Regulação e Contratos de Concessão: a necessária composição institucional entre Direito e Economia

May 30, 2017 | Autor: Bruno Renzetti | Categoria: Regulation And Governance, Infrastructure, Public Governance
Share Embed


Descrição do Produto

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito e Economia Eduardo da Silva Mattos Advogado e Economista. Doutorando em Finanças Estratégicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Ciências Econômicas pela FAE Business School. E-mail: .

Bruno Polonio Renzetti Advogado. Mestrando em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Bacharel pela Universidade Federal do Paraná. Secretário da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). E-mail: .

Resumo: O trabalho adota o enfoque institucional para investigar as relações entre Direito e Economia no processo regulatório, tornando-o mais eficiente e dinâmico. Analisa-se a composição entre as duas disciplinas a partir de dois estudos de casos: a privatização das ferrovias na Argentina e a concessão dos aeroportos no Brasil. Ao fim, propõe-se uma nova agenda de pesquisa para Direito e Economia no setor público. Palavras-chave: Direito. Economia. Instituições. Concessões. Análise Econômica do Direito. Sumário: I Introdução – II O Direito e os contratos de concessão: lições e aprendizado – III A Economia da regulação e suas críticas institucionais – IV A (falta de) composição entre Direito e Economia: o caso da privatização das ferrovias argentinas – V A (falta de) composição entre Direito e Economia: o caso dos aeroportos brasileiros – VI Considerações finais – VII Referências

I Introdução Considerando a falta de capacidade de financiamento e investimento do Estado, os contratos administrativos, e em especial os de infraestrutura no que concerne ao presente trabalho, são ferramentas hábeis à promoção da cooperação entre iniciativa privada e Estado e forma capaz de promover a regulação econômica setorial (SALOMÃO FILHO, 2008, p. 189-192). Para tanto, as ciências jurídica e econômica desempenham, cada uma, papel fundamental. O problema basilar é a falta de composição e interdisciplinaridade entre elas, sendo que cada uma exerce suas funções de maneira isolada e, por vezes, contraditória. Relega-se a segundo plano como o arranjo de ambas faz parte de um

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 143

143

05/09/2016 14:39:50

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

mesmo continente institucional e que a solução de problemas contratuais e regulatórios depende dessa, por vezes delicada, relação. O objetivo do presente ensaio é apresentar uma leitura sobre o atual distanciamento das disciplinas e como cada ciência poderia se valer das construções e características da outra para tornar o processo regulatório mais completo – afinal, a aplicação e interpretação do Direito não é tarefa simples e mecânica. Tenta-se fazê-lo por meio de provocações com fulcro em construções teóricas brevemente explanadas e pela análise de casos regulatórios que tiveram efeitos negativos justamente pela falta de observância da integridade de Direito e Economia nos contratos de concessão de infraestrutura.

II  O Direito e os contratos de concessão: lições e aprendizado Embora o conteúdo do Direito Administrativo não encontre uma única materialização na doutrina jurídica, alguns autores consideram sua gênese, nos moldes pelos quais hoje se estuda a disciplina dentro do direito romano-germânico, ser consideravelmente recente em comparação às outras disciplinas jurídicas. Costuma-se identificar esse início com a Revolução Francesa e com as contribuições posteriores do regime de Napoleão Bonaparte – a construção administrativista ganha relevância com a força estatal advinda das conquistas napoleônicas (DI PIETRO, 2010, p. 0204). Surge daí a preocupação com a estruturação da atuação do Poder Executivo e, posteriormente, com suas limitações, considerando a posição superior a que se elevou o Estado. No que tange aos contratos administrativos, tem-se, nesse Direito Administrativo tradicional, um regime especial pautado em uma série de princípios voltados a permitir uma participação privada ampla e igualitária, mas sem deixar de considerar a supremacia do interesse público. Dessa forma, o ente privado que viria a realizar o investimento necessário à prestação de um serviço tido como de interesse público pelo próprio Estado acaba sendo, certas vezes, posto em posição secundária pelo Direito Administrativo. Isso é materializado, por exemplo, na precária disciplina jurídica quanto à alocação de riscos. Por força da disposição do art. 65, II, “d” da Lei de Licitações (Lei 8.666/1993) que trata da imprevisão, divide-se juridicamente o risco em álea ordinária, aquela que genericamente poderia ser prevista, e álea extraordinária, aquela imprevisível, atribuindo-se responsabilidade sobre a primeira ao particular e sobre a segunda ao Estado – por isso, sendo chamada por alguns de álea administrativa (DI PIETRO, 2010, p. 277-285). Por fim, categorizam-se os atos da álea extraordinária em alguns tópicos, como a teoria da imprevisão e fato do príncipe – ressalva feita à Lei 11.079/04, que será referenciada posteriormente.

144

RDPE_55_MIOLO.indd 144

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:50

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

Esse é um Direito Administrativo que, ironicamente, chamou-se na academia de “Direito Administrativo dos clips” (SUNDFELD, 2007, p. 36),1 mais preocupado com procedimentos e formulários, agrupados em pilhas de papéis segurados por clips, do que com as necessidades advindas da realidade negocial e empresarial. Desconsidera-se toda construção econômica de alocação e assunção de riscos que almeja permitir sua distribuição para as partes que melhor possam mitigá-los – uma construção coasiana (COASE, 1960) que explica, por exemplo, o motivo de o responsável por um acidente de carro ser o motorista e não o pedestre, caso não haja flagrante culpa, grosso modo. Tampouco se permite a discussão sobre qual o limite de risco aceitável a ser tomado tanto pelo concessionário quanto pelo Estado em determinadas situações, ou mesmo sobre quais os custos envolvidos na prevenção de determinados riscos e se essa assunção de riscos não tornaria eventual negócio inviável (COGLIANESE, 2011, p. 4).2 Da mesma forma, a Administração Pública não se coloca na posição do possível concessionário, que vê no contrato uma forma de retorno sobre investimento, especificamente como uma forma de retorno muito semelhante à renda fixa – vide caso da transmissão de energia elétrica (LUZIO, 2001, p. 108). E a decisão de investimento depende de uma série de fatores e determinantes que escapam a uma análise simplista e não se resumem a um simples axioma – ainda mais em ambientes de incerteza (DIXIT; PINDYCK, 1994).3 Haja vista essa concepção tradicionalista de contrato administrativo não mais dar conta da realidade, e levando em consideração que o contrato pode também espelhar o interesse público além do privado e regular esse embate de interesses (SALOMÃO FILHO, 2008, p. 220), a visão econômica sobre a teoria dos contratos deve ser aplicada também em âmbito administrativo, já que o contrato clássico em bases abstratas e desconectadas da realidade, baseado em uma teoria dita “pura” dos contratos, morreu (GILMORE, 1995, p. 5-8).

Existe corrente atual dentro da doutrina administrativista brasileira que, assim como a crítica de Sundfeld, combate essa visão tradicional e estática do Direito Administrativo, alguns em atenção específica à questão da gestão de riscos em contratos administrativos. Não obstante, a análise nem sempre adentra no escopo interdisciplinar. Por todos, veja-se as obras de Marçal Justen Filho, Egon Bockmann Moreira, Marcos Perez e Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto. 2 Ressalte-se que a Lei 11.079/2004 (a Lei das PPPs), de maneira inovadora na tradição e ordenamento jurídico brasileiros, já traz previsão expressa de que se devem repartir contratualmente e objetivamente os riscos entre as partes (art. 4º, VI), mesmo “os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária” (art. 5º, III). 3 Por não se tratar do foco do trabalho, faz-se somente referência ao tema. A escolha de investimento é um assunto com ampla bibliografia e diversas abordagens. Em que pese o assunto ser complexo e ter uma série de nuances mesmo para o profissional de finanças, o Direito não deve se colocar à margem da discussão e desprezar a importância do tópico. O contrato de concessão é uma forma de investimento de capital, assim como várias outras, e só haverá agentes interessados no contrato se ele tiver atratividade – e isso envolve a alocação clara de riscos. 1

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 145

145

05/09/2016 14:39:51

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

O novo contrato é visto com o objetivo da troca e da manutenção das relações negociais, ou como “as relações entre as partes no processo de projetar a troca no futuro” (MACNEIL, 2009, p. 5). Trata-se de uma concepção diversa daquela tradicional de contrato público como espécie do gênero contrato, qual seja, a noção de contrato público como uma promessa exigível legalmente, mas com algumas peculiaridades como a verticalidade da relação entre Estado e ente privado (DI PIETRO, 2010, p. 251; 253-254). Clarifica-se o papel do contrato dentro dessa nova visão e sistemática: um instrumento promotor da troca eficiente, atendendo aos interesses (financeiros e/ou sociais) de ambas as partes, e não algo absorto do real. Ressalte-se, por fim, que a segurança jurídica que se busca por meio do contrato de concessão clássico não pode ser obtida por meio de disposições imutáveis. Dentro da atual conjuntura econômica, a estabilidade contratual advém da flexibilidade, já que, não paradoxalmente, a única certeza que se tem é a da mudança das condições econômicas em longo prazo (MOREIRA, 2010, p. 37). Não é o pacta sunt servanda obstáculo para adaptações consensuais dentro do contrato, com vistas a trazer melhorias nos serviços prestados aos usuários. Tanto o Poder Público como o ente privado devem estar cientes da flexibilidade contratual, pois, como colocado por Moreira (2010, p. 39), “concedente e/ou concessionário rígidos e fechados, incapazes de se adaptar a novas realidades, certamente gerarão a péssima prestação de serviço, como onerosidade para todos os envolvidos (sobretudo os usuários)”. A chave está na limitação da discricionariedade do Poder Executivo e na permissão de fiscalização do processo regulatório, conforme se verá posteriormente. Apesar dessa necessária revisão dos contratos administrativos para que se leve em conta as especificidades dos setores de infraestrutura, bem como captem um conjunto de ensinamentos econômicos, o Direito fornece uma série de ferramentas e garantias ao desempenho de uma regulação eficaz. E isso nem sempre é percebido pela avaliação econômica. É o que se mostra a seguir.

III  A Economia da regulação e suas críticas institucionais A literatura econômica sobre regulação é vasta e trata de vários aspectos caros à matéria, desde as teorias econômicas de regulação às críticas iniciais de Stigler que deram origem à teoria da captura (STIGLER, 1971). Contudo, para o foco do presente ensaio, convém salientar a importância de artigo de Demsetz (1968, p. 55-65), que veio a reforçar o renascimento dos contratos de concessão. A insatisfação com o desempenho das agências reguladoras nos Estados Unidos fez com que crescesse a pressão por novas formas de regulação. Como era extremamente complicado replicar condições de concorrência em um mercado caracterizado por um monopólio natural, o autor sugeriu que a concorrência para

146

RDPE_55_MIOLO.indd 146

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:51

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

potencialmente atender ou servir um dado mercado poderia substituir a concorrência empresarial propriamente dentro do mercado. Criou-se, então, um modelo genérico de leilões4 para ingresso no mercado. Em outras palavras: em não sendo possível a competição dentro do mercado por questões estruturais, que haja constante competição pelo direito de ser o monopolista desse mercado. Para manutenção da concorrência quando da prestação do serviço, seriam feitas rodadas sucessivas de bidding (lances), mantendo o comportamento do concessionário competitivo – ou seja, se a qualidade do serviço caísse ou se o preço fosse elevado em níveis excessivos, algum competidor tomaria o lugar do atual concessionário na próxima rodada de lances. Essa visão de replicação da concorrência em momento prévio e em outros momentos sucessivos é, em certa medida, pensada ainda hodiernamente. Entretanto, mesmo esses modelos econômicos possuem limitações quando analisados em si mesmos. As construções econômicas ortodoxas preveem contratos completos (por mais que considere existir incompletudes, nenhuma observação nesse sentido é incorporada nas modelagens), alocação dita eficiente de riscos e consideram quaisquer intervenções (como as limitações impostas pelo Direito) meros empecilhos ao desempenho econômico. Deixam de lado tanto importantes críticas e construções econômicas quanto o papel desempenhado pelo Direito na determinação e controle de estruturas. Primeiramente, desconsideram-se as críticas feitas diretamente ao artigo de Demsetz, como, dentre outras, as de Williamson (1976, p. 73-104), que se mostrou cético à possibilidade de previsão antecipada de todas as contingências contratuais ou à possibilidade de serem possíveis rodadas sucessivas de negociação. Tiveram início, então, considerações a respeito de contratos incompletos, demonstrando que, mesmo caso não fosse impossível prever toda eventualidade, isso seria um processo muito custoso de reiteradas tentativas (CRASWELL, 2006, p. 154). Além disso, esquece-se a função de estruturação e garantia do Direito. Em um país com instituições excessivamente discricionárias e arbitrárias, principalmente no Executivo, e sem um Judiciário forte e independente, a tendência de expropriação das empresas é grande, ainda mais em setores de infraestrutura com custos irrecuperáveis – vide caso das telecomunicações argentinas. E a forma mais fácil de expropriar as empresas é pela via econômica: pela imposição de tarifas abaixo de custos médios de longo prazo (LEVY; SPILLER, 1994, p. 204). Situação incrivelmente semelhante de tentativa de expropriação ocorreu no setor elétrico brasileiro em passado não tão distante. Anunciada pela Presidente do Brasil no dia 07 de setembro de 2012 e publicada no Diário Oficial no dia 12 de

4

Embora receba a tradução “leilão” a acepção utilizada não é técnica, à semelhança do que ocorre com o termo firma na literatura nacional. O leilão referido no artigo não necessariamente envolve maior valor, como pagamento de outorga, mas, sim, refere-se à melhor proposta, que poderia ser, por exemplo, de menor tarifa.

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 147

147

05/09/2016 14:39:51

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

setembro de 2012, a Medida Provisória (MP) 579 buscava adiantar o vencimento dos prazos das concessões de energia elétrica no Brasil de 2015 e 2017 para 2013 e permitir que elas fossem renovadas por mais 30 anos, mas sob novas condições. Com isso, tentou-se reduzir, à força, as tarifas cobradas pelas concessionárias em cerca de 20%. Por motivos políticos, várias das concessões, via de regra estatais administradas por governos da base federal, aceitaram o adiantamento, mesmo com a perspectiva de operarem em prejuízo por um número razoável de anos (VALOR ECONÔMICO, 2012). Os resultados da estruturação financeira proposta trouxeram retorno rápido: com a ocorrência de problemas meteorológicos, o governo e o mercado consumidor já precisaram resgatar o setor de problemas financeiros menos de dois anos após a adoção das medidas (REUTERS, 2014). E o ponto das garantias do Direito se torna visível aqui: três empresas concessionárias optaram por não adiantar o vencimento, por não acreditarem ser possível operar dentro das novas condições. Em que pese esse ainda seja um capítulo aberto na história da regulação, o que permitiu às concessionárias não aceitarem essa expropriação é a garantia institucional, por via jurídica, de cumprimento de contratos, e não a existência de planilhas demonstrando a patente inviabilidade das novas condições. Se por vezes o Direito limita a atuação regulatória é justamente para diminuir a discricionariedade da Administração Pública e diminuir riscos de expropriação em um ambiente institucional notoriamente frágil, e não para tornar o processo regulatório ineficiente. Na ausência dessas garantias, não há uma efetiva regulação, conforme se verá na análise do próximo caso.

IV  A (falta de) composição entre Direito e Economia: o caso da privatização das ferrovias argentinas5 As ferrovias argentinas foram estatizadas durante o governo de Perón, em 1948. Contudo, devido às condições precárias e ao patente sucateamento infraestrutural das vias, o presidente Carlos Menem, ao tomar posse no final da década de 1980, decidiu privatizar o setor para modernizá-lo e para garantir investimentos em tal nicho viário, tanto em transporte de cargas (fretes), quanto em transporte de passageiros e mobilidade urbana. Neste caminho, as duas primeiras (cargas e passageiros) deveriam ser custeadas totalmente pelo usuário e a última (mobilidade urbana), parte pelo

5

Será feita uma exposição mais sucinta do caso para posterior análise do distanciamento institucional entre Direito e Economia. Para uma análise mais detalhada do caso e do contexto histórico, político e econômico vivido no país antes e durante o período das concessões, veja-se: GOMEZ-IBANEZ, José. Regulating infrastructure: monopoly, contracts, and discretion. p. 88-108.

148

RDPE_55_MIOLO.indd 148

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:51

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

usuário e parte por subsídio do Estado – em uma sistemática semelhante, respectivamente, às concessões comuns e patrocinadas, previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Em 1990, depois de discussões envolvendo quais linhas seriam objeto de concessão e outras querelas políticas sob a efetividade da privatização, a Argentina fez um leilão em dois estágios para decidir quais propostas seriam mais vantajosas para as concessões. Os consórcios vencedores eram compostos e liderados sempre por argentinos – cinco diferentes consórcios venceram o processo para concessão de cinco linhas de fretes e quatro consórcios venceram sete linhas de transporte urbano de passageiros, enquanto as obras de transporte intermunicipal ficaram a cargo de cada uma das províncias interessadas no serviço, devendo cedê-lo à iniciativa privada também por concessão. A primeira operação privada dessas concessões se deu em 1993, com as demais tendo início até o ano de 1995. Para gerir esses contratos, mas a princípio sem poder discricionário para modificá-los, o governo argentino criou duas agências para regular o sistema, uma para fretes e outra para o transporte de passageiros. Posteriormente, ambas foram aglutinadas, formando a Comisión Nacional de Regulación del Transporte (CNRT). Apesar de sensíveis melhorias iniciais na prestação do serviço, problemas contratuais e outros de ordem econômica e técnica começaram a surgir já a partir de 1995, e seguiram até período próximo às eleições de 1999. Primeiramente, ocorreu erro técnico grave na previsão da demanda pelos serviços de transporte. Devido a políticas governamentais de estímulo ao tráfego rodoviário, a competição dos trens de carga com caminhões foi muito forte e fez com que a demanda houvesse sido superestimada. Além disso, as rotas ferroviárias eram próximas e permitiam a escolha por parte dos clientes, fazendo com que o nível de renda das concessões ficasse em média 46% abaixo do esperado. No caso dos transportes de passageiros, o erro ocorreu para os dois lados: algumas linhas estavam lotadas e com dificuldade em atender os requisitos contratuais de qualidade, enquanto outras tinham demanda cerca de 25% abaixo do esperado. Cumulado a esse problema econômico da falha na previsão, o risco de demanda era, contratualmente, todo repassado às concessionárias e não havia mecanismo contratual hábil ao ajuste, sendo que a CNRT não tinha competência para alterar os termos do contrato. E, independentemente dessas vicissitudes operacionais, os incentivos e bônus contratuais por investimento eram de fácil atingimento, sendo que todas as concessionárias atingiram suas metas de dez anos em três e podiam, com isso, gozar rapidamente de um aumento de preço. Sumarizando, a dificuldade envolvia tanto a ciência jurídica quanto a econômica: os contratos eram incompletos, contando com erro grave de previsão de demanda e de alocação de riscos, afora má distribuição de incentivos, inexistindo instrumento jurídico contratual ou regulatório para adequação. R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 149

149

05/09/2016 14:39:51

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

Colocou-se, então, o governo em uma situação complicada: (i) ou se renegociavam os contratos e sinalizava-se ao mercado uma leniência para com os contratos administrativos futuros; (ii) ou relicitavam-se as concessões e mostrava-se uma quebra contratual e de confiança; (iii) ou se garantia o cumprimento dos contratos, correndo-se o risco de as empresas concessionárias falirem ou deixarem de atuar em níveis de qualidade aceitáveis, o que poderia levar, em última análise, até mesmo à ausência completa de prestação desses serviços essenciais. A saída adotada reiterou o distanciamento entre Direito e Economia. Após análise de viabilidade econômica das alternativas, optou-se por renegociar os contratos, mas ao invés de deixar a CNRT fazê-lo, usurpou-se a competência do órgão regulador e passou-se a negociação do reajuste diretamente para o secretário dos transportes, sob justificativa de que as tratativas seriam muito sensíveis a pressões populares e políticas, já que as eleições de 1999 estavam próximas e o melhor resultado seria obtido em uma conversa mais direta e célere. Como a situação era complexa e os resultados podiam ser impopulares, o governo peronista decidiu estender ao máximo a situação, arrastando as conversas entre Poder Público e concessionárias, para resolvê-la caso o partido vencesse as eleições presidenciais. Após uma série de escândalos de corrupção envolvendo funcionários públicos e as empresas concessionárias, a oposição venceu as eleições presidenciais. Contudo, o problema das ferrovias persistiu. E como a resolução estava nas mãos do Executivo, então sob novo governo, os contratos foram simplesmente suspensos, com a exceção de um único contrato outrora renegociado pelo novo presidente, quando ainda prefeito de Buenos Aires. Com as crises econômicas em seus parceiros comerciais (como a crise no Brasil em 1999) e a própria crise Argentina de 2001, a situação fiscal foi deteriorada e as chances de uma renegociação se esvaíram. O setor sofreu outras mudanças com o final do período das concessões a partir de 2004 e com a entrada de Nestor Kirschner na presidência em 2005. Mas para a análise do presente ensaio, é suficiente notar os eventos da privatização e renegociação falha e equivocada. Analisando a solução adotada: uma saída estritamente jurídica, como o enforcement do contrato – por ele ser válido, com riscos alocados de antemão e sem se alterar a equação econômico-financeira do contrato –, seria plausível, mas péssima. Trar-se-ia um claro prejuízo mediato na qualidade do serviço, que levaria, em um segundo momento, à paralisação da prestação do serviço por falta de condições financeiras, algo que viria de encontro ao próprio ordenamento, já que um dos princípios norteadores do Direito Administrativo é a continuidade do serviço público (JUSTEN FILHO, 2010, p. 705-706). Contudo, a saída meramente econômica adotada também se mostrou prejudicial. Em um país com um Judiciário fraco e subordinado a instituições políticas

150

RDPE_55_MIOLO.indd 150

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:51

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

corruptas, como é o caso da Argentina (LEVY; SPILLER, 1994, p. 214), abandonar o regulador para permitir que o Executivo assuma funções de regramento dá clara margem para arbitrariedade, como se viu pela corrupção dos agentes envolvidos na negociação, pela deliberada demorada em dar solução ao caso e pela evidente falta de resultados. Com a troca do governo, permitiu-se que houvesse, também, uma grande quebra de confiança com a suspensão dos contratos. Esse é mais um dos vários episódios de ruptura institucional na Argentina, demonstrando um abuso de discricionariedade que acaba por excluir gradativamente a participação privada nos investimentos em estrutura (LEVY; SPILLER, 1994, p. 202-203). Se ambas as saídas, isoladamente, levam a resultados diametralmente opostos e, mesmo assim, ambas com respostas equivocadas, é preciso harmonizar as disciplinas para se perceber que Direito e Economia servem aos mesmos interesses institucionais e podem, conjuntamente, fornecer saídas melhores do que aquelas fornecidas separadamente. Uma alternativa seria a de renegociar os contratos (melhor possibilidade econômica do que as restantes) por meio da agência competente, mas com mecanismos de fiscalização tanto por parte do Executivo quanto do Judiciário (a garantia institucional proporcionada pelo Direito). Em um ambiente institucional frágil e sujeito a manipulações, com um Estado sem capacidade de financiamento, a chave e o grande desafio estão em permitir a cooperação entre o público e o privado, mas de maneira que essa cooperação seja benéfica, e não um instrumento para desvios, como captura ou ganho de poder econômico (SALOMÃO FILHO, 2008, p. 187; LEVY; SPILLER, 1994, p. 203), e uma das saídas é permitir a fiscalização e participação privada, por meio da transparência e compliance. Alguns mercados caracterizados pela obscuridade (assimetria de informação) podem ter seu funcionamento seriamente afetado, alguns podem até mesmo tender a desaparecer. Outros que continuam funcionando apresentam outra característica: gerasse o problema de seleção adversa – grosso modo, os agentes ruins afastarão os bons (AKERLOF, 1970). Parece ser o caso de investimento privado em infraestrutura. Não se tem a gigantesca pretensão de indicar, e em análise a posteriori, uma solução para o embate argentino (que se prolonga até os dias atuais, diga-se). Quer-se, tão somente, iluminar tópico aparentemente deixado de lado em muitos contratos em geral e, em especial, nos administrativos. Se a alteração nas condições de prestação de um contrato de longo prazo é certa, como visto, há de se tomar essa “certeza de mudança”, considerar os contratos como incompletos e prepará-los para que sejam minimamente flexíveis e possam ser fiscalizados de maneira competente (juridicamente) e eficiente (economicamente). Trata-se de clara composição institucional de Direito e Economia por meio de contrato de concessão.

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 151

151

05/09/2016 14:39:52

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

V  A (falta de) composição entre Direito e Economia: o caso dos aeroportos brasileiros Historicamente, os aeroportos brasileiros eram todos administrados pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – INFRAERO. Definida como empresa pública de direito privado, teve sua criação autorizada pela Lei nº 5.862, de 12 de dezembro de 1972. As finalidades da INFRAERO ficam bem registradas já no art. 2º da Lei: “A Infraero terá por finalidade implantar, administrar, operar e explorar industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária que lhe for atribuída pela Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República”. A INFRAERO deixou de depender de repasses do Governo Federal para sua operação em 1977. Com o aumento do volume de aeroportos no Brasil, a empresa passou a atuar por meio de subsídios cruzados – isto é, os benefícios e arrecadação gerados pelos maiores aeroportos eram capazes de sustentar a operação dos terminais com menor porte e tráfego de passageiros e cargas (INFRAERO, 2013, p. 90). Todavia, ainda que possuísse saúde financeira suficiente para sustentar suas operações, a INFRAERO não estava em posição de financiar e acompanhar a necessária modernização dos terminais aeroportuários. Fato é que o número de passageiros no Brasil atingiu a marca de 193 milhões de passageiros transportados em 2012 – quase a totalidade da população do país à época. Ainda, os grandes eventos esportivos sediados no país, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, exigiam grande investimento na infraestrutura dos aeroportos. Ademais, os aeroportos brasileiros são pontos de estrangulamento da estrutura nacional – ou seja, eles acabam por limitar o desempenho de todo setor que depende de mobilidade.6 Some-se a isso, ainda, o episódio do “apagão aéreo” após dois grandes acidentes no território brasileiro e está formada uma sequência de acontecimentos que serviu para expor todas as falhas do setor e a premente necessidade de reformas imediatas nos serviços e infraestrutura. Nesse cenário, o Governo Federal, buscando a consolidação de uma infraestrutura aeroportuária mais robusta, iniciou no começo desta década a política de concessão de aeroportos no Brasil, em uma mudança drástica em sua estratégia de investimento em infraestrutura.

6

O “gargalo” (do inglês bottleneck), também chamado de “ponto de estrangulamento”, pode ser definido como um componente de um certo sistema que prejudica todo seu funcionamento, criando custos adicionais. No cenário brasileiro, um exemplo claro é a capacidade de escoamento dos portos: quando há grande produção, é comum se ver grandes filas de caminhões nas estradas que dão acesso aos portos, esperando para poder descarregar. Nos aeroportos também ocorre isso. Como o Brasil não possui uma grande malha ferroviária, os aeroportos acabam sendo responsáveis por transporte de grandes volumes de carga. Segundo o relatório anual divulgado pela Infraero, em 2015 quase 508 mil toneladas de cargas passaram pelos aeroportos brasileiros. É neste cenário que a melhoria constante da infraestrutura aeroportuária se faz necessária. Relatório disponível em: .

152

RDPE_55_MIOLO.indd 152

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:52

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

De acordo com Nota Técnica publicada pelo Departamento de Regulação e Concorrência da Aviação Civil, O setor de transporte aéreo é de fundamental importância para o desenvolvimento e crescimento sustentado do Brasil. Além de sua relevância para a integração nacional, o setor também desempenha importante papel na qualidade de indutor do desenvolvimento econômico, viabilizando o incremento dos negócios entre as regiões e representando importante insumo na cadeia produtiva.7

Ademais, vale ressaltar que no atual ambiente de crise econômica conjuntural que o Brasil vive, a possibilidade de entrada de players privados em obras de infraestrutura é cada vez mais crível e necessária. Nesse sentido, as concessões de aeroportos têm sido vistas como uma importante válvula de escape para a crise, possibilitando a melhora na infraestrutura a partir de investimentos privados, onerando menos o Estado. O marco-zero das concessões de aeroportos foi a edição do Decreto nº 7.624, em novembro de 2011, tendo como objetivo dispor sobre as condições de exploração pela iniciativa privada da infraestrutura aeroportuária. Os primeiros aeroportos concedidos à iniciativa privada foram os terminais de Guarulhos (SP), Brasília (DF) e Campinas (SP). Na rodada seguinte, os aeroportos do Galeão (RJ) e Confins (MG). A iniciativa de concessões permitiu a entrada de capital estrangeiro nos investimentos de infraestrutura em aeroportos, a partir da participação de consórcios entre empresas brasileiras e do exterior.8 Houve ainda também a construção do novo aeroporto de Natal (RN), em projeto do tipo greenfield. A literatura especializada considera que a grande prioridade de uma concessão aeroportuária deve ser a clara definição de uma regulação econômica quanto à geração e divisão de receitas (SENGUTTUVAN, 2007, p. 411). E tanto a estrutura societária dos negócios quanto a repartição de remuneração foram estruturadas com uma composição institucional entre Direito e Economia mais visível – algo novo na dinâmica brasileira, conforme já discutido. Após os leilões, foram constituídas Sociedades de Propósito Específico (SPE) entre o consórcio vencedor e a INFRAERO:9 o primeiro com 51% do capital votante e a Nota Técnica nº 33/DERC/SPF/SAC-PR, de 20 de setembro de 2013. O consórcio vencedor do aeroporto de Guarulhos possui participação de acionistas sul-africanos; o do aeroporto de Viracopos, participação de franceses; o Consórcio Inframérica, vencedor do leilão em Brasília, possui participação argentina; o aeroporto de Confins possui participação acionária suíça; por fim, o consórcio do aeroporto do Galeão possui participação da Changi Airports International, de Cingapura. 9 Interessante notar que a Lei de Concessões de Serviços Públicos (Lei nº 8.987/1995) não exige expressamente a existência de Sociedade de Propósito Específico para a assunção de um empreendimento. Contudo, a SPE é recomendável devido às características de maior autonomia e independência na gestão patrimonial do Projeto. Além disso, o art. 9º da Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei nº 11.079/2004) exige expressamente a constituição de uma SPE para a realização de uma PPP. Sobre o tema, cf. MOREIRA e GUIMARÃES, 2015. 7 8

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 153

153

05/09/2016 14:39:52

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

empresa pública com os 49% restantes. A INFRAERO, com isso, garante participação nos Conselhos de Administração e Fiscal da sociedade. Com este desenho de governança societária nas SPE constituídas no caso dos aeroportos, a INFRAERO também faz jus a expressiva participação na distribuição de dividendos da Sociedade. Os contratos de concessão obedecem a uma dinâmica muito particular no que tange à remuneração tanto do concessionário como do poder concedente. A remuneração da concessionária é constituída por duas fontes diferentes de receitas: as tarifárias e as não tarifárias. Tomando como exemplo o contrato de concessão do Aeroporto Internacional de Guarulhos, “as receitas tarifárias serão constituídas pelas Tarifas, previstas no Anexo 4 – Tarifas, arrecadadas pela Concessionária, sendo vedado à Concessionária a criação de qualquer outra cobrança tarifária que não esteja prevista no referido anexo, salvo na situação prevista no item 4.9 deste Contrato”. Em referido Anexo 4, verifica-se que as tarifas aeroportuárias se desmembram da seguinte forma: tarifas de embarque, de conexão, pouso, permanência, armazenagem e capatazia.10 Por outro lado, há também as receitas não tarifárias, pois se faculta à Con­ cessionária “explorar atividades econômicas que gerem Receitas Não Tarifárias, conforme previsto no PEA [Plano de Exploração Aeroportuária], diretamente ou mediante a celebração de contratos com terceiros, em regime de direito privado”. Trata-se aqui, portanto, das receitas advindas de atividades como lojas e restaurantes localizados nos aeroportos, como também da cessão de espaços para a publicidade. A remuneração do Poder Concedente, por sua vez, é paga ao Fundo Nacional de Aviação Civil, criado no âmbito da Lei nº 12.426/2011. Neste contexto, a contribuição das concessões ao sistema ocorre, também, por duas fontes de receitas: uma contribuição fixa e uma contribuição variável. Os valores se alteram de acordo com cada contrato de concessão. Tomamos, mais uma vez, o contrato do Aeroporto de Guarulhos como exemplo. Neste contrato, a Concessionária se compromete a pagar à União o valor anual de R$ 810.650.000,00 – correspondente à Contribuição Fixa. Esta parcela anual corresponde à divisão do valor da Contribuição Fixa pelo prazo de vigência do contrato. A Contribuição Variável, por sua vez, corresponde ao montante anual que resulta da aplicação de uma alíquota de 5% sobre a totalidade da Receita Bruta da Concessionária e de suas eventuais subsidiárias integrais. Ainda, no caso da Contribuição Variável, a alíquota pode chegar a 15%, caso o valor da receita da concessionária atinja um patamar pré-estabelecido no contrato.

10

A tarifa de capatazia é o valor que remunera os serviços de movimentação e manuseio das mercadorias nos Armazéns de Carga Aérea dos aeroportos.

154

RDPE_55_MIOLO.indd 154

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:52

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

Até o momento, as concessões aeroportuárias têm sido bem recebidas pelo Governo Federal. Tanto é assim que o novo Plano de Investimento em Logística, apresentado ao final do primeiro semestre de 2015, prevê a concessão de pelos menos mais quatro grandes terminais: Porto Alegre, Florianópolis, Salvador e Fortaleza – com participação societária da INFRAERO consideravelmente menor. Em que pese as bem-sucedidas rodadas de concessão, bem como esse tipo de contrato ter sido uma das principais saídas encontradas pelo Governo Federal para os problemas de arrecadação, deve-se olhar para as possíveis situações prejudiciais advindas da tomada de decisão em momentos desfavoráveis. Deve-se ter em mente que os aeroportos concedidos foram aqueles que representavam a maior arrecadação e trânsito de passageiros e que a situação agora pode ser diversa – bem como os respectivos arranjos. Ademais, uma consequência inconveniente surgiu após as concessões: a INFRAERO, que operava de maneira lucrativa até o final de 2013, iniciou suas operações em 2015 com prejuízo na casa dos 500 milhões de reais, além de dever 150 milhões para as concessionárias – prejuízo vinculado principalmente à perda da administração dos principais aeroportos do país e suas receitas. Além disso, há um problema a ser enfrentado tanto jurídica quanto economicamente daqui para frente: o regime (e volume) dos atuais funcionários da INFRAERO. Como as concessionárias passaram a deter toda administração dos aeroportos, tornou-se responsabilidade delas também o gerenciamento do pessoal nos aeroportos. O efeito disso foi que o quadro de funcionários da INFRAERO tornou-se inchado, pois não há mais absorção pelos aeroportos que restaram à empresa pública. Em novembro de 2012, quando as primeiras concessões aconteceram, a INFRAERO contava com um quadro de 14,2 mil funcionários. Em junho de 2015, na época do anúncio do PIL II, este número já era de 12 mil. Este número, no entanto, deve ser reduzido a seis mil, com as novas rodadas de concessão – e muitos dos funcionários, ao contrário do que se esperava, acabam não sendo absorvidos pela concessionária. A INFRAERO, inclusive, já iniciou seu Programa de Demissão Voluntária, o qual prevê pagamento de prêmio para aqueles que aderirem. A expectativa da estatal é enxugar o quadro em, pelo menos, 4 mil funcionários com o PDV. O Governo Federal, frente à necessidade de modernização e reforma da estrutura aeroportuária do país, sabendo da dificuldade que a INFRAERO teria, sozinha, levar a cabo as necessárias obras, optou pelo regime de concessão dos terminais aeroportuários. Todavia, parece que não houve a necessária análise de todas as externalidades que tal operação traria para o cenário brasileiro. Durante muitos anos, os aeroportos eram vistos como exemplos clássicos de monopólio natural, sendo, em grande parte, construídos pelos governos sob a ideia de que não poderia haver competição nesse mercado. Todavia, esta visão vem sendo

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 155

155

05/09/2016 14:39:52

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

paulatinamente substituída. Atualmente, se reconhece a efetiva ou potencial concorrência entre aeroportos – em especial, aqueles que operam em áreas de abrangência geográfica similares e funcionam como hubs para sua região (PEREIRA NETO et al., 2016).11 Se, por um lado, a abertura dos aeroportos ao investidor privado traz benefícios ao regime concorrencial, por incentivar a concorrência entre os terminais em seus diversos mercados relevantes de atuação (RENZETTI, 2015, p. 133-155), por outro lado as externalidades negativas também se mostram muito presentes – como a diminuição de arrecadação da INFRAERO e a alta taxa de demissões. No atual cenário, algumas soluções já foram adotadas pelo Governo Federal. Editou-se, em março de 2016, a Medida Provisória 714, a qual altera disposições do Código Brasileiro de Aeronáutica, extingue o Adicional de Tarifa Aeroportuária, autoriza a criação de subsidiárias para INFRAERO e autoriza a participação de 49% de capital estrangeiro nas empresas aéreas brasileiras.12 Quanto à questão das demissões em massa da INFRAERO, ainda não se vislumbrou uma saída viável jurídica e economicamente. O Programa de Demissão Voluntária tem como grande mérito o oferecimento de um bônus para aqueles que aderirem, mas, ainda assim, trata-se de um contingente significativo que deixa o mercado de trabalho, pois é impossível que as concessões absorvam a totalidade do número de funcionários. Percebe-se, portanto, que o setor aéreo brasileiro e o mercado aeroportuário possuem características muito específicas, de tal forma que a devida análise do cenário micro e macroeconômico para devido cômputo das externalidades negativas. O setor aeroportuário é de especial interesse por levantar importantes questões acerca da interface entre setores regulados e o Direito da Concorrência. Sendo um setor historicamente dominado pelo monopólio estatal, a concorrência não é um processo natural, sendo necessário o desenvolvimento de um novo tipo de atuação estatal que proporcione o regime concorrencial (FARACO, 2012, p. 368). Em casos de conflitos entre a agência reguladora e o órgão de proteção à concorrência, deve-se sempre ter em mente o mandato legal de cada um, isto é: não cabe ao órgão regulador

“The prevailing idea was that effective competition among different airports was prevented by the large investments needed for the construction of terminals, runways and other infrastructure, which ultimately led to the large economies of scale and scope involved in the provision of airport services.” 12 De acordo com a Exposição de Motivos da MP 714/2016: “Além da redução da quantidade de cidades atendidas pelo transporte aéreo, os resultados líquidos da indústria verificados desde 2011 apontam a necessidade de ampliar as possibilidades de fontes de financiamento das empresas nacionais. Naquele ano, o setor aéreo apresentou um prejuízo líquido de quase R$ 1,6 bilhão. Em 2012, o prejuízo líquido foi de cerca de R$ 3,46 bilhões; em 2013, de R$ 2,4 bilhões; em 2014, de R$ 1,65 bilhão. Impulsionado pela desvalorização do Real, o prejuízo líquido do setor aéreo apenas nos nove primeiros meses de 2015 foi de R$ 3,73 bilhões, de acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC. Nesse cenário adverso, o incentivo a investimentos estrangeiros no transporte aéreo brasileiro constitui um importante mecanismo de garantia da sustentabilidade econômica das empresas nacionais”. 11

156

RDPE_55_MIOLO.indd 156

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:52

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

a atribuição legal de proteger a concorrência por meio do controle de condutas. No caso da ANAC, cabe a ela fiscalizar o cumprimento das regras setoriais instituídas em lei (SUNDFELD; CÂMARA, 2015, p. 97). A regulação que se verifica no caso do setor aeroportuário é aquela classificada como de comportamento econômico: é externa corporis, buscando disciplinar a realidade fática fora do órgão ou entidade de onde se emanam os regulamentos, tendo como objeto de regulação a conduta econômica de pessoas privadas, configurando verdade regulação pública da Economia (MOREIRA, 2014). Diferentemente do caso das ferrovias argentinas, o problema aqui analisado ainda está completamente em aberto, mas essa experiência mostra que a adoção de medidas sem perspectiva ou noção dos possíveis resultados e contingências pode ter um efeito problemático. Espera-se que as primeiras experiências brasileiras sirvam como exemplo para as posteriores e é nesse cenário que o estudo conjunto do Direito e Economia pode contribuir para a melhoria do setor e de suas operações.

VI  Considerações finais O intuito do artigo foi o de aproximar Direito e Economia nos contratos de concessão de infraestrutura, sob um enfoque institucional. As disciplinas tentam resolver os mesmos problemas, mas sem uma comunicação que permita tornar o processo regulatório mais dinâmico e integral. Caso essa separação seja levada a cabo, a tendência é que os resultados e medidas necessárias, obtidos pelas óticas jurídica e econômica, sejam até mesmo contraditórios, mas podendo estar ambas erradas, conforme visto no caso da privatização das ferrovias argentinas. Direito e Economia fazem parte de um mesmo continente institucional e são conjuntamente responsáveis por proporcionar soluções regulatórias. Devem elas, portanto, valerem-se das construções uma da outra para que se chegue a um melhor desenho dos contratos de concessão. A escolha econômica costuma se basear em critérios relativos a eficiência e confrontação de custos, buscando atribuir valor às ações em função de seus efeitos. Todavia, em alguns contextos deve-se ter em mente que razão para agir não tem necessariamente relação com seus efeitos, podendo se justificar certas condutas com base no valor da ação em si mesmo (FARACO, 2015). Passos importantes já foram dados no Brasil. Os contratos de Parceria PúblicoPrivada (PPP), modalidades administrativa e patrocinada de concessão, devem possuir definição sobre a matriz de risco (conforme trazido de forma simples pelo art. 5º, III, da Lei 11.079/04). E tem-se teoricamente que a razão para tal é, justamente, a de que a repartição clara de riscos “pretende tornar o contrato estável mesmo diante de alterações de circunstâncias” (ZANCHIM, 2012, p. 60). Ademais, a Medida Provisória 727/2016, um dos primeiros atos do governo Michel Temer, busca melhorar o R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 157

157

05/09/2016 14:39:52

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

ambiente de negócios público-privados com a instalação de um novo Programa de Parcerias em Investimentos. Em que pesem as crescentes vozes dissonantes e algumas determinações legais vanguardistas, o Direito Administrativo ainda é muito dominado pelo tradicionalismo. A evolução e prática dessa nova forma de se enxergar os papéis de Direito e Economia no processo regulatório e nos contratos de concessão inescapavelmente esbarrará na aplicação desse Direito Administrativo tradicional, formado em grande parte por interesses já há muito tempo estabelecidos. Seria isso possível? Alguns autores se mostram céticos quanto a essa possibilidade (SUNDFELD, 2012).13 Pode ser esse o próximo desafio dos contratos de concessão e do processo regulatório. Curitiba e São Paulo, outono de 2016.

Regulation and concession agreements: the necessary institutional arrangement between Law and Economics Abstract: This article proposes an institutional approach to analyze the relationship between Law and Economics in the regulatory process, in order to make it more efficient and dynamic. The paper analyzes the interaction between both disciplines from two case studies: railways in Argentina and airports in Brazil. At the end, we suggest a new research agenda in the field of Law and Economics in the public sector. Keywords: Law. Economics. Institutions. Concessions. Economic Analysis of Law.

VII Referências AKERLOF, George. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, Vol. 84, No. 3. agosto de 1970. p. 488-500. BRASIL. Exposição de Motivos da Medida Provisória 714/2016. Extingue o Adicional de Tarifa Aeroportuária e altera a Lei nº 5.862, de 12 de dezembro de 1972, e a Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2016. COASE, Ronald. The problem of social cost. Journal of Law and Economics, (Oct, 1960). p. 1-44. COGLIANESE, Cary. The law and economics of risk regulation. In: COCHRANE, James. Wiley Encyclopedia of Operations Research and Management Science. Wiley Publishing: 2011. CRASWELL, Richard. The “incomplete contracts” literature and efficient precautions. 56. CASE W. RES. L. REV. 151 (2005-2006). DEMSETZ, Harold. Why regulate utilities? Journal of Law and Economics, Vol. 11, No. 1 (Apr., 1968), pp. 55-65.

13

O Autor chega a chamar a atual Constituição Federal de “constituição chapa-branca”, moldada pelos interesses corporativistas de funcionários públicos.

158

RDPE_55_MIOLO.indd 158

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:53

Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito...

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. FARACO, Alexandre Ditzel. Aplicação das Normas Gerais de Concorrência nos Setores Regulados. In: MARTINEZ, Ana Paula (Org.). Temas Atuais de Direito da Concorrência. São Paulo: Singular, 2012. FARACO, Alexandre Ditzel. Economia e Interpretação Jurídica. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 51, p. 9-23, jul./set. 2015. FRIED, Charles. Contrato como Promessa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. GILMORE, Grant. The Death of Contract. 2ª ed., Columbus: The Ohio State University Press, 1995. GOMEZ-IBANEZ, José. Regulating infrastructure: monopoly, contracts, and discretion. Cambridge: Harvard University Press, 2003. INFRAERO. Infraero 40 Anos: servindo pessoas, empresas e o Brasil. Publicação institucional, 2013. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. JUSTEN FILHO, Marçal; SCHWIND, Rafael Wallbach. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. São Paulo: RT, 2015, pp. 493-528. LEVY, Brian; SPILLER, Pablo. The Institutional Foundations of Regulatory Commitment: A Comparative Analysis of Telecommunications Regulation. Journal of Law, Economics, & Organization, Vol. 10, No. 2 (Oct., 1994). LUZIO, Eduardo Franco et al. Captação de investimentos privados para transmissão de energia elétrica no Brasil. In: ANUATTI NETO, Francisco et al (Org.). Regulação de Infraestrutura no Brasil: Casos Didáticos. São Paulo: Singular, 2001. MACNEIL, Ian R. O Novo Contrato Social. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002. MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Sociedades de propósito específico na Lei de PPP (considerações em torno do art. 9º da Lei 11.079/2004). In: JUSTEN FILHO, Marçal; SCHWIND, Rafael Wallbach. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. São Paulo: RT, 2015, p. 493-528. MOREIRA, Egon Bockmann. Qual é o futuro do direito da regulação no Brasil? In: SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO, André (Org.). Direito da Regulação e Políticas Públicas. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 107-139. MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de Serviço Público: Inteligência da Lei 8.987/1995 (Parte Geral). São Paulo: Malheiros/sbdp, 2010. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III – Contratos. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva et al. Pro-Competition rules in airport privatization: international experience and the Brazilian case. Journal of Air Transport Management. 54 (2016). PEREZ, Marcos. O risco no contrato de concessão de serviço público. Belo Horizonte: Fórum, 2006. RENZETTI, Bruno Polonio. Concessões e Concorrência nos aeroportos brasileiros. Revista de Direito da Concorrência, vol. 3, n. 2, nov./2015, p. 133-155. REUTERS. Rombo de R$ 12 bi do setor elétrico será coberto por governo e consumidores. 13/03/2014. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2008. SENGUTTUVAN, P. S. Principles of airport economics. Excel Books: New Delhi, 2007.

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

RDPE_55_MIOLO.indd 159

159

05/09/2016 14:39:53

Eduardo da Silva Mattos, Bruno Polonio Renzetti

SUNDFELD, Carlos Ari. O Direito Administrativo entre os clips e os negócios. Revista de direito público da economia, v. 5, n. 18, abr. 2007. SUNDFELD, Carlos Ari. O Direito Administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012. SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Regulação e Concorrência no Acesso a Áreas e no Compartilhamento de Instalações em Aeroportos. Revista de Direito Público da Economia, ano 13, n. 50, p. 89-98, abr./jun. 2015. VALOR ECONÔMICO. Tesouro e BNDES terão que socorrer Eletrobras. 10/12/12. WILLIAMSON, Oliver. Franchise Bidding for Natural Monopolies – in General and with Respect to CATV, Bell Journal of Economics 7, no. 1 (Spring 1976). ZANCHIM, Kleber. Contratos de Parceria Público-Privada (PPP): risco e incerteza. São Paulo: Quartier Latin, 2012.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): MATTOS, Eduardo da Silva; RENZETTI, Bruno Polonio. Regulação e contratos de concessão: a necessária composição institucional entre Direito e Economia. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016.

Recebido em: 06.06.2016 Aprovado em: 01.08.2016

160

RDPE_55_MIOLO.indd 160

R. de Dir. Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 143-160, jul./set. 2016

05/09/2016 14:39:53

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.