REGIÕES, SIMBOLOGIAS E SABERES: DIÁLOGOS POSSÍVEIS PARA O

July 26, 2017 | Autor: Milene Galvão | Categoria: Cultural History
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REGIÕES, SIMBOLOGIAS E SABERES: DIÁLOGOS POSSÍVEIS PARA O EDUCAR NOS FAXINAIS

Milene Aparecida Padilha Galvão Mestranda – História e Regiões Universidade Estadual do Centro Oeste – UNICENTRO – Irati [email protected]

Resumo Falar de região certamente é um desafio. Principalmente para a área da história, que procura, nos dias atuais desmistificar o conceito de região e adentrá-lo para uma esfera social, cultural, política, simbólica, eximindo-se de analisar a região apenas enquanto dado materializado, findado, palpável exclusivamente. A região, conforme analisamos em textos de Bourdieu, Castoriadis, Certeau, Foucault, nos remete à novas adaptações de seus significados, sendo possível estudá-la em outras dimensões além das geógrafas. Partindo desta premissa, nosso enfoque é estabelecer de que modo a região se estabelece a âmbito do saber localizado na região dos faxinais, mais propriamente, como a região configura-se enquanto campo de saber nos faxinais a partir da polarização escola/tradição. Sabe-se que há nos faxinais uma região de saberes que é nato dos povos que habitam este sistema de uso comum das terras e também é de conhecimento de todos que a rede pública de ensino passa a fazer parte das áreas municipais rurais a partir da década de 1980, portanto há um momento em que estas regiões e campos de saber encontram-se criando assim novas possibilidades de diálogos, desta maneira, desencadeando novas relações, percepções e simbolismos. Palavras-Chave: saber, escola, faxinais, regiões, história.

Introdução Quando se trata de analisar o tema região, a âmbito da historiografia e todas as suas problemáticas no que tange à interpretação deste conceito, é de extrema importância que nos reportemos à análises que os geógrafos e antropólogos fazem a respeito do tema. A região, ainda corriqueiramente pensada como espaço geográfico, bastante pertinente em alguns teóricos a seu respeito, e aqui podemos citar exemplos como o de Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Marco Aurélio Silva, em suas obras A Invenção do Nordeste e outras artes e República em Migalhas, respectivamente, se 1

põe como um novo desafio a ser pensada epistemologicamente, porém, não hermeneuticamente, ou seja, não se trata aqui, do desafio de propor pensamentos e análises em torno da origem das ideias de região, mas ao contrário, tomar partido destas análises considerando novas propostas e novas metodologias, que abarquem situações na qual a região ultrapasse as fronteiras do espaço geográfico, palpável, que se manifesta também na cultura, no social, nos sentimentos, nas simbologias, nos significados e nos ritos de uma determinada sociedade. Porém, é necessário entender, que diante desse lema, estamos numa situação bastante paradoxal, afinal, tentamos estabelecer novas linas de análise e pertencimento da ideia de região. A região, tal como queremos conceber ainda se percebe enquanto recorte espacial, espaço de um povo, que o identifica, que o representa, conforme analisa Freitag (2007): (...) quando nos reportamos à idéia de região, muito embora haja uma tradição em privilegiar processos econômicos na construção de regiões, instantaneamente nos vem a cabeça a ideia de um território, um espaço delimitado politicamente. Um espaço jurídico-político com fronteiras delimitadas, como linhas limites, um espaço fim e início de outro. Enfim, fronteiras políticas que separam nações e sujeitos.

A região, desta forma, assume uma nuance material, estabelecida enquanto pedaço de terra, que se transforma na identidade de um povo, construção social, simbólica instituinte e instituída por uma cadeia de relações sociais e culturais estabelecidas entre tais culturas, nestes diálogos regionalistas. Entretanto, buscamos além. Buscamos entender a região, conforme já o temos dito, a partir do prisma simbólico, cultural, que ultrapassa os limites do materialismo terrestre. É de nosso interesse entendê-la como fruto de um processo de constituição de culturas, de simbolismos, que nos mostram outras facetas, pertinentes e carentes de novas análises, de novas interpretações, que deixam lacunas, resquícios, indícios de novas possibilidades de questionamento e problematizações. Diante destas análises, é plausível entender que podemos relacionar estas novas epistemologias historiográficas em torno do conceito de região com a cultura dos faxinais1 nos municípios de Irati, Rebouças e Rio Azul, região centro-sul do Paraná.

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Faxinal, tema bastante estudado na região Centro-Sul do Paraná, é definido pelo sistema de uso comum das terras, praticado em áreas rurais de vários municípios destas regiões por famílias que habitam as mesmas. Os primeiros estudos deste tema iniciam-se na década de 80, quando Man Yu Chang publica sua tese de doutorado sobre o uso do sistema de faxinais e posteriormente serviu de base para os estudos e análises de Maria Magdalena Nerone, em Terras de Plantar, Terras de Criar. Alguns autores ainda

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Trabalhar com a ideia de região de saberes nos faxinais, vem a partir de um projeto de pesquisa de mestrado intitulado: A história dos saberes na região das araucárias: escola, memória e ambiente. Trata-se da relação que se estabelece entre a história ensinada e a cultura faxinalense, no âmbito do ensino básico ofertado em escolas públicas na região de abrangência do sistema de faxinal, área circunscrita ao Estado do Paraná, abrangendo cerca de trinta municípios. Aí, encontra-se este modo de utilização das terras em comum, delimitada por cercado, para a criação de animais, que se tem classificado como manifestação cultural dos povos tradicionais. Esse espaço comunitário rural é dividido em duas áreas específicas: as terras de plantar e as terras de criar. O espaço em que se localizam as lavouras é separado da área de criar por meio de uma cerca geralmente edificada e reparada pelos moradores de faxinal. A área de criar, ou de compáscuo, é composta por matas e pastagens, contendo as habitações dos faxinalenses2 e, freqüentemente, a própria escola. Estima-se que, há dez anos, existiam cerca de cento e cinqüenta deles, mas podemos considerar o processo de desarticulação do sistema, cerca de uma dezena por ano, na última década. A pressão externa enfrentada pelos faxinalenses se traduz em forma de embate cultural e impacto ambiental vivido na região por conta da introdução de outras culturas e de outras formas de organização social e povoamento. Trata-se, por exemplo, do embate relativo ao acesso e ao uso dos recursos hídricos e agro florestais, ao desmatamento das nascentes, à contaminação das águas, à colocação de cercas no interior dos criadouros comuns, ao desmatamento e plantio de pinus ou erva-mate e à plantação extensiva de milho e soja. A área de ocorrência do sistema estende-se desde a região metropolitana de Curitiba até a região Centro-Sul e Sudoeste do Paraná. O desmantelamento do sistema da faxinal é um desafio para a educação rural no estado do Paraná.

Educar no faxinal: breve contextualização deram novas faces a este sistema, e aqui podemos citar Cecilian Lowën Sahr, José Adilçon Campigoto, Hélio Sochodolak, Valter Martins, os três últimos professores do Departamento de História de Irati na Universidade Estadual do Centro-Oeste, no livro Estudos em História Cultural na região sul do Brasil. Vale ressaltar que, mesmo sendo um sistema de uso comum das terras, os faxinais tem sido vistos como um sistema em desagregamento, o que podemos considerar um equívoco, levando em conta as políticas públicas e os mecanismos de preservação que a sociedade e as instâncias de defesa do meio ambiente têm efetivamente realizado. É plausível também afirmar que além do uso comum das terras, existem nos faxinais uma série de representações, simbologias e significações que os tornam modo de vida únicos e singulares, como rezas, festas, e outras práticas, como por exemplo, a Dança de São Gonçalo. Ver mais em: http://goesartigas.blogspot.com.br/ 2 Denominam-se faxinalenses, os moradores do sistema de faxinais.

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Na história da educação brasileira é tese quase unânime ter sido pouca atenção dispensada por parte do poder público à área rural. Na primeira metade do século XX, no entanto, passou-se ao debate de que um das consequências do modelo de ensino e de desenvolvimento social e econômico vigente plastificava-se na forma de êxodo rural. Alguma iniciativa de intervenção, visando modificar tal quadro, houve, mas somente em meados da década de 1990, aprovou-se a LDB nº 9394/96. Tal legislação, em seu artigo 28, apresenta algumas medidas de adequação da escola à área rural. Conforme a lei “Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;” No âmbito da região dos povos faxinalenses, tem se realizado ótimos trabalhos de pesquisa sobre a realidade sócio-geográfica desse povo tradicional. Destacamos, entre outros, o projeto nova cartografia dos povos faxinalenses, o cadastro sobre os faxinais da EMATER e a Cartilha do segundo encontro estadual dos faxinalenses. Mas, salvo engano, nenhuma investigação sobre as reais necessidades e interesses dos alunos moradores de faxinais foi realizado até o presente. Pode-se dizer que se faz necessária a realização de estudos específicos baseados em dados estatísticos e observacionais sobre as escolas que atendem alunos moradores de faxinais para dar visibilidade às necessidades e interesses dessa parcela do alunado estadual. As comunidades faxinalenses3 são conhecidas pelo uso sustentável do meio ambiente e por uma característica bastante peculiar presente em sua cultura que é o uso comum da terra. Cabe ressaltar que, embora se fale muito em faxinal e faxinalense, 3

As primeiras discussões a respeito do sistema de faxinais é dos anos de 1988, com Man Yu Chang, que se debruça a entender os faxinais como resultado de um processo de solução dos problemas agrários oriundos a partir das revoluções do Contestato como a agregação de pessoas nas terras dos grandes proprietários. Chang também ressalta que os criadouros comuns também serviram como uma maneira de solucionar o problema de mão de obra, que na época era escasso e pouco organizado. Ainda em diálogo com Chang, aparece Maria Magdalena Nerone, que escreve Terras de Plantar e Terras de criar, e mostra de uma maneira bastante nova, o que significa o termo faxinal, assinalando que além de ser uma reorganização do espaço territorial advindo a partir de tais revoluções, também era um modo de organização presente entre os jesuítas, do período Colonial. Um fator que nos interessa aqui, é que podemos definir como faxinal, um sistema de convívio no qual as pessoas que dele fazem parte realizam o uso comum das terras, possuem um conjunto de práticas religiosas e comunitárias singulares, tais como as recomendações de quaresmas, as festas de mascres, os puxirões ou mutirões, além de fazerem uso sustentável do meio ambiente. Os faxinais e os faxinalenses passam a ser reconhecidos enquanto tal a partir da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, em seu artigo 14, a Constituição Federal, em seus artigos 215 e 216, bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 17. A partir de 2005, com o Primeiro Encontro dos Povos Faxinalenses, surge a então Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses – APF, que dá início à mobilização em prol da luta, valorização e reconhecimento destas comunidades, reconhecidos, portanto, enquanto Povos Tradicionais.

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ambos conceitos precisam ser vistos em sua singularidade. Não é possível generalizar práticas, costumes e simbologias a todos os faxinais, da mesma maneira que não é pertinente colocar os moradores dos faxinais, conhecidos como faxinalenses dentro de um mesmo contexto, afinal possuem práticas e representações bastante únicas. Cabe ressaltar que os faxinalenses são pessoas simples, pacatas, que moram normalmente em lugares de difícil acesso, porém, nos últimos dez anos, têm se mobilizado em prol de seus direitos, da valorização de sua cultura, de suas práticas e representações, de sua identidade e não apenas isso, lutam e buscam também a preservação de suas áreas de morada, desde as mananciais dos rios até os pinheirais mais antigos. Diante destes apontamentos, é possível problematizar um fator bastante presente nas comunidades faxinalenses dos municípios analisados: o saber. Entendendo que nos debruçamos sobre um tema bastante novo da historiografia, que é o conceito de região, podemos percebê-lo de modo bastante nítido no que tange às regiões de saberes nos faxinais. Dentro da área dos faxinais, espaço geográfico propriamente dito, existem regiões de saberes, formados e consolidados pelos moradores deste sistema de convívio, os faxinalenses, regiões estas que não se configuram num espaço dado, materializado, mas que se legitimam a partir das práticas faxinalenses, a partir das memórias repassadas a partir dos contos, das rodas de conversa e até mesmo do chimarrão no fim da tarde. Esta região de saberes se constitui enquanto tal a partir da rede de simbologias estabelecidas pelos próprios moradores e, o saber tradicional é aquele que prevalece diante desta cultura. Não podemos deixar de lado as contribuições que nos dá Pierre Bourdieu, ao escrever A Economia das Trocas Simbólicas, afinal, esta existência de saberes no interior do sistema de faxinais, repassado entre seus próprios moradores só é possível a partir de um acúmulo de bens simbólicos, que pertencem única e exclusivamente àqueles que partilham dos mesmos saberes dentro destas comunidades. O autor, ao falar do mercado de bens simbólicos, nos mostra que houve no que tange à história da vida intelectual das cidades europeias, uma transformação, a partir do momento em que progressivamente estes campos conquistaram sua autonomização. Da mesma maneira, ocorre com estes faxinais. O campo do saber faxinalense, a região de saberes, estabelecida esporadicamente nestas culturas, é produto de uma autonomização das

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práticas que engendram as relações de saber, que podem ser entendidas aqui, pelo processo de educação dos próprios faxinalenses. Aquilo que se repassa, isto é, o conhecimento, engendrado nos faxinalenses a partir de uma relação de herança tradicional, é capital simbólico. E o mais interessante é notar que este capital, diariamente é levado a diante, pelas histórias, narrativas e também pelas memórias dos próprios faxinalenses, que fazem das lembranças uma ponte para legitimar o seu saber. Este capital cultural e simbólico, que se mostra ativo nos faxinais e mais, nas narrativas e retóricas faxinalenses, transmite um conhecimento próprio, singular, único. É a partir dele que se busca a perpetuação dos modos de cultivo, das mitologias faxinalenses, das festas de santos, das Romarias de São Gonçalo, das Mesadas de Anjo, das simpatias, dos benzimentos, das rezas e orações, do uso sustentável da natureza, das águas. O saber faxinalense, legitimado em suas narrativas, histórias, mitologias, superstições, práticas, significações e representações, a partir das festas, danças, rezas, orações, puxirões, a partir de um dado momento, no entanto, entra em contato com outro campo do saber, o saber formal, das instituições de ensino: as escolas. O processo de análise e interpretação do sistema faxinal está um pouco mais adiante no que tange ás pesquisas e escritos a seu respeito. Já não é tratado apenas como um simples modo de uso comum das terras, no qual as terras de plantar e de criar são distintas, divididas por cercas. É mais do que isso. O faxinal faz parte de um sistema, de um modo cultural, é um fato histórico, um acontecimento, um objeto de estudo da história que vem perpassando pesquisas e engendrando novas perspectivas e paradigmas. O saber faxinalense, legitimado em suas narrativas, histórias, mitologias, superstições, práticas, significações e representações, a partir das festas, danças, rezas, orações, puxirões, a partir de um dado momento, no entanto, entra em contato com outro campo do saber, o saber formal, das instituições de ensino: as escolas. Enfrentamos portanto, uma nova problemática, condizente à educação faxinalense. O processo educacional tem passado por uma crise tanto material – com a falta de estrutura física nas escolas, carteiras, espaço adequado, material didático, etc. – quanto profissional, com a falta de profissionais capacitados para atender à demanda da realidade das crianças e jovens.

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A partir da década de 1980, as escolas já começam a fazer parte das regiões dos faxinais, e desta maneira, é levado aos alunos, crianças e jovens, o conhecimento que deve ser por eles apreendido de maneira formalizada, conforme os parâmetros que precedias e previam as leis, principalmente as Leis de Diretrizes e Bases - LDB’s e os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN’s. A escola surge como instituição de pensamento, valores, crenças e novos hábitos, que configuram-se neste encontro entre o saber informal, dos faxinalenses e o saber formal, da escola. O processo educacional depara-se diante de uma crise, na qual os profissionais da educação atravessam a cada dia novas barreiras, que na maioria das vezes impedem o conhecimento de chegar aos alunos da maneira mais eficaz e inovada. Os professores se veem diante da necessidade de trabalhar com os poucos recursos destinados pelo governo, buscando aperfeiçoar sua prática, mesmo diante destes obstáculos: O professor vive numa posição estratégica e ambígua na sociedade. Suas funções tornam-se cada vez mais complexas. Vive e exercita, ao mesmo tempo, a luta pela profissionalização e a permanente ameaça de proletarização e desvalorização social. Além disso, a passagem de um sistema de educação de elite, baseado na seleção, na competência e exclusão, para um sistema flexível e integrador, que busca a equidade e a inclusão, trouxeram enormes desafios para todos nós, responsáveis pela educação. (FONSECA, 2003, p.100).

A relação professor-aluno também é algo que está em constante construção. O saber já não é mais algo cristalizado, mas ao contrário, vai se modelando, se refazendo com o passar dos anos e a prática, assim como a teoria também muda: Essa relação professor-aluno implica pensar o conhecimento, sobretudo o conhecimento escolar como algo em permanente estado de reconstrução. Não mais como um dado, um fato cristalizado, verdade absoluta, imutável. O conhecimento produzido e acumulado, historicamente, é apropriado, reproduzido e transformado pela sociedade de diversas maneiras, em diferentes níveis e contextos sociais. A escola, como vimos anteriormente, não apenas reproduz o conhecimento tal como foi produzido em outros espaços (na universidade, por exemplo), mas se apropria dele e o transforma, produzindo um novo conhecimento. Assim, os novos papéis de professores e alunos pressupõem um relacionamento ativo e crítico com os saberes produzidos em diferentes realidades, o que potencializa o desenvolvimento de educandos e professores. (FONSECA, 2003, p. 105).

Desta maneira, é preciso entender a educação do faxinal não como uma educação rústica, mas como uma educação que deve ser feita com sensibilidade, atentada às características bastante peculiares de um sistema que tem resistido à todo tipo de desvalorização. Todos estes aspectos aos quais estamos nos referindo dizem respeito à realidade de uma escola de rede pública, em se tratando de assuntos tradicionais, 7

matérias da grade curricular de ensino. Porém, quando levamos esta questão a um nível mais específico, notamos que estas dificuldades ultrapassam as barreiras do material e do profissional: ela torna-se uma barreira epistemológica.

Memórias: as regiões simbólicas dos saberes Existe uma necessidade de caminhar em conjunto não apenas com os elementos que nos respaldam as leis da educação básica, mas também com as memórias que resgatam estas práticas e que as permitem sobreviver em meio ao avanço do capitalismo. Estas memórias, coletivas e individuais trazem a simbologia do vivido, do passado, de práticas, atitudes e situações que podem ser reavivadas no presente: Se a memória é “geradora” de identidade, no sentido que participa de sua construção, esta identidade, por outro lado, molda predisposições que vão levar os indivíduos a incorporar certos aspectos particulares do passado, a fazer escolhas memoriais, como as de Proust na Busca do tempo perdido, que depenem da representação que ele faz de sua própria identidade, construída no “interior de uma lembrança” (CANDAU, 2011, p. 19).

Além do que nos mostra Halbwachs, a memória faz parte de um conjunto de vivências e saberes, é fator de construção de uma identidade, que permite a um grupo se constituir e dar continuidade ao seu processo de existência: A memória é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade. Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e seleção do que é importante para o sentimento da unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudadas por meio de entrevistas de História oral. As disputas em torno das memórias que prevalecerão em um grupo, uma comunidade, ou até em uma nação, são importantes para se compreender este mesmo grupo, ou a sociedade como um todo. (PINSKY, 2008, p. 167).

Esta memória, como espaço simbólico do vivido também ajuda a entender a identidade dos faxinalenses e de que maneira eles a utilizam na educação das crianças e jovens que moram nos faxinais, lhes repassando costumes, práticas e crenças a fim de valorizar sua cultura tradicional e fazer vigorar o sistema faxinal: O narrador parece colocar em ordem e tornar coerentes os acontecimentos de sua vida que julga significativos no momento mesmo da narrativa: restituições, ajustes, invenções, modificações, simplificações, “sublimações”, esquematizações, esquecimentos, censuras, resistências, não ditos, recusas, vidas sonhadas, ancoragens, interpretações e reinterpretações constituem a trama deste ato de memória que é sempre uma excelente ilustração das estratégias identitárias que operam em toda a narrativa. (CANDAU, 2011, p. 71).

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Entendendo o que nos mostra Candau, é possível estabelecer mais do que o fator identitário presente na memória, existe por detrás desta trama uma rede de simbologias, interpretações que fazem com que estas memórias sejam uma espécie de herança daquilo que representa o tempo passado. As memórias além de identificarem os faxinalenses, os fazem entender-se como portadores de uma cultura diferente, singular, única, partilhadores de um modo de vida bastante peculiar e são elas que permitem a estes faxinalenses repassar aos jovens e às crianças uma noção de educação faxinalense, um viver nos faxinais. Estamos, portanto, diante de uma teia de relações que implicam numa reconstrução da educação faxinalense e que constroem novos saberes, aliando o saber tradicional ao saber formal, de maneira que eles não se enfrentem, mas ao contrário, que possam complementar-se e incentivar um ao outro. Desta maneira, temos três pontos que merecem destaque neste entendimento: a história destes saberes, de um lado o saber informal e tradicional dos faxinalenses, as memórias de sua educação, de sua identidade e de suas simbologias inerentes ao sistema no qual vivem e de outro a chegada do saber formal, legitimado pelas escolas e repassado aos alunos através dos professores. Estes três pontos culminam na necessidade de estudar estas relações e entender as simbologias existentes neste entrelaçamento de saberes e nesta vivência do tradicional com o formal. Daí a necessidade em se trabalhar com um conjunto de autores que auxiliarão na análise dos conceitos de simbologias, identidade, representação, práticas culturais, e mesmo a própria educação. Castoriadis e seus estudos sobre a instituição imaginária da sociedade nos fornece as bases para que entendamos de que maneira esta região de saberes se institui e de que forma ela passa a fazer parte da educação nos faxinais, instituindo saberes e engendrando novas práticas. A partir de Bourdieu, e suas análises sobre o simbólico, conforme já vínhamos analisando, é possível entendermos estas relações e regiões simbólicas de saber, que se configuram diante desta teia de relações encadeadas a partir do estabelecimento da escola nos faxinais. E mais para além, é preciso entender estes faxinais como a soma de todo este campo dos saber que tem se instaurado e estabelecido na região das araucárias, a fim de compreender também as relações de

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poder que se vinculam aí, a partir deste próprio saber, configurando discuos e novas verdades, passíveis de análise, num novo leque de possibilidades de pesquisa.

Referências: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011. CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História: experiências, reflexões e aprendizados. Campinas – São Paulo : Papirus, 2003. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. PINSKI, Carla Bassanezi (org). In: Histórias dentro da História. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2010. CHANG, M.Y. Sistema Faxinal - uma forma de organização camponesa em desagregação no Centro Sul do Paraná. Dissertação de mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 1985. NERONE, Maria M. Terras de plantar, terras de criar – Sistema Faxinal: Rebouças – 1950-1997. Assis, 2000. 286 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual Paulista

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