Regulando o Acesso aos Recursos Genéticos no Brasíl

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Regulação do Acesso aos Recursos Genéticos no Brasil Para garantir a soberania, direitos e justiça, frente a 15 anos de atraso, a urgência pode até piorar as coisas. David Hathaway (dezembro 2014) Os esforços no Brasil para controlar o acesso aos recursos genéticos não começaram com a Medida Provisória do governo de Fernando Henrique Cardoso, não foram bem sucedidos durante três governos sucessivos do PT e não chegarão a bom termo com o novo Projeto de Lei do Executivo, apresentado açodadamente em junho à Câmara dos Deputados1 para ser apreciado em regime de urgência, em plena campanha (agora rescaldo) eleitoral, crise da Petrobrás e insondáveis contas fiscais. O problema é complexo e até esdrúxulo demais para ser empurrado goela abaixo de parlamentares que querem tratar de assuntos prementes no apagar das luzes de 2014, sem ter que se distrair por uma proposta (telegrafada como “agilizar a pesquisa com a biodiversidade”) que entra no radar da maioria deles como mero fator irritante, e que sequestra e faz refém a pauta que realmente lhes interessa. Para outros, pode até despertar a atenção como mais uma ficha de barganha. As soluções para frear a biopirataria no Brasil começaram a surgir muito antes da Medida Provisória de junho de 20002 baixada pelo governo FHC para atender uma empresa estrangeira, e que – com mínimas modificações introduzidas até agosto de 2001 – vigora até hoje como se fosse Lei3. A questão começou a ser discutida em escala internacional há 25 anos no bojo das negociações que criaram a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), assinada na Rio-92 e em vigor no Brasil e no mundo desde 1994. As regras da CDB garantem a soberania nacional sobre os recursos genéticos de cada país e reconhecem o direito à transferência de tecnologias (inclusive biotecnologias e independente de qualquer patente) para os países detentores desses recursos. A CDB respeita o poder decisório e promove a partilha de benefícios advindos de seu uso, com os povos e comunidades que sempre cuidaram da biodiversidade e que conhecem o manejo e uso de corantes, remédios, sementes e muitos outros recursos da natureza, cuja potência (e potencial econômico) surge em grande medida de seu código genético. Para implementar as conquistas presentes na Convenção, os países ricos em biodiversidade (sendo o Brasil o maior deles) devem “domesticar” as regras globais, na forma de leis e regulamentações nacionais. Naqueles tempos, o Brasil passou por conturbadas transições na política e na economia. Por falta de iniciativas do Executivo, a primeira proposta legislativa neste campo surgiu no final de 1995, com o Projeto de Lei sobre Acesso aos Recursos Genéticos4 apresentado no Senado Federal pela Senadora Marina Silva, recém eleita em 1994. Durante três anos, o PL 306/1995 foi debatido e aprimorado no Senado, com a ampla participação de comunidades, cientistas, autoridades federais, ONGs e movimentos sociais, inclusive em audiências em São Paulo, Manaus e Brasília. A versão final, do relator Sen. Osmar Dias, foi aprovada em novembro de 1998 e era uma proposição legal completa. Detalhava as atribuições institucionais do Poder Público, os procedimentos administrativos para projetos de acesso aos recursos genéticos nacionais, os direitos das comunidades locais e das populações indígenas de se beneficiarem coletivamente por suas tradições e conhecimentos, as diretrizes para o desenvolvimento e transferência de tecnologia e as sanções que seriam aplicadas aos infratores. Uma vez aprovado sem oposição no Senado, o PL 306/1995 foi encaminhado ainda em 1998 à Câmara dos Deputados, onde no mesmo ano o Deputado Jaques Wagner já havia 1

Projeto de Lei nº 7.735-A, de 2014 (do Poder Executivo), apresentado pela Mensagem nº 170/2014 - URGÊNCIA – §1º, ART. 64 – CF 2 Medida Provisória nº 2.052, de 29 de junho de 2000 3 Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 4 Projeto de Lei nº 306 do Senado Federal, de 9 de novembro de 1995

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apresentado um outro projeto sobre o acesso. O Poder Executivo também encaminhou seu próprio Projeto de Lei à Câmara dos Deputados, junto com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que transformaria o “patrimônio genético” em mercadoria, na forma de bens comercializáveis pela União. A Câmara dos Deputados, repetindo a experiência bem sucedida do Senado, chegou a constituir uma Comissão Especial em 1999 para apreciar os Projetos e a PEC. Entretanto, logo que a Comissão foi instalada e começou a trabalhar em maio de 2000, o governo FHC editou uma Medida Provisória modelada no PL do Executivo já encaminhado ao Congresso, com força imediata de lei, pela necessidade de legitimar um acordo já firmado entre o instituto Bioamazônia (cabeça de um programa federal de biologia molecular na Amazônia, eufemisticamente batizado de “Probem”) e a multinacional Novartis Pharma.5 Aquela MP de 2000 sepultou de vez o Projeto de Lei chancelado democraticamente pelo Senado e o processo legislativo já em curso na Câmara. Após mais de um ano de reedições mensais com pequenas alterações, a vigência da MP foi perpetuada por tempo indeterminado por uma Emenda à Constituição6, como a Medida Nada Provisória nº 2.186-16. Vários problemas jurídicos, políticos e conceituais da MP 2.186 não podiam mais ser corrigidos, a não ser por um novo processo legislativo, que o Congresso nunca assumiu, e que só foi lançado em 2014, pelo Executivo, ou seja 15 anos depois que o governo encerrou o processo legislativo iniciado em 1995. Enquanto isso, sucessivos governos tentaram administrar o acesso aos recursos genéticos, só que chamando-os de “patrimônio” – um termo ambíguo que pode se referir tanto a um patrimônio/legado de todos os brasileiros, ou a um patrimônio/ativo, pertencente a um proprietário. Outro exemplo dessa não conformidade com a Convenção da Biodiversidade é a opção dos autores da MP pelo termo passivo “anuência” em vez do ato afirmativo de “consentimento” dado (ou negado) por comunidades que possuem o direito de decidir sobre o uso de seus recursos e conhecimentos. A eficácia da MP também é prejudicada porque, pela Constituição, as Medidas Provisórias só podem impor penalidades administrativas, nunca penais. Outra grande limitação a sua abrangência é a exclusão do controle sobre o acesso aos genes de seres humanos, que fica livre, por falta de outra lei que o regule. Mesmo com tanta liberalidade, a aplicação da MP 2.186 só tem dado motivo de queixas sem fim, por parte das empresas e institutos de pesquisa interessadas em pesquisar e/ou explorar a biodiversidade, que se sentem prejudicadas pelo volume de exigências burocráticas do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN, sediado no Ministério do Meio Ambiente e composto exclusivamente de representantes de vários órgãos federais7), criado pela MP para administrar os pedidos e trabalhos de acesso. Ao longo desses 14 anos, depois de tentar acomodar diálogos com setores representativos das comunidades, da sociedade civil e da academia no início do primeiro governo do PT, o CGEN tem investido principalmente em atender o setor “da pesquisa,” por exemplo com criativas diferenciações entre os trabalhos de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento associado que tenham ou não tenham finalidade comercial. Supõe-se que apenas as empresas que entram em campo com intenção de patentear e comercializar um produto final precisam cumprir todas as exigências de anuências, contratos de repartição de benefícios e autorizações do CGEN. Quem afirmar, por outro lado, que sua pesquisa terá fins puramente científicos será dispensado dessa burocracia toda, poderá fazer seu registro online e receberá a autorização de acesso de um órgão “credenciado” como Ibama, ICMBio, Iphan e CNPq, para os quais o CGEN já terceirizou essa competência. Do início ao fim de seu projeto puramente científico, o bioprospector cadastrado 5

Por esse acordo, firmado um mês antes da MP, em 29/5/2000, em troca da possibilidade de exploração de milhares de bactérias e fungos da Amazônia, a Novartis teria direitos exclusivos de patentear todos os produtos derivados desses microrganismos e a Bioamazônia receberia 4 milhões de dólares em treinamento e transferência de tecnologia, por três anos, além de 1% em royalties sobre a venda desses produtos. Diante de protestos da comunidade científica e da sociedade civil, a Novartis suspendeu a parceria, mas a MP ficou. Fonte: SANTILLI, Juliana - Acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: aspectos jurídicos. Palestra no Iphan, http://portal.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3811 6 Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, art. 2º. 7 No site do Ministério do Meio Ambientes, consultar informações oficiais sobre o CGEN no http://www.mma.gov.br/patrimonio-genetico/conselho-de-gestao-do-patrimonio-genetico

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arcará com os salários e despesas de seus doutores pesquisadores, assistentes e carregadores em campo e nos laboratórios, mas não pagará nada pelo conhecimento comunitário e amostras de plantas, fungos, insetos, etc. O novo Projeto de Lei 7.735/2014 enviado pelo Executivo à Câmara dos Deputados em junho de 2014 também não resolve a maioria desses problemas presentes na MP. O consentimento prévio informado previsto no PL 7.735/2014 (ao menos, já não se chama anuência) apenas será exigido para o acesso a conhecimentos associados cuja origem seja “identificável”, e quando já existe um “produto acabado” pronto para ser fabricado e vendido. O consentimento de comunidades será sumariamente dispensado, porém, quando o bioprospector for uma microempresa ou alegar intenções puramente científicas. E mesmo nos casos quando for exigido, esse consentimento pode “ocorrer” não só pela assinatura de termo de consentimento prévio ou de acordo com um “protocolo comunitário” mas até por um “parecer do órgão oficial competente” ou um “laudo antropológico independente”.8 O contrato de repartição de benefícios negociado com os provedores do material e do conhecimento associado, por outro lado, somente será exigido (para conceder uma patente válida no Brasil, por exemplo) no momento de existir um produto acabado. Supõe-se que a dispensa de contrato ex-ante agilizará o início da pesquisa, mas fica a dúvida quanto às condições de negociação de uma comunidade na iminência do lançamento global, por exemplo, de um remédio comercialmente promissor. Para compensar o potencialmente imenso poder de barganha da comunidade nesse momento estratégico, os autores do PL tiveram a brilhante ideia de limitar o retorno à comunidade a “um por cento da receita líquida anual obtida com a exploração econômica” do produto acabado oriundo de acesso a patrimônio genético, podendo ser baixado “para até um décimo por cento” dessa receita, a critério do discernimento competitivo da União!9 (Mais uma vez, o mercado só é livre para a parte mais forte.) O PL 7.735/2014, mesmo sendo o instrumento jurídico adequado, deixa de tipificar ou penalizar os crimes associados à biopirataria. Ignora solenemente, como a MP em vigor há 15 anos sempre ignorou, os recursos genéticos regidos e definidos pela Convenção, ao manter como eixo e objeto central da lei o conceito de patrimônio genético – um genuíno endemismo na ilha da legislação brasileira – que além de ambíguo em si, fica reduzido à vaga categoria de “informação”.10 Este breve apanhado de temas muito problemáticos na MP 2.816, ainda presentes no PL 7.735/2014, realmente confirma a urgência de uma solução para o atraso de 15 anos na produção de uma lei que controle adequadamente o acesso aos recursos genéticos da biodiversidade brasileira, com soberania, direitos e justiça. Pelo andar dos últimos debates sobre esse PL na Câmara dos Deputados em outubro e novembro de 2014, porém, salta aos olhos a falência de um processo que não consegue convocar a Comissão Especial exigida pelo regimento para debater e redigir democraticamente uma proposta legislativa. A Comissão Geral do dia 11 de novembro inclusive conseguiu ressaltar as posturas e algumas razões de uma gama de partes interessadas11, mas ela não foi deliberativa e não encaminhou soluções. Não é admissível que – no meio de líderes partidários atordoados por crises e pela transição política – dois relatores autodesignados (um ruralista e uma campeã da CeT) de uma comissão inexistente negociem e produzam um substitutivo sobre o Acesso aos Recursos Genéticos e o façam aprovar em sessão plenária da Câmara, simplesmente para desobstruir uma pauta. É imprescindível que a urgência de superar 15 anos de atraso e inépcia com uma verdadeira Lei de Acesso aos Recursos Genéticos não seja traída pela pressa e açodamento, mas que encontre base e legitimidade em um processo legislativo democrático, transparente e participativo.

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PL 7735/2014, artigo 9º. PL 7735/2014, artigos 20 e 21. 10 PL 7735/2014, artigo 2, inciso I. 11 Ver as notas taquigráficas da Comissão Geral (horário 15h30) no site da Câmara: http://www.camara.gov.br/internet/sitaqweb/DiscursoDireto.asp?nuSessao=252.4.54.O&listaOrdem=1&btnPesq=Pes quisar 9

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