REFUTAÇÃO DO CONCEITO DE LIVRE-ARBÍTRIO DE ACORDO COM A TEORIA DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO DE DAVID HUME

June 15, 2017 | Autor: Leonardo Bigolin | Categoria: Empiricism, David Hume, Filosofía, Livre-arbítrio
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REFUTAÇÃO DO CONCEITO DE LIVRE-ARBÍTRIO DE ACORDO COM A TEORIA DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO DE DAVID HUME
Leonardo Cappellesso Bigolin
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RESUMO: David Hume, em suas obras "Investigação acerca do entendimento humano" e "Tratado da natureza humana", defende que o pensamento racional advém das experiências que o ser humano vivencia em sua existência. Qualquer ideia, por mais original que ela possa parecer, é uma fusão de diversos conceitos extraídos do mundo exterior. Por esse motivo Hume é considerado um empirista. O objetivo deste trabalho é destacar essa parte da filosofia de Hume que propõe explicar a construção do conhecimento de cada indivíduo – e é fundamental para o entendimento do restante de seu trabalho – e explicar como a sua teoria refuta a ideia de livre-arbítrio.

Palavras chave: David Hume, empirismo, teoria do conhecimento, origem das ideias, livre-arbítrio.


Abstract: David Hume, at his Works "An enquiry concerning human understanding" and "Treatise of human nature", argues that the rational thinking comes from the background that the human being experiences in his life. Any idea, as unique that it may appear, is a junction of different concepts extracted from the outside world. For this reason, Hume is considered an empiricist. The objective of this article is highlight this part of Hume's philosophy that come up with an explanation of the formation of the knowledge of each person (and is essential for the fully understanding of his work) and explain how his theory tear down the concept of free will.

Keywords: David Hume, empirism, knowlege theory, origin of ideas, free will.


Introdução
"Investigação acerca do entendimento humano" e "Tratado da natureza humana" foram obras desenvolvidas por David Hume durante o século XVIII na qual o filósofo discorre acerca da origem das ideias, construção do conhecimento humano, relações de causalidade, moralidade e até milagres.
Neste trabalho pretende-se explicar a teoria empirista de Hume tratada nas obras supracitadas acerca da origem das ideias e construção do conhecimento humano e expor as conclusões que o autor deste trabalho deduziu com base no trabalho do filósofo.


A origem das ideias
Para percorrer a filosofia humeana é necessário, primeiramente, entender que, para o filósofo, existem dois tipos de operações mentais chamadas por ele de "percepções do espírito". O primeiro tipo corresponde àquelas sensações que temos no momento que vivenciamos um fato. São chamadas por Hume de "impressões". Já o segundo acontece quando pensamos a respeito dessas impressões. Por esse motivo essas últimas percepções de espírito foram denominadas "pensamentos" ou "ideias". As ideias seriam uma cópia das impressões e jamais chegariam ao grau de intensidade, clareza ou vivacidade destas. Dessa maneira, as ideias correspondem às impressões, sendo o grau de intensidade da percepção a única diferença entre as duas. Nos termos de Jaimir Conte (2010), "toda percepção, portanto, é dupla: ela é sentida de maneira vívida como impressão e é pensada de maneira esmaecida como ideia".
Para exemplificar esse argumento suponhamos que um homem se lembre do seu aniversário de 12 anos. Por mais que essa memória corresponda, em sua natureza, à situação ocorrida, essa lembrança já possui cores e sons menos vivazes que no momento da ocorrência dos fatos lembrados. Isso é evidente na nossa vivência e comprova que as ideias são, na maioria dos casos, menos vivazes que as impressões. Apesar disso, pode ocorrer, em casos de doença mental ou em situações de delírio, de uma ideia ser tão intensa a ponto de parecer uma impressão ou, inversamente, de uma impressão ser desvanecida a ponto de parecer uma ideia. (TDH, 1, 1, 1, 1)
As percepções – ideias e impressões – podem ser classificadas, de acordo com Hume, em simples ou complexas. No primeiro caso, a percepção é indivisível, composta por apenas uma característica. Exemplos de percepções simples seriam uma cor, certa temperatura, um aroma. Já as percepções complexas exigem a união de diversas características para a sua formação. Por exemplo, para montar ou pensar em um carro amarelo deve-se utilizar um carro, a cor amarela e outras percepções simples. (TDH, 1, 1, 1, 2). Apesar da diferença de intensidade, uma ideia simples se assemelharia rigorosamente, em sua natureza, a uma impressão simples. (TDH, 1, 1, 1, 5). Diversamente, essa regra não seria válida, em todos os casos, para as percepções complexas. Ao pensar em uma cidade, dificilmente alguém seria capaz de pensar em todos os detalhes presentes nessa cidade. Além disso, há diversas ideias complexas que não possuem sua impressão correspondente na realidade. (TDH, 1, 1, 1, 4).
Sabendo que as impressões simples correspondem, em sua natureza, às ideias simples, é importante saber qual das duas surge em primeiro lugar. Pensando nos casos de indivíduos que possuem certa deficiência cognitiva de nascença e que não são capazes de formular ideias a respeito das impressões que nunca tiveram por conta dessa deficiência, é possível deduzir que para formar determinada ideia é necessária, primeiramente, a experimentação através dos sentidos para a formação de uma impressão a respeito dessa experiência e, somente posteriormente a isso, seria possível a formulação de uma ideia a acerca dessa vivência. (TDH, 1, 1, 1, 8 e 9). Esse é o princípio da anterioridade das impressões desenvolvido por Hume, e é por conta desse princípio que o filósofo é considerado um empirista, uma vez que implica que todas as ideias são oriundas, primordialmente, da vivência do indivíduo e, por isso, não podem ser inatas.
Vale salientar que Hume admite uma exceção ao princípio da anterioridade das impressões para o caso de tonalidades de cor e de sons. Seria possível uma pessoa imaginar uma tonalidade de azul, por exemplo, sem que nunca tenha visto tal tonalidade. Mas para o filósofo, isso é um fenômeno tão particular que não é suficiente para ameaçar refutar sua teoria. (TDH, 1, 1, 1, 10).

A evolução das ideias
Para entender como que as ideias evoluem na nossa mente, temos que mencionar a divisão, em duas categorias, que Hume fez das impressões de espírito: as impressões de sensação e de reflexão. As primeiras são semelhantes às já explicadas: são sentidas no momento que nossos sentidos captam uma sensação oriunda do mundo exterior. Quando formulamos uma ideia a respeito dessa impressão de sensação, outros sentimentos podem vir à tona, ou seja, impressões a respeito da ideia formulada e esse segundo tipo de impressão corresponderia às impressões de reflexões. Nota-se que esse procedimento pode ser seguido indefinidamente: formulamos uma impressão do mundo externo, em seguida pensamos a respeito dessa impressão o que formula uma ideia, a qual pode resultar em impressões a seu respeito, que podem gerar outras ideias e depois outras impressões e assim seguindo indeterminadamente. Esse raciocínio não refuta o empirismo de Hume, uma vez que mesmo sendo possível construir impressões a respeito de pensamentos (ideias) - oriundos do interior do indivíduo -, a primeira impressão que iniciou esse procedimento mental foi retirada do mundo exterior. (TDH, 1, 1, 2, 1).
Mas se as impressões vêm antes das ideias, como podemos formar na nossa mente ideias complexas que não existem no mundo observável, ou seja, sem a anterior impressão? A justificativa dada por Hume para isso é que as ideias complexas formadas em nossa mente são a junção de diversas ideias simples – sendo que todas estas são oriundas de impressões simples que sentimos anteriormente. (IEH, seção II). Dessa maneira, a mente humana consegue desenvolver uma quantidade ilimitada de ideias complexas mesmo que não existam no mundo gerando a impressão que a mente humana é livre para desenvolver qualquer ideia possível, mas Conte (2010) assevera que essa liberdade é apenas aparente, pois qualquer ideia complexa que formamos ou possamos vir a formar é ou será fundada em impressões.
Outra divisão feita por Hume é entre as ideias oriundas da memória e da imaginação. A memória seria a responsável por armazenar da maneira como a realidade foi apresentada a nós. Já a imaginação conseguiria associar diversas ideias, além de trocá-las de ordem cronológica e de localização. (TDH, 1, 1, 3).
Resta mencionar que há apenas três operações que associam ideias: a semelhança; a contiguidade; e a causalidade. (TDH, 1, 1, 4, 1). A primeira forma de associação é a mais simples, a mente humana passa entre ideias semelhantes com facilidade. A contiguidade acontece quando associamos ideias de objetos que estavam presentes no mesmo espaço ou em tempo semelhante ao da lembrança atual. Um exemplo disso seria lembrar-se da televisão que está sendo apoiada por uma mesa que está sendo imaginada. (TDH, 1, 1, 4, 2). A causalidade acontece quando uma primeira ideia ocasiona (causa) uma segunda ideia (efeito). (TDH, 1, 1, 4, 4).
Trabalharei um pouco mais profundamente a causalidade devido à sua importância para o comportamento humano. Suponhamos uma pessoa sem qualquer vivência em qualquer mundo que esteja segurando uma pedra e resolve soltá-la. Uma vez que essa pessoa não tem qualquer experiência, não é possível, para ela, saber que a pedra irá cair, já que é a primeira vez que ela faz essa atividade. Mas a partir da segunda vez que a pedra é largada, já é possível esperar que ela vá cair, uma vez que isso já foi observado. Depois de uma grande quantidade de vezes que esse fenômeno aconteceu, sem que outros resultados tenham sido obtidos, essa pessoa já possui convicção de que a pedra irá sempre cair quando largada de certa altura do chão. Apesar de nada impedir que outro resultado aconteça, há a formação de um hábito que possibilita o ser humano esperar, com confiança, determinados resultados quando diante de seus fenômenos causadores. O hábito seria, para Hume, fundamental para a sobrevivência do ser humano, pois sem ele seria impossível o ser humano adequar seus meios para alcançar seus objetivos. (IEH, seção V).
Hume fornece uma visão estatística para os fenômenos de causa e efeito e formação de hábito ao alegar que as nossas crenças a respeito do resultado de um fenômeno são mais fortemente tendentes àqueles resultados que foram observados pelo indivíduo um número maior de vezes. No momento que antecede um desencadeamento de eventos, nossa imaginação está alinhada ao resultado que sua experiência constatou um maior número de vezes, ou seja, que tem a maior probabilidade (ao menos para o indivíduo em questão) de acontecer. (IEH, seção V).
O livre-arbítrio
A teoria de Hume desenvolvida no decorrer deste trabalho pode suscitar várias questões. Uma das perguntas que pode ser feita é: uma vez que todas as nossas ideias são oriundas de experiências externas e sabendo que estas são impostas a nós durante a nossa vivência, seriamos mesmo os donos de nosso destino? Haveria realmente o livre-arbítrio?
Desde a fecundação do óvulo de nossas mães pelo espermatozoide de nossos pais, a carga genética de ambos foi imposta a nós, não tivemos a possibilidade de escolher quais genes deveríamos carregar para o resto de nossas vidas. Quando bebês e crianças a educação oriunda de nossos pais ou criadores foi, também, imposta a nós. Mesmo quando chegamos à idade adulta e achamos que temos a faculdade de escolher como se dará o nosso futuro, ao estudar a teoria empirista de Hume, descobrimos que isso pode não ser verdade.
Ora, se todas as nossas ideias são geradas de acordo com o que nós vivenciamos e todos os procedimentos mentais também são construídos de acordo com as experiências que temos, não havendo nenhum espaço para pensamentos ou conclusões inatas e rigorosamente subjetivas, concluímos que nós somos resultado do nosso passado, que por sua vez não podemos controlar. Pensando dessa maneira, não há como existir o livre-arbítrio. Podemos achar que controlamos os nossos pensamentos e as decisões que iremos tomar no presente ou no futuro, mas, uma vez que as nossas decisões são feitas de acordo com as experiências que tivemos no passado – do mesmo modo, a maneira como pensamos, nossos objetivos e paixões são construídos de acordo com estas –, não há espaço para pensar em livre-arbítrio. Nós somos como máquinas programadas de acordo com o que acontece no nosso exterior, o que vamos fazer no futuro já foi definido no passado.
Pensando dessa maneira, nenhum indivíduo é culpado do que é ou do que faz, este é o que é. Esse fato tem diversas implicações sociais, filosóficas, psicológicas e até teológicas – uma vez que não faz sentido em haver uma entidade julgadora de nossos atos que são determinísticos.
Caso a teoria empírica da origem do conhecimento humano seja, de fato, comprovada não havendo nenhum dos procedimentos mentais inato ao ser, não é possível dizer que os indivíduos possam percorrer o caminho que ele bem entender, pelo contrário, ele deve percorrer o caminho que lhe é imposto pelo mundo, pela sociedade, pelas leis da física, ou seja, por forças que estão fora de seu controle, não havendo, dessa maneira, livre-arbítrio algum nas decisões tomadas pelo ser humano.



Referências bibliográficas
CONTE, J. (2010). A natureza da filosofia de Hume. Princípios (UFRN. Impresso), v. 17, p. 211-236, 2010.

DANOWSKI, D. (1990). O lance de dados de David Hume. O que nos faz Pensar. Rio de Janeiro, n.2, p. 5-16,.

_______ David Hume, o começo e o fim. Kriterion (UFMG. Impresso), v. 124, p. 331-343, 2011.

HUME, D. (1748). Investigação acerca do entendimento humano. Anoar Aiex. Acrópolis. 2001.

_______ Tratado da natureza humana. Trad. Déborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 2ª edição, 2009.


Investigações acerca do Entendimento Humano, Seção II (Da origem das ideias). As citações no decorrer deste trabalho referem-se às seguintes edições: Investigações acerca do Entendimento Humano (IEH), tradução Anoar Aiex, grupo Acrópolis. Tratado da Natureza Humana (TDH), Tradução Déborah Danowski, editora Unesp, 2ª edição, São Paulo, 2009. Nesse último a formatação da citação se dará no seguinte formato: (TDH, "número do livro", "numero da parte", "número da seção", "número do parágrafo").
O fato de que atribuímos automaticamente uma determinada consequência diante de determinado acontecimento (logicamente quando estamos falando de acontecimentos cotidianos) apenas por termos observado um grande número de resultados semelhantes diante de tal acontecimento não prova que isso acontecerá em todos os casos. E isso é o argumento da interpretação cética de Hume: a experiência não é capaz de prever com 100% de certeza o futuro, ou seja, não há conhecimento verdadeiro.
Um fenômeno no qual não foi observado (e comprovado) nenhum caso diferente do habitualmente observado é considerado uma lei por Hume. Uma lei da natureza descreveria o funcionamento do universo. Uma transgressão das leis da natureza seria considerada um "milagre", no entanto, Hume não acredita que estes sejam possíveis.


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