REGULARIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NA ARGENTINA: A OPORTUNIDADE POLÍTICA SOB A PERSPECTIVA DA DISPUTA SIMBÓLICA PELO PODER

July 1, 2017 | Autor: Michele Silva | Categoria: Communication
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REGULARIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NA ARGENTINA: A OPORTUNIDADE POLÍTICA SOB A PERSPECTIVA DA DISPUTA SIMBÓLICA PELO PODER Michele Santos da Silva1 RESUMO A proposta deste trabalho é discutir a regulamentação dos meios de comunicação argentina na perspectiva da oportunidade política. Aprovada em outubro de 2009, a medida - também conhecida por ley de medios, é um tema que merece atenção pois, além de ter sido a primeira a ser aprovada em território latino-americano - inspirando discussões em outros países como o México, Equador e, mais recentemente o Uruguai, ela é o resultado de um confronto político entre a presidente Cristina Fernández de Kirchner e o Grupo Clarín (GC). Portanto, sua abordagem está pautada pela revisão bibliográfica de autores que refletem o contexto político da aprovação da lei, sob o viés da disputa pelo poder entre governo e mídia. Isto é, a lei foi uma agenda política ou consequência de uma retaliação da presidência ao grupo midiático? Ainda, inclui pesquisadores que debatem a concentração dos meios na América Latina como um fenômeno bastante comum, cujos governos encontram-se submetidos às corporações de mídia. Desse modo, o objetivo desta análise é refletir a aprovação da lei audiovisual como uma oportunidade política utilizada pelo governo Kirchner para prejudicar os interesses comerciais do Grupo Clarín, após a ruptura dessa antiga aliança. Isso demonstra que a promulgação e o enfrentamento em torno dessa lei estiveram mais inclinados para uma ação de legitimação do poder em disputa, que uma preocupação em desenvolver políticas públicas para o benefício da sociedade. Palavras-chave: Oportunidade Política Ley de Medios; Argentina.

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INTRODUÇÃO

Na América Latina dos últimos anos surgiram alguns exemplos de intervenção estatal que resultaram em leis para coibir a concentração de propriedades midiáticas. Na Argentina, por exemplo, a Ley de Servicios Audiovisuales n. 26.522, sancionada em outubro de 2009, 1

Jornalista e mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]. Pesquisa financiada pela CAPES desde abr/2014.

surgiu com uma política de pluralização para desconcentrar as empresas desse setor. Até esse momento, os argumentos que mediaram tais discussões pareciam não ter um impacto significativo, como se o pioneirismo argentino tivesse despertado um novo desejo de luta pela democratização dos meios. Desse modo, países como México, Equador e Uruguai deram início ao processo de criar sua própria lei de mídias, talvez inspirados pela atrevida iniciativa de Cristina Fernández de Kirchner que personificou a messiânica tarefa de fragmentar os conglomerados de comunicação em seu país. Sem dúvidas a lei argentina foi uma grande vitória para a região. Entretanto, seu contexto envolve uma inconveniente desordem cronológica nos fatos, induzindo à ideia simplificada de que a medida foi um objetivo permanente do kirchnerismo, como se o governo de Néstor e Cristina Kirchner tivessem sido completamente independentes de uma relação com a imprensa local, especialmente com o Grupo Clarín. Contudo, o cenário que implica a criação da lei audiovisual traz enlaces menos audazes, pois antes da súbita necessidade de construir uma agenda política voltada para a pluralização de vozes, o próprio governo Kirchner realizou concessões para ampliar a concentração de mídias, beneficiando diretamente o Grupo Clarín, hoje seu maior rival político. Portanto, a lei não foi o resultado de uma medida pensada em democratizar os meios de comunicação na Argentina, mas sim, de um confronto político (TARROW, 2009) que criou uma oportunidade política (GAMSON e MEYER, 2009) para o governo legitimar a lei como uma demanda social, embora seu verdadeiro propósito tenha sido coibir o Grupo Clarín (HENKEL e MORCILLO, 2013; LINS, 2009; MOCHKOFSKY, 2011; MONTENEGRO, 2011; SARLO, 2011; SIMÓN, 2013), após o rompimento de sua aliança. Logo, o enfrentamento entre governo e mídia também demonstra que o conflito foi uma oportunidade política para concretizar um debate inédito na América Latina, entendendo o conceito de oportunidade política como uma “abertura para expressar demandas” (GAMSON e MEYER, p. 276, 2009) e, ao mesmo tempo cumprir um fim. Tal confronto político (TARROW, 2009) determinou a luta na produção de sentido em torno da lei de serviços

audiovisuais, pois, se de um lado estava o governo que hipoteticamente censurava a mídia - por ela desafiar o governo com denúncias de corrupção, de outro estava o governo que supostamente era ousado por opor-se a uma a mídia apenas interessada em lutar por seus interesses comerciais e não pela liberdade de expressão de um país. Com base nessas premissas, fica evidente que a esfera midiática foi um importante mediador na mobilização da opinião pública, conquistando aliados e medindo forças entre Cristina Kirchner e Grupo Clarín. Inclusive, ela deu visibilidade à disputa cujo cada ator tratou de legitimar as demandas da ley de medios como assuntos de interesse público (COBB, ROSS e ROSS, 1976), embora seu objetivo final fosse concretizar propósitos privados. Para facilitar o entendimento dos argumentos aqui debatidos, o presente artigo está dividido em três seções. A primeira faz uma breve discussão sobre a concentração midiática na América Latina, comentando a importância da regularização dos meios. Segue pela ley de meios analisada sob a perspectiva da oportunidade política que resultou do confronto entre governo e imprensa e não de uma construção de agenda política. A terceira seção aponta os principais aspectos e avanços da lei argentina, finalizado com as considerações finais.

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CONGLOMERADOS

MIDIÁTICOS:

UM

OBSTÁCULO

PARA

A

PLURALIDADE DE VOZES E PRÁTICAS DEMOCRÁTICAS

Os meios de comunicação dedicados à informação, principalmente, possuem funções capaz de legitimá-los como um importante mediador para o exercício da democracia (LIMA, 2011). Nesse sentido, sua relevância como ator social reflete-se na capacidade que possui para influenciar no modo como os fatos e os eventos são decodificados e interpretados pelos indivíduos, incluindo seu alto poder de impacto em agendar temas que serão debatidos no espaço público.

Apesar de a interpretação sobre a finalidade da imprensa partir do pressuposto de que ela é uma ferramenta a serviço da esfera pública, é sabido que toda a dinâmica que envolve sua prática no campo social atende aos interesses privados, o que é previsivelmente esperado tratando-se de empresas cujo objetivo é a lucratividade para a sua manutenção no mercado. Entretanto, quando todo esse potencial se concentra em poucas organizações, especialmente, em países com democracias relativamente jovens, a ferramenta que estaria a serviço do povo passa a ter um efeito inverso e nocivo, pois geralmente nela se observa a instrumentalização das mídias para disputar o poder (Ibidem, p. 10). Desse modo, para o contexto latino-americano, pesquisadores apontam que a região ainda possui uma acentuada concentração de meios a serviço de um pequeno grupo de organizações (BECERRA e MASTRINI, 2003, 2006, 2007, 2009; SOARES, 2009; MATOS, 2013), ressaltando que tal fenômeno é grave, pois fere as premissas básicas da democracia moderna, já que limita a variedade de meios, impede a pluralidade de acesso e reduz, ainda, a participação cidadã no processo social de circulação de mensagens (BECERRA e MASTRINI, 2007). Assim, considerando que os meios de comunicação desempenham um papel fundamental na mediação entre os processos comunicativos e as práticas sociais e, entendendo a presença de conglomerados como um fator que dificulta a interpretação da função comunicacional como um projeto de políticas públicas a serviço do público, a reflexão que permeia esta questão é como regularizar os meios de comunicação em uma sociedade cuja informação é interpretada como uma mercadoria, “apropriada por empresas privadas portadoras de interesses políticos?” (LIMA, 2011, p.10). Sem dúvidas a resposta para essa questão é promover a pluralidade de vozes nesses meios. O que significa que os governos devem criar políticas de controle para a concessão de licenças, fomentar estratégias que rompam com a homogeneização de ideias, singularidade dos pontos de vista e das notícias, isto é, caminhar o caminho inverso das empresas hegemônicas, diminuindo sua participação no desenvolvimento das políticas e culturas populares.

Embora o panorama latino-americano esteja longe de uma democratização dos meios que contraponha o atual oligopólio configurado em países como o Brasil, México, Venezuela, Chile e Colômbia, existem debates e ações políticas que tentam conscientizar e minimizar o impacto dos monopólios midiáticos, situações essas exploradas por países que estão tratando de regulamentar a concessão de licenças. Na Argentina, por exemplo, o pioneirismo de sua Ley de Servicios Audiovisuales n. 26.522 trouxe a proposta de uma política de pluralização a partir da desconcentração dessas empresas, sendo uma ação bastante importante para impulsionar o tema na região. Tanto que, de acordo com informações divulgadas no Relatório Anual para a Liberdade de Expressão (2013), articulada pela Organização dos Estados Americanos, entre 2012 e 2013 ocorreram alguns avanços. Por exemplo, o Equador aprovou sua lei de serviços audiovisuais no mês de junho, o México decretou sua reforma constitucional sobre as telecomunicações e competitividade mercadológica cuja vigência entrou agora em agosto, no Uruguai, em maio o presidente José Mujica encaminhou seu projeto de lei de mídias ao Congresso Nacional, que não foi aprovado todavia por conta das eleições presidenciais. Ainda, de acordo com Acevedo (2014), o Peru também está discutindo essa temática depois da fusão de 54% da empresa EPENSA pelo Grupo El Comercio - que passou a ter o controle de 80% do mercado de imprensa escrita. Sem dúvidas, essas iniciativas demonstram que há um interesse em ampliar a participação no processo de produção de conteúdos informativos, o que é bastante positivo para a sociedade. Mas a questão que permeia esta temática são os contextos em que eles ocorrem, pois, enquanto alguns governos lançam essas políticas em nome da democracia, análises mais aprofundadas apontam que elas não passam de estratégias para limitar a liberdade de expressão para o exercício de políticas autoritárias. Por outro lado, existem empresas de comunicação que são a própria prática do despotismo. Diante de políticas regulatórias, acusam seus governos de praticarem a censura, argumentando que estão atendendo os interesses da sociedade, sendo que na verdade não estão.

Esses debates são fáceis de confundir a opinião pública que, facilmente desconhece os assuntos que permeiam essas questões. E, dependendo da forma como o argumento sobre a regularização de mídias é realizado, há um grande risco de ele não ser percebido como uma importante política pública para a emancipação da sociedade.

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RETALIAÇÃO OU AGENDA POLÍTICA? A OPORTUNIDADE PARA UMA LEI DE SERVIÇOS AUDIOVISUAIS A PARTIR DA RUPTURA DE ALIANÇA

A oportunidade política que resultou na promulgação da lei de serviços audiovisuais é observada aqui como ação interdependente e resultante do confronto político entre o Cristina Kirchner e o Grupo Clarín (GC), apontando que o debate para a democratização dos meios argentinos não teria ocorrido na ausência da fratura dessa relação. Porque antes da ruptura, ambos os atores mantinham uma aliança de conveniências. Isso significa que enquanto o GC fazia um jornalismo míope e acrítico sobre o governo Kirchner, em troca recebia informações exclusivas da Casa Rosada (MOCHKOFSKY, 2011), cujos benefícios não se limitaram aos furos jornalísticos. No governo de Néstor Kirchner (20032007), por exemplo, contribuiu-se efetivamente para o aumento da concentração dos meios do Grupo Clarín quando lhes concedeu a renovação da licença do Canal 13 seguido pela aprovação da fusão entre Cablevisión e Multicanal (LINS, 2009, p.13). Contudo, após a Resolução 1252 - quando o Grupo Clarín deu cobertura sobre os protestos ruralistas, a presidência tomou como causa da queda na sua imagem positiva o próprio Grupo, que de fato percebeu que não seria vantajoso manter seu apoio a um governo com

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Trata-se de um imposto sobre os grãos destinados à exportação, o que afetou a elite agrária daquele país. Seu resultado foi uma onda de protestos que duraram quase quatro meses, prejudicando a imagem da presidente Cristina Kirchner.

problemas de aceitação pública. A partir de então, a aliança foi rompida dando início ao confronto político entre mídia e governo. Com base nesses eventos, é possível observar que a oportunidade política que impulsionou à lei de mídias argentina foi utilizada pelo governo como uma estratégia de “luta pelo sentido de suas reivindicações” (GAMSON e MEYER, 2008, p.289). Isto é, embora a verdadeira finalidade da lei tenha sido uma vingança (SARLO, 2011) para prejudicar os interesses comerciais do Grupo Clarín, o discurso da pluralização de vozes fez a medida parecer uma política originada da necessidade de fortalecer a democracia. Inclusive, do ponto de vista da construção da agenda política para os serviços públicos, as normas aplicadas para coibir a concentração de meios praticados na Argentina demonstram que quem exerce poder sobre esse tipo de agenda tem a capacidade de manipular os valores predominantes de um assunto, seja por sua ratificação, veto, interpretação ou sentidos enquadrados: Quem é favorecido pela lei, nas suas relações de barganha, buscará manter uma doutrina de legalidade; sustentará o cumprimento automático da “carta da lei”, tratando de sustentar algumas leis com outras novas que estreitam ou fecham a abertura de ponderação futura (NIEBURG apud COBB e ELDER, 1971, p. 902, tradução nossa).

Contudo, a estratégia de legitimação da ley de meios não foi favorável à presidente Kirchner, pois ela terminou beneficiando o Grupo Clarín que soube explorar exaustivamente sua própria imagem como injustiçado, enquadrando-se como vítima do despotismo e da censura do governo, o que de certo modo ofuscou a necessidade do Grupo explicar fatos passados, como a barganha recebida do governo em troca de um jornalismo questionável. Sobre esses aspectos, Sarlo (2011) discute que:

O ataque, paradoxalmente, embeleceu os meios. A oportunidade foi perdida por um reflexo tipicamente kirchnerista: o uso instrumental de questões de princípio para decorar interesses econômicos ou políticos Por exemplo, os direitos humanos no caso dos filhos adotivos, suspeitos de terem sido apropriados pela dona do Clarín; a denúncia de que esse diário e o La Nación haviam se apoderado do Papel Prensa com o amparo da ditadura [...]; também, a consigna de que era urgente uma nova lei de meios já que na Argentina a ditadura ainda regia disposições, como se não tivesse

passado um quarto de século, dúzias de medidas nos sentidos mais díspares e, sobretudo, sete anos de governo kirchnerista, cujo transcurso não havia modificado esse antecedente nefasto (p. 218, tradução nossa).

Independentemente dos mecanismos que resultaram na regulamentação dos meios concentrados, reconhecendo de antemão a sua importância, o contexto em que eles foram trazidos à esfera pública debilitou sua credibilidade. Pois se converteram em alvo de críticas durante os protestos massivos contra Cristina Kirchner, ocorridos nos meses de setembro de novembro de 2012 (SILVA, 2013). Com isso, pode-se afirmar que a própria argumentação realizada em torno da lei desorientou a percepção da sociedade, indecisa entre duas estruturas de enquadramento que permearam o confronto: o da vingança ou o da boa prática de agenda política. Isso mostra que mesmo tendo a seu favor um tema com justiça de causa, poder de persuasão, extensão e reação das elites e de outros grupos (TARROW, 2009), a investida da presidência foi quase uma propaganda auto destrutiva para seu governo, pois o público teve dificuldades de entender e aceitá-la. Portanto, Cristina Kirchner perdeu um valioso espaço de debate sobre a lei para o fortalecimento das discussões em torno do interesse privado das grandes empresas de mídia, as quais conseguiram transferir a saliência de suas agendas para a agenda da sociedade (McCombs, 2011).

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GRUPO CLARÍN E LEY DE MEDIOS: UM BREVE APONTAMENTO SOBRE O CONGLOMERADO E A LEI ARGENTINA

A consolidação do Grupo Clarín como conglomerado teve como estratégia a neutralidade política, alinhando-se com as tendências que proporcionassem alguma vantagem

para seus objetivos (MOCHKOFSKY, 2011). Tanto que amparou ditadores, democratas, progressistas e liberais. Sobre o aspecto de sua isenção política, Sivak comenta: “Diria que é um diário não ideológico. Seus leitores não esperam tal coerência, esperada em diários como o La Nación ou o La Vanguardia. Até dois dias antes da queda de Perón, eles eram peronistas e, de repente, houve um furioso anti-peronismo. Mas se olharmos para a venda de jornais... cresce com isso. (PÁGINA/12, 2013, tradução nossa)

De todos os modos, esse apoio político pluralizado ajudou significativamente na sua expansão. Durante a presidência de Carlos Menem, por exemplo, o GC obteve a concessão do Canal 13 e da Radio Mitre. Mas após uma crise com o governo, o próprio Menem admitiu que seu maior erro foi ter derrogado o artigo 45 da lei sobre radiodifusão, a mesma que havia aprovado para consolidar o Grupo Clarín: Não medi as consequências. Fiz para apoiar a liberdade de imprensa, mas essa anulação […] a monopolizou. Não esperava que algumas empresas se convertessem em proprietárias de diários, canais de televisão, rádios e, inclusive, uma cota do Papel Prensa. É um erro que teremos que reparar (LA NACIÓN,1992, tradução nossa).3

Inclusive, no governo de Néstor Kirchner o Grupo também foi contemplado com importantes licenças, como a fusão de Cablevisión e Multicanal

No início do governo de Néstor Kirchner, o grupo Clarín buscou manter um posicionamento relativamente próximo do governo, embora sem qualquer entusiasmo ou alinhamento ideológico, o que lhe assegurou a renovação da licença do Canal 13 e a aprovação da fusão entre Cablevisión e Multicanal (LINS, 2009, p.11).

Mas quando o Grupo Clarín é referido como um conglomerado de mídias, então, o que o caracteriza como tal? A resposta está na sua composição, que atende vários segmentos da

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Resposta do presidente Carlos Menem ao jornal La Nación (08/07/1992), sobre os maiores erros cometidos durante seus três anos de gestão.

mídia como jornais impressos, revistas, emissoras de rádio e de televisão aberta e a cabo, além de sites de conteúdo, serviços de banda larga e produtora de filmes4. Para se ter uma dimensão do que é esse conglomerado, junto com outros três importantes grupos midiáticos na América Latina - Organizações Globo (Brasil), Grupo Televisa (México) e Grupo Cisneros (Venezuela), possui 60% do faturamento total dos mercados latino-americanos5. Sozinha, a corporação argentina controla mais de 60% da receita publicitária em seus jornais impressos e pouco mais de 50% do mercado de televisão por assinatura. Na TV aberta, sua emissora El Trece alterna a liderança com a emissora Telefé e no mercado de radiodifusão sonoro controla 50% do share6 na AM e 12% na FM (LINS, p. 6, 2009). O problema dessa concentração de mercado é que ela diminui a concorrência, acarretando na homogeneização do enfoque das notícias, das fontes abordadas, dos pontos de vista explorados e da diversidade informativa apresentada ao público que, de modo geral, é impactado culturalmente e no modo de interpretar a realidade (MASTRINI e BECERRA, 2003). Isso dificulta o surgimento e a manutenção de meios de comunicação de menor porte ou alternativos, impactando, também no controle dos preços, que é fixado a custos elevados pelas grandes corporações. No caso argentino, a concentração de meios unificou a publicidade em veículos líderes, fomentando a baixa oferta de programação cultural local, entre outros problemas (LINS, 2009, p. 4). Isso torna indiscutível a importância e a urgência de normas que regularizem a concessão das licenças audiovisuais, pois os conglomerados comprometem a qualidade do que se é discutido e assimilado no espaço público.

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Informação disponível em: http://www.grupoclarin.com/institucional/empresa Dados de Mastrini e Becerra (2003). 6 Corresponde à porcentagem de audiência de um programa com relação à audiência do total do veículo (rádio) para um mesmo período. 5

4.1 UM POUCO SOBRE A LEI QUE PRETENDE FRAGMENTAR MONOPÓLIOS DE MÍDIA

Fazendo uma breve avaliação dos pontos positivos e negativos da lei, Lins (2009) destaca alguns aspectos. Os positivos consistem em um: 1. Marco legal relativamente independente da tecnologia; 2. Simplificação nos processos administrativos; 3. Limitação da concentração sem dificultar as atividades empresariais, estimuladas por um mercado competitivo e equilibrado. Os negativos referem-se: 1. Mecanismos de controle por parte do Estado, centrado nos critérios do processo licitatório que, na opinião do autor, são subjetivos; 2. Insegurança administrativa pela implicação do Estado em contratos particulares; 3. Pressão exercida pelo governo no sentido de induzir situações de autocensura, ao determinar a fiscalização sobre aquilo que considera uma ofensa aos princípios constitucionais (p. 29-30). Entre as metas que a lei argentina estipula está a regularização das concessões - que atualmente, não devem superar os 10 anos. Ou seja, é possível que a empresa renove sua licença, mas apenas uma vez e, de acordo com a lei, ela deve ser monitorada para a avaliação da qualidade das atividades prestadas. Entre os requisitos de qualidade para uma nova licença estão o pluralismo de vozes, ética, informações de interesse público, garantia de produção local em todo o território argentino, etc. (ARGENTINA, 2010). Também, inclui a reserva de 33% em todas as bandas terrestres de radiodifusão sonora e televisiva para os meios sem fins lucrativos, como os administrados por civis, fundações, cooperativas, sindicatos, entre outros. Quanto à fiscalização que impede a concentração de meios audiovisuais, estabelece um limite de 10 licenças de rádio e/ou televisão aberta por prestador ou 24 para serviços contratados, os quais não devem superar mais que 35% da audiência nacional, sendo o teto de participação estrangeira de até 30% (LINS, 2009). Além disso, especifica que dentro de uma mesma região não pode haver mais que três licenças, das quais uma para rádio AM, duas para FM e um canal aberto ou a cabo. A lei ainda reserva uma frequência de rádio AM e FM e televisão aos povos originários nos locais onde estão assentados (BURCH, 2013). Também

estipula que os meios estatais devem ser públicos e não governamentais, cuja programação deve promover variedade informativa, educacional, cultural e de entretenimento. Para Simón (2013), o projeto de lei careceu de tempo para debates mais aprofundados, ferindo à constituição - se for considerada as irregularidades nos seguimentos de sua sanção e promulgação. Enfatiza que seu propósito esteve longe da democratização das mídias, consistindo em uma publicidade oficialista para atacar o Grupo Clarín. Nesse sentido, Sarlo (2011), também compartilha tal ideia, ressaltando que os princípios de pluralidade de vozes e representação de minorias e povos originários estão limitados ao serviço instrumental do kirchnerismo, pois os verdadeiros interesses estão no entorno particular do governo, o que considera grave. Henkel e Morcillo (2013) afirmam que em momento algum a norma impulsionada pelo governo respondeu à pressão vinda da mobilização popular em torno da comunicação - que há anos desenvolve esse debate, mas sim, de uma disputa de interesses do governo. Por outro lado, o Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (FARCO), através da Coalición por una Radiodifusión Democrática, esclarece que o projeto de lei enviado ao congresso foi escrito pelo povo. E nenhuma lei foi tão estudada, analisada e discutida como a atual, cujo processo de elaboração teve início em 2004. Entretanto, reconhece que há vários aspectos a serem implementados, como a legalização de rádios que já estão funcionando sem ter obtido o reconhecimento legal e a implementação de um fundo de meios comunitários, indígenas, nas regiões fronteiriças, etc. O órgão ainda pondera que desde a sua criação, as normas da lei que visam a pluralidade de vozes estão sendo descumpridas, exemplificadas na falta do reconhecimento jurídico e a legalização dos meios comunitários, alternativos e populares, que há anos está sem soluções concretas; a entrega de licenças sem a realização das reservas do 33% que, pela nova lei, deveria ser destinada às entidades sem fins lucrativos: E conclui:

Diante da falta de respostas para os meios Comunitários, Alternativos e Populares, a Red Nacional de Medios Alternativos continua denunciando as ações dilatórias do

Governo e a falta de políticas do Estado para à inclusão no marco legal deste setor historicamente prejudicado (p. 206, tradução nossa).

A lei estaria vigente no final de 2012, cuja aplicação foi definida para o dia 7 de dezembro desse ano, data que se tornou emblemática na disputa simbólica pelo poder entre Cristina Kirchner e Grupo Clarín. Nela, os conglomerados deveriam apresentar um plano voluntário de adequação à Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSCA), que teria 120 dias para avaliá-lo. Até o dia quatro de dezembro daquele ano, 14 dos 21 grupos convocados apresentaram uma proposta ao órgão (EL ARGENTINO, 2012). Entretanto, o Grupo Clarín entrou com uma medida cautelar alegando a inconstitucionalidade dos artigos 41 e 161, referentes ao número de meios permitidos por grupo. O artigo 161 era seu ponto crucial, pois empresas com mais de dez licenças de rádio e televisão deveriam se desfazer do excedente. O GC possuía 250 licenças de radiodifusão, controlando cerca de 35% do mercado nacional (BURCH, 2013).], portanto, nas normas da nova lei deveria concretizar o desinvestimento para no máximo 24 licenças em pontos divergentes do país, no prazo de um ano. Após quatro anos de mobilização da opinião pública, disputa de enquadramentos que justificassem a legitimidade de seus argumentos e briga na justiça, finalmente no dia 29 de outubro de 2013 a Corte Suprema de Justiça declarou constitucional a ley de medios, firmando a vitória do oficialismo na sua batalha contra o Grupo Clarín, embora este afirmou que irá recorrer nos tribunais internacionais (PALACIOS, 2013), anunciando que o fim da guerra ainda não ocorreu.

5. CONCLUSÃO

O confronto político entre Cristina Kirchner e Grupo Clarín resultou em uma oportunidade política para o debate pioneiro sobre a democratização dos meios. Embora essa

ação tenha uma relevante importância no cenário latino-americano, onde existe importantes empresas concentradas no setor da comunicação, inclusive, inspirando iniciativas em países como o Equador, México e o Uruguai, é importante observar em qual contexto esse tipo de medida é aprovado. Se por um lado uma lei de regulamentação é aprovada em nome da pluralização de vozes, ela também pode ser promulgada e sancionada para ampliar estratégias de políticas autoritárias, praticadas tanto por governos como por grupos de comunicação. No caso da Argentina, o confronto foi uma oportunidade política para legitimar uma demanda antiga, mas que só foi considerada pelo governo após a ruptura de sua aliança com o maior conglomerado midiático daquele país. Isso mostra que nem sempre a prioridade está centrada em uma agenda pública ou política em nome da democracia, mas sim, em uma agenda de disputa pelo poder que atende interesses privados. Desse modo, a própria mídia configurou-se em um grande campo de batalha usada para enquadrar os argumentos entre governo e imprensa que buscaram legitimar a lei como democrática ou anti-democrática. Como a ley de medios surgiu a partir de um enfrentamento amplamente explorado pelos meios de comunicação – e em boa parte, pertencentes ao Grupo Clarín, a discussão de grande relevância para a esfera social perdeu em parte seu sentido, abrindo espaço para a interpretação de uma rixa ou para as práticas econômico-liberais das corporações de mídias. Após anos de embate, a Argentina finalmente tem sua lei constitucionalizada. Com avanços e falhas, inclusões e exclusões, sua iniciativa tem servido de exemplo a alguns países que já deram seus primeiros passos rumo à democratização dos meios. E isso pode ser um importante recurso para as discussões que timidamente estão se formando no Brasil.

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