Regulações expropriatórias: apontamentos para uma teoria

May 25, 2017 | Autor: Andre Cyrino | Categoria: Regulation
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Regulações expropriatórias: apontamentos para uma teoria* Regulatory takings: notes for a theory André Rodrigues Cyrino**

RESUMO O objetivo deste artigo é atentar para a necessidade do desenvolvimento de uma teoria geral voltada à fixação de limites materiais ao regulador brasileiro. Especificamente: para os casos em que o poder público vai longe demais e, pelo caminho mais fácil da regulação, acaba por expropriar. Trata-se das denominadas regulações expropriatórias. Regulações cujo feitio de legítimas normas limitadoras da atividade econômica encobre um ato de inconstitucional esvaziamento da propriedade privada, entendida em seu sentido amplo, enquanto garantia de proteção de bens e direitos contra o confisco. A experiência dos EUA acerca dos regulatory takings será usada como um ponto de partida, a fim de encontrar fundamentos para a construção de uma teoria no Brasil. Além disso, o artigo aponta para a urgência de que se promova uma revisão da doutrina das desapropriações indiretas e das limitações administrativas nos Tribunais Superiores, para que sejam investigados possíveis excessos regulatórios e identificadas as regulações expropriatórias.

* Artigo recebido em 28 de maio de 2014 e aprovado em 27 de junho de 2014. ** Professor da FGV DIREITO RIO. Master os Laws (LL.M.) pela Yale Law School (EUA). Mestre e doutorando em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

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Palavras-chave Estado regulador — excessos regulatórios — regulação expropriatória. regulação — desapropriação — desapropriação indireta ABSTRACT This article’s goal is to draw attention to the necessity of development of a general theory focused on establishing material limits for the Brazilian regulator. In particular, for those cases in which the Government goes too far and, through the easier path of regulation, ends up expropriating. These are called regulatory takings. Regulations that only seem to be legitimate, but are, in fact, unconstitutional acts that violate private property rights, understood in the broad sense, as a guarantee of protection against confiscation. The U.S. experience regarding regulatory takings is going to be used as a starting point, in order to find basis for the construction of a theory in Brazil. Furthermore, the article points to the urgent need to promote a revision of the doctrine of “indirect expropriation” and administrative constraints in the Superior Courts, so as to investigate possible regulatory excesses and to identify the expropriatory regulations. Keywords Regulatory State — regulatory excesses — regulatory takings — regulation — expropriation — indirect expropriation

In general, while property may be regulated to a certain extent, if regulation goes too far it will be recognized as a taking.1

1. Introdução ao tema A limitação da potestade estatal — em suas variadas manifestações — sempre esteve no centro dos objetivos do direito, e deve fazer parte da agenda

Suprema Corte dos EUA, Justice Oliver Wendell Holmes, Pennsylvania Coal v. Mahon (1922), 260 U.S. 393 (1922).

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de investigação de todos os seus estudiosos. É preciso ser hábil para impor limites ao Estado diante de suas inovadoras e criativas manifestações de força.2 O tema deste artigo aborda, justamente, uma das faces mais atuais do poder estatal: o poder de regular. A função regulatória,3 que se expande desde a Constituição,4 proliferando-se em leis que se capilarizam em resoluções de entidades administrativas em inúmeros setores da economia, é um dos principais meios de revelação da potestade estatal contemporânea,5 e talvez uma das que mais demande imposição de renovados limites. A propagação de entidades reguladoras independentes incrementou a regulação brasileira em quantidade e em intensidade. A vida econômica no país é, hoje, enormemente regulada não apenas pelo legislador, como também por agências independentes,6 conselhos, órgãos administrativos etc.7 No Estado da regulação, a inflação legislativa convola-se em inflação regulatória,8 fruto da multiplicidade de atores normativos que, de tão relevantes, inspiram

“O poder politicamente relevante constitui-se em numerosos setores e surge — dentro e fora da organização do Estado — como um Proteu, sempre sob novas formas. Por este motivo, também se coloca a tarefa do seu controlo e da sua limitação em múltiplos domínios e de formas sempre novas.” ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. 3 ed. Tradução da 12. ed. alemã de 1994 por Karin Praefke Aires Coutinho, coordenação de José J. Gomes Canotilho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 401. 3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 4 A Constituição brasileira tem a peculiaridade de ser o primeiro estatuto regulatório do país (CYRINO, André Rodrigues. Direito constitucional regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2010). 5 A transformação é tendência observável mundo afora. V. ROSE-ACKERMAN, Susan; LINDSETH, Peter L. (Coord.). Comparative administrative law. Northampton: Edward Elgar Publishing, Inc., 2010. 6 BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras, constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 56, p. 204-206, 2002. 7 Apenas no âmbito federal, ver, por exemplo: a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel, Lei no 9427/1996); Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP, Lei no 9.478/1997); a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel, Lei no 9.742/1997); a Agência Nacional de Águas (ANA, Lei no 9.984/2000); a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa, Lei no 9.782/1999); a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS, Lei no 9.961/2000); a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT, ambas criadas pela Lei no 10.233/2001); a Agência Nacional do Cinema (Ancine, MP no 2.228/2001); a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac, Lei no 11.182/2005), dentre tantos outros órgãos reguladores, como o Banco Central do Brasil, inclusive por meio do Comitê de Política Monetária (Circular no 2.698/1996) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM, Lei no 6.385/1976). 8 Em 2007, ANTT, Aneel e ANA, juntas, editaram 1.965 resoluções, ao passo que o Congresso Nacional aprovou 198 leis. Nos estados, o quadro é parecido. No Rio Grande do Sul, e.g., em 2007, a Assembleia Legislativa aprovou 188 leis, ao passo que a agência reguladora estadual (Agergs) promulgou 580 resoluções (FALCÃO, Joaquim. Agências reguladoras têm de evitar a judicialização de demandas. Consultor Jurídico (Conjur), 25 maio 2008. Disponível em: ). 2

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propostas de mudança de paradigmas no direito administrativo9 e a sugestão de que se crie um novel poder estatal denominado poder regulatório.10 O fenômeno do Estado regulador deu ensejo a obras importantes na doutrina brasileira.11 O foco primordial de tais trabalhos tem sido o estudo tanto de questões ligadas a aspectos institucionais (legitimidade democrática de agências independentes, expertise e controle judicial), quanto de problemas relacionados aos limites da legalidade administrativa. Há, de fato, muita literatura tratando: da acomodação do modelo institucional do Estado re­ gulador ao princípio da separação de poderes;12 das virtudes técnicas das agências reguladoras, com o seu insulamento da política,13 inclusive com a influência da racionalidade econômica e suas implicações;14 dos problemas do controle judicial da regulação diante de dificuldades institucionais;15 da legitimidade democrática das entidades reguladoras independentes;16 da relação das agências com o princípio da legalidade17 e sua transformação em

BINENBOJM, Gustavo, Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar: 2008. p. 243 e seguintes; e MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 43. 10 ACKERMAN, Bruce. The new separation of powers. Harvard Law Review, v. 113, n. 3, p. 690 e ss., jan. 2000. 11 V., e.g., JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002; Marques Neto, Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico, op. cit.; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 12 E.g.: ARAGÃO, Alexandre Santos de. As agências reguladoras independentes e a separação de poderes: uma contribuição da teoria dos ordenamentos setoriais. Revista Diálogo Jurídico, n. 13, 2002. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2011; GRAU, Eros. Agências reguladoras, essas repartições públicas. In: SALOMÃO FILHO, C. (Org.). Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 25-28. 13 V., e.g., MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 145 e ss.; SOUTO, M. Juruena Villela. Agências reguladoras. Revista de Direito Administrativo, v. 216, p. 125 e ss., 1999; e GUERRA, Sergio. Agências reguladoras. Da organização administrativa piramidal à governança em rede. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 14 RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Regulação jurídica, racionalidade econômica e saneamento básico. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 15 GOLDBERG, Daniel. O controle de políticas públicas pelo Judiciário: welfarismo em um mundo imperfeito. In: SALGADO, Luciana H.; MOTTA, Ronaldo S. da (Org.). Regulação e concorrência no Brasil: governança, incentivos e eficiência. Rio de Janeiro: Ipea, 2007. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2007. V., ainda, CYRINO, André Rodrigues. Direito constitucional regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. 16 Por exemplo: MATTOS, Paulo Todescan L. O novo Estado regulador no Brasil: eficiência e legitimi­ dade. São Paulo: Singular, 2006; JUSTEN FILHO, Marçal. Agências reguladoras e democracia: existe um déficit democrático na ‘regulação independente’? In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 301-332; e BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Agências reguladoras e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 17 CASTRO, Carlos Roberto. Função normativa regulatória e o novo princípio da legalidade. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 25-73; MOREIRA NETO, Diogo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 9

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juridicidade18 etc. Todos esses temas são fundamentais para a compreensão do modelo institucional do Estado contemporâneo brasileiro. É necessário, porém, avançar sobre um ponto ainda pouco explorado. Faltam estudos específicos sobre os limites e controles ao conteúdo da regulação.19 Notadamente sobre seus excessos.20 O objetivo desse artigo é o de atentar para a necessidade de que se desenvolva uma teoria geral voltada à fixação de limites materiais mais claros à regulação. Mais especificamente, a abusos do regulador, que aqui denominamos regulações expropriatórias. Trata-se de medidas regulatórias permeadas de aparente legitimidade e editadas dentro dos parâmetros de competência instituídos pela lei, as quais, todavia, se revelam demonstrações de desmesurado poder estatal. Regulações cujo feitio de legítimas normas limitadoras da atividade econômica encobre um ato de inconstitucional esvaziamento da propriedade privada, entendida em seu sentido amplo, enquanto garantia de proteção de bens e direitos contra o confisco. Por meio do caminho mais fácil da regulação, o ente público começa a crer que é possível proscrever atividades empresariais, inviabilizar economicamente iniciativas industriais, ou, ainda, aniquilar a utilidade e o valor de bens privados corpóreos, incorpóreos, móveis e/ou imóveis. Com sofisticação técnica e criatividade na elaboração de estatutos supostamente destinados à função regulatória, afetam-se atividades privadas a finalidades públicas, tudo em proveito do bem-estar geral. O sentimento, por vezes legítimo, de injustiça daquele que teve seu direito cerceado é contraposto a uma, tantas outras vezes, legítima sensação de promoção de bem-estar próprio do desenvolvimento de uma política pública planejada e aprovada direta ou indiretamente pelos órgãos representativos. Por certo, nem toda regulação é expropriatória. A grande maioria não é. O objetivo aqui é apontar para a necessidade de que se estabeleçam parâmetros para que se identifique quando isso acontece. Parâmetros que só poderão

Por exemplo: Binenbojm, Uma teoria do direito administrativo, op. cit., p. 239-299. Para que não se faça uma injustiça por conta da generalização, anote-se que, de certo modo, toda doutrina contemporânea que trata do controle da ação administrativa, com olhos na regulação, acaba por abordar o assunto (ver, por exemplo, Ragazzo, Regulação jurídica, racionalidade econômica e saneamento básico, op. cit.). Todavia, tais trabalhos não tiveram foco primordial nesse controle de conteúdo, sendo válido provocar novos estudos. 20 Registre-se que Gustavo Binenbojm publicou em 2010 artigo intitulado “Regulações expropriatórias”, o qual tenta iniciar o desenvolvimento de alguns limites aos excessos de caráter confiscatório da regulação. V. BINENBOJM, Gustavo. Regulações expropriatórias. Revista Justiça e Cidadania, n. 117, 2010. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2014. Comentaremos o artigo mais adiante. 18 19

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ser suficientemente desenvolvidos com a defesa de uma teoria que esteja além das capacidades metodológicas oferecidas pelas ferramentas jurídicas usualmente empregadas no exame das restrições a direitos fundamentais (notadamente à propriedade privada), como também aos estudos sobre restrições administrativas à propriedade. Em primeiro lugar, as soluções gerais de aplicação do dever de proporcionalidade, ponderação de interesses, concordância prática, limites imanentes21 etc., embora possam contribuir para o equacionamento de casos concretos, não aprofundam o fenômeno da regulação econômica e social e sua relação com a extensão constitucional conferida à tutela da propriedade. Tais recursos metodológicos, aliás, já foram importados para alguns trabalhos que abordam o estudo da regulação econômica, a qual já se habituou ao exame de proporcionalidade.22 Todavia, referidos enfoques, de modo geral, apenas refletem, no âmbito do exame da regulação, aquilo que já se estudava para os limites de atos normativos em geral. Ainda se carece de trabalhos que tratem, específica e densamente, das exorbitâncias materiais da regulação, seja ela veiculada por leis, ou por regulamentos. Em segundo lugar, também são insuficientes (e talvez inadequadas) as concepções majoritárias do direito administrativo sobre limites à propriedade privada. Tais perspectivas: (i) partem de pontos de vista autoritários, relacionados ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular,23 operacionalizado num despótico poder de polícia, fundado numa etérea noção absolutista de domínio eminente; e (ii) merecem revisão para que se considerem as proteções (materiais e procedimentais) conferidas à propriedade privada no modelo constitucional brasileiro.

V., e.g., ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004; BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 218246; SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1. ed., 3. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 310-382; e SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, p. 23-50, 2002. 22 E.g.: MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 4, 2005. Disponível em: . Acesso em: 1o nov. 2006; Binenbojm, Uma teoria do direito administrativo, op. cit.; ARAGÃO, Alexandre Santos de. O princípio da proporcionalidade no direito econômico. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 223, 2001; e Ragazzo, Regulação jurídica, racionalidade econômica e saneamento básico, op. cit. 23 V. a obra coletiva organizada por Daniel Sarmento: Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

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É preciso que se combinem ingredientes ignorados tanto pela literatura focada em teorias de direitos fundamentais quanto pela doutrina preocupada com questões relacionadas à intervenção do Estado na propriedade e na economia. Há necessidade de que se desenvolva uma teoria apta a encarar o sacrifício de direitos por meio da regulação, tendo-se em consideração a vedação ao confisco e os limites constitucionais à tomada de bens (CRFB: art. 5o, LIV, XXII-XXVI; art. 150, IV; e art. 170, II e III). Uma teoria de regulações expropriatórias. É claro, por outro lado, que seria muito pretensioso querer que este breve artigo solucionasse o problema que se apresenta. Não é esse nosso objetivo. Almeja-se apenas atentar para a necessidade do desenvolvimento de uma teoria geral voltada à fixação de limites materiais ao regulador brasileiro. Especificamente: para os casos em que o poder público vai longe demais e, pelo caminho mais fácil da regulação, acaba por expropriar.

2. O problema e a falta de soluções teóricas satisfatórias Imagine-se a seguinte hipótese: declarando-se preocupada com os efeitos do lançamento de gás carbônico na atmosfera, e no intuito de promover a proteção do meio ambiente (art. 225, CRFB), entidade reguladora do setor elétrico, por meio de ato normativo fundado em suas competências, determina a troca de todos os filtros de gases das usinas termoelétricas em funcionamento. O objetivo é eliminar as emissões de CO2, e os novos filtros, produzidos com a melhor tecnologia disponível, seriam capazes disso. O problema é que tais filtros, apesar de realmente eficazes, são tão caros que, segundo estudos econômicos apresentados por agentes do setor, inviabilizam economicamente a atividade termoelétrica. A energia a ser produzida será tão custosa que tornará impossível a manutenção do próprio negócio, diante das circunstâncias do mercado. O intuito legítimo de diminuir a emissão de gases poluentes equipara-se, no sentir dos agentes regulados, ao banimento prático da própria atividade. Os defensores da medida apresentarão boas razões para justificar a exigência. Aduzirão que o sacrifício faz parte de qualquer ação estatal de conformação de direitos, e que o regulador, tecnicamente informado e com base na lei, tem expertise suficiente para fazer as melhores escolhas para o setor. Além disso, todos ganharão com isso. Inclusive os donos das termoelétricas e seus filhos, que viverão num mundo menos poluído e mais sustentável. rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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Todavia, se é certo que há justificativas para as novas regras, há argumentos para defender que a hipótese envolve grande injustiça com aqueles que investiram esforços e patrimônio na implantação e no desenvolvimento da atividade econômica. Para os atores do setor termoelétrico, é como se o regu­ lador quisesse, simplesmente, abolir a atividade. Porém, ao invés de bani-la expressamente, preferiu proscrevê-la de forma dissimulada. Imagine-se outro exemplo. Com muito esforço, Tício acabou de adquirir, em nome de sua empresa, T & T Ltda., um terreno onde pretende instalar a base industrial de sua pequena confecção. Investimentos foram feitos, o licenciamento para as obras foi obtido e a empresa está bastante endividada. Quando tudo está quase pronto, e o alvará de funcionamento está prestes a ser outorgado, promulga-se nova regulação sobre o funcionamento de indústrias naquele local. De acordo com a nova regulação de zoneamento urbano, não é mais possível o funcionamento de confecções na região escolhida por Tício. Tício tem a sensação de que seu esforço foi em vão. Os responsáveis pelas medidas, entretanto, tenderão a afirmar que o sacrifício faz parte da compreensão sistemática da formatação de qualquer ação estatal informada. Todos ganharão. Inclusive Tício, que viverá numa cidade mais agradável e organizada. De outro lado, aqueles que estão próximos a ele, ou ainda aqueles que investiram em atividades econômicas inviabilizadas pela ação estatal, identificando-se com essas circunstâncias, visualizarão uma injustiça. Tício não quer ser sacrificado em nome de toda a coletividade, ou ao menos deseja que seu sacrifício seja compensado, e que todos os que pagam impostos arquem com seus prejuízos. Também as termoelétricas da primeira hipótese não querem arcar sozinhas com os custos da proteção ambiental. Sem embargo, as empresas desse setor se veriam, no exemplo, sacrificadas sem qualquer tipo de compensação. Nada obstante o sentimento de injustiça decorrente dos exemplos, as teo­ rias jurídicas correntes não oferecem meios adequados e suficientes para a compreensão do problema em toda a sua complexidade. Não é possível ao Estado valer-se da via menos exigente da regulação para evitar o rigoroso itinerário da desapropriação, que deveria ser a primeira opção quando houver uma decisão por banir atividades econômicas. Regulações que sacrificam direitos, afetando-os a finalidades públicas sem indenização, são potencialmente confiscatórias, devendo ser examinadas diante do art. 5o, XXIV e LIV, CRFB. Normas que não observam o devido processo legal (e constitucional) para a tomada de bens (art. 5o, LIV, CRFB), o qual pressupõe, sob pena e caracterização de confisco (de parte as hipóteses rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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expressamente ressalvadas na Constituição), a demonstração de necessidade ou utilidade pública, ou, ainda, de interesse social, com o pagamento de “justa e prévia indenização em dinheiro” (art. 5o, XXIV, CRFB). Em poucas palavras, o sacrifício de direitos por meio da regulação deve ser enfrentado considerando-se a vedação ao confisco e os limites constitucionais do procedimento de desapropriação. Carece-se de uma abordagem ligada ao que se pode chamar de regulações expropriatórias, o que tem sido desenvolvido alhures, notadamente nos EUA.

3. As contribuições da experiência do direito comparado Se o direito brasileiro não trata do tema como deveria, a experiência de outros países pode oferecer direcionamentos. O estudo sobre os excessos da regulação de bens materiais e imateriais, partindo-se do exame da garantia procedimental da desapropriação, é desenvolvido, e.g., nos EUA e na Europa.24 Daremos atenção ao caso estadunidense. A dimensão e a complexidade dos temas afetos à doutrina dos denominados regulatory takings nos EUA são ilustradas na vasta bibliografia especializada25 e na secular jurisprudência (case Law) existentes naquele país. Trata-se de uma das mais persistentes questões jurídico-constitucionais dos Estados Unidos. A larga experiência em tema tão complexo e ao mesmo tempo tão constante merece atenção. A riqueza dos casos concretos e o empenho da literatura jurídica daquele país podem contribuir para uma compreensão mais profunda do tema no Brasil. A parte final da Quinta Emenda da Constituição dos EUA estabelece que a propriedade privada “não poderá ser tomada para uso público sem justa

Em verdade, como anotam Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, a distinção entre ato expropriatório e limitação administrativa é um problema de todo sistema jurídico que estabeleça um conceito abstrato de desapropriação, como ocorre na Espanha (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de derecho administrativo. 9. ed. (reimp.). Madri: Cívitas, 2005. t. II, p. 241). Ver, também, na Alemanha, e.g., a jurisprudência do seu Tribunal Constitucional, conforme anota MAURER, Hartmut. Direito administrativo geral. Tradução da 14. ed. por Luís Afonso Heck. Barueri: Manole, 2006. p. 794. 25 Para um panorama abrangente e crítico sobre o assunto v. FISCHEL, William A. Regulatory takings: law, economics and politics. Cambridge: Harvard U. Press, 1995. Há diversos artigos de referência, dentre os quais destacam-se, e.g., MICHELMAN, Frank. Property, utility and fairness: comments on ethical foundations of ‘just compensation law’. Harvard Law Review, v. 80, p. 1165-1258, 1966-1967; e EPSTEIN, Richard. Takings. Cambridge: Harvard University Press, 1984. 24

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compensação”. Tal texto consagra a denominada takings clause,26 com base na qual se desenvolveu extensa bibliografia e jurisprudência, as quais tentam, sob forte crítica,27 extrair o sentido e o alcance da ampla e vaga dicção do dispositivo constitucional, que abrange não só os casos de tomada física de bens corpóreos, mas que inclui, também, as hipóteses de dano e de impacto econômico à propriedade em geral.28

3.1 O case law dos EUA A primeira oportunidade em que a Suprema Corte dos EUA admitiu a possibilidade de se reconhecer a ocorrência de expropriação por meio de atividade regulatória ocorreu em 1922, no julgamento do caso Pennsylvania Coal v. Mahon. Em 1878, a Companhia de Mineração de Carvão da Pensil­ vânia (Pennsylvania Coal Co.) cedeu ao sr. H. J. Mahon o direito de superfície relativo à parte do terreno que explorava, retendo expressamente o direito de exer­cer atividade mineradora no seu subterrâneo. De acordo com o contrato, o sr. Mahon aceitou os riscos do empreendimento e renunciou a qualquer direito de re­querer reparação a partir de eventuais prejuízos decorrentes da mineração desenvolvida sob sua propriedade. Em 1921, o Estado da Pensilvânia editou lei (Kohler Act), por meio da qual proscreveu toda atividade mineradora que implicasse risco de criação de instabilidade do solo e afundamento de terreno habitado (subsidência). Sem embargo da edição da referida norma, a empresa Pennsylvania Coal Co. notificou, no mesmo ano de 1921, a sra. Mahon (filha e herdeira de H. J. Mahon, residente no local) sobre seus planos de explorar o carvão existente sob sua propriedade. Inconformada, a sra. Mahon ingressou em juízo pleiteando o reconhecimento judicial de que qualquer direito de lavra que houvesse sido titularizado pela companhia não mais existia ante a edição do Kohler Act de 1921. Em sua defesa, dentre outros argumentos, a mineradora sustentou que a lei havia inconstitucionalmente expropriado seu direito minerário sem justa compensação. A questão, depois de tramitar pelas instâncias inferiores,29

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Cuja tradução seria “cláusula da proteção contra a desapropriação”. ACKERMAN, Bruce. Private property and the constitution. New Haven: Yale U. Press, 1977. p. 8. V. RUBENFELD, Jed. Usings. Yale Law Journal, v. 102, p. 1083 e ss.,1992-1993. A sra. Mahon não teve sucesso em primeira instância, mas a Suprema Corte estadual reformou o julgado e reconheceu a constitucionalidade do ato, para determinar que a mineradora

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foi posta perante a cognição da Suprema Corte. A questão jurídica era: seria o Kohler Act mero exercício de poder de polícia, o que não demandaria compensação, ou, ao revés, configuraria exercício disfarçado do domínio eminente do Estado, capaz, assim, de fazer surgir direito à compensação, com base na Quinta Emenda? O voto condutor do acórdão, redigido pelo Justice Oliver Wendell Holmes Jr., entendeu que havia ocorrido expropriação. Nesse sentido, afirmou-se, em já célebre passagem, que “quando [a regulação] atinge certa magnitude, na maioria, senão em todos os casos, ocorre exercício do domínio eminente, sendo necessária compensação para dar suporte ao ato”.30 É claro que se deve reconhecer, como fez o Justice Holmes, que a atividade administrativa e a regulação seriam inviabilizadas caso se tornasse necessário compensar toda pessoa cuja propriedade sofra algum impacto econômico em virtude da atuação estatal.31 Nada obstante, era preciso reconhecer a possibilidade de hipóteses em que a regulação vai mais longe do que deveria, convertendo-se em medida expropriatória. Se, de um lado, “a propriedade pode ser regulada em certa medida”, de outro lado, “se a regulação vai longe demais, ela pode configurar uma expropriação”.32 Segundo Holmes, a lei da Pensilvânia sobre exploração de carvão configurava expropriação porque teria “praticamente o mesmo efeito para fins constitucionais que a apropriação e destruição do bem”.33 Ainda que legítimo o fim perseguido pelo Estado, era preciso não perder de mira o “perigo de esquecer que um forte desejo público de melhorar as condições de convivência social não é o bastante para justificar que tal objetivo seja alcançado por meio mais curto do que a maneira constitucional de empreender tal mudança”.34 O caso de 1922 não foi o único. Durante todo o século XX, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou diversos conflitos envolvendo excessos da regulação.35 Um desses julgados importantes deu-se em 1987: Keystone Bituminous

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se abstivesse de extrair carvão do subsolo do terreno dos Mahon. Contra essa decisão foi interposto pela companhia mineradora um writ of error, submetendo-se o caso à Suprema Corte. 206 U.S. 412, 413. Nas palavras de Holmes, “[C]omo de há muito reconhecido, alguns valores [e direitos] são protegidos sob limitações implícitas e devem ceder ao poder regulatório [do Estado]”. 206 U.S. 412, 413. 206 U.S. 412, 415. 206 U.S. 412, 414. 206 U.S. 412, 416. Por exemplo: Penn Central Transportation Co. v. City of New York (438 U.S. 104 — 1978); Lucas v. South Carolina Coastal Council 505 U.S. 1003 (1992) e Palazzolo v. Rhode Island 533 U.S. 606 (2001). rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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Coal Association v. DeBenedictis, cuja semelhança com Pennsylvania Coal v. Mahon impressiona. Apesar da similaridade, em Keystone a Corte afastou-se dos entendimentos centrais consagrados em Mahon, muito embora t­ enha expressamente consignado que não superava o precedente da década de 1920.36 Nesse novo caso, mais uma vez o estado da Pensilvânia editara lei (Pennsylvania’s Bituminous Mine Subsidence and Land Conservation Act, de 1966) proibindo a mineração de carvão que causasse subsidência de terrenos em que já existissem prédios públicos, residências e cemitérios.37 Caso a determinação não fosse cumprida, a administração revogaria a outorga de exploração minerária. A associação de empresas mineradoras Keystone Bituminous propôs, então, ação judicial com o objetivo de obter provimento apto a impedir a aplicação da lei estadual às suas associadas. A autora alegou, em síntese, que a vedação da lei, na extensão que lhe fora dada pela autoridade administrativa, bem como a penalidade aplicável em caso de violação dos seus mandamentos ultrajavam a Quinta Emenda, configurando expropriação regulatória.38 Diante disso, sustentaram que o estado da Pensilvânia se apropriara de seus bens para fins públicos, sem indenização. O caso chegou à Suprema Corte.39 Apesar de reconhecer as semelhanças com o caso Mahon, de 1922, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que havia diferenças que justificaram decisão diversa. Por maioria (5-4),40 o Tribunal vislumbrou, em 1987, um diferente conjunto de fatos particulares envolvendo a conclusão da legislatura de 1966 da Pensilvânia de que a legislação estadual existente até então havia falhado na proteção do interesse público na segurança, conservação, preservação e desenvolvimento do solo no estado.41-42 De forma resumida, a Corte teria construído parâmetro para aferir a con­figuração de expropriação regulatória: a natureza do interesse estatal na

480 U.S. 470, 484. O Departamento de Recursos Ambientais da Pensilvânia promulgou norma que exigia manu­ tenção de pelo menos 50% do carvão subjacente às áreas referidas na lei com vistas a garantirlhes o suporte mínimo de solo. 38 A aplicação da lei atacada implicaria o impedimento da exploração de aproximadamente 27 milhões de toneladas de carvão de exploração pertencente às associadas. 39 O juízo local deu razão ao poder público, afirmando não estar configurada qualquer situação expropriatória pela atuação normativa do Estado. A Corte de Apelação manteve a sentença. 40 Os votos vencidos adotavam o que fora decidido em Mahon, sublinhando-se a semelhança entre os casos. 41 480 U.S. 470, 474. 42 Nessa toada, entendeu que “[e]mbora existam algumas semelhanças óbvias entre os casos, nós [a Suprema Corte] concordamos com a Corte de Apelação e com a Corte Distrital no sentido de que as similaridades são muito menos significativas do que as diferenças, e que Pennsylvania Coal não se aplica a este caso” (480 U.S. 470, 474). 36 37

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regulação. Caso fosse considerado exercício de poder de polícia voltada para o bem-estar coletivo e manutenção da ordem pública, a atuação estatal não daria ensejo à compensação.43 Anote-se que Keystone não significou a superação da doutrina dos takings nos Estados Unidos. Em oportunidades mais recentes, o tema foi retomado, identificando-se a premissa segundo a qual: quando o regulador vai longe demais, sua medida equivale a uma desapropriação.44

3.2 A literatura sobre regulatory takings nos EUA A doutrina estadunidense é igualmente rica e pode contribuir para a compreensão do problema no Brasil. O primeiro esforço doutrinário para sistematizar o tratamento dos regulatory takings nos EUA foi feito por Ernst Freund, que, em 1904, publicou o clássico The police power, public police and constitutional rights.45 Freund já lidava com as expropriações regulatórias ao buscar diferenciar as hipóteses em que o poder de polícia se traveste em exercício indevido do domínio eminente do Estado, gerando direito à indenização. Freund distinguiu os takings do mero exercício do poder de polícia valendo-se da dicotomia entre danos e benefícios (harms and benefits).46 Sua hipótese era a de que as regulações que visam controlar ou prevenir danos são fruto do poder de polícia e não dariam causa à indenização. Já aquelas regulações cujo intuito seja extrair um benefício à custa do particular mereceriam ser indenizadas.47

“Sob o nosso sistema de governo, uma das formas primeiras de que o Estado dispõe para preservar o bem-estar coletivo é a restrição dos usos que os indivíduos podem fazer da sua propriedade. Enquanto cada um de nós é onerado de alguma forma por tais restrições, nós, à nossa vez, muito nos beneficiamos dessas restrições sobre os outros. (...) Essas restrições são propriamente tratadas como parte de um ônus comum à cidadania” (480 U.S. 470, 491). 44 Por exemplo: Lucas v. South Carolina Coastal Council 505 U.S. 1003 (1992) e Palazzolo v. Rhode Island 533 U.S. 606 (2001). 45 FREUND, Ernst. The police power, public police and constitutional rights. Chicago: The University of Chicago Press, 1904. 46 Ibid., p. 546-547. 47 Freund inspirou-se em jurisprudência da época, segundo a qual seria possível regular a propriedade privada, independentemente de compensação financeira, quando essa é a própria razão da ocorrência de danos (e.g., Davidson v. New Orleans, 96 U.S. 97 (1878)). Em Mugler v. Kansas, de 1887 (123 US 623), por exemplo, a Suprema Corte entendeu que lei estadual que bania a fabricação e a venda de bebidas alcoólicas não era expropriatória, eis que seu escopo seria a proteção contra danos individuais (uso indevido de álcool). 43

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O case Law que inspirou Freund, explica Jed Rubenfeld,48 partia do pressuposto de que só haveria aplicação da takings clause, e o respectivo direito à indenização, quando houvesse invasão física.49 Sem interferência física com a propriedade, inexistiria direito a ressarcimento. Assim, regulações que lidassem com bens incorpóreos não seriam, em regra, passíveis de indenização, o que só se tornou possível em 1922 com o já citado caso Pennsylvania v. Mahon. A criação do Justice Holmes em Pennsylvania v. Mahon provocou significativa produção científica sobre o tema, apimentada pela controvertida evolução da jurisprudência da Suprema Corte. Após 1922, o desafio passou a ser definição do momento em que uma regulação estatal que diminui o valor da propriedade sem resultar invasão física configura expropriação.50 Ou de forma mais simples: quando uma regulação vai longe demais? Num esforço de síntese didática e nos limites deste artigo, é possível afirmar que no desenvolvimento das principais teorias voltadas à solução do problema do Justice Holmes há: de um lado, aqueles que procuraram delinear com mais precisão a dicotomia danos/benefícios de Freund; e, de outro lado, aqueles que procuraram abraçar uma análise de eficiência, elaborando a ideia da simples constatação da diminuição do valor da propriedade. A dicotomia harms/benefits, ou o raciocínio de prevenção de danos, sistematizada primeiramente por Freund com base na jurisprudência da Suprema Corte da época nunca foi totalmente abandonada.51 O critério de prevenção de danos ou extração de benefícios foi o ponto de partida de vários autores que depuraram essa abordagem.52 Em verdade, é mais fácil aceitar como lícitas

Rubenfeld, Usings, op. cit., p. 1083. O leading case, julgado pela Suprema Corte, foi Pumpelly v. Green Bay Co., 80 U.S. 13 Wall. 166 166 (1871). Nesse caso, a construção de uma represa causou alagamento permanente do terreno do autor da ação, que pleiteou indenização com fundamento na takings clause, sustentando que suas terras haviam sido efetivamente desapropriadas. A defesa argumentou que as terras não haviam sido efetivamente tomadas, mas simplesmente alagadas. Adotando como critério a invasão física das terras, a Suprema Corte garantiu a indenização do autor e aplicou a parte final da Quinta Emenda. 50 ULEN, Thomas S. Still hazy after all these years. Law and Social Inquiry, v. 22, p. 1013, 1997. 51 Até mesmo em Lucas v. South Carolina Coastal Council — quando o Tribunal, conduzido por Scalia, expressamente rejeitou a distinção, alegando que a mesma seria ilógica —, ressalvouse que os princípios de common law que regulam a propriedade (no que se inclui a distinção harms/benefits) não constituiriam expropriação. A questão, na verdade, pode ser remetida para um debate sobre capacidades institucionais. Nas palavras de William Fischel, que discorda da tese de Scalia: “O único debate real sobre o critério de prevenção de danos é sobre quais partes — juízes ou legisladores — devem ser consideradas para decidir o que constitui um dano” (Fsichel, Regulatory takings, op. cit., p. 355). 52 V., e.g., Fsichel, Regulatory takings, op. cit.; ELLICKSON, Robert. Suburban growth controls: an economic and legal analysis. Yale Law Journal, v. 86, p. 385 e ss., 1977. 48 49

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as regulações que previnem danos que as regulações que pretendem extrair benefícios.53 Robert Ellickson representa essa linha de autores que, de certo modo, tiveram a teoria de Freund como ponto de partida.54 Ellickson explica a ocorrência ou não de expropriação a partir da distinção entre uso normal e usos anormais da propriedade. A regulação que impuser comportamentos normais não será expropriatória. Trata-se de regramentos que se propõem a fixar comportamentos inspirados em standards básicos de convivência comunitária, que, na linguagem de Freund, visariam a prevenir danos à comunidade.55 Terá caráter expropriatório a regulação que impuser um uso anormal da propriedade. O uso anormal é aquele que pretende extrair benefícios para terceiros que foram hábeis o suficiente para influenciar a decisão regulatória. Trata-se de imposições que estão longe de pretender somente prevenir danos, mas que afetam a propriedade a alguma finalidade (supostamente) pública. Obviamente, na aplicação da distinção apresentada haverá casos fáceis e casos difíceis.56 Com inspiração diversa, Frank Michelman57 e Richard Epstein58 fizeram propostas concretas de critérios necessários para a caracterização de uma expropriação regulatória. Os dois, cada um a seu modo, desenvolveram suas teses a partir de análises econômicas de eficiência e de divisão de riqueza.59 Num extremo, o que é observável na obra de Richard Epstein,60 a preocupação

Fischel, Regulatory takings, op. cit., p. 353. V., e.g., ELLICKSON, Robert. Suburban growth controls: an economic and legal analysis. Yale Law Journal, v. 86, p. 385 e ss., 1977. 55 Carol Rose preleciona que “[regulation] would require compensation if regulation bars an owner from normal activities or requires her to undertake supernormal land uses of her property”. (ROSE, Carol. Takings, federalism, norms. Yale Law Journal, v. 105, p. 1130, 1995-1996). 56 E.g.: normas de zoneamento que imponham um distanciamento mínimo das casas em relação à rua são imposições não expropriatórias porque constituem imposição normal de convivência urbana (o exemplo é citado por Fischel, Regulatory takings, op. cit., p. 352). De outro lado, normas que, sem justificativa relevante, estabeleçam gabarito de três andares numa rua onde só há prédios de 20 andares e alguns poucos imóveis baixos poderiam significar uma imposição anormal, e portanto expropriatória. Ainda que se ressalve o direito dos prédios já construídos, os proprietários dos imóveis baixos perderam a possibilidade de construir novos andares. Segundo Ellickson, práticas normais são geralmente incorporadas aos regimes gerais de diversos ramos do direito. Comportamentos anormais são geralmente passíveis de indenização no âmbito do direito penal e da responsabilidade civil, por exemplo (ELLICKSON, Robert. Alternatives to zoning: covenants nuisance rules, and fines as land use controls. University of Chicago Law Review, v. 681, p. 730, 1973). 57 Michelman, Property, utility and fairness, op. cit., p. 1665-1258. 58 Epstein, Takings, op. cit. 59 Fischel, Regulatory takings, op. cit., p. 183. 60 Conforme a leitura de Rubenfeld, Usings, op. cit., p. 1135. 53 54

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é prevenir os riscos dos abusos da maioria, que tem incentivos (e meios) para tomar para si a riqueza da minoria. Frank Michelman apresenta parâmetros que apontam para uma perspectiva utilitária de sopesamento entre custos e benefícios da regulação, numa análise profunda (e complexa) de eficiência da medida.61 O autor tra­ balha, basicamente, com três variáveis quantitativas, sobre as quais o juiz poderia estimar impactos econômicos. Primeiro, para reconhecer um ato ex­pro­priatório, é necessário avaliar quais foram os ganhos de eficiência (efficiency gains), definidos como o resultado da diferença entre os benefícios que pos­sam ser gerados pela medida estatal e as perdas por ela produzidas.62 Em se­gundo lugar, é necessário calcular os prejuízos da medida e os demais efeitos que possam ser causados, caso não haja indenização, tanto numa pers­ pectiva indi­vidual quanto numa perspectiva da sociedade como um todo (demoralization costs).63 Em terceiro lugar, avaliam-se os custos da própria aferição sobre os prejuízos e a forma de se alcançar uma solução em que eles sejam efeti­vamente compensados (settlement costs).64 Os settlement costs são medidos considerando-se “o custo [cada dólar] de tempo, esforço e recursos que seriam necessários” de modo a que se alcance uma solução em que sejam evitados os demoralization costs.65 Na fórmula de Michelman, após sopesar cada um desses elementos, o juiz deverá proceder do seguinte modo: (i) se os ganhos de eficiência forem menores que os custos (settlement costs e/ou demoralization costs), a medida é nula, e deverá ser afastada pelo juiz; (ii) de outro lado, não haverá nulidade, mas dever de indenizar, se os settlement costs forem menores que os ganhos de eficiência e que os demoralization costs (com settlement costs baixos, é possí­ vel aferir o montante devido a título de compensação); por fim, (iii) se os

Uma medida é eficiente caso gere mais riqueza no mundo (POLINSKY, A. Mitchell. An introduction to law and economics. 3. ed. Nova York: Aspen, 2003). 62 Michelman, Property, utility and fairness, op. cit., p. 1214. 63 Ibid., p. 1214. Cabe registrar que a tradução do conceito de demoralization costs não é de todo exata, sendo primordial a transcrição do original para o correto entendimento do seu sentido. Assim, Michelman os define como “(…) (1) the dolar value necessary to offset disutilities which accrue to losers and their sympathizers specifically from the realization that no compensation is offered, and (2) the present capitalized dollar value of lost future production (reflecting either impaired incentives or social unrest) caused by demoralization of uncompensated losers, their sympathizers, and other observers disturbed by the thought that they themselves may be subjected to similar treatment on some other occasion”. 64 Ibid., p. 1214. Nem sempre é fácil aferir o real prejuízo (o que se perdeu, o que se deixou de ganhar etc.). Pode haver casos em que os custos de tal aferição serão muito altos e não compensarem maiores esforços. 65 Ibid., p. 1214. 61

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demoralization costs forem menores que os settlement costs e os ganhos de eficiência, a atuação regulatória é lícita e não há que se falar em indenização.66 Observa-se que a fórmula utilitarista proposta por Michelman não leva em conta somente os efeitos imediatos dos custos decorrentes da regulação, mas também o efeito na coletividade, caso essa compensação não seja devidamente garantida.67 Vejam-se os seguintes exemplos: os casos de regulação envolvendo ­interferência física em propriedade (e.g., o alagamento provocado pela construção de uma represa autorizada pelo poder público) são hipóteses em que os ­settlement costs serão provavelmente baixos, e os demoralization costs tenderão a ser altos. Para os settlement costs bastaria, em tese, verificar objetivamente o valor do imóvel, que seria compatível com a medida da indenização, diante de sua total inutilização, causada pelo esbulho que gera custos e implica de­ moralization costs. Já em regulações envolvendo um número muito elevado de sujeitos, notadamente em grandes áreas, a tendência será de um incremento considerável nos settlement costs e a de baixos demoralization costs.68 A coletividade tenderá a se beneficiar, e o custo de avaliação dos prejuízos (e.g., as restrições administrativas de gabarito ao redor de aeroportos) será dificilmente estimável. Já os casos envolvendo ganhos de eficiência abaixo dos custos da medida poderiam ensejar a nulidade da intervenção. Pense-se na hipótese da quebra de uma patente de medicamento a ser utilizado no sistema público de saúde para curar doença rara. Os ganhos da medida seriam mínimos (poucos pacientes) diante dos seus custos (demoralization costs: pelo esvaziamento do valor da propriedade intelectual), sendo razoável sustentar que o cálculo do real prejuízo (settlement costs) não seria uma barreira intransponível para uma perícia. Diante desse quadro, a medida deverá ser anulada pelo Poder Judiciário.69 Richard Epstein70 constrói teoria sobre o domínio eminente do Estado, partindo de uma apaixonada visão liberal da propriedade privada. Para Epstein, a propriedade privada não deve ser objeto de escolhas coletivas, mas individuais, não havendo espaço para o desenvolvimento de uma noção — como a desenvolvida no Brasil, por disposição constitucional expressa — de

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Michelman, Property, utility and fairness, op. cit., p. 1215. Ibid., p. 1217. Nesse sentido, v. Fischel, Regulatory takings, op. cit., p. 329. Para uma crítica ao trabalho de Frank Michelman, v. ROSE-ACKERMAN, Susan. Against ad hocery: a comment on Michelman. Columbia Law Review, v. 88, n. 8, p. 1697-1711, 1988. 70 Epstein, Takings, op. cit. 66 67

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função social da propriedade. O Poder Judiciário deve estar atento aos abusos da maioria com a propriedade privada da minoria. Em seu entender, “há uma relação direta entre o tema das desapropriações (takings) e o processo político”.71 Sempre haverá o risco de que instituições locais, com poder de polícia, venham a publicizar faculdades inerentes ao direito de propriedade sem indenização, valendo-se do princípio majoritário.72 Nesse sentido, inspirado por doutrinas de public choice, Epstein defende, por exemplo, a supervisão judicial cautelosa de normas de zoneamento urbano, de modo a corrigir as falhas do processo político73 e os abusos da maioria contra a minoria. Para essa tarefa de supervisão, o autor propõe um teste74 para que o juiz verifique a ocorrência de ato expropriatório. Nesse teste, aplicável para que se avaliem os excessos da regulação econômica,75 o julgador deverá perguntarse: (i) se houve um esvaziamento do direito de propriedade em alguma de suas faculdades (taking of private property); (ii) se existe uma justificativa para a expropriação; (iii) se o esvaziamento é feito em benefício de uma finalidade pública (se isso não existir, o ato administrativo deve ser desfeito); e (iv) se há algum modo de compensação pela expropriação, ainda que de forma implícita ou indireta (in-kind compensation).76 Se a resposta às duas últimas perguntas for negativa, estará configurada a expropriação, devendo o EstadoJuiz, a depender do caso, invalidá-la ou garantir a indenização considerando o real prejuízo sofrido.77 O ponto mais dramático do teste de Epstein é a identificação da ocorrência de alguma forma de compensação. Isso porque é possível cogitar-se de compensação indireta, a chamada in-kind compensation. Caso haja compensação indireta, a regulação é constitucional, pois a Quinta Emenda refere-se a “compensação justa”, sem especificar como isso será feito.78 Realmente, é

Ibid., p. 265. A influência da obra de John Hart Ely é declarada (v. ELY, John Hart. Democracy and distrust. A theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1980). 72 Ibid., p. 265. 73 Ibid., p. 265. 74 Ibid., p. 31. 75 Ibid., p. 263, 274-282. 76 Essa compensação pode ser implícita, o que ocorreria, e.g., em atividades privadas que se valem de algum benefício do Estado para o seu exercício. 77 Para o autor, é expropriatória a medida que esvazie o direito de propriedade em quaisquer de suas faculdades, afetando-as a finalidade pública sem nenhuma forma de compensação. Isso pode envolver, segundo Epstein, qualquer forma de regulação e até mesmo tributos. No extremo de sua teoria, Epstein sustentou que a tributação progressiva seria inconstitucional, porquanto expropriatória (Epstein, Takings, op. cit., p. 295-303). 78 Ibid., p. 195. 71

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razoável imaginar-se que a regulação, ao promover o bem-estar coletivo, compensa aqueles que sofreram seus impactos diretos. A regulação de poluição visual ilustra como isso acontece.79 Contudo, nem sempre é assim. Há, segundo Epstein, várias hipóteses em que se deve cogitar da necessidade de compensação, ou mesmo da invalidade da regulação.80 Regulações urbanísticas merecem atenção e estão sujeitas ao teste de constitucionalidade. O mesmo vale para as regulações econômicas, que trazem outras dificuldades. Em verdade, nessas intervenções é extremamente difícil quantificar a riqueza e os efeitos distributivos da medida diante do seu escopo tendencialmente amplificado.81 Em tais casos, a “indenização direta é quase impossível”.82 Assim, segundo o autor, “em algumas dessas hipóteses, o remédio apropriado diante da violação constitucional será a total invalidação da medida”.83 A invalidação será o remédio adequado, por exemplo, para as hipóteses de controle estatal de preços,84 por meio da qual o Estado esvazia a propriedade privada, sem qualquer tipo de compensação, para uma suposta finalidade pública. Por exemplo: “uma regulação que estabeleça que todo produto, não importando o valor e os custos envolvidos, deverá ser vendido por um dólar”.85 Tal regulação seria nula, não se podendo passar ao largo de seus devastadores impactos econômicos.

4. Uma possível teoria brasileira das regulações expropriatórias? Parece-nos correto dizer que há necessidade de construção de parâmetros mais claros aptos a limitar excessos da regulação de bens e direitos vis-à-vis a proteção conferida à propriedade privada na Constituição de 1988 enquanto feixe de direitos intrínsecos à liberdade econômica, cuja supressão (parcial ou total) deve-se dar por meio do procedimento da desapropriação (art. 5o, XXIV,

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O exemplo é do próprio autor: Ibid., p. 266. Ibid., p. 267 e seguintes. Ibid., p. 274. Ibid. Ibid. O autor ressalva que pode haver hipótese em que a regulação de preços possa ser justificada. É possível falar-se em controle de preços em período de guerra (Ibid., p. 278), como também é possível falar-se em controle de preços de atividades que se beneficiam de privilégios estatais (public utilities), como ferrovias que atingiram uma posição de monopólio com o apoio do Estado (Ibid., p. 274-277). 85 Ibid., p. 277. 79 80

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CRFB). Esse, em princípio, pode ser o caminho para o surgimento de uma doutrina das regulações expropriatórias. Um possível ponto de partida de uma teoria como essa é a tutela do direito fundamental à propriedade privada, enquanto um direito passível de restrições. Afinal, há razoável consenso quanto à possibilidade de limitação de direitos fundamentais,86 existam ou não autorizações constitucionais expressas.87 Assim também os direitos de propriedade e as faculdades que lhe são inerentes. Tais direitos podem — e muitas vezes devem — ser limitados. O poder de regular, porém, não é incondicionado. Ele se sujeita a um sistema de proteção que proíbe regulações que vão longe demais e agridem o cerne da propriedade privada, além do procedimento desapropriatório. A Constituição de 1988 criou um sofisticado aparato normativo proibindo categoricamente o confisco e vedando a desapropriação (de bens e direitos) sem o pagamento prévio de justa indenização em dinheiro (art. 150, IV e art. 5o, XXIV). Uma teoria sobre as regulações expropriatórias passa pela necessidade de investigação sobre se e como tais normas relacionam-se com algumas pretensões regulatórias. Nesse sentido, o desenvolvimento de um marco teórico das regulações expropriatórias inicia-se pelo estudo do direito à propriedade privada, sua inserção na concepção contemporânea de direitos fundamentais e sua relação íntima com as liberdades econômicas. A propriedade privada, é inegável, sofreu grandes transformações desde o seu apogeu liberal até o desenvolvimento do estado de bem-estar social.88 Não é mais aquele direito absoluto consagrado no Código de Napoleão, mas não se trata, também, de algo que possa ser ignorado num sistema que baniu o confisco e consagrou um procedimento garantidor de sua supressão (art. 5o, XXIV). Não se trata, portanto, de ressuscitar uma concepção napoleônica, mas situar a propriedade privada na teoria de direitos fundamentais e demonstrar a sua ligação íntima com a liberdade econômica e os desígnios de desenvolvimento. O ponto principal, no entanto, volta-se ao exame dos equívocos das doutrinas relacionadas à imposição de limites administrativos à propriedade

V., e.g., PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 134. 87 “Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto.” (STF. MS 23.452/RJ, rel. min. Celso de Mello, DJ 12-5-2000). 88 V., e.g., BRITTO, Miguel Nogueira de. A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional. Coimbra: Almedina, 2008. 86

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privada e à insuficiência da doutrina da desapropriação indireta. Sem pretensão de esgotar o tema, é possível adiantar alguns elementos críticos.

5. Necessidade de revisão da doutrina das desapropriações indiretas e das limitações administrativas. Em busca de uma teoria dos excessos regulatórios no Brasil A doutrina das desapropriações indiretas merece revisão. Em primeiro lugar, para que se promova uma releitura da natureza da tomada indireta da propriedade. O entendimento corrente equivoca-se ao limitar as desapropriações indiretas a uma categoria de responsabilidade civil do Estado. Em segundo lugar, deve ser superado o entendimento de que não haveria, em absoluto, violação ao direito de propriedade causada por restrições de caráter geral. Há hipóteses em que isso é possível. Em terceiro lugar, é preciso que tal teoria passe a abranger não apenas direitos relacionados a bens imóveis, mas que se incluam bens incorpóreos, inerentes às atividades econômicas. O cerne da revisão que deve ser desenvolvida é a compreensão de que o aniquilamento do conteúdo econômico e da funcionalidade de bens (móveis ou imóveis, corpóreos ou incorpóreos) tem a natureza de uma desapropriação dissimulada e inválida diante da Constituição. A doutrina da desapropriação indireta é “criação pretoriana”89 genuinamente brasileira, que merece atenção especial, tanto pela sua constância como meio de amparo da propriedade privada contra a ação do Estado, quanto em razão dos equivocados tratamentos dados pela jurisprudência. Esses erros merecem reparo. O Supremo Tribunal Federal (STF) e, principalmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tiveram a oportunidade de julgar diversos casos envolvendo desapropriações indiretas. Os precedentes sobre o tema compõem a com­ preensão da matéria, sobre a qual não há uma solução definitiva. STF e STJ possuem orientações distintas. O STJ teve dois momentos. Numa primeira fase, admitiu em grande medida a possibilidade de caracterização de desa­ propriação indireta em razão de regulações gerais (geralmente rotuladas de limitações administrativas). Essa orientação, porém, modificou-se nos úl­ timos anos. Já o STF admite (ao menos em obter dictum) a possibilidade de

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STJ, REsp no 7.459-0, Segunda Turma, rel. Ari Pargendler, DJ 9-10-1995, p. 33.536. rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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caracterização da modalidade expropriatória indireta por meio de limitações administrativas de caráter regulatório, reconhecendo que a gravidade das restrições promovidas por normas gerais poderia ensejar proteção judicial. Os casos envolvendo a criação do Parque Estadual da Serra do Mar em São Paulo sobressaem-se pelo elevado número de precedentes que tentaram (sem sucesso) definir os requisitos do instituto. O parque da Serra do Mar do Estado de São Paulo foi criado em 1977 pelo Decreto Estadual no 10.251, alterado pelo Decreto Estadual no 13.313/1979. Tais decretos fixaram os limites geográficos do parque, provocando incidência de rigorosa legislação ambiental sobre a propriedade privada ali existente. Na dicção do Decreto Estadual no 10.251, a criação do parque teve “a finalidade de assegurar integral proteção à flora, à fauna, às belezas naturais, bem como para garantir sua utilização a objetivos educacionais, recreativos e científicos” (art. 1o). O regulamento também estabeleceu que as terras compreendidas no parque fossem, desde então, “declaradas de utilidade pública para fins de desapropriação, por via judicial ou amigável” (art. 6o). Esperava-se que se expedissem novos decretos de modo a concretizar as desapropriações, inclusive com o pagamento de indenização prévia, em dinheiro. Todavia, nem todas as terras foram efetivamente desapropriadas, muito embora não mais pudessem ser economica­ mente exploradas. Diante da gravidade das restrições, diversos proprietários que não tiveram suas terras expressamente desapropriadas, mas que possuíam imóveis no perímetro do parque florestal, ingressaram em Juízo pretendendo o recebimento de indenização. A alegação básica dessas demandas era a de ocorrência de desapropriação indireta. Aduziu-se que a criação do parque configurava violação ao direito de propriedade, e que os rigorosos gravames acabaram por esvaziar completamente o conteúdo econômico dos seus terrenos. O STJ, em um primeiro momento, não hesitou em reconhecer a ocorrência de desapropriação indireta promovida pela criação do Parque Estadual da Serra do Mar em São Paulo. Aplicou-se o entendimento segundo o qual existirá desapropriação indireta sempre que houver perda dos poderes inerentes ao domínio, ainda que promovida por limitação administrativa geral. Tal perda teria ocorrido no caso da Serra do Mar. Determinou-se, assim, em diversos casos, o pagamento de indenização, acompanhada de juros.90

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STJ, REsp no 94.297/SP, relator: ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe: 2-12-2002. O mesmo entendimento foi consignado em diversos outros julgados, ainda que houvesse o obstáculo da súmula 07 (que afasta o cabimento de recurso especial quando este fundar-se em

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Mais tarde, contudo, o STJ, num movimento iniciado pela Primeira Turma, modificou sua orientação. Conforme relatado pelo ministro Luiz Fux, é hoje pacífica a jurisprudência do STJ segundo a qual a criação do ‘Parque Estadual da Serra do Mar’, por intermédio do Decreto no 10.251/77, do Estado de São Paulo, não acrescentou qualquer limitação àquelas preexistentes, engendradas por outros atos normativos (Código Florestal, Lei de Parcelamento do Solo Urbano), que já vedavam a utilização indiscriminada da propriedade.91 De acordo com o entendimento atual do STJ, as medidas em questão eram meras limitações administrativas, porquanto inexistente esbulho possessório pelo poder público, bem como inocorrente o esvaziamento de todas as faculdades inerentes ao domínio.92 Segundo o STJ, impossível o pleito indenizatório em decorrência de imposição de caráter geral, que deveria ser suportada pelos proprietários, em benefício de toda a coletividade. Além disso, a criação do parque seria nada mais que um meio apto a dar efetividade à função social da propriedade,93 e ao que já estava disposto no Código Florestal vigente ­desde 1965 (Lei no 4.771/1965).94

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reexame de matéria fática). Vejam-se, por exemplo: STJ, REsp no 122.114/SP, relator: ministro Paulo Gallotti, Segunda Turma, DJe 1-4-2002; STJ, REsp no 271.927/SP, rel. min. Franciulli Netto, Segunda Turma, DJe 1-12-2003; STJ, REsp no 95.395/SP, rel. min. Ari Pargendler, Segunda Turma, DJ 15-12-1997; STJ, REsp no 209.297/SP, rel. min. Paulo Medina, Segunda Turma, DJ 10-3-2003; STJ, REsp no 435.128/SP, rel. min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe: 19-5-2003; STJ, REsp no 271.927 / SP, rel. min. Franciulli Netto, Segunda Turma, DJe 1-12-2003. STJ, AgRg no REsp no 988.785/SP, rel. min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 18.0-2-2009. No mesmo sentido: EREsp no 610.158/SP, rel. ministro Castro Meira, DJe 22-9-2008, AgRg no REsp 649183/SP, rel. min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 4-2-2010. V. tb., mais recentemente STJ, EDcl no AREsp 150.667/SP, rel. min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 15-10-2013. No mesmo sentido, em caso diverso, referente à criação de área de preservação permanente, o STJ entendeu, novamente, que “a desapropriação indireta somente se dá com o efetivo desapossamento do imóvel em favor do ente expropriante, tal não ocorrendo com a simples limitação decorrente da criação de área de preservação permanente”. STJ , AgRg nos EDcl no Resp no 1417632 MG, rel. min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 11-2-2014. Ver também o precedente citado no acórdão: AgRg no REsp no 1.361.025/MG, rel. min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29-4-2013. STJ, REsp no 468.405/SP, rel. min. José Delgado, Primeira Turma, DJe 19-12-2003: “O uso da sua propriedade está vinculado a sua função social. Esta tornou-se presente com a necessidade de preservar-se, para o bem da humanidade, os recursos naturais da Mata Atlântica”. Há casos em que esse é o fundamento central da decisão. Por exemplo, v. o seguinte trecho de ementa: “A criação do Parque Estadual da Serra do Mar não gera direito à indenização pura e simplesmente, eis que as limitações administrativas previstas no Decreto Estadual 10.251/77 já estavam anteriormente entabuladas no Código Florestal”. Todavia, nesse mesmo julgado, o rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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O STJ também julgou casos envolvendo a eventual perda de propriedade em razão da criação de reserva indígena. Segundo ficou assentado, a demar­ cação de terras indígenas, propriedade da União conforme o art. 20, XI, CRFB, não pode ser comparada à desapropriação indireta, a qual dependeria de esbulho possessório.95 O esbulho não ocorreria na hipótese da demarcação de terras indígenas, a qual é precedida de processo administrativo em que se garante a manifestação dos proprietários envolvidos. Em verdade, o único elemento seguro a caracterizar inegavelmente a ocorrência de desapropriação indireta no entendimento atual do STJ é o esbulho possessório.96 Assim, por exemplo, a Corte não criou óbice ao pagamento de indenização por desapropriação indireta no caso da obra do prédio da Câmara Municipal de Camaçari, do estado da Bahia, construída em terreno particular.97 O mesmo para a construção de rodovia (BR-060), que passa sobre propriedade particular,98 ressalvando-se, no entanto, as restrições administrativas que daí advenham com a imposição, por exemplo, de área non ­aedificandi, não seriam indenizáveis.99 O STF, por outro lado, entende que limitações administrativas podem caracterizar desapropriação indireta. Assim, em sentido diametralmente oposto ao do STJ, a criação da Reserva Florestal da Serra do Mar, por exemplo, caracterizaria desapropriação indireta.100 Para o STF, a criação de áreas de proteção permanente geraria o dever de indenizar, porquanto as matas teriam um valor econômico que é esvaziado pela regulação ambiental. Nas pala­ vras do ministro Eros Roberto Grau, o STF fixou o entendimento segundo

Tribunal ressalvou ser “devida a indenização somente no caso de restar comprovada limitação administrativa mais extensa que as já existentes na área antes do decreto e, também, prejuízo concreto decorrente da impossibilidade de exploração econômica da propriedade” (EREsp 610158/SP, rel. Ministro Castro Meira, DJe 22-9-2008). 95 STJ, REsp no 1.097.980/SC, rel. ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 1-4-2009. STJ, REsp no 901.319/SC, rel. min. Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 11-6-2007. 96 STJ, AgRg no REsp no 1.361.025/MG, rel. ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29-4-2013. 97 STJ, REsp no 950.290/BA, rel. min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe 5-6-2008. 98 STJ, REsp 767490/GO, rel. ministro Luiz Fux, Primeira Turma. DJe 7-5-2007. 99 STJ, REsp 760498/SC, rel. min. José Delgado, Primeira Turma, DJe 12-2-2007. Há julgados em sentido contrário, e.g.: STJ, REsp no 641.725/SC, relator: Castro Meira, Segunda Turma, DJ 12-9-2005, p. 282; e STJ, REsp no 149765/GO, rel. ministro Garcia Vieira, Primeira Turma, DJ 27-4-1998. 100 “Ação de desapropriação indireta. Reserva Florestal Serra do Mar. Assente a jurisprudência do Supremo Tribunal de que é devida indenização pela desapropriação de área pertencente à reserva florestal Serra do Mar, independentemente das limitações administrativas impostas para proteção ambiental dessa propriedade. Precedentes AI no 529.698, AgR, rel. min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, j. 18-4-2006, DJ 12-5-2006, p. 7. rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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o qual “a parcela de cobertura vegetal sujeita a restrições administrativas é passível de indenização, segundo parâmetros de mercado, de forma que o expropriado venha a ser ressarcido do valor correto, justo e real do bem que lhe foi retirado”.101 O STF não nega a possibilidade do desenvolvimento da regulação ambiental. Ressalva, todavia, que a propriedade privada igualmente merece ser protegida. Anote-se, porém, que o STF, muito embora reconheça expressamente a possibilidade de caracterização da desapropriação indireta no caso das reservas ambientais, em praticamente todos os casos,102 considera a matéria como de ordem infraconstitucional, inviabilizando recursos extraordinários, e reforçando o papel do STJ no tratamento do problema. Segundo o STF, a possibilidade ou não de indenização pela desapropriação indireta — apesar de reconhecida pelo Tribunal — não agride diretamente a Constituição.103 O não tratamento da matéria sob o ponto de vista constitucional é um erro a merecer reparo. Sem se adentrar uma discussão sobre o mérito dos casos concretos citados, parece certo que o problema deveria ser colocado em termos diversos, fundados num debate constitucional sobre a proteção da propriedade. Referidas questões deveriam ser analisadas do ponto de vista de uma possível regulação expropriatória, meio disfarçado de violação ao sistema constitucional de proteção à propriedade privada. Surge aí um campo para o desenvolvimento de uma teoria sobre os excessos regulatórios.

Trecho do voto do min. Eros Grau, relator do AI no 677.647/AP, j. 20-5-2008, Segunda Turma, DJe 102, 5-6-2008. No mesmo sentido, AI no 278029/SP, rel. min. Moreira Alves, j. 19-2-2002, Primeira Turma, DJ 5-4-2002, p. 60. RE no 134.297, rel. min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 13-6-1995, DJ 22-9-1995, p 30.597; e o RE no 100.717/SP, rel. min. Francisco Rezek, j. 9-12-1983, Segunda Turma, DJ 10-2-1984, p. 1019. 102 Em regra, o STF não conhece do recurso, apesar de consignar seu entendimento sobre o caso. Nesse sentido, por exemplo, o citado precedente RE no 134.297, rel. min. Celso de Mello, Primeira Turma, j. 13-6-1995, DJ 22-9-1995, p. 30.597. No RE no 267.817-1/SP, contudo, o STF conheceu do recurso com fundamento no art. 5o, XXIV, da Constituição, para determinar que o Juízo a quo considere a possibilidade de indenização pela cobertura florestal, no caso da criação de reserva ambiental estabelecida por norma geral (rel. min. Maurício Corrêa, j. 29-10-2002, DJ 29-11-2002). 103 STF, AI no 295.072 AgR/SP, rel. min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe 218, 19-11-2009: “Com efeito, à luz da jurisprudência desta Corte, as matas preservadas têm valor econômico que deve ser considerado na indenização relativa à desapropriação. (...) No entanto, trata-se de questão de âmbito infraconstitucional, de modo que não cabe o recurso extraordinário, dada a inexistência de ofensa direta à Constituição federal”. No mesmo sentido: RE no 267.817/SP rel. min. Maurício Corrêa, j. 29-10-2002, Segunda Turma, DJ 29-11-2002, p. 42. Mais recentemente, v. STF, AI no 851.862 AgR/SC, rel. min. Teori Zavascki, Segunda turma, DJe 17-9-2013; STF, RE no 597.897 AgR/SP, rel. min. Gilmar Mendes, Segunda turma, DJe 26-6-2013. STF, RE no 629.993 AgR/DF, rel. min. Rosa Weber, Primeira Turma, 4-12-2012. 101

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5.1 A nulidade como consequência. A regulação expropriatória é espécie de desvio de finalidade constitucional A regulação que esvazie a propriedade privada distancia-se de sua finalidade precípua e acaba por, verdadeiramente, promover a afetação do bem particular ao patrimônio público. Essa espécie de regulação é inconstitucional. Como toda inconstitucionalidade normativa, deve ser remediada por uma declaração de nulidade (modulando-se ou não seus efeitos, na forma do art. 27 da Lei no 9.868/1999), com a consequente restituição do bem tomado ao particular. As finalidades constitucionais e seus procedimentos de proteção não podem ser dissimuladamente atacados.104 Assim também aqueles relativos ao sistema de proteções à propriedade privada. Nesse sentido, é incorreta a leitura do art. 35 do Decreto-Lei no 3.365/1941 que impossibilita a declaração de nulidade da desapropriação indireta.105 Repise-se: o Estado não pode utilizar-se do caminho mais tranquilo da regulação para evitar o procedimento exigente da desapropriação. Desa­ propriações travestidas de regulação consubstanciam desvio de finalidade constitucional. São normas jurídicas que extrapolam a fixação do conteúdo do direito de propriedade e desvirtuam o art. 5o, XXIV, CF, sendo, portanto, inconstitucionais e nulas.106

De fato, todos os Poderes da República se submetem a finalidades fixadas na Constituição. Se assim não fosse, conforme Caio Tácito, estaria autorizado o abuso de poder. Trata-se de hipótese que configura “vício especial de inconstitucionalidade da lei pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva de competência e o uso ilícito que a coloca a serviço incompatível com a sua legítima destinação”. TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo, v. 188, p. 8, 2002. O desvirtuamento da finalidade é inconstitucional, e o STF tem reiterados arestos nesse diapasão. E.g.: ADI no 2.667-4, rel. min. Celso de Mello, j. 19-6-2002, DJ 12-3-2004. 105 Anote-se que Marçal Justen Filho defende a nulidade das desapropriações indiretas, reputando equivocado o entendimento que deixa o art. 35 do Decreto-Lei no 3.365/1941 prevalecer em face da Constituição (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 444). 106 Tal é o entendimento do Tribunal Constitucional Alemão, conforme anota Maurer, Direito administrativo geral, op. cit., p. 794. A nulidade é a consequência básica da inconstitucionalidade da regulação, o que não impede, contudo, que haja indenização, por força de outras normas jurídicas (Ibid., p. 794). 104

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5.2 Normas gerais podem ensejar indenização e expropriação Entender as regulações expropriatórias como hipóteses de inconstitucionalidade torna viável discutirem-se normas gerais como configuradoras da tomada de propriedade. É necessário, igualmente, reconhecer na inconstitucionalidade eventuais danos passíveis de serem indenizados. Afinal, a inconstitucionalidade pode causar danos. Como já defendeu Gustavo Binenbojm, quando houver regulação expropriatória, se estará diante de pretensões regulatórias que recaem sobre o núcleo de bens jurídicos patrimoniais, suprimindo situações jurídicas ativas. E para tanto não importa o caráter geral do ato que veicular a medida.107 Sem embargo, a lógica majoritária no Brasil, como se observa no STJ, é a de que só haverá desapropriação quando existir ato administrativo de efeitos concretos e individualizados. Tal seria pressuposto insuperável necessário à sua configuração. Contudo, essa ideia deve ser afastada. Primeiro, porque nem sempre é simples identificar um ato como geral.108 Segundo, porque certos atos gerais podem implicar real sacrifício e esvaziamento de direitos,109 o que não pode ser ignorado pelo direito. A regulação é capaz de promover a ablação do direito regulado a despeito de ser geral ou individual.110 Nessa hipótese, poderá refletir-se em expropriação, considerando-se a intensidade do sacrifício imposto.111 E isso vale, inclusive, para atos legislativos.112 Afinal, o legislador se submete à Constituição

Cfr. BINENBOJM, Gustavo, Regulações expropriatórias. Revista Justiça e Cidadania, n. 117, 2010. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2014. 108 Nem sempre é fácil definir “onde começa o geral e termina o singular”. García de Enterría e Fernández, Curso de derecho administrativo, op. cit., t. II, p. 243. 109 BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Limitação e sacrifício de direitos — o conteúdo e as consequências dos atos de intervenção da Administração Pública sobre a propriedade privada. Revista de Direito da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, v. 7, p. 12, 2003. 110 Nos EUA, e.g., como exposto, a distinção entre efeitos singulares e gerais sequer é colocada como determinante para a eventual ocorrência de takings. Na Alemanha o Tribunal Constitucional admite a discussão sobre leis com caráter expropriatório (Maurer, Direito administrativo geral, op. cit., p. 794). Na Espanha, igualmente, reconhece-se ser possível que leis tenham caráter expropriatório, sendo, portanto, nulas (Tribunal Constitucional, Sentencias de 29 de novembro de 1988 e 4 de julho de 1991, como dão notícia García de Enterría e Fernández, Curso de derecho administrativo, op. cit., p. 217-222 e 245-246). 111 Já sustentando tal linha de pensamento há algum tempo, v. SUNDFELD, Carlos Ari. Condicionamento e sacrifício de direitos — distinções. Revista Trimestral de Direito Público, v. 4, p. 80-81, 1983. No mesmo sentido, v. Binenbojm, Regulações expropriatórias, op. cit. 112 FORSTHOFF, Ernest. Tratado de derecho administrativo alemán. Tradução de Legaz Lacambra, Garrido Falla e Gómez de Ortega y Junge. Madri: Instituto de Estúdios Políticos, 1958. p. 441. 107

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que proscreve o confisco e a desapropriação sem indenização prévia e em dinheiro, também ele não pode se valer do caminho da regulação por lei para inviabilizar atividades. Celso Antônio Bandeira de Mello, no mesmo diapasão, já destacou que: [a]s leis não podem, a pretexto de regular ou condicionar o exercício da propriedade, elidir ou bloquear o uso, o gozo ou a disposição do bem sobre o qual incida o domínio. A supressão ou o bloqueio destes atri­ butos inerentes à propriedade (...) não caracterizam definição do âmbito do direito, não são limitações à propriedade, mas arremetidas contra o direito de propriedade.113 É assim que Gustavo Binenbojm114 já sustentou que será expropriatória a regulação que, a pretexto de conformar, provoca o esvaziamento das funções inerentes ao exercício da propriedade privada de usar, gozar, fruir e dispor (art. 1.228, do Código Civil), incluindo nesse rol também bens imateriais. Nesses casos, há o cerceamento da funcionalidade prática e utilidade econômica do direito, transcendendo os contornos daquilo que se convencionou chamar limitação administrativa.115 É nesse sentido, por exemplo, que hipóteses usualmente colocadas sob o rótulo da desapropriação indireta poderiam ser analisadas. O ato do poder público que esvazia em demasia o conteúdo econômico e a funcionalidade de bens por questões ambientais, e.g., pode ser analisado como um ataque direto ao cerne do direito de propriedade. Nesses casos, o ato (geral ou individual) deverá: (i) ser anulado e (ii) ensejar direito à indenização decorrente do esvaziamento econômico do bem.116 Mas sustentar que o esvaziamento do direito regulado representa confisco e enseja indenização como regra não responde a pergunta prática essencial:

V. MELLO, Censo Antônio Bandeira de. Tombamento e dever de indenizar. Revista de Direito Público, v. 20, n. 81, p. 66, jan./mar. 1987. 114 V. Binenbojm, Regulações expropriatórias, op. cit. 115 No mesmo sentido, v. Ibid. 116 O mesmo se diga das regulações que imponham a prática de preços irreais. Segundo o STF, aliás, medidas como essas são um “empecilho ao livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa” (v. STF, RE no 422.941-2/DF, rel. min. Carlos Velloso, j. 6-12-2005, DJ 24-3-2006; v. tb. STF, Ag.Reg. RE no 583.992-3/DF, rel. min. Ellen Gracie, j. 26-5-2009, DJe no 108, 23-6-2009). Realmente, conforme Gustavo Binenbojm, a regulação que distorça a realidade de preços, de um modo em que sequer seja factível repassar tais custos ao usuário do serviço, pode ser expropriatória (Binenbojm, Regulações expropriatórias, op. cit.). 113

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quando será possível caracterizar a regulação expropriatória? Quando o regulador vai longe demais?

6. E quando haverá regulações expropriatórias? Nenhuma fórmula será definitiva. Não é simples determinar o ponto a partir do qual a regulação se transforma em expropriação. Acaba sendo necessário atentar para as circunstâncias específicas de cada caso para se saber se houve um excesso ou não. Nem mesmo nos EUA,117 onde há mais de um século de debates sobre o tema, chegou-se a uma conclusão peremptória.118 De todo modo, o esforço de fixação de standards não pode ser abandonado. Gustavo Binenbojm119 já defendeu que a regulação poderá ser caracterizada como expropriatória em três hipóteses: (i) quando vier acompanhada de esbulho possessório; (ii) quando for desproporcional, porquanto desnecessária e/ou tiver custos maiores que seus benefícios; e (iii) quando for excessiva por configurar esvaziamento econômico ou retirar o conteúdo prático do direito que passa a ser usado para o atendimento de finalidades públicas, sem qualquer compensação para o proprietário. Realmente, deve-se concordar que ocorrerá a expropriação se a regulação vier acompanhada do esbulho. A tomada da posse é critério forte a determinar um confisco inconstitucional. Nesta hipótese, evidencia-se a incorporação forçada do bem ao patrimônio público e o esvaziamento das faculdades inerentes ao domínio privado.120 Nesse tipo de caso, ademais, na linha da tese de Frank Michelman121 exposta, os custos relacionados à avaliação dos danos e identificação do que se deve indenizar são baixos, ao contrário dos elevados custos gerados na decisão que levou ao esbulho.

Fischel, Regulatory takings, op. cit., p. 325. CHEMERINSKY Erwin. Constitutional law. Policies and principles. 3. ed. Nova York: Aspen, 2006. p. 658. 119 V. Binenbojm, Regulações expropriatórias, op. cit. 120 Por exemplo: a criação de uma reserva ambiental por meio de um ato normativo pode vir acompanhada de ação concreta do Poder Público que ocupe a área declarada, e.g., instalando uma sede da polícia florestal, com placas e avisos sobre o regime estabelecido. 121 Michelman, Property, utility and fairness, op. cit., p. 1665-1258.

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Mas o esbulho e a tomada física da propriedade não podem ser os únicos critérios capazes de distinguir uma regulação comum de uma expropriação. É certo que se deve empenhar na delimitação de outras balizas. O esforço é de busca de parâmetros mínimos que possam ser utilizados com base na tradição jurídica brasileira e que justifiquem o remédio judicial de nulidade. Critérios de proporcionalidade, proibição do excesso, na linha do sustentado por Gustavo Binenbojm, além da vedação do uso de tributos para fins de confisco podem ser passos iniciais — mas não suficientes — na busca de parâmetros de avaliação do caráter expropriatório da regulação. Realmente, pode-se afirmar,122 embora não haja certeza quanto ao contrário, que toda regulação expropriatória é desproporcional.123 Todavia, isso não resolve o problema, sabendo-se que pode ser igualmente tormentosa a aplicação do postulado da proporcionalidade. É também viável adiantar que a noção de regulações expropriatórias relaciona-se à premissa segundo a qual o Estado deve agir pautado por princípios de comedimento que se consubstanciam num princípio aplicativo geral de vedação do excesso.124 Postulado que “está presente em qualquer contexto em que um direito fundamental esteja sendo restringido”.125 Mas também a noção de vedação do excesso é incapaz de fornecer uma resposta definitiva. Devem-se investigar meios de diminuição da incerteza quanto à definição de uma expropriação.126 O direito tributário, há muito tempo, tenta resolver a questão da caracterização de confiscos. Richard Epstein destaca que tributação e regulação “podem ser utilizadas como meio de confisco, pois as duas são equivalentes a uma (parcial) tomada (taking) da propriedade privada”.127 Regular e tributar relacionam-se com a aptidão estatal de conformar, limitar e fomentar a atividade econômica, podendo, por consequência, também levar a comportamentos dos agentes econômicos.128 Em verdade, o poder de tributar possui

Binenbojm, Regulações expropriatórias, op. cit. A regulação expropriatória é desnecessária e/ou desproporcional em sentido estrito. 124 A proibição do excesso traduz-se na ideia de que a “realização de uma regra ou princípio constitucional não pode conduzir à restrição a um direito fundamental que lhe retire um mínimo de eficácia. Por exemplo, o dever de tributar não pode conduzir ao aniquilamento da livre iniciativa” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 133). 125 Ibid., p. 133. 126 Defendendo a busca de parâmetros, v. Ackerman, Against ad hocery, op. cit., p. 1697-1711. 127 EPSTEIN, Richard. Taxation, regulation and confiscation. Osgoode Hall Law Journal, v. 20, p. 434, 1982. 128 A relação entre tributação e regulação é feita por: BARBOSA, Hermano Notaroberto. 122 123

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conteúdo regulatório, sendo, também, uma potestade estatal potencialmente aniquiladora.129 Nas famosas palavras do juiz Marshall da Suprema Corte dos EUA, o poder de tributar envolve o poder de destruir.130 Nessa toada, “o confisco está para a tributação assim como a regulação expropriatória está para a regulação”.131 E o confisco também será inconstitucional. Conforme o STF: “[S]em dúvida, todo imposto que torne praticamente proibitivo a exploração de um comércio lícito, deve ser considerado inconstitucional”.132 Mas como delinear critérios aptos a caracterizar com segurança esse uso indevido do poder de tributar? Os estudiosos dos tributos têm sérias dificuldades no oferecimento dessas respostas.133 As regulações expropriatórias criarão o mesmo tipo de dificuldades. Mas nem por isso deixa de ser fundamental o desenvolvimento de uma teoria sobre o tema. Se toda atividade econômica possui uma função social, ela não pode, por outro lado, ser tomada para a realização de finalidades públicas que acabem por refletir a sua extinção. Afinal, também é função social da propriedade a produção de riqueza e o desenvolvimento.134 Um critério a ser considerado e objeto de mais investigações é de avaliar se as imposições regulatórias ou tributárias podem ou não ser absorvidas pela atividade empresarial.135 Se for possível repassar o custo gerado ao preço

Regulação econômica e tributação: o papel dos incentivos fiscais. In: DOMINGUES, José Marcos (Coord.). Direito tributário e políticas públicas. São Paulo: MP Ed., 2008. p. 237-298. 129 A propósito, registre-se que a recente ação direta de inconstitucionalidade, proposta pelo Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil, perante o STF, a qual pleiteia a correção da tabela do imposto de renda, que estaria defasada em 61,2%, é um caso que poderia ser estudado à luz da noção de regulações expropriatórias. 130 McCulloch v. Maryland, 17 U.S. 316 (1819). 131 Binenbojm, Regulações expropriatórias, op. cit. 132 STF, RE no 18.976, rel. min. Barros Barreto, DJ 26-11-1952, p. 14.653. “A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais” (STF, ADI-MC no 2.010 / DF, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 30-9-1999, DJ 12-4-2002, p. 51). 133 V., por exemplo: AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 169. 134 Nesse sentido, v. Binenbojm, Regulações expropriatórias, op. cit. 135 Veja-se, a propósito, o exemplo trazido por Harmut Maurer no direito alemão: o estado de Hessen editou lei que determinava que toda editora presente naquela unidade federativa era obrigada a doar um exemplar de cada livro editado à biblioteca pública central. Isso não seria um problema para a grande maioria das editoras, que poderiam absorver isso aos seus custos e preços finais, de modo que seu direito seria apenas conformado, mas não confiscado. Nada obstante, o Tribunal Constitucional Alemão fez uma ressalva para o caso de uma pequena rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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cobrado do usuário ou consumidor, não haveria, em princípio, confisco. No caso de serviços públicos, por exemplo, o incremento de custos causados pelo poder concedente pode ensejar, justamente, um pleito de aumento de tarifas, de modo que a demanda por recomposição da equação econômico-financeira é uma maneira de evitar expropriações.

7. Encerramento Faltam no Brasil estudos sobre os limites ao conteúdo da regulação. Há substanciosas obras focadas em aspectos institucionais do fenômeno do Estado regulador. Todavia, num cenário de inflação regulatória, carece-se de investigações específicas sobre as demasias interventivas do regulador. As abordagens focadas no exame da proporcionalidade, em regra, apenas reproduzem aquilo que já se estudava para os limites de atos normativos em geral. O mesmo se diga do uso de teses como o banimento ao confisco, ou mesmo a denominada vedação do excesso. É urgente que se desenvolvam trabalhos que tratem, com maior densidade teórica, da regulação e suas exorbitâncias, sejam elas veiculadas por leis, ou por regulamentos. Não é admissível que o caminho mais fácil da regulação acoberte medidas que expropriem direitos e ignorem o devido processo de desapropriação previsto no art. 5o, LIV da Constituição. Mas não parece ser suficiente que critérios tradicionais de proporcionalidade e vedação do excesso sejam as respostas gerais contra esse tipo de postura. Acredita-se que as ideias preliminares lançadas anteriormente apontem para possíveis caminhos para que se construam parâmetros de identificação de regulações expropriatórias. A compreensão desses limites é dever do estudioso do direito comprometido em conter o poder. É esse o tipo de reação que se espera diante das provocações lançadas neste artigo; reações que se voltem a uma possível e urgente teoria sobre as regulações expropriatórias no Brasil.

editora que produzia, em escala diminuta, livros de grande valor. Para tal caso, conforme narra Hartmut Maurer, a Corte reconheceu que: “o dever de entrega gratuito de impressos em grandes proporções, que foram produzidos com grande gasto e em pequena edição, apresenta um agravamento desproporcional e anti-igualitário” (BVerfGE 58, 137) (Maurer, Direito administrativo geral, op. cit., p. 796). rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 199-235, set./dez. 2014

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