Rei ungido a Redentor da humanidade: a evolução do conceito de Messias

Share Embed


Descrição do Produto

REI UNGIDO A REDENTOR DA HUMANIDADE: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE MESSIAS

Sergio Alberto Feldman

INTRODUÇÃO

O termo Messias vem do hebraico. O verbo LEASHIACH significa ungir com o óleo sagrado.

OS PACTOS

Uma das maneiras de ler e interpretar o texto bíblico visualiza uma seqüência de Pactos imbricados através do texto e insinuando uma continuidade. Sendo o livro escrito por diversos autores em diferentes épocas, não se pode dizer que essa sucessão de Pactos seja intencional ou premeditada. Há possibilidade de que os editores do texto da Bíblia hebraica – ou Antigo Testamento, numa linguagem cristã – tenham ordenado e direcionado alguns trechos para criar, no seio dessa obra coletiva, uma ordenada e crescente seqüência de Pactos. O primeiro é um Pacto entre Deus e a família patriarcal, seja na pessoa de Abraão, seja na pessoa de Isaque ou Jacob. O Livro do Gênesis está repleto de Revelações e afirmações divinas de que os descendentes dos Patriarcas seriam os herdeiros do Pacto, da posse da terra de Canaã e de uma relação privilegiada com Deus. Na seqüência, Moisés recebe confirmações que ampliam a dimensão do Pacto: do clã dos patriarcas às tribos essa promessa se amplia. A etapa final desse Pacto será a universalização da Redenção a todos os povos e à humanidade como um todo, que se consolida na palavra de alguns dos profetas clássicos. O texto editado se reescreve e adapta: de forma coerente, a promessa feita a Abraão se amplia à humanidade.

2

Um Pacto intermediário serve de eixo de ligação entre esses dois Pactos: seria um Pacto entre a monarquia israelita e Deus. Sendo inicialmente um Pacto de “proteção” e sacralização da casa real e da instituição monárquica, tende a se mesclar no contexto do plano divino da história e se tornar um elemento catalisador de determinadas funções, entre as quais a de executor da redenção do povo e da humanidade como um todo. O rei sagrado se torna o Salvador. A casa de David irá gerar o Redentor. Nosso objetivo não é esgotar as análises, mas tecer breves reflexões sobre a evolução desse conceito na Bíblia hebraica e no judaísmo tardio – período do segundo Templo.

A CRIAÇÃO DA MONARQUIA

A monarquia hebraica foi criada a partir do final do denominado Período dos Juízes. As tribos podem ter se espelhado em modelos e paradigmas de povos vizinhos ou dos grandes reinos e impérios do crescente Fértil, tanto do Vale do Nilo, quanto da Mesopotâmia. No período de formação do povo, que se iniciou no nomadismo e se consumou na colonização de Canaã, foi se consolidando uma tradição de liberdade e de autonomia que era defendida pela liderança dos anciãos – gerontocracia –, que eram a suprema autoridade dos clãs tribais. Uma espécie de teocracia é gerida pelos enviados de Deus, que atuam nos períodos de crise. Nesses momentos, são enviados líderes militares carismáticos que cumprem as ordens divinas, de maneira voluntária ou não, e libertam o povo de seus opressores. Aclaramos o tema adiante. Podemos, em algumas ocasiões, perceber a tendência ou a tentativa de criação de uma monarquia, tal como no caso de Gedeão (Gideão) e de seu filho Avimelech (Abimeleque). O texto do livro dos Juízes enfatiza a recusa de Gedeão a se tornar o “dominador” e monarca do povo que almeja criar uma dinastia (Juízes, 8:22-23). Podemos entender essa atitude de duas maneiras: a) Gedeão realmente se recusou a tomar o poder; b) o registro posterior dos escribas alterou por alguma razão essa atitude. O fato é que seu filho e sucessor ficou conhecido como Avimelech (Avi = meu pai; Melech = rei) e fez um violento parricídio coletivo para usurpar o poder e suceder seu pai, mas fracassou, sendo morto em batalha de forma tragicômica (Juízes,

3

9). A monarquia não era, portanto, uma absoluta novidade entre os hebreus e os modelos dos vizinhos eram bastante difundidos. O fato motivador mais agudo para a criação da monarquia parece ter sido a invasão dos filisteus – povos do mar –, que invadiram a parte sudeste de Canaã, após uma tentativa fracassada de ocupar o delta do Nilo, de onde foram expulsos pelo faraó Ramsés III (Lods, 1956:288). Fizeram parte de uma vasta onda de invasões que abalou a região por volta de 1200-1100 a. E. C. – antes da Era Comum. Ao que tudo indica, tratava-se de povos do mar Egeu, possivelmente aqueus, que fugiram das invasões dos dórios (Baron, 1968:82). Estavam organizados em cidades-Estado, eram navegadores, comerciantes e tinham reis, ao estilo micênico, que os comandavam nas batalhas. Outro aspecto bastante aceito pela arqueologia é que estavam na Idade do Ferro, enquanto que os povos locais – hebreus e/ou cananeus – ainda estavam na do Bronze Tardio. Essa vantagem técnica oferecia uma superioridade militar acima de qualquer capacidade bélica. O texto bíblico oferece uma pista sutil, ao dizer que “[...] em toda a terra de Israel, nenhum ferreiro se achava” (Samuel I, 13:19), associando esse fato a uma proibição dos filisteus, e que todo o povo que possuía instrumentos de ferro devia amolá-los entre os ferreiros filisteus. A arqueologia aponta evidências que confirmam essa defasagem tecnológica. A organização tribal foi considerada um entrave à sobrevivência das tribos. Mudar essa situação se tornou um assunto de segurança pública e de continuidade do grupo. Enquanto os povos ao redor tinham reis e exércitos associados à monarquia, os hebreus ainda adotavam um sistema de confederação de tribos e de líderes carismáticos – Juízes – que apareciam na hora das batalhas e comandavam o povo. Essa “aparição” ou escolha era vista como divinamente direcionada. Ao se encerrar a guerra, voltavam a seus campos e aldeias e o exército se desfazia. Os líderes vitoriosos adquiriam certa aura de “escolhidos” e exerciam funções de liderança que se estendiam a julgar os casos judiciais que necessitavam de uma espécie de segunda instância, daí serem denominados Juízes. No novo contexto, essa realidade sociopolítico e religiosa foi entendida como uma fraqueza em um momento de crise, pois os filisteus se revelavam imbatíveis por um exército de camponeses oriundos de uma convocação voluntária. Ocorre uma pressão popular e os líderes tribais (anciãos) solicitam ao último juiz – e também profeta –, Samuel, que peça a Deus que escolha um rei para que os liderasse. Isso não significa que não houvesse oposições e resistências internas a tal mudança.

4

O texto de Samuel I traz uma narrativa repleta de grandes detalhes, mesclando certa dose de profecia (possivelmente anacrônica), ao descrever os prós e os contras da instauração da monarquia. A historiografia diverge, mas concorda que há contradições no texto e que deve haver pelo menos mais de um autor inserido nos Livros de Samuel I e II. Na primeira metade do século XX, Lods (1939:88) argumenta que há três narrativas entrelaçadas no texto, que trazem posições por vezes antagônicas. Duas delas, consideradas pelo autor como as mais antigas, alternam-se sob a história da intervenção divina na escolha: “como la obra directa del “espíritu de Yahvé”, que salto sobre el héroe y lo volvió capaz de cumplir sus hazañas” (Lods, 1939:88). Uma dessas duas versões relata que o vidente (nabi) e líder religioso Samuel foi alertado por Iavé desse fato e da escolha de Saul, da tribo de Benjamin, como novo líder. Samuel foi ao encontro do guerreiro e o abençoou e adiante o ungiu em cerimônia secreta ou reservada (Samuel I, 10:1). A descrição da unção é sucinta: tomou um vaso de azeite e lhe derramou sobre a cabeça e o beijou, dizendo que se tornara ungido e líder do povo. Há tênues evidências de que esse costume pode ser oriundo de outros povos. Numa das cartas de Tel el-Amarna, relacionadas com contatos entre o faraó e seus súditos asiáticos, há uma que relata que Tutmés III, ao nomear um monarca local, “ha derramado aceite sobre la cabeza... al proclamarle rey” (Lods, 1939:98). Assim, existe uma relação entre a unção descrita e costumes de outros povos. Em sua obra clássica editada em espanhol, Israel desde las orígenes hasta mediados del siglo VIII a. de C., Lods (1956:291-294) reafirma a tese de três relatos. Em sua opinião, pelo menos uma delas é antimonárquica. A primeira enfatiza a vitória militar de Saul contra os filisteus como o marco de criação “de fato” da monarquia (Samuel I, 14). Uma exagerada versão descreve como Saul e Jônatas vencem um exército muitas vezes superior numericamente com coragem e braço armado. O profeta Oséias (10:9) afirma que Saul recebeu seu poder em Gibeá (Guiva, a cidade de Saul), ou seja, obtido na força armada. Vale lembrar que Oséias é um ferrenho crítico da monarquia e associa esse momento à malignidade. De outro lado, os feitos heróicos tão exagerados demonstram o apoio divino a seu rei. Há aqui uma mescla do direito de fato – obtido na guerra e na conquista – e do direito por vontade divina. A segunda narrativa mescla alguns elementos mais visíveis de cunho religioso e místico. Pode ser relacionada com a primeira versão ou ser considerada uma segunda

5

independente. Nela o futuro rei é enviado por Deus à cidade de Samuel, que é advertido por Deus de sua vinda (Samuel I, 9:15-16) ainda na véspera. Assim sendo, é um escolhido de Deus e não demora para que Samuel faça sua unção (Samuel I, 10:1). Na seqüência da narrativa, Saul é tomado pelo espírito de Deus e se junta a um bando de profetas extáticos e profetiza junto a eles (Samuel I, 10:10-13). Isso demonstra que se tornara um escolhido de Deus e que, com a sua escolha e a sua unção, cumpria um mandato divino. Sua atuação no meio dos profetas mostra a Divina presença a seu lado, inspirando-o até o grau do êxtase profético. Lods (1956) ainda supõe que há uma mescla de histórias e narrativas, ao admitir que talvez a história do nascimento e da infância de Samuel (Samuel I, 1-3) seja de fato a narrativa do nascimento e da infância de Saul. Usa a etimologia de Shaul (Saul), que deriva do verbo “shaal”, pedir ou perguntar, para admitir que Ana pediu a Deus seu filho, visto ser estéril até então (Lods, 1956:293). A terceira narrativa seria de inspiração antimonárquica. Há indícios de que seja de origem profética, mas há de se admitir que as resistências à monarquia na sociedade tribal e gerontocrática deviam ser comuns. Samuel faz uma severa advertência aos anciãos e ao povo sobre os males da monarquia. Adverte-os dos abusos de poder, dos serviços forçados, da conscrição militar obrigatória, dos impostos e taxas (Samuel I, 8). Como não houve um poder central burocratizado até então, os israelitas desconheciam tais direitos e prerrogativas reais. Após nomear o rei, Samuel faz sua despedida das funções políticas que exerceu como último juiz e os assusta com advertências orais e inúmeros trovões e tremores de terra (Samuel I, 12). Isso tudo para lembrar-lhes do Pacto e da ação divina em seu favor quando foram escravos no Egito e nas crises anteriores. Permanece, contudo, nas entrelinhas, a reprimenda de que escolher um rei seria um gesto pecaminoso que poderia levar ao “abandono do Pacto” e do Rei que seria Deus: “[...] porque a todos os nossos pecados temos acrescentado este mal, de pedirmos para nós um rei” (Samuel I, 12:19). Na visão de Kaufmann (1989), há apenas duas versões. A antimonárquica teria sido obra de uma vertente “teocrática” que prevaleceu no período pós-exílico – após o retorno a Sion, no final do sexto século a. E. C. Com a proibição persa de uma dinastia, o governo foi direcionado à casta sacerdotal. Os trechos do profeta Oséias (8:4; 13:10) refletem essa concepção e a crítica dos reis.

6

Cabe, no entanto, uma advertência: as narrativas pós-exílicas não se concentram em críticas à monarquia, mas aos gestos de reis idólatras e corruptos, insensíveis ao bem-estar coletivo. A história da monarquia se distancia da história pessoal de alguns reis. Desde Samuel 16 até o final dos dois Livros de Crônicas há uma exaltação da dinastia davídica. O mesmo pode ser percebido na maior parte das tradições acumuladas em inúmeros textos. A tendência antimonárquica não é preservada em médio prazo. Seria uma tendência que se esgota nas críticas à idolatria e ao desrespeito ao Pacto, executada por certos reis. Isso pode ser observado em algumas das obras pós-exílicas, que consolidam a imagem do rei associada com Deus e atuando em prol da continuidade do Pacto e da proteção divina ao povo de Israel. Prevalece a concepção monárquica inserida num Pacto entre Deus e David e seus descendentes. Uma espécie de microcosmo (Pacto da casa de David e Deus) que espelha um macrocosmo (Pacto de Deus e os descendentes de Abraão), e ambos se complementam. Os autores divergem em detalhes, mas concordam que a criação da monarquia e o texto de Samuel I e II mesclam posições contraditórias que alternam críticas e simpatia à monarquia.

A LEGITIMAÇÃO DA DINASTIA OU CASA DE DAVID

Numa leitura atenta dos Livros de Samuel I e II e, em seguida, dos Livros I e II das Crônicas, pode-se ver que há elementos religiosos e elementos políticos dinásticos mesclados. Rosenberg (1997:135) diz que seria melhor denominar os dois livros de Samuel, como “[...] “Saul” e “David” respectivamente, ou até “I e II David” [...]”. Nenhum exagero. O objeto de estudo central não é Samuel, mas a origem e a consolidação da monarquia. Analisaremos em outro artigo, adiante, a consolidação da legitimidade monárquica pela dinastia de David. Ainda assim, poderíamos perceber alguns detalhes e delineá-los aos olhos de um leitor atento. Saul tornara-se rei por vontade divina. Sua sucessão não estava definida, mas se seguisse as normas de outros povos, esta seria feita por um filho e uma dinastia. O texto delineia uma justificativa para a “não continuidade” da casa de Saul e sua substituição pela Casa de David. Choques entre Saul e Samuel servem de pano de fundo para o rompimento entre ambos. Os motivos são político-religiosos e militares: Saul não obedece à divisão de

7

funções e interfere nas funções e atribuições do velho líder Samuel (Samuel I, 13; 15). Samuel opta por ungir um novo rei, antes mesmo da morte de Saul e o final de seu reinado. Unge secretamente seu sucessor, David (Samuel I, 17), que terá de sobreviver aos ciúmes e à desconfiança do rei e sogro dele, Saul. Inúmeros episódios e tentativas de eliminar David são descritos na segunda metade do I Livro de Samuel. David sobrevive a todos e mantém-se distante de tentar eliminar seu antecessor e sogro, para poder apossar-se de seu trono. Não ousa “levantar suas mãos contra o ungido do Senhor” (Samuel I, 24:6; 26:9), mantendo-se respeitoso à vontade Deus, e espera o momento em que o Eterno vai lhe permitir ser rei em lugar de Saul. A figura de David é moldada por gestos e atitudes: corajoso e leal, carismático e justo. A morte de Saul e de seus filhos ocorre sem a intervenção de David (Samuel I, 31). O mesmo não se dá com o herdeiro de Saul (Ishboshet) e seu ex-general (Abner), que têm mortes aparentemente suspeitas, das quais David se exime, com gestos políticos, de qualquer tipo de culpa (Samuel II, 3-4). Toda a descrição da trama é refinada e detalhada. Um texto literário que agrega diversas e complexas questões. O que nos interessa é que seu personagem central adquire um status de escolhido de Deus. Mesmo cometendo alguns pequenos erros, e até um grave erro – caso Bat Seba (Samuel II, 11-12) –, é elevado à condição de iniciador de uma dinastia que não se perderia na História. A dinastia estava começando. Mas havia resistências e oposições. Era necessário associá-la a uma vontade divina. David elabora gestos bem arquitetados de política, inseridos no contexto religioso; traz a Arca a Jerusalém e prepara as condições para a futura construção do Templo de Jerusalém, feita por Salomão, seu filho. Mas como se transforma no personagem marco de uma dinastia que seria escolhida por Deus para ser a “casa de David” e a referência para a história dos judeus? Isso se deve ao trabalho de cronistas e escribas que se alternaram na elaboração de textos e de imagens que o associavam à escolha divina. Um destes é a profecia inserida em Samuel II (7:5-16). Nessa profecia que Deus dedica a David por meio de Natan, há um Pacto selado entre Deus e a casa de David: se algum de seus sucessores errar, será punido, mas a dinastia não será interrompida. Trata-se de um novo Pacto: a segurança do povo na terra prometida estava assegurada e a da dinastia também. Os que burlassem o Pacto e idolatrassem, por exemplo, seriam punidos como indivíduos. Essa assertiva não se revela como efetiva adiante, mas associa a dinastia a Deus e sua continuidade se reafirma num

8

“tempo futuro”. Trata-se de uma realeza salvadora que é a expressão da graça de Deus a seu povo. O papel de reis descendentes de David – casa real de Judá – é notável para construir essa imagem e este marketing político-religioso. A maioria dos autores vê reis, como Ezequias e Josias, como os autores de uma elaboração e de um trabalho de construção de imagem para fortalecer sua dinastia (Finkelstein e Silberman, 2003). Há referências, até evidências arqueológicas, que deixam dúvidas sobre a grandeza de a cidade de Jerusalém ter sido a capital de um Império como “pode ter sido” o de David e o de Salomão (Finkelstein e Silberman, 2003:174-203). A cidade pode ter sido apenas uma capital regional: isso levanta certas dúvidas sobre de quem seriam os interesses em elevar a aura da cidade. Possivelmente dos descendentes da casa de David que reinaram nos períodos posteriores. A David são associados os Salmos; a seu filho e sucessor, Salomão, o Cântico dos Cânticos, os Provérbios e o livro do Eclesiastes. A crítica literária levanta suspeita sobre essas autorias (Alter, 1997:264), mas elas geram um imenso prestígio. A imagem de David e de sua casa é habilmente construída. Torna-se referência e marco de continuidade.

O CONCEITO DE MONARQUIA

Kaufmann (1989:266-268) enfatiza que os autores do livro dos Juízes utilizam o período para enfatizar a “recaída” do povo na idolatria e praticamente não dizem nada do desvio do Pacto nos primeiros anos da monarquia. A realidade deve ter sido outra, mas isso mostra que havia uma relativa uniformidade e um fortalecimento da coesão grupal e da unidade religiosa nesse período. Seria uma certa idealização do(s) autor(es)? A força de Deus se faz presente quando o rei David conquista os reinos vizinhos e seu filho, Salomão, consolida seu império. Esse esplendor mostra o poder de Deus e segui-lo pode ser fator de prestígio e hegemonia num possível retorno da dinastia. O rei e sua dinastia ficam associados a Deus. A monarquia era um modelo “importado” de outros povos, como constata o cronista ao escrever as críticas de Samuel à monarquia (Samuel I, 8). O modelo é aculturado, pois no Egito os faraós são deuses (Gralha, 2002; Cardoso, 1990) e, em outros povos, há certas

9

características divinas associadas aos reis. Os reis da Assíria e da Babilônia são filhos ou irmãos dos deuses ou foram amamentados pelos deuses (Kaufmann, 1989:267). Eram escolhidos e protegidos dos deuses, mas geralmente não eram deuses propriamente ditos (Cardoso, 1990:35). O conceito israelita era diferente, pois rejeitava todos os aspectos divinos da monarquia e fundamentava-se apenas no conceito da eleição divina (Kaufmann, 1989:267). Não se encontram casos de reis que aleguem serem deuses ou terem ascendência divina, mesmo os que transgrediram o Pacto e idolatraram. Os faraós, além de deuses, eram sumo sacerdotes do culto em todo o Egito e únicos com comunicação plena com a divindade (Cardoso, 1990:46-49). Na Mesopotâmia, os reis oficiavam cultos em certos períodos. Em Israel, não há indícios de reis oficiando cultos e interferindo no santuário diretamente: deviam proteger e ajudar o templo, mas não eram sacerdotes. O sacerdócio está associado aos descendentes em linhagem masculina de Levi; entre estes, os descendentes de Aharon (Aarão), irmão de Moisés, seriam designados sacerdotes de nível superior, ou cohanim. Os reis de Judá descendiam da casa de David, ou seja, eram da tribo de Judá. Nada tinham a ver com Levi ou com a casa de Aharon (os cohanim). O rei israelita participava do culto, mas com um papel secundário, com a tarefa de assessorar os sacerdotes (Kaufmann, 1989:267). O rei substitui o juiz-profeta do estilo Samuel, lidera o povo e deve ser justo, mas sua autoridade é secular. O rei idealizado do “futuro” é um juiz justo, temente de Deus e poderoso, mas sem aspectos sacerdotais. Não controla o destino do cosmo por meio do culto, nem incorpora nenhum atributo ou essência divina: seria a “corporificação da idéia de que é a vontade de Deus que governa a terra” (Kaufmann, 1989:267). Outro marco importante são os dois livros das Crônicas, escritos no período pósexílico. Convém refletir sobre o contexto de sua elaboração. A queda de Jerusalém, a destruição do primeiro Templo e o Exílio ou Cativeiro da Babilônia se constituem num trauma histórico enorme. Como entender o abandono de Deus e a terrível punição? Uma explicação seria o desvio do Pacto e o abandono do Deus único pela idolatria de deuses cananeus. A elaboração de quase toda a literatura veterotestamentária se consolida nesse período e sofre a influência desse trauma coletivo. A concepção da monarquia também sofre essa influência: o rei se torna protetor da fé verdadeira, autor de reformas e executor de ações religiosas.

10

O cronista constrói sua narrativa tendo como eixo central a história religiosa dos reinados de David, Salomão e dos reis de Judá, que compuseram a casa de David. Enfatizamse gestos religiosos, a construção do Templo e as reformas de Asa, Josafá, Ezequias e Josias (Lamadrid, 1999:139-141). Essa escolha não é casual, mas sim seletiva, pois a seqüência dessa obra é o início do Período do segundo Templo, com a construção do santuário e a consolidação da Lei e do Pacto com Esdras e Nehemias. Esse conjunto mostra a inserção da monarquia no plano divino de restauração. Reis religiosos e justos protagonizam o conjunto literário-histórico, mesmo se tivesse havido reis idolatras e cruéis, injustos e passíveis de punição por Deus, na mesma dinastia. Esses são citados apenas para aumentar o brilho dos atores principais. A monarquia se insere no plano do passado com o objetivo de se introduzir no plano futuro de Deus. A exaltação dos monarcas se insere no novo tempo que se iniciava, mesmo se os persas não aceitassem a idéia de restauração da Casa de David e instaurassem o governo dos sacerdotes. O ideal permanece intacto: a casa de David voltaria e seria restaurada. O monarca ungido teria um papel primordial na história futura.

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO MESSIÂNICO

Os articuladores principais do conceito messiânico, no período final do primeiro Templo, no Exílio e no período pós-exílico, foram os profetas do reino de Israel e de Judá, assim como os que surgiram na Babilônia e no período do segundo Templo. A leitura acurada de sua vasta obra pode apresentar surpresas. Não há um conceito de Redenção em comum; há sérias e profundas divergências de interpretação entre os livros proféticos. Em alguns, a função do Rei ungido e Libertador é claramente definida; noutros inexiste e sequer é mencionada. Em profetas como Nahum, Sofonias, Habacuque, Malaquias, Joel e Daniel não há absolutamente um personagem messiânico humano inserido e atuante nas profecias, sendo somente o Senhor Deus que atua na Redenção. Em alguns profetas, tais como Amós, Ezequiel e Obadias, há uma mescla de elementos, aparecendo um coletivo relacionado com o

11

estabelecimento do reinado da Casa de David, às vezes de maneira imprecisa e vaga, mas não definindo um rei ungido como o Salvador. Amós (9:11) diz: “Naquele dia tornarei a levantar a tenda de David, que caiu, e taparei suas aberturas e tornarei a edificar suas ruínas, e a edificarei como nos dias da antiguidade”. Obadias (1:17) é mais vago, porém define: “Mas no monte de Sião haverá livramento e ele será santo; e os da casa de Jacó possuirão suas herdades”. Em Miquéias, o redentor é Deus propriamente dito. Em Ageu (Chagai) e Zacarias, que estavam em Judá no momento do Retorno a Sião, nos primórdios do segundo Templo, é um descendente da casa de David, mas se define na pessoa de Zerubavel (Zorobabel). Isaías I fala de “um ramo do tronco de Jessé” (11:1) e trono de David (9:7), mas também fala de Deus julgando desde Jerusalém (2:2-4). Tudo isso demonstra a inexistência de um consenso entre os profetas e a indefinição de como se daria a Redenção. Esta fica imprecisa, assim como a função do Rei libertador. Fala-se de dia do Senhor e de dia do Juízo. Uns falam de Deus, enfatizando o castigo somente ou principalmente sobre Israel (Amós, Oséias, Isaías II e Malaquias). Já outros enfatizam a punição que recairá sobre os gentios (Naum, Habacuque, Obadias, Ageu, Zacarias, Daniel). Os outros fazem recair o julgamento e a punição sobre ambos: judeus e gentios. Elementos como a guerra contra Gog e Magog são escatológicos, mas aparecem em poucos textos, especialmente em Ezequiel. O conceito do renascimento dos mortos se resume a Ezequiel (37) e a Daniel (12). O elemento monárquico messiânico não se configura com clareza no papel de Redentor no período do primeiro Templo e, tampouco, nos primórdios do período pós-exílico. Trata-se ainda do Libertador, do restaurador das liberdades e da opressão estrangeira. A preocupação dos profetas é muito ampla e se centra no respeito ao Pacto, sua continuidade e a restauração do culto exclusivo ao Deus único, da unidade religiosa e da ética social. O papel do rei seria mais restrito a criar as condições de estabilidade e poder político para a consecução dos objetivos religiosos e ético-sociais. A seqüência dos fatos transformará a concepção do monarca ungido no Redentor. O período do segundo Templo gerou condições para tal evolução. Esse longo processo se desenvolveu em quatro etapas principais, a saber: a) período da dominação persa; b) período da dominação helenística (Ptolomeus e Selêucidas); c) período independente sob a dinastia dos Hashmoneus; d) período romano.

12

Nos dois primeiros, o dominador impôs um governo autônomo, visando a impedir a restauração da dinastia de David, pois esta ofereceria o risco de uma tentativa de separação da região em relação ao império que a dominava. Para tanto, era nomeado como governante local o Sumo-sacerdote (Cohen hagadol), descendente da família de Aharon (irmão de Moisés), que se tornava o representante do rei estrangeiro que dominava a região. Esse líder religioso coletava os impostos e fazia a justiça de acordo com as leis vigentes nos costumes locais, ou seja, segundo a Torá e as tradições judaicas. Esse período é denominado como governo “teocrático”. Não há reis e nem há restauração política que configurem qualquer tipo de independência, seja da Pérsia, seja dos Ptolomeus, seja dos Selêucidas. Há lembranças e idealização dos reis da casa de David, mas a estabilidade e autonomia relativas não geram condições para revoltas. Na seqüência, ocorre a revolta dos Macabeus, liderada pela família de Judá, o Macabeu (da família dos Hashmoneus), que consegue expulsar os sírios selêucidas e instituir um reino independente, sob a liderança de uma família de origem sacerdotal. Os motivos da revolta eram religiosos: tentativa de helenização forçada da população. A vitória dos pequenos camponeses sob a liderança de uma família de sacerdotes se configura como um feito miraculoso, logo inserido na tradição judaica pela festa das Luzes (Chanucá). A mística da vitória do líder iluminado por Deus adquire uma nova aura. A religião ajuda a restaurar a liberdade plena. Surge a dinastia dos Hashmoneus. Estes eram descendentes de Simão, o Macabeu, irmão de Judá. Eram cohanim e perpetuam a liderança sacerdotal, mas acumulam o duplo cargo de reis e sacerdotes. Isso se dá sob a promessa de que, quando viesse um descendente do rei David, herdeiro da dinastia real, que fosse enviado por Deus, o poder retornaria à casa de David. Os gestos políticos desses monarcas não agradam a liderança religiosa e intelectual: atuam como monarcas helenísticos e gerem o reino de maneira despótica e afastada da Lei e dos valores religiosos e éticos. Uma situação de confronto entre grupos religiosos se configura. Surgem diversas linhas de interpretação das razões de ser do Estado, da religião e o sentido da história. Algumas destas adotam posturas pragmáticas e políticas, como os saduceus, que se aliam ao poder dos reis-sacerdotes e buscam dar continuidade ao grupo no poder: os descendentes dos Hashmoneus e seus aliados, tanto nobreza quanto casta sacerdotal, além de grandes comerciantes e latifundiários. Era o grupo que obtivera o controle do Estado e almejava seguir dominando, mesmo se não cumprisse ao “pé da letra” as normas e valores da Torá. O Templo

13

passa a ser seu foco central: um culto que legitimasse a continuidade dinástica dos reissacerdotes. Uma oposição foi criada sob a liderança dos sábios e escribas, que queriam reformar o Estado e direcioná-lo à consecução de uma unidade religiosa sob a Lei, a ética e a prática dos preceitos (mitzvot) contidos na Lei. O rei deveria ser adequado à manutenção da continuidade religiosa dentro da severa observância dessas práticas. O modelo de David e dos reis de Judá – no caso dos reis reformadores – seria idealizado nesse período. Os escribas e sábios agregam valor ao modelo davídico. O confronto do modelo helenizado dos reis hashmoneus com um modelo “tradicional” do rei e da dinastia “escolhida” acentua a nostalgia pelo rei ungido. A idealização se acentua quando Roma promove e apóia a ascensão de Antipater – edomita/idumeu convertido à força – e de seu filho Herodes. Este se insere na dinastia sacerdotal dos Hashmoneus e se torna um rei “estrangeiro”. Pela primeira vez na história judaica um rei não descendia de nenhum dos filhos de Israel. Essa usurpação tirânica, somada a gestos considerados desrespeitosos às crenças judaicas, torna Herodes e seus descendentes impopulares e, por vezes, amaldiçoados pela maioria da população, que se acostumara com a liberdade do período Hashmoneu. A busca de uma saída sobrenatural se acentua. As crenças na restauração da dinastia davídica, que eram bastante difundidas e nunca deixaram de existir, adquirem uma forte conotação mística. Para vencer a poderosa Roma, dever-se-ia obter ajuda divina, tal como já se obtivera sob os selêucidas vencidos de maneira miraculosa. O descendente de David adquire, nesse contexto, sua magnitude e sua configuração de Libertador e de Redentor, e influenciará enormemente a História.

CONCLUSÕES

Assim, podemos concluir que: a) o rei ungido ou Messias não é um conceito simples de se explicar. Agrega em seu conteúdo a construção de uma legitimidade dinástica elaborada no período do primeiro Templo para justificar as pretensões da casa de David;

14

b) os profetas, de maneira geral, direcionaram a construção da idealização de um rei inserido no plano divino, de reformar o mundo e consumar a Redenção tanto do povo, quanto do reino, e, numa amplitude universalista, da humanidade. c) o contexto dos últimos séculos da Era comum gerou a construção de uma aura mágica e sobrenatural ao rei ungido, que lhe daria condição de libertar o povo de Israel da opressão e gerar a consecução do plano divino da história. Vale ressalvar que, na concepção judaica do Messias, este é humano e mortal. A discussão posterior deveria levar em conta a nova interpretação do conceito messiânico criada pela Cristandade, que transforma o Messias judaico em Cristo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTER, R. Salmos. In: ALTER, R.; KERMODE, F. (Orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 263-281. BARON, S. W. Historia social y religiosa del pueblo judio. Buenos Aires: Paidós, 1968. CARDOSO, C. F. S. Antiguidade oriental: política e religião. São Paulo: Contexto, 1990. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003. FROMM, E. O espírito de liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. GRALHA, J. Deuses, faraós e poder: legitimidade e imagem do deus dinástico e do monarca no Antigo Egito (1550-1070 a.C.). Rio de Janeiro: Barroso, 2002. KAUFMANN, Y. A religião de Israel. São Paulo: Perspectiva, 1989. LAMADRID, A. G. As tradições históricas de Israel: introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1999. LODS, A. La religion de Israel. Buenos Aires: Hachette, 1939. ______. Israel desde las orígenes hasta mediados del siglo VIII a. de C. México: UTEHA, 1956.

15

ROSENBERG, J. I e II Samuel. In: ALTER, R.; KERMODE, F. (Orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p.135-159.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.