registro, nada, banal: fotografia e cotidiano

June 9, 2017 | Autor: Cláudia França | Categoria: Fotografía, Antropología De Lo Cotidiano
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registro, nada, banal: fotografia e cotidiano1 Cláudia Maria França da Silva Grupo de Pesquisa Estratégias Expositivas do Desenho em Arte Contemporânea – UNICAMP Universidade Federal de Uberlândia (UFU) RESUMO Esta proposta textual busca fornecer reflexões acerca do cotidiano, aqui entendido como o tecido formado pelo sujeito, suas práticas costumeiras e o lugar onde essas práticas se dão. O cotidiano é consubstanciado por ações repetitivas, hábitos, lugares-comuns e ausências. Dentre esse vasto universo, destaca-se aqui a prática fotográfica, em meio a percursos pela cidade ou no interior do espaço doméstico. Entre tantas reiterações e objetos que constituem a vida diária, o que se erige à percepção do artista? Essas considerações se dão para apresentar as propostas de Glayson Arcanjo e Andrea Nestrea. Eles nos mostram e discutem proposições e experimentações de cunho artístico que problematizam o ato de escolha de um objeto (em sua ampla acepção), a ser capturado pela lente e transformado em imagem. Palavras-chave: cotidiano, autorrepresentação, prática fotográfica. ABSTRACT This text aims to give thoughts about everyday life, which is simply understood as a kind of a thread, made by a person, his usual practices and customs, as well as the places where these practices happen. Daily life is formed by repetitive actions, habits, common-places and absences. Within a huge number of practices, photographic practice is detached; it’s been practiced during someone’s walking in the city or in a household works. And with a lot of objects and repeated operations that constitute our daily life, what would arrive to the artist’s perception? These considerations are for presenting Glayson Arcanjo and Andrea Nestrea purposes. They show us artistic experiments that question the complex choice of a subject or an object, for being a theme of a photographic image. Keywords: everyday life, self-representation, photographic practice.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS A proposta deste texto é relevar atividades aparentemente simples do cotidiano. Cotidiano é aqui entendido como tecido formado pelo sujeito, suas práticas costumeiras e o lugar onde essas práticas ocorrem. Consubstancia-se por ações repetitivas, hábitos, lugares-comuns e ausências, passíveis de ser percebidas pelo artista, que então propõe ações poéticas a partir e com elas. Dentre esse vasto universo, destaca-se aqui a prática fotográfica, em meio a percursos pela cidade ou no interior do espaço doméstico. Apresento reflexões que podem alicerçar os olhares/pensamentos de Glayson Arcanjo e Andrea Nestrea. Eles elegem ações simples, comuns, até mesmo banais; os artistas 1

SILVA, Cláudia Maria França. “Registro, nada, banal: fotografia e cotidiano”. In: Textos Completos do III Seminário do Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem. Uberlândia: UFU, 2015. Anais eletrônicos. Disponível em: http://www.poeticasdaimagem.blogspot.com.br

põem de lado essa adjetivação negativa do banal e passam a dar-lhe relevo na vivência diária; trabalham por meio de dispositivos de registro como mediadores da relação eumundo, tais como o desenho, a fotografia e o vídeo, que por todo o tempo nos jogam para a presentidade do tempo. Em meio a tantas reiterações que constituem a vida diária, o que se erige à percepção do artista? Como a fotografia poderia dirigir-se ao sujeito-artista e seu cotidiano? Glayson Arcanjo narra trechos de uma experiência pessoal realizada em 2014, na residência artística Phosphorus, centro de São Paulo. Já Andrea Nestrea apresenta-nos o vídeo “Caixa de sapato”, autoria do coletivo Cia da Foto. Trata-se da composição de imagens fílmicas e fotográficas tomadas do e pelo grupo, na ocasião em que todos estão reunidos no mesmo espaço físico. Considero Andrea e Glayson como personagens que representam uma trama diária travada entre o tudo, o nada e o quase, entre os excessos e a economia de registros, entre a câmera fotográfica pensada como objeto que está entre os corpos e que quer se fazer corpo também. Mas gostaria de apresentar um terceiro personagem para fotografar com eles. Trata-se de Antonino Paraggi, personagem de um conto de Italo Calvino, chamado “A aventura de um fotógrafo”. Antonino Paraggi é um funcionário solteiro de temperamento inquiridor, que vive um duplo isolamento. Não seduzido pelo casamento e tampouco pela prática fotográfica, Antonino quer compreender, por meio de costumes de seus amigos que constituíram família, qual a estranha relação que a fotografia estabelece com a passagem do tempo e a experiência da paternidade. Ele pensa: Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotografá-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necessário fotografá-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos dos pais um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como o lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável. (CALVINO, 1992, p.53)

Mas por uma espécie de “feliz coincidência” Antonino converte-se em fotógrafo por acidente. Amigos o solicitam para fotografar instantes de um passeio na praia, onde se encontravam duas garotas, uma das quais é Bice – elas lhe pedem que fotografe suas brincadeiras com uma bola à beira da água. Antonino se interessa pela experiência. Dias depois, após uma singular sessão de fotos tiradas de Bice, já em um estúdio improvisado, Antonino percebe-se apaixonado por ela, ao observar o conjunto de

imagens resultantes daquela sessão. Obcecado pela garota, fotografa-a incessantemente: dormindo, despertando, voltando a dormir, “Bice surgia de todos os fotogramas, como na retícula de uma colméia surgem milhares de abelhas que são sempre a mesma abelha” (Ibid, p.62). A intenção de Antonino não era vigiá-la, mas obter uma Bice “invisível” no seio de um excesso de presença do amante e sua câmera. Não suportando essa pressão, a garota o deixa e sua invisibilidade passa a ser palpável. É quando ele se pega fotografando a ausência de Bice: “disparando compulsivamente com o olhar no vazio”, um dia Antonino “se fixou num canto do quarto totalmente vazio, com um tubo de calefação e mais nada” (Ibid, p.62-3). COTIDIANO Um entendimento inicial de cotidiano nos conecta ao exercício dos hábitos e usos do dia-a-dia ou práticas que ocorrem repetida e continuamente, mas em intervalos diversos. Michel de Certeau nos coloca que o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (...), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. (CERTEAU, 2003, p.31)

Sua definição de cotidiano é calçada com sapatos de chumbo. Sem espaços para a surpresa, exaurimos na repetição excessiva qualquer olhar de soslaio para o estranhamento. No entanto, nossas ações, desde que acordamos até a hora de dormir, são revestidas de um tecido paradoxal formado pela atenção e pela desatenção ao tempo, simultaneamente. Viver o dia pode ser conjugar uma agenda mental com uma agenda física. Na agenda mental são listadas atividades completamente incorporadas ao tempo diário, necessidades fisiológicas e comportamentais, bem como aquelas realizadas mecanicamente, quase sem pensar. A equipe de Michel de Certeau, nos dois volumes de “A invenção do cotidiano”, mapeia operações cotidianas, sujeitas à análise de um olhar antropológico: dizer, andar, escrever, ler, crer, morar e comer. Em condições normais de vida, nós não necessitamos de uma prática mnemônica contundente acerca destas atividades que compõem nossa agenda mental. Mas há também a agenda física: nela são acrescentadas e marcadas atividades com outra frequência: reuniões, consultas médicas, lembretes de um aniversário, o dia do gás e a sessão de cinema, entre inúmeros outros dados anotados.

A trama dessas duas agendas me faz pensar em como o artista as coloca em ação, ou mesmo se haveria outras operações que consubstanciariam o cotidiano de um artista. Para o caso desta mesa-redonda, o ato de produzir registros nada banais coloca-se como operação cotidiana, mas que corre o risco de ser nada ou relevar o nada como a nata cotidiana. Acrescento, no caso das opções de produzir registros por meio da fotografia e do vídeo, a problemática de fornecer imagens a uma sociedade que naturalizou o ato de produzi-las e de ser transformada em imagens. Desse modo, trata-se de produzir registros nada banais como desafio de superação cotidiana. Então a questão é como pensar o agenciamento dessas agendas, para um artista. Então a questão é como uma antropologia cultural e uma história das mentalidades podem abrir espaço, no caso do fazer artístico, para uma antropologia das imagens que reconheça os procedimentos ligados ao ato de fotografar como proposições/disposições/exposições do cotidiano em fragmentos de tempo. Desse modo, nas brechas das operações cotidianas listadas por Michel de Certeau, abrigamse operações de registro, como fotografar, filmar e desenhar. E a agenda física, esse objeto encadernado e datado página a página, pode ser substituído por outros suportes, como o caderno de notas ou um gadget, que registram não somente o que devemos fazer durante o dia, mas o modo como descalçamos os cotidianos sapatos de chumbo, lembrando a definição de Michel de Certeau para o cotidiano. As agendas mental e física operam nossa memória e são operadas por ela; deixar de fazer algo, deliberadamente ou não, é imediatamente vinculado ao esquecimento. Acolhido ou não, o esquecimento abre uma fenda na espessura de um viver que se pretende organizado. Podemos fazer uma analogia dos espaços vazios nas agendas mental + física com as lacunas que Certeau percebe como “dispositivos simbólicos” que reorganizam os discursos totalitários sobre a cidade. O autor usa a expressão “encantamento no abandono” (2001, p.194) para dizer poeticamente de um modo de viver a cidade, “abrindo clareiras”, localizando vazios que possam “eliminar as autoridades locais, porque comprometem a univocidade do sistema” (CERTEAU, 2001, p.186). Antonino Paraggi abriu uma clareira em sua rotina. Passou de uma situação de iconoclasta para ser o sonoplasta do ritmo de respiração de Bice, ou seja: o clique da máquina no mesmo compasso da respiração da amada elaborou uma música sem silêncios. No desejo de construir uma Bice invisível, sufocou-a pelo excesso imagético, presencial e sonoro. Isto, por sua vez, impeliu a abertura da clareira pelo Outro, o que instaura a fotografia da ausência. E essa ausência a ser fotografada se dá porque Antonino elege fotografar objetos relativamente imóveis: o canto do quarto e o tubo de calefação.

Outro tecido paradoxal que reveste a vida diária é o ver e não-ver os objetos circundantes. Conjugar agendas mentais e físicas é organizar diversas imagens mentais das ações a serem feitas, como se nosso cotidiano fosse um grande plano, mesa de trabalho sobre a qual diversas práticas são dispostas, encaixadas ou mesmo sobrepostas umas às outras. Para Certeau a percepção dos lugares na cidade não se dá pela justaposição, mas adquire a forma de “estratos imbricados”, palimpsesto em que “inúmeros elementos [são] exibidos sobre a mesma superfície; oferecem-se à análise; formam uma superfície tratável” (CERTEAU, 2001, p.309). Tratamos, pois, o cotidiano, como exercício de colagem de heterogêneos; cada elemento tem sua potência e função naquele plano-mesa; de algum modo, cada elemento é visto. No entanto, se detalharmos todas as atividades que realizamos em um só dia, uma população de ações é levantada e nessa multiplicidade de atos reiterativos, corre-se o risco de algo passar despercebido, de esquecermos um fragmento de papel sobre a mesa. O mesmo se passa com os objetos que portamos e usamos. ALGUÉM E NINGUÉM Assim como construímos uma imagem das práticas diversas, dispostas sobre uma mesa diariamente arranjada, e que nessa diversidade de práticas, usos e costumes, ocorre o paradoxo do ser-percebido e do não-ser-percebido, estamos todos, como sujeitos, à mercê desse pêndulo. Mesmo tendo um nome específico, somos confundidos com outra pessoa, somos lembrados e esquecidos. Em todas essas circunstâncias, somos sempre o Outro; essa alteridade reside antes de tudo, no ato contínuo de nos estranharmos quando nos posicionamos como seres singulares ou como seres ordinários, anônimos, ou ainda, como “ninguém”. Máscaras e poses são estratégias de construção de imagens que podem nos inserir em um determinado grupo social. O antropólogo Erving Goffman interessa-se pelas representações que construímos na vida cotidiana, fazendo analogias entre nossos modos de ação com as dos atores. No entanto, não temos total consciência de muitas dessas representações que adotamos. Por meio dos elementos com que se constrói a teatralidade - o ator, o personagem, o palco e a plateia - Goffman percebe que a vida cotidiana é similar a essa construção. A chegada de alguém a um lugar em que outros já se encontram é o ponto de partida para uma série de especulações: qual sua situação sócio-econômica, a confiança que ele merece, a averiguação de estereótipos que possam gerar dados “a respeito do indivíduo [os quais servem] para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele

esperará deles e o que dele podem esperar” (GOFFMAN, 1975, p.11). Os outros podem ainda “confiar no que o indivíduo diz de si mesmo ou em provas documentadas que exibe, referentes a quem é e ao que é.” (Ibidem). Goffman explica-nos que o indivíduo tem a necessidade de se expressar e que o faz de dois modos aparentemente distintos e imbricados entre si: a expressão pela transmissão e pela emissão. A transmissão ocorre por meio de símbolos e vinculações diretas ao ato de se comunicar. Já na emissão, ocorrem diversas ações mais próprias do ator; podemos dizer que a emissão cuida da performatividade do indivíduo em um dado espaço. Confrontado a um grupo ou mesmo em relação harmônica com ele, o indivíduo se conduzirá por meio de representações, as quais vão regulando a maneira como os outros o tratam e também “expressando-se de tal modo que dê aos outros a espécie de impressão que os levará a agir voluntariamente de acordo com o plano que havia formulado”. (Ibid, p.13) Podemos, de certo modo, introduzir Henri-Pierre Jeudy nessa discussão por meio de sua abordagem de como a corporeidade contemporânea tornou-se adaptável para ser percebida e conformada a princípios estéticos e o quanto isso altera a autoconsciência corporal. Ele escreve: Comumente, ‘sentir o Outro’ sem ter necessidade de falar é conceder um poder semântico à representação corporal, legitimando-o por estereótipos de comportamento. É, aliás, muito irritante no dia-a-dia vermos que nos atribuem sentimentos que não experimentamos, como se os sinais exibidos por nosso corpo esboçassem para os olhos do Outro uma progressão do sentido que não nos convém. (JEUDY, 2002, p.43)

Atento à inflação de imagens do “eu”, Jeudy detém-se em nossa relação diária com o espelho e com outros corpos, com os quais mantemos “relações especulares”, um jogo complexo entre o visível e o invisível, entre o enquadramento, a pose, o desejo de ser modelo e as imagens do corpo como “alucinações”. Jeudy aponta que a prática fotográfica objetualiza a existência do fotografado, fixando-a na sucessão temporal. Há um constante jogo de representações entre o Outro que me olha – me olha enquadrando no espaço – e a reciprocidade dessa ação. Nosso comportamento diante do espelho, mesmo que esse produza imagens efêmeras, é igualmente estetizante, pois o espelho é uma modalidade singular de tela. A constituição do retrato fotográfico parece dizer mais do que seu corpo real, físico; é seu documento de autenticação, cuja prática intensiva pode revelar que o que realmente importa “é o jogo de captação do corpo do outro pelo visor” (JEUDY, 2002, p.48). O tornar-se objeto de um retrato está ainda vinculado a um ato simbólico de distinção. A práxis é uma estratégia de diferenciação social, posta como desejo

possível a todos, na medida da popularização de equipamentos de produção de imagens e de mecanismos de distribuição das imagens captadas. O autorretrato e o retrato fotográfico nunca estiveram tão disseminados, tão inseridos como práticas intensas em outros segmentos para além da “classe artística”. Uma breve visita a redes sociais, outras tipologias da internet, materiais impressos e estabelecimentos de fotografia para documentos nos revela a importância do culto à autoimagem. Desse modo, a prática autorrepresentacional vídeo e fotográfica encontra-se inserida em uma dinâmica pendular, ora tendente à banalização (como direito), ora tendente à diferenciação (como desejo). OLHARES Talvez no afã de realizar a vida diária, nos esqueçamos da máquina fotográfica, por exemplo. No afã de produzir imagens, a transformamos em um corpo transparente: tal como uma janela de vidro, olhamos através dela e não para ela. Quando Glayson Arcanjo se põe a olhar seu entorno no centro de São Paulo, ele olha para o objeto, buscando dotá-lo de corporeidade e passível de traduzir movimentos de seu próprio corpo. A câmera pode revelar seu estranhamento na cidade, em vistas aéreas tiradas de dentro do edifício-residência, olhando a paisagem urbana. Podemos pensar na câmera como o próprio olho do edifício. Trata-se então de um olhar que vibra, estático, escondido na distância entre as coisas, vendo os monumentos como miniaturas (pelo distanciamento e pelo ponto de vista superior). Um olho de dupla pestana, pois à máquina une-se a janela em vigília. E se a câmera+janela transformam-se no olho do edifício, este pode emprestar altura e armadura ao corpo do sujeito-fotógrafo. O dispositivo olho-fotográfico pode ajustar-se também aos trajetos a pé no deslocamento diário casa-ateliê, em que a percepção espacial é mais háptica; nesse caminhar-que-olha-e-registra, uma abertura maior para posicionamentos da câmera (inclinações, eventuais desfocamentos) que possam performar o ato de caminhar ou passar-se pelo próprio corpo do artista em sinestesia. Como ele mesmo se indaga: “como conseguir organizar as informações vistas na paisagem, de modo que a imagem gerada pela câmera fotográfica pudesse transmitir ‘minha experiência de estar ali, incorporando a cena diante de mim?’” Parece-me que a resposta passa pela inversão topológica do sujeito e do objeto, na fabulação de que a máquina fotográfica possa ser um corpo que olha, pensa e caminha, tomando o corpo do outro como prótese.

E pensando nas agendas configurando uma mesa de trabalho, transformando o dia em um “lugar” ou receptáculo de fatos, temos o caro diário transformado em caixa de sapato, no caso da apresentação de Andrea Nestrea. A caixa de sapato, que nomeia o trabalho da Cia da Foto, é um lugar de reunião de fragmentos temporais. O nome do trabalho evoca a força de um referente besta, até banal, aquele estorvo que trazemos para casa quando compramos um sapato e que logo é abandonado pelo calçado, na medida de seu uso. A caixa de sapato é aquele paralelepípedo incômodo que não cabe dentro de nossas bolsas. Ele denuncia sua presença enquanto andamos pela cidade, mesmo que camuflado na embalagem da sacola de grife ou não. Logo que abandonada pelo sapato, a caixa continua a ser nomeada de “caixa de sapato”, mesmo que passe a cumprir outra função. Ironicamente, a caixa de sapato que guarda outra coisa denuncia literalmente em sua volumetria a célebre expressão: “isso foi”. No entanto, diferentemente do cotidiano espalhado sobre uma mesa de trabalho, a caixa de sapato é um muro de contenção documental. Fazer o vídeo é reorganizar narrativas compossíveis, vislumbradas e fabuladas no momento em que abrimos a caixa e percebemos o entulhamento de tempo-presente recolhido. Fornecer ao título do trabalho a coisidade da “caixa” desloca o interesse para o objeto prosaico e sua função recipiente. Olhamos muito mais para o conteúdo das imagens e seu potencial memorialista do que para a autoria daquelas fotografias. Desse modo, o ser-caixa-de-sapato funcionaria como espécie de anteparo que suspende a classificação daqueles documentos com os quais se elabora o vídeo: circulam entre o retrato e o autorretrato, entre a dignificação da pose e a instantaneidade, o relato etnográfico e o não saber de si sendo visto pelo outro; colocam-se ainda entre representações do trabalho e do descanso e a publicização da intimidade. Se o grupo Cia da Foto retira insumo de vivências cotidianas do interior doméstico, lugar onde supostamente podemos ser “nós” mesmos, essa condição não abole o ato da representação de si diante do outro, conforme Goffmann. Podemos pensar que os amigos performam gestos, dizeres e modos de ocupação espacial. A presença contínua da(s) câmera(s) fotográfica e videográfica são reforços dessas enunciações, mas são ainda mediações entre um sujeito e outro, e podemos arriscar – são quase sujeitos, pela presença contínua na casa. Melhor seria dizer: são objetos-testemunhas de todas aquelas vivências. CONSIDERAÇÕS FINAIS

Produzir registros fotográficos é produzir uma textura-pele para o corpo e para o dia. Antonino, Glayson e a Cia da Foto são personagens que teceram uma pele para o cotidiano e seu corpo pesado.

A insistência nos registros do dia-a-dia faz com que acoplemos máquinas ao nosso corpo, como se fossem próteses. Podemos então pensar que o acoplamento de máquinas ao nosso redor tornou-se um hábito. Fausto Colombo (1991, p. 120-121) percebe que o trabalho contemporâneo da memória difere-se do clássico justo nessa questão: se antes, os homens construíam estratégias para a elaboração de uma técnica de evocação das imagens (o que se chama de “arte da memória”), agora, nos valemos de máquinas externas a nós que armazenam nossas lembranças, para que assim, possamos esquecer em paz. Essas máquinas impõem-nos seus próprios ritmos, para além de serem extensões de nossos corpos. Isso acaba por gerar outra experiência de corporeidade; estamos constantemente mediados; a câmera funciona como nossos olhos ou mesmo “máscara” que dá outra pele e volumetria a nossa cabeça. Essa terceira pele (para além da epiderme e da roupa) fornece então outro modo de construir representações de nós mesmos na vida cotidiana. REFERÊNCIAS CALVINO, Italo. “A aventura de um fotógrafo”. In: ____. Os amores difíceis. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. P. 51-64. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2001. CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2003. COLOMBO, Fausto. “Memória e identidade”. In:_____. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.p.107-125. JEUDY, Henri-Pierre. “A tirania do espelho”. In:______. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. P.34-49 GOFFMAN, Ervin. “Representações”. In:______. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975. P.25-75. Cláudia Maria França da Silva Artista visual. Doutora em Artes pela UNICAMP, mestre em Artes Visuais pela UFRGS, bacharel em Artes Plásticas pela UFMG. Professora na Graduação em Artes Visuais e Pós-Graduação em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Trabalha com desenho, objetos e instalações, expondo regularmente. Participa de reuniões científicas com produção textual. Link para o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3462886315780014

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