@ hotmail.com 2  Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Possui Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995). Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande -FURG, professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande -FURG. Professora da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público-FESMP- Porto Alegre-RS. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Direito Ambiental e Direitos Humanos, América latina e questões decoloniais. Professora pesquisadora do CNPq e FAPERGS. Professora participante do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica -GPAJU da UFSC e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e ciências criminais e Direito e justiça social da Universidade Federal do Rio Grande. Responsável pelo Grupo de Estudos da FURG sobre o Constitucionalismo Latino-Americano.Advogada. Advogada do escritório de Advocacia Luciane Dias Sociedade de Advogados-Pelotas-RS [email protected].

328 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas Rio bravo, rio bravo Que atravieso y no me gana. Oye José, Aun la nave del olvido No ha partido José, José. Oye José, Los angeles si tiene la espalda mojada Como mi prenda amada. Sergio Arau, Francisco Barrios, Armando Vega Gil

Resumo: Em Um dia sem Mexicanos (2004), filme dirigido por Sergio Arau, o enredo percorre as vinte e quatro horas em que algo sinistro acontece, todos os latinos desaparecem da Califórnia e uma espessa névoa contorna todo o estado, fazendo com que fique isolado e incomunicável. O início do filme tem ares de documentário, apresentando o cotidiano dos moradores do estado da Califórnia, quando a névoa toma conta e os latinos desaparecem, o recurso do realismo fantástico traz para a cena diversas questões em torno dos migrantes, a estratégia do desaparecimento, na forma pela qual é empregada, faz com que saiam da invisibilidade e, nesse sair da invisibilidade, a discussão de questões como o trabalho do migrante, legalidade e ilegalidade, atuação da polícia e políticas de fronteira, dentre outros que serão com mais vagar explorados no presente estudo. Palavras-chave: Migração econômica; Invisibilidade; O mundo sem mexicanos. Abstract: In A day without a mexican (2004), by Sergio Arau, the narrative focus a diferente day in californian people life, every latin people dissapears and the fog spread along California, the state is isolated and there is no way of comunication. The movie starts like a documentary that shows the californians day by day, when the fog grows and the latins disappear, the fantastic realism shows questions about migrants, they are not invisible anymore and so discussion about migrant work, legality and ilegality, border politics and another topics that we will discuss in this paper. Key words: Economic migration; Invisibility; A day without a Mexican.

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1 INTRODUÇÃO O que aconteceria se, por um dia, desaparecessem misteriosamente todos os migrantes econômicos internacionais? Este é o mote do filme Um dia sem mexicanos (2004), dirigido por Sergio Arau. Da mistura entre comédia e realismo fantástico surgem questões sérias que podem conduzir um debate sobre a condição do migrante econômico, sua importância e, ao mesmo tempo, sua invisibilidade no meio social. A Califórnia é conhecida por abrigar muitos latinos, em sua maioria mexicanos, que se arriscam nas fronteiras, muitas vezes em condição de clandestinidade, em busca de trabalho e melhores salários. O mesmo ocorre nos mais diversos locais do mundo, dentre eles o Brasil, que tem se tornado a cada dia um destino mais e mais procurado por migrantes. No Brasil, os imigrantes são recebidos de duas formas, como imigrantes forçados e imigrantes econômicos. Os imigrantes forçados são aqueles em que o elemento vontade não esteve presente na decisão da mudança e a volta para o país de origem não costuma figurar como possibilidade; e o migrante econômico é aquele que voluntariamente optou pela mudança em busca por melhores trabalhos e condições de vida. Como toda classificação, divisão em categorias, esta também apresenta falhas e arbitrariedades, haja vista que a opção livre pela mudança atribuída ao imigrante econômico nem sempre ocorre, muitos fatores podem estar envolvidos na decisão da mudança que a categoria rígida não consegue contemplar. Além disso, a chegada no novo local, o reassentamento, conseguir trabalho, integrar-se socialmente são obstáculos que se colocam e nem sempre são facilmente superáveis; quando o reassentamento ocorre, depara-se com novo problema, a questão da participação política e social, uma vez que muitas vezes o migrante consegue o trabalho, mas permanece invisível, até que literalmente desapareça, como na estratégia do cinema, para que sua ausência seja sentida. 2 O desvelar da (in)visibilidade: dignidade e direitos humanos Segundo Schwarz3 a afirmação de que a migração, imigração, emigração ou deslocados, constitui, no século XXI, a principal fronteira dos direitos humanos, convida à reflexão e sugere duas grandes reflexões:

3  SCHWARZ, Rodrigo Garcia. Imigração: a fronteira dos direitos humanos no século XXI. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 181-185, outubro/2009, p. 181.

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[...] a primeira, de que a migração, está pondo à prova a capacidade do mundo de universalizar os direitos humanos; a segunda, de que estas estão desvelando a face dupla com que atuam os países centrais, generosos quando se trata de plasmar declarações internacionais de direitos humanos, mesquinhos na hora de fazer efetivos esses mesmos direitos dentro dos seus próprios territórios.

Segundo este autor, com raras exceções, as políticas de migração, dos países centrais estão sendo construídas de cima para baixo e tendem a funcionar como políticas repressivas e excludentes, com práticas que priorizam o controle de fronteiras sobre a integração dos migrantes4. Assim, nesses países, conquanto desfrute de certa proteção social, o estrangeiro legalmente admitido costuma ser acolhido com os braços fechados, o que resulta em uma integração incompleta e de má qualidade. Tal fenômeno – migração – está cada vez mais presente no mundo globalizado. São milhões de pessoas que normalmente emigram dos países pobres para os ricos. Filipinos buscam trabalho no Oriente Médio e na Europa; equatorianos saem de seu país para a Espanha; milhões de mexicanos, centro-americanos e caribenhos esperam encontrar nos Estados Unidos um local para melhorar sua vida e a de seus familiares. O mesmo acontece com os norte-africanos que buscam a Europa5. Mesmo no Brasil, há milhões de migrantes internos e também são muitos, mais de dois milhões vivendo em países do exterior. O fenômeno migratório apresenta-se como contraditório e complexo. Ao mesmo tempo em que os imigrantes são indesejados porque muita gente acha que eles “roubam” os empregos dos nacionais, têm outros costumes, enfim, são vistos como “estranhos” que passam a conviver no novo ambiente. Ao longo dos últimos anos, os estrangeiros foram de alguma forma, responsabilizados pelo desemprego, pela crise do Estado de Bem-Estar, pelo crescimento da insegurança e da violência nas grandes cidades, por colocar em risco as culturas dos países receptores (ou não), entre outras coisas. As dificuldades econômicas e políticas que atravessam estes países podem e certamente contribuíram para que o “problema dos estrangeiros” se tornasse visível. Certo é que tais crises econômicas por si só não explicam o fato de o estrangeiro ter sido alçado à condição de grande responsável pelos problemas de muitos dos países que estão nos últimos anos com políticas extremamente repressivas contra o estrangeiro. Em que pese que o processo de globalização em curso levou a um enfraquecimento do Estado-nação e também da ideologia nacional hegemônica de muitos países, o que acabou conduzindo-os a uma crise de identidade, que se manifesta também numa crise 4  5 

SCHWARZ, Rodrigo Garcia. Ibid. SCHWARZ, Rodrigo Garcia. Op. cit.

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de relacionamento com o outro — no caso, o estrangeiro6. Nesse sentido, diante de tal invisibilidade, percebe-se na atualidade que o debate sobre as doutrinas referentes a direitos humanos não constituem um campo consensual e pacífico, mas que os diferentes segmentos se tornam aliados quando o que está em jogo é o respeito à dignidade humana isso é notório. As necessidades humanas vão se transformando e junto com elas as concepções e os direitos estarão sempre em constante alteração, pois nas palavras de Bobbio7 “[...] o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas”. E nesse sentido deve-se estar atento, não só à situação do imenso número de pessoas que não atingem sequer um mínimo de condições para o alcance da dita dignidade, mas também as diferenças existentes entre os seres humanos (principalmente em termos culturais) para que em respeito a determinados direitos não se acabe violando outros. Na visão de Boaventura de Sousa Santos8 “[...] a questão da universalidade dos direitos humanos é uma questão cultural do ocidente. Logo, os direitos humanos são universais apenas quando olhados de um ponto de vista ocidental”. Bobbio9 também pensa que a doutrina dos direitos humanos faz parte da imagem que o Ocidente tem de si e que projeta sobre o resto do mundo. Em concordância está a manifestação de Barros Filho10 ao afirmar que: [...] Os pensadores ocidentais, ao defenderem um universalismo de direitos pautado em uma dignidade humana ocidental, acabam por provocar confrontos culturais. Isso porque esta concepção de dignidade humana não é supracultural, parte de uma cultura global, mas sim, de axiologia ocidental. A universalidade dos direitos humanos, nos termos em que foi alcançada, não reflete um consenso genuíno entre os povos da humanidade. Não se trata de um consenso cultural normativo. Este é o motivo para a busca de novos paradigmas das políticas de direitos humanos.

6  SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Diferentes, desiguais e desconectados: os direitos humanos nas fronteiras. In. COSTA, Lucia Cortes da. A política social na América do Sul: perspectivas e desafios no século XVI. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013. 7  BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 19. 8  SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo – para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 441. 9  BOBBIO, Norberto. Ibid. 10  BARROS FILHO, Mario Thadeu Leme de. Um novo caminho para o direito internacional – o papel da sociedade civil internacional na construção da concepção intercultural dos direitos humanos. In: PIOVESAN, Flavia; IKAWA, Daniela (coords.). Direitos humanos: fundamentos, proteção e implementação. Volume 2. Curitiba: Juruá, 2007, p. 126.

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Assim, o autor, expondo o que pensam Boaventura de Sousa Santos e Joaquim Herrera Flores citados por Souza11, trabalha com a ideia de que é necessário o reconhecimento da diferença através de espaços de diálogo entre tradições culturais diversas, “[...] objetivando alcançar uma universalidade legítima dos direitos humanos contra -hegemônicos”12. Ressalta a importância da “consciência de incompletude das próprias construções culturais para a construção do novo paradigma” e conclui que tais fatores poderiam trazer, gradativamente, o surgimento de um “[...] consenso normativo verdadeiramente universal de direitos humanos, livre de normas e valores impostos pelas potências hegemônicas da globalização econômica”13. Para este autor, “o debate universalismo versus relativismo cultural” apresenta polos contrários à proposta intercultural, explicitando que tais extremismos ora levam ao etnocentrismo14, ora tem as inúmeras realidades culturais como absolutas e incapazes de questionamento. Assim, aduz que o relativismo não nos leva a uma concepção construtivista de direitos humanos, por não apresentar uma busca pela construção conjunta dos paradigmas e caracteriza o universalismo ocidental como sendo a manifestação de localismos globalizados15 (referindo-se à globalização excludente) e que, por tal motivo, este último se afasta de qualquer concepção alternativa de direitos humanos16. Como se pode perceber, não há como falar de universalismo dos direitos humanos sem vinculá-lo a questões pertinentes à globalização, migração, imigração, realidade, outridade, até porque existe uma posição doutrinária quase que dominante que trata a globalização como causa expansiva da perda de identidades culturais, da própria história, do sentimento e não mais pertencer por alguma razão a algum lugar. SOUZA, Rafael Bellan Rodrigues de. Gramsci e a comunicação: a mídia como aparelho privado de hegemonia. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2009, p. 44. 12  “O conceito de hegemonia demonstra como um “bloco histórico” (conjunto de classes dominantes) instaura seu poder por meio do consenso. Para Gramsci, a hegemonia seria a direção moral e intelectual de uma sociedade, onde a dominação “física” e corpórea é auxiliada pela instauração do consenso. O poder de coesão, conectado ao consenso, constituiria o predomínio de uma visão social de mundo e de convívio social”. Tendo-se que o que vai contra “consenso”, essa dominação é tida como contra-hegemônica (SOUZA, 2009). 13  BARROS FILHO, Mario Thadeu Leme de. Ibid, p. 133. 14  Ação que eleva a categoria de universal, os valores da sociedade a que se pertence. Considera que o que é um bem para um, necessariamente também é para o outro. Se trata de um posicionamento assimilacionista, mediante uma postura egoísta e paternalista, possuidora de complexo de superioridade. Consiste em julgar as crenças, as tradições, os comportamentos e os costumes de outras culturas a partir de parâmetros de referência da cultura própria. (GERVÁS, 2002, p. 18). 15  Para Boaventura de Sousa Santos “[...] a primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenômeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA” (SANTOS, 2003, p. 435). 16  BARROS FILHO, Mario Thadeu Leme de. Op cit, p. 127. 11 

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Ghai17 traz o sentido de que os direitos humanos encarados como instrumento de dominação ocidental acabam por fornecer um apoio fundamental à globalização. Tal argumentação continua sustentando a vinculação dos direitos humanos universais e de caráter ocidental com a globalização, mas não no mesmo sentido do acima exposto, concluindo-se aqui que os direitos humanos da forma com que estão dispostos acabam auxiliando na propagação da globalização e não o contrário. Para este autor, na lógica da visão do regime de direitos humanos como afirmação da hegemonia ocidental pode-se dizer que mediante a noção de universalismo “[...] os direitos humanos permitem que os valores ocidentais se disfarcem de universais, denegrindo assim outras culturas e valores”18. Com relação à universalidade dos direitos humanos ser um fator negativo frente aos diferentes meios culturais presentes no mundo, não se trata de opinião unânime, como percebe-se através do posicionamento de Gregori19 quando defende que tal universalidade garantiu o reconhecimento de que, “independentemente das circunstâncias de tempo e espaço, todo ser humano carrega dignidade que lhe é inerente e que não lhe pode ser negada em nome da razão de Estado ou de qualquer outro argumento”. Cançado Trindade20 discorre sobre a contraposição dos particularismos culturais à universalidade dos direitos humanos e se posiciona no sentido de que: [...] as culturas não são pedras no caminho da universalidade dos direitos humanos, mas sim elementos essenciais ao alcance desta última. A diversidade cultural há que ser vista, em perspectiva adequada, como um elemento constitutivo da própria universalidade dos direitos humanos, e não como um obstáculo a esta. [...] Não é certo que as culturas sejam inteiramente impenetráveis ou herméticas. Há um denominador comum: todas revelam conhecimento da dignidade humana. [...] O respeito pelo próximo constitui um princípio básico comum a todas as culturas, crenças e religiões.

O autor faz o alerta da necessidade de distinguir-se “[...] a busca das raízes sociais e da autoidentidade como uma reação à chamada modernização [...] da possível GHAI, Yash. Globalização, multiculturalismo e direito. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 561. 18  GHAI, Yash, Op cit, p. 562. 19  GREGORI, José. Os cinqüenta anos da Declaração Universal dos direitos humanos. In: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung. Representação no Brasil. Centro de Estudos. Pesquisas nº 11. São Paulo, 1998. p. 23. 20  TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Volume III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 335. 17 

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invocação de um passado cultural como meio de manipulação política”. Argumentando que em nome dos particularismos culturais tem se cometido “abusos contra os direitos humanos por parte das elites políticas manipuladoras que sequer seguem as práticas culturais que invocam”. Reforça que não se pode deixar esse aspecto passar despercebido, “sobretudo em relação a países apegados a certas práticas culturais mas governados por elites distanciadas da realidade das bases das sociedades nacionais”21. Frente às diferentes opiniões apresentadas, chega-se ao que parece mais adequado no que tange ao respeito à diversidade cultural e a garantia de não violação da dignidade da pessoa humana. Trata-se da ideia, que traz Requejo22, de um “mínimo universal”23. Para ele o caráter “universal” de certos direitos contidos na Declaração de 1948 é questionável. Afirma que a conveniência de respeitar e proteger um conjunto de direitos para todas as pessoas como base da legitimidade dos sistemas políticos ficou explícito na referida declaração e que tal conjunto de direitos não supõe um determinado estilo de vida, mas sim um conjunto de condições que se presume necessárias para desenvolver uma vida com dignidade. Cabendo, assim, a reflexão de se os direitos da Declaração condizem com o caráter multicultural do mundo24. Expõe, ainda, o autor, que tem-se alguns direitos que parecem ser comuns, desde uma perspectiva moral e transcultural, como, por exemplo, o acesso a condições mínimas de habitação, alimentação, segurança ou, até mesmo, a proteção contra a tortura e práticas de genocídio. Mas nem todos os direitos possuem esta característica de “essenciais” e com isso o que deve ser observado é o respeito às diferentes concepções morais que se tem sobre alguns outros direitos, entenda-se, por exemplo, que não se pode equiparar a decisão de um Estado de favorecer determinada religião – uma vez que a declaração pretende a neutralidade no tocante a tal assunto – com a decisão de praticar torturas ou genocídios25. Diante do exposto, percebe-se que tal autor defende que, sob a perspectiva multicultural dos direitos humanos, devem ser distinguidos os direitos que constituem condições essenciais para o desenvolvimento de uma vida plenamente humana e os direitos que, apesar de amplamente aceitos nas sociedades liberais ocidentais, não são indispensáveis, principalmente no que se refere a nova realidade imigratória, migratória em vários países do mundo. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Ibid, p. 322 e 336. REQUEJO, Ferran. Multiculturalidad y derechos humanos. 2006. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2009. 23  Tradução livre. 24  REQUEJO, Ferran. Op cit. 25  REQUEJO, Ferran. Op cit 21  22 

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3 Migração Econômica e Invisibilidade “Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os que assombravam Edgar Allan Poe... Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – talvez se possa até dizer que possuo uma mente. Sou invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver”26. Isto não significa não dignidade, mas sim a busca constante por ela pelos chamados invisíveis na Califórnia, como demonstrado no filme. Sabe-se que a história da humanidade é marcada pelos movimentos migratórios, desde os povos nômades, a conquista de regiões, a colonização, escravidão, os diferentes momentos históricos nos mais distantes espaços do globo foram marcados pelo trânsito, pelas trocas, nem sempre voluntárias, é válido dizer. No pensar de Albert Memmi27: “A história é também a história das migrações e, portanto, das mestiçagens”. Nesse sentido, ainda que com diferentes características a depender do momento e do local, a migração é uma constante na história da humanidade e na constituição do mundo tal qual o conhecemos. O momento atual consta de uma aparente facilidade no trânsito de pessoas. Hoje é mais fácil viajar, mudar de país, iniciar uma nova história em um lugar diferente. Ao lado dessa aparente facilidade vêm as dificuldades de reassentamento no novo local, mas estas não têm inibido os planos de pessoas que visam a conseguir melhores trabalhos e melhores condições de vida em outros locais que não sua terra natal, este é o caso dos migrantes econômicos, aqueles que saem em busca de emprego, estimulados pela promessa de melhor renda em diferentes lugares ao redor do mundo. Romero28 explica que a migração consiste em um deslocamento de pessoas de seu lugar habitual de residência para outro no intuito de satisfazer determinada necessidade ou obter uma melhora na qualidade de vida. O autor destaca os seguintes pontos em tal processo: a mobilidade humana, a trajetória entre o local de origem e o de destino; a finalidade; o caráter mais ou menos duradouro da estada; o projeto de conseguir algo. Nesse percurso, dois elementos se destacam: o fato de que o ser humano está presente em todos os espaços do globo e sua alta capacidade de adaptação às mais diferentes condições. O mesmo autor localiza suas reflexões sobre o tema advertindo a respeito da necessidade de um novo olhar sobre o fenômeno, que contemple sua complexidade, uma CANTARINO, Carolina. Como a sociedade “não” enxerga os invisíveis e os surdos. In. Revista Ciência e Cultura. vol. 59 n° 3 São Paulo July/Sept. 2007, p. 24. 27  MEMMI, Albert. Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 101. 28  ROMERO, Carlos. Giménez. Qué es la inmigración. Barcelona: RBA Libros, 2003. 26 

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vez que, quando as pessoas se mudam para outro lugar para trabalhar, por exemplo, tal ato envolve inúmeros outros significados, questões como: documentação, inserção laboral, alojamento, separação e reagrupação familiar, surgimento de bairros multiculturais, matrimônios mistos, educação entre culturas diferentes, aceitação ou rejeição social, dentre outros29. Nesse sentido, uma visão simplista ou unilateral sobre o tema não consegue abarcar todas as suas nuances. É basicamente envolvendo o cenário apresentado por Romero que se desenvolve o enredo do filme Um dia sem mexicanos30, a trama se passa no estado da Califórnia, cuja população consta da presença maciça de latinos. O censo de 2014 aponta a existência de 14,99 milhões de latinos em oposição a 14,92 de brancos de origem não-latina; no grupo de latinos há brancos, negros e indígenas e, dentro deste grupo, 80% são mexicanos31. No filme, todos os latinos são chamados de mexicanos, não importando o país de origem, impossível não pensar que o mesmo ocorre em outras ocasiões, mesmo na migração interna brasileira, haja vista que em São Paulo todos os nordestinos são chamados de paraíbas e no sul do Rio Grande do Sul todos os nordestinos são chamados de baianos. Embora pareça que simplesmente se nomeie um grupo pela maioria dos que o compõe, a questão mostra-se um pouco mais complexa e envolve a identidade do indivíduo. No filme, o brasileiro é chamado de mexicano; na cidade do Rio Grande, o sergipano é chamado de baiano. Assim, como se não bastasse a distância de seu local de origem este indivíduo é, ainda, despido de elementos de sua identidade, é enxergado como apenas uma peça dentro de um grande grupo, sem singularidades, sem características específicas que formam o seu ser, sua personalidade. Nesse caminho, é relativamente fácil pensar o migrante no grupo, como massa, e não como indivíduo, como ser humano. É o que expõe Romero32: Cuando hablamos de migraciones estamos hablando de personas de carne y hueso, com deseos e interesses, com derechos y deberes, de individuos particulares con sus historias propias, grado de formación, motivaciones, miedos y relaciones interpersonales. El principal protagonista de nuestra historia es el migrante: em su lugar de origen le llaman emigrante, em el lugar de destino le llaman inmigrante. Con “e” o con “in” se trata de un/a transterrado/a, de alguien que ha vivido o está viviendo la experiencia del traslado, del cruce de fronteras, del asentamiento, del abrirse caminho em un mundo diferente, de la adaptación a mil circunsROMERO, Carlos. Ibid. UM DIA SEM MEXICANOS. Sergio Arau, 2004. 91min. Estados Unidos, Espanha, México. 31  Dados disponíveis em Acesso em 30-7-2015 às 12h27min. 32  ROMERO, Carlos. Ibid, p. 114. 29  30 

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tancias, del retorno cuando es el caso.33

É importante, a partir da perspectiva acima apresentada, pensar a questão migratória por um viés humanístico, tentando enxergar o ser humano que há no migrante, mormente quando se trata de migração econômica, pois, nesse campo, por se tratar de migração considerada voluntária, costuma-se enxergar apenas o trabalhador e não a pessoa. Nas palavras de Romero34: “[...] em las migraciones internacionales no cuenta tanto lo que son los migrantes – ciudadanos de otros países –, sino lo que no son. Los inmigrantes no son nacionales, de modo que su presencia precisa de algún tipo de autorización y regulación em el país recepctor”35. A autorização ou regulação de que trata Romero no que se refere à presença do estrangeiro em dado país traz para o cenário a figura do Estado e suas instituições nas atividades referentes ao reassentamento e à permanência do estrangeiro do ponto de vista legal, ao reconhecimento daquele indivíduo como cidadão naquele território. É o direito quem determina quem será reconhecido, quem pode e quem não pode desfrutar da hospitalidade naquele lugar, conforme propõe Derrida36: Nenhum que chega é recebido como hóspede se ele não se beneficia do direito à hospitalidade ou do direito ao asilo etc. Sem esse direito ele só pode introduzir-se “em minha casa” de hospedeiro, no chez-soi do hospedeiro (host), como parasita, hóspede, abusivo, ilegítimo, clandestino, passível de expulsão ou detenção.

Nesse cenário, o migrante é principalmente aquilo que se diz dele, o que o direito determina que ele seja. Derrida37 prossegue explicando que:

Quando falamos de migrações estamos falando de pes8soas de carne e osso, com desejos e interesses, com direitos e deveres, de indivíduos particulares com suas histórias próprias, grau de formação, motivações, medos e relações interpessoais. O principal protagonista de nossa história é o migrante: em seu lugar de origem o chamam de ‘emigrante’, em seu lugar de destino o chamam de ‘imigrante’. Com ‘e’ ou com ‘i’ se trata de um/a transterritorializado, de alguém que viveu ou está vivendo a experiência do traslado, do cruzamento de fronteiras, do assentamento, do abrir caminho em um mundo diferente, da adaptação a mil circunstâncias, do retorno quando é o caso. 34  ROMERO, Carlos. Op cit, p. 101. 35  “[...] nas migrações internacionais não conta tanto o que são os migrantes – cidadãos de outros países - , se não o que não são. Os imigrantes são não nacionais, de modo que sua presença precisa de algum tipo de autorização e regulação no país receptor (ROMERO, 2006, p. 101). 36  DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003, p. 53. 37  DERRIDA, Jacques. Ibid, p. 65. 33 

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Não é apenas aquele ou aquela no estrangeiro, no exterior da sociedade, da família, da cidade. Não é o outro, o outro inteiro relegado a um fora absoluto e selvagem, bárbaro, pré-cultural ou pré-jurídico, fora e aquém da família, da comunidade, da nação ou do Estado. A relação com o estrangeiro é regulada pelo direito, pelo devir-direito da justiça.

Não é um simples estar fora ou estar invisível porque mesmo para estar fora, é necessário que o direito assim o determine, que não o reconheça. Dubet38 acrescenta que a reivindicação por reconhecimento se faz no sentido de espaço para as identidades e para a civilidade. O reconhecimento é definido por Bhabha39 como um pedido que faz um grupo minoritário para a autoridade competente no sentido de reafirmar sua nova identidade coletiva. Las personas sin Estado – los trabajadores inmigrantes, las minorias, los que demandan asilo político, los refugiados – representan formas de vida emergentes, indocumentadas, que revelan fissuras em el linguaje jurídico formal de la ‘protección’ y el ‘estatus’4041.

O reconhecimento, para Bhabha42, estaria intimamente ligado ao direito à diferença tanto no que se refere às minorias nacionais quanto no que diz respeito aos migrantes globais, o direito à diferença implica revisar os componentes do fenômeno cidadania, aqui pensando uma cidadania política, legal e social. Uma outra dimensão do problema estaria relacionada à cidadania simbólica, assim tratada pelo referido teórico: El aspecto simbólico plantea cuestiones afectivas y éticas ligadas a las diferencias culturales y a la discriminación social, cuestiones de inclusión y exclusión, de dignidade y humillación, de respeto y repudio. Em el contexto del des-orden mundial em el que estamos inmersos, la ciudadanía simbólica se define principalmente a partir de una cultura que vela por la “seguridade”: Cómo distinguimos al inmigrante bueno del inmigrante malo? Qué culturas DUBET, 2003. BHABHA, Homi K. Nueva sminorías, nuevos derechos – notas sobre cosmopolitismos vernáculos. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013. 40  Idem, 2013, p. 50. 41  As pessoas sem Estado – os trabalhadores imigrantes, as minorias, os que demandam asilo político, os refugiados – representam formas de vida emergentes, não documentadas, que revelam fissuras na linguagem jurídica formal da “proteção” e do “status” (BHABHA, 2013, p. 50). 42  BHABHA, Homi K. Ibid. 38  39 

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son seguras? Cuáles son peligrosas?4344.

A perspectiva enunciada acima permite pensar as questões referentes à migração não apenas por seu viés técnico, mas também considerando o componente afetivo, emocional, que deve ser pensado na problemática que é aqui tratada. Para Derrida45: “Não se oferece hospitalidade ao que chega anônimo e a qualquer um que não tenha nome próprio, nem patronímico, nem família, nem estatuto social, alguém que logo seria tratado não como estrangeiro, mas como um bárbaro”. Nota-se, pela fala do filósofo, que o reconhecimento é o mínimo para que o indivíduo tenha um espaço naquela sociedade. Vale dizer que ao se deparar com falhas e limites na representação democrática, os grupos minoritários sairão em busca de novas formas de se fazer ouvir e participar, seja por meio de estratégias diferenciadas na busca pelo reconhecimento, novas formas de representação política e simbólica, a exemplo de ONGs, comissões, cortes internacionais e outros46. O estrangeiro necessita e deseja ser reconhecido como cidadão, ter um lugar, sair da invisibilidade, participar naquele meio, uma vez que, como acertadamente aponta Romero47 o migrante não é apenas um receptor de benefícios, como muitos pensam; ele é também, e acima de tudo, um contribuinte e, nessa condição deve ter oportunidade de participar politicamente, de ser ativo como cidadão. Redin48 discute tal questão e entende que o lugar da realidade humana migratória econômica na atual ordem política é o lugar da clandestinidade, uma condição que é direcionada pelas legislações que restringem o ingresso do imigrante ao interesse nacional, uma política estatal de segurança contra o ingresso e permanência de estrangeiros fora das condições reguladas pelo Estado, condições estas que fazem com que não haja política, mas regulação do ser, isto é: “O Estado reconhece que o estrangeiro é um sujeito de direitos humanos. No entanto, o impede de participar do espaço público, como sujeito de seu próprio destino”49. Idem, 2013, p. 98. O aspecto simbólico implica questões afetivas e éticas ligadas às diferenças culturais e à discriminação social, questões de inclusão e exclusão, de dignidade e humilhação, de respeito e repúdio. No contexto de des-ordem mundial no qual estamos imersos, a cidadania simbólica se define principalmente a partir de uma cultura que vela pela “seguridade”: como distinguimos o imigrante bom do imigrante mau? Que culturas são seguras? Quais são perigosas? (BHABHA, 2013, p. 98). 45  DERRIDA, Jacques. Ibid, p. 23. 46  BHABHA, Homi K. Op cit. 47  ROMERO, Carlos. Ibid. 48  REDIN, Giuliana. Direito de imigrar: direitos humanos e espaço público. Florianópolis: Conceito, 2013. 49  Idem, 2013, p.30. 43  44 

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No pensar de Redin50 o “pertencer” do estrangeiro não significa participar, uma vez que este está reduzido a uma vida desprovida de direitos e condições, uma vida despolitizada reservada àquele que foi abandonado ou banido. “É nesse sentido que a clandestinidade, por vezes, é a opção do migrante econômico pressionado pelas redes de produção e que, por conta dessa condição, vive publicamente em um espaço do qual é absolutamente privado de ação”51. Considerando-se que o local destinado ao migrante é o local da invisibilidade, a participação política e social está excluída. Ao migrante econômico cabe apenas desempenhar suas tarefas, contribuindo, assim, para o desenvolvimento econômico do país que o acolheu sem poder, no entanto, interferir de forma alguma, no que ocorre naquele país. Para Redin52: “O imigrante econômico, assim, está fora do espaço público, é o ‘outro-inimigo’ que aparece como sujeito apenas quando reprimido pelo Estado”. E quando não é aceito, não reconhecido “[...] o imigrante econômico fica forçosamente no limbo da clandestinidade, simplesmente porque é um estrangeiro indesejado para a administração do Estado”53. A autora acima citada argumenta que a questão da migração humana tem sido pensada de acordo com o interesse nacional, ou seja, o interesse econômico do Estado e, nesse cenário, os imigrantes econômicos são vistos não como sujeitos, mas como objetos de apropriação. O imigrante econômico sonhou um dia, desejou uma vida diferente, melhor, mas também se embriagou de uma ilusão-alienação que lhe impõe uma identidade, que agora é a identidade do mercado. Simplesmente esse estrangeiro se insere em um fluxo altamente potente, que é o fluxo das redes de produção econômica, caracteriza uma espaço-tempo próprio. Ao fazer parte desse fluxo, ele reorganiza involuntariamente o espaço público, recria um espaço público do qual se submete sem que possa ser ouvido54 .

Nesse sentido, o imigrante econômico tem um lugar no ambiente de trabalho, no mercado, na produção, no entanto, nebulosa é sua condição no ambiente políticosocial, uma vez que não há espaço para sua voz e para sua participação na esfera pública. A esse migrante sem lugar no espaço público Derrida55 chama de “invisibilidade”, 50  51  52  53  54  55 

IIdem, 2013. IIdem, 2013, p. 56. IIdem, 2013, p. 47. IIdem, 2013, p. 53. REDIN, Giuliana. Ibid, p. 63. DERRIDA, Jacques. Ibid, p. 103.

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“sem-lugar”, “ilocalidade”, “sem-domicílio” – expressões que auxiliam na compreensão do fenômeno, seja do ponto de vista jurídico, seja do ponto de vista emocional do desterrado. Os migrantes econômicos internacionais, que são os agentes de produção de eventos geradores de um espaço-tempo transnacional projetado no espaço geográfico do Estado, não possuem espaço de reivindicação, para exercer o “seu direito a ter direitos”. No Estado são estrangeiros sem voz, no cenário internacional não possuem espaço institucionalizado e, ainda que tivessem, é no Estado que ambientalmente esses sujeitos “não sujeitos” estão. Por isso, há que se redefinir a função do Estado56.

Nesse panorama, o imigrante econômico é aquele que sonha com melhores condições de vida e trabalho e se muda em busca de concretizar tais objetivos. Ao chegar ao novo local, sua busca principal é por trabalho, no entanto, apenas trabalhar não é suficiente para integrar um espaço, é necessário ter a possibilidade de participação para o imigrante, onde sua voz possa ser ouvida. Assim é que, no filme, o desaparecimento dos latinos os tira da invisibilidade. Até então eram invisíveis mas, uma vez que faltam, sua ausência é significativamente sentida, o caos se instala, os serviços em geral ficam paralisados, desde os mais simples como os domésticos, até escolas, indústrias, comércio, atividades agrícolas. Há no filme, ainda, os discursos largamente repetidos de que o migrante econômico chega à Califórnia para tirar os empregos dos locais, discurso que se repete ao redor do mundo e que, na prática, não se mostra verdadeiro; consideremos que o migrante econômico, na maioria das vezes, aceita trabalhos que os moradores locais não desejam realizar e, assim, continuam invisíveis mas, se simplesmente desaparecessem, como no cinema, sua ausência se faria notar. O trabalho é ainda pior quando se trata de imigrantes ilegais, dada sua condição no país de acolhida, se veem obrigados a aceitar qualquer função, pois precisam de dinheiro e não dispõem de condições para serem registrados. No que se refere à ilegalidade, o filme mostra, ainda que disfarçada sob o tom de comédia, a violência da polícia de fronteira. Todas as dificuldades se tornam ainda maiores quando a migração é clandestina, as possibilidades de não chegada ao destino, de ser deportado, de morrer ao longo do percurso, acrescentam doses de inquietação e angústia a algo que, por si só, já é desestabilizador. 56 

REDIN, Giuliana. Op cit, p. 82.

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Um dos casos mencionados no filme é o dos trabalhadores ilegais que atuavam na lavoura, cuja jornada de trabalho era de doze horas. A produção agrícola é apresentada como um diferencial da Califórnia, um elemento de destaque, à custa da saúde de inúmeros trabalhadores ilegais e suas jornadas de trabalho extenuantes. Nesse sentido, vários são os temas possíveis de serem abordados a partir do filme Um dia sem mexicanos, ultrapassando os limites da película em si e partindo para uma discussão mais geral, uma vez que as questões levantadas na obra ficcional ocorrem no mundo real e não estão circunscritas ao espaço geográfico abordado no cinema, mas atingem os mais diferentes pontos do globo. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Um dia sem mexicanos promove reflexões a respeito dos processos migratórios no cenário atual, mais especificamente no que se refere à migração econômica, seja ela legal ou ilegal. Sendo possíveis tais reflexões notam-se mais estreitas as relações entre direito e cinema, contrariamente aos movimentos de fragmentação do saber e superespecialização, ainda mais quando se considera que o direito é interdisciplinar. A despeito da crítica especializada sobre o filme, que aponta algumas falhas em sua execução, mostra-se inegável o fato de que o enredo ultrapassa os limites da película, da ficção, e pode ser facilmente conduzido ao espaço do real e às discussões sobre processos migratórios na atualidade. Um dia sem imigrantes econômicos que estão ocupando vários espaços de trabalho faria com que estes saíssem da invisibilidade em que foram colocados e evidenciassem seu valor no desenvolvimento social e econômico do país em que são acolhidos. No entanto, ainda quando acolhidos, reassentados e empregados, os imigrantes econômicos não têm direito a voz, a voto e a outras formas de participação. Contribuem com seu trabalho e consumo, mas não participam, a eles foi designado um não -lugar na sociedade. REFERÊNCIAS BARROS FILHO, Mario Thadeu Leme de. Um novo caminho para o direito internacional – o papel da sociedade civil internacional na construção da concepção intercultural dos direitos humanos. In: PIOVESAN, Flavia; IKAWA, Daniela (coords.). Direitos humanos: fundamentos, proteção e implementação. Volume 2. Curitiba: Juruá, 2007. BHABHA, Homi K. Nueva sminorías, nuevos derechos – notas sobre cosmopolitismos vernáculos. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Cam-

Márcia Letícia Gomes; Raquel Fabiana Lopes Sparemberger| 343 pus, 1992. CANTARINO, Carolina. Como a sociedade “não” enxerga os invisíveis e os surdos. In. Revista Ciência e Cultura. vol. 59 n° 3 São Paulo July/Sept. 2007. DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003. GERVÁS, Jesús Maria Aparício. Educación intercultural en el aula de ciencias sociales. Madrid: Edle, 2002. GHAI, Yash. Globalização, multiculturalismo e direito. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. GREGORI, José. Os cinqüenta anos da Declaração Universal dos direitos humanos. In: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung. Representação no Brasil. Centro de Estudos. Pesquisas nº 11. São Paulo, 1998. p. 23-28. MEMMI, Albert. Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. REDIN, Giuliana. Direito de imigrar: direitos humanos e espaço público. Florianópolis: Conceito, 2013. REQUEJO, Ferran. Multiculturalidad y derechos humanos. 2006. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2009. ROMERO, Carlos Giménez. Qué es la inmigración. Barcelona: RBA Libros, 2003. SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo – para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SANTOS, Boaventura de Souza; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SCHWARZ, Rodrigo Garcia. Imigração: a fronteira dos direitos humanos no século XXI. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 181-185, outubro/2009. SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Diferentes, desiguais e desconectados: os direitos humanos nas fronteiras. In. COSTA, Lucia Cortes da. A política social na América do Sul: perspectivas e desafios no século XVI. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013. SOUZA, Rafael Bellan Rodrigues de. Gramsci e a comunicação: a mídia como aparelho privado de hegemonia. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2009.

344 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Volume III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. UM DIA SEM MEXICANOS. Sergio Arau, 2004. 91min. Estados Unidos, Espanha, México.

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A imigração italiana em Buenos Aires no período 1880-1890 Danilo Milev1 Resumo: O trabalho tem como objetivo fazer uma análise histórica sobre o processo imigratório dos italianos na cidade de Buenos Aires durante o período de maior chegada dos imigrantes no século XIX, que foi entre 1880 e 1890, entender os seus modos de vida, assim como analisar a influência desses imigrantes, tanto na cultura quanto na política argentina e portenha, muitas vezes através da militância visando garantir seus direitos. Buscou-se também identificar o que alguns políticos e pensadores argentinos pensaram sobre o processo imigratório, como por exemplo, Domingo Sarmiento e José Hernandez. Palavras Chaves: Imigração; Italianos; Buenos Aires. Resumen: El trabajo tiene como objetivo hacer una análisis histórica sobre el proceso inmigratorio de los italianos en la ciudad de Buenos Aires durante el período de mayor llegada de los inmigrantes en el siglo XIX, que ha sido entre 1880 y 1890, entender sus modos de vida, así como analizar la influencia de estes inmigrantes tanto en la cultura cuanto en la política de la sociedad argentina y porteña, muchas veces a través de la militancia, visando garantir sus derechos. Se ha buscado también identificar o que algunos políticos y pensadores argentinos pensaban sobre el proceso inmigratorio, como por ejemplo, Domingo Sarmiento y José Hernández. Palabras Claves: Inmigración; Italianos; Buenos Aires.

1  Graduando em Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André. Endereço eletrônico: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO Um dos objetivos principais desse trabalho é além de fazer uma análise histórica do processo imigratório dos italianos para a cidade no período entre 1880 e 1890 e pontuar algumas influências culturais desse povo na formação de uma ‘cultura argentina’, país que passava pelo processo de formação de seu Estado Nacional2, foi entender como se deu os embates no campo político e social quanto a essa influência estrangeira neste processo, pois, se por um lado, o Estado argentino estimulou a imigração de povos europeus, esse estímulo referia-se, particularmente, a imigrantes franceses, alemães ou ingleses, mas não necessariamente, italianos, para que houvesse uma população predominantemente branca e civilizada. Para entendermos esse conflito, utilizamos o conceito central de Norbert Elias em seu livro, junto com John L. Scotson: Os Estabelecidos e os Outsiders, que se refere a uma disputa na hierarquia do poder, onde o ‘estabelishment’, de acordo com a definição de Federico Neiburg na introdução do livro, é um grupo que se afirma e é reconhecido como de alta sociedade e os outsiders, por sua vez, são aqueles que estão fora dessa alta sociedade, sendo a possibilidade de esses outsiders ingressarem no grupo dos estabelecidos, quase que mínima. No caso portenho, essa contraposição, em um primeiro momento, referia-se aos criollos, ou seja, os descendentes de espanhóis nascidos na América Espanhola, e que comandavam altos cargos naquela região, desde os tempos do ‘Vice Reinado Del Río de La Plata’3e aos demais grupos da sociedade, especialmente aos italianos da “classe subalterna” porque eles constituíam o maior grupo imigratório nessa época, e que, ao contrário dos italianos mais ricos, não se casaram com mulheres argentinas da elite criolla, e, portanto, como não se integraram à sociedade, eles encaixavam-se no que Neiburg disse sobre os outsiders serem “estigmatizados por todos os atributos associados com a anomia, como a delinqüência, a violência e a desintegração”4. No caso desses italianos, o anarquismo servia como mais um fator de estigma, havendo também o uso de termos pejorativos para referir-se aos italianos, como por exemplo: ta nos, porém, vale ressaltar, esses termos depreciativos, “só fazem sentido no 2  O Estado argentino passou por um longo processo de unificação nacional. Embora a sua independência de facto tenha sido proclamada no dia 9 de Julho de 1816, a guerra civil entre os partidos unitário e federalista dividiu o país e em 1829 assume, em Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, e acaba formando-se a Confederação Argentina. Apenas em 1880, a Argentina é unificada definitivamente. 3  Uma das divisões feitas na América pela Coroa Espanhola foi a de vice reinados, que, estabelecido em 1776, incluía os atuais territórios de Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia e aos demais grupos da sociedade, especialmente aos italianos de classe baixa porque eles constituíam o maior grupo imigratório nessa época, e que, ao contrário dos italianos mais ricos, não se casaram com mulheres argentinas da elite criolla, e, portanto, como não se integraram à sociedade, eles enquadravam-se no que Neiburg disse. 4  ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders – Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 7.

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contexto específico entre estabelecidos e outsiders”5, ou seja, argentinos e imigrantes, no caso, os italianos. Os italianos, em geral, pobres, que iam chegando a números absolutamente altos, com a entrada de mais de 180 mil imigrantes no período entre 1884-1885, de acordo com Smolensky6, embora, a história da imigração na Argentina fosse marcada por períodos de maior ou menor número de imigrantes, que não falavam a língua espanhola e formavam grupos mais ou menos fechados de socialização, preferindo, ou, casar-se com mulheres do próprio grupo étnico e não com mulheres argentinas, e assim, preferindo continuarem utilizando os diversos dialetos da região de origem do que a língua espanhola, ou, acabavam integrando-se, porém, após certo período. Referi-me anteriormente a dialetos e não a um idioma italiano, pois se já havia a presença de “italianos”7 , na região do Rio da Prata desde o período colonial, aumentando-se apenas com a expansão comercial. E é por volta de 1850 que os imigrantes da Península Itálica se “reconocieron como integrantes de una ‘colonia’ identificada por una ‘italianidad’, aún existente en su desmembrada pátria de origen”8, pois até 1870, a Itália não existia como um Estado Nacional, apenas como diversas regiões autônomas que não reconheciam quaisquer sentimentos de identidade compartilhadas com moradores de outras regiões, pois, conforme dito por Braga9 em sua tese de dissertação sobre os descendentes de italianos em Belo Horizonte, (...) a nação italiana parece ter se formado antes fora da Itália do que dentro dela, na medida em que os imigrantes italianos souberam articular suas diferentes identidades numa identidade comum, face às diferenças relacionadas aos grupos autóctones das sociedades hospedeiras10.

Porém, por mais que tenha-se surgido uma ‘identidade da diáspora’ conforme termo utilizado por Braga, isso, nos momentos iniciais da imigração italiana ainda era restrito. Ou seja, a construção da identidade italiana está ligada com a formação de uma ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Ibid, p. 27. SMOLENSKY, Eleonora Maria. Colonizadores Colonizados: Los italianos porteños – 1ª ed. – Buenos Aires: Biblos, 2013. 7  DEVOTO, Fernando. Historia de los italianos en la Argentina. Buenos Aires: Biblos, 2008. 8  SMOLENSKY, Eleonora Maria. Ibid, p. 302. 9  BRAGA, Mariângela Porto. Descendentes de imigrantes italianos em Belo Horizonte e o impacto da dupla cidadania na construção da identidade Ítalo-Brasileira 1990 A 2008. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2009. 10  BRAGA, Mariângela Porto. Op cit, p. 79. 5  6 

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diáspora desses italianos pelo mundo e em especial, na América, e, a partir do surgimento dessa diáspora, foram consolidando-se certos valores culturais, que por um lado, permitem com que eles sintam-se seguros em um país totalmente diferente de onde nasceram unindo-se a outros que, mesmo que de uma região diferente, considerasse italiano, e, por outro lado, atrelava-se isso com ao desejo de retornarem ao país de origem, série de fatores: o primeiro era o fato da própria unificação tardia italiana, apenas na década de 1860, enquanto desde muito antes existem registros desse povo na Argentina, e em segundo lugar, pelo próprio desejo de cada um de unir-se em matrimônio com alguém de origem regional idêntica a sua, e, portanto, com hábitos e costumes ainda mais próximos. Observou-se, no período abordado pela pesquisa que a 1ª geração de imigrantes utilizava os diversos dialetos na vida cotidiana, mas, conforme os anos passavam, Smolensky11 comenta que houve a tendência das gerações mais novas a abandonar o uso dos dialetos ou mesmo do italiano para falarem em espanhol, e, portanto, os filhos e netos desses italianos não “reivindicavam” uma identidade de italianos, mas sim de argentinos, não reconhecendo vínculos com a terra natal de seus ascendentes. Porém, o foco da pesquisa foi a comunidade de imigrantes, que desembarcando no Rio de La Plata, dedicaram-se, por um lado, sua atenção à formação de grupos de ajuda mútuas, de elite como o ‘Circolo Italiano’, ou mais populares como o ‘Unione e Benevolenza’, à formação de escolas comunitárias, ou seja, voltando-se a formação de instituições que fortalecessem e unissem aquele grupo, portanto, mantendo-se em uma comunidade fechada, mas que por outro, protestavam por melhorias sociais que, por mais que atingissem os italianos, atingiam outros grupos oprimidos em Buenos Aires, inclusive portenhos, como era o caso das viviendas12·, mas também em praticamente todos os setores de uma sociedade que ainda estava em um processo de formação cultural e unificação política. Ainda em relação à contribuição dos italianos na cultura argentina, busca-se analisar o quanto as diversas ‘ondas imigratórias’ italianas contribuíram para a formação de um habitus argentino, conceito tomado do sociólogo francês Pierre Bourdieu13 (1983) que diz respeito a uma estrutura que funciona como uma determinante ao modo de agir dos indivíduos na sociedade, e isso particularmente dentro do campo da cultura, afinal, conforme Bourdieu: SMOLENSKY, Eleonora Maria. Ibid. O saneamento em Buenos Aires foi melhorar depois da epidemia de febre amarela que dizimou a população na década de 1870. Mesmo assim, os cortiços, nos quais boa parte dos imigrantes morava, possuíam péssimas condições sanitárias. 13  BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu: Sociologia. Org. Renato Ortiz; [tradução de Paula Monteiro e Alicia Auzmendi]. – São Paulo: Ática, 1983. 11  12 

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Não teríamos dificuldade em mostrar que a construção do conceito de cultura (no sentido da antropologia cultural) ou de estrutura (no sentido de Radcliffe-Brown e da antropologia social) implica também a construção de uma noção de conduta enquanto execução que vêm sobrepor--se a noção primeira de conduta como simples comportamento tornado em seu valor aparente14.

O habitus, portanto, além de funcionar como uma estrutura determinante é o que irá gerar as práticas e representações dos grupos sociais, essas normas de condutas desses grupos, mas que não necessariamente são obedecidas pelos indivíduos de maneira consciente. Ou seja: O habitus está no principio de encadeamento das “ações” que são objetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo algum o produto de uma verdadeira intenção estratégica (O que suporia, por exemplo, que elas fossem apreendidas como uma estratégia entre outras possíveis)15.

Mais adiante no texto de Bourdieu, o autor cita como um exemplo de habitus, os conflitos entre gerações que, mais do que provocadas por diferenças naturais dos indivíduos por diferenças de maturidade emocional, por exemplo, são provocadas por (...) habitus que são produtos de diferentes modos de engendramento, isto é, de condições de existência que, impondo definições diferentes do impossível, do possível, do provável ou do certo, fazem alguns sentirem como naturais ou razoáveis praticas ou aspirações que outros sentem como impensáveis ou escandalosas, e inversamente16.

Logo, podemos concluir que, a partir da análise de Bourdieu do conceito de habitus, o fato dos italianos mais ricos em Buenos Aires terem se casado com mulheres da elite, enquanto que os mais pobres praticaram a endogamia17, embora isso seja apenas um exemplo, isso teria se dado por diferenças de habitus, que através da BOURDIEU, Pierre. Ibid, p. 54. BOURDIEU, Pierre. Op cit, p 61. 16  BOURDIEU, Pierre. Op cit, p. 64. 17  Endogamia refere-se ao casamento dentro de um mesmo grupo social, seja o clã, a família ou, no caso, a comunidade italiana em Buenos Aires. Opõe-se à exogamia, ou seja, o casamento fora de um determinado grupo. 14  15 

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(...) sua posição presente e passada na estrutura social que os indivíduos, entendidos como pessoas físicas, transportam com eles, em todo tempo e lugar, sob a forma de habitus18.

Isso não significa que, embora os indivíduos sempre carreguem um determinado habitus, que eles agirão sempre da mesma maneira, só por conta de pertencerem à mesma classe ou por contarem com algumas características em comum, pois, o próprio Bourdieu destaca: (...) sendo produto das mesmas condições objetivas, é suporte dos mesmos habitus: a classe social, enquanto sistema de relações objetivas deve ser posta em relação não com o individuo ou “classe” enquanto população, isto é, enquanto soma de indivíduos biológicos quantificáveis e mensuráveis, mas com o habitus de classe enquanto sistema de disposições (parcialmente) comum a todos os produtos das mesmas estruturas. Se está excluído que todos os membros da mesma classe (ou mesmo dois dentre eles) tenham tido as mesmas experiências e na mesma ordem, é certo que todo membro da mesma classe tem maiores chances do que qualquer membro de outra classe de ter-se defrontado, enquanto ator ou enquanto testemunha, com as situações mais freqüentes para os membros dessa classe19.

Ou seja, existe o habitus enquanto uma estrutura que condiciona o indivíduo a atuar de uma determinada maneira, porém, ao falarmos de diferenças dentro de um mesmo grupo social, o habitus por si só não explica as diferenças de comportamento destes sujeitos, caso contrário, todo mundo, ou ao menos todos de um mesmo grupo social, atuariam de um mesmo modo no mundo, embora, é claro, por conta do habitus, dois indivíduos de uma mesma classe tem mais chances de lidar da mesma forma com algo do que se compararmos dois sujeitos de classes diferentes. Portanto, a classe social e o habitus, de acordo com Bourdieu20, não é algo que deva levar em conta uma determinada subjetividade, relacionando-a com os indivíduos ou com o conjunto desses indivíduos, mas, deve estar relacionada com todo um sistema de disposições no modo de agir na sociedade e que é produto comum das estruturas do habitus, havendo, portanto, uma atuação no mundo de maneira consciente, mas através dessa estrutura que os indivíduos portam consigo mesmos e que os levam a atuarem de uma determinada forma, de acordo também com certas condições materiais. 18  19  20 

BOURDIEU, Pierre. Ibid, p. 75. BOURDIEU, Pierre. Op cit, p 79. BOURDIEU, Pierre. Op cit.

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Um exemplo são os descendentes de italianos nascidos na Argentina: são filhos de italianos, possuem uma ascendência de italianos, e, portanto, com uma criação familiar fundamentada nos “valores” e traços culturais italianos, entretanto, o habitus que eles irão receber será através, primeiramente, de uma escola argentina, que além de se tornar obrigatória, gratuita e laica para todos, propunha um currículo mínimo educacional, com matérias como Espanhol, Geografia Argentina e História Argentina21·, ou melhor, dito, História Particular de la Republica22, e com isso, de acordo com Bourdieu23, eles não atuariam de maneira igual aos seus pais ou familiares, pois, a classe social é a mesma, porém, os habitus incorporados por eles são distintos aos de seus pais ou avós. 2 DESENVOLVIMENTO A presença de italianos seja em Buenos Aires, local em que houve maior concentração de imigrantes, seja nas demais regiões do país, remonta-se ao período colonial, embora, apenas com o tráfico comercial do século XVIII, esse número tenha aumentado. Já em 1753 com Domenico Belgrano, pai do militar Manuel Belgrano, havia a presença de imigrantes provenientes da Península Itálica, que mais tarde, se unificaria sob o nome de Itália. Nesse período, os grupos eram muito dispersos e, exerciam normalmente, o pequeno comércio e a manufatura. Nessa ‘pré-história’ de uma imigração italiana para a recém-independente República Argentina, a maioria presente eram de indivíduos originários de Genova, mesmo que, o seu destino principal, até 1828, não fosse o Rio da Prata24, mas já depois de 1831, o número de imigrantes italianos passou para 939. A decisão de emigrar nesse período estava atrelada com o número de pessoas na família com capacidade de trabalho e com a quantidade de recursos que esse grupo familiar, além do conhecimento de oportunidades no exterior, seja Estados Unidos, Brasil ou Argentina. A opção por emigrar relacionava-se, também, com a percepção que a vida naqueles diversos estados independentes, seja Ligúria, Gênova, etc; não oferecia oportunidades suficientes para a população e após a unificação italiana em 1870, essa consciência ficará ainda mais nítida. Já citamos anteriormente que o comércio teve um papel importante na imigra21  22  23  24 

Isso já com a Lei de Educacíon Común, sancionada em 1884 http://www.bnm.me.gov.ar/giga1/normas/5421.pdf acesso em 23/03/2015 às 15h56min BOURDIEU, Pierre. Ibid. Embora o Rio da Prata englobe também o Uruguai, o foco aqui é a Argentina

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ção italiana, mas aliado a isso, houve o peso dos diversos conflitos no continente americano em que a Argentina envolveu-se, mas principalmente: a Guerra da Cisplatina25, a Guerra do Paraguai e o conflito entre federalistas e unitários dentro da Argentina26 que significava também um conflito entre a cidade de Buenos Aires e as demais províncias, e etc. Isso deu-se porque o grande número de mortos nesses conflitos abriu vagas no mercado de trabalho para os estrangeiros, pois, além de não poderem se alistar, e, portanto, era algo mais ‘seguro’ para os capitalistas, não poderiam exercer direitos políticos, o que era mais uma garantia de uma vida estável para os interesses dos grupos políticos dominantes, principalmente os grandes fazendeiros. É em 1860 que o governo garante aos estrangeiros os mesmos direitos civis dos argentinos, isso daria início a um novo ciclo de imigrações que teria como grupo dominante os italianos27, ao lado dos espanhóis e é também no período entre 1870-1890 que surgem as instituições estatais tanto na Argentina, quanto em Buenos Aires, o início de uma burocracia, que permitirá um mínimo grau de controle na chegada dos imigrantes a Buenos Aires e conseqüentemente, ao “Hotel de los inmigrantes”, hoje “Museo Nacional de La Inmigración”, e conforme Andrés Carretero28 em seu livro “Vida Cotidiana en Buenos Aires” (2013), o principal período de desenvolvimento dessa cidade foi entre 1864-1918, assim como a construção de um ideal de nação. Não é por menos que na sua obra clássica ‘Facundo’ e que Donghi29 seleciona um trecho em seu livro, diz Domingo Sarmiento: “(...) pero el elemento principal de orden y moralización que la República Argentina cuenta hoy, es la inmigración europea, que de suyo, y en despecho de la falta de seguridad que le ofrece, se agolpa, de día en día, en el Plata (...)”. Isso já revela a visão de missão civilizadora que a imigração possuía entre os políticos, embora ressalta-se que esse texto de autoria de Sarmiento, data de 1845, bem antes de ele ter promulgado a Lei de Educação Comum (1884) e ter tido certos atritos por conta disso com os imigrantes, especialmente os italianos. Conflito entre o Império Brasileiro e a República Argentina entre 1825 e 1828 pela posse do território Cisplatina. O conflito provocou a independência do Uruguai. 26  Esse conflito remete-se desde o período da proclamação da República Argentina, a diferença fundamental é que os federalistas defendiam o protecionismo e maiores poderes às províncias, enquanto que os unitários defendiam o poder centralizado em Buenos Aires e um liberalismo econômico. 27  Conforme dados disponibilizados tanto por Devoto, quanto por Sarramone, mesmo com altos e baixos nas taxas imigratórias durante essa segunda metade do século XIX, é apenas após 1890, com uma grave crise econômica no país que haverá uma imigração bem maior desses italianos para outros países, como Brasil e Estados Unidos. 28  CARRETERO, Andrés. Vida Cotidiana en Buenos Aires: desde la organización nacional hasta El gobierno de Hipólito Yrigoyen 1864-1918- 1ª Ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ariel, 2013. 392 p. 29  DONGHI, Tulio Halperin. Proyecto y Construccion de uma Nación (Argentina 1846-1890). Buenos Aires, 1996 [s.n], p. 5. 25 

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Ainda sobre o que determinadas figuras políticas opinavam sobre o processo imigratório é valida também a posição de José Hernandez, jornalista e militar argentino a respeito desse assunto: El inmigrante que desembarca en nuestras capitales, se encuentra enfrente Del desierto, sin medios de trabajar, porque la campaña amenazada aleja los capitales. La ciudad Le ofrece la subsistencia, y trata de amoldarse a una vida las más veces inútil y ociosa. ¿Quiere decírsenos qué ventaja se recoge de la inmigración en esas condiciones? 30.

E mais: “La inmigración sin capital y sin trabajo, es un elemento de desorden, de desquicio, y de atraso” O que Hernandez quer dizer aqui e conforme detalha ao longo do texto é que, a imigração pela imigração, sem nenhum controle e sem medidas eficazes para satisfação de necessidades dos grupos de imigrantes, assim como os instrumentos de trabalho adequados,ainda mais naquele período histórico, não adianta nada e acaba sendo uma ameaça para o Estado, pois traria só perturbações, e para os próprios argentinos também, levando-se em conta a diminuição dos salários. Outros trechos do texto escrito por Hernandez demonstram que essas ressalvas não significam que ele fosse absolutamente contra a imigração, pois, ressalta ele em outro texto: No se crea por esto que miramos con prevención al elemento extranjero, no; muy lejos de eso: conocemos su influencia en El progreso social, y si el país pudiera ofrecerle mayores beneficios, creemos que debería hacerlo, para acelerar la provechosa obra de la colonización. Bienvenidos sean esos obreros del progreso31.

Porém, ele via como necessário o atendimento a outros quesitos por parte do Estado antes que se falasse em estímulo a um processo imigratório. Isso está atrelado ao fato de que em termos quantitativos, Buenos Aires é o clássico exemplo de um aumento rápido no número de imigrantes, pois, enquanto que em 1869 havia 44 mil imigrantes italianos na cidade de Buenos Aires, em 1887 esse número chegou a 433 mil, o equivalente a 31% de toda a população imigrante, portanto, a década de 1880 é o período de um grande fluxo de imigrações, que se devia tanto ao conflito político ainda existente na Itália por conta da unificação italiana, sendo que muitos imigraram por conta de perseguições políticas, quanto a uma grave crise agrícola que a Itália estava 30  31 

DONGHI, Tulio Halperin. Ibid, p. 296. DONGHI, Tulio Halperin. Op cit, p.405.

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passando, pois, vale lembrar, que diferente da Inglaterra, por exemplo, a Itália ainda era um país com sua base econômica centrada na agricultura, sendo a indústria quase ou totalmente inexistente naquele país, e as indústrias que existiam estavam concentradas no norte da Itália. Outro pensador, Nicasio Oroño tratou a imigração como: (...) una de las vitales necesidades de nuestro país; y si en América, según la expresión de un publicista argentino, “gobernar es poblar”, qué medio más eficaz para llamar a las ciencias, a las artes, al comercio y a todos los conocimientos del exterior a fijar su asiento en esta tierra (...)32 .

Portanto, o estimulo à recepção de imigrantes serviu interesses políticos, econômicos e sociais dos argentinos, sobretudo referente à povoação de terras indígenas ao sul da Argentina e que foram tomadas pelo governo de Julio Argentino Roca já no final do século XIX, e que teve como característica fundamental, assim como de várias outras conquistas terras indígenas, o extermínio dessa população em nome do desenvolvimento econômico e da adequação de todos os argentinos a certo padrão de comportamento social, distante da “barbárie” na qual as elites achavam que os indígenas viviam. A característica básica da imigração no período entre 1880-1890 foi a dos imigrantes serem originários, principalmente da Ligúria, Piemonte e Lombardia, embora existissem grupos da região meridional. Herbert Klein33: em seu artigo sobre a integração dos italianos no Brasil, Argentina e Estados Unidos aponta diferenças significativas em relação a esses imigrantes originários do mezzogiorno34, que variavam de 80 por cento nos Estados Unidos, 47% na Argentina e 43% no Brasil, embora ele aponte que não havia diferenças significativas entre essas duas regiões, só havendo uma distinção em categorias como mortalidade – infantil ou adulta- ou altura, uma vez que a região meridional italiana era mais pobre economicamente, isso acarretava maiores índices de desnutrição ou insuficiência no que refere-se a vitaminas ou vacinação, por exemplo. Esses italianos, quando chegavam ao Rio de La Plata, tinham duas possibilidades: Se ainda não tivessem um local de trabalho claramente definido poderiam alojar-se no Hotel dos Imigrantes, por 2 ou 3 dias, até encontrarem uma oferta de trabalho em alguma fazenda. Ou então, e era isso que a maioria fazia, conforme apontado por SarDONGHI, Tulio Halperin. Ibid, p 399. KLEIN, Herbert S.A integração dos imigrantes italianos no Brasil, na Argentina e Estados Unidos. Tradução de Rolf Traeger. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 25, p. 95-117, Outubro de 1989. 34  Referem-se à região sul da Itália, que possuí índices socioeconômicos, em sua maioria, menores ao da região Norte, mais industrializada. 32  33 

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ramone, eles iam direto para as fazendas no interior da Argentina. Houve também os que ficaram na cidade de Buenos Aires, e, portanto, foram tentar a sorte no comércio, uma vez que o processo de urbanização ali já estava desenvolvendo-se. Ainda sobre o processo de integração dos italianos, eles foram junto com os espanhóis, os dois maiores grupos de imigrantes para aquela região, entretanto, de acordo com José C. Moya35 (Estudios migratórios latino americanos, 1989), por algum tempo depois da Independência argentina em 1816, imigrantes espanhóis eram hostilizados pela população nativa e o governo, portanto, estimulava imigrações de outras regiões, com isso, diz Klein: Puderam estabelecer normas de integração dos imigrantes. Eles tanto predominavam no grupo de pessoas nascidas no exterior, como constituíam uma minoria substancial da população total (representavam 39% dos nascidos no exterior e 12% da população total em 1914. Finalmente, eles estavam concentrados na região costeira, que era o centro tanto da agricultura comercial, como de toda a atividade industrial36.

Embora esses dados sejam referentes ao país como um todo, podemos tomar essa idéia geral de predomínio dos italianos também para Buenos Aires, pois, geograficamente, a província de Buenos Aires está próxima à região costeira, portanto, uma região marcada pela intensa atividade agrícola, comercial e industrial. O desenvolvimento comercial e a disponibilidade foram dois motivos que levaram os italianos a imigrarem para Buenos Aires, sendo que, de acordo com Klein37, eles também estavam presentes na indústria argentina como trabalhadores qualificados, mas também como empreendedores, e esse empreendedorismo também contribuiu para uma maior imigração italiana, uma vez que, vendo os relativos êxitos vivenciados por parentes ou conhecidos na América, os italianos sentiam-se motivados a cruzarem o oceano rumo a uma região desconhecida, mas que vinha desenvolvendo-se. É válido pontuar aqui uma oposição que Braga38 referenciou em sua dissertação referente ao Brasil, mas que entendo ser plenamente aplicável a qualquer sociedade receptora de imigrantes e especialmente a Argentina, embora sempre levando em conta as diferenças existentes em cada sociedade: Citando Diegues Junior, ela diz que escravidão e imigração são termos que se opõem e é a partir da abolição da escravidão que surge a MOYA, José C. Parientes y extraños: actitudes hacia los inmigrantes españoles en La Argentina en El siglo XIX y comienzos Del siglo XX. Estudios migratorios latinoamericanos. Buenos Aires. Numero 13. Diciembre de 1989. 36  KLEIN, Herbert S. Ibid. 37  KLEIN, Herbert S. Op cit. 38  BRAGA, Mariângela Porto. Ibid. 35 

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possibilidade de uma sociedade receptora de imigrantes, abolindo-se definitivamente, pelo menos previsto em lei, a partir de 1853 com a promulgação da Constituição Argentina no governo de Justo José de Urquiza39 Mais tarde, esse sucesso, junto com a crise econômica na Argentina na década de 1890 e a melhoria das condições de vida na Itália, principalmente depois das duas guerras mundiais, permitirá um considerável número de repatriamento dos italianos, ou seja, eles retornarem a Itália. Ao mesmo tempo em que havia essa imigração de massas nesse período, ou seja, um grande número de imigrantes chegando ao mesmo tempo, estava presente na Argentina e especialmente em Buenos Aires, que era e ainda é o centro político argentino, toda uma discussão nos meios políticos e acadêmicos em torno dos imigrantes, a identidade argentina e a imigração. Essa discussão no âmbito político estava presente dentro dos diversos governos, e academicamente, diz respeito a teorias desenvolvidas por intelectuais como José Ingenieros40, por exemplo. Em seu livro, Camila Bueno Grejo41, a partir da tentativa de se analisar o pensamento de José Ingenieros, o de Carlos Octavio Bunge e o pensamento racial na Argentina, coloca que, já desde o período após a independência argentina, havia o desejo das elites de se estimular a imigração para que o país se tornasse civilizado, ou seja, o ideal de nação argentina que essas elites tinham como ideal as nações européias, ou seja, França e Inglaterra principalmente, discriminando, por outro lado, indígenas e gaúchos vistos então como verdadeiros ignorantes sem cultura. Esse significado de cultura, mesmo que levasse em conta apenas os aspectos materiais dessa cultura, estava ligada com uma visão de um ideal civilizatório, ou seja, aproximando-se do significado francês de cultura42 que valorizava elementos mais artísticos e clássicos, como por exemplo, a música clássica e a literatura, considerando todos os que não possuíssem aquela determinada forma de cultura como ignorantes e selvagens43. Além de serem vistos como meios para civilizar o país, Grejo44 coloca que a elite Ver http://www.revistaenie.clarin.com/ideas/Asamblea-XIII-esclavitud-no-abolio-1813_0_862713739. html 40  O próprio Ingenieros era italiano, originário de Palermo. Teve um papel considerável no desenvolvimento da Sociologia na Argentina, preocupando-se também com questões da área de Criminologia. 41  GREJO, Camila Bueno. Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros: entre o científico e o político: pensamento racial e identidade nacional na Argentina (1880-1920)- São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 42  Para entender a diferença do significado francês de cultura e do significado alemão, ver o livro de Roque dos Santos Laraia, Cultura: Um conceito antropológico, especialmente o capítulo 3. 43  Vale lembrar que nesse período, final do século XIX e primeiras décadas do século XX, teorias evolucionistas na Antropologia, bem como o darwinismo social. 44  GREJO, Camila Bueno. Ibid. 39 

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intelectual argentina os via como aqueles que ajudariam o país a progredir materialmente, assim como a expandir a ‘raça’ branca, conforme Grejo45 vai detalhar melhor ao tratar de como essa idéia de superioridade étnica aparecerá nos textos de Burge e Ingenieros, porém mais tarde, essa imigração passará a ser vista como algo nem tão bom para os interesses das classes dominantes, pois, começa a entrar no país seguidores de ideologias políticas como o Anarquismo e o Comunismo, e isso culminará com a promulgação de uma ‘Ley de Residencia’, já no inicio do século XX, que estivesse envolvido em lutas sociais, seria deportado sem direito a julgamento46. Estavam, porém, envolvidas outras questões nessa ‘ameaça’ dos italianos, a primeira diz respeito ao enorme número de imigrantes que chegavam a Buenos Aires, as outras referem-se ao fato de alguns deles não estarem dispostos a aprenderem a língua espanhola, portanto, falando só o italiano e comemorando as suas próprias datas nacionais, construindo suas instituições sociais. A segunda questão refere-se ao fato de que houve uma modificação no perfil “profissional” dos imigrantes recém-chegados, que, de agricultores, jornaleiros e artesãos, as três principais profissões exercidas pelos imigrantes, foram dando lugar, no século XX, por “contingentes sin ocupación (entre 10 y 15% de La población mayor de 16 años.”)47, e não tendo quaisquer identificação com o nacionalismo argentino. E diz Grejo: (...) a essa delicada situação, nos últimos anos da década de 1880, Como resposta o governo argentino tomou algumas medidas focadas na questão nacional como a Lei Territorial (que transformava os filhos dos imigrantes em legalmente argentinos), a afirmação da língua e dos costumes nacionais, o ensino da história argentina e a adesão manifesta à pátria48.

Conforme já foi dito na introdução, é devido a isso que surgirá um conflito de interesses entre os italianos e o governo de Domingo Sarmiento, que não era necessariamente um crítico do processo de imigração, porém entendia que os imigrantes deveriam assimilar-se à cultura argentina. Esse conflito agravou-se com a promulgação da Ley de Educación Común49·, de 1884, onde as escolas públicas passaram a serem obrigadas a ensinar um currículo mínimo, inclusive história e geografia nacionais, visando formar cidadãos patriotas, o GREJO, Camila Bueno. Op cit. Maiores informações em http://www.buenosaires.gob.ar/areas/ciudad/historico/calendario/destacado. php?menu_id=23203&ide=211 47  SARRAMONE, Alberto. Nuestros abuelos italianos: Inmigración italiana en La Argentina- 1ª Ed. – Buenos Aires: Ediciones B, 2010, p. 76. 48  GREJO, Camila Bueno. Op cit, p. 81. 49  Para maiores detalhes, ver http://archivohistorico.educ.ar/sites/default/files/IV_08.pdf 45  46 

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que não era do interesse dos imigrantes, afinal havia o desejo deles em retornarem à sua terra natal com uma situação de vida melhor do que a que tinham quando saíram, e se eles almejavam um retorno, não viam sentido em assumir uma identidade de uma terra e de uma cultura que não era a sua, ainda mais levando-se em conta que esses grupos imigraram por motivos mais fortes do que uma mera vontade pessoal, mas fatores econômicos e políticos. Sobre isso diz Sarramone: Los abuelos, cuando se fueron de Italia no tenían aún una patria y una lengua nacionales. El proceso de unificación apenas había comenzado. (...) Los italianos vinieron a hacer en nuestra tierra aquella revolución que no habían podido hacen en Italia, ni vivir en la península o sus hermosas islas50.

Além disso, mesmo os que ficaram, entendiam que era necessária uma preservação das origens, seja no interior da família ou dentro da comunidade. Esses elementos, contanto, não implicam em uma neutralidade desses italianos no que diz respeito à sociedade argentina ou portenha, isto é, não significa que a eles pouco importassem o que acontecessem naquele território, a respeito disso, embora em um período anterior, Smolensky coloca:“Mitre asumió El mando Del ejército Del Estado de Buenos Aires y los italianos se dispusieron a colaborar en lo fáctico y en lo simbólico”51. A cidade de Buenos Aires, assim como outros centros urbanos constituiu-se nos principais destinos de imigração desses italianos, o que gerou debates políticos dentro da própria imprensa argentina e portenha desde pelo menos a década anterior, pois, conforme Smolensky52 trata a idéia de que esses imigrantes estavam vindo para ‘roubar’ empregos dos nativos e o receio de que pudesse haver uma tentativa de neocolonização53 por parte desses italianos, isto é, um novo domínio estrangeiro no país recém-independente, assim como um índice considerável de imigrantes que entravam para a criminalidade, estava fortemente presentes, por mais que, por outro lado, houvesse os estímulos governamentais para a imigração de europeus, ainda que, devido ao processo de prosperidade econômica na Argentina devido à agricultura e o inicio da industrialização, houvesse a idealização de um padrão cultural típico dos países mais desenvolviSARRAMONE, Alberto. Ibid, p. 116. SMOLENSKY, Eleonora Maria. Ibid, p 170. 52  SMOLENSKY, Eleonora Maria. Op cit, p. 206-209. 53  Ressalta-se que, assim como em relação a outros países, era conveniente para a Itália recém-unificada que certos grupos imigrassem para outros países; principalmente aqueles que eram tidos como delinqüentes e que, além disso, poderia haver sim a idéia de uma colonização italiana na Argentina entre os imigrantes. 50  51 

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dos da Europa, ou seja, Inglaterra e França, e, portanto, eram imigrantes desses países que Sarmiento e outros governantes desejavam atrair para lá. Alguns elementos de influencia italiana e da vida cotidiana em Buenos Aires Carretero, diz que no ano de 1890, a cidade portenha já estava se modificando, passando a ser cada vez mais uma cidade cosmopolita, justamente pela influência dos diversos grupos imigratórios. Diz ele:“Así también, las diferentes etnias se fueron agrupando en distintos Barrios, entre los que sobresalía La Boca, por la concentración de italianos en general y de genoveses en especial”54. Outra conseqüência da imigração, de acordo com Carretero55, foi o aumento nos preços dos terrenos, e, portanto, dos imóveis, de acordo com a sua localização na cidade. Se por um lado, inúmeros descendentes de italianos entraram para a política portenha ou argentina, como Carlos Pellegrini, Manuel Belgrano ou Juan Domingo Perón56, eles influenciaram também a arquitetura dos prédios públicos como a frente da Casa de Governo e do Palácio do Congresso. Outra influencia da comunidade italiana, e talvez seja o elemento em que eles mais influenciaram seja na Argentina, mas também no Brasil e nos Estados Unidos foi a culinária, havendo então a incorporação pelos portenhos dessa culinária para além da tradicional carne, tão consumida pelos argentinos. Além das massas, que são os pratos mais freqüentemente lembrados quando se fala em Itália, o azeite de oliva e vegetais são também elementos que foram agregados na gastronomia argentina por influencia dos imigrantes. A pizza, por exemplo, teria virado quase como um sinônimo do bairro de “La Boca”, conforme Carretero57. No que diz respeito à moradia dos imigrantes, Carretero coloca que havia três tipos de moradia em que havia um número considerável de imigrantes, embora não apenas italianos: “a casa por etapas” e a casa “chorizo”58. A casa por etapas era constituida por “un jardín al frente, un pasillo largo que llegaba hasta El final Del terreno y que remataban una quinta o en un gallinero”59 . A casa “chorizo” por sua vez, era uma série de quartos com banheiro, e ao final do corredor, ficava a cozinha. O terceiro seria os “conventillos”, que originaram-se em uma época de escassez de moradias em Buenos Aires, e, portanto, não diferentemente da casa por etapas e da casa “chorizo” possuíam uma estrutura bem precária. Os conventillos, já no início do 54  55  56  57  58  59 

CARRETERO, Andrés. Ibid, p. 19. CARRETERO, Andrés. Op. Cit. SARRAMONE, Alberto. Ibid, p 106. CARRETERO, Andrés. Op. Cit, p. 67. CARRETERO, Andrés. Op. Cit, p. 82. CARRETERO, Andrés. Ibid, p. 81. 

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século XX, seria local de diversas manifestações por parte dos inquilinos motivados por uma alta excessiva nos alugueis, sendo que as estruturas dessas habitações continuavam ruins, e se por um lado, não eram unicamente os imigrantes italianos que residiam nesses tipos de moradia, eles acabaram tendo um papel importante na tentativa de combate ao arbítrio dos donos dos móveis, porém, foram reprimidos fortemente pelo Estado, que além da repreensão através da força policial, aprovaram leis que previa expulsar do país aqueles imigrantes que, de alguma forma, ameaçassem a ordem pública. Referente à vida política, por mais que os italianos, sobretudo os de classe mais baixa, mantiveram certo grau de preservação cultural, comemorando inclusive as datas patrióticas italianas, como o 4 de Novembro ou, sobretudo, o 20 de Setembro60, ou mesmo acontecimentos políticos italianos importantes como a morte de Giuseppe Garibaldi e a proclamação da república italiana, já no século XX, e relembrando sempre a sua pátria ou o seu paese, levando boa parte do grupo de imigrantes às ruas, e fazendo também essas recordações também através de diversos jornais produzidos por eles, Smolensky coloca que eles tiveram uma considerável intervenção na questão da capitalização de Buenos Aires e a própria modernização da cidade, já no fim do século XIX. Temos acima um exemplo do que Braga61tratou a respeito das imigrações dos italianos aqui no Brasil: A identidade italiana foi moldada principalmente fora da Itália, ou seja, na diáspora (Argentina, Brasil, Estados Unidos, etc.), e pelo fato de existirem diversos grupos dentro da denominada comunidade italiana, havia também uma ausência de símbolos e ritos coesos na comunidade italiana62 que permitissem identificá-los como italianos, como membros de um Estado-nação e não de uma região específica. É, entretanto, com a imigração, que se formará essa identidade de italianos, na qual, eles mesmo se reconhecerão como pertencentes a um país chamado Itália, e os outros também o reconhecerão como membros desse grupo. Em relação a esses grupos, além do fato de serem de regiões extremamente distintas, e, portanto, com valores e culturas relativamente distintas, havia uma oposição entre uma maioria analfabeta e sem ter praticamente o que comer originários das mais diferentes regiões da recém-unificada Itália, em oposição a uma minoria culta, e foi justamente essa minoria que conseguir ter acesso ao poder político em Buenos Aires e maior facilidade de integrar-se à sociedade argentina, diferente da classe batalhadora que, por um lado, necessita trabalhar duramente nas indústrias ou no comércio e que por outro lado, buscava a preservação e transmissão de valores trazidos da terra natal. O 4 de Novembro refere-se ao final da 1ª Guerra Mundial e o 20 de Setembro, diz respeito quando os italianos reconquistaram Roma, tomada pelos franceses, com a liderança militar de Giuseppe Garibaldi, conforme Sarramone, p. 209 61  BRAGA, Mariângela Porto. Ibid, p. 76-77. 62  SMOLENSKY, Eleonora Maria. Ibid, p. 328. 60 

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Ressalta-se, no entanto, que nem todos os membros de imigrantes eram pobres e moravam nos conventillos ou nas casas chorizo, havia uma elite italiana, sobretudo de industriais, que moravam nas regiões ao norte da cidade de Buenos Aires. Contribuiu para isso também o fato de existir agrupamentos dos imigrantes nos bairros de acordo com a origem regional, entretanto não havendo a formação de guetos como foi o caso da Little Italy, nos Estados Unidos, embora, a integração de imigrantes originários da mesma região de um país fosse facilitada63. A própria chegada dos imigrantes desse período em Buenos Aires foi movimentada, pois, segundo a própria Smolensky: Los inmigrantes que llegaron a comienzos de 1880 encontraron una ciudad convulsionada por las elecciones presidenciales entre El abogado porteño Carlos Tenedor, gobernador de la provincia partidario de su autonomía y el general Julio A. Roca, partidario de la federalización de la ciudad de Buenos Aires64.

E dentro dessa disputa eleitoral e até militar, que terminou com a vitória de Roca, através de fraudes65, os italianos chegaram a participar dessas forças militares, chegando até a comemorar quando Roca ganhou e, teoricamente, Buenos Aires tenha sido “libertada”. Aproximadamente dois anos depois, aconteceu um dos fatos políticos mais significativos que envolveram a comunidade italiana na cidade de Buenos Aires: no bairro de La Boca, onde os imigrantes italianos possuíam uma presença muito significativa, e que, até hoje possui certa fama de ser um bairro italiano, um conflito laboral que envolvia os italianos acabou levando a proclamação da República de La Boca, que não durou nada, embora não tenha provocado uma resposta mais violenta por parte do presidente Roca, o que de certa forma é surpreendente, uma vez que, se com os italianos a política dele não foi exageradamente repressiva, com os indígenas, ao contrário, vigorou a idéia de conquistas de território e extermínios, mas isso é de se entender uma vez que, vale ressaltar, havia uma necessidade política de estimulo à imigração européia, que, por mais que o desejo não fosse de imigrantes espanhóis ou italianos, para os políticos daquele país, ainda era melhor do que os indígenas ou africanos, por exemplo. Ainda no bairro de La Boca, os italianos também formaram uma associação de SMOLENSKY, Eleonora Maria. Ibid, p.377. SMOLENSKY, Eleonora Maria. Op. cit, p. 276. 65  Nesse período, ainda vigorava na Argentina o voto censitário, ou seja, só poderiam votar os cidadãos alfabetizados e que recebessem acima de determinada renda. Além disso, a votação não era secreta, o que permitia intimidações. Apenas em 1912, com a Lei Saenz Peña, que o voto passa a ser universal para os homens, independente da renda. 63  64 

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bombeiros voluntários no bairro, participando, vale destacar, de festas populares, o que, a meu ver, também contribuiu para um reforço da ligação entre o bairro e a comunidade italiana, assim como existe, em São Paulo, a identificação entre o bairro do Bexiga e os italianos. Essa identificação dos italianos com o bairro de La Boca deve-se também à posição geográfica do bairro: localizado bem próximo ao Río de La Plata, ao sul da cidade de Buenos Aires, e isso, ligado com a fama dos italianos de bons navegadores facilitou, de acordo com Sarramone, a instalação dos italianos nessa região. Porém, esse não foi o único fator que levou a um grande número de imigrantes a se instalarem no bairro: O principal, na verdade, foi que, até 1870, as elites argentinas concentravam-se nos bairros ao sul da cidade de Buenos Aires, porém, após a epidemia de febre amarela que vitimou milhares de argentinos e imigrantes em 187166, essas elites acabaram mudando-se para os bairros das regiões ao norte da cidade, deixando inúmeras casas vazias e desvalorizando, conseqüentemente, o preço desses imóveis. Considerando que os imigrantes não poderiam se dar ao luxo de irem morar em regiões muito caras, até porque não tinham quase nada, em termos financeiros, a única opção dos italianos eram instalarem-se em regiões de baixo custo de alugueis, como foi o caso do bairro de La Boca. Com o tempo, o bairro acabou tornando-se um reduto por excelência dos italianos, em primeiro lugar pelo preço mais baixo dos alugueis e depois como forma de preservação de sua cultura, cujo ápice do agrupamento dos italianos nesse bairro foi a proclamação da República de La Boca, conforme relatado anteriormente, e mesmo já nas primeiras décadas do século XX, com a origem dos dois grandes times de futebol argentina, o Boca Juniors e o River Plate, essa visão de bairro italiano permanecerá, sendo os torcedores do Boca denominados de ‘bosteros’ pela origem humilde e ‘gringa’ do time. E essas, por fim, são algumas das muitas influências culturais dos italianos na cidade de Buenos Aires. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo imigratório na Argentina, e ainda mais na capital federal, além de ter um estímulo enorme por parte do Estado, pela necessidade de formar uma cultura e uma população eruditas e com fenótipos europeus, no caso dos italianos, trouxeram contribuições nos diferentes campos da vida social, desde a gastronomia, passando pelas Essa epidemia estava atrelada com as condições precárias de saneamento da época, e por isso vitimou grande número de imigrantes, que eram os mais vulneráveis socialmente. O Cemitério de La Chacarita foi construído justamente pelo elevado número de mortos pela epidemia, pois não havia mais lugares para enterros no Cemitério de La Recoleta 66 

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artes, pela contribuição com a formação da Universidade de Buenos Aires, ainda que nesse caso, em um período anterior67, bem como no âmbito dos movimentos sociais da época e que possuem influencias até hoje, afinal, por um lado, diversos imigrantes italianos fugiram por conta de perseguições políticas em suas regiões de origem (ou na própria Itália já unificada), e por outro lado, estavam submetidos à certas condições de vida que exigiam que a comunidade se unisse e mobilizassem-se, não propriamente contra os demais argentinos, mas contra as elites, e particularmente, contra os donos dos imóveis em que os imigrantes moravam. Isso culminará, já no século XX com uma semana sangrenta motivada, sobretudo pelo aumento exagerado dos alugueis, sem que houvesse uma qualidade em troca. Nota-se também que foi necessário que os italianos formassem grupos comunitários para poderem praticarem sua cultura sossegados, afinal, um traço comum em países de imigração em massa é o fato de que a população nativa não vê com bons olhos que os grupos de imigrantes continuem praticando seus costumes, especialmente seus dialetos ou suas religiões, naquilo que consideram como seu país, exigindo deles um comportamento conforme o da população nativa, e mesmo assim, dependendo de outras características desse grupo, especialmente etnia ou religião, eles sempre serão vistos pelos mais conservadores como os ‘outsiders’, aqueles “invasores” que vieram para roubar o emprego dos argentinos, no caso. Entretanto, deve-se levar em conta o contexto social da época e as necessidades que o governo argentino possuía, e, portanto, somente após um determinado momento, esses conflitos e representações a respeito dos imigrantes italianos foram surgindo com maior força. De qualquer forma, até hoje a sua influência é gritante na sociedade argentina e por mais que os mais nacionalistas possam tentar negar a importância dos diversos grupos de imigrantes como os judeus e os italianos para a constituição de uma identidade e de uma cultura argentina, isso não é mais possível, tamanha a força que tiveram esses imigrantes na história argentina, inclusive naquilo que é conhecido como a maior paixão dos argentinos, que é o futebol, pois, ambos os times de maior renome nacional – Boca Juniors e River Plate -, apesar dos nomes em inglês, possuem origem italiana. Essa força também é mais antiga do que foi descrita e mais complexa também, assim como todo processo de imigração em massa para determinado país, seja para a Argentina, para o Brasil ou para os Estados Unidos, ou, mais recentemente, para países da União Européia. REFERÊNCIAS BRAGA, Mariângela Porto. Descendentes de imigrantes italianos em Belo Horizonte e o impacto da 67 

A Universidade de Buenos Aires data de 1820.

364 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas dupla cidadania na construção da identidade Ítalo-Brasileira 1990 A 2008. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2009. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu: Sociologia. Org. Renato Ortiz; [tradução de Paula Monteiro e Alicia Auzmendi]. – São Paulo: Ática, 1983. CARRETERO, Andrés. Vida Cotidiana en Buenos Aires: desde la organización nacional hasta El gobierno de Hipólito Yrigoyen 1864-1918- 1ª Ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ariel, 2013. 392 p. CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Willians. São Paulo: Paz e Terra, 2001. CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 21. Ed.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2014 DEVOTO, Fernando. Historia de los italianos en la Argentina. Buenos Aires: Biblos, 2008. _______________. Historia de la inmigración en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Sudamericana: 2002. DONGHI, Tulio Halperin. Proyecto y Construcción de una Nación (Argentina 1846-1880). Buenos Aires, 1996 [s.n]. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders – Rio de Janeiro: Zahar, 2000. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma história dos costumes, vol. I. 2ª ed. – Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1994. FAUSTO, Boris e DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: Um ensaio de história comparada (1850-2002). Tradução dos textos em castelhano por Sergio Molina – São Paulo: Editora 34, 2004. GJERGJI, Iside. La nuova emigrazione italiana:Cause, mete e figuri sociali. A cura di Iside Gjergji. Venezia: Edizione Ca’Foscari, 2015. GREJO, Camila Bueno. Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros: entre o científico e o político: pensamento racial e identidade nacional na Argentina (1880-1920)- São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História.4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. KLEIN, Herbert S.A integração dos imigrantes italianos no Brasil, na Argentina e Estados Unidos. Tradução de Rolf Traeger. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 25, p. 95-117, Outubro de 1989. LARAIA, Roque dos Santos. Cultura: Um conceito antropológico – 14ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. MILNER, Andrew. Estudos Culturais (Apêndice). In: WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. MOYA, José C. Parientes y extraños: actitudes hacia los inmigrantes españoles en La Argentina en El siglo XIX y comienzos Del siglo XX. Estudios migratorios latinoamericanos. Buenos Aires. Numero

Danilo Milev| 365 13. Diciembre de 1989. SARRAMONE, Alberto. Nuestros abuelos italianos: Inmigración italiana en La Argentina- 1ª Ed. – Buenos Aires: Ediciones B, 2010. SMOLENSKY, Eleonora Maria. Colonizadores Colonizados: Los italianos porteños – 1ª ed. – Buenos Aires: Biblos, 2013. WILLIANS, Raymond. Cultura e Materialismo. 1ª ed. São Paulo: UNESP, 2011. http://www.bnm.me.gov.ar/giga1/normas/5421.pdf acesso em 23/03/2015 às 15h56min

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A Securitização da Política Europeia para Refugiados e a Criação de “Espaços de Exceção” Flávia Rodrigues de Castro1 Resumo: O contexto político e social do pós – Guerra Fria foi marcado pelo recrudescimento dos fluxos migratórios “mistos”, caracterizados pela miscigenação intrínseca à mobilidade humana, na qual os movimentos populacionais derivados de violência ou perseguição política e de razões econômicas encontram-se entrelaçados. Em meio a estes fluxos, os refugiados constituem um grupo específico, que cruzam as fronteiras nacionais em busca de vida e segurança, após a falência do pacto social firmado precisamente para resguardá-las. Ao cruzar as fronteiras, entretanto, essas pessoas ou grupos se deparam com os obstáculos derivados da organização do sistema moderno em Estados soberanos, unidades políticas exclusivas e excludentes que revelam a vinculação íntima entre a garantia e o exercício de direitos (humanos e civis) e a posse de cidadania. Sem prescindir de análises sobre esta discussão teórica em que a temática dos refugiados se insere, o presente artigo tem por objetivo avaliar a construção do refugiado como fonte de insegurança por uma perspectiva securitizadora que permite, em última instância, a adoção de medidas excepcionais. A partir dessas considerações iniciais, o artigo propõe como objeto a política européia para refugiados, pautada pela lógica da securitização e da excepcionalidade, que se reflete no caso italiano dos centros de detenção. A hipótese a ser investigada é de que a construção do refugiado a partir de uma ótica securitária possibilita a reprodução de “espaços de exceção” no interior dos países de destino. No que diz respeito aos resultados parciais deste trabalho, é possível indicar a existência de um discurso político, em âmbito europeu, que constrói o refugiado como fonte de instabilidade e ameaça à segurança, possibilitando a adoção de medidas excepcionais exemplificadas pelos centros de detenção. Nesse sentido, as políticas européias de securitização dessas pessoas ou grupos permitem a reprodução de “espaços de exceção” (intencionalmente plurais), nos quais há a suspensão de uma série de direitos civis e a atuação da polícia como ator soberano. Palavras Chave: Refugiados; Securitização; Exceção. Abstract: The political and social context of the post-Cold War was marked by the rise of the “mixed” migration flows, characterized by miscegenation, intrinsic to human mobility, in which population movements derived from violence or political persecution and economic reasons are intertwined. In the midst of these flows, refugees constitute a specific group that cross national borders in search for life and safety, after the collapse of the social pact precisely signed to protect them. When crossing borders, however, these individuals or groups are faced with obstacles derived from the modern system organization in sovereign states, exclusive and exclusionary political units, that reveal the intimate link between the guarantee and the exercise of rights (human and civil) and possession of citizenship. Without dismissing analysis on this theoretical discussion in which the subject of refugees is inserted, this article aims to analyze the construction of refugee as a source of insecurity from a securitizer perspective that allows, ultimately, the adoption of exceptional measures. From these initial considerations, the paper proposes as its object the European refugee policy, guided by the logic of securitization and exception, which is reflected in the Italian case of detention centers. The hypothesis being investigated is that the construction of the refugee from a security optic enables the propagation of “spaces of exception” inside the destination countries. With regard to the partial results of this work, 1  * Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa Nacional e da Segurança Internacional (PPGEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: [email protected]. Orientador: Dr. Frederico Carlos de Sá Costa.

368 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas you can indicate the existence of a political speech in the European framework, which builds the refugee as a source of instability and security threat, allowing the adoption of exceptional measures exemplified by the detention centers. In this sense, European policy of securitization of these people or groups allows the propagation of “spaces of exception” (intentionally plural) in which there is the suspension of civil rights and the police acting as a sovereign actor. Keywords: Refugees; Securitization; Exception.

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1 Introdução Os chamados fluxos migratórios “mistos” podem ser compreendidos a partir da perspectiva do entrelaçamento de movimentos populacionais em razão de perseguição política ou violência e por motivos econômicos2. A miscigenação desses fluxos pode ser vista como um processo intrínseco à dinâmica da mobilidade humana, sendo as diferenciações entre categorias uma tentativa artificial de conceituação: as pessoas ou grupos em busca de refúgio estão, quase sempre, em busca de condições econômicas mais apropriadas para a garantia de sua subsistência. Cabe ressaltar, assim, que as categorias de “refugiado” e “imigrante” são construções artificiais, dadas em função de interesses políticos e burocráticos3. A separação entre essas duas categorias deu-se logo após a Segunda Guerra Mundial e, com base na mesma, foram forjadas políticas diferenciadas acerca dos direitos e da proteção de tais grupos. Apesar da importância de se ter em mente a artificialidade das categorias supracitadas, optou-se neste artigo pela análise específica dos refugiados, com a exclusão do migrante motivado apenas por questões econômicas, isto é, que deixa seu Estado em busca de condições melhores de vida e sustento. Isso se deve, em parte, ao objeto de análise aqui apresentado: a opção pelo estudo da política europeia para refugiados deve levar em conta que tal política é feita com base na categorização dos grupos e, portanto, não pode prescindir da diferenciação realizada entre aqueles em busca de refúgio e aqueles em busca de melhores condições de vida. Por outro lado, a miscigenação dos fluxos tem levado a uma erosão desta categorização, revelando a tendência em tratar as duas categorias da mesma forma. Entretanto, isso não significa uma extensão dos direitos dos refugiados para os imigrantes, mas sim o desrespeito dos direitos internacionais estabelecidos para os primeiros. Este quadro pode ser visto sob a lógica da instrumentalização política das categorias, em um processo de erosão que tem sido usado pelos Estados não para ampliar direitos, mas para diminuí-los. Esta escolha de abordagem é motivada, então, por um quadro de agravamento na concessão do direito ao refúgio àqueles que são alvos de violência e perseguição e que se encontram cada vez mais ignorados em meio aos fluxos mistos, em uma situação clara de violação das normas internacionais estabelecidas para sua proteção. Considerase, dessa maneira, que os direitos estabelecidos pela Convenção de 1951, que incluem o direito de atravessar fronteiras em busca de refúgio, de solicitá-lo e de não ser devolvido ao seu país de origem de maneira forçada (non-refoulement), têm sido negligenciados e 2  MOULIN, Carolina. A construção do refugiado no pós – guerra fria: dilemas, complexidades e o papel do ACNUR. Publicação da Associação Brasileira de Relações Internacionais, vol. 7, n. 2, julho/dezembro 2012. 3  SCALETTARIS, Giulia. Refugee Studies and the Internation Refugee Regime: A Reflection on a Desirable Separation. Refugee Survey Quarterly, vol. 26, n.3, 2007.

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desrespeitados pelos países de destino, agravando a situação de completa insegurança dessas pessoas ou grupos e permitindo a reprodução de espaços de exceção no interior dos países de destino. Apesar do estado de insegurança que caracteriza os refugiados em um contexto moderno marcado pela vinculação do exercício de direitos à posse de cidadania4, a figura do refugiado tem sido construída como um problema de segurança internacional, fazendo deste “sujeito sem direitos”5 a fonte de insegurança e instabilidade que pode abalar o sistema moderno de Estados soberanos. Nesse contexto, então, a figura do refugiado é construída não somente a partir da perspectiva de ausência de direitos, como também de fonte de insegurança e instabilidade que precisa ser gerenciada por algum tipo de política disciplinar penal, tendo em vista o seu controle e a prevenção de possíveis riscos que possa trazer à estabilidade do sistema6. Há, assim, a construção de um discurso securitário que procura vincular não só o fluxo de refugiados, mas a própria mobilidade humana, à manutenção da paz e da segurança internacionais7. Tal discurso securitário pode ser compreendido sob as lentes da chamada Teoria de Securitização, para a qual a questão-chave é a atribuição, através do ato de fala, de problemas de segurança a fontes específicas8. A Teoria de Securitização da Escola de Copenhague, “destaca a natureza política do ‘fazer’ segurança, desafiando a abordagem tradicional de segurança”9. Segundo Buzan, Waever e De Wilde, o processo de securitização permite que uma dada questão seja “apresentada como ameaça existencial, requerendo medidas de emergência e justificando ações fora dos limites normais do procedimento político”10. Nesse sentido, a securitização acaba por legitimar o uso singular da força e a adoção de medidas extraordinárias ou excepcionais para conter uma suposta ameaça. Cabe ressaltar, nesse contexto, a crítica de Agamben à “obsessão por segurança”: segundo este autor, o uso da expressão “por razões de segurança” funciona como um argumento de autoridade que, ao impedir qualquer discussão, possibilita a imposição de medidas que seriam inaceitáveis sem este discurso securitário 11. 4  ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 5  MOULIN, Carolina. Os direitos humanos dos humanos sem direitos. Refugiados e a política do protesto. RBCS, vol. 26, n. 76, junho 2011. 6  WACQUANT, L. “The militarization of urban marginality: lesson from the Brazilian metropolis”. International Political Sociology, n.2, 2008. 7  MOULIN, Carolina. Ibid. 8  BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Security: A New Framework for Analysis. Boulder and London: Lynne Rienner Publishers, 1998. 9  BARBOSA, Luciana Mendes; SOUZA, Matilde de. “Securitização das Mudanças Climáticas: O Papel da União Europeia”.Contexto Internacional, vol. 32, n. 1, janeiro/junho 2010, p. 125. 10  BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Ibid, p. 24. 11  AGAMBEN, Giorgio. Como a obsessão por segurança muda a democracia. Le Monde Diplomatique

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Tendo isto posto, a primeira seção deste artigo abordará a discussão teórica em que a figura do refugiado se insere, a fim de que seja possível compreender sua construção como fonte de insegurança e ameaça, tanto ao sistema internacional, quanto aos Estados receptores. Em seguida será analisada a Teoria de Securitização da Escola de Copenhague, isto é, a fundamentação teórica deste artigo, que irá possibilitar o entendimento sobre a construção de uma questão sob a ótica da segurança e sua relação com a excepcionalidade. Por fim, tendo em vista a base teórica já trabalhada, a política europeia para refugiados será analisada, bem como o caso italiano dos centros de detenção: a partir disso será possível analisar a hipótese aqui proposta qual seja a construção do refugiado a partir de uma ótica securitária que possibilita a reprodução de “espaços de exceção” no interior dos países de destino. 2 Os Refugiados e o Sistema Moderno de Estados Soberanos Hannah Arendt12 já chamara atenção, em capítulo intitulado O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem, para o sujeito dos direitos humanos que, em meio à “velha trindade” Estado-povo-território, encontra-se desassistido e desprotegido por um sistema que vincula seu destino àquele do Estado soberano. Tal vinculação estabelece conexão direta entre o exercício de direitos (humanos e civis) e a posse de cidadania, relegando as minorias, os apátridas e os refugiados a um espaço de indeterminação no atual sistema moderno de Estados soberanos, organizado em comunidades políticas rigidamente fechadas, “exclusivas e excludentes”13. Nesse sistema, aquele que se vê excluído ou expulso de alguma dessas comunidades automaticamente encontra-se expulso de toda família de nações14. Assim, os chamados inalienáveis direitos humanos revelam-se sem proteção ou garantia sempre que não é mais possível concebê-los como os direitos dos cidadãos de algum Estado1516. Ficara claro, para Arendt, que somente os nacionais podiam ser vistos como cidadãos e apenas as pessoas da mesma origem nacional podiam usufruir da proteção das instituições legais, cabendo aos demais a necessidade de alguma lei de exceção. O quadro acima descrito ficara evidenciado pelas práticas políticas de desnacionalização que tiveram lugar na Europa do após-guerra, através das quais os refugiados, Brasil, janeiro 2014. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568 Acesso em: 06 jun. 2015 12  ARENDT, Hannah. Ibid. 13  MOULIN, Carolina. Ibid, 2011. 14  ARENDT, Hannah. Ibid. 15  AGAMBEN, Giorgio. Means without End Notes on Politics. In: BUCKLEY, Sandra et al. (Org.). Theory of Bounds. Londres: University of Minnesota Press, 2000. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. 16  ARENDT, Hannah. Ibid.

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que haviam sido expulsos de seus países pela revolução social, eram desnacionalizados pelos governos vitoriosos17. Conforme afirma Arendt18, a desnacionalização teria se tornado “uma poderosa arma da política totalitária, e a incapacidade constitucional dos Estados-nações europeus de proteger os direitos humanos dos que haviam perdido os seus direitos nacionais permitiu os governos opressores impor sua escala de valores [...]”. Teria sido, assim, por meio da retirada da cidadania de pessoas e grupos, que os governos totalitários puderam decidir os destinos daqueles que haviam sido transformados em “refugo da terra”19, deixados na completa ausência de direitos e sem nenhum Estado que almejasse garanti-los novamente. Consumou-se, com isso, “a transformação do Estado de instrumento da lei em instrumento da nação; a nação havia conquistado o Estado, e o interesse nacional chegou a ter prioridade sobre a lei muito antes da afirmação de Hitler de que o direito é aquilo que é bom para o povo alemão”20. Os chamados inalienáveis Direitos do Homem haviam sido concebidos como tal porque se supunha serem independentes de todo e qualquer governo. Entretanto, “no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instância disposta a garanti-los”21. Tais direitos, segundo Arendt, mostravam-se inexeqüíveis sempre que surgiam pessoas ou grupos que não eram cidadãos de algum Estado soberano. Nesse contexto, então, os apátridas, refugiados e minorias encontram-se destituídos de seus direitos, sem a proteção legal do seu governo de origem ou de qualquer outro. A vinculação entre o exercício de direitos e a posse de cidadania representa, assim, não apenas a perda de direitos específicos, mas a ausência de uma comunidade política disposta e capaz de garantir novamente qualquer um desses direitos22. Diante desse quadro de organização excludente, os refugiados se encontram em um espaço de “limbo” político e social, entre o Estado soberano e o estado de exceção. Em tal espaço o poder soberano incide sobre a “vida nua” dessas pessoas ou grupos, isto é, cria-se e reproduz-se a figura do homo sacer, que pode ser compreendida como aquele indivíduo que é forçosamente reduzido à vida nua, à vida não-política e não-social, que pode ser eliminada por qualquer um sem que isso signifique a perpetração de algum crime ou violação23. Segundo afirma Arendt24 a esse respeito: “Os sobreviventes dos campos de extermínio, os internados nos campos de concentração e de refugiados, e até ARENDT, Hannah. Ibid. ARENDT, Hannah. Op cit., p. 372. 19  ARENDT, Hannah. Op cit. 20  ARENDT, Hannah. Op cit., p. 379. 21  ARENDT, Hannah. Op cit., p. 397. 22  ARENDT, Hannah. Op cit. 23  AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 24  ARENDT, Hannah. Ibid, p. 408. 17  18 

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os relativamente afortunados apátridas, puderam ver [...] que a nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam”. Apesar do estado de insegurança que caracteriza os refugiados em um contexto moderno marcado pela vinculação do exercício de direitos à posse de cidadania25, a figura do refugiado tem sido construída como um problema de segurança internacional, fazendo deste “sujeito sem direitos”26 a fonte de insegurança e instabilidade que pode abalar o sistema moderno de Estados soberanos. Assim, se na perspectiva do refugiado o sistema moderno, organizado em Estados “exclusivos e excludentes”27, se constitui como aquilo que pode ameaçar o exercício pleno de seus direitos, em um movimento inverso, os Estados soberanos passam a construir a figura do refugiado como ameaça à ordem e à estabilidade desse mesmo sistema. Constrói-se, com isso, uma espécie de “sociedade do bode expiatório”28, na qual pessoas ou grupos são convertidos em verdadeiros culpados por desestabilizar tanto a suposta estabilidade do sistema internacional, quanto a situação doméstica dos Estados, isto é, os setores não-militares da segurança apontados pela Teoria de Securitização (segurança econômica e societal, por exemplo). Cabe ressaltar que, no contexto pós - Guerra Fria, a agenda de segurança internacional foi marcada por um movimento de expansão, com a inclusão de temas não-tradicionais ao rol das ameaças à segurança, como a degradação ambiental, o terrorismo e o movimento de refugiados. Neste mesmo cenário, as chamadas “intervenções humanitárias” atrelaram questões de assistência humanitária e, mais especificamente, de deslocamentos forçados, à manutenção da segurança internacional, o que ficaria evidenciado pelo crescente número de resoluções do Conselho de Segurança em relação à temática29. Assim sendo, verificou-se, neste contexto, a produção de um “continuum de securitizações” com o “uso cada vez mais constante das operações de paz da ONU e de organizações regionais como a União Africana para administrar guerras, genocídios e fluxos de refugiados”30. Há, assim, um processo em curso de securitização do refugiado que, ao mesmo tempo em que o criminaliza para a população receptora, o converte em ameaça à ordem internacional3132. Tal processo não se desenvolve apenas no contexto europeu, ARENDT, Hannah. Op. cit. MOULIN, Carolina. Ibid, 2011. 27  MOULIN, Carolina. Op cit. 28  BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 92. 29  MOULIN, Carolina. Ibid, 2012. 30  RODRIGUES, Thiago. Segurança planetária: entre o climático e o humano. Ecopolítica, São Paulo, n.3, p.5-41, 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015, p. 33. 31  MOULIN, Carolina. Ibid, 2011. 32  MOULIN, Carolina. Ibid, 2012. 25  26 

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mas assume posição prevalente na agenda internacional, uma vez que, conforme afirma Moulin, a figura do refugiado passa a ser vinculada à segurança estatal (não em termos estritamente militares) e à manutenção da ordem no campo da política internacional. Teria sido, então, durante a década de 1990 que a questão dos refugiados assumiu lugar de destaque na agenda do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a “construção da figura do refugiado como fonte de instabilidade e de insegurança por uma leitura securitizada dos deslocados”33. 3 A Teoria de Securitização da Escola de Copenhague No livro “Security: A New Framework for Analysis”, Buzan, Waever e De Wilde propõem a definição da “segurança” como “o movimento que trata a política para além das regras do jogo estabelecidas e tipifica a questão ou como um tipo particular de política, ou como algo que a transcende”. Para a Teoria de Securitização, a “segurança” não deve ser vista como uma condição objetiva, mas como um ato de fala, através do qual supostas ameaças são reconhecidas. Em outras palavras, algo se torna um problema ou uma questão de segurança quando as elites assim o declaram35. Nesse sentido, o processo de securitização pode ser compreendido como um movimento que tem início a partir de um discurso que apresenta uma dada questão sob a ótica de ameaça existencial, “requerendo medidas de emergência e justificando ações fora dos limites normais do procedimento político”36. Em resumo, securitização pressupõe “um processo no qual determinados temas passam a integrar a agenda de segurança”37. Pelas lentes da teoria da Escola de Copenhague, “segurança” pode ser entendida, então, como “uma prática auto-referencial, porque é nesta prática que uma questão se torna uma questão de segurança – não necessariamente porque uma ameaça existencial real existe38, mas porque dada questão é apresentada como esse tipo de ameaça”39. Dessa maneira, a segurança se torna uma forma particular de prática social, resultado do ato de fala de um agente securitizador que apresenta uma questão como ameaça existencial, reivindicando a adoção de medidas extraordinárias na tentativa de contê-la40. Cabe ressaltar, assim, a caracterização dos problemas ou questões de segurança a partir 34

MOULIN, Carolina. Op Cit, p. 37. BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Ibid, p. 23. 35  WAEVER, Ole. Securitization and Desecuritization. In: LIPSCHUTZ, Ronnie D. On security.New York: Columbia University Press, 1995. 36  BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Ibid, p. 24. 37  BARBOSA, Luciana Mendes; SOUZA, Matilde de. Ibid, p. 126. 38  Conforme afirma Ulrich Beck (2011, p.28) a esse respeito, “nas situações de ameaça, é a consciência que determina a existência. O conhecimento adquire uma nova relevância política”. 39  BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Ibid. 40  BARBOSA, Luciana Mendes; SOUZA, Matilde de. Ibid. 33  34 

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de um sentido de prioridade e urgência que reivindica a necessidade e o direito ao uso de meios extraordinários ou excepcionais que estão além das rotinas e normas padrões41. A teoria desenvolvida pela Escola de Copenhague utiliza três conceitos centrais na análise dos processos de securitização: o objeto referente (aquilo que é percebido como ameaça e, portanto, alvo da securitização); o agente securitizador (o ator que através do discurso securitário buscará apresentar o objeto referente como ameaça existencial); e a audiência (esfera capaz de legitimar a adoção de medidas extraordinárias ou excepcionais). Esses conceitos funcionam de maneira simbiótica no processo de securitização, de forma que o ato de fala em que um agente securitizador invoca um objeto referente deve ser complementado pela aceitação da audiência, a fim de que a securitização seja realizada de maneira plena42. A Escola de Copenhague também trabalha com uma abordagem multisetorial da segurança que identifica a existência de cinco setores relevantes: militar; político; econômico; societal; e ambiental. Cada um desses setores possui seu próprio objeto de referência e sua própria agenda de ameaças: no setor societal, por exemplo, a identidade de um grupo é apresentada como ameaçada pelas dinâmicas dos fluxos culturais, da integração econômica ou do movimento populacional43. Uma das grandes contribuições da produção teórica da Escola de Copenhague é, assim, a possibilidade de usar o discurso como variável responsável pela criação de ameaças, que caracteriza o processo de securitização. Há, nesse contexto, a identificação de um espectro no tocante às questões que são percebidas (ou não) como ameaças, que varia do extremo “não politizado”, passa pelo “politizado” e alcança outro extremo “securitizado”. No primeiro, determinada questão se encontra fora dos debates e decisões políticas; no segundo, dada questão é tratada por meio de políticas públicas, requerendo a atuação governamental; e no último, uma questão específica demanda a adoção de medidas excepcionais, ultrapassando a esfera normal de decisão e procedimentos políticos. A alocação de um tema ou questão em algum desses níveis pode variar consideravelmente em função da realidade política, social e histórica de cada Estado44. A Escola de Copenhague teoriza sobre processos de securitização como um instrumento retórico que procura legitimar medidas políticas excepcionais: a securitização implica em um afastamento da política “normal”, contida em regras definidas constitucionalmente, em direção ao engajamento político com medidas excepcionais, para as quais as regras constitucionais não se aplicam45. Segundo Huysmans, a conceituação WAEVER, Ole. Ibid. BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Ibid. 43  WILLIAMS, Michael. Words, Images, Enemies: Securitization and International Politics. International Studies Quarterly, Malden, vol. 47, p. 511-31, 2003. 44  BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Ibid. 45  HUYSMANS, Jef. International Politics of Exception: Competing Visions of International Political Order Between Law and Politics. Alternatives 31, 2006. 41  42 

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da prática securitária nesses termos acaba por tornar a exceção um conceito-chave na teoria das políticas de segurança, ainda que não seja desenvolvido pelos teóricos da Escola de Copenhague. Cabe ressaltar que o modo como a Teoria de Securitização introduz o conceito de exceção nos estudos internacionais não necessariamente realoca este conceito, tradicionalmente voltado para a política doméstica, no âmbito do sistema internacional46. Nesse sentido, a análise teórica desenvolve a perspectiva de que “o sistema internacional abriga situações de crise que levam a debates domésticos sobre os limites da legalidade e legitimidade de aumentos radicais no poder executivo”47. Assim, o debate sobre as práticas excepcionais permanece focado no impacto de movimentos securitários na natureza da democracia liberal dentro dos Estados. Há um fator essencial na Teoria de Securitização que abre espaço para a abordagem de práticas políticas excepcionais, ainda que o conceito de exceção não tenha sido desenvolvido em suas análises. Para os teóricos da Escola de Copenhague, a “segurança” não é vista como qualquer ato de fala ou qualquer forma de construção social, mas como um ato específico que apresenta uma questão como “ameaça existencial”, demandando a adoção de meios extraordinários, para além das rotinas e normas do procedimento político padrão48. Esta visão particular da segurança tem suas raízes em uma longa tradição realista que remonta ao pensamento do jurista e teórico alemão, Carl Schmitt495051. Isso não significa afirmar, entretanto, que a Teoria de Securitização desenvolvida pela Escola de Copenhague é schmittiana, mas apenas que sua visão acerca da segurança é baseada em alguns aspectos que estão enraizados na perspectiva de Schmitt sobre “o político”5253. Para a Teoria de Securitização a “segurança” implica, então, em um senso de prioridade e emergência que pode levar à adoção de práticas políticas excepcionais, essencialmente anti-democráticas54. Com isso, os teóricos da Escola de Copenhague acabam por se aproximar da perspectiva do filósofo político Giorgio Agamben sobre HUYSMANS, Jef. Op Cit. HUYSMANS, Jef. Op Cit. 48  WILLIAMS, Michael. Ibid. 49  HUYSMANS, Jef. The Question of the limit. Securitization and the Aesthetics of Horror in Political Realism. Millennium: Journal of International Studies, vol.27, n.3, 1998. 50  WILLIAMS, Michael. Ibid. 51  EDJUS, Filip. Dangerous Liaisons: Securitization Theory and Schmittian Legacy. Western Balkans Security Observer, n. 13, abril/junho 2009. 52  Na teoria de Schmitt, o ator que identifica a ameaça é o soberano e o ato de sua identificação é uma decisão excepcional que quebra as regras e cria uma nova ordem política. Na Teoria de Securitização, o ator é o agente securitizador e a identificação da ameaça é um movimento securitário que demanda ações de emergência, o que pode legitimar a quebra do procedimento político padrão (Edjus, 2009). 53  WILLIAMS, Michael. Ibid. 54  WILLIAMS, Michael. Op. Cit. 46  47 

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este fenômeno. Em sua palestra “Security and Terror”55, Agamben traça um paralelo entre a lógica governamental da segurança, a exceção e a crise da democracia liberal: medidas de segurança requerem uma referência constante ao estado de exceção e, assim, no longo prazo, acabam sendo irreconciliáveis com a democracia. Em artigo recente, intitulado “Como a obsessão por segurança muda a democracia”56, Agamben reitera a perspectiva de que a relação entre segurança e exceção abala a democracia liberal. Segundo o autor, o rótulo da “segurança” acaba funcionando como um argumento de autoridade que, ao colocar uma questão acima do debate público, permite a adoção de medidas que anteriormente seriam inaceitáveis. Assim, Agamben afirma que, ao se colocar sob o signo da segurança, o Estado moderno fragiliza a democracia e se afasta do domínio da política, uma vez que democracia e vida política são, na tradição ocidental, sinônimos. 4 A Política Europeia para Refugiados e o Caso Italiano dos Centros de Detenção No contexto pós - Guerra Fria, a agenda de segurança internacional foi marcada por um movimento de expansão, com a inclusão de temas não-tradicionais ao rol das ameaças à segurança, como a degradação ambiental, o terrorismo e o movimento de refugiados. Neste mesmo cenário, as chamadas “intervenções humanitárias” atrelaram questões de assistência humanitária e, mais especificamente, de deslocamentos forçados, à manutenção da segurança internacional, o que ficaria evidenciado pelo crescente número de resoluções do Conselho de Segurança em relação à temática57. Assim sendo, verificou-se, neste contexto, a produção de um “continuum de securitizações” com o “uso cada vez mais constante das operações de paz da ONU e de organizações regionais como a União Africana para administrar guerras, genocídios e fluxos de refugiados”58. Novas preocupações e teorias acerca da segurança internacional emergiram, assim, como uma tentativa de alterar a ênfase dada no período da Guerra Fria à segurança estatal, situando-a na segurança do ser humano individual59. Alguns teóricos, como Buzan, pleitearam a ampliação da agenda dos estudos de segurança, a qual deveria abarcar outros fatores, além do aspecto militar, e novas ameaças, além daquelas advindas de outros Estados. Não foi desconsiderada, contudo, a relevância da segurança militar do AGAMBEN, Giorgio.‘Security and Terror’ 5(4) Theory & Event, 2001. Disponível em: http://muse. jhu.edu Acesso em: 12 jun. 2015. 56  AGAMBEN, Giorgio. Ibid, 2014. 57  MOULIN, Carolina. Ibid, 2012. 58  RODRIGUES, Thiago. Segurança planetária: entre o climático e o humano. Ecopolítica, São Paulo, n.3, p.5-41, 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015, p. 33. 59  RODRIGUES, Thiago. Op cit, p. 11. 55 

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Estado, mas houve a adição de novos elementos: Buzan adicionou elementos de ordem interna e externa às unidades políticas de modo a defender a posição de que a segurança das coletividades – organizadas politicamente em Estados – dependeria não apenas do fator que os realistas já haviam descrito (o militar), mas também de outros elementos menos tangíveis (como as tradições culturais de um povo) ou não limitáveis pelas fronteiras nacionais (como a questão ambiental)60.

Em âmbito europeu, a agenda de segurança também sofreu alterações significativas com a inclusão de temas e ameaças diversos, acompanhando a transformação do cenário internacional. A Estratégia Europeia de Segurança (EES) de 2003 entende que “atualmente é improvável que algum Estado-Membro venha a sofrer uma agressão em larga escala. Contudo, a Europa enfrenta agora novas ameaças que são mais diversificadas, menos visíveis e menos previsíveis”61. Este documento estabelece que, apesar da improbabilidade de uma agressão convencional contra um Estado membro da União Europeia, esta estaria vulnerável a ameaças não-convencionais e, portanto, mais difíceis de prever e combater. A União Europeia expande, assim, neste documento, o rol de ameaças à sua segurança, com a inclusão de questões como o tráfico transfronteiriço de pessoas, armas, drogas ilegais e migrantes. Dessa maneira, a securitização européia do refugiado passa por um processo mais amplo, que permite securitizar o próprio movimento migratório como um todo, criando o que a literatura chama de “fortaleza europeia”. Outro documento relevante, nos termos deste artigo, é o Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de Segurança: Garantir a Segurança num Mundo em Mudança, publicado no fim de 2008 e que apresenta uma análise da implementação da EES no período entre 2003 e 2008. Neste documento são estabelecidas, então, as principais ameaças com as quais a União Europeia se confrontaria, sendo possível depreender a inclusão do refugiado logo no início do documento, mesmo sem a referência explícita que adviria do emprego desta categoria: “Prosseguem os conflitos no Oriente Médio e noutras regiões do mundo, enquanto outros deflagram mesmo às nossas portas. A degenerescência de alguns Estados põe em causa a nossa segurança, ao alimentar a criminalidade, a imigração ilegal e, mai recentemente, a pirataria”62. Mesmo fazendo RODRIGUES, Thiago. Op cit. EUROPA. Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de Segurança: Garantir a Segurança num Mundo em Mudança. Bruxelas: 2008, p. 3. 62  EUROPA. Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de Segurança: Garantir a Segurança num Mundo em Mudança. Bruxelas: 2008, p. 1. 60  61 

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uso do termo controverso “imigração ilegal”, ao apontar para a falência de Estados e possíveis conflitos violentos em seu interior como fonte da imigração, o documento deixa transparecer a preocupação europeia com o fluxo de pessoas ou grupos em busca de refúgio, e não simplesmente de condições econômicas de vida melhores. Cabe ressaltar que, em documento mais recente, a União Europeia reafirma sua preocupação com a temática, ao afirmar que: “há que se prestar uma atenção especial aos chamados ‘Estados frágeis ou em situação de ruptura’ para que não se transformem em placas giratórias da criminalidade organizada e do terrorismo”63. A ESI de 2010 trata de maneira mais detalhada, então, dos riscos e ameaças à segurança europeia que podem advir da abertura das fronteiras e das sociedades em geral. Nesse contexto, o documento aponta que as graves formas de criminalidade organizada (que inclui a chamada imigração ilegal) assumem importância cada vez maior: “na sua diversa multiplicidade, tendem a surgir onde podem obter o maior benefício financeiro com o menor risco, independentemente das fronteiras”64. As questões de migração e refúgio passaram a ser tratadas, de fato, como problemas de segurança pelos Estados membros da União Europeia, ao lado do narcotráfico e do terrorismo, a partir do desenvolvimento do chamado Espaço Schengen65. Tendo em vista a supressão do controle de pessoas no cruzamento das fronteiras internas dos Estados europeus signatários do Acordo de Schengen, os fluxos migratórios tornaramse uma questão securitária, a ser tratada de maneira conjunta pela União. Este Acordo, que entraria em vigor apenas em 1999, tinha como objetivo suprimir gradualmente as fronteiras internas e, para tanto, seria preciso fortalecer as fronteiras externas, uma vez que “a abolição dos controles fronteiriços internos não poderia ser alcançada as expensas da segurança”66. Dessa maneira, o controle das fronteiras externas da União Europeia começa a ser estabelecido a partir de Schengen, permitindo o estabelecimento de regras comuns entre os Estados signatários para a concessão de asilo, cooperação policial e controle fronteiriço67. Desde então, os líderes europeus vêm criado, por meio de documentos e iniciativas oficiais, uma política europeia comum para tratar da concessão de asilo e da temática da imigração como um todo, estabelecendo normas mínimas comuns e sistemas informáticos para o armazenamento de dados. EUROPA. Estratégia de Segurança Interna da União Europeia: “Rumo a um modelo europeu de segurança”. Bruxelas: 2010. Disponível em: http://register.consilium.europa.eu/pdf/pt/10/st05/st05842-re02. pt10.pdf, acessado em 10 de Julho de 2015, p. 17. 64  EUROPA. Ibid, 2010, p. 5. 65  HUYSMANS, Jef. Ibid, 2006. 66  EUROPA; Schengen (Acordo e Convenção). 2014. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2015. 67  EUROPA. The Schengen area and cooperation. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. 63 

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A securitização europeia exerceu influência significativa sobre a política italiana, impulsionando sua transformação no que se refere aos temas da imigração e do refúgio: a integração efetiva da Itália ao Espaço Schengen foi efetuada apenas em 1998, quando a política migratória italiana tornou-se mais severa na regulamentação do ingresso e da permanência no país68. Nesse sentido, a partir da década de 1990, a Itália passa a adotar leis mais restritivas no tocante à imigração, além de estabelecer centros de detenção para imigrantes irregulares, refugiados e solicitantes de refúgio, o que permitiu sua efetiva participação no Espaço Schengen. 69Cabe ressaltar que, conforme afirma Garcia, apesar da nomenclatura oficial de tais centros (Centros de Permanência Temporária) remeter a espaços de acolhimento temporário, “eles funcionam como centros de detenção, nos quais os imigrantes, potenciais refugiados e solicitantes de refúgio são mantidos em confinamento até que seja concretizada sua expulsão/deportação”70. Esta perspectiva é reforçada pelos documentos e relatórios de diversas organizações internacionais, como Anistia Internacional, Médicos sem Fronteiras e HumanRightsWatch, os quais se referem a estes espaços como centros de detenção, principalmente após a realização de visitas in loco. A análise do processo de securitização em âmbito europeu torna-se essencial, assim, para a compreensão do caso italiano, uma vez que este processo exerceu influência significativa sobre as políticas implementadas pelo governo da Itália no tocante à imigração e ao refúgio. Tais políticas englobam acordos com Estados do norte da África, como a Líbia, para a construção de centros de detenção não apenas em território italiano, mas também fora dele. A escolha do caso italiano foi motivada, entretanto, pelo papel relevante que este Estado desempenha nos fluxos migratórios em razão de sua posição geográfica estratégica, isto é, como ponte entre a Europa e a África. Assim, tendo em vista sua localização, a Itália se torna destino em potencial não só para os refugiados, mas também para o imigrante econômico, o que faz com que esta temática ocupe lugar de destaque na política italiana. Por outro lado, esta escolha também foi influenciada pelos casos graves de falta de distinção, por parte do governo italiano, entre os solicitantes de refúgio e os imigrantes econômicos, o que tem levado à violação das leis internacionais e dos direitos dos refugiados, segundo organizações como a Anistia Internacional e o Human Rights Watch. Esta falta de distinção entre refugiados e migrantes econômicos estende-se aos centros de detenção, sendo alvo de inúmeros relatórios e debates das organizações humanitárias e agências da ONU, como o ACNUR71, GARCIA, Fernanda Di Flora. A exceção é a regra: Os centros de detenção para imigrantes na Itália. REMHU, Ano XXII, n.43, julho/dezembro 2014. 69  GARCIA, Fernanda Di Flora. Op cit. 70  GARCIA, Fernanda Di Flora. Op Cit., p. 242. 71  Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiado de 1951 (CR/51). Disponível em: . Acesso em: 08 jun. 2015. 72  De acordo com a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, o termo “refugiado” se aplica a toda pessoa que, por medo de perseguição, se encontra fora do seu país de nacionalidade e/ou residência, não podendo recorrer ao seu governo para garantir proteção. 73  Conforme afirma Arendt (2012), quando o Estado torna-se incapaz de prover uma lei para aqueles que perderam a proteção de seu governo nacional, há a transferência de poder para a polícia. Nesse sentido, a força e a independência policial cresceram de maneira proporcional ao influxo de refugiados, em um contexto que ameaça transformar gradualmente o Estado da lei em Estado policial, com o poder arbitrário e irrestrito da polícia sobre estas pessoas ou grupos (Arendt, op.cit.). 74  AGAMBEN, Giorgio. Ibid, 2000. 75  AGAMBEN, Giorgio. Op cit. 76  AGAMBEN, Giorgio. Op cit.

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campo consiste na materialização do estado de exceção e na consequente criação de um espaço onde a “vida nua77” tem lugar, é preciso admitir a existência do campo sempre que esta estrutura é montada, independentemente da natureza dos crimes cometidos na mesma78. A construção do refugiado como fonte de instabilidade e insegurança permite, assim, a compreensão das políticas de securitização em curso, principalmente nos países europeus, bem como a criação dos centros de detenção para imigrantes irregulares, potenciais refugiados e solicitantes de refúgio. Nesse cenário é possível não apenas compreender, mas também estabelecer a crítica ao movimento atual de perpetuação da prática política de construção do “campo”7980 e, com ela, da criação de verdadeiros espaços de exceção dentro dos países considerados futuros destinos de refúgio. A permanência, ainda que temporária, do refugiado e do solicitante de refúgio nos centros de detenção evidencia não apenas a perda de direitos específicos, mas a ausência de um Estado disposto a garantir novamente qualquer desses direitos. Os centros de detenção podem ser vistos, nesse sentido, como espaços de exceção818283 ainda que possuam caráter próprio e distinto dos campos que promoveram o extermínio sistematizado de categorias de seres humanos em “abstrata nudez”84. 5 Considerações Finais Tendo em vista as reflexões supracitadas, este artigo partiu da preocupação acerca do sujeito dos direitos humanos que, em meio à “velha trindade” Estado-povo-território, encontra-se desassistido e desprotegido por um sistema que vincula seu destino

A expressão “vida nua” é usada por Agamben (2007) para identificar a vida exterminável do homo sacer, isto é, aquela vida que pode ser eliminada por qualquer um, sem que isso signifique a perpetração de algum crime ou violação. Nesse sentido, o homo sacer pode ser compreendido como alguém que é forçosamente reduzido à “vida nua”, isto é, à vida não-política e não-social. O refugiado pode ser visto, assim, a partir desta perspectiva do homo sacer, ao entendermos que nos centros de detenção, nesses espaços considerados de exceção, ele foi reduzido à “vida nua”. 78  AGAMBEN, Giorgio. Ibid, 2000. 79  Conforme afirma Agamben (2000), os primeiros campos foram construídos na Europa como espaços para controlar refugiados e a sucessão de outros campos (de internamento, concentração e extermínio) representa uma filiação e reprodução daqueles primeiros. 80  AGAMBEN, Giorgio. Ibid, 2000. 81  AGAMBEN, Giorgio. Ibid, 2000. 82  GARCIA, Fernanda Di Flora. A exceção é a regra: Os centros de detenção para imigrantes na Itália. REMHU, Ano XXII, n.43, julho/dezembro 2014. 83  MIGGIANO, Luca. States of exception: securitisation and irregular migration in the Mediterranean. Geneva, n.177, 2009. Disponível em: Acesso em: 05 jun. 2015. 84  ARENDT, Hannah. Ibid. 77 

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àquele do Estado soberano85. Nesse sentido, a inquietação a respeito dos discursos e práticas políticas (e teóricas) que desconsideram a construção histórica dos fenômenos e estabelecem a imutabilidade e naturalidade da organização política estatal, baseada em noções clássicas de territorialidade, fronteira e soberania, impulsionou a análise rumo à identificação do tratamento concedido a pessoas e grupos para os quais a cidadania tem pouco ou nenhum significado. A partir deste cenário, os refugiados e imigrantes emergem como elementos extremamente relevantes para as Relações Internacionais, uma vez que questionam a organização atual do sistema moderno de Estados soberanos e representam suas limitações no tocante à segmentação, ordenação e governo das populações. Considera-se, por fim, a relevância desta reflexão tendo em vista o momento atual de recrudescimento dos fluxos migratórios, bem como das políticas de fechamento de fronteiras à mobilidade humana e que passam a excluir também o refugiado em potencial e o solicitante de refúgio, em desrespeito às normas internacionais firmadas justamente para sua proteção. A construção das comunidades políticas como sociedades de insegurança, abaladas pelo movimento de refugiados e migrantes, possibilita a reprodução e legitimação de espaços de exceção que são marcados por políticas disciplinares para contenção e controle desta categoria de “indesejáveis”. A construção do refugiado (e também do imigrante) como fonte de instabilidade e insegurança permite, assim, a compreensão das políticas de securitização em curso, principalmente nos países europeus, bem como a criação dos centros de detenção para imigrantes irregulares, potenciais refugiados e solicitantes de refúgio. O caso da Itália se destaca neste contexto tendo em vista, dentre outros fatores, o estabelecimento de uma série de acordos entre este país e a Líbia, os quais prevêem o financiamento para a construção dos centros de detenção em território líbio, “em um processo de externalização do controle”86 que busca impedir a saída dos imigrantes em direção à Itália (e à Europa, como um todo). Cabe ressaltar aqui que a Líbia é uma das principais rotas de passagem para os migrantes que desejam chegar à Europa, ao passo que não é um Estado signatário da Convenção de 51 e do Protocolo de 67 que estabelecem normas de proteção aos refugiados. As práticas securitárias contemporâneas têm se transformado, assim, em uma técnica de governo normal e permanente que faz referência constante a políticas de exceção, que não representam uma regressão a um passado autoritário, mas sim uma fase nova e extrema das políticas de segurança produzidas pelas democracias liberais87. É nesse sentido, então, que Agamben reafirma a perspectiva de que a política contemporânea tem transformado uma medida provisória e excepcional em um paradigma de 85  86  87 

ARENDT, Hannah. Op Cit. DA CUNHA, Higor Hebert França. Ibid. AGAMBEN, Giorgio. Ibid, 2000.

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governo. Nesse contexto, o estado de exceção teria se tornado a regra (Benjamin apud Agamben)88, legitimando o arbítrio do Estado contra o cidadão. As medidas excepcionais passam a ser acionadas no combate ao inimigo interno, no quadro de guerra contra a chamada imigração irregular que, conforme visto, afeta também pessoas ou grupos em busca de refúgio, permitindo a violação de seus direitos, a violência estatal e o arbítrio policial: perpetua-se, assim, a prática política de construção do “campo”89 e, com ela, da criação de “espaços de exceção” dentro dos países considerados futuros destinos de refúgio e proteção. Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Means without End Notes on Politics. In: BUCKLEY, Sandra et al. (Org.). Theory of Bounds. Londres: University of Minnesota Press, 2000. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. _______________.‘Security and Terror’ 5(4) Theory & Event, 2001. Disponível em: http://muse. jhu.edu Acesso em: 12 jun. 2015. _______________. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. _______________. Como a obsessão por segurança muda a democracia. Le Monde Diplomatique Brasil, janeiro 2014. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568 Acesso em: 06 jun. 2015 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. BARBOSA, Luciana Mendes; SOUZA, Matilde de. “Securitização das Mudanças Climáticas: O Papel da União Europeia”.Contexto Internacional, vol. 32, n. 1, janeiro/junho 2010. BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2011. BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap de. Security: A New Framework for Analysis. Boulder and London: Lynne Rienner Publishers, 1998. DA CUNHA, Higor Hebert França. Quem é Bem-Vindo? A Securitização da Migração e o Papel da União Europeia e da Itália. Revista Ambivalências, vol.2, n.4, julho/dezembro 2014. EDJUS, Filip. Dangerous Liaisons: Securitization Theory and Schmittian Legacy. Western Balkans Security Observer, n. 13, abril/junho 2009. GARCIA, Fernanda Di Flora. A exceção é a regra: Os centros de detenção para imigrantes na Itália. REMHU, Ano XXII, n.43, julho/dezembro 2014. 88  89 

AGAMBEN, Giorgio. Op cit. AGAMBEN, Giorgio. Op cit.

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REFUGIADOS NO MEDITERRANEO E O DIREITO INTERNACIONAL: “Controlo migratório de oriundos de África” Patrícia Susana Baía da Costa Colaço Machado e Jorge1 RESUMO: Nos últimos anos, a situação dos migrantes e refugiados no Mediterrâneo tornou-se mais crítica. Possibilidades de entrar legalmente no território da União Europeia tornaram-se mais restritivas na sequência da implementação do acordo de Schengen e novos regulamentos de visto para os cidadãos estrangeiros da UE na região mediterrânica. Rotas migratórias irregulares em todo o mar Mediterrâneo, a partir do continente Africano para a Europa, têm sido objeto de controlos reforçados. Países europeus, localizados nas fronteiras externas, reforçaram a sua cooperação com os países terceiros de origem e de trânsito a fim de reduzir a migração não autorizada. Acordos de Schengen e outros instrumentos jurídicos adotados pela União Europeia (UE), para garantir a livre circulação no território dos Estados-membros, estão especificamente ligados ao controlo fronteiriço externo e ao seu reforço para prevenir, controlar e punir a migração irregular para a União. Procuraremos dar enfoque ao reconhecimento da insuficiência dos Estados para conter os movimentos transnacionais e a fragilidade das fronteiras externas. Neste sentido, é necessário identificar os motivos pelos quais o direito internacional dos refugiados, assente no seu princípio fundamental de non refoulement, que impede o refugiado ou migrante, da sua repatriação para o Estado de origem, pode ser alvo de uma perspetiva critica. Referimo-nos às operações de rechaço designadamente de quem viaja da África Subsaarina e Norte de África para países da União Europeia. Analisa-se os direitos humanos e de como todos podem ter direito a permanecer no território do Estado onde se procuraram acolher, independentemente das razões que os motivaram, seja guerra ou pobreza extrema. Palavras-chave: Controle Migratório; União Europeia; África, Migrações Irregulares; Refugiados. ABSTRACT: In the past few years, the situation of migrants and refugees in the Mediterranean has become more critical. Possibilities to legally enter the territory of the European Union have become more restrictive following the execution of the Schengen agreement and new visa regulations for foreign nationals EU in the Mediterranean region. Irregular migration routes across the Mediterranean sea, from the African continent to Europe, have been subjected to rigorous checks. European countries, located at the external borders, strengthened their cooperation with third countries of origin and transit in order to reduce unauthorized migration. Schengen Agreements and other legal instruments adopted by the European Union (EU), to make sure free movement within the territory of the member States, are specifically linked to outer border control and strengthening it to prevent, control and punish irregular migration to the Union. We will try to focus on the recognition of the failure of states to contain the transnational movements and the weakness of external borders. That being the case, it is necessary to acknowledge the reasons why the international law of refugees based on its fundamental principle of non-refoulement, which prevents a refugee or migrant, their repatriation to the State, may be the subject of a critical perspective. We refer to the rejection of these operations (“push-back operations”), designating those traveling African sea rotes to countries of the European Union. It analyzes the human rights of refugees and how everyone can have right to stay in the national territory where it looks to receive, regardless of the reasons that motivated them, whether it be war or extreme poverty. Keywords: Migration control; European Union; Africa; Irregular Migration; Refugees. 1  i) Advogada; ii) Mestre na área de ciências jurídico-forenses pela faculdade de Direito da Universidade de Coimbra com a especialidade de Direito Administrativo do Território. Atualmente doutoranda em Direito Púbico na faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; iii) email: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO O trabalho em apreço procura analisar a problemática das migrações clandestinas internacionais2, mais concretamente as advindas por mar de África e os diversos mecanismos adotados pela União Europeia para o seu controlo e prevenção. De entre os vários tipos de migrações “consequência do mundo global” interessa-nos para o caso, não identificar os vários perfis migratórios, mas em concreto as migrações clandestinas ou ilegais feitas através do Mediterrâneo. O movimento migratório e as suas complexas interações têm-se vindo a alterar ao longo da nossa história, e reflexo disso são as migrações internacionais que surgem como um fenómeno global que compromete cerca de 232 milhões3 de indivíduos. Como refere a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico4 (OCDE) no seu relatório de 2013 sobre as migrações internacionais, o fluxo migratório deixou de se centrar unicamente no fator trabalho para passar ao objetivo de proteção da vida e integridade física, por ordem de motivos ponderosos ligados a perseguições, conflitos armados e pobreza extrema, e por isso casos de vulnerabilidade e ofensa à dignidade humana. As migrações clandestinas ou ilegais5 são aquelas que se focam nos fluxos migratórios para além das fronteiras nacionais implicando a violação das premissas legais de imigração do país de destino6. Um migrante ilegal pode ser classificado tanto como um 2  Abreu, Alexandre, em AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E O DESENVOLVIMENTO DOS PAÍSES DE ORIGEM - Impactos e Políticas, Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e Cooperação Internacional, apresentada à Universidade Técnica de Lisboa, 2006, pág. 17-20. 3  Em 2013, cerca de 232 milhões de pessoas eram migrantes internacionais”, mais de 41 milhões relativamente aos dados de 2005, que apresentava 191 milhões de indivíduos migrados. Cf. Informação em Migrações Internacionais: Factos e Dados Estatísticos disponível em Centro Regional das Nações Unidas Observatório da Língua Portuguesa, em http://www.observalinguaportuguesa.org/pt/dados-estatisticos/paises-cplp_linguas/fluxos-migratorios,; Estatisticas dos Movimentos Migratórios – Relatório do Movimento Migratório do Conselho Superior de Estatística, março de 2006; E, United Nations (2013a), “International Migration 2013: Migrants by origin and destination”, Population Facts, Department of Economic and Social Affairs, Population Division, Nº 3/2013Setembro http://www.un.org/en/development/desa/population/publications/pdf/migration/migrationreport2013/Full_Document_final.pdf 4  Migração Mundial em Números Uma contribuição conjunta do UNDESA e da OCDE para o Diálogo de Alto Nível das Nações Unidas sobre Migração e Desenvolvimento, 3 e 4 de outubro de 2013. Disponível em http://www.oecd.org/els/mig/PORTUGUESE.pdf; e International Migration Outlook 2013, disponível em http://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/ international-migration-outlook-2013_migr_outlook-2013 5  Matos, Fátima Loureiro, em A Diretiva “Retorno” (Diretiva 2008/115/CE), Custos e benefícios para uma política comum de imigração, págs.61-90. 6  Direito Internacional da Migração – Glossário sobre Migração, ed. Organização Internacional das Migrações, n.º 22, 2009, pág. 40; e Ferraz, Bárbara Ferreira Costa - A Europa e os Migrantes do Século XXI, trabalho realizado no âmbito da unidade curricular de fontes de informação sociológica, referente à Licenciatura em Sociologia, entregue à faculdade de Economia de Coimbra, 2012/2013, págs. 2-4.

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individuo estrangeiro que passa ilegalmente uma fronteira politica, por terra, ar ou mar7 sem o conhecimento e autorização das autoridades administrativas8 do país, como um estrangeiro que tendo entrado legalmente num pais, tenha aí permanecido para além da data prevista no visto. É um fenómeno de há muito conhecido na fronteira sul dos Estados Unidos com o México9 e tem-se deparado com trágicos desenvolvimentos na fronteira sul da Europa com o Mediterrâneo. Nas ondas de choque da crise económica mundial que se estendeu dos Estados Unidos (EUA) à Europa a partir de 2008, e que fez aumentar o desemprego nos EUA e na União, até às revoltas da Primavera Árabe no norte de África e na península Arábica, a partir de janeiro de 2011 e com as instabilidades que se seguiram, originou-se um fluxo inesperado de árabes e africanos que fugiam de conflitos da Líbia e da Síria, do Iémen, do Iraque e doutros países. A grande massa de refugiados tentou os países vizinhos, e outros tantos tentaram seguir para a Europa. A este nível o ano de 2014 tornou-se particularmente agitado no plano de grandes desafios para a UE e a nível internacional. Milhões de pessoas destas sub-regiões tiveram que fugir devido aos atos de guerra praticados, entre outros, pelo regime de Bashar Al Assad e pelo Daesh/ISIL (exercito islâmico do Iraque e do Levante), e há a necessidade de assistência aos povos refugiados. Conforme o artigo 1º, n.º 2, da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados refugiado será “aquela pessoa que se encontrando fora do país, da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, tem o fundado receio de ser perseguida em virtude da sua etnia, religião, nacionalidade, filiação em determinado grupo social ou das suas opiniões políticas e que não pode ou não quer a proteção desse país, assim como aí regressar, devido ao medo da perseguição”. O cenário de carência acentuou-se pelo ressurgir dos conflitos na Faixa de Gaza que eliminou meios de sobrevivência e destruiu infraestruturas já existentes, enquanto o Líbano subsiste num regime enfraquecido e em risco pela ausência de instituições públicas eficientes. A proveniência e o número de migrantes e refugiados clandestinos por via marí7  “Mar territorial: Para além da superfície terrestre, em sentido amplo, o território de um Estado inclui ainda o mar territorial, sendo que (…) a jurisdição de um Estado pode ir mesmo além do mar territorial.” Cf. Machado. Jonatas. E. M. - Direito Internacional. Do Paradigma Clássico ao Pós-11 de Setembro, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2013. 8  Ver Conselho da União Europeia, 2005, ponto 21. 9  Do outro lado da Atlântico, fronteira terrestre que separa o México dos Estados Unidos. Esta fronteira com 3.185 km de comprimento e fez aumentar a imigração ilegal mexicana. O total de mortes registadas na rota marítima México-Estados Unidos (E.U.A) tem crescido exponencialmente, enquanto na Austrália, de igual forma se observa um número avultado de refugiados que aí foram acolhidos, vindos do Afeganistão e Iraque

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tima para a Europa de acordo com a Frontex10, comprova para além das razões enunciadas, que as manifestações nos países muçulmanos atribuídas à Primavera Árabe, acentuaram em 80% a percentagem de imigração ilegal para a Europa11 em razão de guerra, dos conflitos internos, dos regimes autoritários, da insegurança ou discriminação por motivos de raça, origem étnica, cor, religião, língua ou opiniões políticas, fatores que contribuem para o fluxo migratório mundial e em particular o clandestino12. Neste contexto, o debate aqui proposto perspetiva-se no sentido de argumentar que não obstante o direito dos Estados ao controlo das suas fronteiras como legitima parte da sua soberania13, a prática vem demonstrando que são incapazes de controlar, e muito menos de eliminar, a imigração ilegal, mesmo com a evolução das políticas e quadros normativos. A União deve entender que o controlo de fronteiras não deve prejudicar a obrigação da UE e dos seus Estados-membros em fazer respeitar os direitos humanos. No mais curto prazo, a União Europeia deve ter dois objetivos fundamentais: a eliminação da morte no mar, tanto quanto possível, e a longo prazo limitar a migração irregular através do Mediterrâneo. Com este trabalho, procuraremos abordar as dimensões culturais, políticas e jurisprudenciais, relativas às práticas extremas dos Estados europeus quanto ao controlo fronteiriço externo das imigrações ilegais. Sugere-se a apreciação analítica dos fluxos migratórios clandestinos nas rotas marítimas, relatando por isso alguns acontecimentos mais recentes e trágicos, políticas e práticas fronteiriças relacionadas com a proteção internacional da migração por força de motivos ponderosos ligados a perseguições e casos de maior vulnerabilidade e ofensa à dignidade. 2 Tragédia no Mediterrâneo

2.1 Mortes de imigrantes na rota do Mediterrâneo entre a África e Lampedusa, Sícilia e Malta: acontecimentos relevantes, teorias, discursos, fronteiras e políticas migratórias no Mare Nostrum 2.1.1 Acontecimentos trágicos recentes Arias Fernández, G., “Frontex and Illegal Immigration in the European Union”, in J.M. Sobrino Heredia (ed.), Sûreté Maritime et Violence en Mer = Maritime Security and Violence at Sea, Bruxelles, Bruylant, 2011, pp. 29-46. 11  http://expresso.sapo.pt/actualidade/primavera-arabe-aumentou-imigracao-ilegal=f683261. 12  TRANSATLANTIC TRENDS: MOBILITY, MIGRATION AND INTEGRATION KEY FINDINGS FROM 2014 AND SELECTED HIGHLIGHTS FROM TRANSATLANTIC TRENDS AND TRANSATLANTIC TRENDS: IMMIGRATION 2008-13, Transatlantic Trends 2014 Partners, pág. 5. 13  Reis, Rossana Rocha, “Soberania, Direitos Humanos e Migrações Internacionais, Revista Brasileira de Ciências Sociais, VOL. 19 Nº. 55, Junho de 2004, pág. 150. 10 

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a) Mar Mediterrâneo 10 de outubro de 2013: A ilha italiana de Lampedusa fica tão longe da Europa Continental que muitas vezes não aparece nas previsões do tempo nem consta dos mapas de Itália. Está a pouco mais de 100 km da Tunísia e a menos de 300 km de Tripoli – capital da Líbia, mais próxima de África do que da Europa.

Fonte: Pushed Back, Pushed Around- Human Rights Watch14

Uma jangada de terra no Mediterrâneo com 20 km2, 6 mil habitantes e dois cemitérios, um para pessoas e outro para os barcos que nas últimas duas décadas chegaram sobrelotados de sobreviventes e aí permanecerão intocados com tudo o que foi deixado para trás por quem tinha pressa de chegar. A 10 de Outubro de 2013, um barco de pesca proveniente da Líbia sobrelotado com 518 pessoas, estando a escassos metros da costa de Lampedusa viria a naufragar depois de um incêndio a bordo. A maior parte dos passageiros viajava no porão e não conseguiria salvar-se. Os 366 mortos não couberam no cemitério local, sendo que 153 náufragos sobreviveram. Cada passageiro pagou em média 1500 euros pela travessia. Sinais de tortura eram evidentes e muitos dos corpos resgatados do mar de Lampedusa seriam, na sua maioria, refugiados da Eritreia. A polícia italiana concluiu que à chegada à Líbia muitos tinham sido resgatados por milícias mantendo-os durante longos meses em campos de concentração improvisados, até que as famílias conseguissem enviar dinheiro para pagar o resgate e a travessia. Foram sujeitos sobretudo as mulheres, a espancamentos, abusos e violações. Das 80 mulheres que conseguiram pagar a viagem, apenas 4 sobreviveram. O grande naufrágio de Lampedusa e as críticas à passividade da guarda costeira italiana levaram o governo de Roma a lançar no final de 2013 a operação Mare Nostrum: durante um ano a marinha da Itália patrulhou de forma intensa o Mediterrâneo, centenas de barcos a caminho das ilhas italianas e de Malta foram intercetados e milhares de vidas foram salvas. As pessoas resgatadas passaram a ser encaminhadas para longe 14 

Disponível em http://www.hrw.org/sites/default/files/reports/italy0909web_0.pdf

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de Lampedusa mais concretamente para centros de receção e acolhimento na Sicília. No dia 1 de Novembro de 2014 a Mare Nostrum deu oficialmente lugar a uma operação da União Europeia de menor envergadura coordenada pela agência de controlo de fronteiras. O navio português “Viana do Castelo” seria então integrado na missão juntamente com elementos do SEF. Este navio português era o que estava mais próximo da embarcação de onde foi lançado o pedido de socorro, através de um telefone satélite junto à costa Líbia, naquele fatídico 10 de outubro de 2013; b) Mar Mediterrâneo 18 de abril de 201515: O naufrágio de uma traineira fez disparar o número de mortos e cerca de 700 a 900 pessoas terão perdido a vida ao largo da costa da Líbia (entre esta e a ilha italiana de Lampedusa). Durante as operações de salvamento foram resgatados apenas 28 sobreviventes. O acontecimento trágico terá ocorrido quando um navio porta-contentores, com bandeira de Portugal, se aproximou para resgatar os migrantes a pedido das autoridades italianas que, por sua vez, tinham recebido um pedido de auxílio devido a “problemas de navegação” pouco depois da meia noite de domingo. Na tentativa de se posicionarem para serem salvos pela tripulação do portacontentores “King Jacob”, os migrantes que tentavam chegar à Europa dirigiram-se para um dos lados da embarcação que adornou, acabando por caírem ao mar, tal como informou Carlotta Sami, porta-voz da Agência da ONU para os refugiados no Sul da Europa. 2.1.2 Reações institucionais aos factos ocorridos Os naufrágios durante operações de resgate são comuns, disse à BBC Mark Micallef, repórter do jornal Times of Malta.” Este cenário já aconteceu vezes sem conta. As embarcações viram-se no momento em que vai começar um resgate.” De igual forma John Dalhuisen, responsável da Amnistia Internacional na Europa e na Ásia Central, apontou as falhas relativas à falta de meios e referiu que tinha chegado a hora de os governos europeus “enfrentarem as suas responsabilidades”. “Os navios da marinha mercante e as suas tripulações têm tentado preencher, de forma muito corajosa, os buracos deixados pela falta crónica de equipas de busca e salvamento especializadas, mas não foram construídos, nem estão equipados nem treinados para resgates marítimos. Chegou a hora de os governos europeus enfrentarem as suas responsabilidades e lançarem uma operação humanitária para salvar vidas no mar”, disse Dalhuisen. 15  http://www.publico.pt/mundo/noticia/novo-naufragio-no-mediterraneo-pode-ter-feito-centenas-demortos-1692897fenomeno

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Em entrevista à TVI 24, o porta-voz da Marinha, comandante Paulo Vicente, refere que o navio “King Jacob” participou nas operações de resgate independentemente de não ter conhecimento da nacionalidade dos tripulantes. O porta-contentores estava a navegar na zona do naufrágio, tendo sido contactado pelo Centro Coordenador de Buscas e Salvamentos Marítimos de Itália para prestar assistência. Matteo Renzi – Primeiro-ministro italiano refere que “O facto de haver uma escalada nestas viagens de morte é sinal de que estamos em presença de uma organização criminosa”. O porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) Adrian Edwards diz que “Fundamentalmente a questão é como impedir que tanta gente morra. Salvar vidas, é a necessidade mais urgente, agora”. Em 2014, estima-se que nas travessias de África para a Europa tenham perdido a vida cerca de 3500 pessoas e que em 2015 com o início da guerra na Síria e a instabilidade na Líbia o número de pessoas que tenta a travessia de África para a Europa não pare de aumentar. A Itália é a porta de entrada para a maioria. 3 Perspetiva crítica das políticas de controlo da imigração16 da União Europeia

3.1 Reforço de fronteiras e opção por rotas da morte O volume crescente das migrações internacionais no âmbito da globalização17 fez aguçar obrigatoriamente a destreza dos Governos da União Europeia no desenvolvimento de políticas de imigração comum18, cujas bases radicam precisamente nas imigrações legais e ilegais, para além das relações com países terceiros. Desde os anos 1990, os Estados europeus têm respondido às migrações irregulares com o controle de fronteiras. Para contrabalançar a abolição das fronteiras internas introduzidas no espaço Schengen, foram estabelecidas as chamadas medidas “compensatórias” e de cooperação que visavam melhorar a coordenação entre a polícia e as autoridades judiciárias, a fim de Paollo, Cuttitta, em, Segnali di Confine: Il Controllo dell’Immigrazione nel Mondo-Frontiera, Milano, Mimesis, 2007, http://www.altrodiritto.unifi.it/frontier/storia/segnali.pdf; e artigo de Carmen, Pérez González, em “ Migraciones Irregulares y Derecho Internacional-Geston de los flujos migratorios, devolution de extranjeros en situación administrativa irregular y Derecho Internacional de los Derechos Humanos”, 2012. 17  Artigo de Correia, Theresa Rachel Couto, em “Globalização, Migração Internacional e Direitos Humanos”, trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo SP em novembro de 2009. 18  Artigo de Lopes, António Figueiredo, Ministro da Administração Interna do XV Governo Constitucional, em “ Políticas de imigração e asilo num Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça”, pág. 87.; Cf. Ponto 11 das Conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 1999. 16 

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salvaguardar a segurança interna e para combate ao crime organizado. O Espaço Schengen19 sem fronteiras, garantia a livre circulação de mais de 400 milhões de cidadãos da UE bem como para muitos cidadãos não comunitários e, no que diz respeito a questões de migração, a principal medida incluía a abolição dos controles nas fronteiras internas da União, enquanto apertava os controles nas fronteiras externas, em conformidade com um único conjunto de regras. A especial importância do papel do Acordo Schengen20 (…) traduz-se na sua aplicação nas fronteiras da União Europeia, tendo como objetivos a formulação de uma política única de atribuição de vistos, o combate à imigração ilegal, a criação de um ficheiro informático Schengen, a coordenação da concessão de asilo e a cooperação aduaneira, policial e judiciária. Este acordo seria integrado mais tarde na União Europeia por um protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão21. Todavia, se havia alternativas com o espaço Schengen, outros Estados vincaram a sua soberania com o reforço das fronteiras terrestres22. Na Europa, para impedirem a entrada de migrantes, sucederam-se os exemplos: decisão da Bulgária de construir um muro de 30 quilômetros de comprimento e 3 metros de altura na sua fronteira com a Turquia; da Grécia em acabar com a sua fronteira com a Turquia (muro de 12,5 quilômetros, também nesta fronteira); a Espanha que criou campos armados nos seus enclaves no Norte da África e patrulhas no Estreito de Gibraltar. Todos estes fatores contribuíram para que os migrantes ilegais23 se vissem cada vez mais coagidos a enveredar por rotas mais perigosas para chegar aos países de destino europeus, tornando o Mediterrâneo a via óbvia e alternativa única para entrar na Europa. Neste contexto, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), refere

Ver Porto, Manuel Lopes e Anastácio, Gonçalo, em “Tratado de Lisboa” anotado e comentado, Edições Coimbra Almedina, 2012, págs371-373; e, Machado, Jónatas E. M., em “Direito da União Europeia”, Edições Coimbra Editora, 2.ª Edição, outubro de 2014, págs. 18-55. 20  Machado, Jónatas E. M., em Direito da União Europeia, ed. Coimbra Editora, 2.ª Edição, outubro de 2014, págs. 20-21. 21  Ver Título III-A da Parte III do Tratado de Amesterdão, relativo a Vistos, Imigração e outras Políticas Relativas à Livre Circulação de Pessoas, artigo 73.º-I. 22  Frontex Annual Risk – Analyses 2014. págs. 6-10. http://frontex.europa.eu/assets/Publications/Risk_ Analysis/Annual_Risk_Analysis_2014.pdf 23  Peeren, Esther, Refocalizing Irregular Migration, New Perspetives on the Glogal Mobility Regime in contemporary Visual Culture, do livro do Livro The Irregularization of Migration in Contemporary Europe, Detention, Deportation, drowning, ed. Yolande Jansen, Robin Celikates and Joost de Bloois, 2015, pág 173- 176. 19 

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que chega a 900 o número de mortos24 na travessia do mar Mediterrâneo25, rota usada por migrantes ilegais africanos que tentam chegar às ilhas de Lampedusa, Sicília e Malta, no sul da Europa, e são consideradas, desde 2005, as mais dramáticas em comparação com os números globais das outras regiões da Europa, conforme os dados que mais abaixo indicaremos. Concluímos daqui, que uma política baseada na eliminação dos controlos nas fronteiras26, cuja finalidade é garantir a liberdade de circulação interna, vem acessoriamente assegurar uma circulação facilitada aos agentes do crime organizado, e dentro destes, às redes de tráfico de pessoas migrantes. Este sistema normativo na sua função acessória acaba por limitar o exercício dos direitos dos migrantes ilegais, tendo uma consequência grave no direito internacional.

3.2 Dados Estatísticos Durante o primeiro semestre de 2011 o principal destino foi a ilha italiana de Lampedusa, onde chegaram mais de 50 mil migrantes clandestinos27 (a maioria da Líbia), número que foi considerado recorde absoluto desde a entrada em vigor dos controlos de fronteira na União Europeia. O deslocamento forçado nos últimos 25 anos 1998-201328 (cf. gráfico 1) representa valores na ordem dos 51,2 milhões de pessoas deslocadas à força no mundo inteiro como resultado de perseguição, conflitos, violência generalizada e violações dos direitos humanos, número atualizado para 60 milhões pelo Secretário-geral do ACNUR em junho de 2015. No período de 2008 a 2013 (cf. “O número de mortes vem crescendo porque as fronteiras europeias são cada vez mais vigiadas”, disse à BBC Brasil Jumbe Omari Jumbe, porta-voz da OIM. O porta-voz da OIM afirma ainda que o número de mortes de imigrantes que atravessam o Mediterrâneo para entrar na Europa vem crescendo desde a criação da Agência Europeia para a Gestão da Cooperação Operacional às Fronteiras Externas (Frontex), que acabou reforçando o controle nas fronteiras europeias. 25  Biga, Didier, em artigo Varieties of Irregularization - Death in the Mediterranean Sea: The Results of the Tirree Fields of Action of European Union Border Controls do Livro he Irregularization of Migration in Contemporary Europe, Detention, Deportation, drowning, ed. Yolande Jansen, Robin Celikates and Joost de Bloois , Londres, 2015, pág. 55. 26  Ferreira, Susana Raquel de Sousa, em A política de imigração europeia: instrumento da luta antiterrorista? Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Março de 2010, pág. 3. Disponível em http://run.unl.pt/bitstream/10362/5703/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf ; e Baldaccini, A., “Extraterritorial Border Controls in the EU : the Role of Frontex in Operations at Sea”, em B.Ryan and V. Mitsilegas (eds.), Extraterritorial Immigration Control : Legal Challenges, Leiden, Nijhoff, 2010, pp. 229-255. 27  Bruycker, Philippe De, Bartolomeo, Anna Di and Fargues, Philippe, em “Migrants smuggled by sea to the EU: facts, laws and policy options”, Migration Policy Centre (MPC), RSCAS, European University Institute (EUI, Florence), Research Report 213/0, págs. 3 e ss. E, http://www.consilium.europa.eu/uedocs/ cms_data/docs/pressdata/en/ec/139197.pdf 28  http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/estatisticas/ 24 

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gráfico 2), os migrantes clandestinos por via marítima para a UE foram principalmente os nacionais de países da África Subsaariana (32%), Tunísia (25%), da Síria (7%) e do Afeganistão (4%). Em 2014, 276 113 imigrantes entraram na UE de forma irregular, o que representa um aumento de 138% em relação ao mesmo período de 201329. Apenas quatro países - Nigéria, Somália, Síria e Afeganistão estão no topo dos 10 países de origem de requerentes de asilo na UE e como migrantes clandestinos por via marítima para a Itália (cf. gráfico 3). Quase metade da população síria30 tem sido deslocada desde o início da guerra civil em 2012. Para a Europa estima-se que futuramente a percentagem de migrantes clandestinos seja de 4,5 a 8 milhões advindos de países terceiros31. Gráfico 1 - Migração irregular nas rotas marítimas para a UE, 1998-2013

Fonte: European University Institute Florence, Italy32

http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/what-we-do/policies/irregular-migration-return-policy/ index_en.htm. 30  Içduygu, Ahmet, em “Syrian Refugees in Turquey: The Long Road Ahead” pdf.– A Project of the Migration Policy Institute, abril 2015, págs. 2-5. Atualmente a Turquia abriga a maior comunidade mundial de sírios deslocados pelo conflito em curso no seu país. De acordo com estimativas das Nações Unidas, a população refugiada síria na Turquia já atingiu 7,6 milhões de deslocados internamente e cerca de 3,5 milhões de refugiados que atravessaram o mar para a Turquia em meados de março de 2015. Ver também Syria Regional Refugee Response – Inter-agency Information Sharing Portal em http://data. unhcr.org/syrianrefugees/regional.php 31  Matos, Fátima Loureiro, em “A Diretiva Europeia “Retorno” (Diretiva 2008/115/CE). Custos e benefícios para uma política comum de imigração”, pág. 3, disponível em http://www.cegot.pt/Files/Downloads/ Documentos-Publicos/Publicacoes/Grupo-2/B%20-%20Internacional/3%20-%20AtasEncontrosCientificos/17.pdf 32  Triandafyllidou, Anna, em “Muiti –levelling and externalizing migration and asylum: Lessons from the southern European Islands”, Island Studies Journal, Vol. 9, N.º 1, 2014, págs. 7-22. Disponível em http:// www.islandstudies.ca/sites/islandstudies.ca/files/ISJ-9-1-Triandafyllidou.pdf 29 

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Gráfico 2 - Chegadas por Mar a Itália e Requerentes de Asilo na União Europeia de 2008-2013 (valores em %)

Gráfico 3 – Nacionalidades de Requerentes de Asilo

4 Análise do princípio do non refoulement no processo de controlo migratório: direito à vida e à integridade física

4.1 Princípio do Non Refoulement Uma das questões mais prementes que se pode apontar às operações de controlo migratório nas fronteiras externas dos territórios dos países africanos é a que concerne ao princípio da não devolução. Este princípio encontra assento expresso no Direito Internacional (Jus Cogens), prevê a obrigação de todos os Estados consagrarem, garantirem e protegerem os direitos humanos de todos os indivíduos que se encontrem sob a sua jurisdição, sejam eles cidadãos nacionais, ou cidadãos de países estrangeiros – incluindo migrantes - independentemente do seu estatuto, bem como refugiados, e proíbe a transferência de uma pessoa para um país onde existam razões de acreditar que será sujeita a tortura ou a tratamentos e penas cruéis, desumanos ou degradantes. Foi

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oficialmente consagrado na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (CRSR) em 195133 e por força da sua origem jusinternacional “non refoulement” e de acordo com o artigo 19.º, n.º 2 da CDFUE, “ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, tortura ou a outros tratos ou penas desumanas ou degradantes” Mais recentemente o costume e o direito do mar foram acatando o princípio de não repulsão. A CRSR fornece a base para o tratamento de refugiados, e o seu artigo de maior relevância é o artigo n.º 33.º, n.ºs 1 e 2 que refere: 1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou reconduzirá (‘refouler’) um refugiado sob qualquer forma, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, pertença a um determinado grupo social ou opinião política. 2. O benefício da presente disposição não poderá, no entanto, ser invocado por um refugiado sobre o qual existam motivos razoáveis ​​para considerar haver perigo para a segurança do país de onde ele é, ou que, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado de um particular crime grave, represente um perigo para a comunidade desse país “. As pessoas socorridas que não cumprem os critérios da definição de refugiado da Convenção de 1951, mas que temem a tortura ou outras violações graves dos direitos humanos ou que fogem de conflito armado, também podem ser protegidas do retorno para um lugar particular, por outros direitos humanos internacionais ou regionais, ou por instrumentos jurídicos do direito dos refugiados. A Convenção ao estabelecer esta proibição, remete-nos para a obrigação de não devolver uma pessoa quando houver razões substanciais para acreditar que existe um risco real de dano irreparável de violação dos direitos humanos internacionais (ex. os artigos 6º e 7º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966). A Convenção de 1984 contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes34, também proíbe explicitamente devolver quando houver razões substanciais para crer que a pessoa esteja em perigo de ser sujeito a tortura. Também a Convenção da Organização de Unidade Africano (OUA) de 1969, que rege os aspetos específicos dos problemas dos refugiados em África, proíbe a devolução a um território onde a vida de uma pessoa, a sua integridade física ou a sua liberdade Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 28 de Julho de 1951, das Nações Unidas. http:// www.refworld.org/docid/3be01b964.html. 34  Artigo 3.º, paragrafo 1 da Convenção de 1984 contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, também proíbe explicitamente devolver quando houver razões substanciais para crer que a pessoa esteja em perigo de ser sujeito a tortura. No contracting Party shall expel, return (“refouler”) or extradite a person to another State where there are substantial grounds for believing that he would be in danger of being subject to torture’ : http://www.refworld.org/docid/3ae6b3a94.html 33 

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possam ser ameaçadas por causa de perseguição, agressões externas, ocupação, domínio estrangeiro ou outra perturbação grave. 4.1.1 CRSR sobre a aplicação territorial de não repulsão As competências de jurisdição de um Estado são geralmente territoriais considerando estas num plano do direito internacional público35. No entanto, o direito internacional também concede alguma derrogação a esta regra. Em algumas situações específicas, as habituais disposições de direito e tratados internacionais têm reconhecido como competência de um Estado o exercício extraterritorial36. Dentro da zona do mar territorial o Estado costeiro exerce uma soberania37 sujeita aos requisitos de passagem inofensivos. Nos termos do artigo 3.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), cada Estado tem o direito de fixar a largura do seu mar territorial até um limite não superior a 12 milhas náuticas38. É importante mencionar que só nos estamos a referir ao mar territorial do país de destino. Procedimentos em águas territoriais do país de partida não serão discutidos. O que interessa analisar são concretamente as ações a realizar para impedir os navios de entrar no mar territorial de um Estado ou de redirecionar os navios que já estão nesta área. Os Estados costeiros têm o direito de regular as atividades de migração nas suas águas territoriais e isso estende-se claramente a medidas destinadas a evitar a violação das leis de imigração. Isto é regulado no artigo 21.º, n.º1 alínea h), da CNUDM, que prevê expressamente o poder de promulgar leis relativas à passagem para prevenir a violação dos limites aduaneiros, fiscais, de imigração ou leis sanitárias e regulamentos do Estado costeiro. Mas só é permitido o controlo que é necessário, a fim de evitar a violação de tais. Contudo e apesar de ser atribuída competência aos Estados costeiros de regular a atividade migratória nas suas águas territoriais, estes não se podem abster de aplicar o estipulado nos termos do artigo 33.º, n.º 1 da CRSR, ou seja, a não repulsão sendo classificada como um direito indispensável, livre de qualquer limitação territorial ou material de outros, pertencendo a uma categoria de direitos em geral dirigida a todos os refugiados com exceção do tipo39 estabelecido no artigo 33.º, n.º 2., que funciona como Noronha, Francisco, O Ordenamento do Espaço Marítimo – Para o corte com uma visão territorialmente centrada do ordenamento, 2014, pág. 37. 36  Ver Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a jurisdição extraterritorial da CEDH julho de 2011, disponível em http://www.refworld.org/docid/4e31312d0.html 37  Artigo 2.º, n.º 1 da Convenção sobre o Direito do Mar, em 10 de Dezembro de 1982, disponível em: http://www.refworld.org/docid/3dd8fd1b4.html 38  Artigos 2 e 3 da Convenção sobre o Direito do Mar, 10 de dezembro de 1982, disponível em: http:// www.refworld.org/docid/3dd8fd1b4.html. 39  Moreno-Lax, V., Seeking Asylum in the Mediterranean: Against a Fragmentary Reading of EU Member States’ Obligations Accruing at Sea. International Journal of Refugee Law, 2011, págs. 174-220. 35 

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garantia para uma pessoa não ser devolvida de um Estado para outro quando se verifiquem indícios que revelem que pode sofrer dano para a sua vida ou integridade física. Nestes termos, os Estados estão obrigados que esta garantia se cumpra, sendo para tal necessária a realização de um exame pessoal que permita a constatação destes indícios. Sem estes precedentes realizados antes do processo de devolução, nada nos prova, mesmo através dos vários mecanismos de interceção e devolução em águas territoriais40, que as pessoas sejam individualmente sujeitas a uma análise da sua situação em particular, tornando-se assim de difícil apreensão saber se quando são devolvidas existe um risco efetivo de violação da sua integridade física ou atentado contra as suas vidas no país de origem. O respeito pelos direitos humanos e em particular pelo direito humano de não ser exposto ao risco de tortura e a tratamentos ou punições desumanos ou degradantes41, terá de ser admitido pelo país de destino. Caso contrário poderá ser colocado em causa pressupondo a violação da obrigação plasmada no artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). 4.1.1.1 Dimensão da aplicação “pessoal” da não repulsão O direito internacional não considera apenas o lugar onde a situação ocorre mas também a pessoa à qual a lei atribuiu proteção. Este ponto considera assim os atores que podem reivindicar o direito de proteção de repulsão quando tentam atravessar fronteiras marítimas. Exemplos recentes, são as situações dos refugiados que fogem da África subsaariana ou da Síria e que provavelmente procuram abrigo nos países da UE. De acordo com a Human Rights Watch42 (HRW) mais de 9.800 sírios e palestinos da Síria chegaram à Itália nos primeiros nove meses de 2013. As autoridades nacionais devem distinguir entre diferentes tipos de migrantes, o que é difícil, já que os migrantes costumam viajar em “fluxos mistos”. Isto significa que estes fluxos mistos são integrados por migrantes económicos que procuram melhores condições de vida nos países desenvolvidos, e migrantes que de facto necessitam de proteção pessoal e que viajem em conjunto para alcançar costa segura43. Os últimos, frequentemente, procuram a ajuda de traficantes a fim de fugirem da perseguição no IOM/OIM (Organização Marítima Internacional) - Rescue at Sea – A Guide To Principles and Practice as Applied To Refugees And Migrants . http://www.imo.org/MediaCentre/HotTopics/seamigration/Pages/ default.aspx 41  Consultar Tratado de Lisboa, anotado e comentado, por Porto, Manuel Lopes, Anastácio, Gonçalo, Edições Almedina, págs. 403-421. 42  Human rights Watch (HRW) Report “EU: Improve Migrant Rescue, Offer Refuge” 23 October 2013, available at http://www.hrw.org/news/2013/10/23/eu-improve-migrant-rescue-offer-refuge 43  Lauterpacht, E., e Bethlehem, D., The scope and content of the principle of non- refoulement. Refugee protection in international law: UNHCR’s global consultations on international protection, 2003, págs. 78-159. 40 

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seu país de origem. Para adiar um possível repatriamento, a esmagadora maioria chega sem qualquer identificação. Os chamados facilitadores44, de facto redes de tráfico de pessoas que têm terreno fértil na Líbia (antiga colónia italiana), um país quase sem estado depois da queda do regime de Muammar Kadafi, investem em menos segurança, menos gasolina, menos comida, menos água e em pessoas sem embarcações ainda mais frágeis, na expetativa que sejam intercetadas por operações de salvamento em águas internacionais. Pelo poder de controlo deste tráfico lutam dezenas de milícias, negócio que lhes confere “uma importante fonte de financiamento”. Por seu lado os imigrantes ficam extremamente expostos ao abuso da exploração das redes de imigração clandestina que lhes exigem consideráveis quantias de dinheiro em troca de transporte em condições desumanas, o que acaba por representar um risco acrescido para as suas vidas e para a sua integridade física. Assume-se pois que a aplicação do artigo 33.º da CRSR depende da pessoa em causa se cumpre os critérios de qualificação do artigo 1.º da CRSR45. A proteção contra a repulsão aplica-se a qualquer pessoa que cumpra os requisitos do refugiado definição contida no artigo 1-A da CRSR46 e não se inclui no âmbito de uma das suas disposições de exclusão. A um refugiado na aceção da CRSR, logo que ele ou ela cumpram os critérios contidos na sua definição a determinação do estatuto de refugiado são declaratórios da sua natureza: uma pessoa não se torna um refugiado por causa de reconhecimento, mas é reconhecido porque ele ou ela é um refugiado47. Daqui resulta que o princípio de não repulsão aplica-se não apenas aos refugiados reconhecidos, mas também àqueles que não tiveram o seu status formalmente declarado48. As exceções ao princípio de não repulsão consagrada na CRSR só são permitidas nos casos expressamente previstos no artigo 33.º, n.º 2 (ver secção 3.1). A aplicação desta disposição exige uma determinação Pelo poder de controlo deste tráfico lutam dezenas de milícias, negócio que lhes confere “uma importante fonte de financiamento”. Por seu lado os imigrantes ficam extremamente expostos ao abuso da exploração das redes de imigração clandestina que lhes exigem consideráveis quantias de dinheiro em troca de transporte em condições desumanas, o que acaba por representar um risco acrescido para as suas vidas e para a sua integridade física. 45  http://www.refworld.org/docid/3be01b964.html 46  Artigo n.º 1-A (2). 47  ACNUR, Manual de Procedimentos e Critérios para Determinar o Estatuto de Refugiado sob a Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados, Janeiro de 1992, HCR / IP / 4 / Eng / Rev.1, disponível em: http: //www.refworld.org/docid/3ae6b3314.html, para. 28. 48  Ideia reafirmada pelo ACNUR, conclusões aprovadas pelo Comité Executivo na Proteção Internacional dos Refugiados, Dezembro de 2009, 1975-2009 (Conclusão No. 1-109), disponível em: http: //www.refworld .org / docid / 4b28bf1f2.html por exemplo, na sua conclusão n.º 6 (XXVIII) “não repulsão” (1977), par. (C) (reafirmando “a importância fundamental do princípio de não repulsão... de pessoas que podem ser submetidos a perseguição se regressarem ao seu país de origem, independentemente de terem ou não sido formalmente reconhecidos como refugiados”). 44 

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individualizada pelo país de origem do refugiado, e se ele ou ela cabem dentro de uma das duas categorias previstas no n.º 2 do artigo 33.ºda CRSR. Concluindo, os agentes do Estado, atuam em nome dos Estados costeiros e são genericamente incapazes de identificar quais as pessoas a bordo dos navios que são refugiados por força de perseguição e os que não são. Em tais casos, a prática de tais estados oferece alguns exemplos de passagem que não estão a ser consideradas de todo inocentes49. Assim, uma importante distinção deveria ser feita entre embarcações deliberadamente envolvidas em atividades de migração irregular e navios que se encontram a transportar migrantes devido à circunstância, por exemplo, de resposta a uma chamada de socorro. 4.1.1.2 ACNUR sobre a aplicação territorial de não devolução O ACNUR também expressou seu ponto de vista em relação ao âmbito territorial do princípio da não devolução e subscreveu a obrigação do não retorno dos refugiados perseguidos, independentemente de os governos estarem a agir dentro ou fora das suas fronteiras50. No entendimento do ACNUR, as obrigações resultantes estendem-se a todos os agentes do Estado no exercício de funções oficiais, dentro ou fora do território nacional. 5 Visão jurisprudencial respeitante à não devolução dos refugiados no âmbito do controlo migratório

5.1 Enquadramento A jurisprudência comumente assumida por Tribunais Europeus e Americanos, vai no sentido de se substituírem, contrariando as decisões administrativas dos próprios Estados-membros no acolhimento do direito à não repulsão. Neste sentido, veja-se os casos de interceção fora das águas territoriais dos E.U.A. (caso dos Haitianos), ou da extradição para um Estado onde o refugiado podia ser sujeito à pena de morte (caso Soering), ou ainda da extradição para outro Estado onde seriam degradantes as condições de detenção (caso M.S.S.). Com efeito o direito à não devolução pode ser violado de Ministro da Imigração e Assuntos Multiculturais e outros contra Vadarlis (“Tampa Recurso”), [2001] FCA 1329, Austrália: Tribunal Federal, em 17 de Setembro de 2001, disponível em: http://www.refworld. org/ docid / 3bb1cfdc6.html 50  Ver Alto Comissariado da ONU para os Refugiados responde a decisão da Suprema Corte Sale v. Centros de haitianos Conselho, 32 ILM 1215 (1993), disponível em http://heinonline.org; e Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), salvamento no mar, passageiros clandestinos e Maritime Interception: dezembro de 2011, 2nd Edition, disponível em: http://www.refworld.org/docid/4ee087492.html. 49 

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forma direta ou indireta, ou seja, não só quando um Estado devolve uma pessoa a outro no qual essa pessoa possa estar em risco de vida ou vulnerável a danos à sua integridade física, mas também quando este segundo Estado procede ao reenvio de uma pessoa para um terceiro Estado (seu país de nacionalidade), no qual se infrinjam os mesmos direitos. Mas observemos com mais pormenor os seguintes casos jurisprudenciais: 5.1.1 Acordão do Caso Sale v. Haitian Centers Council Como o princípio da não devolução não se aplica exclusivamente aos casos de requerentes de asilo, e como está intrinsecamente ligado ao respeito pelo direito à vida e à integridade física, passa a ser extensivo a qualquer pessoa que possa ver esses direitos atingidos no caso de ser devolvida ao seu país de origem. Esta posição foi acolhida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos51 (CIDH) no designado Caso dos Haitianos 52, quando atribuiu a este caso um desfecho semelhante ao que havia ocorrido no controlo migratório nas costas africanas. Neste caso dos Haitianos, a Comissão aponta as medidas de interdição e devolução concretizadas por autoridades americanas em águas internacionais e em águas (e costas) da República do Haiti, bem como o objetivo das mesmas que seria impedir a saída de pessoas desse país com destino aos Estados Unidos e outros países. Os E.U.A alegaram que não se podia aplicar o princípio de não devolução, uma vez que as ações aconteciam fora de seu território. A Convenção Internacional dos Direitos do Homem53 contra-argumentou esta posição e indicou que compartilhava da opinião do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que esse princípio “não reconhecia limitações geográficas”. A maioria da Suprema Corte dos Estados Unidos expressou-se no sentido de que nenhuma proteção tinha sido oferecida a qualquer estrangeiro que estivesse fora das águas territoriais dos Estados Unidos54. Evidentemente, isto indica que o CRSR, incluindo o artigo 33.º, se aplicava nas águas territoriais dos EUA, mas também se 51 

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS [CIDH]. Caso 10.675: Comité Haitiano de Derechos Humanos y otros contra Estados Unidos, Informe n. 51/96. Decisão. 13 março de 1997. https://www.cidh.oas.org/annualrep/96span/EEUU10675.htm 53  Regulamento da Convenção Internacional de Direitos do Homem http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/u.Regulamento.CIDH.htm; e COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS [CIDH]. Caso 10.675: Comité Haitiano de Derechos Humanos y otros contra Estados Unidos, Informe n. 51/96. Decisão. 13 março de 1997. 54  Chris Sale, comissário ativo, Serviço de Imigração e Naturalização, et al. v haitiano Conselho Centers, Inc, et al, Estados Unidos Supremo Tribunal, 21 de junho de 1993, disponível em:. http://www.refworld. org/docid/3ae6b7178.html 52 

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aplicava aos refugiados que se encontram no limiar de entrada territorial para o mar55. De entre as várias instituições internacionais de proteção dos direitos humanos, a HRW apoiou este argumento e salientou a boa decisão do tribunal, quando este decidiu que o direito à proteção contra o regresso a um país se aplicava em alto mar. 5.1.2 Caso Hirsi Jamaa e outros v. Itália No âmbito da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem56 (TEDH) verifica-se o mediático caso Hirsi Jamaa e outros v. Itália57, julgado em 23 de fevereiro de 2012. Neste, não só é condenado o Estado Italiano por ter feito recuar migrantes, intercetados em mar alto, para a Líbia, em 2009, como também enquadrou os princípios aplicáveis ao controlo e à vigilância nas fronteiras. Este acórdão da Grande Secção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem58 ilustra ainda mais a sensibilidade adicional para com os direitos humanos nos controlos de fronteiras realizadas fora dos territórios dos Estados membros. Condenou a prática da interdição de embarcações que transportam imigrantes e forçadamente os devolve ao país de origem. O Tribunal refere que os “push-backs” violam a proibição de repulsão, e decretou a proibição de expulsão coletiva de estrangeiros. 5.1.3 Caso Soering v. Reino Unido Em 7 de julho de 1989 o Tribunal de Justiça59 estabeleceu que a extradição de um jovem alemão nacional para os Estados Unidos originaria a violação artigo 3.º da Caso Shaughnessy v Mezei, 345 US 206 (1953), Supremo Tribunal dos Estados Unidos, 23 de setembro de 1953, disponível em: http://www.refworld.org/docid/4152e10024.html; sugere que o termo “retorno (, refouler ‘)” se refira à exclusão de estrangeiros que estão meramente “no limiar da entrada inicial” 56  European Court of Human Rights , “O sistema de proteção de direitos e liberdades fundamentais integrado pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tem como base o princípio da subsidiariedade. Na Convenção é delegado em primeiro lugar aos Estados Membros garantir a aplicação deste princípio, e por inercia dos mesmos delegar no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o poder de intervir quando os Estados faltarem ao seu dever.” http://direitoshumanos.gddc.pt/acordaos/GuiaPAdmissibilidade_Indice. pdf. 57  Coppens, Jasmine, The Law oh the sea and human rights in the Hirsi Jamaa and others v. Italy judgmente of the European Court oh Human Rights – em Human rights and civil liberties in the 21st century, 2014, págs. 179-202; e Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Caso Hirsi Jamaa e outros v. Itália. J. em 23 de fevereiro de 2012, parágrafos 85, 87, 90, 139, 140 e paragrafo 141-142 quando se questionou a possibilidade da violação do art. 3.º da Convenção em relação à exposição dos requerentes à repatriação arbitrária na Somália e Eritreia. 58  Corte Europeia de Direitos Humanos (TEDH). Caso Hirsi Jamaa e outros v. Italia (Aplicação n.º 27765/09). 59  Corte Europeia de Direitos Humanos (TEDH). Caso Soering v. Reino Unido, em 7 de julho de 1989 (Aplicação n.º 14038/88). 55 

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Convenção Europeia dos Direitos do Homem Direitos (CEDH). O recorrente, Jens Söring, era um cidadão alemão, nascido em 1966, que tinha sido trazido por seus pais para os Estados Unidos aos onze anos. Em 1984, com18 anos foi estudar para a Universidade da Virgínia, onde se tornou amigo de Elizabeth Haysom, uma canadense. Factos: Em outubro de 1985, Söring e Elizabeth Haysom fugiram para a Europa; e, em 30 de abril de 1986 foram presos em Inglaterra, sob a acusação de fraude. Seis semanas depois, um júri do Tribunal de Bedford County, Virgínia, indiciou Söring por crime e pena capital. Em 11 de agosto de 1986, os Estados Unidos solicitaram a extradição para ambos, com base no tratado de extradição de 1972. Um mandado foi emitido de acordo com a secção 8 da Lei de Extradição de 1870 para a prisão de Söring. Söring entrou com uma petição de habeas corpus no Tribunal Divisional solicitando uma revisão judicial da decisão de extradição, argumentando que a Lei de Extradição de 1870 não autorizava a extradição. O artigo IV do tratado de extradição EUA-Reino Unido, prevê que um pedido de extradição por um crime passível de pena de morte, pode ser recusado se o país requerente não der “garantias [...] que a pena de morte não será realizada “. Em 11 de dezembro de 1987 a Lord Justice Lloyd na Divisional Court admitiu que a garantia “deixa algo a desejar”, mas recusou o pedido de revisão judicial, afirmando que o pedido de Söring era prematuro. Posteriormente apela junto da Comissão Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) em 9 de Julho de 1988, afirmando que ao ser extraditado para os EUA, provavelmente iria ser condenado à pena de morte, enfrentando assim um cenário desumano e degradante contrário ao tratamento estipulado no artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Os argumentos de Soring vão mais longe e diz que a violação do artigo 3.º da Convenção pelo Estado britânico teria como consequência a pena de morte e envolveria o seu direito. A recorrente, portanto, tentou deixar claro que este não era a mera aplicação de uma punição prevista na lei, mas sim a sua exposição ao fenômeno do corredor da morte, onde iria ser mantido em detenção por um período desconhecido, à espera de execução. Em 7 de julho de 1989, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) proferiu um acórdão unânime, afirmando que o artigo 3.º poderia ser violado pelo processo de extradição, caso o Estado de extradição tivesse conhecimento de que Soering poderia estar sujeito a um tratamento desumano ou degradante e assim ser responsável pela violação. Coexistia uma violação do artigo 3.º da Convenção, ao enviar uma pessoa para um outro Estado, quando motivos sérios colocariam essa pessoa, a enfrentar um risco real de ser submetido a tortura, a penas ou tratamentos desumanos e degradantes no Estado recetor, se extraditado ou expulso. As medidas tomadas pelo Estado britânico teriam como consequência direta a exposição do indivíduo a maus-tratos e essa ação

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representaria através do processo de expulsão, a negação dos direitos da recorrente do outro Estado. Assim, a Corte exigiu salvaguardas dos EUA para permitir a extradição de Soering, uma vez que ficava clara a possibilidade de este ser condenado à pena de morte caso fosse extraditado para este país. A Amnistia Internacional interveio no caso e alegou que, à luz da evolução das “normas da Europa Ocidental quanto à existência e aplicação da pena de morte”, esta punição devia ser considerada como desumana e degradante e, portanto, efetivamente proibida pelo artigo 3.º da Convenção. 5.1.4 Caso M.S.S. v. Bélgica Factos: O caso teve origem em 11 de junho de 200960, contra a Bélgica e a Grécia, sendo o requerente um afegão nacional, o Sr. M.S.S. O requerente vem alegar que a sua expulsão pelas autoridades belgas para a Grécia havia violado os artigos 2.º e 3.º da Convenção. A queixa foi distribuída à Segunda Secção do Tribunal de Justiça (artigo 52.º, § 1). Em 21.01.2011, o Tribunal de Justiça Europeu no caso de M.S.S. v. Bélgica (30696/09), defendeu que a Grécia havia violado o artigo 3.º da CEDH, quanto às condições de detenção e de subsistência sofrida pelo requerente de asilo, assim como a Bélgica tinha violado o mesmo artigo por ter transferido o requerente para a Grécia no âmbito do Sistema de Dublin. Além disso, os dois Estados eram acusados da violação do artigo 13.º, devido a deficiências nos seus procedimentos de asilo. O Tribunal de Justiça considerou que o afastamento do requerente da Bélgica para a Grécia já tinha tido lugar no momento da queixa ao Tribunal, e que as condições degradantes de detenção e das condições de vida na Grécia eram bem conhecidos antes da transferência do requerente e foram livremente determináveis a partir de um amplo número de fontes. Em MSS, o Tribunal de Justiça descreveu as deficiências dos procedimentos de asilo gregas e as condições de vida dos requerentes de asilo durante esses procedimentos. As deficiências sistêmicas e a falta de vontade por parte do Estado grego para lidar com eles eram aqui considerados. No presente caso, a descrição do sistema para o acolhimento dos requerentes de asilo na Grécia mostra que há muitas deficiênCorte Europeia de Direitos Humanos (TEDH). Caso de M.S.S. v. Bélgica e Grécia, em 21.01.2011, parágrafo 366. (Aplicação n.º 30696/09). Disponivel em EJTN European Judicial Training Network Réseau Européen de Formation Judiciare – The Administrative Law Training Guidelines, pág.98 e ss. - M.S.S. v. Belgium and Greece, Grand Chamber, Application no. 30696/09, European Court of Human Rights, 21 January 2011 (affirmed the responsibility of the deporting State for all foreseeable consequences of the deportation of a person seeking international protection to another EU Member State, violation of Art. 3 (prohibition of torture, inhuman or degrading treatment). 60 

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cias, principalmente devido à chegada periódica de um grande número de requerentes de asilo. 6 Conclusão A atenção sobre o tema das migrações irregulares, torna claro que a dimensão unívoca que temos de uma cidadania centrada no Estado, e a sua denominação com base numa ideia de território com fronteiras estabilizadas e resultantes de uma combinação perfeita, desapareceu. Este modelo de soberania nacional tem-se mostrado altamente ineficaz para resolver estes fluxos de migrações irregulares que, não raro, excedem as suas capacidades de absorção, assumindo as migrações internacionais um fenómeno de facto, tendente a ser afastado a todo o custo ou dificilmente controlado por cada ordem interna dos Estados. A este nível exemplifiquemos com o insucesso das políticas de devolução, também chamadas de políticas de rechaço. Com efeito qualquer política de imigração deve respeitar um conjunto de princípios fundamentais que não deixa dúvidas à maioria dos cidadãos, tais como os direitos de cidadania dos imigrantes, o respeito pela diversidade e a integração solidária do imigrante. A realidade, porém, é que surge na Europa correntes políticas que os contestam, assentes num discurso securitário e xenófobo contrário às medidas políticas de integração da imigração. Se tivermos presente a recente eleição de David Cameron e as suas proclamações relativamente aos refugiados no Mediterrâneo, vemos um exemplo da política securitária e da inviabilidade para a esmagadora maioria dos Estados da absorção destes grandes contingentes de migrantes refugiados61. Ou a ideia já antes avançada por Angela Merkel, a chanceler alemã, de rejeição do multiculturalismo, ou por Marine Le Pen, em França, com as suas diatribes xenófobas. A política europeia na atualidade olha com muitas reservas para a entrada e capacidade de integração dos migrantes e refugiados de África. Qualquer solução, ainda que parcial, deverá levar em conta este constrangimento ideológico (é disto que se trata!) e assumir que a crise dos refugiados no Mediterrâneo, não sendo endemicamente europeia, expôs as fragilidades da UE, da sua doutrina Schengen, as divisões politicas e estratégias entre o norte e o sul da Europa, entre elas a tão propalada solidariedade europeia. O Governo do Reino Unido anunciou no início de junho de 2015 que não apoiará quaisquer futuras operações de busca e salvamento para evitar o afogamento de migrantes refugiados no Mediterrâneo, afirmando com isto que tais operações podem encorajar mais pessoas a tentar a travessia marítima perigosa para entrar na Europa. Informação disponível na página oficial do entro Regional das Nações Unidas, http:// www.unric.org/pt/actualidade/31658-europamigrantes-qdeixem-nos-morrer-esta-e-uma-boa-forma-dissuasaoq-especialista-em-direitos-humanos-da-onu61 

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Destas, destacaram-se e distinguiram-se as abordagens conservadoras e soberanistas de cerrar fronteiras, expulsão dos refugiados “push-back”, proteção de águas territoriais e de um certo status europeu, por contraponto à visão humanitária de acolhimento e integração dos refugiados, no respeito pelos direitos humanos internacionalmente consagrados, aperfilhando no limite, a visão de transnacionalidade de que o académico Joseph Carens62 é um dos principais arautos. O equilíbrio virtuoso das duas posições antagónicas acima referidas, deverá ser o resultado a médio prazo mas, na sua génese, a crise dos refugiados no Mediterrâneo está dramaticamente para além dos equilíbrios mais ou menos institucionais, a obter no futuro no espaço da União Europeia. O epicentro desta crise situa-se no sul do Mediterrâneo e parece reunir o conjunto de fatores que a fará perdurar no tempo: autocracias e Estados falhados, regimes opressivos e povos ansiosos de liberdade, guerras religiosas e hostilidades tribais, opulência ofensiva e pobreza extrema, poderes dispersos e perseguições a esmo. Crime e impunidade. Armas. Muitas! É neste cenário que a União Europeia deve tomar a iniciativa (autoprotetora) de persuadir os principais atores da cena política internacional, com diferentes e por vezes divergentes interesses na região, para a emergência de uma intervenção conjunta no sentido de pacificar e desenvolver o continente africano sob pena de agudização dos conflitos. Sequência em que devemos acentuar que na origem da tragédia dos refugiados no Mediterrâneo, convergem interesses de vária ordem, múltiplos e complexos. É certo que a condição de refugiado/migrante é consequência de violações dos direitos do homem atrás enunciados e escalpelizados, tendo como causa imediata desses acontecimentos rivalidades étnicas e tribais, diferenças ideológicas e divisões religiosas ou, mais prosaicamente, o controlo dos recursos naturais daquelas regiões, de que o controlo dos campos petrolíferos e de gás natural é, porventura, o mais visível e significativo. Interesses económicos, sim, mas também geoestratégicos, jogados desde logo na bipolaridade Rússia-EUA, herdeira da “velha” guerra-fria. Interesses destas grandes potências, mas também de outras que têm posições firmes nesta região, como a Europa e a China, que aqui jogam as suas velhas ou novas influências. Noutro patamar de poderes, alianças e influencias, temos de ter em conta a luta pela supremacia disputada pelas potências da região e correspetivos regimes: a Arábia Saudita, monárquica, muçulmana e alauita, a Turquia republicana, muçulmana e sunita, o Irão, uma teocracia muçulmana (não árabe), xiita, e Israel, republicano e judeu, próximo da ortodoxia. 62 

Carens, Joseph, The Ethics of Immigration, Teoria politica – Oxford, 3.º capítulo, 2013.

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Os povos desta grande região africana, esses, manipulados ao sabor dos interesses estratégicos ou apenas locais, entregues ao autoritarismo de regimes fortemente repressivos da liberdade e da cidadania, onde impera a subjugação, o desemprego, a pobreza extrema, e a ausência de infraestruturas públicas, geram no seu seio os radicalismos extremistas que o fracasso da primavera árabe veio acentuar. São assim estas as causas necessariamente genéricas e sintéticas, a que chamaríamos de primordiais, que tornam premente um plano de desenvolvimento para África concebido com o objetivo de obter o direito a que porventura os povos mais ansiosamente aspiram: a Paz! Um plano de paz mas também um plano de desenvolvimento que permitisse uma almejada paz duradoura a lançar sob a égide da ONU, com o patrocínio dos parceiros geoestratégicos – EUA, Rússia, China e Europa – mas também das potências regionais – Arábia Saudita, Turquia, Irão e Israel – que apostasse, desse corpo e sentido ao propalado desenvolvimento do “continente do Séc. XXI”, a África. Um plano de desenvolvimento acelerado que anexasse sub-planos e programas específicos de natureza politica, jurídica e financeira e até uma hipotética Agência Territorial, que sob a liderança da ONU, mantivesse dentro das mesmas fronteiras as etnias, as tribos, as nações (o Curdistão, nação geográfica e culturalmente homogénea, não pode continuar espartilhada entre 3 países: Turquia, Síria e Iraque), tantas vezes artificialmente divididas e de cujas divisões transfronteiriças, mas não só, têm resultado conflitos, genocídios e perseguições. Em suma, a crise dos refugiados no Mediterrâneo, não sendo intrinsecamente europeia afeta a Europa, que fiel à sua responsabilidade histórica tem o dever de promover e garantir não apenas o controlo migratório que lhe é conveniente mas sobretudo o respeito pelos direitos humanos e desenvolvimento dos povos daquela região de África. REfERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS: POLíTICAS, FILOSóFICAS, DIREITO ABREU, Alexandre, AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E O DESENVOLVIMENTO DOS PAÍSES DE ORIGEM - Impactos e Políticas, Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e Cooperação Internacional, apresentada à Universidade Técnica de Lisboa, 2006, pág. 17-20. http://www. oi.acidi.gov.pt/docs/Colec_Teses/tese_28.pdf; ARIAS, Fernández, G., “Frontex and Illegal Immigration in the European Union”, in J.M. Sobrino Heredia (ed.), Sûreté Maritime et Violence en Mer = Maritime Security and Violence at Sea, Bruxelles, Bruylant, 2011, pp. 29-46; BALDACCINI, A., “Extraterritorial Border Controls in the EU : the Role of Frontex in Operations at Sea”, em B.Ryan and V. Mitsilegas (eds.), Extraterritorial Immigration Control : Legal Challenges, Leiden, Nijhoff, 2010, pp. 229-255; BIGA, Didier, artigo do Livro The Irregularization of Migration in Contemporary Europe, De-

410 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas tention, Deportation, drowning Varieties of Irregularization - Death inthe Mediterranean Sea: The Results of the Tirree Fields of Action of European Union Border Controls, ed. Yolande Jansen, Robin Celikates and Joost de Bloois , Londres, 2015, pág. 55; BRUYCKER, Philippe, BARTOLOMEU, Anna Di, em Migrants smuggled by sea to the EU: facts, laws and policy options, EUROPEAN UNIVERSITY INSTITUTE, FLORENCE ROBERT SCHUMAN CENTRE FOR ADVANCED STUDIES MIGRATION POLICY CENTRE (MPC), 2013. Artigo disponível em http://www.migrationpolicycentre.eu/docs/MPC-RR-2013-009.pdf; CAMPESI, Giuseppe,”The Arab Spring and the Crisis of the European Border Regime. Manufacturing the emergency in the Lampedusa Crisis”, RSCAS Working Papers, 59, 2011; CARENS, Joseph, em The Ethics of Immigration, Teoria politica – Oxford, 3.º capítulo, 2013; CARMEN, Pérez González, em “ Migraciones Irregulares y Derecho Internacional-Geston de los flujos migratorios, devolution de extranjeros en situación administrativa irregular y Derecho Internacional de los Derechos Humanos”, 2012, http://www.corteidh.or.cr/tablas/r31009.pdf; IÇDUYGU, Ahmet, em “Syrian Refugees in Turquey: The Long Road Ahead” pdf.– A Project of the Migration Policy Institute, abril 2015, págs. 2-5; LAUTERPACHT, E., e BETHLEHEM, D., The scope and content of the principle of non- refoulement. Refugee protection in international law: UNHCR’s global consultations on international protection, 2003, págs. 78 -159. LOPES, António Figueiredo, Ministro da Administração Interna do XV Governo Constitucional, em “ Políticas de imigração e asilo num Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça”, pág. 87.; Cf. Ponto 11 das Conclusões do Marin, Luisa, Wesswl, Ramses, The extraterritorial application of the principle of non-refoulement in the context of sea border, Universidade de Twente, 2014, http://essay.utwente.nl/64658/1/ Salau_BA_MB.pdf; UNITED NATIONS (2013a), “International Migration 2013: Migrants by origin and destination”, Population Facts, Department of Economic and Social Affairs, Population Division, Nº 3/2013, setembro.

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Crianças soldado podem ser refugiados? Uma análise das cláusulas de exclusão da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 Camila Dabrowski de Araújo Mendonça1 Danielle Annoni2 Resumo: Para avaliar a possibilidade de aplicação das cláusulas de exclusão da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 a solicitantes de refúgio que tenham sido crianças soldado, apresenta-se o quadro normativo internacional aplicável. Primeiramente, buscou-se a delimitação do conceito de criança soldado com base no Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Humanitário Internacional e Direito Penal Internacional. Passou-se então a apresentação das cláusulas de exclusão previstas na Convenção de 1951, visando a verificação da possibilidade de aplicação às crianças soldado. Identificou-se a existência da possibilidade de exclusão de responsabilidade individual, entre outros, pela existência de coação e/ou inexistência da vontade livre e consciente da prática do crime. Concluiu-se que é preciso que a análise seja feita caso a caso, ponderando a gravidade do delito e as consequências da negação do pedido de refúgio, levando em conta o princípio do melhor interesse da criança. Apesar da proteção internacional, uma vez que não há uma idade mínima de responsabilização penal internacionalmente reconhecida, pode haver aplicação não-uniforme das cláusulas de exclusão a respeito de crianças soldado. Palavras-Chave: Crianças Soldado; Cláusulas de Exclusão; Direito Internacional dos Refugiados; Direito Penal Internacional. Abstract: To evaluate the possibility of applying the exclusion clauses of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugees to refuge solicitants that have been child soldiers, the applicable international normative frame is presented. Firstly, the concept of child soldiers was draw from International Human Rights Law, International Humanitarian Law and International Criminal Law. Secondly, the exclusion clauses provided in the 1951 Convention were presented, aiming the evaluation of the possibility to apply them to child soldiers. The existence of the possibility of the exclusion of individual responsibility was verified, among others, by the existence of coercion and/or the inexistence of intent and knowledge to commit the crime. The conclusion is that the analysis must be made in a case by case basis, pondering the gravity of the crime and the consequences of the refuge solicitation denial, considering the principle of the best interests of the child. In spite of international protection, since there is no universally recognized minimum legal age for criminal responsibility, there can be a non-uniform application of exclusion clauses on it comes to child soldiers. Keywords: Child Soldiers; Exclusion Clauses; International Refugee Law; International Criminal Law.

1  Doutoranda em Direito pelo PPGD/UFSC. Mestre em Direito e Relações Internacionais pelo PPGD/ UFSC. Bacharel em Relações Internacionais pelo UNICURITIBA. Bacharel e Licenciada em História pela UFPR. Bolsista de Doutorado do CNPq. Contato: [email protected]. 2  Doutorado em Direito pela UFSC. Mestrado em Direito e Relações Internacionais. Coordenadora do Observatório de Direitos Humanos e Titular da Cátedra Sergio Vieira de Mello, ambos pela UFSC. Professora de Direito Internacional e Direitos Humanos na Universidade Federal do Paraná. Contato: danielle. [email protected].

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1 INTRODUÇÃO Em diversos conflitos armados contemporâneos crianças são recrutadas para grupos armados, inclusive tomando parte nas hostilidades. A questão dessas crianças soldado tem sido alvo de preocupação pela comunidade internacional, que busca consolidar cada vez mais a proteção da criança, vítima de diversas formas de violência. Uma questão interessante sobre as crianças soldado é a dualidade de sua posição, pois, ao mesmo tempo que pode ser considerada perpetrador de um crime, pode também ser considerada vítima. Essa dualidade tem grande expressão em situações onde solicitantes de refúgio são ou foram crianças soldado. A possibilidade de aplicação das cláusulas de exclusão previstas nos tratados internacionais que versam sobre refugiados à essas pessoas levantam a questão: crianças soldado podem ser refugiados? Para responder a esse questionamento se fez necessária uma análise em três partes. Em primeiro lugar, buscou-se no direito internacional a delimitação do que se considera como criança soldado e quais os limites desse conceito. Nesse sentido, apresenta-se tratados e convenções internacionais que tenham previsões que permitam a construção desse conceito. Na sequência, analisou-se as cláusulas de exclusão da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, bem como sua aplicabilidade geral. Por fim, fez-se a análise da possibilidade de aplicação das cláusulas de exclusão às crianças soldado. 2 CRIANÇAS SOLDADO NO DIREITO INTERNACIONAL Para uma definição clara do que é uma criança soldado, é preciso definir: (i) quem é considerado criança e, (ii) em que medida o envolvimento dessa criança em um conflito armado a caracteriza como soldado. Os principais instrumentos internacionais que regulam essas questões são a Convenção sobre os Direitos da Criança3, de 1989; o Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados4, de 2000; os dois Protocolos Adicionais de 1977 às quatro Convenções de Genebra de

CONVENÇÃO sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em: . Acesso em: 14 de julho de 2015. Referida no texto como “Convenção sobre os Direitos da Criança”. 4  PROTOCOLO Facultativo para a Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados. 2000. Disponível em: . Acesso em: 15 de julho de 2015. Referido no texto como “Protocolo Facultativo”. 3 

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19495; e o Estatuto de Roma de 19986. No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Convenção sobre os Direitos da Criança delimita, em seu artigo 1º, que criança é todo o ser humano com menos de 18 anos7. Contudo, esse mesmo artigo prevê que, conforme a lei aplicável, a criança pode atingir a maioridade antes dessa idade. Assim, é possível argumentar que a idade de 18 anos estabelecida na convenção não seria um limite mínimo, uma vez que a própria Convenção prevê que as legislações nacionais podem determinar outras idades para a maioridade. Ambos Protocolos Adicionais de 1977 às Quatro Convenções de Genebra de 1949, no âmbito do Direito Internacional Humanitário, apresentam indicações etárias a respeito da possibilidade de envolvimento em hostilidades. O Protocolo Adicional I, referente aos conflitos internacionais, indica que os Estados devem tomar as medidas necessárias para evitar que crianças menores de 15 anos tomem parte nas hostilidades8. O Protocolo Adicional II, que versa sobre a proteção de vítimas em conflitos não-internacionais, apresenta a restrição do recrutamento de menores de 15 anos para forças armadas ou grupos armados, bem como que essas crianças tomem parte nas hostilidades9. Visando aumentar a proteção das crianças, em 2000 foi criado o Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados. Em seu artigo 1º, prevê que os Estados devem adotar medidas para que os menores de 18 anos que integrem as forças armadas não participem diretamente nas hostilidades. Nos seus artigos 3º e 4º o Protocolo Facultativo versa sobre a utilização de crianças por Estados em suas forças armadas e por grupos armados distintos destas, respectivamente. Optou-se por criar formas distintas de participação de menores de 18 anos em forças armadas estatais e não estatais. Nesse sentido, o artigo 3º prevê que o Estado possa permitir o alistamento voluntário em suas forças armadas, a partir de uma idade mínima, desde que garanta que o alistamento seja realmente voluntário, sem nenhuma forma de coação. Já o artigo 5  PROTOCOLO Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (Protocolo I). 1977. Disponível em: . Acesso em: 15 julho de 2015. Referido no texto como “Protocolo Adicional I”. PROTOCOLO Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Não Internacionais (Protocolo II). 1977. Disponível em: . Acesso em: 15 julho de 2015. “Protocolo Adicional II”. 6  Rome Statute of the International Criminal Court. 1998.. Disponível em: . Acesso em: 15 de julho de 2015. Referido no texto como “Estatuto de Roma”. Optou-se pela utilização do texto original, em inglês, bem como da versão, em português, promulgada pelo Presidente da República do Brasil no Decreto 4.388 de 25 de setembro de 2002. 7  CONVENÇÃO sobre os Direitos da Criança. 1989. Artigo 1º. 8  PROTOCOLO Adicional I. 1977. Artigo 77, §2. 9  PROTOCOLO Adicional II. 1977. Artigo 4º, §3, c.

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4º proíbe, em qualquer circunstância, o recrutamento e a utilização em hostilidades, de menores de 18 anos, por grupos armados que não sejam as forças armadas estatais. Ou seja, ao Estado é permitido o alistamento voluntário de menores de 18 anos, desde que não tomem parte diretamente nas hostilidades. Aos grupos armados não estatais, diferentemente, não cabe o recrutamento ou uso de menores de 18 anos em nenhuma situação. No âmbito do Direito Penal Internacional, o Estatuto de Roma prevê que o Tribunal Penal Internacional não terá jurisdição sobre pessoas que não tenham completado 18 anos quando da alegada prática do crime10. Outra questão é a inovação apresentada no Estatuto de Roma que passa a considerar como crime de guerra “recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades”11 em conflitos armados internacionais, e, “recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades”12 em conflitos armados não-internacionais. Observa-se, assim, que a preocupação com as crianças está presente em diversas áreas do Direito Internacional, por meio das previsões em diversos instrumentos jurídicos internacionais. Porém, apesar de sua existência, é preciso ponderar algumas questões sobre a aplicabilidade dessas previsões. Em primeiro lugar, o Direito Internacional se baseia na vontade estatal, ou seja, os Estados optam pelas normas a qual se vinculam e que se comprometem a cumprir. Assim, não há homogeneidade na aceitação dos tratados e convenções internacionais mencionados anteriormente. A proteção à criança no âmbito nacional de cada Estado, pode ser diferente, com base nos tratados protetivos aos quais o Estado tenha se vinculado. Em segundo lugar, ao analisar a redação de vários instrumentos internacionais, percebe-se a necessidade de regulamentar não somente a atuação do Estado e de suas forças armadas legítimas, mas também, a necessidade de regulamentação da atuação de grupos armados não estatais. Tais grupos tomam parte em diversos conflitos em todo o mundo e sua atuação muitas vezes se dá sem a observação das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados. Frente a esse panorama normativo, pode-se sintetizar que, para o Direito Internacional, criança é toda pessoa menor de 18 anos. Contudo, o próprio Direito Internacional, no artigo 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança, prevê que a legislação nacional a qual essa criança está submetida pode delimitar outra idade para a maioridade. Não há nenhuma distinção evidente entre maioridade civil e penal. ROME Statute,1998. Article 26. BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002 - Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Brasília, 2002. Disponível em: . Acesso em: 15 de julho de 2015. Artigo 8º, §2, b, xxvi, do Estatuto de Roma de 1998. 12  Idem. Artigo 8º, §2, e, vii, do Estatuto de Roma de 1998. 10  11 

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Para o Direito Internacional Humanitário, a idade mínima para o recrutamento militar e participação em hostilidade é de 15 anos, conforme as previsões dos Protocolos Adicionais I e II, mencionadas anteriormente. Tal previsão foi reforçada com a criminalização, pelo Estatuto de Roma, do recrutamento, alistamento e uso em hostilidades de menores de 15 anos, seja pelas forças armadas estatais, sejam por grupos armados não estatais. O Protocolo Facultativo de 2000, objetivou aumentar essa idade para 18 anos, em se tratando de grupos armados não estatais, e, no âmbito das forças armadas do Estado, que menores de 18 anos poderiam se alistar voluntariamente, porém deve-se evitar sua participação em hostilidades. É preciso lembrar: a disposição de cada tratado ou convenção internacional se aplica tão somente aos Estados que a ela se submeteram. Em linhas gerais de respeito ao direito internacional, portanto, se poderia dizer que a criança soldado é todo menor de 15 anos que tenha sido recrutado ou alistado em forças armadas estatais ou grupos armados não estatais ou tenha sido utilizado em hostilidades. Pode-se ainda incluir no conceito de crianças soldado os maiores de 15 e menores de 18 anos recrutados, alistados ou utilizados em hostilidades por grupos armados não estatais ou que tenham sido alistados ou recrutados coercitivamente para as forças armadas estatais. Tendo apresentado esta breve delimitação conceitual, cabe ainda destacar algumas questões sobre a atuação de crianças soldado. O primeiro caso julgado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) foi contra Thomas Lubanga Dyilo, condenado a 14 anos de prisão pelo crime de “recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades”13. Parte da decisão em primeira instância se dedicou a delimitação dos conceitos do tipo penal. Sobre o uso em hostilidades, o TPI entendeu que não é preciso o alistamento ou recrutamento para que a criança tome parte em hostilidades, bem como que o alistamento ou recrutamento não faz com que a criança tome parte nas hostilidades, podendo ser alocada para outras funções14. Nesse sentido, algumas das funções citadas são: espionagem, sabotagem, mensageiros, pontos militares de checagem, cozinheiros, camareiras, elaboração de rotas, reconhecimento de trilhas, escudo humano15. De forma bastante importante, o TPI entendeu que participação ativa não é sinônimo de participação direta, ou seja, ainda que a criança soldado não participe na linha de frente de um combate, sua participação ativa deve ser medida pela relevância de sua função BRASIL. 2002. Artigo 8º, §2, e, vii, do Estatuto de Roma de 1998. MENDONÇA, Camila D. A.; ANNONI, Danielle. O Primeiro Julgamento do Tribunal Penal Internacional: o Caso Lubanga. In: SANTOS, Ricardo Soares Stersi dos; ANNONI, Danielle (Orgs.). Cooperação e Conflitos Internacionais: Globalização, Regionalismo e Atores. Curitiba: Multideia, 2014. p. 46-47. 15  INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, Judgment pursuant to Article 74 of the Statute, ICC-01/04-01/06-2842, Trial Chamber I, 14 March 2012. §§ 623-624. 13  14 

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no apoio às forças armadas. Na definição se uma atuação indireta pode ser ativa, o TPI entendeu que se deve avaliar se essa atuação expôs a criança a um perigo real, transformando-a em um alvo potencial16. Essa delimitação feita na decisão sobre o caso Lubanga evidencia que nem sempre a atuação das crianças soldado está diretamente relacionada com as linhas de frente do combate, podendo se dar na forma de contribuições indiretas. 3 CLAUSULAS DE EXCLUSÃO DA CONVENÇÃO DE 1951 RELATIVA AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS A proteção internacional dos refugiados tem como instrumento fundamental a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 195117, cujo escopo de aplicação foi ampliado com a adoção do Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados de 196718. Com base nesses instrumentos internacionais, considera-se refugiado aquelas pessoas que tem um bem fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, buscando proteção em outro Estado para fugir de tal perseguição. A Convenção de 1951 define os critérios para a concessão de refúgio e também prevê algumas situações nas quais não poderá ser aplicada. Essas disposições são conhecidas como cláusulas de exclusão e estão dispostas no artigo 1F, F. As disposições desta Convenção não serão aplicáveis às pessoas a respeito das quais houver razões sérias para pensar que: a) elas cometeram um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a humanidade, no sentido dos instrumentos internacionais elaborados para prever tais crimes; b) elas cometeram um crime grave de direito comum fora do país de refúgio antes de serem nele admitidas como refugiados; c) elas se tornaram culpadas de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas. Idem. § 628. CONVENÇÃO Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em:< http://www.acnur.org/t3/ fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf?view=1>. Acesso em: 14 de julho de 2015. Referida no texto como “Convenção de 1951”. 18  PROTOCOLO Relativo ao Estatuto dos Refugiados. 1967. Disponível em: http://www.acnur.org/ t3/fileadmin/scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Protocolo_de_1967_Relativo_ao_Estatuto_dos_Refugiados>. Acesso em: 14 de julho de 2015. Referido no texto como “Protocolo de 1967”. 16  17 

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No Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado: de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados19, elaborado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), esse item é intitulado “Pessoas que se considera não merecerem proteção internacional”, ou seja, devido à gravidade dos atos em questão, ao elaboraram a Convenção de 1951, os Estados entenderam que não se deveria oferecer proteção as pessoas que se inserissem nesses casos. Destaca-se que para a aplicação dessas cláusulas basta a indicação de que há “razões sérias” de que se cometeu um dos atos indicados, não havendo necessidade de processo criminal para a averiguação do caso20. O Manual de Procedimentos do ACNUR define ainda que, quando da aplicação de qualquer das cláusulas de exclusão, é preciso a ponderação entre a gravidade do crime presumidamente cometido e da perseguição sofrida pelo solicitante de refúgio, bem como as circunstâncias do crime alegadamente cometido21. Nesse sentido, pode-se entender que a aplicabilidade das cláusulas de exclusão não é automática, devendo ser avaliada no contexto de cada caso. Para lidar com questões específicas o ACNUR criou também diversas Diretrizes sobre Proteção Internacional. Dentre elas, há uma diretriz sobre a aplicação das cláusulas de exclusão22 e uma sobre solicitações de refúgio feitas por crianças23. Em ambos documentos, o ACNUR trata a respeito do caso de crianças soldado. Da perspectiva da aplicabilidade geral das cláusulas de exclusão, disposta na Diretriz nº 05 de 2003, consolida-se o entendimento que, apesar de serem aplicadas sem haver relação com processo criminal, deve-se levar em conta a possibilidade de afastamento da responsabilidade individual sobre o crime em questão. Nesse sentido, o 19  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado: de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. 2011. Disponível em: . Acesso em: 14 de julho de 2015. Referido no texto como “Manual de Procedimentos do ACNUR”. 20  Idem. p. 32. 21  Idem. p. 33. 22  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Diretrizes sobre Proteção Internacional n.05 – Aplicação das Cláusulas de Exclusão: Artigo 1F da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados. 2003. Disponível em: . Acesso em: 14 de julho de 2015. Referida como “Diretriz nº05” ou “Diretrizes sobre Cláusulas de Exclusão”. 23  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Diretrizes sobre Proteção Internacional n.08 – Solicitações de Refúgio apresentadas por Crianças, nos termos dos Artigos 1(A)2 e 1(F) da Convenção de 1951 e/ou do Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. 2009. Disponível em: . Acesso em:14 de julho de 2015. Referida como “Diretriz nº08” ou “Diretrizes sobre Solicitações de Refúgio de Crianças”.

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ACNUR indica a possibilidade de afastamento da responsabilidade individual: (i) pela inexistência do elemento subjetivo, ou seja, da vontade livre e consciente da prática dos elementos materiais do crime; (ii) pela possibilidade de aplicação de excludente, como a coação, obediência a superior hierárquico ou legitima defesa; e, (iii) quando o indivíduo já cumpriu pena pela conduta em questão24. No que diz respeito às crianças, merecem destaque a consideração da inexistência da vontade livre e consciente da prática do crime em decorrência de imaturidade ou intoxicação voluntária. Frequentemente as crianças soldado são mantidas sob a influência de álcool e outras drogas, tanto para serem mantidas sobre controle quanto para encorajá-las a executar as tarefas a elas determinadas25. A excludente pela comprovação de que o crime foi cometido em decorrência de coação também é possível. Muitas crianças são recrutadas ou alistadas em grupos armados contra sua vontade, ou temendo pela sua vida ou de seus familiares. A existência de coação para a entrada em grupo armado, para a permanência nele e/ou para o cometimento de graves crimes, poderia ser, inclusive, analisada como uma comprovação da existência de alguma forma de perseguição contra essa criança, justificando seu pedido de refúgio26. Ainda que o ACNUR tenha abordado a questão da aplicação das cláusulas de exclusão às crianças solicitantes de refúgio nas diretrizes de 2003, na Diretriz nº08 de 2009, específica sobre as solicitações de refúgio feitas por crianças o tema é mais amplamente abordado. Destaca-se, de início, que o ACNUR se remente à Convenção dos Direitos da Criança, definindo que “[...] ‘crianças’ são todas as pessoas com menos de 18 anos de idade”27. Em relação às crianças soldado, a Diretriz nº08 apresenta duas questões importantes. A primeira corrobora a perspectiva analisada anteriormente, ao afirmar que o recrutamento forçado e o recrutamento de uma criança com menos de 18 anos para as forças armadas do Estado para participação direta em confrontos configura uma perseguição. O mesmo se aplica a situações onde a criança está em risco de novo recrutamento à força, ou de ser punida por ter fugido do recrutamento forçado ou desertado das forças armadas do Estado. Da mesma forma, o recrutamento de qualquer criança com menos ACNUR. Op. cit. 2003. §§ 21-23. VAUTRAVERS, Alexandre J. Why Child Soldiers are such a Complex Issue? Refugee Survey Quarterly, vol. 27, nº. 4, p. 96-107, 2009. p. 106. 26  MAYSTRE, Magali. The Interaction between International Refugee Law and International Criminal Law with respect to Child Soldiers. Journal of International Criminal Justice, v. 12, n. 5, p. 975-996, 2014. p. 984. 27  ACNUR. Op. cit. 2009. §7. 24  25 

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de 18 anos, feito por um grupo armado que não seja do Estado, seria considerado perseguição.28

Assim sendo, a natureza do recrutamento forçado e outras ações a ele vinculados visando a manutenção da criança no grupo armado são percebidos pelo ACNUR como uma forma de perseguição contra a criança. A segunda questão diz respeito à aplicação das cláusulas de exclusão à menores. A Diretriz nº05 afirma que As cláusulas de exclusão se aplicam, em princípio, aos menores, mas apenas se eles já houverem atingido a idade mínima para a imputabilidade penal e se possuírem a capacidade mental para serem responsabilizados pelo crime em questão. Em razão da vulnerabilidade das crianças, deve-se ter cuidado redobrado na análise de exclusão relativa a um menor, e excludentes como a coação devem ser analisadas com especial atenção.29

Demonstra-se, assim, a necessidade de avaliação mais cuidadosa da aplicação das cláusulas de exclusão às crianças, porém não há uma delimitação de como deve se dar esse procedimento. Na Diretriz nº08, essa questão é aprofundada. A perspectiva apresentada pelo ACNUR no documento de 2009 é a de que muitas vezes, em decorrência da existência de coação, a crianças soldado, ao cometer graves crimes, é também uma vítima30. Ou seja, há um reforço na interpretação que é preciso avaliar as circunstâncias do crime, verificando caso a caso se não há elementos excludentes de responsabilidade individual. Há também uma maior preocupação com a avaliação da capacidade mental da criança para verificar a existência de intenção e de conhecimentos necessários quando da realização da ação31. Por fim, o ACNUR destaca a necessidade de ponderar a gravidade do ato e as consequências da aplicação das cláusulas de exclusão, levando em consideração também o princípio do melhor interesse da criança. Há ainda a questão de exclusão de responsabilidade pela questão etária. Ao receber uma solicitação de refúgio em relação a qual há sérias razões para considerar que o solicitante tenha cometido um grave crime, o Estado pode, com base em sua legislação penal, considerar que o solicitante, ao tempo do cometimento do alegado crime, não tinha idade para ser criminalmente responsável32. Uma vez que não há uma 28  29  30  31  32 

ACNUR. Op. cit. 2009. §21. ACNUR. Op. cit. 2003. § 28. Grifo no original. ACNUR. Op. cit. 2009. §59. ACNUR. Op. cit. 2009. §§61-64. MAYSTRE. Op. cit. 2014. p. 989.

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idade mínima universalmente reconhecida, a delimitação fica a critério de cada Estado, variando entre 7 e 18 anos33. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebe-se, frente a esse panorama, que há uma crescente preocupação no âmbito internacional no sentido de regulamentar o envolvimento de crianças em forças armadas, estatais ou não, e sua participação em conflitos armados. A tendência parece ser de adoção de padrões de proteção cada vez mais altos, principalmente no que diz respeito à delimitação de um limite etário. Contudo, apesar de existir diálogo e certa coerência entre os instrumentos internacionais analisados, os quais em sua maioria define criança como o menor de 18 anos, essa delimitação não é obrigatória, e os textos internacionais abrem aos Estados a possibilidade de, por um lado, delimitar uma idade para o alistamento voluntário em suas forças armadas, e por outro lado, delimitar sua idade de responsabilização criminal. A principal dificuldade em analisar a possibilidade de aplicação das cláusulas de exclusão da Convenção de 1951 às crianças soldado, portanto, é a inexistência de uma delimitação etária de responsabilização criminal universalmente reconhecida. Apesar de todas as tentativas internacionais, pela via de tratados e convenções, e das diretrizes apresentadas pelo ACNUR, a avaliação de concessão do status de refugiado, via de regra, fica a critério dos Estados, que, por sua vez, pautam-se por suas legislações nacionais para a delimitação da idade de responsabilização penal. Teoricamente, portanto, seria possível que a uma mesma criança fosse concedido o refúgio em um Estado e não em outro. A inexistência de consenso sobre essa questão gera uma não-uniformidade na aplicação da Convenção de 1951 em relação a situação das crianças soldado. É preciso também deixar claro que, uma vez que se reconhece que as atividades de uma criança soldado não se limitam ao combate propriamente dito, não se pode inferir que uma criança que tenha participado de força armada estatal ou grupo armado não estatal tenha cometido um crime grave que possibilite sua exclusão como refugiado. Deve fazer parte da avaliação da aplicabilidade das cláusulas de exclusão, caso se constate o vínculo da criança a um grupo ou força armada, a verificação em cada caso das atividades desempenhadas pela criança para constatar se há razões sérias para acreditar que ela cometeu algum dos crimes em questão. REFERÊNCIAS HAPPOLD, Matthew. Excluding Children from Refugee Status: Child Soldiers and Article 1F of 33 

Idem. p. 989.

Camila Dabrowski de Araújo Mendonça; Danielle Annoni| 421 the Refugee Convention. American University International Law Review, v. 17, n. 6, p. 1131- 1176, 2002. MAYSTRE, Magali. The Interaction between International Refugee Law and International Criminal Law with respect to Child Soldiers. Journal of International Criminal Justice, v. 12, n. 5, p. 975996, 2014. MENDONÇA, Camila D. A.; ANNONI, Danielle. O Primeiro Julgamento do Tribunal Penal Internacional: o Caso Lubanga. In: SANTOS, Ricardo Soares Stersi dos; ANNONI, Danielle (Orgs.). Cooperação e Conflitos Internacionais: Globalização, Regionalismo e Atores. Curitiba: Multideia, 2014. VAUTRAVERS, Alexandre J. Why Child Soldiers are such a Complex Issue? Refugee Survey Quarterly, vol. 27, nº. 4, p. 96-107, 2009. Documentos ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Diretrizes sobre Proteção Internacional n.05 – Aplicação das Cláusulas de Exclusão: Artigo 1F da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados. 2003. Disponível em: . Acesso em: 14 de julho de 2015. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Diretrizes sobre Proteção Internacional n.08 – Solicitações de Refúgio apresentadas por Crianças, nos termos dos Artigos 1(A)2 e 1(F) da Convenção de 1951 e/ou do Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. 2009. Disponível em: . Acesso em:14 de julho de 2015. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado: de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. 2011. Disponível em: . Acesso em: 14 de julho de 2015. BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002 - Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Brasília, 2002. Disponível em: . Acesso em: 15 de julho de 2015. CONVENÇÃO Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em:< http://www.acnur.org/ t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf?view=1>. Acesso em: 14 de julho de 2015. CONVENÇÃO sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em: . Acesso em: 14 de julho de 2015. INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, Judgment pursuant to Article 74 of the Statute, ICC-01/04-01/06-2842, Trial Chamber I, 14 March 2012. PROTOCOLO Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (Protocolo I). 1977. Disponível em:. Aces-

422 | Refúgios e Migrações: práticas e narrativas so em: 15 julho de 2015. PROTOCOLO Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Não Internacionais (Protocolo II). 1977. Disponível em: . Acesso em: 15 julho de 2015. PROTOCOLO Facultativo para a Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados. 2000. Disponível em: . Acesso em: 15 de julho de 2015. PROTOCOLO Relativo ao Estatuto dos Refugiados. 1967. Disponível em: http://www.acnur.org/ t3/fileadmin/scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Protocolo_de_1967_ Relativo_ao_Estatuto_dos_Refugiados>. Acesso em: 14 de julho de 2015. Rome Statute of the International Criminal Court. 1998. Disponível em: . Acesso em: 15 de julho de 2015.

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ANÁLISE DE COMETIMENTOS DE CRIMES DE GUERRA EM CAMPOS DE REFUGIADOS: O caso dos refugiados sírios no Vale do Beqaa entre 2011 e 2015 Júlia Rodrigues1 Resumo: A pesquisa em andamento analisa o possível cometimento de crimes de guerra contra os deslocados sírios instalados no Vale de Beqaa, Líbano, desde o início da guerra civil síria, em 2011. O método a ser utilizado para a pesquisa será em forma de estudo de caso, dada a necessidade de uma compreensão aprofundada sobre o objeto de estudo que foi pouco explorado. O objetivo desta pesquisa é elucidar a situação dos refugiados sírios no Líbano, especificamente na região do Vale de Beqaa, com o intuito de saber se houve, e quais foram os cometimentos de guerra contra os refugiados sírios. A relevância de tal pesquisa se dá pelo fato de que existem poucas pesquisas, no Brasil, que tem como tema a situação crítica que hoje se encontra o Oriente Médio como todo, e em particular os refugiados ali situados devido aos conflitos regionais. Ao final percebeu-se o cometimento de crimes de guerra, notadamente aqueles em relação aos atentados contra a vida, saúde ou bem-estar físico ou mental das pessoas, em particular o assassínio, assim como os tratamentos cruéis, tais como a tortura, as mutilações ou qualquer forma de pena corporal. Palavras-chave: Refugiados; Crimes de Guerra; Líbano; Síria. Resumén: En la investigación en curso se analiza la posible comisión de crímenes de guerra contra los sirios desplazados instalados en el Valle de Beqaa, Líbano, desde el comienzo de la guerra civil de Siria, en 2011. El método que se utilizará para la investigación será en forma de estudio de caso dada la necesidad de un conocimiento profundo de la materia que ha sido poco explorada. El objetivo de esta investigación es dilucidar la situación de los refugiados sirios en el Líbano, específicamente en el área del Valle de la Beqaa, con el fin de saber si había, y cuáles fueron los compromisos de la guerra contra los refugiados sirios. La relevancia de este tipo de investigación se da por el hecho de que hay pocos estudios en Brasil, cuyo tema es la crítica situación que ahora es el Medio Oriente en su conjunto, y especialmente a los refugiados ubicados allí debido a los conflictos regionales. Al final se dio cuenta de la comisión de crímenes de guerra, especialmente los que están relacionados con los ataques contra la vida, la salud o el bienestar físico o mental de las personas, en particular el homicidio y los tratos crueles tales como la tortura, mutilaciones o toda forma de pena corporal. Palabras llave: Refugiados; Crímenes de Guerra; Líbano; Siria.

1  Graduanda em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do EIRENÈ - Núcleo de Pesquisas sobre a Integração Regional, Paz e Segurança Internacional. Email: juuliarodrigues@ gmail.com.

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1 INTRODUÇÃO O tema desenvolvido neste artigo é a análise dos cometimentos ou não de crimes de guerra em campos de refugiados, em específico, os refugiados sírios que se encontram hoje no Líbano, dado à guerra civil síria. A delimitação temporal da pesquisa inicia-se em 2011, no início da guerra civil síria, até julho de 2015. O ano em que mais houve casos relatados pelas organizações internacionais governamentais e não governamentais, de violência, ataques terroristas e de possíveis cometimentos de crimes de guerra contra refugiados sírios foi o ano de 2014, no entanto a pesquisa abrange até o ano de 2015, dado os relatórios da ONU e da ACNUR referente ao tema. Quanto à delimitação espacial, a pesquisa restringe-se à região do Líbano, mais especificamente a região do Vale de Beqaa, concentrando-se nas áreas ocupadas pelos refugiados sírios que se encontram nos campos temporários para refugiados e nos refugiados que estão em casas de família libanesas ou arrendando casas com o auxílio de programas humanitários. O fato de este trabalho não utilizar somente um campo de refugiados como objeto de análise, dentro do tempo delimitado, se justifica dado a situação dos refugiados no Líbano, já que qualquer construção de campos de refugiados oficiais foi terminantemente proibida pelo governo, com o intuito de auxiliar na inserção dos mesmos na sociedade libanesa, e evitar qualquer tipo de cooptação de pessoas para grupos violentos. Assim, o que se encontra no Vale de Beqaa são várias famílias libanesas recebendo sírios e campos de refugiados informais, dispersos no território. O presente artigo busca responder a seguinte pergunta: houve, e/ou há, crimes de guerra contra e violação do Direito Internacional Humanitário nos assentamentos provisórios de refugiados sírios, na região do Vale de Beqaa, no Líbano? Como resposta inicial, entende-se que houve o cometimento crimes de guerra e violações do Direito Internacional Humanitário contra os refugiados sírios no Líbano, principalmente em relação aos atentados contra a vida, saúde ou bem-estar físico ou mental das pessoas, em particular o assassínio, assim como os tratamentos cruéis, tais como a tortura, as mutilações ou qualquer forma de pena corporal. A primeira parte deste trabalho consiste no esclarecimento conceitual, em que são apresentados os principais conceitos utilizados e necessários para melhor entendimento e análise do caso. É apresentado o conceito de refúgio, dado o fato de ser o foco central do trabalho os refugiados, e o conceito de asilo, sendo também explicado nesta parte a diferença entre estes dois conceitos, já que ambos são comumente confundidos e utilizados e forma errônea. São apresentadas também as Convenções de Genebra de e seus respectivos Protocolos Adicionais, bem como o conceito de Guerra Civil, o qual

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encontra-se justamente nas Convenções de Genebra de 1949 e em seus Protocolos Adicionais de 1977. A segunda parte deste trabalho abarca a apresentação do que seria o Vale do Beqaa, suas características geográficas, populacionais e econômicas. Além disso, é nesta parte que se encontra a explanação da conjuntura local em relação aos refugiados, qual a situação político-social do local e qual a postura do governo libanês diante da legalidade dos refugiados sírios e dos desafios humanitários que o mesmo enfrenta, bem como os principais atores que fazem parte da equação problemática que envolve os refugiados, o spill-over da guerra civil síria e os possíveis cometimentos de crimes de guerra. A terceira sessão deste trabalho apresenta, então, aqueles crimes de guerra elencados como os mais prováveis de terem sido cometidos. É nesta parte que se analisa os fatos juntamente com os crimes apresentados e evidencia-se ou não se houve realmente um crime de guerra ou mesmo indícios de que tais crimes tenham sido cometidos. A quarta e última parte deste trabalho se trata das impressões e considerações da análise feita da conjuntura local do Vale do Beqaa, das questões políticas, econômicas e humanitárias. As principais considerações deste trabalho são que existem sim os cometimentos dos crimes de guerra aqui elencados, no entanto, não se tem acesso às informações mais detalhadas sobre os casos factuais. 2 ESCLARECIMENTO CONCEITUAL

2.1 Refúgio e Asilo O conceito de refugiados utilizado por este trabalho é aquele dado pelas Convenções de 1951 depois ratificados pelo Protocolo de 1967, no qual entende como refugiado todo e qualquer indivíduo que tenha um bem fundado temor de perseguição, seja por sua raça, religião, ideologias políticas, nacionalidade ou pertencimento a um dado grupo social. É necessário ressaltar que o Líbano é signatário dos dois Protocolos Adicionais de 1977 e a Síria é signatária somente do Protocolo Adicional I de 1977. Ou seja, ainda que não haja um regulamento interno no trato especifico para com os refugiados, o Líbano se encontra obrigado a cumprir as normas existentes nos protocolos e assim garantir que tais indivíduos sejam recebidos e tratados da forma mais digna e humana possível. É igualmente necessário discernir dois institutos que são comumente confundidos, quais sejam: refúgio e asilo. Enquanto o primeiro já foi explicitado anteriormente, o segundo consiste “no instituto pelo qual um Estado fornece imunidade a um indi-

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víduo em face de perseguição sofrida por esse em outro Estado.”2. O asilo tem como características Por esse instituto jurídico um Estado tem o poder discricionário de conceder proteção a qualquer pessoa que se encontre sob sua jurisdição. É o que modernamente denomina-se asilo político, uma vez que é concedido a indivíduos perseguidos por razões políticas, e se subdivide em dois tipos: (1) asilo territorial – verificado quando o solicitante se encontra fisicamente no âmbito territorial do Estado ao qual solicita proteção; e (2) asilo diplomático – o asilo concedido em extensões do território do Estado solicitado como, por exemplo, em embaixadas, ou em navios, ou aviões da bandeira do Estado.3

O refúgio é um direito individual daquele que o solicita e uma obrigação do Estado em concedê-lo, enquanto o asilo é uma prerrogativa estatal em que o Estado possui discricionariedade, podendo concedê-lo e/ou revogá-lo a qualquer momento.

2.2 Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais As convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos adicionais de 1977 dissertam sobre quais as condutas a serem tomadas, em tempos de guerra, pelas partes beligerantes. Dessa forma as Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos adicionais elencam quais tipos de condutas seriam consideradas crimes, pelo fato de não contribuírem para o fim mais rápido e justo das contendas, e quais seriam aceitas como consequências aceitáveis de guerra. Dentre todos aqueles listados pelas Convenções e pelo Protocolo, este trabalho elenca aqueles que, acredita-se, foram cometidos contra os refugiados sírios no Líbano por alguma das partes envolvidas no conflito, tais como: os atentados contra a vida, saúde ou bem-estar físico ou mental das pessoas, em particular o assassínio, assim como os tratamentos cruéis, tais como a tortura, as mutilações ou qualquer forma de pena corporal. Ainda que o Líbano não tenha ratificado as Convenções Genebra de 1949, o país ratificou seus Protocolos Adicionais I e II de 1977, o que obriga o país a garantir aos refugiados, sejam eles provenientes de conflitos internacionais ou não, a proteção necessária à sua sobrevivência digna. Enquanto as convenções de Genebra são consideradas obrigatórias para todos 2  JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito internacional dos refugiados e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007. p. 37. 3  Ibid., p. 38

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os Estados, mesmo os que por ventura não tenham ratificado as convenções, os Protocolos Adicionais de 1977 são de adesão voluntária, ou seja, nem todos os Estados são signatários de todos os protocolos adicionais ou de algum deles. Tais Protocolos são importantes porque tanto Líbano quanto Síria são signatários do Protocolo I de 1977 e o Líbano também do Protocolo II de 1977.

2.3 Guerra Civil Por mais que nas Convenções de Genebra não exista uma conceituação de guerra civil, existem critérios para considerar-se um conflito de caráter não internacional, no qual as Convenções de Genebra de 1949 e seu Protocolo Adicional I de 1977 se aplicam, sendo eles: o partido rebelde deve possuir uma parte do território nacional; a autoridade civil insurgente deve exercer a autoridade de fato sobre a população dentro de uma porção determinada do território nacional; os insurgentes devem ter certo nível de reconhecimento como beligerante; o governo legal é obrigado a recorrer às forças militares regulares contra os insurgentes organizados como militares. É notável, então, que a guerra que hoje acontece na Síria se trata de uma guerra civil, com o agravante de ser um conflito internacionalizado dado o fato de que todos os países à sua volta sofrem com consequências diretas, como o recebimento de refugiados em massa, causando debilidades econômicas, sociais e políticas. Dessa forma o Protocolo II de 1977, voltado a conflitos de caráter internacional, também acaba por abarcar a situação síria. 3 O VALE DO BEQAA O Vale do Beqaa tem uma área de 120 km de comprimento e 16 km de largura, constituindo 42% da área de todo o Líbano. É divido entre o Beqaa Norte, composto por Baalbel e Hermel – essa região tendo sido marginalizada e deixada em condições precárias de segurança; Beqaa Central (Zahle), que é considerado o centro econômico de Beqaa e também a principal passagem de fronteiras, passando por Masnaa. E por fim Beqaa Ocidental, em que a segurança é tida como maior do que no resto do Vale4. A região do Vale tem uma população de 540.000 habitantes. Em Beqaa Norte a população é majoritariamente xiita, ainda que existam alguns bolsões de comunidades sunitas. Já em Beqaa Central a população é composta de uma maioria sunita e cristã, 4  Office for the Coordination of Humanitarian Affairs of the United Nations. Lebanon: Bekaa Governorate Profile. August 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 ago 2015.

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enquanto em Beqaa Ocidental a diversidade de credos é maior5.

3.1 As movimentações de refugiados sírios nas fronteiras libanesas A chegada dos refugiados sírios ao Líbano não se sucedeu de forma gradual ou organizada. No início do conflito os refugiados eram estabelecidos, em sua maioria, no norte do Líbano – região mais distante da Síria – em lugares como Wadi Khaled e Tripoli. No entanto, a partir de 2012, o Vale de Beqaa, uma região mais perto das fronteiras com a Síria, passou a ser o local em que grande número de refugiados se estabeleciam. A diferença entre os refugiados que chegavam ao país logo após iniciados os conflitos na Síria é que estes foram recebidos por famílias libanesas, e aqueles que tinham maiores condições financeiras se estabeleciam no norte, locando casas ou quartos de hotel; já aqueles refugiados que passaram a chegar ao Vale de Beqaa encontraram certa resistência por parte das famílias libanesas – em números essa diferença fica muito mais visível visto 90% dos refugiados assentados ao norte do Líbano ser recebidos pelas famílias locais, e somente 14% das famílias dos Vale de Bekaa receberam os refugiados sírios6. Devido ao fato de o Líbano já receber refugiados palestinos anteriormente aos conflitos iniciados na Síria, existem campos oficiais de refugiados no território libanês, tendo no Vale do Beqaa um campo de refugiados com cerca de 8.500 refugiados palestinos provenientes da Síria, ou na sigla em inglês, PRS (Palestinian Refugees from Syria). Ainda assim, a região do Vale do Beqaa abriga cerca de 400,000 refugiados sírios registrados, muitos dos quais vivem nos 730 assentamentos informais localizados em todo Vale, no entanto, existe uma concentração maior nas regiões de Aarsal, Beqaa Central e Baalbeck7. Devido às dificuldades econômicas que o conflito sírio trouxe às regiões em seu entorno, como a suspensão das trocas comerciais para e através da Síria, somado aos conflitos em e ao redor de Arsal em agosto de 2014, as relações entre as comunidades de recebimento libanesas e os refugiados sírios começaram a dar indícios de deterioração. Além disso, a mão de obra barata síria tem causado a substituição de libaneses por sírios e aumentado a pressão sobre os serviços sociais básicos8. Existe grande dificuldade em distinguir os refugiados sírios pós-2011 daqueOffice for the Coordination of Humanitarian Affairs of the United Nations, Op. cit. NAUFAL, Hala. Syrian Refugees in Lebanon: the Humanitarian Approach under Political Divisions. MPC Research Report 2012/13. Disponível em: . Acesso em: 10 ago 2015. p. 7. 7  Office for the Coordination of Humanitarian Affairs of the United Nations, Op. cit. 8  Office for the Coordination of Humanitarian Affairs of the United Nations, Op. cit. 5  6 

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les que chegaram antes, já que aqueles provenientes dos conflitos na Síria são vistos e submetidos às mesmas regras daqueles que chegam ao país somente por questões particulares ou profissionais. Ambos têm permissão de trabalho perante o governo libanês, exceto os núcleos familiares formados apenas por mulheres e crianças, porém a condição de entrada dos refugiados que chegaram devido a guerra civil síria é por vezes muito mais precária já que, em sua maioria, não possuem documentos ou dinheiro para serem autorizados a entrar no país. Além disso, a distinção é necessária, pois existe grande número de refugiados militantes, os quais entram em terras libanesas para montar bases militares e de recrutamento em prol de suas causas – sejam elas pró ou contra o regime de Bashar al-Assad – com o intuito de causar pânico e confusão na população libanesa, e uma consequente pressão sob o governo a tomar partido9.

3.2 Normas libanesas para recepção de refugiados Não existe dentro do ordenamento jurídico do Líbano qualquer regulamento que trate sobre o status ou os direitos dos refugiados. A principal evidência de tal situação é o fato de o Líbano não ser signatário da Convenção de 1951, relativa aos Status de Refugiados nem de seu Protocolo de 1967. Apesar de o Estado libanês não ser signatário da Convenção de 1951, o princípio de ‘non-refoulement’10 “faz parte de uma lei costumeira, um conjunto de regras que está vinculada a todos os Estados, ainda que este não tenha assinado uma convenção específica descrevendo esta lei”11. Ainda assim, o Líbano é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, tornando oficial a obrigatoriedade do respeito aos direitos humanos de forma geral, ainda que o status legal desses refugiados fugindo da Síria para o Líbano seja de responsabilidade deste último. Ainda que, devido ao acordo de Cooperação Econômica e Social feito entre Líbano e Síria em 1993, o Líbano tenha mantido suas fronteiras abertas a chegada de sírios, muitas vezes facilitando a continuidade de suas estadias12, com a crise humanitária que se tornou a guerra civil na Síria, fica claro que aqueles refugiados que não puderem comprovar sua legalidade de entrada ao país, devido à falta dos documentos necessários para a comprovação de identidade ou da necessidade da entrada no país, são obrigados a NAUFAL, Op. cit., p. 21-22. INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION. Assessment of The Impact Of Syrian Refugees In Lebanon And Their Employment Profile. Regional Office for the Arab States, 2014. Disponível em: < http:// www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---arabstates/---ro-beirut/documents/publication/wcms_240134. pdf>. Acesso em: 15 ago 2015. p. 14. 11  Idem, p. 14. No original, em inglês, “binding on all states, even if a country has not signed a specific convention outlining this law”. Tradução livre. 12  INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION, Op. cit., p. 15. 9 

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recorrer a vias de entrada ilegais para fugir das violências perpetradas na Síria. Com um status de ilegalidade, os refugiados sírios têm seus direitos limitados em três categorias principais: a) refugiados que entraram no Líbano por meio de fronteiras não oficiais de entrada e não possuem documentos de identidade; b) refugiados que entraram por fronteiras não oficiais de entrada, mas que possuem documentos de identidade; ou c) refugiados que entraram por fronteiras oficiais de entrada, mas que, no entanto, não puderam renovar sua licença de residência uma vez expirada13. As principais consequências sentidas pelos refugiados diante de seus status legais limitados são: a) restrições na liberdade de movimento: vários refugiados reportaram estar assustados demais ou incapazes de cruzar os controles oficiais de fronteira para acessar os serviços básicos, incluindo o registro feito pela ACNUR, muitos declaram terem sido tratados com detenções e até mesmo deportações caso tentassem cruzar a fronteira sem os documentos de identidade, e na região de Aarsal muitos refugiados expressaram o medo de serem capturados ou barrados em pontos de controle oficial na região de Beqaa; b) desafios legais: muitos refugiados sírios declararam que, dado o medo de serem presos, não reportam as autoridades libanesas quaisquer crimes dos quais tenham sido vítimas ou incidentes mais graves, fazendo com que os refugiados estejam mais vulneráveis a situações de abusos, violência e exploração; c) dificuldades em acesso a serviços básicos: como já citado, os refugiados encontram muitas dificuldades para realizar o registro no ACNUR, o que cria obstáculos ao acesso a serviços básicos, como assistência alimentar e de saúde, além da dificuldade em encontrar abrigo diante da falta de documentos de identidade ou legalidade de estadia no Líbano14.

3.3 Principais Atores Os principais atores, ou seja, aqueles que estão diretamente ligados aos cometimentos de crimes de guerra contra os refugiados e aqueles que fazem parte de grupos de auxílio aos mesmos são: o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o grupo Xiita Hezbollah, o grupo Sunita Dar al-Fatwa, o governo libanês. O ACNUR tem como objetivo e mandato organizar e coordenar a ação internacional para o auxílio dos refugiados e a encontrar uma solução duradoura para suas diversas situações. No Líbano tem sido o principal ator de ajuda humanitária, desde o início do influxo de refugiados ao país, e com grande ajuda das organizações não governamentais nacionais, o ACNUR tem feito um grande trabalho em prol dos refugiados, NORWEGIAN REFUGEE COUNCIL. The Consequences of Limited Legal Status for Syrian Refugees in Lebanon. Field Assessment Aarsal and Wadi Khaled. 2013. Disponível em: < http://www.nrc.no/ arch/_img/9195216.pdf>. Acesso em: 20 ago 2015. p. 5. 14  INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION, Op. cit., p. 6. 13 

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seja na arrecadação de recursos, na distribuição de mantimentos básicos, no auxílio para encontrar famílias receptoras de refugiados ou ajuda para locação de residências – já que a maioria dos refugiados sírios se encontra com famílias libanesas ou em casas alugadas, devido à recusa do governo em montar campos oficiais de refugiados. Segundo o ACNUR, em 2014 havia 182 organizações de várias áreas operando em prol dos refugiados sírios no Vale do Beqaa15. O Líbano é um país com notáveis desigualdades sociais e econômicas. A partir de pesquisas feitas em 2008 pelo Centro Internacional de Pobreza mostraram que áreas habitadas pelos sunitas eram aquelas que mais se identificavam como “pobres”, com 57% da população sunita dentro desta faixa16. Diante do fato de que o governo libanês é divido entre representantes das grandes religiões ali existentes, islâmicos e cristãos, e que a população xiita se encontrava amparada pelos seus representantes, principalmente o grupo Hezbollah, acentuou-se um sentimento de marginalização por parte da população sunita. Uma das consequências deste sentimento de marginalização foi a utilização de meios mais violentos para chamar a atenção do governo – como, por exemplo, o grupo Dar al-Fatwa – tal situação antes mesmo do início da guerra civil síria. As consequências do spill-over da guerra civil síria nesses fatos é a exacerbação desses atos violentos, piorado pelo fato de que a maioria dos sunitas são contra o governo de Bashar al-Assad. Além disso, os sunitas passaram a ter que enfrentar um apoiador direto, o grupo Hezbollah17. O grupo Hezbollah surgiu em 1982 no Líbano, como resposta a invasão israelense naquele país. Desde então o grupo tem tido um papel de resistência a Israel, envolvido profundamente na causa palestina. Atualmente, o grupo tem grande influência política, tendo representantes no governo. Além disso, seu braço político detém programas de bem-estar social, inclusive no Vale do Beqaa. Em 2013 o grupo foi classificado pela União Europeia como terrorista, cedendo a pressões internas e externas para tal, com justificativas de atentados supostamente feitos pelo grupo18. O governo libanês tem se mostrado aberto para a entrada dos refugiados sírios Office for the Coordination of Humanitarian Affairs of the United Nations, Op. cit. LEFÈVRE, Raphaël. The Roots of the Crisis in Northern Lebanon. Carnegie Middle East Center. 2014. Disponível em:< https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB4QFjAAahUKEwjs24LOh9rHAhUJG5AKHfiSB0k&url=http%3A%2F%2Fcarnegieendowment.org%2Ffiles%2Fcrisis_northern_lebanon.pdf&usg=AFQjCNEjXiMoO3MDms1PzJJemIlPA86wKA>. Acesso em: 15 ago 2015. p. 5. 17  LEFÈVRE, Op. cit., p. 11. 18  MAIA, Natalia Nahas Carneiro. A Classificação do Braço Armado do Hezbollah como Terrorista pela União Europeia: os limites das sanções e a presença integrada do partido na política libanesa. Boletim Mundorama. 29 ago 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 ago 2015. 15  16 

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pelas fronteiras. No entanto, a forma pela qual o governo encara a questão – não classificando os deslocados sírios, que chegaram ao país devido a guerra civil síria, como refugiados – acaba por limitar a entrada e o acesso de tais refugiados ao país e aos serviços básicos, e também ao registro desses refugiados pelo ACNUR. Como demonstrado anteriormente, as fronteiras libanesas estão restritas àqueles refugiados que além de possuírem identificação, detém uma autorização de estadia no país, excluindo do acesso às assistências formais aos refugiados aqueles que não possuem tais documentos.

3.4 O governo do Líbano e sua postura diante da crise dos refugiados sírios Todos os refugiados que hoje estão assentados dentro do país não são vistos pelo governo libanês não como refugiados, e sim como “indivíduos deslocados”. Tal situação é alarmante porque os refugiados se beneficiam de direitos próprios, garantidos pela Convenção de Genebra de 1949, enquanto os deslocados não se beneficiam de um regime específico, ainda que sejam visados em algumas cláusulas das referidas convenções19. No entanto, dentro do ordenamento jurídico do Líbano não existem regulamentações para “indivíduos deslocados”, existindo somente em relação a asilos políticos – nos países europeus não se faz a distinção feita no Brasil entre refugiados e asilados políticos, sendo eles, muitas vezes, tratados da mesma forma, levando aos países europeus a tratarem com maior restrição a questão do acolhimento de refugiados20. A questão da não construção de campos de refugiados no Líbano é sobretudo política, dado que o grupo Hezbollah, que detém grande influência dentro do governo libanês e seus aliados querem evitar que tais campos tornem os refugiados visíveis, e assim alvos fáceis a retaliações da Síria e de seus apoiadores libaneses, além de ser foco para reunião e treinamento de milícias. Somado a isso, existe a grande falta de logística e seriedade do governo libanês em construir um sistema de ajuda aos refugiados, cuja responsabilidade recai em organizações não governamentais libanesas e internacionais, com grande parte da comunidade local como fonte essencial para assistência. Todavia, diante da escassez de fontes de assistência humanitária, as necessidades básicas dos refugiados são precariamente atendidas, quando não totalmente ignoradas21. Além disso, é necessário considerar que a situação política atual do Líbano é de tamanha dificuldade, visto que as eleições para o primeiro ministro estão sendo poster19  20  21 

JUBILUT, Op. cit.. NAUFAL, Op. cit., p. 21-22. NAUFAL, Op. cit., p. 21-22.

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gadas desde 2013 devido à falta de capacidade do governo em chegar a um consenso interno. Tal situação causa precariedade não somente em questões relativas aos refugiados, mas também nas resoluções dos problemas enfrentados domesticamente, sejam elas de cunho econômico ou social. 4 VERIFICAÇÃO DO COMETIMENTO DOS CRIMES DE GUERRA

4.1 Ataques deliberados contra não combatentes Ainda que não se possam ter provas factuais de que houve em algum momento ou continua havendo situações de crimes de guerra que atentem contra a vida dos civis em geral, e dos refugiados sírios em particular, no Vale do Beqaa, indícios podem ser vistos por meio dos vários relatos de violências, atentados terroristas e bombardeios, seja por meio de veículos de notícias ou por relatórios oficiais do ACNUR. Segundo o relatório de agosto de 2014 do Office for the Coordination of Humanitarian Affairs of the United Nations (OCHA), a primavera e o verão deste ano foram momentos em que a região norte de Beqaa, principalmente as cidades de Hermel, Tfail e Aarsal se viram atingidas por foguetes e morteiros disparados pela Síria, resultando em várias mortes e feridos, o que também levou ao deslocamento de civis libaneses e refugiados sírios dessas regiões. Os confrontos causaram muitos prejuízos a abrigos, casas, e outros tipos de instalações, causando também morte de civis. Como já evidenciado, a divisão ideológica de cunho religioso dentro do Líbano é o principal fator que leva a radicalização de movimentos pró e contra o governo sírio. Tal divisão é existente e causa problemas políticos, sociais e econômicos no Líbano desde muito antes da guerra civil síria, mas que viu suas divisões se tornarem mais profundas com a crise humanitária que se enfrenta. O grupo extremista xiita Hezbollah, que tem representatividade bastante significativa dentro do governo libanês tem dado um suporte financeiro e militar ao regime sírio – por ser seu apoiador – o que ocasiona um fluxo de violência para o Líbano22. Tal situação vem a ser um indício de crime de guerra, pois estimula a violência entre os grupos civis opositores ao regime de Bashar al-Assad e seus apoiadores libaneses, causando uma situação na qual os refugiados, por serem sírios e por estarem em uma situação mais vulnerável de insegurança, se tornam alvos em potencial desses ataques terroristas e dos confrontos entre esses dois grupos. Uma das grandes mostras de que a ideologia contrária e os conflitos que dela resultam dentro do Líbano é a Declaração de Baabda de 201223. O então presidente do LEFÈVRE, Op. cit., p. 1. SECURITY COUNCIL. Baabda Declaration. 2012. Disponível em: . Acesso em: 20 ago 2015. 24  SECURITY COUNCIL, Op. cit.. No original, em inglês: “12. Lebanon should eschew block politics and regional and international conflicts. It should seek to avoid the negative repercussions of regional tensions and crises in order to preserve its own paramount interest, national unity and civil peace, except where the matter concerns resolutions of international legitimacy, Arab consensus or the rightful Palestinian cause, including the right of Palestinian refugees return to their land and homes rather than being integrated. 13. Measures should then be taken to control the situation on the Lebanese-Syrian border. The establishment of a buffer zone in Lebanon should not be permitted. The country cannot be used as a base, corridor or starting point to smuggle weapons and combatants. At the same time, the right to humanitarian solidarity and political and media expression is guaranteed under the Constitution and the law.”. Tradução livre.

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recolhidos pelo Norwegian Refugee Council, (NRC) no qual ficou claro que a falta de assistência causa a entrada ilegal de numerosos refugiados. É de conhecimento geral que tal procedimento muitas vezes requer que os refugiados se coloquem em situações de risco, tendo que enfrentar extorsões de várias formas, ariscando-se física e psicologicamente para terem acesso ou ao território libanês ou aos serviços básicos, aos registros de refugiados. Tal situação deixa margem para tratamentos abusivos como prisões arbitrarias, nas quais muitas vezes ocorre a pratica de tortura, bem como situações de deportação, colocando diretamente e deliberadamente a vida desses refugiados em risco. Além disso, muitos refugiados relataram que, por vezes, a entrada dos pode ser impedida pelas autoridades localizadas na fronteira por motivos como pobreza aparente, ou mesmo por gênero, quando mulheres e crianças chegam desacompanhadas à fronteira. A maioria dos refugiados sírios no Líbano é composta por mulheres e crianças. Notavelmente, estes dois grupos são os que mais estão vulneráveis a violações de direitos humanos e cometimentos de crimes de guerra, pelo simples fato de pertencerem a um determinado gênero e/ou a uma faixa etária definida. Ainda que não haja informações mais concretas sobre situações de violência sexual, existem inúmeros relatos de mulheres e crianças sírias que vieram a sofrer algum tipo de violência, seja antes ou depois de se instalarem no Líbano, principalmente o estupro. Como já explanado, a situação precária de assistência no Líbano faz com que várias dessas mulheres e crianças que se encontram desempregadas e em assentamentos para refugiados superlotados, ou habitando prédios públicos abandonados devido à falta de refúgio, sofram de várias formas de violência, principalmente a sexual. Em muitos casos, as famílias necessitadas encontram na exploração sexual de mulheres e crianças uma fonte de renda25. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda que as evidências do cometimento de crimes de guerra não sejam tão claras, tornou-se evidente com esta pesquisa que a potencialidade de tais crimes serem cometidos sem o conhecimento do público em geral, e principalmente, de tais crimes virem a acontecer em um futuro muito próximo. O maior problema encontrado não se refere à falta de cometimentos crimes de guerra, mas sim a escassez de informações confiáveis e precisas para que haja a possibilidade de comprovação dos mesmos. Ainda assim, o que se passa no Líbano é uma das crises humanitárias mais graves dos últimos anos, fazendo com que a urgência em resolver os problemas aqui apresentados, de ordem gravíssima para os direitos humanos, sejam resolvidos ou tenham, pelo menos, sua ANANI, Ghida. Dimensions of gender-based violence against Syrian refugees in Lebanon. Forced Migration Review. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015. p. 76. 25 

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gravidade e quantidades diminuídas. Os crimes de guerra foram utilizados aqui por serem mais específicos e assim, tornam a pesquisa mais focada. No entanto em vários momentos houve violação grave dos Direitos Humanos contra os refugiados sírios no Líbano, não somente no Vale do Beqaa, mas em toda a sua extensão territorial. A falta de logística e organização do governo libanês em tornar a entrada dos refugiados menos burocrática e discricionária: já que a exigência de documentos de identidade para a entrada e permanência no país por si só exclui uma grande maioria de refugiados que saem de suas casas em momentos de urgência e ariscando suas vidas, momentos nos quais seus pertences ou foram destruídos pelos combatentes da guerra civil síria, ou foram deixados para trás com o intuito de sair da forma mais rápida e segura possível; exclui também as famílias que não possuem renda alguma para conseguir renovar seus documentos de estadia, visto que não possuem trabalho e as ajudas humanitárias são mais do que escassas; exclui os refugiados que, sem documentos e/ou renda, não possuem acesso aos mínimos serviços de sobrevivência, e que não conseguem auxílio das organizações humanitárias locais e internacionais. As questões de violência sexual contra mulheres e crianças, que constituem a maioria dos refugiados sírios no Líbano, também é algo que deve ser considerado de forma cautelosa, dado o fato de que grande parte das vítimas desse tipo de violência ser coagidas ou terem vergonha de admitir o que sofreram. Assim, tem-se como principais considerações o fato de que os cometimentos de crimes de guerra aconteceram e acontecem na região, ainda que a obtenção de informação não seja fácil, e que aquelas obtidas mesmo por meio de órgãos humanitários não sejam oficiais. Tais considerações se dão pelo fato de os indícios dos cometimentos de crime de guerra serem realmente fortes e de que, em uma situação de calamidade humanitária e na qual existem tantos desafios e a serem superados como os evidenciados aqui, é improvável que situações de crimes de guerra tenham sido evitadas ou não tenham ocorrido. REFERÊNCIAS ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. Disponível em: < http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf?view=1>. Acesso em: 15 ago 2015. ANANI, Ghida. Dimensions of gender-based violence against Syrian refugees in Lebanon. Forced Migration Review. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.

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Políticas Migratorias post 11 de septiembre y su respuesta desde la Responsabilidad de Proteger David Fernando Santiago Villena Del Carpio1 Resumen: El presente artículo tiene por objetivo analizar las políticas migratorias ejecutadas por los Estados para encarar los flujos de inmigrantes que buscan refugio. En la tentativa de dar con una solución, se analiza la posibilidad práctica de la Responsabilidad de Proteger para el accionar conjunta de la comunidad internacional para concentrarse en las situaciones que originan los flujos de refugiados y parar con las violaciones a los derechos humanos. Consecuentemente, los refugiados tendrían un retorno seguro y la población afectada vería mejorada su calidad de vida, para que ya no se vea obligada a salir del país. Palabras clave: Refugiados; Responsabilidad de proteger; Comunidad internacional. Abstract: The goal of this article is to analyze the immigration policies that are being executed by the States to face the flows of migrants looking for refuge. Trying to find a solution we will analyze the usefulness of the Responsibility to Protect by the international community to focus on the situations that force people to run away and stop the human rights’ violations. Consequently, refugees will have a safe return and the population will have better life quality, so they do not have to run away from their country. Keywords: Refuges; Responsibility to protect; International community.

1  Máster en Derecho y Relaciones Internacionales por la Universidad Federal de Santa Catarina (UFSC, Brasil). Doctorando en Derecho por la Universidad Federal de Santa Catarina (UFSC, Brasil). Contacto: [email protected]

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1 INTRODUCCIÓN El objetivo del presente artículo es analizar el impacto que tuvo los ataques del 11 de septiembre a los Estados Unidos en las políticas migratorias de los Estados, las cuales pueden ir contra el Derecho Internacional de los Refugiados. Para comprender la situación actual de las migraciones es importante conocer cuál fue el contexto en el que fue suscrita la Convención sobre el Estatuto de los Refugiado de 1951 (en adelante, Convención de 1951). Ella se dio una vez finalizada la Segunda Guerra Mundial y para hacer frente al problema de la movilización masiva de personas que huyeron por causa de la guerra. En consecuencia, una característica resaltante era su limitación temporal y geográfica en la determinación de quién era refugiado. Es así que b) Que, como resultado de acontecimientos ocurridos antes del 1º de enero de 1951 y debido a fundados temores de ser perseguida por motivos de raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u opiniones políticas, se encuentre fuera del país de su nacionalidad y no pueda o, a causa de dichos temores, no quiera acogerse a la protección de tal país; o que, careciendo de nacionalidad y hallándose, a consecuencia de tales acontecimientos, fuera del país donde antes tuviera su residencia habitual, no pueda o, a causa de dichos temores, no quiera regresar a él. (…) §2. a) “Acontecimientos ocurridos antes de 1º de janeiro de 1951 en Europa” (art. 1)2.

Del texto citado, se concluye que se intentaba proteger a los refugiados ocasionados por la Segunda Guerra Mundial, específicamente a los originados en Europa. Sin embargo, esta definición fue modificada por el Protocolo Adicional de 1967, que indica lo siguiente §2. A los efectos del presente Protocolo y salvo en lo que respecta a la aplicación del párrafo 3 de este artículo, el término «refugiado» denotará toda persona comprendida en la definición del artículo 1 de la Convención, en la que se darán por omitidas 2 

Convención de 1951 relativa al estatuto de los refugiados.

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las palabras «como resultado de acontecimientos ocurridos antes del 1º de enero de 1951 y...» y las palabras «... a consecuencia de tales acontecimientos», que figuran en el párrafo 2 de la sección A del artículo 1 (art. 1)3.

Debido a ello, se amplió la definición de refugiado, siendo la nacionalidad del inmigrante irrelevante para acceder al status de refugiado. No obstante, los ataques terroristas a los Estados Unidos en setiembre de 2001, transformó la percepción que se tenía de los inmigrantes y/o refugiados y los países firmantes de la Convención de 1951 comenzaron a criticar las obligaciones que se les imponía en virtud de ella. Es a partir de esta fecha que los refugiados son percibidos como amenazas a la seguridad nacional, dado que fueron catalogados como terroristas. Es por ello que las restricciones para acceder a la condición de refugiado se incrementaron, originando que los inmigrantes entren en contacto con grupos criminales que ofrecían una forma de entrar al Estado de destino, generando un círculo vicioso en lo que respecta a la percepción hacia los inmigrantes. Siendo éste el estado de la cuestión, el objetivo del presente trabajo es analizar la situación actual de las políticas migratorias, así como una posible respuesta por parte de la comunidad internacional a través de la Responsabilidad de Proteger (R2P, por su sigla en inglés). 2 El panorama desde el 9/11 Debido a los ataques terroristas a los Estados Unidos, varios Estados adoptaron políticas migratorias con el objetivo de hacer frente a los flujos de migrantes, los cuales pueden ser posibles refugiados, políticas que responden a las diseñadas en el contexto de la Guerra al Terror4. En consecuencia, “los refugiados pasaron de ser una categoría de personas protegidas al final de la Segunda Guerra Mundial a ser discriminados dentro del contexto de la migración internacional irregular”5. Es importante resaltar que todos los Estados que firmaron los instrumentos referentes al Derecho Internacional de los Refugiados deben cumplir con dos principios: el primero es non-refoulement, por el cual los refugiados no pueden ser devueltos al lugar donde están sufriendo persecución; y la no discriminación al momento de ofrecer protección a los refugiados. Sin embargo, el Alto Comisionado de las Naciones Unidas PROTOCOLO SOBRE EL ESTATUTO DE LOS REFUGIADOS, 1967. CLARK, Tom; SIMEON, James. UNHCR international protection policies 2000-2013: from cross-road to gaps and responses, Refugee Survey Quarterly, v. 33, n. 3, 2014, p. 4. 5  KNEEBONE, Susan (ed.). Refugees, Asylum Seekers and the Rule of Law: Comparative Perspectives. Cambridge University Press, 2009, p. 5. 3  4 

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para los Refugiados (ACNUR) indica “que en el 2005, incidencia sobre la devolución de refugiados fueron reportadas por cerca del 50% de las oficinas del [ACNUR]”6. De ello se concluye que los gobiernos consideran la institución del refugio como una puerta abierta que permite el ingreso de inmigrantes. Es así que dos tendencias negativas han surgido. La primera es una aplicación excesivamente restrictiva de la Convención y su Protocolo de 1967, lo que ha dado lugar a un incremento de las detenciones y las exclusiones… La segunda es una proliferación de mecanismos alternativos de protección que garantizan menos derechos que los de la Convención7.

Los mecanismos a los que se refiere el párrafo antes citado tienden a transferir a los refugiados a otros terceros Estados de destino. Debido a estas tendencias, los posibles Estados de destino no centran su atención en las causas que producen el fenómeno de la inmigración forzada. Un ejemplo lo constituye el caso Tampa, navío noruego que rescató a 438 afganos de aguas indonesias llevándolos a aguas australianas. Sin embargo, el gobierno australiano desestimó el pedido de refugio de estos afganos, afirmando que constituían un peligro para el país8. No obstante, hasta ese momento se había aceptado el pedido de refugio del 85% de afganos que ahora se consideraban migrantes ilegales. En la búsqueda de una solución, el gobierno australiano firmó la “Solución Pacífica”, según la cual Australia firmaba acuerdos bilaterales con Nueva Zelandia, Papúa Nueva Guinea y Nauru para que acepten estos refugiados. A cambio de ello, “estos acuerdos ofrecieron una fuerte suma de dinero a Papúa Nueva Guinea y Nauru, los cuales no habían establecido un sistema para atender los pedidos de refugio”9 La importancia del caso radica en que Australia representa un mínimo porcentaje en cuanto a recepción de refugiados y, aún así, influyó para que otros países adopten políticas semejantes. Además, Australia modificó sus procedimientos legales, excluyendo de la jurisdicción del derecho de refugiados aquellas islas que eran de fácil acceso para los refugiados, pasando a tener ahora estatus de ultramar. 6  ACNUR. Statement by Ms E. Feller, Assistant High Commissioner for Protection. 2006b. Disponible en: Accedido en: 11 abr. 2015, p. 1. 7  ACNUR. La situación de los Refugiados en el mundo: Desplazamientos humanos en el nuevo milenio. 2006a. Disponible en: . Accedido en: 31 jul. 2013, p. 2. 8  DAUVERGNE, Catherine. Making People Illegal: What Globalization Means for Migration and Law. Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 51-51. 9  Idem, p. 52.

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Asimismo, los Estados Unidos incrementaron su presupuesto para el control de fronteras, pasando de $1700 millones en 2005 a $3600 millones para 2010. Asimismo, tomó foto de 113 millones de personas que cruzaban la frontera entre 2004 y 200810. De forma similar, las leyes canadienses se volvieron más rígidas para aquellas personas que ingresan al país ayudados por traficantes de personas. Igualmente, restringió el derecho de apelación en varias áreas de su jurisdicción11. Debido a ello, el cruzar las fronteras se volvió más difícil, teniendo como resultado que el número de solicitantes de refugio caiga en un tercio12. No obstante, esta caída en él número de solicitantes de refugio no significa una mejoría en sus condiciones de vida, por el contrario, estas políticas provocan el incremento de desplazados internos. Analizando, específicamente, el caso australiano, este Estado desvirtuó el espíritu de la Convención de 1951. En primer lugar, su negativa de recibir a los inmigrantes, en este caso, población afgana que se negaba a ingresar a Indonesia. En segundo lugar, la exclusión de algunas islas para efectos del derecho de refugiados como si este territorio no estuviese sujeto a su soberanía. Por último, una delimitación de la población que puede ser considerada perseguida por, supuestamente, representar una amenaza a la nación13. No obstante, “prevenir la migración ilegal es casi imposible y para acercarse cada vez más al total control de las fronteras puede ser necesarias actividades draconianas difíciles de contemplar para cualquier Estado liberal”14. Para algunos autores, el control de la migración por parte de los Estados es una tarea imposible debido al gran avance de los derechos humanos15. Por otro lado, en 2013, 13 países16 firmaron la Declaración de Jakarta sobre el movimiento irregular de personas. Esta Declaración tiene como objetivo la protección de las personas que fueron traficadas o que ingresaron de forma irregular a cualquier Estado miembro de esta Declaración. Sin embargo, un problema recurrente en el Derecho Internacional de los Refugiados es que los agentes del Estado de destino no tienen un manual para determinar el estatus de los solicitantes de refugio, pues la Convención y el Protocolo no responden al panorama actual. Es por ello que se hace necesaria una nueva recapitulación sobre quién es refugiado, lo que se verá a continuación. JAMES, Paul. Faces of globalization and the borders of states: from asylum seekers to citizens. Citizenship Studies, v. 18, n. 2, 2014, p. 211. 11  DAUVERGNE, Catherine. Op cit, p. 63. 12  JAMES, Paul. Ibid, p. 215. 13  DAUVERGNE, Catherine. Ibid, p. 57-58. 14  Idem, p. 157. 15  Idem, p. 162. 16  Afganistán, Australia, Bangladesh, Camboya, Indonesia, Malasia, Myanmar, Nueva Zelandia, Paquistán, Papúa Nueva Guinea, Filipinas, Sri Lanka y Tailandia. 10 

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3 El modelo de Hathaway para el Derecho Internacional de los Refugiados Cuando fue redactada la Convención de 1951, se pretendía proteger al perseguido político que no simpatizaba con las políticas del gobierno de turno, pues se deseaba atraer a aquellos que huían del este europeo17. Sin embargo, esta definición no se ha actualizado, a excepción de la Convención de la Unión Africana en 196918. Debido a que los solicitantes de refugio traspasan de forma masiva las fronteras, a diferencia de los refugiados políticos cuyo movimiento era individual, el Estado de destino se ve sobrepasado en sus capacidades de respuesta. Es así que muchos “Estados se han encontrado en situaciones dramáticas, enfrentando a cientos de miles de refugiados sin abrigo, comida, facilidades sanitarios o seguridad”19. Igualmente, la Convención no establece los procedimientos para que los Estados lidien con flujos masivos de refugiados. Por estos problemas, algunos países cuestionan las obligaciones impuestas tanto por la Convención de 1951 como por su Protocolo, estableciendo políticas como la repatriación (que puede ser forzada) o la denegación del pedido de refugio. Una política contra los refugiados es la del tercer país seguro, cuyo caso más resaltante es el de Tampa. Esta política permite a un Estado enviar a los solicitantes de refugio a otro país, con el cual ha celebrado acuerdos sobre la materia, con la garantía que el solicitante encontrará refugio y recibirá la protección establecida en la Convención de 195120. Además, en el tercer país de destino no tiene que existir riesgo de persecución, refoulement o cualquier otra violación al derecho de los refugiados. Sin embargo, en el incidente de Tampa, Australia envío a los inmigrantes a países que tenían bajos índices de protección para los refugiados21. No obstante, la Corte Suprema de Australia manifestó que el tercer país de destino tenían que ofrecer la misma calidad de protección garantizada en las leyes australianas22. Frente a ello, el parlamento australiano modificó la Ley de Inmigración, por lo cual, el tercer país seguro no necesitaba cumplir todas las ALBORZI, Mohammad. Evaluating the Effectiveness of International Refugee Law: The Protection of Iraqi Refugees. Leiden/Boston, Martinus Nijhoff Publishers, 2006, p. 173. 18  La referida Convención amplía el término refugiado “a toda persona que, a causa de una agresión exterior, una ocupación o una dominación extranjera, o de acontecimientos que perturben gravemente el. orden público en una parte o en la totalidad de su país de origen, o del país de su nacionalidad, está obligada a abandonar su residencia habitual para buscar refugio en otro lugar fuera de su país de origen o del país de su nacionalidad” [CONVENCIÓN DE LA OUA POR LA QUE SE REGULAN LOS ASPECTOS ESPECÍFICOS DE PROBLEMAS DE LOS REFUGIADOS EN ÁFRICA, 1969, art. 1(1)]. 19  ALBORZI, Mohammad. Op cit, p. 174. 20  KNEEBONE, Susan (ed.). The Bali process and global refugee policy in the Asia-Pacific region. Journal of Refugee Studies, v. 27, no. 4, 2014, p. 26. 21  Idem, p. 605. 22  Idem, p. 606. 17 

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obligaciones establecidas en la Convención de 1951. Están modificaciones no son aisladas, siendo que el problema de los refugiados está perdiendo su connotación humana para ser tratado como un problema político, volviendo el procedimiento sobre las solicitudes de refugio más duro. A pesar de las críticas por parte de los Estados de destino, el Derecho Internacional de los Refugiados es importante para los Estados, ya que “parte de la necesidad de los Estados de comprometerse a encontrar respuestas adecuadas al arribo masivo de inmigrantes, así como a diseñar sus valores legales y políticos”23. Para ofrecer un mejor trato a los refugiados es importante dar respuesta a situaciones complejas que requieren de la observación atenta por parte de los agentes del Estado encargados de atender los pedidos de refugio. Para formular estas respuestas, James Hathaway propuso un modelo basado en la Carta Internacional de Derechos Humanos, la cual engloba la Declaración Universal de Derechos Humanos (DUDH), el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (ICCPR, por su sigla en inglés) y el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (ICESCR, por su sigla en inglés). Gracias a ello, este modelo tiene bastante aceptación debido a que los estándares aplicados son aceptados por los Estados partes de los tratados anteriormente nombrados. En este modelo se define a la persecución como un incumplimiento sistemático por parte del Estado en relación a cualquiera de los derechos fundamentales24. Debido a ello contiene cuatro categorías que explican cuándo existe persecución. La primera categoría recoge los derechos contemplando tanto en la DUDH como en la ICCPR25. En ellos se incluye derechos tales como a la vida; prohibición de tortura; prohibición de esclavitud, irretroactividad de la ley penal; libertad de pensamiento, entre otros. La característica de estos derechos es su naturaleza inderogable, aún en estados de emergencia, por lo cual estos derechos se elevan por encima de los demás. La segunda categoría son aquellos derechos que sólo pueden ser derogados en situaciones de emergencia pública, tales como la prohibición de detención o arresto arbitrario; derecho a la protección igualitaria; derecho a un debido proceso y presunción de inocencia hasta que se pruebe lo contrario, entre otros26. Debido a ello, el gobierno solamente podrá prohibir estos derechos cuando sea declarado el Estado de emergencia en todo o parte de su territorio. La tercera categoría contiene a aquellos derechos inscritos en la DUDH y tam23  HATHAWAY, James. Why Refugee Law Still Matters. Melbourne Journal of International Law, v. 8, no. 1, 2007, p. 99. 24  HATHAWAY, James. The Law of Refugee Status. Toronto, Butterworths, 1991, p. 107. 25  Idem, p. 109-110. 26  Idem, p. 110-111.

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bién en la ICESCR. La diferencia entre la ICCPR y la ICESCR es que esta última “no impone un estándar de cumplimiento, sino que pide a los Estados tomar todas las medidas posibles para el progresivo cumplimiento de estos derechos sin discriminación alguna”27. Algunos de estos derechos son el derecho al trabajo; derecho a comida, casa, vivienda, atención médica o educación básica2829. En este caso, si el Estado posee los recursos materiales y económicos para garantizarlos pero no los hace efectivos o discrimina a la población que pueda beneficiarse de ellos, también estaremos frente a un riesgo de persecución. Por último, la cuarta categoría engloba aquellos derechos que están dentro de la DUDH pero no contemplando ni en la ICCPR ni la ICESCR. Se trata del derecho de propiedad y el de gozar protección frente al desempleo. Estos derechos tienen la característica de que su incumplimiento “no es motivo suficiente para servir de base al reclamo de falta de protección estatal debido a que no están sujetos a una obligación legal vinculante”30. Por lo tanto, no servirían de base para un pedido de refugio ya que su incumplimiento no responde a un elemento de persecución por parte del Estado. El modelo de Hathaway ha sido acoplado en las legislaciones de Canadá, Reino Unido y Nueva Zelandia. En el caso del Reino Unido, este modelo fue reconocido en la jurisprudencia por el Tribunal de Inmigración y Asilo (IAT, por su sigla en inglés)31 . Es importante resaltar que el Derecho Internacional de los Refugiados no obliga a los Estados de a seguir protegiendo a los refugiados cuando la situación en su país de origen volvió a la normalidad. Ello se ve plasmado en la Convención de 1951 la cual establece seis causales por las que se pierde la condición de refugiado: 1) cuando se pide voluntariamente la protección del país del cual tiene nacionalidad; 2) si se recobró la nacionalidad que había perdido; 3) si se adquirió una nueva nacionalidad y disfruta de la protección de este país; 4) si, de forma voluntaria, se asentó en el país de su nacionalidad del cual tenía temor de persecución; 5) si desaparecieron las circunstancias que lo obligaron a huir; 6) si siendo apátrida, desaparecieron las circunstancias de persecución y es capaz de asentarse nuevamente en el país donde tenía su residencia habitual. Asimismo, en el Proceso de Bali32, se manifestó que “[aquellas] personas que no necesitan HATHAWAY, James. Ibid, 1991, p. 110. Idem, p. 111. 29  El Proceso de Bali es un foro internacional establecido en 2002 que trata sobre dar respuestas al tráfico de personas y la inmigración indocumentada. Es copresidido por Australia e Indonesia, participando los países de la región de Oceanía y Asia 30  HATHAWAY, James. Op cit, 1991, p. 111. 31  FOSTER, Michelle. International Refugee Law and Socio-Economic Rights: Refuge from Deprivation. Cambridge, Cambridge University Press, 2007, p. 116. 32  El Proceso de Bali responde más a los intereses australianos, quien utiliza los incentivos de la ayuda externa y construcción de capacidad, para que los acepten los acuerdos propuestos por ella (KNEEBONE, 2014, p. 614). 27  28 

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protección deberían retornar, de preferencia voluntariamente, a sus países de origen”33. Una alternativa para evitar los flujos de migrantes es la prevención de aquellas causas que obligan a la gente a huir de sus hogares, basándonos para ello en la R2P. 4 La aplicación de la Responsabilidad de Proteger Una solución para solucionar los flujos masivos de inmigrantes sería combatir las causas que los originan. En otras palabras, se requiere una acción preventiva por parte de la comunidad internacional en los Estados de origen, para garantizar los derechos humanos. Para ello, la comunidad internacional puede actuar bajo los pilares de la R2P. La R2P se basa en tres pilares aprobados por la Organización de las Naciones Unidas (ONU): a) el Estado tiene la responsabilidad de proteger su población; b) la comunidad internacional debe ayudar a los Estados para que cumplan esta responsabilidad y; c) en caso el Estado no pueda o no quiera proteger su población es la comunidad internacional quien debe asumir esta responsabilidad34. Asimismo, el ACNUR es una institución internacional de alcance global, con capacidad de actuar en favor de los intereses individuales o colectivos, por lo que “es una concreta manifestación de lo que el concepto de R2P encierra”35. Por otro lado, no se necesita modificar la Convención de 1951 ni su Protocolo para insertar la R2P en el derecho de refugiados, pues es la misma Convención de 1951 la que presupone la cooperación entre todos los Estados miembros y el ACNUR para el ejercicio de sus funciones36. Gracia a ello, la comunidad internacional actuaría según el segundo pilar de la R2P, el cual es la cooperación con el Estado de origen para que proteja su población. Para ello, es necesario saber si no es el propio gobierno quien ejecuta políticas con el objetivo de desplazar un sector de la población. Estas políticas son conocidas como Régimen de Desplazamiento Inducido (RID, por su sigla en inglés). El RID “ocurre cuando el gobierno o agentes auspiciados por el gobierno hacen uso de tácticas coercitivas para causar, directa o indirectamente, que grandes números de ciudadanos huyan de sus hogares”37 Estos actos pueden ir desde la supresión en el DECLARACIÓN DE LOS COPRESIDENTES. Fourth Bali Regional Ministerial Conference on People Smuggling, Trafficking in Persons and Related Transnational Crime, Bali, Indonesia. 29–30 Março 2011. Disponible en: . Accedido en: 27 feb. 2015. 34  ONU. Asamblea General - Resolución 63/677: Hacer efectiva la responsabilidad de proteger. 2009. Disponible en: . Accedido en: 17 dic. 2012. 35  TÜRK, Volker. The UNHCR’s role in supervising international protection standards in the context of its mandate. In: SIMEON, James (ed.). The UNHCR and the supervision of International Refugee Law, Cambrigde University Press, 2013, p. 40. 36  Convención de 1951 relativa al estatuto de los refugiados, atr. 35 (1). 37  ORCHARD, Phil. The perils of humanitarism: refugee and IDP protection in situations of regime-in33 

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suministro de algún servicio básico, medidas para debilitar la economía de la región o cometer crímenes contra la humanidad, limpieza étnica o genocidio. En estos tres últimos casos, es el Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas (CSNU) quien tiene el poder de tomar de decidir si esta situación representa una amenaza a la paz y seguridad internacionales. De esta forma, el CSNU actuaría bajo el tercer pilar de la R2P, pues es el propio Estado quien no tiene la capacidad, o voluntad, para proteger su población. Uno de los elementos clave dentro de la R2P es el sistema de alerta rápida38. La prevención debe centrarse en la causa principal de los problemas, que obligan a las personas a huir de su país. Estos factores pueden ser los conflictos internos y externos, las violaciones a los derechos humanos y el nivel de desarrollo económico. Ello se ve reflejado en la Declaración de Tlatelolco, la cual indica que las causas que dan origen al flujo de refugiados pueden ser “la persecución, la violación de los derechos humanos, los conflictos armados internos e internacionales y las violaciones al derecho internacional humanitario”39. Según datos del ACNUR, la mayor cantidad de refugiados provienen de Siria, debido a la guerra civil, así como la violencia generada por el ISIS. En segundo lugar se localiza Afganistán con más de seis millones de refugiados40. En tercer lugar se ubica Somalia, por la lucha de poder que se inició en 1991. Generalmente, las personas huyen hacia países vecinos. En consecuencia, Pakistán es el primer país de acogida debido a los refugiados afganos41. En segundo lugar está Líbano, quien hasta hace dos años no aparecía en la lista, pero sufrió un incremento de refugiados debido a la crisis generada en Siria42. Asimismo, dentro de la R2P se considera la reconstrucción del país como una actividad importante. Es en esta fase que el regreso de los refugiados constituye un desafío importante, pues suponen grandes esfuerzos para sectores públicos como educación, prestación de servicios médicos, campo laboral o disputas por tierras fértiles43. Como indica la International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS), el trato desigual en el suministro de servicios básicos, asistencia para conseguir empleo duced displacement. Refugee Survey Quarterly, v. 29, no. 1, 2010, p. 43. 38  En el caso de la R2P, el sistema de alerta rápida incide en la prevención de aquellos crímenes que signifiquen violaciones masivas a los derechos humanos: crímenes de guerra, crímenes contra la humanidad, genocidio y limpieza étnica (ONU, 2005, pár. 138). 39  Declaración de Tlatelolco sobre acciones prácticas en el derecho de los refugiados en América Latina y el Caribe, 1999. 40  ACNUR. Mid-Year Trends 2014. 2014. Disponible en: . Accedido en: 28 feb. 2015. 41  Idem. 42  Idem. 43  ZAUM, Dominik. Post-conflict Statebuilding and Forced Migration. In: BETTS; LOESCHER (eds.), Refugees in International Relations, Oxford University Press, 2011, p. 288.

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y leyes sobre la propiedad privada, son una poderosa señal que aquellos que regresan no son bienvenidos44. Para ello, la comunidad internacional necesita trabajar en forma conjunta con el país de origen para que las condiciones sean favorables para aquellos que desean regresar a su país. Además, los refugiados también pueden ayudar a la reconstrucción económica del país a través de las remesas, que pueden significar una fuente de ingresos importante para un Estado que se encuentra en reconstrucción45. Es por ello que los refugiados son agentes activos en el proceso de reconstrucción del país, siendo parte importante en las labores de la R2P. 5 CONCLUSIONES El Derecho Internacional de los Refugiados ha sufrido cambios drásticos desde que se dio inicio a la Guerra al Terror. Las nuevas políticas migratorias violan la Convención de 1951, teniendo como efecto el empeoramiento en la calidad de vida de los solicitantes de refugio. Asimismo, el intentar cerrar las fronteras a los inmigrantes no es una solución duradera, pues ellos van a encontrar medios ilícitos para ingresar al país, generando un círculo vicioso de su percepción como criminales por parte del gobierno de los Estados de destino. Tampoco es una solución duradera la política del tercer país seguro, porque estos terceros destinos pueden no tener la capacidad de asegurar la protección de los derechos de los refugiados. Para hacer frente a esta situación, un camino es que la comunidad internacional actúe de forma directa sobre las causas que obligan que originan estos flujos migratorios. De esta forma, no necesitarán más migrar por cuestiones de violación a los derechos humanos. Para ello, se necesita la coordinación de todos los entes involucrados, es decir, el Estado de origen, Estados vecinos, agencias internacionales como el ACNUR o la ONU. También es necesario prestar atención, a través de labores de prevención, cuando el Estado de origen aplique políticas de RID. La R2P fue aprobada por la Asamblea General de la ONU, por lo que sólo se necesitaría debates acerca de cómo actuar en determinadas circunstancias. De esta forma, se conseguiría evitar o parar las violaciones a los derechos humanos, asegurar un retorno seguro a los refugiados y mejorar la calidad de vida de la población que se quedó.

ICISS. The responsibility to protect: report of the international commission on intervention and state sovereignty. Ottawa: International Development Research Centre, 2001, p. 42. 45  ZAUM, Dominik. Op cit, p. 294-295. 44 

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REFERENCIAS ALBORZI, Mohammad. Evaluating the Effectiveness of International Refugee Law: The Protection of Iraqi Refugees. Leiden/Boston, Martinus Nijhoff Publishers, 2006. 333 p. ACNUR. La situación de los Refugiados en el mundo: Desplazamientos humanos en el nuevo milenio. 2006a. Disponible en: . Accedido en: 31 jul. 2013. _____. Statement by Ms E. Feller, Assistant High Commissioner for Protection. 2006b. Disponible en: Accedido en: 11 abr. 2015. _____. Mid-Year Trends 2014. 2014. Disponible en: . Accedido en: 28 feb. 2015. CLARK, Tom; SIMEON, James, UNHCR international protection policies 2000-2013: from cross -road to gaps and responses, Refugee Survey Quarterly, v. 33, n. 3, 2014, p. 1-33, 2014. Convención de 1951 relativa al estatuto de los refugiados. Convención de la OUA por la que se regulan los aspectos específicos de problemas de los refugiados en África, 1969. DAUVERGNE, Catherine. Making People Illegal: What Globalization Means for Migration and Law. Cambridge, Cambridge University Press, 2008. 216 p. DECLARACIÓN DE LOS COPRESIDENTES. Fourth Bali Regional Ministerial Conference on People Smuggling, Trafficking in Persons and Related Transnational Crime, Bali, Indonesia. 29–30 Março 2011. Disponible en: . Accedido en: 27 feb. 2015. Declaración de Tlatelolco sobre acciones prácticas en el derecho de los refugiados en América Latina y el Caribe, 1999. FOSTER, Michelle. International Refugee Law and Socio-Economic Rights: Refuge from Deprivation. Cambridge, Cambridge University Press, 2007. 387 p. HATHAWAY, James. The Law of Refugee Status. Toronto, Butterworths, 1991. 252 p. _____. Why Refugee Law Still Matters. Melbourne Journal of International Law, v. 8, no. 1, p. 89103, 2007. ICISS. The responsibility to protect: report of the international commission on intervention and state sovereignty. Ottawa: International Development Research Centre, 2001. 91 p. JAMES, Paul. Faces of globalization and the borders of states: from asylum seekers to citizens. Citizenship Studies, v. 18, n. 2, p. 208-223, 2014. KNEEBONE, Susan (ed.). Refugees, Asylum Seekers and the Rule of Law: Comparative Perspecti-

David Fernando Santiago Villena Del Carpio | 451 ves. Cambridge University Press, 2009. 341 p. _____. The Bali process and global refugee policy in the Asia-Pacific region. Journal of Refugee Studies, v. 27, no. 4, p. 596-618, 2014. ONU. Asamblea General - Resolución 63/677: Hacer efectiva la responsabilidad de proteger. 2009. Disponible en: . Accedido en: 17 dic. 2012. ORCHARD, Phil. The perils of humanitarism: refugee and IDP protection in situations of regime -induced displacement. Refugee Survey Quarterly, v. 29, no. 1, p. 38-60, 2010. Protocolo sobre el estatuto de los refugiados, 1967. TÜRK, Volker. The UNHCR’s role in supervising international protection standards in the context of its mandate. In: SIMEON, James (ed.). The UNHCR and the supervision of International Refugee Law, Cambrigde University Press, 2013, p. 39-58. ZAUM, Dominik. Post-conflict Statebuilding and Forced Migration. In: BETTS; LOESCHER (eds.), Refugees in International Relations, Oxford University Press, 2011, p. 285-304.

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O caso “Ferouz Myuddin vs Governo Australiano” e o princípio da complementary protection Paulo Augusto de Oliveira1 Alice Menezes Dantas2 Resumo: O estudo tem por objetivo analisar, à luz do ordenamento e da doutrina jurídica internacional, o pedido de refúgio da criança “Ferouz Myuddin” direcionado ao governo australiano. Busca, primeiramente, a compreensão do aparato jurídico internacional sobre o tema. Em sequência, faz uma análise mais detalhada e crítica do caso concreto e dos documentos internacionais que podem assegurar uma proteção jurídica mais efetiva a “Ferouz Myuddin.” Palavras-chave: Refúgio; Complementary protection; Non-refoulement. Summary: This paper targets to analyze, in the light of international law doctrine, the refugee request to the Australian government formulated by the child “Ferouz Myuddin”. This article intends, firstly, the comprehension of the international institutes about the theme. Secondly, does a more detailed and critic analysis of the case in discussion and of the international documents that are able to assure an effective legal protection to “Ferouz Myuddin.” Keywords: Refugee; Complementary protection; Non-refoulement.

1  Professor e Advogado em Direito Público. Doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. Mestre e Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. E-mail: [email protected] 2  Advogada. Pós-Graduanda em Direito Processual Civil. E-mail: [email protected]

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1 Introdução O número de pessoas forçadas a deixar suas casas devido a guerras ou perseguição superou a marca de 50 milhões em 2013. Nas palavras do Alto Comissário da ACNUR, Antônio Guterrespela3, “os conflitos estão se multiplicando, mais e mais, ao mesmo tempo, conflitos antigos parecem nunca terminar. Isso demonstra que a paz está seriamente em déficit (...)”  Nessa senda, essas pessoas normalmente procuram asilo em países desenvolvidos que, todavia, tendem a vê-los como uma ameaça à ordem interna. Estabelecem, assim, uma série de obstáculos legais para não permitir o ingresso desses indivíduos em seus territórios. A Austrália, um dos países com maiores fluxos migratórios, tem um programa cada vez mais rígido e limitado de recepção de imigrantes legais. Aqueles tidos como ilegais, notadamente os que chegam - ou tentam chegar - ao país em embarcações marítimas, são levados a centros de detenção de imigrantes. Um exemplo bem expressivo dessa situação é o caso da criança “Ferouz Myuddin” que, apesar de nascido em território australiano, foi considerada uma “chegada marítima não autorizada”, pois sua genitora foi detida, ainda grávida, ao tentar entrar no país ilegalmente em uma embarcação marítima. Nesse diapasão, os problemas dessa triste realidade fática e jurídica dão ensejo e servirão de supedâneo para o desenvolvimento do presente estudo, que se dividirá em duas partes. Em um primeiro momento, a identificação do aparato jurídico internacional envolto no caso concreto, mais precisamente dos institutos do refúgio, da complementary protection e do non-refoulement. Na sequência, uma análise mais detalhada e crítica do caso concreto, bem como da análise de documentos internacionais que podem assegurar uma proteção jurídica efetiva e o respeitos as normas protetivas de direitos humanos à “Ferouz Myuddin.” Ao final, serão feitas as conclusões e com elas os apontamentos mais críticos em relação ao caso em análise. 2 A Proteção dos Refugiados no Direito Internacional “notas gerais” O refugiado, tal como definido pelo Direito Internacional (Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 com a atualização proferida pelo 3 

Relatório Acnur “Tendências Globais 2013”

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Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 19664) é a pessoa que: temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, não pode, ou devido ao referido temor, não quer voltar a ele5 6.

Destarte, para a caracterização de uma pessoa como refugiado faz-se imprescindível o preenchimento integral dos requisitos exigidos7. O elemento central para esse mister é o medo bem fundamentado de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade ou pertença a um determinado grupo social ou opinião política8. Nesse diapasão, vale ressaltar que a acepção do termo “perseguição” para a ACNUR refere-se ameaça à vida das pessoas ou a liberdade e violações graves dos direitos humanos, baseada apenas em uma das razões acima9. Sendo assim, o direito de requerer refúgio deve ser identificado em conjunto com o direito à liberdade de movimento, abrangendo, igualmente, o direito de acesso aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado para os refugiados sob a jurisdição do Estado em causa10, como enfatizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados11 e da Assembleia Geral das Nações Unidas. 4  Antes disso, o artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 já estabelecia que os direitos dos refugiados além de representarem isoladamente uma das três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa, dentre Direito Humanitário, Direitos Humanos e Direito dos Refugiados, integralizam de forma fundamental o plano de direitos da pessoa humana sendo compreendido como um todo. 5  HARTHAWAY. James C. The Law of refugee status. Toronto: Butterworths,1999, p. 09. 6  Consequentemente, aqueles que buscam refúgio por motivos diferentes dos mencionados na Convenção de Genebra não se encontram protegidos pelos mecanismos da Convenção. Atualmente, todavia, em definições mais amplas passaram a considerar como refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos. Essa ampliação dos motivos para o reconhecimento do status de refugiado se denomina definição ampliada, sendo encontrada na já mencionada Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969), na Declaração de Cartagena (1984) e, ao menos teoricamente, em decisões do Conselho da Europa. 7  UNHCR. Handbook on Procedures and Criteria for Determining Refugee Status under the 1951 Convention and the 1967 Protocol relating to the Status of Refugees. UNDoc.HCR/IP/4/Eng/REV.1, Geneva, January 1992 at 7 [UNHCR Handbook]. Acesso em 09 de jul de 2015. 8  UNHCR. The International Protection of Refugees: Interpreting Art. 1 of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugee. 2001. Disponível em: . Acesso em 09 de jul de 2015. 9  UNHCR. Ibid, 1992. 10  GOODWIN-GILL, Guy; MCADAM, Jane. The Refugee in International Law. 3ª edição. Oxford University Press: Oxford, 2007, p. 340. 11  UNHCR. Irregular Movements of Asylum-Seekers and Refugees. 1985. UN Doc EC/SCP/40/Rev.1. Acesso em 09 de jul de 2015.

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Ademais, assegura-se ao refugiado o direito a um asilo seguro, o que não se refere somente a segurança física. Este deve usufruir, pelo menos, dos mesmos direitos e da mesma assistência básica que qualquer outro estrangeiro residindo legalmente no país, incluindo direitos fundamentais que são inerentes a todos os indivíduos12 13. 3. A “complementary protection” e sua previsão no ordenamento jurídico internacional Em razão da dificuldade, ou por vezes, impossibilidade de no caso concreto se caracterizar determinados indivíduos como refugiados, a sociedade internacional, notadamente a doutrina internacional14, viu-se na premente necessidade de proteger tais pessoas, criando, então, mecanismos de proteção e identificação de direitos inerentes a esses indivíduos. Surgiu, assim, a ideia do complementary protection, termo que passou a ser utilizado15 para descrever uma série de obrigações decorrentes de diversas previsões de tratados internacionais de direitos humanos.16 Destarte, “complementary protection” seria a proteção dos Estados direcionada a indivíduos que estão impossibilitados de retornar ao seu território de origem e que necessitam de proteção, pelos mais diversos motivos, mas que não podem ser tecnicamente abrigados sob os termos da Convenção dos Refugiados. O que não implica, todavia, em uma proteção complementar ou “extensiva” a um indivíduo, mas sim, uma proteção subsidiária, adicional – extra – a indivíduos que necessitam dessa proteção, mas não se enquadram em nenhuma base legal para obtê-la17. Uma vez que o indivíduo adquire a condição de refugiado tem-se evidenciado a violação de direitos da pessoa humana. Em geral, o motivo que leva este indivíduo em busca de um novo território está interligado com os princípios de dignidade e de manutenção da sua subsistência. Via de regra, são pessoas carentes de proteção no plano político e jurídico, que, por terem seus direitos violados ou inviabilizados pelo seu Estado de origem, buscam em outros países amparo para a reconstrução de suas vidas. 13  Em meio à reflexão acerca das razões que compelem o indivíduo à condição de refúgio, destaca-se a necessidade de preservação do princípio da dignidade humana. Tem-se que, pela atuação dos Estados no plano internacional, pode-se garantir e assegurar direitos inerentes e básicos ao indivíduo. Ou seja, os refugiados gozam dos direitos civis básicos, incluindo a liberdade de pensamento, a liberdade de deslocamento e a não sujeição à tortura e a tratamentos degradantes, moradia, alimentação, saneamento básico, dentre outros. 14  A definição de complementary protection é uma construção da doutrina, surgindo desde os primeiros debates envolvendo a Liga das Nações (KARLSEN, 2009). 15  O conceito não é universalmente aceito – não havendo, tampouco, qualquer outro que o seja -, principalmente por não haver nenhum instrumento formal – internacional ou doméstico – que o defina (POBJOY, 2010, p. 183) 16  Obrigações adicionais em relação às estabelecidas pela Convenção dos Refugiados de 1951 (KARSLEN, 2009). 17  MCADAM, Jane; MURPHY, Kerry. Punishment not protection behind Morrison’s refugee law changes. 12 

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Deve-se ressaltar, outrossim, que os Estados são autônomos e podem impor critérios ou condições aos indivíduos que, caso não os cumpram, não serão beneficiados por essa proteção. 18 A codificação interna de cada Estado pode estabelecer direitos e garantias aos protegidos, garantindo maior segurança acerca do status que gozam. Ainda assim, estas previsões costumam ser menos abrangentes que às garantidas aos que são considerados, oficialmente, refugiados19 20 Ainda que seja dotado de grande discricionariedade no âmbito doméstico dos países – acerca da regulamentação e modo de implementação – vários Estados já reconheceram que se trata de uma “ferramenta baseada em direito internacional, ao invés de uma simples discricionariedade doméstica ad hoc”21. Torna-se, portanto, uma obrigação do Estado de fornecer esse tipo de proteção22. Acerca do instituto em epígrafe, o Comitê Executivo do Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas publicou documento estabelecendo que: O Comitê executivo encoraja o uso de modos complementares de proteção para indivíduos que necessitem de proteção internacional ou que não se enquadrem na definição de refugiado sob a

26 de junho de 2014. Disponível em . Acesso em 02 de ago de 2015, P. 02. 18  Ainda que seja dotado de grande discricionariedade no âmbito doméstico dos países – acerca da regulamentação e modo de implementação – vários Estados já reconheceram que se trata de uma “ferramenta baseada em direito internacional, ao invés de uma simples discricionariedade doméstica ad hoc” (KARLSEN, 2009, tradução livre). 19  MCADAM, Jane. Complementary Protection and Beyond: How States Deal with Human Rights Protection. Sydney Law School Research Paper No. 06/18; New Issues in Refugee Research Working Paper No. 118 (Agosto 2005). Disponível em . Acesso em: 15 jul 2015, p. 01. 20  Não obstante, não há consenso entre os países acerca da extensão desta proteção: a quem pode ser concedida, até que ponto essa proteção deve ser aplicada ou, ainda, qual o status que essa pessoa efetivamente assume. Em todo caso, diversos países formalizaram este sistema e recebem diferentes alcunhas: “proteção subsidiária” na União Europeia, “Status Temporário de Proteção” nos Estados Unidos e “pessoas necessitadas de proteção” no Canadá (MCADAM, 2005, p. 1). Notadamente, a aplicação desse instituto vincula-se, normalmente, a violência indiscriminada ou generalizada, desastres naturais ou apátridas, dependendo de considerações legais ou não legais. 21  KARLSEN, Elibritt. Complementary protection for asylum seekers overview of the international and Australian legal frameworks. Research Paper no. 7 2009–10. 30 de setembro de 2009. Disponível em . Acesso em 10 de jul de 2015. 22  FOSTER, Michelle. Non-refoulement on the Basis of Socio-Economic Deprivation: The Scope of Complementary Protection in International Human Rights Law. New Zealand Law Review, Part II, 2009; U of Melbourne Legal Studies Research Paper No. 467, May 12, 2010. Disponível em . Acesso em 15 de jul de 2015, p. 259.

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Convenção de 1951 ou o Protocolo de 196723 - (tradução livre)24.

Posicionamento ratificado posteriormente: Consistente com o sentimento desta conclusão, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados agora vê complementary protection como uma ‘resposta positiva e pragmática’ a certas necessidades de proteção internacional não abarcadas pela convenção de refugiados de 19512526 (tradução livre).

Necessário frisar que a aplicação do complementary protection27 está intrinsecamente ligada à impossibilidade de seus beneficiários retornarem aos seus países de origem sem que se coloquem em situações de risco. Esta obrigação – de não devolver um indivíduo para situações de perigo28 recebe o nome de non-refoulement.

3.1 O Princípio do “Non-refoulement” Intimamente ligada a aplicação do complementary protection liga-se, também, a impossibilidade de seus beneficiários retornarem aos seus países de origem sem que se coloquem estes em situações de risco. Esta obrigação – de não devolver um indivíduo para situações de perigo recebe o nome de non-refoulement,29 O Estatuto dos Refugiados dispõe (art. 33.1) que

The Executive Committee encourages the use of complementary forms of protection for individuals in need of international protection who do not meet the refugee definition under the 1951 Convention or the 1967 Protocol. (UNHCR, 2005) 24  UNHCR. Executive Committee, Conclusion No. 103 (LVI) 2005 Provision on International Protection Including through Complementary Forms of Protection.Disponível em . Acesso em 21 de jul de 2015. 25  Consistent with the sentiment of this conclusion, UNHCR now views complementary protection as a ‘positive and pragmatic response’ to certain international protection needs not covered by the 1951 Refugee Convention. (UNHCR, 2008) 26  UNHCR. Ibid. 27  De acordo com Goodwin-Gill e McAdam (2007, p. 285), complementary protection alcançou o status de princípio e envolve a obrigação do non-refoulement supramencionada. Veja-se: O termo complementary protection descreve as obrigações protetivas dos Estados decorrente de instrumentos legais internacionais e costumes que complementam – ou suplementam – a Convenção de Refugiados de 1951. É, com efeito, um sinônimo para o escopo mais abrangente do non-refoulement sob direito internacional (tradução livre). 28  Disposição expressa no artigo 33 da Convenção de Refugiados, no artigo 3º da Convenção contra a Tortura e no artigo 7º da Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. 29  Na visão de Karlsen (2009) o princípio do non-refoulement é o pilar do direito internacional para proteção de refugiados. 23 

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nenhum refugiado será expulso para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas. 30 31

Os tratados que preconizam expressamente o princípio do non-refoulement são o Estatuto dos Refugiados e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. A previsão da obrigação na Convenção contra a Tortura é clara: Artigo 3º - 1. Nenhum Estado-parte procederá à expulsão, devolução ou extradição de uma pessoa para outro Estado, quando houver razões substanciais para crer que a mesma corre perigo de ali ser submetida a tortura.

Esta previsão específica é extremamente valiosa em razão de dois principais aspectos: é um artigo absoluto e inderrogável – contrastando com a previsão no Estatuto dos Refugiados, que prevê exceções – e a possibilidade de formular reclamações formais ao Comitê contra a Tortura, conforme previsão do artigo 22 da Convenção, alegando violação de seus dispositivos. Essa ferramenta não possui similar dentro do Estatuto dos Refugiados32. Outrossim, em uma interpretação extensiva dos enunciados contidos no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 2º c/c 6º e 7º), o Comitê de Direitos Humanos interpretou ser impossível a remoção de um indivíduo de seu território, havendo grave risco de dano irreversível. Estes preceitos na opinião de Jason Pobjoy33 seriam, também, inderrogáveis. Deve-se ressaltar que a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 estabelece claramente que: “art. 37(a) nenhuma criança será submetida à tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (...)” Existe, todavia, algumas exceções a essa proteção, segundo o parágrafo subsequente do referido artigo, refugiados que representem risco à segurança do país em que se encontra ou que seja definitivamente condenado por crime ou delito particularmente grave. 31  Além disso, existem inúmeras discussões acerca do conteúdo e extensão deste princípio. Debate-se, por exemplo, se a privação de direitos sociais e econômicos ensejam a obrigação do non-refoulement, se essa obrigação é um princípio de costumary law ou controvérsias relativas a obrigações específicas do non refoulement no escopo de determinados tratados (POBJOY, 2010, p. 189). 32  POBJOY, Jason M. Treating Like Alike: The Principle of Non-Discrimination as a Tool to Mandate the Equal Treatment of Refugees and Beneficiaries of Complementary Protection. Melbourne University Law Review, Vol. 34, p. 181, 2010. Disponível em . Acesso em 15 jul 2015, p. 190. 33  POBJOY, Jason M. Ibid, p. 190. 30 

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Concomitantemente, o artigo 3º da mesma convenção prevê que todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos terão, primordialmente, o melhor interesse da criança. Com base nesta previsão, a doutrina, dentre outras Jane McAdam34 tem argumentado que o princípio da primazia do melhor interesse do menor deve ser aplicado não somente quando uma criança requer asilo para si, mas ainda quando é impactada pelo requerimento formulado pelos pais.

A autora35 esclarece ainda que: Os atributos que definem “criança” são características imutáveis, enquanto que as definições de refugiados podem mudar ou se desenvolver através do tempo. Se um limite tem que ser definido, uma criança é primeiramente uma criança antes dele ou dela ser um refugiado, e proteção precisa ser garantida nesta conformidade. Por isto, é vital para os direitos das crianças em busca de asilo, não somente no contexto da Convenção dos Refugiados, mas ainda no contexto específico da Convenção de Direitos das Crianças, em uma tentativa de preencher as lacunas e alcançar as melhores combinações possíveis de medidas de proteção sob o direito internacional

Diante disso, entende-se ser possível admitir a flexibilização dos critérios de refugiados, quando se tratar de priorizar o melhor interesse da criança, assim como a existência do princípio enseja a aplicação imediata da complementary protection, especialmente quando tratarmos de crianças fugindo de violência generalizada36. 4 O caso “Ferouz Myuddin vs Governo Australiano” e seu contexto fático Nos últimos meses, muçulmanos têm deixado Mianmar por causa da perseguição religiosa incentivada por monges budistas radicais. O destino mais procurado para a obtenção de refúgio é a Austrália. Em razão disso, dezenas de embarcações irregulares MCADAM, Jane. Seeking Asylum under the Convention on the Rights of the Child: A Case for Complementary Protection. International Journal of Children’s Rights, 14, 2006, p. 255. 35  MCADAM, Jane. Op cit, p. 269. 36  KARLSEN, Elibritt. Ibid. 34 

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navegam em direção a este destino, partindo, sobretudo, da Indonésia, levam imigrantes não só de Mianmar, mas também de Sri Lanka e Bangladesh. A Austrália, todavia, possui uma rígida política migratória que proíbe a entrada de imigrantes e requerentes de asilo por barco. Os imigrantes que chegam ao país em embarcações marítimas são levados a centros de detenção situados, notadamente, nos Estados insulares de Nauru e Papua Nova Guiné, no Oceano Pacífico, até que sejam processados seus pedidos de refúgio37 38. Contudo, o processamento desses pedidos é demasiado longo. Soma-se, ainda, o fato de que esses centros de detenção não operam em condições mínimas de habitabilidade, de modo a oferecer uma estadia digna a essas pessoas39. Durante esse tempo de confinamento, mulheres grávidas são levadas à Austrália continental para terem seus filhos em melhores condições de higiene e saúde. Posteriormente, retornam aos centros de detenções juntamente com seus filhos, para aguardar o processamento dos seus pedidos de refúgio. A situação foi agravada com a alteração da Migration Act australiano40 que versa sobre o tema, e com efeitos retroativos a 19 de julho de 2013, que considera essas crianças como “chegadas marítimas não autorizadas”41. Em decorrência disso, o governo australiano vem negando a concessão do status de refugiados a esses imigrantes42; inclusive às crianças nascidas em solo australiano. Irresignadas, inúmeras organizações nacionais e internacionais vem recorrendo à justiça australiana no intuito de reverter as decisões do governo. Um tribunal federal do país decidiu recentemente que um bebê ainda que nascido no país, - filho de requerentes de asilo -, notadamente de requerentes que tentaram ingressar na Austrália irregularmente por alguma embarcação marítima, não tem direito Após o processamento dos pedidos os imigrantes que conseguem asilo ficam, em sua grande maioria, impedidos de residir no continente embora recebam o status de refugiados. 38  A legislação australiana prevê que todos os indivíduos que chegarem à Austrália pelo mar sem visto são classificados como “chegadas marítimas não autorizadas” (AUSTRALIA, 1958, Seção 5AA) e que pessoas com tal status não podem requerer visto, sequer de refugiado (AUSTRALIA, 1958, Seção 46A). 39  Os períodos de confinamento de aproximadamente 413 dias em duras condições de vida foi um fator fundamental para que 34% dos menores e 30% dos adultos fossem diagnosticados com graves problemas mentais. Foram registrados 1.149 incidentes de agressões leves, como abuso sexual, nos centros de detenção, e 128 casos de danos auto-infligidos entre as crianças, segundo a comissão australiana. Inclusive, o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Tortura, Juan Méndez, concluiu que o tratamento degradante dispensado pelas autoridades australianas se assemelha à tortura. (Conclusões do Relatório 01/2015, realizado por Juan Méndez, direcionado a ACNUR em investigação a situação dos refugiados na Austrália) 40  Capitaneada pelo Ministro da Imigração, Scott Morrison. 41  São assim considerados todos os bebês filhos de requerentes de asilo que chegam de barco, independentemente de terem nascido em solo australiano (AUSTRALIA, 1958, Seção 5AA (1A)). Do mesmo modo que seus pais, não podem requerer visto (AUSTRALIA, 1958, Seção 46A). 37 

42 

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ao visto de refugiado43. A situação, in casu, tratava do pedido de Ferouz Myuddin, de 11 meses de idade, que nasceu prematuramente em Brisbane, após sua mãe ser transferida de um centro de refugiados em Nauru para um hospital. A decisão surgiu após o governo australiano reformar a Lei de Migração para declarar que todos os bebês filhos de requerentes de asilo que chegam de barco, independentemente de terem nascido em solo australiano, são imigrantes ilegais, recebendo status de “chegadas marítimas não autorizadas”. Em vista desta alteração, as crianças não tem o direito de solicitar um visto de proteção permanente, mantendo a mesma condição política de seus pais. O juiz federal prolator da referida sentença apoiou a posição anterior do governo de negar o visto. O ministro da Imigração, Scott Morrison, já havia afirmado que, com base na nova legislação vigente, o bebê era uma “chegada marítima não autorizada”, portanto não poderia reivindicar o estatuto de refugiado. Segundo Morrison, a regra tem o objetivo de desencorajar traficantes de pessoas44. Não obstante, o ministro da Imigração Scott Morrison celebrou um acordo com o senador Ricky Muir em dezembro de 2014, possibilitando que 30 bebês (incluindo o menino Ferouz) sejam transferidos para a Austrália continental para processamento (SBS, 2014). O acordo, todavia, somente foi extensivo a bebês que nasceram na Austrália continental antes de 4 de dezembro de 2014, além de seus familiares imediatos. Detentas grávidas ou cujos bebês nasceram posterior a este marco temporal não gozarão do mesmo benefício, e permanecerão processadas onde estão45.

4.1 A Complementary Protection na Austrália A Austrália implementou, após anos de discussão e da aplicação de previsões esparsas sobre o tema, seu sistema de complementary protection com a aprovação de da Emenda Migratória em setembro de 201146, porém o fez ainda com falhas e dubiedades. A aprovação da emenda em 2011 ainda é, todavia, alvo de bastante controvérMYANMAR TIMES. Australia-born Rohingya baby denied refugee status. 15 de outubro de 2014. Disponível em < http://www.mmtimes.com/index.php/national-news/11968-australia-born-rohingya-baby-denied-refugee-status.html>. Acesso em 02 de ago de 2015. 44  MYANMAR TIMES. Op Cit. 45  SBS. Asylum seeker babies to stay in Austrália under Muir deal. 19 de dezembro de 2014. Disponível em < http://www.sbs.com.au/news/article/2014/12/18/asylum-seeker-babies-stay-australia-under-muir-deal>. Acesso em 02 de ago de 2015. 46  Antes disso, o país proporcionava apenas soluções tímidas para todos que necessitassem de auxílio humanitário através de dois principais meios: intervenção ministerial, em que o próprio ministro da imigração determinava a permanência do indivíduo em solo australiano com base na compaixão e questões humanitárias além de, de modo mais amplo, categorias especiais humanitários de vistos (DIMIA, 2015). 43 

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sia, havendo, em verdade, um movimento que ainda resiste à alteração legislativa que implementou o sistema de complementary protection e faz investidas para alterá-la, regredindo no tema47. Conforme procedimento anterior, qualquer requerente se sujeitava ao procedimento padrão para requerimento da concessão de status de refugiado. Uma vez negado, era obrigado a recorrer ao Tribunal Revisor de Refugiados48, para que, somente mediante nova negativa, recorresse ao Ministro da Imigração para ver garantido – de modo arbitrário e discricionário – seu direito de permanecer em solo australiano, com fundamento exclusivamente humanitário e/ou na compaixão. Isso significava uma enorme perda de tempo ministerial, e, como o ex-ministro Chris Evans mencionou – significava “brincar de Deus com o futuro daqueles que procuram asilo”49. A nova seção 36(2) do Ato de Migração australiano50 prevê, agora, que um visto de proteção deve ser concedido não somente para não cidadãos, para quem a Austrália guarda obrigações protetivas sob a Convenção de Refugiados, mas, ainda, a todo estrangeiro quando existam motivos substanciais para acreditar que este sofrerá dano significativo no retorno ao seu país, enquanto consequência necessária e previsível, em razão de sua expulsão da Austrália. A legislação especifica claramente quais são os critérios de dano significativo e, em seguida, casos excepcionais que ainda assim não garantiriam a permanência do estrangeiro. Dano significativo, nesses casos, seria os fatos que geram a própria aplicação do complementary protection, ou seja, privação da vida, pena de morte, tortura, tratamento ou penalidade cruel ou desumana. O artigo seguinte ainda prevê que não há risco real de dano se o indivíduo pode ir para outro local dentro do próprio país; se pode gozar de proteção de alguma autoridade ou, ainda, se toda a população sofre a ameaça, e não o cidadão em especial (seção 36 (2B)) 51. Necessário relembrar que essa proteção complementar não suplanta ou compete com a Convenção dos Refugiados, pois é, como o próprio nome diz, complementar. Na prática, significa que o processo decisório australiano vai analisar os pedidos de proteção como sempre fizeram, mas, agora, atentos à constante evolução da noção de O Ministro da Imigração Scott Morrison introduziu em 2014 uma nova emenda com previsões legislativas que significariam profundo retrocesso na atual política australiana. (MCADAM; MURPHY, 2014). Ainda, (MIGRATION..., 2015). 48  KARLSEN, Elibritt. Ibid. 49  MCADAM, Jane. Playing God on asylum seekes is unacceptable. Disponível em: . Acesso em 02 de ago de 2015. 50  AUSTRALIA. Migration Act 1958. Disponível em . Acesso em 16 de jul de 2015. 51  AUSTRALIA. Ibid. 47 

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“perseguição”52. A base de proteção complementar agora passa, assim, a ser considerada uma evolução compreensiva e avaliativa do requerimento do aplicante da definição legal de refugiado. Destarte, casos relacionados exclusivamente à compaixão ou humanitário ainda podem ser alvo de avaliação do Ministro da Imigração, tal como era realizado anteriormente. Apesar disso, é possível identificar certas lacunas protetivas na legislação australiana, pois esta falha em estender a proteção a indivíduos que estejam fugindo de situações de conflito ou violência generalizada. Na realidade, a complementary protection se aplica tão somente a casos de risco pessoal. Ademais, não há tratamento específico para os apátridas, ainda que sua situação já seja conhecida e objeto de tratados internacionais53. Por fim, embora a Convenção sobre os Direitos da Criança claramente consagre o direito da criança acima de qualquer outra previsão, situação ou texto legislativo, não há nenhuma diretriz básica ou parâmetro que dê tratamento especial aos pedidos de proteção formulados pelos mesmos54. Deste modo, fica claro que as crianças não recebem a atenção prioritária, conforme previsto em instrumento, tampouco os pais dessas crianças, havendo, assim, uma disparidade no tratamento dispensado a estes.

4.2 O tratamento dispensado “Ferouz Myuddin” e aos demais bebês e crianças na mesma situação Conforme dito, todos os estrangeiros ilegais, ao chegar na Austrália, devem ser imediatamente detido até que recebam o visto ou sejam deportados. Todavia, a legislação não traz parâmetros especiais para a detenção de menores, que acabam sujeitos ao mesmo tratamento de adultos de processamento indefinido e cruel, presos em condições sub humanas por meses ou até anos. Embora a seção 4AA do Migration Act da Australia preveja que a detenção de uma criança deve ser a última medida, segundo estatísticas de 2014 do Departamento de Imigração e Proteção da Fronteira australiano, haviam 1.106 crianças retidas em centros de detenção para imigrantes na Austrália continental, 356 detidas na Ilha de Natal, 177 em Nauru, 1.579 crianças detidas em lares determinados e 1.816 crianças vivendo em comunidades com vistos limitados (em que seus pais não tem direito a trabalho e o MCADAM, Jane. Ibid, p. 695. Convenção Relativa ao Estatuto dos Apátridas, de 1954 e Convenção de 1961 para Reduzir os Casos de Apatridia. 54  MCADAM, Jane. Ibid, p. 734. 52  53 

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auxílio do governo é limitado)55. Em verdade, não obstante a supramencionada previsão, não há qualquer medida inicial para crianças, que não o envio para centros de detenção. A senadora Sarah Hanson-Young introduziu uma emenda à legislação em maio de 2014, onde previa a proibição de remover crianças nascidas em solo australiano para centros de detenção fora do continente56, que ainda está pendente de votação57. Esta emenda objetiva garantir que crianças nascidas na Austrália não sejam classificadas como “chegada na Austrália pelo mar”, e que não seria considerada, tampouco, uma “chegada marítima não autorizada”, sujeita à transferência para um centro de detenção fora do território australiano58, como a ilha de Nauru. Atualmente, a legislação ainda possibilita a manutenção de bebês em centros de detenção, e ainda existem grávidas em centros de detenção fora da Austrália continental cujos bebês retornarão para estes centros de detenção em condições insalubres. Sabe-se que a experiência de detenção é traumatizante para todos os detentos, principalmente para as crianças. Segundo Kronick, Rousseau e Cleveland (apud DESOUZA59) algumas das consequências são problemas de comportamento, que as levam inclusive a urinar na cama, ansiedade, problemas de sono, pesadelos e comprometimento do desenvolvimento cognitivo. Casos ainda mais graves incluem mutismo, recusa à comida e bebida, estresse pós traumático, depressão grave, auto mutilação e propensão ao suicídio. Após uma visita à ilha de Natal, a pediatra Karen Zwi relatou suas experiências perturbantes, como60 (...) crianças infectadas com feridas que gritavam de dor por conta de cárie. Bebês não podem engatinhar porque o chão é muito DESOUZA, Ruth. Babies on board: Families in detention. 22 de abril de 2014. Disponível em . Acesso em 02 de ago de 2015. 56  LEE, Jane. Green seeks conscience vote on asylum seeker babies born in detention. 16 de abril de 2014. Disponível em . Acesso em 02 de ago de 2015. 57  PARLIAMENT of Australia. Migration Amendment (Protecting Babies Born in Australia) Bill 2014. Disponível em < http://www.aph.gov.au/Parliamentary_Business/Committees/Senate/Legal_and_Constitutional_Affairs/Protecting_Babies>. Acesso em 02 de ago de 2015. 58  ARIYAWANSA, Sayomi. Vessels and wombs: Being Born a “boat person”. 30 de março de 2015. Disponível em . Acesso em 02 de ago de 2015. 59  DESOUZA, Ruth. Ibid. 60  BROWNE, Rachel; HOWDEN, Saffron. Child detention ‘cruel’, inquiry told. The Sidney Morning Herald. 5 de abril de 2014. Disponível em < http://www.smh.com.au/national/child-detention-cruel-inquiry-told-20140404-3646h.html#ixzz2zYxUI0vt>. Acesso em 02 de ago de 2015. 55 

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áspero e o único playground é inutilizável durante o dia, em razão do calor extremo. Mães de recém-nascidos são forçadas a fazer fila para obter uma quantidade racionada de fraldas, lenços de bebês e leite em pó, enquanto escutam constantemente que não vão ser acomodadas na Austrália. “Pessoas descrevem como crueldade, tortura. Essas são as palavras que usam”.

O ordenamento jurídico internacional consagra o interesse e o bem estar da criança como prioridade, que deve receber, sob qualquer hipótese, proteção e assistência humanitária apropriados e, ainda, que sua prisão deve ser em conformidade com a lei, utilizada como última medida e pelo menor lapso de tempo possível61. A Austrália vem violando essas previsões de modo sistemático e reiterado. 5 Considerações Finais A exemplo de Ferouz Myuddin, inúmeras crianças nascem em território australiano, em hospitais australianos, por mãos de médicos australianos, e, ainda assim, são classificadas como “chegadas marítimas não autorizadas”. Por este motivo, de acordo com a legislação do país em que estão, não podem requerer um visto – sendo negado, assim, o direito de ser reconhecidas como refugiadas. Ainda assim, enquanto sofrem risco de perseguição política em seus países de origem, ficam emboscadas em uma série de burocracias, em um limbo jurídico, sem qualquer instituto jurídico formal que as proteja, que salvaguarde seus direitos. Deve haver, portanto, a necessária extensão dos direitos garantidos por meio da doutrina do complementary protection. Esse instituto, como visto, deriva de vários instrumentos internacionais, inclusive da Convenção sobre os Direitos das Crianças. Não obstante, as crianças estão sujeitas a serem enviadas para centros de detenções em Nauru e Papua Nova Guiné, onde estão sujeitas a tratamento desumano e degradante, violando princípios basilares do direito internacional. Ademais, é flagrante, ainda, a ausência de mecanismos internos na legislação australiana que tratem as crianças de modo diferenciado e específico – obrigatórios em razão da legislação internacional mais protetiva direcionadas às mesmas. Diga-se, ainda, que até mesmo a legislação interna que existe no país – como a seção 4AA do Migration Act – anteriormente tratada neste artigo – é reiteradamente desrespeitada, vez que as crianças e adolescentes são mantidos indefinidamente em centros de detenção desde o 61 

Artigos 3º, 22 e 37(b) da Convenção dos Direitos das Crianças de 1989.

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primeiro momento. Vêem violados seus direitos básicos à saúde, educação, trabalho, seguridade social, entre diversos outros, enquanto mantidos encarcerados desde seus primeiros dias de vida. Por fim, algumas ilações específicas podem ser formuladas: (i) Ao impor uma legislação burocrática aos imigrantes, a Austrália limita o direito de indivíduos serem reconhecidos enquanto refugiados, negando-lhes uma série de direitos internacionalmente reconhecidos. Taxa-lhes de “chegadas marítimas não autorizadas”, um status discriminatório e restritivo de direitos; (ii) Ao negar-lhes a proteção garantida através da Convenção de Refugiados, necessariamente deve haver a aplicação do instituto do complementary protection e do non-refoulement à estas crianças e seus pais, sob pena de incidir em ainda maiores violações aos direitos humanos; (iii) Ainda maiores, vez que, mantidos em centro de detenções, como ora estão, as crianças, detentas desde o berço, são expostas a condições desumanas e insalubres, violando assim preceitos básicos de instrumentos de direito internacional; (iv) Com esta linha de atuação, argumenta-se que a Austrália estaria reiteradamente desrespeitando a tendência de humanização do direito internacional que desde o final da II GGM vem pautando o comportamento da sociedade internacional. A institucionalização internacional do Refúgio, dada sua importância, deveria ser enaltecida e não restringida como vem fazendo não só o governo mas, também, o Parlamento australiano com as alterações promovidas na Migration Act. Referências ARIYAWANSA, Sayomi. Vessels and wombs: Being Born a “boat person”. 30 de março de 2015. Disponível em . Acesso em 02 de ago de 2015. AUSTRALIA. Migration Act 1958. Disponível em . Acesso em 16 de jul de 2015. BROWNE, Rachel; HOWDEN, Saffron. Child detention ‘cruel’, inquiry told. The Sidney Morning Herald. 5 de abril de 2014. Disponível em < http://www.smh.com.au/national/child-detention-cruel -inquiry-told-20140404-3646h.html#ixzz2zYxUI0vt>. Acesso em 02 de ago de 2015. Department of Immigration and Border Protection (DIBP). 2014. Disponível em < http://www. border.gov.au/>. Acesso em 02 de ago de 2015. DESOUZA, Ruth. Babies on board: Families in detention. 22 de abril de 2014. Disponível em . Acesso em 02 de ago de 2015. DIMIA – Department of Immigration and Multicultural and Indigenous Affairs. Complementary

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REFÚGIO SOB A ÓTICA DA IDENTIDADE Rafaella Ribeiro de Aguiar1 Resumo: Conflitos globais ocasionam deslocamentos globais. O refúgio é um dos dilemas do mundo contemporâneo no que se trata do aumento dos fluxos migratórios forçados, sujeitando milhões de pessoas a perderem a proteção de suas nações. Na ausência da proteção do Estado de nascimento, o refugiado busca inserção em outras sociedades e demanda proteção internacional à sua causa. Este trabalho busca abordar a questão do refúgio a partir das concepções de identidade, construindo um panorama histórico e estatístico do refúgio, articulando à visão de que a identidade é um assunto do Estado. Também situa refugiados, asylum-seekers, deslocados internos e apátridas dentro da legislação internacional para refugiados e, diante de sua insuficiência para uma análise subjetiva do indivíduo, propõe uma abordagem de análise a partir das concepções de identidade situacional e relacional, problematizando os desafios do refúgio e localizando o refugiado como um ator internacional. Palavras-chave: Refugiados; Direitos Humanos; Identidade; Direito Internacional. Abstract: Global conflicts cause global displacement. Refuge is one of the dilemmas of the contemporary world when it comes to the increase of forced migration flows, subjecting millions of people to lose the protection of their nations. In the absence of state birth protection, the refugee seeks inclusion in other societies and demands international protection to its cause. This paper seeks to discuss the issue of refuge through the conceptions of identity, building a historical and statistical overview on refuge, articulating to the conception that identity is a matter of the state. Also locates refugees, asylum-seekers, internally displaced people and stateless people within international refugee law and, before its failure to subjectively analyze the individual, proposes an approach from situational and relational conceptions of identity, questioning the challenges of refuge and locating the refugee as an international actor. Keywords: Refugees; Human Rights; Identity; International Law.

1  Graduada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC GO). [email protected]

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1 INTRODUÇÃO Num mundo em que os conflitos geopolíticos se tornam cada vez mais globais, os fluxos migratórios forçados acentuam-se na medida em que os Estados se integram e se interconectam devido à globalização. A violação aos direitos humanos é um desafio a ser superado na agenda global internacional. Os Estados democráticos lutam pela proteção aos direitos humanos universais, mas ainda enfrentam em suas fronteiras internas diferentes obstáculos que, de uma maneira ou outra, restringem a entrada maciça ou a permanência de estrangeiros. Dentro do tema das migrações encontram-se milhões de pessoas que, devido a perseguições motivadas por diversas razões, não podem ou não querem – por medo ou receio – permanecer sob a proteção dos seus Estados de nascimento. Esses indivíduos, classificados como refugiados, compõem um contingente populacional fruto da construção social do mundo pós-moderno. Atravessam fronteiras, buscam refúgio em outros Estados e em virtude da extrema pobreza, sobrevivem mediante ajudas humanitárias internacionais. A temática do refúgio é ainda uma condição, além de relevante, crítica. Ganhou importância estratégica internacional, nos últimos anos, na medida em que a Guerra da Síria e os conflitos no território africano tomaram proporções inesperadas, encorpando as estatísticas dos deslocamentos forçados da atualidade. Hoje, mais de 50 milhões de pessoas encontram-se em situação de refúgio. São alojadas em campos de refugiados ou abrigos provisórios e vivem sob a proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que tenta, em cooperação com os Estados e outras agências humanitárias, prover uma ajuda básica para a sobrevivência dos indivíduos. Administrar a assistência a uma grande quantidade de pessoas, com escassez de recursos, num espaço curto de tempo, é um desafio a ser encarado e amparado não somente por instituições supranacionais, como o ACNUR, mas também pelos Estados acolhedores e agências humanitárias. Além das dificuldades materiais, o refugiado também sofre estigmatização em relação à sua condição de refugiado, nacionalidade, cultura e etnia, em algumas sociedades, fundamentando muitas vezes a noção do refugiado como um estrangeiro “clandestino” ou “indesejável”. Nesse sentido, este trabalho visa problematizar o refúgio a partir das concepções de identidade, observando a identidade como um assunto do Estado e localizando o indivíduo enquanto ator internacional. A garantia de direitos aos refugiados é vinculada à proteção do Estado-nação: as fronteiras nacionais, em virtude das mudanças do mundo contemporâneo, estão cada vez mais submetidas às complexidades culturais. O refugiado encontra-se num contexto de não proteção do seu Estado de origem e

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de não pertencimento à sociedade que o refugia. O estudo desta problemática deve ser feito através da perspectiva da identidade, concebendo o refugiado como um ator internacional, ao passo que reivindica seu acesso à cidadania e é capaz de modificar as estruturas ao seu redor. 2 O REFUGIADO SOB A VISÃO DO DIREITO INTERNACIONAL A concessão de asilo a estrangeiros é uma prática que remonta à Grécia Antiga, ao Egito Antigo e ao Império Romano. A noção de hospitalidade era uma característica fundamental, em especial aos gregos, para definir a cultura de um povo. Nesse sentido, a política de asilo por parte dos Estados através dos tempos demonstrava a importância (em maior ou menor grau) da hospitalidade para algumas sociedades. O Direito Internacional, no que concerne ao asilo, desenvolveu-se de modo a tornar sua noção mais descritiva e ampla, até poder, no século XX, diferenciar dentre os grupos requerentes de asilo, aqueles que deveriam ser assistidos por subordinarem-se à proteção das leis humanitárias. O advento da Liga das Nações e, posteriormente, o surgimento da Organização das Nações Unidas, possibilitou que o termo asilo diferenciasse-se da noção de refúgio, apresentada de fato em 1951. Asilo e refúgio são conceitos complementares, mas este último foi, após a Liga das Nações, especializando-se através do Direito Humanitário a fim de proteger os grupos de pessoas que migram por perseguições políticas. Em 1938 foi criado o Comitê Intergovernamental para Refugiados, órgão cuja importância reside principalmente em ter criado um primeiro esboço da definição de refugiado, que pensava refugiados como “pessoas que já partiram de seus países de origem ou que devem emigrar em razões de suas opiniões políticas, credos religiosos ou origem racial”2. Tal conceito limitado, com o passar dos anos, teve de ser reavaliado. As organizações internacionais ainda não conseguiam resultados eficientes na proteção dos refugiados e era preciso que o trabalho fosse centralizado em uma linha homogênea de ação. Por isso, ao final da década de 40, a Assembleia Geral das Nações Unidas criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), de modo a delinear uma solução concisa para os problemas dos refugiados3. Em julho de 1951 definiu-se a Conferência de Plenipotenciários sobre o Estatu2  ANDRADE, José Fischel de. Direito Internacional dos Refugiados: evolução histórica (1921-1952). Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 126. 3  JASTRAM, K; ACHIRON, M. Refugee Protection: A Guide to International Refugee Law. United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR) Handbook, 2001. Disponível em: . Acesso em 02 mar. 2015.

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to dos Refugiados, conhecida como Convenção de Genebra de 1951, ato que formalizou um conjunto de ações legais protetivas em relação ao trato de refugiados, dentro do Direito Humanitário. Vinte e seis países participaram da conferência e a maioria deles era ocidental e de orientação liberal4. A definição de refugiado proposta pela Convenção de 1951 foi densamente influenciada pela visão norte-americana. Em virtude da Guerra Fria, a proposta dos estadunidenses saiu vencedora e foi criada uma definição ainda bastante restrita de refugiado5. Devido às restrições, a definição de refugiado foi rediscutida pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, de Nova York em 1967, de modo a abranger o conceito para todos os indivíduos, excluindo o fator geográfico do corpo textual. O Protocolo de 1967 é independente da Convenção de 1951 e juntos discutem a concessão (ou a exclusão) do status de refugiado; o status legal do refugiado no país de asilo e quais as obrigações desse Estado em relação ao indivíduo6. Essa definição, ainda utilizada nos dias atuais, é ampliada pela Convenção Relativa aos Aspectos dos Refugiados Africanos, de 1969, e pela Declaração de Cartagena, de 1984. Ambos os instrumentos adicionam à definição, proposta em Genebra em 1951, novas razões para a migração, rediscutindo a classificação e a ação dos Estados perante os refugiados. Assim sendo, no desenvolvimento do Direito Internacional dos Refugiados, percebe-se que o entendimento da definição do conceito e o estabelecimento de medidas legais protetivas foram cruciais para que milhões de pessoas, devido às migrações, pudessem ser acolhidas, auxiliadas e protegidas. Nesse sentido, o surgimento de estatutos específicos para a proteção de grupos até então desprotegidos foi de suma relevância para o fortalecimento das leis internacionais humanitárias. Os refugiados, tanto no âmbito do Direito Internacional, quanto nas identificações nas relações cotidianas deveriam diferenciar-se dos outros migrantes, de maneira a se destacarem como um grupo a ser protegido e terem a garantia da execução dos seus direitos. Dessa maneira, era preciso que o Direito Internacional reconhecesse, definisse, diferenciasse e classificasse os refugiados dentre o grupo migrante requerente de asilo, denominado asylum-seekers. Na alçada do ACNUR, define-se asylum-seeker como um indivíduo que pleiteia um status de refugiado, mas cuja solicitação ainda encontrase pendente. O sistema de asilo é o que determina a categoria do indivíduo perante a lei internacional: se ele precisará de proteção internacional (refugiado) ou se ele ainda encontra-se em processo de aprovação para o status da proteção internacional 4  CUNHA, Ana Paula da. A Convenção de 1951, relativa ao status de refugiado aos 60 anos e desafios da atualidade. In: PEREIRA, G; PEREIRA, J. Migrações e Globalização: um olhar interdisciplinar. Curitiba: CRV, 2012. 5  MARFLEET apud CUNHA. Ibid, p. 102 6  JASTRAM, K; ACHIRON, M. Ibid.

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(asylum-seeker). A criação do Estatuto dos Refugiados na Convenção de Genebra em 1951, e seu Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1967, constituíram um avanço significativo nos debates sobre tais migrantes, resguardando os direitos às vítimas de conflitos e reconhecendo como refugiado, no Artigo 1º, seção A, Qualquer pessoa que ‘devido a temores fundados de ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, ou por pertencer a determinado grupo social ou opiniões políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa, ou devido a tais temores, não queira recorrer à proteção de tal país”7.

Nesse sentido, observa-se que o indivíduo refugiado é aquele que é fruto da migração forçada e caracteriza-se, seguindo essa classificação, um migrante político. É preciso, então, refletir as causas da migração que, invariavelmente, submetem o ser refugiado a uma situação de não-retorno, bem como as consequências do asilo e a maneira como o Direito Internacional dos Refugiados desempenha o seu papel na garantia da segurança legal desses indivíduos. A proteção a refugiados é, primeiramente, uma responsabilidade dos Estados. Os Estados têm cooperado com o ACNUR, desde sua fundação, como parceiros na proteção internacional, oferecendo naturalizações, vistos de trabalho e permissões de estadia em campos de refugiados. Os Estados ainda permitem a ação do ACNUR entre fronteiras domésticas e fornecem assistência financeira não somente através dos programas de proteção do ACNUR, mas também através de seus programas de proteção nacionais8. O ACNUR, então, responsabiliza-se pela pesquisa e construção de estatísticas, a nível internacional, de modo a fornecer embasamento para se entender não somente as mudanças no panorama global de migrações, como também suas causas9. Segundo o relatório das tendências semestrais do ACNUR, Mid-Year Trends 2014, os conflitos armados resultaram no deslocamento de milhões de pessoas, totalizando 51,2 milhões de indivíduos ao final do ano de 2013. Dentro desta estatística, 16,7 milhões são considerados refugiados; 33,3 milhões são pessoas internamente deslocadas e 1,2 milhões são asylum-seekers10. Os dados demonstram que um considerável contingente populacional migra devido aos conflitos e, por causa deles, não podem re7  CUNHA apud MILESI, R; GREGORI, J; VARESE, L; BARRETO, L; SPRANDEL, M; QUITO, M; CASTRO, M; Refúgio, migrações e cidadania. Caderno de debates 2. ACNUR, ago. 2007, p. 14. 8  JASTRAM, K; ACHIRON, M. Ibid. 9  JASTRAM, K; ACHIRON, M. Ibid. 10  ACNUR. Mid-Year Trends 2014. Genebra, 2015. Disponível em: . Acesso em 05 mar. 2015, p. 3.

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correr à proteção de seus países de origem. Ainda segundo o mesmo relatório é possível perceber que, os conflitos armados insurgentes na última década resultaram em uma mudança geográfica dos países que emitiam refugiados. Por mais de uma década, as regiões da Ásia e do Pacífico foram os locais de maior migração de pessoas. Devido aos conflitos na Síria e em outros Estados do Oriente Médio e da África, como os conflitos no Sudão do Sul, essas regiões tornaram-se, atualmente, os principais locais de origem de refugiados no mundo11. Essa transformação geopolítica é fundamental para entender a mudança recente na dinâmica dos Estados receptores e, principalmente, dos novos Estados que originam essas migrações. Além dos refugiados e asylum-seekers, estão sob a égide da proteção informal do ACNUR as Pessoas Deslocadas Internamente, classificadas como aquelas que ainda não cruzaram totalmente a fronteira de seus países. A proteção do ACNUR a estes indivíduos é informal devido ao fato de que estas pessoas ainda estão sob a força legal de seus países e, nesse sentido, não se enquadram no Estatuto dos Refugiados. No entanto, como cidadãos, todos estão sob a tutoria do Direito Humano Internacional e cabe a ele também a proteção dos indivíduos. Os apátridas e os voluntariamente retornados também são protegidos pelo ACNUR. São considerados apátridas aqueles que, por algum motivo legal, não possuem nacionalidade reconhecida por nenhum Estado. Segundo o relatório Mid-Year Trends 2014, o número preciso de pessoas apátridas no mundo é desconhecido, mas estimase que ele chegue à casa dos 10 milhões. Estima-se também que 107 mil refugiados tenham retornado voluntariamente aos seus países de origem até junho de 2014, comparado a aproximadamente 189 mil no mesmo período em 201312. O termo asilo é amplamente entendido como “a proteção básica, ou seja, sem retorno forçado para fronteiras dos territórios em que a vida ou a liberdade do refugiado possam ser ameaçadas, por um período temporário”13. Essa não possibilidade de retorno foi discutida pelo Princípio do Non-refoulement ou Não-Devolução, no âmbito da Convenção de Genebra de 1951. Tal princípio estabelece que nenhum refugiado deve ser forçado pelos Estados a retornar a seu país de origem. Os direitos assegurados pelo Estatuto dos Refugiados são fundamentados, principalmente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantem que o indivíduo refugiado tem (a) direito à vida, liberdade e segurança pessoal; (b) direito à procurar e se beneficiar do asilo; (c) liberdade de tortura ou trata11  12  13 

ACNUR. Op. Cit. ACNUR. Ibid, 2015, p. 10-11. JASTRAM, K; ACHIRON, M. Ibid, p. 15.

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mento e castigo cruéis, desumanos e degradantes; (d) liberdade da escravidão ou servidão; (e) o reconhecimento como pessoa perante a lei; (f ) liberdade de pensamento, consciência e religião; (g) liberdade de prisão ou detenção arbitrárias; (h) liberdade de interferência arbitrária em sua privacidade, casa e família; (i) liberdade de opinião e expressão; (j) direito a ser educado; (l) direito a participar da vida cultural da comunidade14 (tradução nossa).

Os refugiados, segundo o Estatuto, devem ter os mesmos direitos garantidos a qualquer outro estrangeiro residente legal no Estado receptor, dentre eles direitos civis, sociais e econômicos. Os países que conferem a um asylum-seeker o status de refugiado devem, automaticamente, conceder a ele “um tratamento tão favorável quanto possível”15. Ainda de acordo com o Estatuto, além dos direitos, os refugiados possuem o dever de cumprirem as leis do Estado em que se encontram, além de respeitarem a cultura local16. Dessa perspectiva, observa-se que o desenvolvimento das Leis Humanitárias e, em seguida, a criação de um Estatuto exclusivo para os refugiados, potencializa as chances de que as violações aos direitos não sejam impunes. Há, entretanto, diversos percalços a serem transpostos relacionados ao trato dos refugiados. Atualmente, com o aumento considerável no número de migrantes, os Estados, bem como o ACNUR, enfrentam dificuldades materiais, financeiras, estruturais e, muitas vezes, políticas, para exercer de fato a proteção aos indivíduos. Tais percalços perpassam as diversas negociações culturais e identitárias que os refugiados e seus grupos vivenciam nos campos de assentamento e nas sociedades que porventura os acolhem. Os problemas vivenciados atualmente em relação ao refúgio se dão sobremaneira em virtude da histórica construção social do mundo pós-moderno. Diferentes nacionalidades, religiões, idiomas, crenças, culturas e etnias acabam convergindo em um mesmo espaço geográfico; no âmbito do refúgio, comumente no campo de assentamento. Dito isso, o refúgio deve ser analisado não somente sob a ótica jurídica e normativa, mas fundamentalmente através de uma análise sociológica da identidade, colocando também o indivíduo como um ator político e peça fundamental na construção social dos conceitos de refugiado.

JASTRAM, K; ACHIRON, M. Op. Cit., p. 16. ACNUR. Convention and Protocol Relating to the Status of Refugees – 1951 Convention and 1967 Protocol. Genebra, dez. 2000. Disponível em: . Acesso em 05 mar. 2015, p. 23. 16  ACNUR. Op. Cit. 14  15 

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3 CONCEPÇÕES DE IDENTIDADE A cultura de um povo é um elemento fundamental para analisar a maneira como os indivíduos de determinada sociedade agem perante o contexto social a que estão inseridos. Tendo em vista que o indivíduo é um dos atores das Relações Internacionais e partindo do princípio de que as ações são carregadas de “significados sociais”17 , é relevante discutir de que modo essa significação influencia as percepções individuais de si mesmo, do contexto e do outro que, de uma maneira ou outra, auxiliam na construção de conceitos acerca dos grupos sociais. Neste trabalho, o conceito de cultura é associado ao de identidade por ser a identidade cultural considerada como umas das formas de identidade social. Intimamente ligadas, a identidade cultural e a identidade social são indissociáveis, mas são, também, diferentes. Parte-se da premissa de que a cultura “pode existir sem consciência de identidade” e de que ela “depende em grande parte de processos inconscientes”18, demonstrando que ações culturais podem ser muitas vezes involuntárias, na medida em que o indivíduo age inconsciente de que um determinado comportamento provém de um processo cultural. Quando indivíduos compartilham determinados valores, língua, normas, isso possibilita uma base comum de identificação, a partir da qual eles constroem sua identidade. Denys Cuche concebe a identidade como uma “norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas”19 e, dentro de suas variadas concepções, como uma articulação entre o indivíduo e o sistema social. Nesse sentido, a identidade “é um instrumento que permite pensar a articulação do psicológico e do social em um indivíduo. Ela exprime a resultante das diversas interações entre o indivíduo e seu ambiente social, próximo ou distante”20. A identidade funciona como uma ferramenta para explicar a articulação das relações entre indivíduo e sociedade, ou seja, o pertencimento e a identificação dentro de um grupo social. A identidade social, segundo Cuche, é um conjunto de vinculações do indivíduo na sociedade, permitindo que o indivíduo seja localizado socialmente21. Relacionando-se também aos grupos, a identidade social é uma “definição social”, funcionando como um instrumento de classificação. Nesse sentido, a identidade cultural é uma componenWENDT apud SLAUGHTER, Anne-Marie. International Relations, Principal Theories. In: Wolfrum, R. (Ed.) Max Planck Encyclopedia of Public International Law. Oxford University Press, 2011. 18  CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 1999, cap. 6, p. 176. 19  CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 176. 20  CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 177. 21  CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 177. 17 

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te da identidade social, podendo servir como uma forma de distinção dos indivíduos22. A identidade cultural para alguns indivíduos e grupos pode ser pensada e assumida como uma herança do grupo ao qual o indivíduo está vinculado, o que Cuche diz fundamentar a noção de naturalização da vinculação cultural, exprimindo a concepção objetivista de identidade23 (1999, p. 178). Tal perspectiva permite que a identidade seja vista como anterior à existência do indivíduo, isto é, o indivíduo ou seu grupo não possuem influência sobre a existência da identidade cultural, de modo que se submeteriam a ela. Tal visão, segundo Cuche, concebe a identidade como estática e imutável, além de desconsiderar o fato de que o indivíduo não é um ser definitivo24. Outras abordagens, como a culturalista, determinam que a herança não é genética, mas advém da socialização dos indivíduos dentro de seus respectivos grupos. Cuche também considera tal concepção de identidade como estática, pois que, se o indivíduo não nasce com determinada cultura impregnada em seu DNA, está fadado a ser influenciado por ela. De acordo com o autor, a cultura seria interiorizada pelo indivíduo até ser naturalizada e, nesse sentido, ela seria também preexistente ao indivíduo25. Cuche afirma que a “construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas”26. Isto é, a identidade é construída em determinados contextos e momentos, através das relações entre os indivíduos e entre os grupos. Adotar uma perspectiva objetivista ou subjetivista é desconsiderar que o indivíduo compõe uma rede de relações que influencia suas escolhas e maneiras de agir e pensar o mundo. Essa nova proposta de análise da identidade a partir do contexto e de determinadas relações é definida por Cuche27 como uma concepção situacional e relacional. A identidade, para o autor, é observada a partir do ponto de vista das “trocas sociais” e não unicamente sob as vinculações culturais dos grupos, como vemos: Uma cultura particular não produz por si só uma identidade diferenciada: esta identidade resulta unicamente das interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação que eles utilizam em suas relações. [...] Os membros não são vistos como definitivamente determinados por sua vinculação etno-cultural, pois eles são os próprios atores que atribuem uma significação a esta vinculação, em função da situação relacional em que eles se encontram28. 22  23  24  25  26  27  28 

CUCHE, Denys. Op. Cit. CUCHE, Denys. Op. Cit. CUCHE, Denys. Ibid, p. 179. CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 179-180. CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 182. CUCHE, Denys. Op. Cit. CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 183.

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Em oposição à perspectiva essencialista da identidade dada pelos objetivistas, Cuche apresenta a concepção relacional como dinâmica, transformando o estudo da identidade e permitindo analisar o seu ponto central: as relações entre os indivíduos. Ao dizer que a identidade “existe sempre em relação a uma outra”29, mostra que a situação e a posição em que o indivíduo se encontra relativiza sua identidade, de modo que, se a situação é modificada, a identidade também pode fazer o mesmo. Outro sociólogo, Stuart Hall, dedica-se a explicar a construção da identidade cultural do indivíduo pós-moderno. Ao analisar o nascimento do sujeito pós-moderno, Hall vê a identificação como “um processo em andamento”30, distanciando-se da concepção objetivista da identidade, visão também criticada por Cuche. Para Hall, a identidade individual vai sendo “preenchida” a partir das formas através das quais os indivíduos imaginam ser vistos pelos outros31 . Considerando o conceito de “identificação” como “um processo em andamento”, a identidade, então, é vista como uma negociação entre a identificação pessoal e a identificação social: a definição de si mesmo é vista como “auto-identidade” e a visão definida pelos outros é definida como “hetero-identidade” ou “exo-identidade”32. A força de um contexto ou outro ajuda a entender as diversas identificações existentes no mundo pós-moderno, como observa-se o caso dos refugiados. Em uma situação de dominação entre grupos pode haver uma “afirmação” ou uma “imposição” da identidade. Nesse sentido, Cuche afirma que a hetero-identidade pode ser traduzida pela estigmatização de grupos sociais. Dentro desse contexto, o estigma produz o que o autor chama por “identidade negativa”, usada para legitimar a visão construída pelos outros. A “exo-identidade” realça a diferença entre os grupos e pode produzir contextos ainda mais excludentes33. As relações sociais são permeadas pelas negociações entre as identidades: os grupos negociam suas identidades de modo a afirmá-las. Levando em conta as relações de poder formuladas entre os grupos, as auto-identidades, muitas vezes podem ser reafirmadas em contextos de dominação, mesmo com a resistência de uma hetero-identidade. No contexto do refúgio, a classificação exógena dada ao indivíduo definindo-o como “refugiado”, sistematizada pelo Estatuto dos Refugiados de 1951, limita, em termos práticos, aqueles que receberão a proteção internacional. Em termos sociológicos, para Cuche, tais classificações normativas compõem um contexto de identificação dos CUCHE, Denys. Ibid, p. 183. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 10ª edição, 2005, p. 39. 31  HALL, Stuart. Op. Cit. 32  SIMON apud CUCHE, Denys. Ibid, p. 184. 33  CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 184-185. 29  30 

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grupos e dos indivíduos34. Esse sistema de classificações, segundo Bourdieu, “fixa as respectivas posições de cada grupo”, isto é, a autoridade legítima – no caso do refúgio, os Estados – tem o poder de tornar reconhecidas as suas categorias de representação da realidade e de divisão social. Os Estados então podem, discricionariamente, “fazer e desfazer os grupos”, ou seja, delimitar de acordo com suas categorias de representação os grupos que compõem sua sociedade35. Nesse sentido, as lutas de classificação surgem na negociação entre as classificações exógenas e as classificações endógenas. No âmbito do refúgio, a perda da proteção do Estado de origem e a não possibilidade de retorno consubstanciam a classificação do indivíduo como refugiado. No entanto, a exo-identidade imposta sob a classificação do refúgio cria, em muitos casos, um contexto de estigmatização do refugiado na sociedade que o recebe. Ao ser inserido na sociedade hospedeira, os migrantes se encontram envolvidos num contexto de lutas de classificação social, podendo ter suas auto-identidades afirmadas ou negadas. Tendo em vista a concepção situacional e relacional da identidade proposta por Cuche, a identidade passa a ser um assunto estatal quando, historicamente, há a centralização do controle político, econômico e social nas fronteiras dos Estados36. O Estado torna-se “gerente da identidade” sob a perspectiva jurídica de jus solis e jus sanguinis: àqueles que nascem ou descendem de nascidos em seu território é garantida e conferida à identidade nacional37. O modelo de Estado-Nação enrijeceu-se na modernidade. De acordo com Cuche, o Estado Moderno tende a uma única identificação jurídica, “à identidade exclusiva”, endurecendo seus critérios de classificação38. A tendência à mono-identificação, no entanto, não é suficiente para analisar o indivíduo pós-moderno. As identidades estão, cada vez mais, multidimensionais, tendo em vista que nenhum indivíduo ou grupo está fechado a uma identidade unidimensional. Considerando que a identidade pode ser situacional e relacional, ela, adaptada ao contexto, possui diversas dimensões39. O Estado lida com um conjunto de mudanças sociais, delineado pelas interligações que os sujeitos fazem entre suas concepções de si mesmos, dos seus grupos e das estruturas sociais. A relativa concentração da identidade nas mãos do Estado, conforme Stuart Hall, contribui para a padronização das medidas estatais, aplicando-as a todos os indivíduos classificados em respectivas nacionalidades. Essa padronização cria uma 34  35  36  37  38  39 

CUCHE, Denys. Ibid, p. 183. BOURDIEU apud CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 186. CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 188. CUCHE, Denys. Op. Cit. CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 189. CUCHE, Denys. Op. Cit., p. 192.

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“cultura homogênea” e mantém as instituições culturais nacionais40, construindo um contexto mais favorável à industrialização e à globalização. Assim como Cuche, Hall vê a identidade nacional submetida aos jogos de poder das diferenças, o que o primeiro determina por lutas de classificação. As identidades nacionais, embora propagadas pelo Estado como unificadas, são na verdade múltiplas e não subordinam todas as outras formas diferentes de identidade, já que estas são compostas por diversas variáveis que perpassam a auto e a hetero-identidade41. Nesse sentido, o Estado utiliza de seus aparatos legais para, juridicamente, exercer a vinculação identitária de seus indivíduos, garantindo a eles a proteção legal. A vinculação nos moldes jurídicos relaciona-se ao conceito objetivista de identidade, comentado previamente por Cuche, que trata os vínculos identitários como herança e concebidos como imutáveis42. Assim como no contexto do refúgio, a proteção legal aos indivíduos está, normativamente, vinculada a uma concepção objetivista da nacionalidade. A classificação sistemática dada pelo direito humanitário internacional aos refugiados, baseada numa concepção objetivista de identidade nacional, é, legalmente, a garantia da proteção internacional. Os Estados dessa maneira, no âmbito das relações internacionais, enfrentam dilemas no que tange aos problemas relacionados às identificações nacionais. A presença de novas nacionalidades representadas pelos grupos refugiados ocasionam mudanças no contexto cultural vivenciado pelos países receptores. Considerando a concepção de que a identidade é uma construção social realizada num determinado contexto, é preciso então analisar de que maneira as novas identidades culturais nacionais apresentadas ao Estado-receptor modificam o contexto da construção de identidade do ator refugiado. 4 DILEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REFÚGIO E DIREITOS HUMANOS O contexto dos fluxos migratórios tem mudado na contemporaneidade em virtude dos processos de integração política, social e econômica entre os indivíduos, organizações e países. A instabilidade política e econômica em que se encontram muitos Estados é uma parte da história da construção social do mundo pós-moderno. A globalização, as crises no capitalismo, as dificuldades financeiras e os conflitos sociais constituem um pano de fundo para a insurgência de migrações voluntárias ou forçadas. Diante desse quadro, muitos Estados falham no atendimento de certas demandas, como a proteção aos seus indivíduos e, nesse sentido, a questão dos refugiados constitui 40  41  42 

HALL, Stuart. Ibid, p. 50. HALL, Stuart. Op. Cit., p. 65. CUNHA, Ana Paula da. Ibid, p. 178.

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um fenômeno de grande relevância para as relações internacionais. A situação dos mais de 51,2 milhões de refugiados43 deve ser analisada levando em conta suas condições políticas, econômicas, jurídicas e, principalmente, sociais. O refugiado foge dos conflitos e das constantes perseguições e ameaças, feitas por agentes estatais ou não estatais, que colocam sua vida, segurança e liberdade em risco. As frequentes violações aos direitos humanos por parte dos Estados de origem forçam o indivíduo a migrar buscando um território que possa assegurar os seus direitos civis e sociais44. Os problemas relacionados ao refúgio são inúmeros. Segundo o ACNUR, em seu Relatório Estatístico do ano de 2013 (Statistical Yearbook 2013), dentre os aproximados 51,2 milhões de refugiados, quase metade são crianças que viajam sozinhas ou em grupos. De acordo com os números publicados, estimava-se que, nesse mesmo ano, 25.300 crianças desacompanhadas formalizaram pedidos de asilo. Independentemente de seus status perante a legislação para refugiados, elas sofrem graves riscos de abuso e violência. As dificuldades financeiras obrigam muitas famílias a colocarem suas crianças para trabalhar, onde são submetidas a regimes de trabalho exaustivos e a um ambiente violento de exploração. Crianças sírias refugiadas no Líbano trabalham em torno de 40 horas semanais e recebem em torno de U$6 dólares por dia pelo trabalho em colheitas, mas há registros de trabalho infantil de crianças refugiadas também em fábricas, comércio, tráfico de drogas e prostituição. Estima-se que entre 180 e 300 mil crianças refugiadas trabalhem no Líbano, a maioria delas de origem síria45. A ajuda financeira fornecida pelo ACNUR e outras agências humanitárias é ainda insuficiente para sustentar as famílias. Os maiores campos de refugiados estão localizados em países em desenvolvimento, o que dificulta o acesso aos direitos e à renda não somente por parte dos refugiados, mas também dos nativos46. Os Estados enfrentam diariamente um aumento no número de requerentes de asilo. Conforme o Statistical Yearbook 2013, aproximadamente 32 mil pessoas são, diariamente, forçadas a migrar. Isso significa que 32 mil pessoas, todos os dias, submetem-se às condições precárias da migração por fugirem de situações ainda mais instáveis em suas regiões de origem. Esse aumento estatístico de quase 11 mil migrantes diários em relação ao ano de 2012 é ACNUR. Statistical Yearbook 2013. Country Data Sheets, 2 fev. 2015a. Disponível em: . Acesso em 05 mar. 2015, p. 6. 44  VARGEM, Alex André. O Direito ao Refúgio: uma ficção jurídica?. In: PEREIRA, G; PEREIRA, J. Migrações e Globalização: um olhar interdisciplinar. Curitiba: CRV, 2012, p. 119-120. 45  THE GUARDIAN. Syrian refugee children in Lebanon forced to seek work – in pictures. Global Development, 12 jun. 2014. Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2015. 46  ACNUR. Ibid, 2015a. 43 

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consequência da multiplicação dos conflitos sociais e políticos nos últimos anos47. Tais dados confirmam que os Estados, em cooperação com o ACNUR e outras agências humanitárias, devem comprometer-se com a proteção dos refugiados. A questão dos refugiados é, além de relevante, emergencial. O constante desenvolvimento do Direito Internacional para os Refugiados é, então, fundamental para que mais indivíduos possam ser protegidos pelas leis humanitárias. A postura dos Estados diante do problema é, no entanto, divergente, muitas vezes, das obrigações e compromissos instituídos e assinados em acordos e tratados internacionais. O acolhimento dos migrantes é primeiramente feito por agências humanitárias – principalmente o ACNUR – que avaliam se o indivíduo enquadra-se na condição de solicitar refúgio. Os migrantes são redirecionados a campos de assentamento, mas comumente são encarcerados em aeroportos, albergues, prisões e campos de refugiados fechados48. Os campos de refugiados são abarrotados e suas administrações na maior parte das vezes não conseguem prover uma estrutura satisfatória que ofereça o mínimo de subsistência aos asilados. As infraestruturas são precárias e não conseguem suprir as necessidades crescentes dos indivíduos. O complexo de campos em Dadaab, no Quênia, por exemplo, é o maior do mundo e abriga em torno de 351 mil pessoas, dentre elas 348 mil refugiados e 3 mil asylum seekers. A maior parte dos abrigados são somalis, totalizando aproximadamente 334 mil pessoas49. A infraestrutura em Dadaab é apenas um retrato de muitos outros campos espalhados no mundo. A ajuda humanitária é básica em quase todos os campos: são fornecidos comida, água e cuidados de saúde rudimentares. Em Dadaab e outros campos, crianças vão a escolas primárias improvisadas e muitos adolescentes e adultos ocupam seu tempo com atividades de comércio dentro dos campos, o que lhes fornece uma pequena, mas nem sempre suficiente renda50. Outro aspecto relevante é a segurança: os campos não são seguros. Abrigados, voluntários e funcionários correm o risco de ataques de milícias e grupos armados, além de violências sexuais e de gênero. Tomando Dadaab como exemplo, o governo do Quênia acredita que o campo seja um terreno fértil para o fortalecimento do grupo islâmico somali al-Shabaab51. Em relação às violações aos direitos humanos, somente na primeira ACNUR. Op. Cit. , 2015a, p. 6. VARGEM, Alex André. Ibid, p. 123. 49  ACNUR. Refugees in the Horn of Africa: Somali Displacement Crisis – Dadaab, Kenya. Portal de Informação: 30 abr. 2015b. Disponível em: . Acesso em 28 mai. 2015. 50  ACNUR. UNHCR Bi-weekly update (1-15 march 2015): Dadaab Refugee Camps, Kenya. Dadaab: mar. 2015c. Disponível em: . Acesso em 28 mai. 2015, p. 3. 51  THE GUARDIAN. Dadaab refugee camp closure would risk 350.000 Somali lives, warns Amnesty. The 47  48 

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quinzena de março de 2015, 17 casos de violência sexual e com base no gênero foram reportados no complexo52. Os migrantes estão ainda sob o controle discricionário dos Estados, o que aumenta o tempo de espera pela classificação como refugiados. O fechamento das fronteiras e o não cumprimento do Princípio do Non-refoulement são práticas cada vez mais comuns nos últimos anos. Um cargueiro norueguês, por exemplo, em 2001, transportando refugiados afegãos resgatados em alto mar não foi autorizado a desembarcar na Austrália53. Fatos como o descrito repercutem-se na história das violações dos direitos aos refugiados. Os Estados justificam o descumprimento do Princípio alegando ameaças à segurança nacional e escassa disponibilidade de recursos para proteger os indivíduos54. A garantia de direitos está intimamente atrelada à garantia da nacionalidade. O Estado-Nação, como define Cuche, possui o monopólio da identidade e atribui a si o controle da proteção e da segurança dos indivíduos55. De acordo com o ACNUR, a apatridia constitui um outro dilema contemporâneo: 10 milhões de pessoas não possuem nacionalidade e boa parte deste contingente são refugiados56. Discriminação contra minorias na legislação nacional, separação e conflitos de leis entre Estados estão entre as razões mais comuns para a existência de pessoas apátridas. A Convenção sobre o Estatuto de Pessoas Apátridas, de 1954, é contemporânea à Convenção de Genebra de 1951 e permanece como o único mecanismo legal internacional a regular os padrões de tratamento aos apátridas57. Os direitos são negados aos apátridas na medida em que os mecanismos legais associam cidadania à nacionalidade. Os migrantes forçados, de modo semelhante, possuem seus direitos negados quando a eles é dificultado o acesso ao asilo e à condição de refugiados. O ACNUR, em cooperação com os Estados, tenta solucionar por vias duradouras todos esses e outros problemas do refúgio buscando a repatriação voluntária, a integração local ou reassentamento de pessoas. Voltar ao país de origem é a solução mais buscada pelos refugiados, mas nem sempre é viável uma vez que o clima de insegurança e instabilidade permanece durante um tempo nas regiões mesmo após os conflitos. Nos últimos 25 anos, segundo o Statistical Yearbook 2013, o ano de 2013 presenciou Guardian: 17 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2015. 52  ACNUR. Ibid, 2015c, p. 2. 53  WILHEIM apud SUPAAT, Dina Imam. Escaping the principle of non-refoulement. Malásia: International Journal of Business, Economics and Law, v. 2, n. 3, jun. 2013, p. 88 54  SUPAAT, Dina Imam. Op. Cit. 55  CUCHE, Denys. Ibid, p. 189. 56  ACNUR. Ibid, 2015, p. 10. 57  ACNUR. Under The 1954 Convention Relating to the Status of Stateless Persons. Handbook on Protection of Stateless Persons. Genebra, 2014. Disponível em: . Acesso em 28 mai. 2015, p. 3.

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o quarto menor índice de repatriações, totalizando 6,5 milhões de repatriações contra 14,6 milhões da década anterior. A volta ao país de origem não fere o Princípio do Non-refoulement, pois é feita mediante consulta e de maneira voluntária por parte dos refugiados58. Reassentar os refugiados é outra solução procurada, mas também de difícil execução já que a demanda por reassentamento é sempre maior que a disponibilidade de países para receber os indivíduos. Mulheres e crianças em risco compõem quase 12% dos pedidos de reassentamento, mas os números de Estados abertos aos pedidos não mudou de 2012 a 2013 (mantém-se 27), mesmo que o número de pessoas reassentadas tenha aumentado em 9,5% nesse período59. O desafio para que o reassentamento se torne uma solução duradoura é o de que o número de Estados voluntários cresça diante da urgência do problema. Dentre as três soluções buscadas pelo ACNUR, a integração local é a mais desafiadora. A inserção social, econômica, legal e cultural do indivíduo na sociedade do país que o abriga seria a solução mais viável caso a repatriação não fosse possível. A integração é multidimensional: num primeiro momento, há a proteção legal, onde o refugiado possui a cidadania do país de refúgio e goza de todos os direitos legalmente assegurados pelo Estatuto de 1951. Num segundo momento, há a integração econômica, onde as famílias podem ter residência permanente e vínculos empregatícios. Num terceiro e mais profundo processo, há a integração cultural e social em que, idealmente, o refugiado poderia viver em um ambiente sem discriminação e adaptar-se ao convívio social60. A integração local é um processo que tem benefícios potenciais à sociedade hospedeira, pois constitui uma oportunidade de trazer desenvolvimento econômico aos Estados receptores. Segundo Alexandra Fielden, o refúgio pode trazer desenvolvimento de infraestrutura por parte dos investimentos internacionais e os indivíduos podem se tornar força de trabalho e constituir uma população economicamente ativa61. No entanto, a integração local é vista com resistência por parte dos governos e da população local, justificada por diversos fatores. Por não se enquadrarem num status político, milhões de refugiados estão sujeitos à proteção paliativa e insuficiente das organizações humanitárias internacionais. Os recursos possibilitam a sobrevivência de muitos, mas ainda não são suficientes para integrar os indivíduos à sociedade dos países receptores. Essa dificuldade de inserção na sociedade hospedeira diferencia os grupos e torna os refugiados seres “indesejáveis” e ACNUR. Ibid, 2015a, p. 20. ACNUR. Op. Cit., p. 20. 60  CRISP apud FIELDEN, Alexandra. Local integration: an under-reported solution to protracted refugee situations. New issues in refugee research, n. 158, jun. 2008. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2015, p. 1 61  FIELDEN, Alexandra. Op. Cit., p. 3. 58  59 

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estranhos. Os indivíduos, nas suas negociações de poder e identidade, diferenciam-se e, nessa perspectiva, para melhor entendimento acerca desse processo de estigmatização dos refugiados é importante trazer a contribuição da concepção de identidade situacional e relacional. 5 REFÚGIO SOB A ÓTICA DA IDENTIDADE As condições das migrações dos refugiados são bastante precárias e seu grau de mobilidade é pequeno. Zygmunt Bauman, ao discutir as consequências da globalização, percebe que a sociedade pós-moderna, por ser estratificada, divide os indivíduos entre aqueles que possuem maior ou menor grau de mobilidade62. Os de maior grau são aqueles que possuem condições financeiras para migrar com qualidade e, por isso, sua liberdade de escolha de destino é maior. Esses migrantes, de acordo com Bauman, são considerados “desejáveis” por parte dos Estados de destino, pois possuem melhores condições de contribuir com o desenvolvimento econômico da região63. Em contrapartida, os migrantes com menor grau de mobilidade, ou seja, aqueles que migram com pouca ou nenhuma condição de subsistência são considerados “indesejáveis”. Para esses grupos, os controles migratórios geralmente são maiores e as leis de tolerância são cada vez mais exigentes64. As barreiras burocráticas e a militarização das fronteiras são algumas das medidas que dificultam a mobilidade dos indivíduos e, no caso dos refugiados, podem impedir que esses solicitem asilo aos Estados65. A análise da intolerância passa não somente por critérios econômicos, mas também identitários. Os conflitos de identidade são pertinentes ao se analisar o contexto dos considerados “indesejáveis”. Refugiados são indivíduos com menor grau de mobilidade. Ao fugirem dos conflitos deixam seus pertences e muitos gastam seus recursos financiando o trajeto para um território que possa os acolher. Ao solicitarem asilo são destinados a centros de recepção isolados, o que Michel Agier caracteriza por um dispositivo humanitário de controle e afastamento social: Os sítios humanitários situam-se nas margens, afastados dos locais de vida comuns, nos limiares da vida social e da vida, simplesmente. Esses limiares têm uma forma: os centros de trânsito, os campos de detenção dos que pedem asilo (Woomera, na AusBAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução por Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, cap. 3, p. 92. 63  BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit. 64  BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit. 65  VARGEM, Alex André. Ibid, p. 123. 62 

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trália), os campos de agrupamento de deslocados (no Sudão, em Angola), os centros de acolhida de urgência (Sangatte, na França), as zonas de espera de pessoas em trânsito nos aeroportos (os Zapi 2 e 3 do Charles de Gaulle, em Paris), certas zonas portuárias, certos barcos (o “Tampa”), minúsculas ilhas (Nauru): todas essas formas, por diversas que sejam, compõem com os campos de refugiados um conjunto de espaços, hoje em crescimento, para manter refugiados, “clandestinos” e indesejáveis à espera, em sobrevivência e sem direitos66.

Esses “espaços de exceção” estão superlotados de “indesejáveis”. Agier afirma que a marginalização dos refugiados fundamenta-se numa relação egocêntrica nos moldes centro-periferia: a periferia só é de interesse quando põe em risco o próprio centro67. As violações aos direitos, cometidas pelos Estados e muitas vezes até por agentes de organizações humanitárias, demonstram que os campos de assentamento são um espaço, segundo Agier, em que as “perversões e as corrupções dos sítios humanitários podem ser atribuídas a um regime de exceção no qual o arbitrário e seus atores agem livremente em sua própria ordem das coisas”68. Isso demonstra que os grupos com autoridade para controlar a ordem agem de modo muitas vezes arbitrário em relação aos grupos observados pelo autor como sendo da periferia. Essa relação centro-periferia se realiza pelo fato de que os campos de assentamento, por serem marginalizados, são considerados, na visão de Agier um “não-lugar” ocupado por indivíduos “sem-lugar”, isto é, sem direitos. A visão de “não-lugar” favorece o não acolhimento de novas culturas no mesmo espaço geográfico. A imagem do exílio transformou-se e, de acordo com o autor, adquiriu sucessivamente a aparência do refugiado, do deslocado e do indeferido, associando-os ao clandestino69. Refugiado, deslocado e indeferido são classificações identitárias externas associadas a um indivíduo que pode, num curto espaço de tempo, assumir todas elas70. As negociações entre auto e exo-identidades pelas quais os indivíduos passam auxiliam a construção das vinculações desses indivíduos com a cultura predominante na sociedade hospedeira. Muitos deles não sentem pertencimento ou vinculação identitária com as sociedades que os acolhem, o que contribui para que as classificações exógenas atribuídas a eles possam ser progressivamente afirmadas pela sociedade hospedeira. O espaço geográfico caracterizado pelo campo pode tornar-se assim, um espaço AGIER, Michel. Refugiados diante da nova ordem mundial. Tradução de Paulo Neves. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 18, n. 2, nov. 2006, p. 199. 67  AGIER, Michel. Ibid, p. 199. 68  AGIER, Michel. Op. Cit. 69  AGIER, Michel. Op. Cit. 70  AGIER, Michel. Op. Cit., p. 200. 66 

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de conflito identitário. Diferentes grupos sociais encontram-se dividindo o mesmo espaço territorial e a convivência artificial – pois os indivíduos possuem, em virtude do contexto, nenhuma outra escolha – reflete nas diferentes vinculações identitárias construídas pelos indivíduos diante dos outros grupos. São populações hipertransnacionalizadas que vivem as mudanças sociais da contemporaneidade e não possuem controle sobre suas vidas71. Os campos são, conforme Agier, “espaços de exceção”: “não-lugares” habitados por indivíduos “sem direitos”, clandestinos72. Esses espaços, nessa medida, se tornam espaços de controle social: O princípio do care, cure and control aplica-se idealmente nos campos de refugiados, que são dispositivos policiais, alimentares e sanitários eficazes para o tratamento de massas vulneráveis. Se ali as vítimas são mantidas num mínimo de vida, isto é, segundo normas nutricionais de simples sobrevivência, elas também estão sob controle73.

Os campos de refugiados demonstram a marginalização imposta pelos Estados receptores ao manterem os indivíduos em constante espera e, muitas vezes, sem o mínimo para sobrevivência. A situação de vulnerabilidade em que se encontram os indivíduos corrobora para que o controle social perpetue a visão do refugiado como clandestino. A concepção do campo de refugiados como um “espaço de exceção” e do refugiado como clandestino torna a integração local ainda mais penosa. Localizados em regiões afastadas do centro das cidades, comumente os campos se transformam em territórios para o florescimento do crime organizado. A falha na segurança dos campos pode causar ressentimento entre moradores e refugiados, dificultando a integração. Além disso, o refugiado – como o imigrante em geral – aumenta a concorrência local por terra e empregos e a pressão sobre a infraestrutura local de saúde e educação74. O grau de similaridade ou de não similaridade cultural, étnica e linguística entre refugiados e moradores dificulta a integração75. Esses valores identitários são negociados nas relações sociais entre estrangeiros e locais, progressivamente colocando os refugiados na posição de “indesejáveis” e aprofundando a estigmatização das identidades estrangeiras. Ao terem os direitos negados e violados, os refugiados se apegam à nacionalidade como “último vestígio da sua antiga cidadania”, como diz Hannah Arendt: 71  72  73  74  75 

VARGEM, Alex André. Ibid, p. 122. AGIER, Michel. Ibid, p. 199. AGIER, Michel. Op. Cit., p. 198. FIELDEN, Alexandra. Ibid, p. 3. FIELDEN, Alexandra. Op. Cit.

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Os sobreviventes dos campos de extermínio, os internados nos campos de concentração e de refugiados, e até os relativamente afortunados apátridas, puderam ver [...] que a nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam. Devido a ela, eram considerados inferiores e, receosos de que podiam terminar sendo considerados animais, insistiam na sua nacionalidade, o último vestígio da sua antiga cidadania, como o último laço remanescente e reconhecido que os ligaria à humanidade76.

O apego à nacionalidade, chamado por Arendt de “herança vinculada”77 é um último recurso encontrado pelos refugiados frente à nudez da situação do refúgio: a vida de milhões de pessoas torna-se, na rapidez dos conflitos, fugir da perseguição, dos riscos da violência e da miséria. Aos “indesejáveis” são destinados locais específicos e inseguros à margem da população local, onde os indivíduos são impelidos a viver na ilegalidade. Arendt argumenta sobre o “direito de ter direitos”, mostrando que os direitos humanos caracterizar-se-iam como a condição humana que nunca poderia ser subtraída do indivíduo78; entretanto, ao analisar a realidade, a autora percebe que os Direitos do Homem, teoricamente baseados nessa ideia de universalidade dos direitos que vem da naturalização da condição humana, não são devidamente praticados, pois novos perfis de cidadãos e indivíduos desprotegidos aparecem conforme as relações sociais se desenvolvem. No caso da apatridia, a não vinculação a um Estado-Nação viola a condição do ser humano de ter “direito de ter direitos”. O impedimento a possuir ou exercer uma nacionalidade fundamenta-se no que Hannah Arendt, ao estudar a “Nação de Minorias” e os povos sem Estado, debate como a tirania da etnicidade sobre o Estado e a hipocrisia encontrada na execução dos Direitos do Homem79. A tirania da etnicidade, proposta por Arendt pode ser articulada com o que Cuche define sobre a dominação entre grupos e ao que Bourdieu determina como a autoridade legítima para definir grupos, levando à estigmatização das minorias. As etnias ou grupos dominantes transformam o contexto do Estado de Direito, pois, segundo Bourdieu, possuem a autoridade legítima para definir as regras do jogo social80. No contexto da apatridia e do refúgio, os Estados e os grupos dominantes são imbuídos de autoridade para definir de modo discricionário aqueles que receberão ou não uma ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução por Roberto Raposo. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, cap. 2, p. 333. 77  ARENDT, Hannah. Op. Cit., p. 334. 78  ARENDT, Hannah. Op. Cit., p. 330. 79  ARENDT, Hannah. Op. Cit. 80  BOURDIEU apud CUCHE, Denys. Ibid, p. 190 76 

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classificação jurídica, fundamental para a participação reconhecida desses indivíduos na comunidade. O indivíduo, entretanto, ainda que não possua autoridade para definir os grupos, ao instituir relações com outros indivíduos e com as estruturas sociais, modificam o contexto ao qual se insere. A hipocrisia baseia-se no que Arendt vê como a falência da inalienabilidade dos Direitos do Homem: os direitos mostraram-se impraticáveis sempre que surgiam indivíduos que não eram cidadãos de algum Estado soberano. Para autora, a privação dos direitos humanos manifesta-se, acima de tudo, na privação de “um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz”81. De acordo com Arendt, o mais preocupante é o fato de que deixa de ser algo natural que alguém pertença à comunidade que nasceu e mais ainda quando não pertencer a ela não é um ato de livre e espontânea escolha desse alguém82. Refugiados em geral, mesmo vinculados a uma nacionalidade, não possuem a proteção do Estado de origem que deveria ser garantida por ela. Crianças nascidas em campos de refugiados são outro desafio às definições e critérios para a concepção de identidade nacional vigente. Liliana Jubilut infere que, apesar das evolutivas complementariedades pós Convenção de Genebra de 1951, é preciso observar de que modo é aplicado o conceito generalizado de violações aos direitos humanos como motivação para reconhecer o status de refugiado De acordo com a autora, os critérios para definir uma situação como uma grave violação aos direitos humanos são subjetivos e deixam a questão sujeita à discricionariedade dos Estados83. O conceito de refúgio demarcado em Genebra em 1951 não abarca, por exemplo, os crimes relacionados ao gênero (como estupro, violência doméstica, mutilação feminina e outros) ou os refugiados ambientais, obrigados a fugir de suas regiões em virtude das mudanças climáticas8485. Os desafios da classificação jurídica estão colocados na medida em que a questão dos refugiados carece de uma análise sociológica da identidade. O Direito Internacional Humanitário tem se desenvolvido de modo a abarcar em sua estrutura as mudanças sociais dos fluxos migratórios. No entanto, está em sua essência relacionado a uma concepção objetivista da identidade, analisando o refugiado a partir da ideia de que a nacionalidade é um critério que pode determinar se um indivíduo terá seus direitos garantidos ou não. ARENDT, Hannah. Ibid, p. 330. ARENDT, Hannah. Op. Cit., p. 330. 83  JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007, p. 135. 84  RANDALL, Melanie. Refugee law and state accountability for violence against women: a comparative analysis of legal approaches to recognizing asylum claims based on gender persecution. Harvard Women’s Law Journal 25, set. 2002. 85  CUNHA, Ana Paula da. Ibid 81  82 

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A construção da ideia de refugiado acontece no contexto das relações sociais, em que o refugiado negocia sua identidade com outros grupos. A concepção de identidade situacional e relacional proposta por Cuche permite olhar o refugiado como um ser multidimensional, possuidor de uma identidade dinâmica e adaptável ao contexto. Em sua trajetória, o refugiado pode assimilar diversas categorizações sociais: deslocado; migrante; requerente de asilo; refugiado; indeferido; reassentado; repatriado. Todas essas classificações moldam a condição do refúgio e a tornam cada vez mais subjetiva. Sem elas, a proteção humanitária se torna informal e o acesso à vida em comunidade fica restrito. O controle da exo-identidade (“refugiado”; “deslocado”; “indeferido”) por parte dos Estados é um dilema a ser problematizado. O indivíduo é visto sob a ótica do sujeito internacional: aquele que é submetido a uma definição jurídica sem a qual a proteção é inexistente. No âmbito das relações sociais, o refugiado negocia sua identidade e vivencia lutas de classificação num contexto em que a concepção objetivista é imposta pelos grupos de maior poder. Aos refugiados é, então, projetada uma imagem de marginalização, que sedimenta a visão da sociedade hospedeira do refugiado como clandestino. Esse contexto de negociação de poder através das lutas identitárias criam, segundo Cuche, contextos de segregação86. Em tais contextos o refugiado experimenta dificuldades em sobreviver, ter seus direitos assegurados e se integrar à nova sociedade. O Sistema Internacional atual, assim sendo, enfrenta dilemas e desafios relacionados à proteção dos refugiados, no campo prático e teórico. Em ambos os casos, a proteção só será efetiva e inclusiva quando houver a real noção de que a questão dos refugiados é construída histórica e socialmente dentro das relações sociais e de que a identidade se transforma de acordo com o contexto. Na medida em que as relações humanas transformam-se e se tornam cada vez mais complexas, as classificações jurídicas devem, gradativamente, modificar seus conceitos para que seu alcance social abarque os novos perfis de indivíduos e estruturas das sociedades, uma vez que há ainda muitos avanços a serem feitos. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os conflitos armados e a pobreza são fatores indissociáveis e que, de forma contundente, provocam fluxos migratórios sem precedentes nos últimos tempos. Esse grande contingente de pessoas que se desloca buscando proteção internacional modifica estruturalmente os países fronteiriços a regiões de conflitos e pressiona os países mais estáveis política e economicamente a receberem e asilarem esses indivíduos. 86 

CUCHE, Denys. Ibid, p. 187.

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A infraestrutura dos países receptores não consegue abarcar o número crescente de indivíduos nessa situação: o número de refugiados e asylum seekers ultrapassa a casa dos 50 milhões, sendo a metade deste número, crianças. Além dos problemas de infraestrutura no improviso da assistência, o ACNUR e os Estados enfrentam a força das gangues traficantes de pessoas, redes que ultrapassam o âmbito regional e ligam-se à outras formas de criminalidade internacional, como o tráfico de armas e drogas. É sabido também que o auxílio fornecido pelas organizações humanitárias muitas vezes não é suficiente para manter com dignidade todos os indivíduos em situação de refúgio ou análoga ao refúgio (como os deslocados internos). Em virtude das mudanças climáticas e das insurgências de conflitos em larga escala que, a cada ano, aumentam o número de deslocamento de pessoas pelo globo, os desafios das relações internacionais perpassam não somente a discussão do Direito Internacional dos Refugiados, mas também a sua efetiva aplicação. O debate da proteção aos direitos dos refugiados é bastante atual: a Convenção de 1951 foi firmada para garantir juridicamente a execução de medidas de proteção e atendimento às necessidades básicas do indivíduo em situação de refúgio. No entanto, com o exponencial aumento do número de refugiados, a proteção aos direitos e a assistência às necessidades de subsistência podem, muitas vezes, na prática, confrontarem diretamente os interesses dos Estados. A alta preocupação com segurança por parte de alguns Estados dificulta o cumprimento das leis de proteção aos direitos dos refugiados e cria culturas de possíveis “inimigos”, corroborando para que a imagem do indivíduo refugiado associe-se à imagem discutida por Agier do “indesejável” e do “clandestino”87. O enrijecimento das normas de recepção desses estrangeiros está fundamentado na premissa da proteção às fronteiras, aqui vistas num sentido mais amplo, indo além das físicas e percorrendo as fronteiras socioeconômicas, culturais e identitárias. O refugiado modifica gradualmente as estruturas sociais na medida em interage com elas. A questão do refúgio, nesse sentido, é analisada a partir de uma concepção situacional e relacional de identidade, permitindo conceber o indivíduo como parte fundamental da construção social, já que a “construção da identidade se faz no interior de contextos sociais”88. O indivíduo em situação de refúgio negocia sua identidade com outros indivíduos e grupos uma vez que a identidade, segundo Cuche, é multidimensional e dinâmica, isto é, adapta-se ao contexto ao qual o indivíduo está vinculado89. Conforme Michel Agier os campos de refugiados são “espaços de exceção”90, 87  88  89  90 

AGIER, Michel. Ibid, p. 199. CUCHE, Denys. Ibid, p. 182. CUCHE, Denys. Op. Cit. AGIER, Michel. Ibid, p. 199.

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habitados por indivíduos sem direitos e que, marginalizados, lutam e requerem proteção humanitária internacional. Os deslocados mantêm-se em constante espera pelo reconhecimento do status de refugiado, muitas vezes sem o mínimo para sobrevivência e sujeitos aos riscos da violência e da exploração. Para refugiados e apátridas a questão da cidadania vinculada à nacionalidade é um desafio a ser problematizado: milhões de pessoas sem nacionalidade sobrevivem mediante ajuda humanitária e a elas é negado o direito de pertencer a uma comunidade. Os diversos esforços internacionais materializados em tratados, convenções e projetos para a proteção dos refugiados, principalmente no âmbito regional, fundamentam um ambiente legal e institucional de proteção aos direitos dos refugiados, mas que, no campo prático, muitas vezes são ineficientes na logística da recepção de pessoas, na providência de asilo em locais (campos) com estrutura satisfatória, no combate à violência provocada por diferenças étnicas e culturais e, seguramente, na readaptação e reassentamento de tais grupos nos locais receptores. A improvisação de novos locais de asilo favorece a marginalização dos grupos asilados e dificulta a integração com a sociedade hospedeira. A solução através da integração demanda mecanismos de inserção econômica e cultural dos refugiados, buscando transpor as possíveis barreiras identitárias entre os grupos migrantes e a sociedade do local de asilo91. Desse modo, a alarmante situação se propaga através dos anos, dificultando a solução dos problemas na medida em que novas causas para os deslocamentos aparecem. Os desafios são muitos e perpassam o acesso aos territórios, a proteção das fronteiras, os interesses políticos, o não reconhecimento de indivíduos refugiados por parte das instituições legais dos países e, principalmente, as negociações identitárias feitas entre os indivíduos refugiados e a sociedade hospedeira. É necessário, então, teorizar e problematizar o refúgio a partir de uma perspectiva situacional e relacional da identidade, localizando o refugiado como um ator que transforma as estruturas sociais e que, no contexto das negociações identitárias, sofre os problemas da estigmatização das minorias. A partir desse viés de análise, é possível identificar que as relações de poder construídas entre os grupos sociais podem determinar aqueles que são considerados parte de um critério jurídico ou de um grupo social, bem como a maneira como os grupos com autoridade legítima agem para definir as regras diante das diferenças identitárias. No panorama internacional, a sobrevivência dos milhões de refugiados, asylumseekers, pessoas internamente deslocadas e apátridas é precária e de condição imprevisível. Os problemas do refúgio são emergentes e muitos pontos ainda precisam ser desenvolvidos de modo a melhorar a qualidade de vida dos asilados, garantindo a eles a 91 

FIELDEN, Alexandra. Ibid, p. 3.

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efetiva proteção prevista pelos Direitos Humanos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Eletrônicos ACNUR. Convention and Protocol Relating to the Status of Refugees – 1951 Convention and 1967 Protocol. Genebra, dez. 2000. Disponível em: . Acesso em 05 mar. 2015 ______. Mid-Year Trends 2014. Genebra, 2015. Disponível em: . Acesso em 05 mar. 2015. ______. Refugees in the Horn of Africa: Somali Displacement Crisis – Dadaab, Kenya. Portal de Informação: 30 abr. 2015b. Disponível em: . Acesso em 28 mai. 2015. ______. Statistical Yearbook 2013. Country Data Sheets, 2 fev. 2015a. Disponível em: . Acesso em 05 mar. 2015. ______. Under The 1954 Convention Relating to the Status of Stateless Persons. Handbook on Protection of Stateless Persons. Genebra, 2014. Disponível em: . Acesso em 28 mai. 2015. ______. UNHCR Bi-weekly update (1-15 march 2015): Dadaab Refugee Camps, Kenya. Dadaab: mar. 2015c. Disponível em: . Acesso em 28 mai. 2015. FIELDEN, Alexandra. Local integration: an under-reported solution to protracted refugee situations. New issues in refugee research, n. 158, jun. 2008. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2015. JASTRAM, K; ACHIRON, M. Refugee Protection: A Guide to International Refugee Law. United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR) Handbook, 2001. Disponível em: . Acesso em 02 mar. 2015. THE GUARDIAN. Dadaab refugee camp closure would risk 350.000 Somali lives, warns Amnesty. The Guardian: 17 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2015. THE GUARDIAN. Syrian refugee children in Lebanon forced to seek work – in pictures. Global Development, 12 jun. 2014. Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2015. Periódicos AGIER, Michel. Refugiados diante da nova ordem mundial. Tradução de Paulo Neves. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 18, n. 2, nov. 2006.

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A LUTA DOS MIGRANTES FORÇADOS PELO RECONHECIMENTO DE SUA DIGNIDADE: AS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DE AXEL HONNETH Diego Souza Merigueti1 Resumo: O presente artigo trata de uma abordagem multidisciplinar (sobretudo jurídica, social e filosófica) a respeito do fenômeno das migrações forçadas, em expansão na contemporaneidade, proposta a partir de um diálogo com a teoria desenvolvida por Axel Honneth acerca da invisibilidade social e da luta por reconhecimento. As reflexões do teórico crítico alemão sobre os conflitos sociais são apropriadas para o debate sobre os direitos humanos dos migrantes em busca de refúgio. Em contraposição às práticas de desprezo e humilhação vivenciadas pelos deslocados forçados, sobretudo no estágio de integração, devem ser garantidos aos mesmos, em plenitude, o reconhecimento de sua dignidade. O presente estudo, portanto, está escorado na tríade autoconfiança, autorrespeito e autoestima, abrangendo, assim, as três dimensões de relações interpessoais identificadas por Axel Honneth, afetiva, jurídica e social, com destaque para as duas últimas. Palavras-chave: Migrações; Refúgio; Reconhecimento; Dignidade; Integração. Abstract: This article utilizes an interdisciplinary approach (especially legal, social and philosophical) about the phenomenon of forced migration, in expanding in contemporary times, proposed as a dialogue with the theory developed by Axel Honneth about the social invisibility and the struggle for recognition. The reflections of the German critical theorist of the social conflicts are appropriate for the debate on the migrants seeking refuge’s human rights. As opposed to contempt and humiliation practices experienced by forcibly displaced people, mainly in the integration stage, may be guaranteed to them, in fullness, the recognition of their dignity. This study, therefore, is anchored in the triad of self-confidence, self-respect and self-esteem, covering the three dimensions of the interpersonal relationships identified by Axel Honneth, emotional, legal and social, especially the last two. Keywords: Migration; Refuge; Recognition; Dignity; Integration.

1  Advogado. Pesquisador. Mestrando do Curso de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Contato: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO O fluxo do deslocamento humano forçado tem alcançado dimensões inéditas na história recente. No último ano (2014), o número de refugiados, requerentes de asilo e deslocados internos em todo o mundo atingiu a marca de 59,5 milhões de pessoas, sem precedentes no período pós Segunda Guerra Mundial. Este acelerado crescimento é resultado de atos de perseguições, conflitos armados, violência ou graves e generalizadas violações dos direitos humanos perpetradas contra indivíduos ou grupos humanos inteiros, situações estas que só tem se agravado nos últimos anos. Este alarmante cenário coloca o tema do refúgio, não obstante seu caráter histórico, no centro do debate da contemporaneidade, suscitando divagações em várias esferas, tais como política, jurídica, filosófica e acadêmica. O ponto em comum a que chegam aqueles que se debruçam sobre esse complexo fenômeno, é que o refúgio tem se tornado verdadeiro instrumento de luta pelo reconhecimento da dignidade humana do migrante, seja desde a partida compulsória do país de origem, seja durante o estágio de integração à comunidade acolhedora. Portanto, à luz deste crescente fenômeno do deslocamento humano forçado e com a consciência de seu impacto na preservação das garantias mínimas da pessoa humana, este artigo buscará trazer à tona reflexão que lança mão dos conceitos edificados por Axel Honneth a respeito de invisibilidade social e luta por reconhecimento. Para melhor sistematização das ideias aqui propostas, o artigo foi dividido em duas partes: a primeira dedica-se à apresentação de um panorama atualizado acerca dos dados mais recentes sobre o contingente humano em deslocamento forçado para, em seguida, explorar as contribuições do pensamento do teórico crítico alemão. São estas, pois, as questões centrais a inspirar este artigo, que tem por escopo principal enfocar a temática das migrações forçadas, em especial o refúgio, sob a perspectiva da busca por uma consolidação da proteção integral da dignidade do migrante, em todas as suas dimensões. Ressalte-se, por fim, que o presente artigo não tem a pretensão de proceder a uma investigação ampla, que tenha por meta apontar possíveis soluções para o enfrentamento da problemática posta. A proposta é, tão somente, apresentar alguns pontos de análise, incitando a reflexão crítica do tema, sob uma ótica pouco aprofundada na literatura, não se limitando a questões meramente jurídicas.

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2 APRESENTAÇÃO DO PANORAMA DAS MIGRAÇÕES FORÇADAS NA CONTEMPORANEIDADE Não obstante seu caráter histórico, o fenômeno das migrações forçadas ganha a cada dia novos espaços de discussão e se revela como um dos temas de maior interesse para a ciência jurídica e para as relações sociais na contemporaneidade. Com efeito, a implementação dos direitos da população deslocada, nas ordens doméstica e internacional, exige a correta compreensão do refúgio como um fenômeno complexo e dinâmico. Hodiernamente, o deslocamento forçado de pessoas vem apresentando um crescimento em escalas alarmantes, inexistindo sinais concretos de que este cenário vá arrefecer em curto ou médio prazo, mormente tendo em conta o agravamento de crises em países como República Árabe da Síria, Sudão do Sul e Ucrânia, dentre outros. Nesse passo, é essencial fomentar a análise crítica a aprofundada de dados e estatísticas a respeito do fluxo migratório forçado contemporâneo, em especial para compreender as causas deste movimento e de seu avanço, as principais origens e destinos e o perfil da população deslocada. Somente assim, por meio do diagnóstico preciso da natureza da problemática sob exame, revela-se possível dirigir planos visando a implementação de medidas voltadas à efetiva realização dos direitos dos migrantes, sobretudo no fortalecimento do combate à xenofobia e à intolerância. Seguindo este escopo, portanto, o presente artigo inaugura-se com os mais recentes dados acerca dos deslocamentos forçados, a seguir apresentados. O Relatório Global Trends 2014 publicado recentemente (em junho de 2015) pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados2 (UNHCR/ACNUR), revela o acelerado crescimento do deslocamento forçado no mundo, alcançando proporções inéditas. Com efeito, no fim de 2014, o número de refugiados, requerentes de asilo e deslocados internos em todo o mundo ultrapassou a marca de 59 milhões de pessoas, atingindo um novo nível sem precedentes na história recente, pós Segunda Guerra Mundial3. Para se ter uma dimensão concreta da magnitude desta cifra, se todo este contingente humano constituísse uma só nação, tornar-se-ia a 24ª maior do planeta em termos populacionais, equivalendo à população de países como a Itália e o Reino Unido. Tomado isoladamente, o ano de 2014 representou o maior crescimento anual ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). UNHCR Global Trends 2014, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2015. 3  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2015. 2 

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de deslocados forçados já registrado pelo ACNUR, o que significa um acréscimo de 8,3 milhões de pessoas à histórica marca atingida em 2013, que já havia ultrapassado os 51 milhões4. Outra marca que denota a dimensão extraordinária que o fenômeno atingiu, diz respeito à média de 42.500 pessoas que, por dia, foram forçadas a deixar suas casas durante o ano de 2014 em razão de conflitos e perseguições, representando um aumento de quatro vezes em apenas quatro anos5. No que tange, especificamente, à categoria de refugiados, os números também são expressivos: até o fim de 2014, 19,5 milhões de pessoas se enquadravam nesta classe de deslocados forçados6. Os dados divulgados pelo ACNUR7 (2015) revelam, ainda, que da Síria, do Afeganistão e da Somália partem mais da metade (53%) dos refugiados em busca de proteção em todo o mundo, e que um em cada cinco pessoas deslocadas é de nacionalidade síria. Por sua vez, Turquia, Paquistão e Líbano, respectivamente, são os países que mais acolhem refugiados no globo. Este último, de modo particular, possui o maior número de refugiados em relação a sua população, atingindo a marca de 232 refugiados a cada 1.000 habitantes. Indo além, merece registro o fato de que, pela primeira vez na história, a maioria da população refugiada (51%) em 2014 passou a ser constituída por crianças e adolescentes menores de 18 anos8. Com efeito, a realidade internacional acima revelada não afasta o Brasil dos desafios que esta questão impõe. Baseado nos dados colhidos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), o ACNUR, publicou relatório que também revelou a magnitude das questões que englobam a chegada de estrangeiros solicitantes de refúgio em território brasileiro nos dias atuais. As estatísticas oficiais divulgadas pelo referido organismo revelam que existem, atualmente (até outubro de 2014), 7.289 (sete mil, duzentos e oitenta e nove) refugiados reconhecidos no Brasil, de 81 (oitenta e uma) nacionalidades diferentes, em especial síria, colombiana e angolana9. É certo que, considerando que a população brasileira ultrapassa os 200 milhões de habitantes, esta cifra, tomada isoladamente, não é significativa. Contudo, não ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2015. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2015. 6  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2015. 7  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2015. 8  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2015. 9  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Refúgio no Brasil: uma análise estatística janeiro de 2010 a outubro 2014. Brasília, 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2014b. 4  5 

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se pode deixar de considerar que a marca atingida em 2014 representa um crescimento acelerado da população refugiada no Brasil, haja vista que, em 2010, tratavam-se de apenas 4.35710. Por outro lado, também cumpre observar que o Brasil, seguindo a tendência mundial, tem vivenciado um aumento significativo do número de solicitações de refúgio. As estatísticas reveladas pelo CONARE/ACNUR só confirmam a máxima segundo a qual se num passado recente, de maior instabilidade política e econômica, o Brasil se caracterizava por ser, predominantemente, um país exportador de nacionais, atualmente, vem se transformando em um país receptor de refugiados, condição esta que está se consolidando. Nos últimos quatro anos, no Brasil, constatou-se um aumento do número destas demandas por refúgio superior à ordem de 1.300% (mil e trezentos por cento), saltando de 566 (quinhentos e sessenta e seis), em 2010, para 8.302 (oito mil trezentos e dois) solicitações registradas somente no período compreendido entre janeiro e outubro de 201411. Estes fatos revelam as notáveis proporções que o crescente fenômeno do refúgio assumiu no Brasil e só corroboram a relevância e a complexidade da matéria, além de justificar a grande necessidade de estimular o estudo e a reflexão concernentes à problemática que envolve a garantia dos direitos dos migrantes forçados. Como se disse, as informações aqui apresentadas são indispensáveis para a compreensão e identificação das necessidades da população deslocada, bem como são fundamentais para o desenvolvimento de estratégias mais adequadas, isto é, que tragam respostas mais completas para uma proteção integral deste contingente humano, em todas as esferas. Com efeito, embora os dados sobre os deslocamentos forçados sejam sempre numericamente representados, por percentuais e cifras que impressionam, é preciso ter em mente que por trás destes números, apresentados de forma coletiva e até mesmo abstrata, estão histórias individuais concretas de pessoas, que em razão de conflitos, perseguições e graves violações de direitos humanos, são obrigadas a partir em busca de refúgio, no sentido mais amplo do termo, isto é, lugar seguro, abrigo. Por certo, o apanhado geral dos dados estatísticos mais recentes serve apenas para nortear o enfrentamento de uma problemática muito mais conflituosa e complexa do que os números são capazes de traduzir.

10  11 

ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2014b. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2014b.

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3 AS CONTRIBUIÇÕES DAOBRA DE AXEL HONNETH FRENTE AO FENÔMENO DO REFÚGIO Forçados a abandonar o país onde nasceram e criaram suas raízes afetivas, familiares e culturais, deixando para trás suas casas e ocupações, os migrantes partem para terras estrangeiras em busca, dentre outras coisas, de paz, abrigo e, sobretudo, solidariedade e condições que os ajudem a retomar requisitos mínimos de cidadania e dignidade. Com efeito, a dignidade consiste na qualidade inerente à essência do ser humano, no conjunto de sentimentos, ideais, valores, sendo parte indissociável da própria natureza do gênero humano, atributo que impede sua redução à categoria de animal ou coisa. Por outro lado, também emana, na prática, de um conjunto de condições externas, fruto dos atos necessários para atingir o desenvolvimento pleno da pessoa. É dizer, a essência natural é completada pela existência social12. Ao chegar ao país de acolhida, todavia, as dificuldades que os solicitantes de refúgio enfrentam não se limitam à nova cultura, ao idioma e aos costumes. Com frequência, encontram a intolerância e a discriminação não mais como fatores de expulsão da sociedade de origem, mas também como fatores de exclusão na comunidade acolhedora13. Estas situações são motivadas por fatores diversos, ligados a aspectos não essenciais da pessoa humana (como a cultura, os costumes, a língua, a nacionalidade etc.), que podem ser agravadas diante de uma falsa concepção de que o solicitante de refúgio é um criminoso foragido. Por conseguinte, no momento em que o migrante se encontra em situação de rejeição ou desprezo, seja diante da ausência de recepção, proteção ou respeito a seus direitos, caracteriza-se uma redução de sua natureza, uma lesão à sua dignidade. Daí a aproximação do fenômeno aqui estudado com a teoria de Axel Honneth1415, sobretudo no que diz respeito aos conceitos de invisibilidade social e de luta por ALARCÓN, Pietro. Direitos Humanos e Direito dos refugiados: a dignidade humana e a universalidade dos direitos humanos como fundamentos para superar a discricionariedade estatal na concessão do refúgio. In: RAMIRES, Andrés et al. Cadernos de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.8. Brasília: Instituto Migrações e Direitos Humanos, 2013. p. 106. 13  CARNEIRO, Welligton Pereira; COLLAR, Janaina Matheus. Reflexões sobre a questão racial e o refúgio no sistema brasileiro. In: RODRIGUES, Viviane Mozine (Org.). Direitos humanos e refugiados. Vila Velha: Centro Universitário Vila Velha, [s.d.]. p. 30. 14  HONNETH, Axel. La sociedaddel desprecio. Tradução: Francesc J. Hernàndez e BennoHerzog. Madri: Editorial Trotta, 2011. 15  HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução: Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003. 12 

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reconhecimento edificados pelo sociólogo e filósofo alemão contemporâneo, expoente da denominada terceira geração da Escola de Frankfurt. A renúncia da vida privada, das funções laborativas, das relações sociais cultivadas ao longo de toda uma existência e, muitas vezes, o abandono forçado do próprio convívio familiar, tudo em razão da fuga das situações de perseguição e violência por que passam os migrantes solicitantes de refúgio, já constitui, aos olhos de Honneth, uma expressão concreta de luta por reconhecimento. Por outro lado, esta luta não cessa com a chegada do migrante forçado ao país de acolhida, o que, por vezes, acaba tornando ainda mais elevado o grau de vulnerabilidade a que está exposto o deslocado frente à proteção de sua dignidade humana. O duelo diário que precisa travar, para reconstruir sua nova vida e sua própria nova identidade, em terras estranhas, constitui, certamente, outra luta por reconhecimento, sob a ótica do autor alemão. As reflexões de Honneth16 sobre os conflitos sociais são apropriadas para o debate sobre os direitos humanos dos migrantes em busca de refúgio, na medida em que a estes devem ser garantidos, em plenitude, o reconhecimento de sua dignidade. Para o teórico crítico alemão, o indivíduo não é o único responsável pelo processo de conquista de seus direitos. Nesse passo, o reconhecimento de sua dignidade humana, concretizada em seu sentido mais amplo, pressupõe que o sujeito supere conflitos sociais, travando uma luta escorada na tríade autoconfiança, autorrespeito e autoestima. O reconhecimento pleno, portanto, segundo a teoria honnethiana, envolve três dimensões de relações interpessoais: afetiva, jurídica e social. A primeira etapa do reconhecimento, baseada no amor, inicia-se na esfera das relações afetivas, sobretudo no seio familiar, espaço onde se desenvolvem as primeiras interações e onde se busca suprir as carências. Esta fase inaugural traz como resultado para os sujeitos o surgimento de uma confiança elementar em si mesmos17. Tendo em vista seu caráter eminentemente íntimo e primário na construção do reconhecimento, concernente a “ligações emotivas fortes entre poucas pessoas”18 sua análise não agrega considerações relevantes para o tema proposto por este artigo. Por sua vez, a segunda forma de reconhecimento apresentada por Honneth permite uma aproximação substancial com a temática aqui examinada. Esta é desenvolvida num âmbito que extrapola os limites do ambiente familiar e, guiada pelo princípio da igualdade, diz respeito à necessária existência de um sistema jurídico que signifique a expressão de interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, mesmo de 16  17  18 

HONNETH, Axel. Ibid, 2003. HONNETH, Axel. Ibid, 2003, p. 160. HONNETH, Axel. Ibid, 2003, p. 159.

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grupos excluídos ou desfavorecidos19. A etapa jurídica do reconhecimento, portanto, é aquela que garante a todos, sem exceções ou privilégios, a possibilidade de se referir positivamente a si mesmos em pé de igualdade na interação com os próximos, ou seja, a conquista do autorrespeito. Nas últimas décadas, sobretudo embalado pelos avanços estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 quanto aos direitos humanos, o Brasil tem desempenhado um papel de destaque nesta seara, reconhecendo, em termos legais e teóricos, um tratamento paritário entre nacionais e estrangeiros residentes no país, garantia prevista inclusive textualmente na Carta Magna (art. 5º, caput)20. No âmbito internacional e regional, o Brasil ratificou os principais instrumentos de proteção aos refugiados, com destaque para a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, seu Protocolo adicional de 1967 e a Declaração de Cartagena de 1984, no seio da Organização dos Estados Americanos21. Ademais, foi o primeiro país na América Latina a regulamentar tal proteção no ordenamento jurídico interno22, por meio da edição da Lei n.º 9.474, de 22 de julho de 1997, dedicada exclusivamente ao refúgio. Todavia, a despeito das contumazes invocações aos direitos inalienáveis das pessoas em situação de refúgio, os Estados tem se demonstrado inaptos para efetivar as garantias previstas normativamente, em direção da implementação de medidas que promovam a autonomia e o empoderamento desta população. É o que revela com propriedade Pietro Alarcón23: Ainda que seja inegável o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do Direito Internacional, na sociedade internacional ainda não se conta com uma relação de poder em favor desses direitos. Mais ainda, a existência desse acúmulo de Declarações, entre as que se conta o Estatuto dos Refugiados, em parte evidencia as condições inglórias em que tem se desenvolvido as relações internacionais.

Diante deste alerta, fica patente que normatividade não é garantia de efetividaHONNETH, Axel. Ibid, 2003, p. 81. BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. 21  BRASIL. Lei n.º 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília, 1997. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2014. 22  HAYDU, Marcelo. A integração de refugiados no Brasil. In: RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de (Orgs.). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011. p. 137. 23  ALARCÓN, Pietro. Ibid, p. 107. 19  20 

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de dos direitos. Muitas são as barreiras, inclusive de acesso à justiça, à assistência social e ao emprego, a que os migrantes são submetidos, mesmo após terem a solicitação de refúgio atendida, isto é, mesmo após a aquisição do status de proteção estatal na condição de refugiado. Na realidade brasileira, por exemplo, a mera expedição de carteira de trabalho ao refugiado no ato do protocolo de seu pedido de refúgio (art. 21, §1º da Lei 9.474/97) não é instrumento garantidor, por si só, de sua liberdade de trabalho no país, se não for associada a políticas estatais que facilitem a validação de diplomas, que fomentem o oferecimento de cursos profissionalizantes e de língua portuguesa aos migrantes, dentre outras medidas que permitam o real acesso dos refugiados ao mercado de trabalho. Trazendo à baila, mais uma vez, as lições de Honneth, a privação, na prática, de direitos positivamente garantidos aos refugiados, por parte do Estado, em suas mais diversas esferas de atuação, equivale à negação do autorrespeito e, em última análise, acaba lesando o indivíduo em sua própria dignidade. Surge, portanto, o desafio de encontrar meios de tornar efetivos os compromissos assumidos internacionalmente e, mesmo, internamente, dando vida aos textos normativos que não podem se constituir de palavras vãs, conforme ensina o brocardo jurídico. Por fim, a terceira e última forma de reconhecimento tem em vista o conceito de solidariedade, em que todo membro da sociedade se sabe estimado por todos os outros na mesma medida, sob o mecanismo da estima simétrica24. Todavia, ainda que haja certo reconhecimento jurídico, é um engano relacionar a aquisição, pelo migrante, da condição de refugiado, à sua súbita integração e aceitação perante a comunidade local. Não é rara a prática de atos de intolerância, preconceito e resistência empreendida por parte significativa dos habitantes locais aos estrangeiros presentes em seu território, sobretudo quando se trata de refugiados. Essa aversão é justificada por diversos fatores. Como se não bastassem os atos de violência ou de violação generalizada de direitos humanos que motivaram sua partida, ainda paira sobre os refugiados um sentimento de desprezo ou repúdio que os relega a um estado de marginalização social. Já se disse, linhas acima, que a desconfiança em relação aos refugiados leva ao equivocado conceito de que os mesmos são “criminosos foragidos”, ao que se adiciona a inverídica associação que comumente se faz entre migração e terrorismo, mormente considerando o aumento significativo de solicitantes de refúgio de origem árabe no Brasil, sobretudo sírios. 24 

HONNETH, Axel. Ibid, 2003, p. 209.

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Outra equivocada concepção, que também representa mais um obstáculo ao processo de reconhecimento, nesta terceira etapa, é aquela, muitas vezes propagada por veículos de comunicação em massa, que trata os migrantes em busca de refúgio como migrantes “ilegais” ou “irregulares”. Um tema tão delicado e complexo como o refúgio impõe prudência na utilização de certos termos, sob pena de a atribuição do adjetivo “ilegal” ao migrante que luta por sua vida representar mais uma redução de sua dignidade, além de servir de verdadeiro incentivo a comportamentos xenófobos. Nesse sentido, é a advertência que faz, com justeza, Will Kymlicka25: Um dos conceitos mais curiososque foram criadospelo usorepressivodas fronteiras e pelo controleda migração é o de ‘pessoas ilegais’ também chamadas ‘indocumentadas’.Acostumadoscomo estamos aouvi-lotodos os dias, não reparamosno fato de que se trata de um profundo absurdo.Como podeser alguémuma pessoailegal?Normalmente, se consideram ilegais as condutas, os bens (por exemplo, se sãobens ilícitos, obtidos por meio da prática dedelitos), mas não as pessoas.Colocar as pessoascomo ilegaispelo único fatode entrar em um determinadoterritórioé algo que se devecontar entre asmaioresaberraçõesque foramcometidas em nomedo direito [...]. (tradução nossa)

Ainda nesse cenário, o clima de desconfiança recai inclusive sobre as própria razões que determinam a saída de solicitantes de refúgio do seu país de origem, o que só contribui para o aumento da não-aceitação. É o que denuncia Maria Regina Petrus Tannuri26: Na esteira de uma tendência restritiva à entrada de imigrantes, argumenta-se cada vez mais que muitos imigrantes solicitam o refúgio como uma estratégia para entrar legalmente naqueles países e desfrutar de algumas ‘prerrogativas’ do sistema internacional de proteção e do Direito Internacional dos Refugiados.

Além disso, recai sobre os migrantes o temor do agravamento das mazelas sociais e econômicas internas, tais como desemprego e insegurança, bem como o receio KYMLICKA, Will. Fronterasterritoriales. Madrid: Editorial Trotta, 2006, p. 10. TANNURI, Maria Regina Petrus. Refugiados congoleses no Rio de Janeiro e dinâmicas de ‘integração local’: das ações institucionais e políticas públicas aos recursos relacionais das redes sociais. Tese apresentada ao curso de doutorado do programa pós-graduação em planejamento urgano e regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: . Acesso em: 29 jul 2015, p. 57. 25  26 

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de que haja uma propagação cultural e religiosa não habitual, tudo a favorecer uma inaceitável reprodução de uma cultura de intolerância e discriminação. Estas singelas observações, por si sós, já revelam o modo reducionista com que os deslocamentos forçados são tratados. Não se pode perder de vista, porém, que o refúgio é instrumento de reconstrução da própria dignidade do migrante e somente o enfrentamento sob essa perspectiva conduzirá a avanços concretos para superar esse desafio. Nesse sentido, oportuna a lição de Ingo Wolfgang Sarlet27, ao traduzir dignidade humana como: [...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

O que se vê, contudo, é que o mundo contemporâneo, ao consagrar atos concretos de desprezo frente à luta dos refugiados por reconhecimento de sua dignidade, relegando os mesmos ao trágico destino de se tornarem indesejáveis, supérfluos e descartáveis, tem consolidado sua verdadeira invisibilidade social. Axel Honneth, ao cunhar tal conceito, esclarece que a invisibilidade (ou não -existência) em sentido social nasce do ato de ver através de outrem, o qual exige gestos ou modos de comportamento que deixem claro que os demais não apenas não são vistos acidentalmente, mas que não são vistos intencionalmente28. A atitude de ver através é assim definida pelo autor29: [...] dispomos da capacidade de demonstrar nosso desprezo a pessoas presentes mediante o fato de nos comportarmos frente a ela como se não figurasse fisicamente no mesmo espaço. Neste sentido, o ‘ver através’ tem inteiramente um aspecto performativo [...]. (tradução nossa)

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 62. 28  HONNETH, Axel. Ibid, 2011, p. 166-167. 29  HONNETH, Axel. Ibid, 2011, p. 166. 27 

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Nesse sentido, o que constata Honneth ao tratar das formas de invisibilidade (que passam, por exemplo, desde uma mera distração inocente e uma ignorância) é que o grau mais elevado de vulnerabilidade humana é a insignificância social, que caracteriza sinal de humilhação e desprezo. O autor alerta, ainda, que muito embora se trate de um significado “figurado” ou “metafórico” do vocábulo invisibilidade, tal situação possui um “núcleo real”, uma vez que as pessoas afetadas se sentem, efetivamente, não percebidas30. No tocante a esta situação, oportuna a lição de Paul Ricoeur31, para quem “a retirada ou a recusa desta aprovação, atinge cada qual no seu nível pré-jurídico de seu ‘ser-com’ outro. O indivíduo se sente como olhado do alto, como se fosse nada. Privado de aprovação, é como se não existisse.” Tomando por empréstimo essas premissas teóricas, para o cenário em que se desenrola o refúgio, infere-se que o estágio de integração do refugiado à comunidade local, embora essencial para o alcance do reconhecimento pleno, não é simples. Ao revés, trata-se de um processo gradual e um dos mais complexos no percurso da jornada migratória, que envolve não apenas aspectos socioculturais, mas também político-econômicos, todos relacionados entre si. Não por outro motivo, o Plano de Ação do Brasil, recentemente adotado, em Brasília, na conferência interministerial que celebrou os trinta anos da Declaração de Cartagena de 1984 sobre os Refugiados (Cartagena +30), constatou que a integração local é a solução que representa maiores desafios, ressaltando o papel fundamental das comunidades de acolhida nesse processo32. Resgatando os ensinos de Honneth, segundo o qual a luta pelo reconhecimento (e, portanto, a construção da dignidade) se dá em três dimensões, o migrante que busca refúgio, muitas vezes chegando ao país estrangeiro em situação de pobreza, emocionalmente abalado e sem perspectivas sólidas de reconstrução da própria vida, é merecedor de algo além do status de refugiado. É digno de uma visibilidade social, de ser reconhecido em sua essência como pessoa, em todas as suas dimensões (afetiva, jurídica e social), bem como digno de ter este reconhecimento integral garantido e protegido contra qualquer violação. Segundo os ensinos de Panea Márquez (apud ALARCÓN33), reconhecer a dignidade do homem é reconhecer a existência de exigências que lhe são devidas, de direitos que lhe pertencem. HONNETH, Axel. Ibid, 2011, p. 167. RICOEUR, Paul. Parcours de lareconaissance: Troisétudes. Paris: Gallimard Folio Essais, n. 459, 2007, p. 310-311. 32  ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Plano de Ação do Brasil. Brasília, 2014a. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2015. 33  ALARCÓN, Pietro. Ibid, p. 106. 30  31 

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Não raramente, contudo, os cidadãos nacionais acabam reconhecendo no migrante não um ser igual em direitos e dignidade, mas uma ameaça ao seu próprio bem -estar, inclusive econômico-financeiro. A invisibilidade social, portanto, resulta justamente desta uma deformação da capacidade humana de perceber o outro na perspectiva de estima recíproca, fincada na solidariedade. A resistência em aceitar o outro como parte integrante de uma mesma comunidade caracteriza aquilo que Honneth chamou de rebaixamento, na medida em que a ofensa aos valores sociais dos refugiados, considerando-os de menor valor ou deficientes, retira dos mesmos “toda a possibilidade de atribuir um valor social às suas próprias capacidades”34. Nessa toada, o afastamento do refugiado da inserção comunitária, associado às práticas de intolerância e desprezo que muitas vezes tem aceitação generalizada, mesmo no mundo globalizado hodierno, são, em última análise, discriminações que acabam negando a identidade e a própria dignidade aquele que é considerado diferente ou estranho. A estes patológicos comportamentos tipicamente xenófobos, Axel Honneth contrapõe a ideia de solidariedade, como direito que tem a pessoa humana de não ser tratada com desprezo, de modo que a conquista do reconhecimento pleno se sua dignidade depende, também, da aceitação da convivência e do diálogo intercultural. Assim, é forçoso concluir que o processo de integração somente será validado através do reconhecimento mútuo entre os indivíduos (nacionais e estrangeiros), isto é, por meio da “demonstração expressiva (e, portanto, acessível publicamente) de uma atribuição de valor que considera as características inteligíveis das pessoas” 35. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Inicialmente, o presente trabalho buscou apresentar um panorama completo e atualizado das migrações forçadas na contemporaneidade. Fez-se necessária uma breve análise dos principais dados divulgados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, por meio do Relatório anual Global Trends 2014, para compreender a evolução do fenômeno do deslocamento compulsório, sobretudo o crescimento alarmante do contingente humano em tais condições, que atingiu no último ano cifras inéditas. Nesse prisma, observou-se que pela primeira vez na história, a maioria da população refugiada (51%) passou a ser constituída por crianças e adolescentes menores de 18 anos36. 34  35  36 

HONNETH, Axel. Ibid, 2011, p. 217. HONNETH, Axel. Ibid, 2011, p. 178. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Ibid, 2015.

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Na que tange à realidade brasileira, também se notou um crescimento acelerado da população refugiada no país, mormente tendo em vista o aumento significativo do número de solicitações de refúgio na ordem de 1.300%, apenas nos últimos quatro anos. Apesar destas cifras, por si sós, denunciarem a gravidade e a complexidade do fenômeno, seja em escala mundial, seja na perspectiva doméstica, tornou-se insuficiente tratar a questão de forma genérica, geral e abstrata, limitando-se a uma análise essencialmente numérica. Passou-se, portanto, para a análise do fenômeno migratório frente às contribuições da teoria de Axel Honneth. Nesta abordagem inovadora, foram explorados o conceito edificados pelo autor alemão, acerca da invisibilidade social e da luta por reconhecimento. Tomando por empréstimo tais conceitos das relações sociais intersubjetivas para o fenômeno do refúgio, conclui-se que tanto o abandono compulsório do país de origem, fugindo de perseguições e violências, como o processo de integração à comunidade acolhedora são, em última análise, expressões concretas de luta do migrante pelo reconhecimento de sua dignidade. Mesmo porque, como se observou, a previsão normativa não é garantia da efetividade dos direitos dos migrantes ali consagrados. Tampouco, a aquisição, pelo migrante, da condição de refugiado, representa sua súbita integração e aceitação perante a comunidade local. Indo além, também foram apresentados exemplos concretos de atos de desprezo e intolerância, além de concepções equivocadas, que consolidam a situação invisibilidade social dos migrantes. O aprofundamento da análise do pensamento honnethiano, sempre em referência ao refúgio, permitiu identificar que a busca pela reconstrução de sua dignidade, em plenitude, perpassa por três dimensões complementares que constituem a luta por reconhecimento, entre as quais se destacam a fase jurídica, com a conquista do autorrespeito e a etapa social, sob o mecanismo da estima simétrica, edificada na solidariedade. Portanto, as reflexões da teoria de Axel Honneth são apropriadas para o debate sobre direitos humanos dos migrantes, na medida em que autoriza concluir que é inviável o desenvolvimento de políticas públicas migratórias, sobretudo que visem a integração do contingente humano, que desconsidere a efetivação do autorrespeito e da autoestima, e que se constituam fora de um contexto de reconhecimento mútuo. REFERÊNCIAS ALARCÓN, Pietro. Direitos Humanos e Direito dos refugiados: a dignidade humana e a universali-

Diego Souza Merigueti | 511 dade dos direitos humanos como fundamentos para superar a discricionariedade estatal na concessão do refúgio. In: RAMIRES, Andrés et al. Cadernos de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.8. Brasília: Instituto Migrações e Direitos Humanos, 2013. p. 89-118. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE REFUGIADOS (ACNUR). Plano de Ação do Brasil. Brasília, 2014. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2015. ______. Refúgio no Brasil: uma análise estatística janeiro de 2010 a outubro 2014. Brasília, 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2014. ______. UNHCR Global Trends 2014, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2015. ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. Tradução: Ricardo Santos. Covilhã: LusoSofia, 2013. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados. In: ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR). Coletânea de instrumentos de proteção nacional e internacional de refugiados e apátridas. p. 81-99. ______. Protocolo de 1967 relativo ao estatuto dos refugiados. In: ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR). Coletânea de instrumentos de proteção nacional e internacional de refugiados e apátridas. p. 100-104. BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. ______. Lei n.º 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília, 1997. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2014. CAILLÉ, Alain. La quête de reconnaissance: nouveau phénomène social total. Paris: Éditions La Découverte. 2007. CARDOSO, Anelise Zanoni. Um olhar sobre a cobertura jornalística de refugiados no Brasil. In: WHITE, Ana Guglielmelliet al. Cadernos de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.7. Brasília: Instituto Migrações e Direitos Humanos, 2012. p. 91-96. CARNEIRO, Welligton Pereira; COLLAR, Janaina Matheus. Reflexões sobre a questão racial e o refúgio no sistema brasileiro. In: RODRIGUES, Viviane Mozine (Org.). Direitos humanos e refugiados. Vila Velha: Centro Universitário Vila Velha, [s.d.]. p. 9-34. COLÓQUIO SOBRE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS NA AMÉRICA CENTRAL, MÉXICO E PANAMÁ: PROBLEMAS JURÍDICOS E HUMANITÁRIOS. 1984, Cartagena, Colômbia. Declaração de Cartagena sobre os refugiados de 1984. In: ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR). Coletânea de instrumentos de proteção nacional e internacional de refugiados e apátridas. p. 111-116. HAYDU, Marcelo. A integração de refugiados no Brasil. In: RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de (Orgs.). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011. p. 131-145.

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CIDADANIA, DIGNIDADE E MOBILIDADE HUMANA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO FENÔMENO DA TRANSNACIONALIDADE Ana Cristina Bacega De Bastiani1 Mayara Pellenz2 Resumo: Cada vez mais, os processos migratórios estão presentes na contemporaneidade, a nível nacional e internacional. São fluxos de mobilidade humana que ocorrem pelos mais diversos motivos e há necessidade desta parcela da população ser absorvida pela sociedade e pelo Estado. Para tanto, a dignidade da pessoa humana deve ser considerada na ocorrência destes fenômenos sociais, bem como a Cidadania. Em relação a esta, ressalta-se a necessidade de ter seu conceito clássico redimensionado diante da globalização e da transnacionalidade. Por meio do método indutivo e da pesquisa bibliográfica, conclui-se que os migrantes não devem ser segregados, mas sim, incluídos em uma perspectiva social solidária e democrática. Palavras-Chave: Cidadania; Dignidade; Mobilidade Humana; Transnacionalidade. Abstract: More and more, the migratory processes are present nowadays, to a national and international level. Those are flows of human mobility that occur for many different reasons and that part of the population needs to be absorbed by the society and the State. Therefore, the dignity of the human being must be considered in the occurrence of these social phenomena, as well as the Citizenship. Related to that, the need for its classical concept to be resized before the globalization and the transnationality.  Through inductive method and bibliographical research, it is concluded that the migrants should not be segregated, but included in a caring social and democratic perspective. Keywords: Citizenship; Dignity; Human Mobility; Transnationality.

1  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, Democracia e Sustentabilidade pela Faculdade Meridional - IMED. Bolsista Capes. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Anhanguera de Passo Fundo. Advogada. E-mail: [email protected]. 2  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, Democracia e Sustentabilidade pela Faculdade Meridional - IMED. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Meridional – IMED. Pós-graduanda em Psicologia Jurídica. Advogada. E-mail: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO O fenômeno da mobilidade humana, em todas as partes do mundo, é uma realidade. Tal fenômeno não é novo, no entanto, na atualidade tem sido constante e por isso merece atenção quanto aos motivos de sua ocorrência, bem como um estudo a respeito das situações em que ela ocorre e como o Estado e as pessoas tem recepcionado tal situação. Ainda outra situação deve ser verificada em razão desse fenômeno: a questão relativa a Cidadania. Esta condição, que por muito tempo esteve subentendida a partir da relação entre o ser humano e o Estado nacional a qual “pertence”, a partir desse novo panorama de mobilidade pode ser revisitado para que seja ampliado e apresente parâmetros mais inclusivos. O ser humano é universal, possui a mesma condição humana com seus desafios e angústias, independentemente de sua cultura ou país a qual nasceu ou se desenvolveu. A partir dessas condições de deslocamento territorial humano, tem-se a necessidade de se refletir a respeito de todas as situações que giram em torno dessa situação. Muitos dos que se deslocam territorialmente possuem suas características individuais e que devem ser respeitadas em quaisquer locais que a pessoa se encontre. A Dignidade humana é o respaldo utilizado para que se questione a respeito Das condições que essas pessoas encontram ao chegar em outro território que não o de sua origem. O ser humano possui suas particularidades e todos devem encontrar um espaço fraterno de realização do seu ser. E isso pode ser proporcionado a partir de uma redefinição dos parâmetros de entendimento da Cidadania. Tendo em vista essas considerações, tem-se como problema de pesquisa: A partir do fenômeno de mobilidade humana, é possível ampliar o conceito de Cidadania para uma forma transnacional? Como hipótese entende-se que esse fenômeno é fundamental para que o sentido do entendimento a respeito da Cidadania seja ampliado. Isso encontra fundamentação, pois a mobilidade humana demanda preocupações em relação as acentuadas pluralidades decorrentes dessa ampla movimentação humana no espaço público, sendo que essas pessoas que procuram amparo em outras nações que não as de sua origem, demanda uma atenção especial quanto sua recepção enquanto seres humanos dotados de direitos e deveres. Nesse sentido é que o conceito de Cidadania deve ser revisto e adequado para abarcar também esse tipo de situação. Como objetivo principal a que a pesquisa se propõe está revisitar o conceito e o sentido da cidadania, explorando-o a partir das condições proporcionadas pela mobilidade humana. Como objetivos específicos para atingir tal objetivo encontram-se: a) delimitar o fenômeno da mobilidade humana; b) contextualizar a cidadania a partir do

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fenômeno da mobilidade humana, bem como; c) verificar o conceito de cidadania a partir do contexto da Transnacionalidade. A pesquisa desenvolve-se por meio do método indutivo3 e da técnica de pesquisa bibliográfica4, além da utilização de categorias5 e seus respectivos conceitos operacionais6. 2 A MOBILIDADE E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O fenômeno da mobilidade humana é um tema emergente no Brasil e no mundo, devido sua ocorrência nas mais diversas partes do globo. Há uma necessidade urgente em refletir sobre a questão, à medida que suas consequências possuem uma dimensão bastante alargada. Trata-se de ocupação de territórios pela transferência de capital humano de um local para outro, e esse fenômeno influencia a configuração social, econômica, política e jurídica de determinado local. Santos conceitua mobilidade humana como o “movimento da população pelo espaço”7. Contudo, seus significados variam tanto no tempo como no espaço, ou seja: a migração é um fenômeno histórico e social, porque os motivos da migração dependem das condições de cada momento histórico. No Brasil os vetores migratórios vêm se manifestando desde o período colonial, mas teve sua intensificação no inicio do século XX. Foram as grandes metrópoles (São Paulo, Rio de Janeiro e Campinas) os principais vetores das migrações internas, principalmente com o declínio econômico do Nordeste e a industrialização da economia cafeeira da região Sudeste. Porém, o que se observa segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), é que esse vetor começou a diminuir a partir da década de 19808. São diversos os motivos que impulsionam as pessoas a migrarem. A principal 3  “[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral”. (PASOLD, 2011, p. 205). 4  “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. (PASOLD, 2011, p. 207). 5  “Categoria é a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia”. (PASOLD, 2011, p. 25). 6  “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das ideias que expomos [...].” (PASOLD, 2011, p. 37). 7  SANTOS, Regina Bega. Migração no Brasil. São Paulo: Scipione, 1994, p. 6. 8  A informação é de que “[...] o número de pessoas saindo do Nordeste rumo ao Sudeste foi, pela primeira vez, menor do que o do sentido contrário. Essa tendência repetiu-se anualmente até 2008. Essa transformação explica-se pelo fato de o Nordeste vir apresentando novos índices de recuperação econômica e de industrialização. Além disso, a oferta de empregos no setor industrial do Sudeste vem diminuindo graças à migração de indústrias para o interior do território brasileiro (desconcentração industrial) e pelo fato de o setor secundário oferecer menos empregos em razão do crescente processo de implementação de novas tecnologias no campo produtivo” (Disponível em: http://www.mundoeducacao.com/geografia/migracoes -internas-no-brasil.htm. Acesso em 20 de julho de 2015).

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motivação, no entanto, é econômica, na busca por melhores condições de vida e trabalho. Cabe ressaltar que, durante o processo civilizatório, os fluxos migratórios ocorreram também em razão de perseguição religiosa ou política, guerras ou de calamidades naturais, como terremotos, secas e epidemias. Atualmente, a mobilidade humana é uma realidade e ocorre em larga escala, com processos de migração potencializados pela pobreza, desemprego, e, especialmente, pelos desastres ambientais. A perspectiva da migração na contemporaneidade chama atenção e deve ser objeto de reflexão, visto que ocorre com cada vez mais frequência e intensidade. Para muito além de circulação de pessoas em blocos econômicos, os fluxos já ocorrem de um continente para outro. Desse modo, o indivíduo precisa ser contextualizado como pessoa humana e como cidadão, passível de direitos e deveres, e, dessa forma, não ser alvo de discriminação e exclusão9. No passado, os processos de deslocamentos humanos trouxeram consequências graves, como o êxodo rural10, o aumento dos trabalhadores urbanos, a urbanização da população brasileira e o aumento de concentrações populacionais, principalmente no sudeste do país, que resultou no processo de metropolização em São Paulo e no Rio de Janeiro11. Outra consequência do fenômeno é a favelização de algumas regiões, devido à falta de políticas públicas que impedissem as pessoas de se instalarem naqueles locais e o despreparo na promoção do direito a moradia, que hoje se encontra previsto como direito fundamental social no artigo 6º da Constituição Federal. Além destes, mais problemas foram ocasionados. Em relação ao trabalho, por exemplo, devido às fragilidades, às necessidades e a vulnerabilidades, os migrantes são submetidos à informalidade, restando desprovidos de seus direitos trabalhistas e previdenciários. Há exploração desta mão de obra barata e alguns casos de escravagismo são observados, em clara afronta ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Sobre o tema, Sarlet12 explica que: 9  O processo civilizatório permitiu que mulheres e analfabetos, por exemplo, passassem à exercer a Cidadania, alargando seu conceito, com a possibilidade de ampliado votar e serem votados como representantes eleitos. Essa transformação do processo democrático e da importância concedida ao poder soberano do povo, abrangendo todos os cidadãos, não era observada na polis grega e na Revolução Francesa, por exemplo. 10  Êxodo rural é o termo pelo qual se designa o abandono do campo por seus habitantes, que, em busca de melhores condições de vida, se transferem de regiões consideradas de menos condições de sustentabilidade a outras, podendo ocorrer de áreas rurais para centros urbanos. Este fenômeno se deu em grandes proporções no Brasil na segunda metade do século XX e foi sempre acompanhado pela miséria de milhões de retirantes, e sua morte aos milhares, de fome, de sede e de doenças ligadas à subnutrição. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Axodo_rural. Acesso em 10 de julho de 2015. 11  SANTOS, Regina Bega. Ibid, p. 7. 12  SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 27.

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[...] se levando em conta que a dignidade, acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, cuida-se de assunto de perene relevância e atualidade, tão perene e atual for a própria existência humana. Aliás, apenas quando (e se) o ser humano viesse ou pudesse renunciar à sua condição é que se poderia cogitar da absoluta desnecessidade de qualquer preocupação com a temática ora versada.

A respeito da Dignidade, como condição de valor intrínseco do ser humano, possibilita o indivíduo o exercício do seu direito de decidir, de forma autônoma, a respeito de seus projetos existenciais e seu ideal de Felicidade13. Ainda que esta autonomia lhe falte, o princípio deve ser considerado e respeitado pela sua relação inerente com a condição humana14. Foi no contexto pós-guerra que surgiram os primeiros movimentos pelos direitos humanos, por meio da Organização das Nações Unidas em 1945 e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Diversos tratados e pactos exerceram e ainda exercem um papel central nos debates atuais sobre direitos humanos 15 pois esta é uma luta histórica, que pertence ao homem, simplesmente por esta sua condição. Para Piovesan16: [...] a Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos [...] A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana é concepção que, posteriormente, viria a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que passaram a inPara Aristóteles, “[...] a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios. Em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político com instrumentos, e há certas coisas cuja falta empana a felicidade – boa estirpe, bons filhos, beleza – pois o homem de má aparência, ou mal nascido, ou só no mundo e sem filhos, tem poucas possibilidades de ser feliz, e tê-las-á ainda menores se seus filhos e amigos forem irremediavelmente maus ou se, tendo tido bons filhos e amigos, estes tiverem morrido. Como dissemos, então, a felicidade parece requerer o complemento desta ventura, e é por isto que algumas pessoas identificam a felicidade com a boa sorte, embora outras a identificam com a excelência” (ARISTÓTELES. Ética a nicônamos. Tradução de Mário da Gama Cury. 3. Ed. Brasília: Editora da UNB, c1985, 1999. P. 17-111. Título Original: Ethikon Nikomacheion, p. 26) 14  SARLET, Ingo Wolfgang. Ibid, p. 52. 15  BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 20. 16  PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 137. 13 

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tegrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos.

É sob esta perspectiva a relação entre condição humana e Dignidade ganha força, já que, em dimensões internacionais, é reconhecida por meio de documentos. A Dignidade é um valor inerente à condição humana, e o homem, por esta definição, é dotado de características particulares que o faz merecedor de Dignidade, sem qualquer objeção neste sentido. Para Sarlet17, a Dignidade deve ser: [...] compreendida como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida protegida, não podendo, contudo [...] ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente.

Nesta perspectiva, a condição humana é um ponto de partida, pois ela “[...] compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato tornase imediatamente uma condição de sua existência”18. A consagração da Dignidade da pessoa humana considera o homem como o centro do universo jurídico, sendo que ela própria é o fim de si mesma. Isto se justifica na medida em que a Dignidade é categoria que pertence ao ser humano, mas sem condições de vida adequadas, ela não se realiza perfeitamente. Nesse sentido, as pessoas não existem em função das outras e não podem servir como objeto, pois a pessoa humana encontra sentido em si mesma. Do mesmo modo, o princípio da Dignidade da pessoa humana, como expressa Piovesan, transcende os limites do positivismo, justamente por seu fundamento ser o próprio ser humano19. Com relação à Dignidade no Brasil, cabe mencionar que esta é tutelada expressamente pela Constituição Federal de 1988, elaborada para ratificar a Democracia e consolidar Estado Democrático de Direito20. O texto constitucional trouxe estampados os SARLET, Ingo Wolfgang. Ibid, p. 43. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hanna Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 17. 19  PIOVESAN, Flávia. Ibid, p. 137. 20  “Destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias” (BRASIL, Constituição Federal, 1988). Nesse sentido, prevalece o princípio da soberania popular, ou seja, em um regime democrático, o soberano é o povo. Há uma harmonia entre o representante do poder soberano nas tarefas do governo com o poder decisório do povo. (COMPARATO, 2006, p. 86). 17  18 

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direitos fundamentais, sendo que todas as normas gravitam em torno da Dignidade da Pessoa humana. Esta questão é de extrema atualidade, pois versa sobre o valor intrínseco do próprio homem. Somente com esta perspectiva é possível compreender o valor que a Dignidade exerce sobre a existência humana, bem como a necessidade de proteção de seus direitos. Sarlet21 explica que “em se levando em conta que a dignidade, acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, cuida-se de assunto de perene relevância e atualidade, tão perene e atual for a própria existência humana”. Valendo-se do progresso humano no sentido de desenvolver novas técnicas de vida, que visam preservar não somente a espécie humana, mas uma vida melhor, o homem deve continuar buscando a ratificação de seus direitos fundamentais que objetivam proteger sua Dignidade. Essa possibilidade precisa de concretização quando se refere à mobilidade do sujeito. Este, dotado de autonomia, livre e responsável pelas suas escolhas, deve ter o respaldo, a todo tempo, de sua Dignidade, ainda que seja parte integrante de um processo migratório de ordem interna ou externa. A mobilidade humana, nestes termos, não figura como exclusão de direitos, mas sim, na manutenção de todas as normativas dos tratados de direitos a respeito de suas garantias fundamentais, e, em especial, a Dignidade da Pessoa Humana. É por este motivo que a Dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais. Assim, a condição humana é a base para que o princípio da Dignidade da pessoa humana seja reconhecido. Esta e seus desdobramentos, exercem um papel que confere unidade, sentido e coerência aos demais direitos fundamentais previstos no sistema jurídico. Como explica Figueiredo22: a dignidade da pessoa humana, ademais, é pré-jurídica, não existindo apenas quando e na medida em que corroborada pelo Direito, já que possui um dado prévio, um conceito a priori. Portanto, não se cogita nem de pretensão jurídica, nem tampouco de direito fundamental à dignidade humana; o que há são pretensões jurídicas a direitos subjetivos decorrentes da dignidade da pessoa humana, ou ainda uma pretensão de respeito e proteção que dela pode decorrer. Não há direito fundamental à dignidade da pessoa humana – embora se possa pensar num direito à existência digna.

Sob esta linha de pensamento, é preciso respeitar a Dignidade humana e os direitos que dela decorrem, para que o homem possa perceber que sua evolução enquanto SARLET, Ingo Wolfgang. Ibid, p. 27. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 53. 21  22 

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sujeito e sociedade, surte efeitos no sentido de buscar sempre um maior entendimento e proteção a respeito de sua própria condição e seus direitos. Sobre o tema, Barroso23 esclarece que: A autonomia é o elemento ético da dignidade humana. [...] A noção central aqui é a autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida. [...] A autonomia pressupõe o preenchimento de determinadas condições, como a razão (a capacidade mental de tomar decisões informadas), a independência (a ausência de coerção, de manipulação e de privações essenciais) e a escolha (a existência real de alternativas).

Dessa forma, onde existe vida humana, esta deve ser assegurada e a proteção de sua Dignidade deve ser um objetivo a ser alcançado. Não é decisivo que o titular tenha consciência de que possui Dignidade ou que saiba defendê-la. Também não é decisivo que o sujeito seja ou não migrante ou imigrante. Basta, para sua fundamentação, as qualidades potenciais inerentes a todo ser humano, ainda que o sujeito esteja em processo migratório para além de seu local de origem. Cabe ressaltar que Dignidade e condição humana não são categorias idênticas. O que necessita ser esclarecido é a condição humana é o ponto de partida. Esta, depois de sedimentada, possibilita a tutela de tudo aquilo que faz com que o homem seja reconhecido enquanto tal, ou seja, como um ser de características diferenciadas que requer proteções e efetivações particularizadas. A Dignidade da pessoa humana tem como alicerce a condição humana em que o homem, por meio de suas ações, modifica o mundo em que vive e modifica-se também, enquanto sujeito no processo civilizatório. Assim, a condição humana é a base para que o princípio da Dignidade da pessoa humana seja reconhecido. Protegida a condição humana como um valor base à Dignidade do homem pode-se afirmar que os demais direitos fundamentais, pertencentes ao homem, terão condições de serem ratificados, pois sem o devido respeito às condições intrínsecas ao homem, não há princípio e nem direito que seja confirmado no plano real. 3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE CIDADANIA: A NECESSIDADE DE UMA REVISITAÇÃO TEÓRICA A PARTIR DA TRANSNACIONALIDADE A categoria Cidadania sofreu inúmeras alterações no decorrer da História. Somente com o advento das Constituições Modernas é que a Cidadania adquiriu uma condição afinada com os novos tempos. Nesta perspectiva, um novo modelo de or23 

BARROSO, Luís Roberto. Ibid, p. 82.

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ganização social foi possível, com a Revolução Industrial e com a ascensão econômica de cidadãos por meio do trabalho. Esse processo, liderado pela burguesia, resultou na reivindicação destes em participar de forma ativa nas decisões politicas, e não somente o direito ao sufrágio universal. As consequências destes fatos históricos é a promulgação das Constituições Modernas, já no final do século XIX, voltadas para tutela dos direitos dos cidadãos. Os Estados Nacionais promulgam Constituições que tutelam os direitos civis políticos e sociais, como a Constituição Mexicana e a Alemã, por exemplo. Vieira destaca que “[...] a Cidadania foi concedida a restritos grupos de elite – homens ricos de Atenas e barões ingleses do século XIII – e posteriormente estendida a uma grande porção dos residentes de um país”24 (2001, p. 34). Percebe-se que a qualidade de cidadão não era dotada a todos, de forma indiscriminada. Havia particularidades que diferenciavam umas pessoas de outra, geralmente ligada ao poderio econômico e social. Contudo, essa concepção se modificou. E complementa: A República Moderna não inventou o conceito de cidadania, que, na verdade, se origina na República Antiga. A cidadania em Roma, por exemplo, é um estatuto unitário pelo qual todos os cidadãos são iguais em direitos. Direitos de estado civil, de residência, de sufrágio, de matrimônio, de herança, de acesso à justiça, enfim, todos os direitos individuais que permitem acesso ao direito civil. Ser cidadão é, portanto, ser membro de pleno direito da cidade, seus direitos civis são plenamente direitos individuais. Mas ser cidadão é também ter acesso à decisão política, ser um possível governante, um homem político. Esse tem direito não apenas a eleger representantes, mas a participar diretamente na condução dos negócios da cidade25.

Assim, a Cidadania civil corresponde ao conjunto das liberdades individuais, em patamar de igualdade jurídica e compreende o direito a liberdade desde as revoluções burguesas no século XVIII. A Cidadania política representa o exercício do poder e o direito de participação no exercício do poder político, traduzido pela expressão “votar e ser votado”. A Cidadania social guarda ligação com os direitos fundamentais pois corresponde ao conjunto de garantias mínimas de bem-estar econômico e social, traduzindo as novas exigências e os novos valores instituídos no século XX. Por esta razão, ser cidadão enseja a realização das mais variadas dimensões de direito. Nesta perspectiva, conforme Pinsky26: 24  25  26 

VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 34. VIEIRA, Liszt. Ibid, p. 27. PINSKY, Jaime. História da Cidadania. Pinsky, Jaime; Bassanezi Pinsky, Carla. (orgs.). 3.ed . São Paulo:

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Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar do destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais.

A atuação e participação política ativa do cidadão nas decisões políticas do Estado guardam relação com os Direitos Humanos Fundamentais porque as categorias caminham lado a lado, ou seja, possuem como pressuposto a condição de ser humano. Por este motivo, Cidadania e Direitos Humanos Fundamentais necessitam uma apreciação conjunta para o desvelo de seus significados. O Homem, por possuir direitos inerentes à sua natureza, de caráter irrevogável, imprescritível, inalienável e universal, necessita de um “mínimo existencial” que está ligado à Cidadania. Araújo esclarece que “o homem, liberto do jugo do Poder Público, reclama agora uma nova forma de proteção de suas dignidades, como seja, a satisfação das necessidades mínimas para que se tenha dignidade”27. Mas como o cidadão irá exercer suas liberdades e direitos políticos se lhe falta o básico para viver? Além disso, a condição de migração também precisa ser apreciada. É o Estado Democrático de Direito o responsável por garantir uma vida digna a todos os cidadãos, desempenhando um papel fundamental no que diz respeito à realização de direitos como educação, trabalho, moradia, saúde, dentre outros. Esta perspectiva não pode ser segregadora. Uma dimensão de integração deve abarcar aqueles sujeitos oriundos de processos migratórios. Para Barreto28: A cidadania está intimamente vinculada ao processo em devir dos Direitos Humanos que consolidou a sociedade na modernidade. O conceito de cidadania surgiu ligado a um ente estatal no século XVIII; seu exercício e realização se fizeram sob a tutela do Estado nacional. Porém, considerando a atual forma de sociedade, a cidadania afirma-se pelo envolvimento do cidadão nos movimentos sociais, nos mais diversos, no âmbito da emergente sociedade civil e esfera pública transnacional que se vai construindo no mundo globalizado. Contexto, 2005, p. 9. 27  ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 115. 28  BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Ibid, p. 96.

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A Cidadania é um conceito passível de ampliação devido à passagem do tempo e também aos acontecimentos históricos decorrentes do processo civilizatório. A partir da ampliação do conceito da categoria e sua relação com os Direitos Humanos Fundamentais, restrições não vingam. A ideia de Cidadania é uma ideia que se refere aos Direitos Humanos, uma vez que sua história e se confunde com a história de lutas e de libertação do Homem. As conquistas das lutas burguesas, que originaram a Declaração dos Direitos do Homem, na França, Inglaterra e Estados Unidos, estabeleceram o conceito de Cidadania, na modernidade. Para Bobbio, se anteriormente, o princípio da legitimidade baseava-se nos deveres dos súditos, a partir desses acontecimentos, passava a basear-se nos direitos do cidadão29. O exercício da Cidadania é um conceito de construção permanente, pois representa uma das conquistas do processo civilizatório humano e por isso, vai modificando sua conceituação e seu alcance com o passar o tempo e com o desenvolvimento da história, a citar a Segunda Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o surgimento do Estado de Bem-Estar Social, como expressão máxima dos direitos sociais e de parâmetros principio-lógicos mais coletivos e igualitários. Para Dallari30: Segundo orientação generalizada desde o início do século XIX, só é cidadão aquele que preenche os requisitos fixados em lei para garantir tal categoria, e os próprios direitos de cidadania forma estritamente indicados em lei [...] Deve-se continuar falando em cidadania, porque é um conceito útil, ligado às ideias de liberdade e igualdade dos seres humanos e de plenitude na aquisição e no gozo dos direitos, sobretudo daqueles que interessam à coletividade; mas sem perder de vista que enquanto houver pessoas excluídas da cidadania não poderá existir sociedade democrática. Defenda-se a pessoa humana, e o cidadão estará sendo defendido.

Por este motivo, a categoria Cidadania não se articula no campo da pessoalidade, mas sim, só pode ter seus significados desvelados se for vivenciada em sociedade cotidianamente. A Cidadania pressupõe o Outro, seja ele quem for. Nesse ponto não se trata de considerar a Cidadania como categoria imutável. Ela, na verdade, é o resultado de transformações, evolução de direitos e deveres, em cada época. Isso se perpetua no BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 3. DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de Direito e cidadania. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Wiliis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 198-199. 29  30 

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tempo. Para Bobbio31: [...] ainda que fossem necessários, os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o processo da capacidade do homem de dominar a natureza e outros homem – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder.

O conceito de Cidadania, inicialmente, teve um caráter de vinculação a um Estado. Entretanto, com as mudanças sociais e a crescente Transnacionalização – que é característica de uma sociedade globalizada - a Cidadania passa a ser encarada com características mais vastas. Sob esse argumento, Braga explica que a Cidadania: [...] pode ser definida como um conjunto de direitos que podem ser agrupados em três elementos: o civil, o político e o social, os quais não surgiram simultaneamente, mas sim, sucessivamente, desde o século XVIII até o século XX. O elemento civil é composto daqueles direitos relativos à liberdade individual: o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa e de pensamento, o discutido direito à propriedade, em suma, o direito a justiça (que deve ser igual para todos). O elemento político compreende o direito de exercer o poder político, mesmo indiretamente como eleitor. O elemento social compreende tanto o direito a um padrão mínimo de bem-estar econômico e segurança, quanto o direito de acesso aos bens culturais e à chamada “vida civilizada”, ou seja, é o direito não só ao bem-estar material, mas ao cultural32.

A Cidadania é a condição de um indivíduo que vive em sociedade livre. Para que ela seja efetivada, é necessária a existência prévia de uma ordem política democrática, capaz de garantir o exercício destas liberdades33. Por isso é necessária uma aproximação entre Diretos Humanos Fundamentais e a Cidadania. Ambas são elementos sociais imprescindíveis e que se completam, à medida que: a) os Direitos Humanos Fundamentais oportunizam o exercício da Cidadania; b) uma categoria depende da outra para efetivar-se no mundo da vida; c) no contexto contemporâneo, Direitos Humanos BOBBIO, Norberto. Ibid, p. 26. BRAGA, Roberto. Qualidade de vida urbana e cidadania. Território e cidadania, UNESP: Rio Claro, n.2, julho/dezembro, 2002, p. 2. 33  PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Ciudadanía y deficiones. In: Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho: Alicante, n. 25, 2002, p. 162. 31  32 

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Fundamentais e Cidadania dependem diretamente uma da outra para sua concretização. Sob esta mesma ótica, Lafer enfatiza que: A cidadania é um direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos humanos não é um dado. É um construído na vivencia coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso que permite a construção de um mundo comum através do processo de acessão dos direitos humanos 34.

Ressalta-se que a sociedade contemporânea enfrenta uma nova realidade em relação ao exercício da Cidadania. As características da categoria, hoje em dia, representam uma possibilidade de exercício muito mais alargada. É status social que se expressa na capacidade do Homem em participar plenamente da vida política, econômica, e cultural. Contudo, diante de uma sociedade transnacional e globalizada, o alcance da categoria passa a ser global, intensificado com os processos de migração e de mobilidade humana. Como a Cidadania extrapolou o vínculo do Estado-Nação e não está adstrita, somente, aos direitos de personalidade, uma nova configuração pode ser visualizada, pois não se considera somente a individualidade do ser, mas sim, um conjunto social que enseja o vínculo de pertença e de reconhecimento, uns com os outros. A categoria passou de uma relação verticalizada (indivíduo e Estado-Nação) para uma perspectiva horizontal, que compreende a relação do indivíduo com o meio em que ele vive. Por este motivo, o conteúdo jurídico da Cidadania está redimensionado e em constante construção. Se, no passado, a Cidadania correspondia somente ao vínculo de pertencimento entre indivíduo e Estado Nação, hoje esta condição está alargada, frente aos processos migratórios que acontecem em todo o mundo. O Direito precisa estar atento a esse fenômeno, pois não se pode conceber um “direito de olhos fechados”35 . Como o exercício de direitos e deveres são permanentemente maturados, assim como os direitos fundamentais, os novos cenários ensejam novas abordagens legais e jurídicas à respeito da Cidadania. Nesta configuração de mundo, o cidadão é elementochave na construção de uma sociedade mais igualitária e receptiva àqueles que vieram de outras localidades. Assim, o alcance alargado do conceito de Cidadania, garante sua titularidade e o seu exercício não apenas em um espaço geográfico determinado, e sim, em uma LAFER, Celso. Ibid, p. 146. CUNHA, Paulo Ferreira. Constituição viva: cidadania e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 61. 34  35 

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dimensão planetária. Sustentar uma Cidadania universal, nesse ponto, não se trata de uma utopia, mas de uma realidade já experimentada pela formação de blocos políticos, sociais e econômicos que se formam ao redor do mundo. Em integração, coesão e unidade, estas perspectivas possibilitam um viés da Cidadania ampliada, com enfoque ecológico, que não se limita ao Estado-Nação, mas sim, ao conjunto de países que se unem pelos mesmos objetivos. Nesta perspectiva, segundo Freire36: Nosso compromisso, enquanto cidadão nesta sociedade globalizada é o de uma visão mais clara e ampla com a qualidade ambiental para um presente e futuro próximo, onde o homem terá oportunidade a sua vez e voz, tendo como vista não o espaço próximo de ação, mas também o horizonte planetário.

Nessa linha de pensamento, o conceito de Cidadania precisa ser revisitado, ou seja, trata-se de um conceito não taxativo, à medida que se transforma para tutelar outros direitos e conferir outros deveres cívicos estabelecidos pelo Estado, com a passagem do tempo e as transformações sociais, que são resultados dos processos migratórios em todo o mundo. Por este motivo, os direitos humanos fundamentais possuem alcance universal e todos os seres humanos são considerados cidadãos pelo simples fato de seres humanos. Não importa, nesta ótica, qual o gênero, a cor, a religião, a nacionalidade37, a raça, dentre outras. Ou seja: o cidadão é titular da Cidadania na perspectiva nacional, por força constitucional, e também universal, por força da ratificação de Declarações Universais neste sentido. Já a Cidadania é a qualidade de ser eleitor, sem sentido estrito e, em sentido amplo, é a inserção da pessoa na sociedade a que pertence, incluindo o vínculo de direitos e deveres com o Estado. Por certo, não se pode restringir a Cidadania ao exercício somente aos direitos políticos, e à capacidade de votar e ser votado. Cidadão e eleitor são elementos distintos. As definições jurídicas trazidas nestas linhas são relevantes em relação à eficácia e a normatividade dos preceitos constitucionais, mas o que percebe, concomitantemente às estas definições é que, na atualidade, a Cidadania extrapola conceitos limitados. Cidadania é uma categoria multifacetada, à medida que saiu da esfera do privado (vínculo Estado e cidadão) e tornou-se uma categoria pública, que diz respeito a direitos e deveres perante os outros cidadãos e perante o meio em que se vive. Evidente que essa situação abarca os sujeitos oriundos de processos migratórios e de mobilidade humana. Esse novo entendimento jurídico é possível diante da postura do Brasil, espe36  37 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 66.

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cificamente, em ser signatário de documentos internacionais. Além disso, o fenômeno da Globalização38 e da Transnacionalidade39 contribui para essa redefinição. A Cidadania é uma conquista social e histórica que denota a identidade do indivíduo face de aos seus semelhantes. O significado do conceito de Cidadania, bem como seu exercício, envolve um contexto amplo que precisa ser considerado para seu entendimento, esclarecimento e efetivação. A partir destas reflexões, ser cidadão não constitui unicamente o pertencimento do indivíduo ao Estado-Nação ativa e passivamente, mas estabelece especialmente obrigações e direitos concernentes à relação entre cidadãos e Estado. Sob esta perspectiva, “os direitos e as obrigações de Cidadania existem, portanto, quando o Estado valida as normas de Cidadania e adota medidas para implementá-las”40 tanto para seus nacionais, quantos para aqueles sujeitos oriundos de fluxos migratórios de outros países. Percebe-se que há um ponto de intersecção entre Cidadania e Sociedade Civil. Essa relação configura-se pela responsabilidade assumida por cada indivíduo de ser um ator social, capaz de modificar seu destino desde que assuma seu papel importante de participação na vida pública defendendo seus direitos e exercendo seus deveres. O ser humano como um ser ativo que impulsiona as modificações da Sociedade a qual pertence é responsável por assumir as características da Cidadania, que, assim como a sociedade, também se renova. Historicamente, a Cidadania fora entendida como a capacidade de cada indivíduo em exercer seus direitos e deveres dentro dos limites territoriais de um Estado-NaGlobalização, nas palavras de GRASSO se refere à “expansión creciente de las actividades de la economía, producción, circulación, cambio y consumo de cosas, más allá de los confines territoriales y los vínculos del derechopositivo de los Estados” (GRASSO, 2005, p. 111). Em um sentido amplo, segundo BERNARDES, a globalização significa de maneira geral que todas as definições aludem à compressão tempo-espaço e à crescente interdependência entre nações e sociedades em um mundo cada vez menor (BERNARDES, 2006, p. 380). A interdependência global traduz-se na forma de intensos fluxos de capital, bens, informações e pessoas. A globalização deve ser entendida que preditas mudanças não se restringem unicamente à circulação de capital, mas repercute em outras esferas da vida social. Neste sentido, Diniz infere que os equívocos mais correntes, situam-se a visão da globalização como um processo de natureza exclusivamente econômica, impulsionado por forças de mercado e mudanças tecnológicas autônomas (DINIZ, 2007, p. 24-25). Tratase, certamente, de uma simplificação, pois o processo de globalização, como foi ressaltado anteriormente, é essencialmente um fenômeno multidimensional. Consenso, no entanto, é que a globalização se apresenta como um fenômeno de caráter irreversível, que não pode ser parado. 39  10“A transnacionalização pode ser compreendida como um fenômeno reflexivo da globalização, que se evidencia pela desterritorialização dos relacionamentos políticos-sociais, fomentado por sistema econômico capitalista ultravalorizado, que articula ordenamento jurídico mundial à margem da soberania dos Estados. A transnacionalidade insere-se no contexto da globalização e liga-se fortemente com a concepção do transpasse estatal. Enquanto a globalização remete à ideia de conjunto, de globo, enfim, o mundo sintetizado como único; transnacionalização está atada à referência de Estado permeável, mas tem na figura estatal a referência do ente em declínio” (STELZER, 2011, p. 21) 40  VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 36. 38 

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ção. Implicava um sentimento de pertença41 àquele Estado. Porém, ficou evidenciado que o alcance da Cidadania não se exaure pela participação social e política nos rumos políticos do país. Denota ligação com os direitos de liberdade, de manifestação, de religião, e extrapola o conceito fechado e imutável em que interesses públicos (e de bem -estar geral e de vida e coletividade) e privados (autonomia do indivíduo) convergem. O Estado-Nação tende ao declínio de sua delimitação clássica, transitando por um novo espaço de Cidadania, que vai além dos contornos do Estado-Nação ao espaço global em que “[...] a consagração universal dos direitos humanos sublinha a transição da Cidadania vinculada aos direitos individuais para Cidadania devida à pessoa universal”42. O novo conceito de Cidadania está interligado a estas mudanças, bem como aos direitos adquiridos historicamente pelo Homem, especialmente a Dignidade da Pessoa Humana, que figura como um vetor para o exercício da Cidadania. Por esta razão, a Cidadania, nos dias de hoje, possui alcances muitos mais vastos. Em consonância com os direitos de terceira43 e quarta dimensão, a categoria necessita acompanhar a evolução de mundo para que seu conteúdo jurídico não reste esvaziado e ultrapassado, e direcionado apenas a nacionais. A partir dessas transformações contemporâneas e o encurtamento de distâncias, que possibilitam com mais facilidade os fluxos migratórios, fomenta-se uma Cidadania em um âmbito que vai além do local, atingindo mais de um território ou Estado. Estas são as características destes dias, e que já não é mais possível ignorar. A ressignificação da Cidadania enseja, na atualidade, um viés global e planetário. Os espaços redimensionados e a condição globalizada e transnacional da sociedade de hoje demandam a revisitação de alguns conceitos jurídicos, políticos, e sociais, como a Cidadania. Nessa linha de pensamento Pérez Luño, leciona que: Las nuevas condiciones de ejercicio de los derechos humanos han determinados uma nueva forma de ser ciudadano em el Estado de Derecho de las sociedades tecnológicas, del mismo modo que el tránsito desde el Estado liberal al Estado social de Derecho configuro también formas diferentes de ejercitar la ciudadanía44.

11Por pertença a um Estado-Nação entende-se o estabelecimento de uma personalidade em um território geográfico (VIEIRA, 2001, p. 34). 42  VIEIRA, Liszt. Op. cit., p. 4. 43  12Para Bonavides, os direitos de terceira geração assentam-se sobre a fraternidade, e são dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, não se destinando especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado, mas tendo primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta (BONAVIDES, 1997, p. 523). 44  PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Ibid, p.35. 41 

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A Cidadania precisa ser entendida como uma maneira de incorporar indivíduos oriundos de processos migratórios ao contexto social e não mais apenas como um conjunto de direitos formais, em que seu exercício limita-se ao Estado-Nação. Por esta razão, a Cidadania está redimensionada, pois suas características modificaram-se. Com o advento da Globalização e da Transnacionalidade, o próprio conceito de Estado e seu funcionamento demandam uma redefinição45. Em relação às possibilidades dos sujeitos, estas estão em crescimento, considerando a liberdade do indivíduo, capaz de migrar, de escolher viver em outros locais, aumentando os fluxos migratórios que hoje são uma realidade em diversos pontos do mundo, trazendo á tona preocupações e desafios no tocante a questão dos refugiados, por exemplo, e os que migram em razão das condições climáticas. Além desses fatores, a Sociedade contemporânea é multicultural, de infinitas possibilidades e é positivo que seja assim: Numa sociedade pluralista, a constituição expressa um consenso formal. Os cidadãos querem regular a sua convivência de acordo com os princípios que podem encontrar o assentimento fundamentado de todos [...] Cada homem e cada mulher deve ser alvo de um tríplice reconhecimento, ou seja, devem encontrar igual proteção e igual respeito em sua integridade: enquanto indivíduos insubstituíveis, enquanto membros de um grupo étnico ou cultural e enquanto cidadãos, ou membros de uma

13O Estado é uma forma de organização política que, na sociedade contemporânea, tem se encontrado exposto a fortes crises que estão afetando suas bases. O modelo de Estado surge ao final do feudalismo, na Europa ocidental. Todas as entidades políticas foram levadas à difundirem-se ao modelo estatal, que passou a ser a figura necessária da organização política. A adoção desta forma passou a ser, principalmente a partir do século XVIII, passaporte necessário para que se pudesse entrar na vida internacional. O Estado é elevado a sujeito de direito internacional e progressivamente se globalizou. Estes efeitos tendem a afetar o modelo de Estado tradicional, tornando obsoleta a concepção de soberania, redefinindo as funções do Estado. A ordem transnacional é criada por acordos entre Estados soberanos que tendem a se organizar num sistema mais amplo e que, de certa forma, restringem sua liberdade de ação. A ordem nacional clássica estava fundada sob a concepção de soberania, mas esta ordem então é colocada sob questionamentos, já que é reforçado o vínculo de interdependência entre os Estados, além do fim do monopólio estatal sobre as relações internacionais, pois as próprias sociedades hoje estão presentes na ordem internacional. Esta posição coloca os Estados sob o signo da complexidade e impõe aos Estados obrigações de diferentes naturezas, sendo que ainda precisam fazer acordos com atores que escapam a sua autoridade, tais como empresas internacionais, organizações não governamentais e redes transnacionais, por exemplo. Com a globalização e a ampliação das relações internacionais a pertinência do Estado como unidade política vem sendo colocada mais diretamente sob questionamentos. Está ocorrendo uma ampliação dos limites dos espaços nacionais e de regulação. Diante disso a regionalização tem aparecido como prolongamento lógico. Estes vínculos de interdependência é o que caracterizam este Estado pós-moderno. Esta característica não priva os Estados de suas margens de manobras, no entanto, modificam profundamente a concepção tradicional de Estado que era baseada na soberania. E este desmoronamento da soberania vem redefinindo as funções e a lógica da ação estatal. (CHEVALLIER, 2009, p. 23). 45 

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comunidade política46.

O cidadão deixou de pertencer a este ou aquele espaço, mas sim, faz parte de um todo muito maior, um lar compartilhado entre seres humanos e Natureza chamado Planeta Terra. Como o Estado Moderno possui uma forma de vida social e política diferenciada em relação aos conceitos clássicos, jamais imaginadas, novas configurações atingem também as características do Homem e do Cidadão. Existe uma metamorfose silenciosa que ocorre a nível mundial é responsável por partilhar de um vínculo humanitário que precisa ser fortalecido. Estas novas relações vão muito além daqueles com quem possuímos vínculos próximos. Sob essa linha de pensamento: El reconocimiento del desdobramento político y jurídico del Estado a través de los fenómenos de ‘supraestatalidad’ (supeditación del Estado a organizaciones internacionales) y de ‘infraestatalidad’ (asunción de competencias jurídico-políticas por entes menores que el Estado), invita a admitir esse uso lingüístico multilateral de la idea de ciudadania47.

O ideal de vida global enseja reconhecimento moral diante da multiculturalidade, de forma a alargar os espaços para diálogos e viabilizar identificações que se concretizam à partir das diferentes culturas e modos de vida. Neste mesmo sentido, acredita-se que “[...] somente uma cidadania democrática que não se fecha num sentido particularista, pode preparar o caminho para um status de cidadão do mundo”48, corroborando a ideia do vai e vem de pessoas por todo o mundo. A migração é uma realidade e os fundamentos jurídicos precisam observar estes novos cenários em todo o mundo. A nova configuração de Cidadania proposta nestas linhas chama atenção para que os cidadãos possam compartilhar de um mínimo comum, já que fazem parte de uma realidade mundial. Para Cademartori49: Se por muito tempo o uso linguístico do termo cidadania fazia referencia a um vínculo único e exclusivo entre o indivíduo e o Estado, nas circunstâncias atuais é possível admitir uma pluralidade de cidadania. Em outros termos, substituir a cidadania HABERMAS, Jurgen. Cidadania e identidade nacional. In: Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 181. 47  PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Ibid, p.181. 48  HABERMAS, Jurgen. Op cit, p. 304. 49  CADERMATORI, Daniela Mesquita Leutchuk. Limites e Possibilidades de uma Cidadania Transnacional: uma apreensão histórico-conceitual. In: Cruz, Marcio Paulo; STELZER, Joana (org.). Direito e Transnacionalidade. Curitiba: Juruá, 2011, p. 143. 46 

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unilateral por uma cidadania multilateral.

Esse novo papel a ser desempenhado pelo cidadão do mundo amplia os valores cívicos a serem concretizados e oportuniza participação no cenário plural, à medida que contribui, ainda, para a formação da identidade individual do sujeito. Ademais, ter direito a participar dos destinos da sociedade significa ter direito à Democracia50. Essa possibilidade não pode ser ceifada aqueles sujeitos oriundos de processos migratórios. É um desafio contemporâneo a absorção desta camada populacional que busca novos rumos e novas perspectivas de vida em outros locais. Não se pode fechar os olhos à realidade que é posta, e o Direito, como fenômeno cultural, deve acompanhar estas transformações. Busca-se um ponto de convergência entre os problemas contemporâneos em prol da construção de uma sociedade socialmente sustentável e capaz de conviver com diferenças e os fenômenos migratórios em todo o mundo. 4 CONCLUSÃO Inegavelmente há uma transformação ocorrendo na sociedade contemporânea. Os padrões de vida, as preocupações em relação ao futuro são evidentes. Por consequência, afirma-se o entendimento de que o ser humano é o responsável pela modificação das condições presentes. Nesse sentido o estudo destinou-se a refletir a importância da ampliação do conceito de cidadania a partir do fenômeno da migração humana e por consequência, do parâmetro da Transnacionalidade. O espaço público está redimensionado em virtude do grande trânsito de pessoas por todos os locais do mundo. Entretanto, mesmo com tal facilidade de deslocamento, cada ser humano continua possuindo suas particularidades devido a sua tradição cultural, dentre outros fatores, e isso faz com que seu trânsito deva ser observado pelo direito de forma a que este redimensione categorias importantes para receber todos os seres humanos enquanto seres merecedores da mesma Dignidade. Dentre essas categorias está a Cidadania. Cada pessoa deve ter o direito de buscar melhorar sua situação de vida e por isso mesmo deve ser recepcionado onde estiver com os mesmos direitos e também deveres daqueles demais cidadãos que dali se originam. A partir disso confirma-se a hipótese apresentada pela pesquisa de que é preciso e possível revisitar o conceito de cidadania, ampliando sua abrangência. Essa situação aliada ao encurtamento de distâncias, que possibilitam esses fluxos migratórios com mais facilidade, fomenta, portanto, uma BOBBIO, Norberto. Liberalismo velho e novo. In: BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de M.A. Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 18. 50 

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Cidadania que ultrapassa as fronteiras dos territórios de um Estado-nação. É preciso, dessa forma, ampliar o significado tradicional daquilo que se entende por Cidadania na direção de um viés global e planetário, representando a inclusão de todo ser humano a condições do pleno exercício de direitos e deveres a partir, portanto, de uma condição universal. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. ARISTÓTELES. Ética a Nicônamos. Tradução de Mário da Gama Cury. 3. Ed. Brasília: Editora da UNB, 1999. BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia política. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2010. BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. BERNARDES, Márcia Nina. Globalização. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar; São Leopoldo: Unisinos, 2006. BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ______. Liberalismo velho e novo. In: BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de M.A. Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1986. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. BRAGA, Roberto. Qualidade de vida urbana e cidadania. Território e cidadania, UNESP: Rio Claro, n.2, julho/dezembro, 2002. CADERMATORI, Daniela Mesquita Leutchuk. Limites e Possibilidades de uma Cidadania Transnacional: uma apreensão histórico-conceitual. In: Cruz, Marcio Paulo; STELZER, Joana (org.). Direito e Transnacionalidade. Curitiba: Juruá, 2011. CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009. COMPARATO, Fábio Konder. Sobre a legitimidade das constituições. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Faya Silveira (Orgs.). Constituição e Democracia: estudos em homenagem ao Professor J. J. Canotilho. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. CUNHA, Paulo Ferreira. Constituição viva: cidadania e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de Direito e cidadania. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Wiliis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001.

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