Reisado Boi Estrela: reflexões para um laudo patrimonial

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Reisado Boi Estrela: reflexões para um laudo patrimonial* Laila Ibiapina Caddah** UFPI Laudo Antropológico Conforme Leite (2005), a questão dos laudos tem crescido na antropologia brasileira, especialmente em trabalhos que envolvem sociedades indígenas, populações tradicionais e impactos socioambientais. O papel da perícia antropológica inclui, entre outras, questões relativas a direitos humanos, envolvendo políticas públicas, território e etnicidade, movimentos sociais, e patrimônio cultural. O laudo consiste, por vezes, em um desdobramento inevitável das pesquisas de campo, contribuindo para o aprofundamento em temas específicos de considerada relevância social e política. (LEITE, 2005). A atividade de perícia introduz na antropologia aspectos ligados a instâncias governamentais, revendo questões epistemológicas e éticas. Com a Constituição Brasileira de 1988, institucionaliza-se o respeito à diversidade cultural, o que contribui para o estreitamento nas relações entre a Antropologia e as questões jurídico-administrativas do Direito. A abordagem antropológica passa a ser solicitada em pesquisas e pareceres, não meramente técnicos, mas que busquem realçar o ponto de vista dos pesquisados. A Procuradoria Geral da República firma, então, um acordo com a Associação Brasileira de Antropologia, que passa a indicar antropólogos para a realização de laudos periciais. Desse modo, a antropologia como ciência relaciona-se às práticas do Estado. (LEITE, 2005). Na década de 90, especialmente após a realização da Eco-921, ampliam-se as discussões mundiais sobre diversidade cultural, cidadania e direitos humanos, enquanto no Brasil cresce a ideia de um país pluriétnico e pluricultural. Com o aumento dos programas para demarcação de terras indígenas e reconhecimento de comunidades quilombolas, intensificam-se os debates sobre o papel do antropólogo na identificação e classificação de *Artigo apresentado e publicado nos anais da X RAM – Reunião de Antropologia do Mercosul, realizada no período de 10 a 13 de julho de 2013, na cidade de Córdoba, Argentina. Grupo de trabalho: Políticas públicas para a diversidade cultural. ** Arquiteta Urbanista e Educadora Física, mestranda em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). 1

Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento realizada em 1992, na cidade do Rio de Janeiro.

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identidades dos grupos sociais manifestos, bem como sobre as responsabilidades embutidas na prática. Ao profissional é necessário compatibilizar a ciência antropológica, a prática etnográfica e as expectativas da comunidade, exercendo papel de mediador. (LEITE, 2005). Os laudos constituem uma atividade e um gênero narrativo textual distintos dos já consagrados na academia: monografias, dissertações, teses, artigos e ensaios. Enquanto relatórios de pesquisa antropológica produzidos para subsidiar processos jurídicos e administrativos, os chamados laudos vêm sendo requisitados em contextos específicos, principalmente em situaçõeslimite que geralmente envolvem conflitos. (LEITE, 2005, p.25).

O antropólogo constrói uma verdade que será dirigida a uma finalidade específica. Dialogando com outros campos do saber, realiza um trabalho aprofundado sobre o tema que propõe analisar, estando ciente de que os conceitos utilizados na sua interpretação emergem de um contexto historicamente construído, o qual interfere diretamente em sua prática. Por conseguinte, deve estar consciente da amplitude da responsabilidade social de seu exercício. (LEITE, 2005; OLIVEIRA, 2002; FILHO, 2005).

Reisado Boi Estrela Segundo Silva (2006) é considerado reisado toda festa, folguedo e ritual dedicado aos Santos Reis. Costumeiramente ligado ao catolicismo rural, o reisado está presente em todas as regiões e estados brasileiros, apresentando diferentes versões a cada localidade. No Piauí, optamos por estudar o reisado Boi Estrela de mestre Raimundo Branquinho, no povoado Boquinha, situado na zona rural sudeste do município de Teresina. Tomamos como ponto de partida, a diversidade das folias de reis nacionais e as mudanças ocorridas na prática do mestre de reisado diante de uma nova realidade-mundo, uma nova ordem global (HARDT, 2001; SANTANA; SANTOS, 1997). O Boi Estrela está intimamente ligado ao entretenimento e ao lazer, realizando apresentações no período dedicado ao Santo Reis, dezembro e janeiro, e na época das festas de São João, em junho. A cada ano, mudam os modos de viver, outras necessidades surgem e o reisado do Boquinha se reordena em novas formas e modos de fazer (MAGNANI, 1984). Os recursos financeiros para a manutenção da brincadeira, estreitamente associados às táticas de sobrevivência do próprio mestre, têm sido insuficientes, especialmente em períodos de longa estiagem, quando as plantações secam, sobrevivendo apenas algumas hortas e galinhas.

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Este ano, por conta da seca, Branquinho perdeu todo o seu roçado de milho, feijão e mandioca e, como alternativa, passou a vender frango e linguiça de porco. Para realização da festa no galpão e apresentação no centro de Teresina, Branquinho conta com ajuda financeira da Fundação Cultural do Estado do Piauí (Fundac) e da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves (FMC), repassando parte desse valor para os músicos, o qual considera apenas um agrado e não um cachê. O mestre diz que os tempos mudaram. Declara que a saia do boi que já foi de palha e de chita, hoje não cabe mais, porque a exigência é outra. Afirma que hoje em dia as pessoas estão diferentes e que o público tem dado mais valor a coisas agoniadas (ABREU, 2012a).

Branquinho aprende, digere e

apreende o novo à sua maneira. Suas modificações e adesões a instituições são estratégias para manutenção do reisado, cuja vitalidade reside justamente na capacidade em se adequar às condições de existência de seus produtores e do público, bem como de estabelecer vínculos com outros centros de produção de cultura e entretenimento (MAGNANI, 1984). O Boi está em processo, diz o mestre durante a jornada de 2012 no Boquinha, enquanto deixa o boi em casa para não sujar a barra da saia, pois deve ser poupada para a apresentação do dia de Reis na cidade. Nas apresentações do reisado de Branquinho, observamos euforia e transformação, próprias a algumas cerimônias (SEEGER, 2004). A euforia é trazida especialmente no desempenho dos caretas que modificam o tom de voz, fazem jogo de palavras, emitem sons, grunhidos, em movimentos e gestos rápidos, sacodem suas saias de palha e sapateiam, realizando uma espécie de apoteose, misturando cerimônia e diversão. O farfalhar das palhas combinado aos estalidos do sapateado são únicos nos reisados piauienses. Também os são, as faculdades do corpo e da voz na elaboração da música e na performance dos brincantes: falar, ouvir, se movimentar, cantar, grunhir. Para Branquinho, uma qualidade essencial ao careta é o áudio, além de resistência e energia para dançar com vivacidade ele precisa ter uma boa atuação no diálogo com o dono da casa e com o público. Ao colocar a roupa de palha e a máscara de couro, se transforma nessa figura animada e assustadora.

A transformação

também ocorre para os devotos que recebem a imagem dos Reis em suas casas, os quais passam por uma espécie de purificação com a benção do santo. Como nos rituais, as rotinas são modificadas durante o período do reisado (TURNER, 2005): enquanto os donos e donas das casas preparam os altares para aguardar a visita do santo, no galpão de Branquinho as mulheres de sua família preparam os alimentos para serem leiloados na noite de Santo Reis. Poucas são as casas que ainda recebem o reisado Boi Estrela na comunidade. Para Raimundo, o interesse vem diminuindo a cada ano, e, por uma série de fatores está decidido a 3

realizar em 2013 somente a festa do santo no galpão, sem a peregrinação noturna. Afirma que a jornada, que dura em média cinco dias, é muito dispendiosa e cansativa e lhe tem trazido muitas contrariedades, especialmente pela dificuldade em reunir os músicos, pela falta de disponibilidade dos praticantes e pelas exigências relativas aos cachês (ABREU, 2012b). Conforme Magnani (1984), mais do que lamentar a perda de uma suposta autenticidade devemos tentar analisar como a manifestação como é hoje, no contexto das condições concretas de vida dos seus portadores. Nas manifestações culturais, texto e contexto se unem. As estruturas, os códigos e as regras do reisado pertencem a um cenário de relações sociais, o qual o constrói e ao mesmo tempo é por ele construído (SEEGER, 2004). O Boi Estrela e a vida social se recriam simultaneamente, e os detalhes do cotidiano estão nele presentes. Conforme Clifford (1991), na paisagem humana, nada é imóvel ou imovível, os modos de vida intercambiam influxos e se parodiam entre si. O reisado de mestre Branquinho, imerso em um mundo de fronteiras diluídas, estabelece trocas e se redefine a todo momento. A incorporação de novos elementos, sua permanente transmutação, o fortalece como manifestação de uma tradição que se recria enquanto ser presente, pulsante e vivo.

Delineando o Pictórico Plano Nacional de Cultura

A Constituição Federal (CF) de 1988 atribui ao Estado Brasileiro a responsabilidade em adotar políticas públicas de valorização, proteção e desenvolvimento do patrimônio cultural. Em 2003, o governo federal por meio do Ministério da Cultura (MinC) inicia uma série de diálogos com a sociedade para a avaliação e o planejamento de políticas culturais, destacando-se o Seminário Nacional Cultura para Todos. No ano seguinte, foi aprovada em Barcelona a Agenda 21 da Cultura, compromisso mundial afirmado entre cidades e governos locais em prol do setor. Em 2005, foi acrescido à CF o parágrafo terceiro no artigo 215 determinando a criação do Plano Nacional de Cultura (PNC), visando: a defesa e valorização do patrimônio cultural; a produção, promoção e difusão de bens culturais; a formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; a democratização do acesso aos bens de cultura, e a valorização da diversidade étnica e regional. (BRASIL, 2010, 2012). 4

No mesmo ano, foi criado o Conselho Nacional de Política Cultural e realizada a 1ª Conferência Nacional de Cultura (CNC), fornecendo as bases para o projeto de Lei do PNC. Em 2006, foram aprovadas, em convenção internacional promovida pela UNESCO, as diretrizes para Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Deste ano em diante, seguem-se no Brasil seminários, fóruns e debates locais, regionais e nacionais, culminando com a realização da 2ª Conferência Nacional de Cultura, que aprovou em 2010 os principais conteúdos e conceitos do PNC, destacando, entre as propostas prioritárias, a necessidade de um marco regulatório. (BRASIL, 2011b, 2012). A CNC significou um avanço e um amadurecimento das políticas públicas e da participação social no setor cultural. Alem de envolver mais de 3.200 municípios e 225 mil pessoas em debates sobre as prioridades para a cultura, o encontro consolidou um novo espaço de diálogo entre os diferentes setores [...]. (BRASIL, 2012, p.152).

Realizada em Brasília, a 2ª CNC, consistiu processo amplo e abrangente, no qual aproximadamente duas mil pessoas participaram presencialmente de discussões para a elaboração de um plano nacional para a cultura, estabelecendo propostas prioritárias para o setor. Índios, quilombolas, ribeirinhos, cantadores, doutores, brincantes, mestres de cultura, cientistas, pais e mães de santo, compartilharam suas interpretações na busca de delinear o pictórico. Não no sentido de delimitar ou estatificar, mas de identificar uma diversidade conjectural expressa em um mosaico multicores nacional. O projeto de Lei do PNC, analisado e debatido em instâncias diversas, foi finalmente aprovado em dezembro de 2010. No ano seguinte, foram elaboradas pelo MinC as metas e recomendações para o alcance dos objetivos do Plano, as quais foram submetidas a consultas públicas no decorrer do processo. Conforme BRASIL (2012), hoje estão sendo feitos os planos de ações para execução do PNC, bem como atualizados os dados referente às atividades e expressões culturais brasileiras, entre outras informações, a serem disponibilizados na plataforma do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC).

Patrimônio Cultural

O decreto no. 3.551, de 04 de agosto de 2000, institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro e cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). São consideradas partes legítimas para provocar a 5

instauração do processo de registro, além do Ministro de Estado da Cultura, das instituições vinculadas ao MinC e das secretarias municipais e estaduais, as sociedades e associações civis. As propostas devem ser dirigidas ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e submetidas ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Caso seja aprovado, o registro deve ser feito em um dos seguintes livros: I Livro de Registro dos Saberes, II Livro de Registro das Celebrações, III Livro de Registro das Formas de Expressão e IV Livro de Registro dos Lugares. Ao bem registrado fica assegurada a documentação por todos os meios técnicos admitidos, sua ampla divulgação e promoção. (BRASIL, 2011a). O PNPI apresenta como instrumentos da política de preservação: o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) e os Planos de Salvaguarda. Possui como diretrizes: promover a salvaguarda de bens culturais imateriais, ampliar a participação dos grupos produtores nos projetos de preservação e valorização do patrimônio, implementar mecanismos para proteção dos bens culturais em risco, respeitar e proteger direitos relativos à preservação e ao uso do patrimônio imaterial, e melhorar as condições de vida de seus produtores. O programa busca apoiar, entre outros, projetos de pesquisa, documentação e informação, produção de inventários e referências culturais, bem como planos de salvaguarda de bens culturais registrados. (BRASIL, 2011d) Conforme UNESCO (2006) entende-se por patrimônio cultural imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.” Esse patrimônio é transmitido de geração em geração, sendo constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do contexto histórico e social no qual se insere, gerando sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para o respeito à diversidade cultural. (UNESCO, 2006).

Papel do Estado

Segundo BRASIL (2011c), diante da complexa dinâmica cultural brasileira, o papel do Estado deve ser repensado na implementação de políticas públicas para o setor. Para o Ministério da Cultura, cabe ao Estado a implementação e o fomento de políticas de cultura democráticas, permanentes e integradas, que garantam a cada cidadão brasileiro o direito à produção cultural e ao acesso a serviços e bens culturais. O governo deve reconhecer a cultura como eixo estratégico de desenvolvimento sustentável, protegendo e incentivando a 6

diversidade brasileira em suas múltiplas manifestações. Deve, ainda, fortalecer a sociedade civil promovendo a ampla participação da comunidade nos processos de elaboração e execução das políticas públicas e buscar soluções inovadoras perante os desafios da gestão de uma cultura de pluralidade singular. (BRASIL, 2011c). Compete ao Estado reconhecer e valorizar tais expressões da diversidade brasileira, incentivando sua difusão e garantindo a todos o direito à fruição artística e o acesso a equipamentos e bens culturais, promovendo a salvaguarda do patrimônio cultural (material e imaterial) e das populações tradicionais. As identidades minoritárias e a cultura popular devem ser especialmente protegidas. Pertencentes ao mundo contemporâneo, realizam trocas e se transformam. Portanto, requerem específica atenção, devendo ser incentivada sua manutenção e sustentabilidade por meio da investigação e do registro. Assim as políticas governamentais devem contemplar gradualmente os grupos e segmentos culturais mais vulneráveis e democratizar os conteúdos culturais diversos. (BRASIL, 2011c). Também é papel do Estado democratizar os processos políticos decisórios. A participação da comunidade deve ser incentivada na construção das políticas públicas de cultura, desde a etapa de elaboração a execução, acompanhamento e avaliação. A gestão pública deve provocar protagonismo e empoderamento social, despertando em cada cidadão o sentido de pertencimento. Os Planos de Cultura, instrumentos de gestão do Sistema Nacional de Cultura (SNC), devem ser integrados, sustentáveis e elaborados em processos participativos, discutidos com a comunidade e divulgados, bem como suas diretrizes e ações apresentadas periodicamente em diversos meios de comunicação, assegurando o controle social. Cabe ao Estado, planejar e fomentar atividades culturais, restaurar e valorizar o patrimônio, estabelecendo prioridades em sintonia com as comunidades, sem dirigismo ou interferência nos processos criativos. (BRASIL, 2011c). Os investimentos públicos devem contribuir para a distribuição da riqueza de uma forma mais justa e equilibrada, sendo obrigação do Estado otimizar, fortalecer e integrar as ações do poder público, trabalhando de modo articulado nas três esferas: Federal, Estadual e Municipal, bem como reconhecer a cultura como um dos setores mais dinâmicos da atualidade. Promover um gerenciamento público abrangente de fato, inclusivo, que pondere as três dimensões da cultura: simbólica, econômica e cidadã, e que interaja em todos os espaços sociais. Uma gestão compartilhada entre poder público, sociedade civil e terceiro setor, onde a comunidade seja protagonista, se manifestando e participando na implementação de políticas culturais, assim como produzindo, consumindo e difundindo a cultura nacional. Assim, são obrigações do poder público: fomentar o pluralismo, divulgar e 7

promover o patrimônio cultural, universalizar o acesso à cultura e assegurar legalmente a continuidade das políticas públicas de cultura. (BRASIL, 2011c). Lidar

com

a

complexidade

do

fenômeno

cultural

consiste

em

imensa

responsabilidade, requerendo alternativas inovadoras em todos os aspectos. O Estado deve diminuir as distâncias sociais e econômicas da população de tão vasto território. É primordial que invista na formação continuada de pessoal para o setor cultural, visando a disseminação das informações e multiplicação das políticas e instrumentos de gestão, sobretudo em grupos minoritários e tradicionais, promovendo abrangência e acessibilidade. Multiplicadores do processo, produtores e gestores serão mediadores, como sinapses na imensa rede cultural brasileira, interligando instâncias governamentais e atores locais, estando atentos às peculiaridades territoriais e aos demais aspectos. Os gestores públicos de cultura, além de conhecer métodos e técnicas administrativas, devem ser consideravelmente sensíveis ao fenômeno cultural. (BRASIL, 2011c). Faz-se, portanto, necessária a compreensão da cultura em seu sentido amplo e antropológico, para que se discutam novos conceitos, enfatize a importância das diversas identidades e da democratização, ao tempo em que incite a busca por novas formas de financiamento e gestão, em virtude dos desafios da contemporaneidade. O gestor cultural deve saber utilizar-se de bases teóricas com flexibilidade, ser permeável e criativo na implementação de políticas e programas desafiadores, articulando instituições e segmentos diversos, sem que se esqueça de que as demandas devem partir prioritariamente das próprias comunidades. (BRASIL, 2011c)

Considerações Finais Conforme Cardoso (1971), o conhecimento não parte do vazio. Toda investigação supõe um corpo teórico que lhe orienta, dá forma e significado. Para a autora, não é fácil se fazer pesquisa. Por mais que planejemos, seus passos não possuem uma ordenação rígida; articulam-se durante a prática e trocam de lugar. A produção de um laudo em antropologia, por sua vez, consiste em atividade paradoxal - incrementada ao paradoxo antropológico dos dois universos em que habita o profissional - enquanto o trabalho almeja o possível relativismo, o antropólogo é chamado para dar respostas de valor absoluto. (CARDOSO, 1971; LEITE, 2005; WAGNER, 1975).

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Um parecer antropológico é, portanto, um grande desafio, pois ao tempo em que considera o ponto de vista dos pesquisados em prol de seus direitos, alia a pesquisa de campo à fundamentação cientifica-acadêmica. Pesquisa na qual estão imbricadas, além da intersubjetividade, questões éticas e práticas. Na investigação, o conhecimento que se produz é sempre limitado, a adequação é relativa, menos rica e complexa do que a realidade a que se refere. Somos construtores de uma verdade parcial, diz Clifford (1991), e a coerência na argumentação desse construto dependerá da qualidade da informação etnológica apresentada, que deve estar intensamente fundamentada na teoria antropológica. O laudo em Antropologia, além de apresentar caráter técnico e científico necessário à objetivação de um parecer, deve constituir um documento inteiramente comprometido com a verdade, que está submetida às interpretações e reflexões próprias do antropólogo. (CARDOSO, 1971; CLIFFORD, 1991; SANTOS, 1994; SILVA, 1994; VALADÃO, 1994). A análise em um parecer antropológico deve considerar o significado histórico das categorias, das convenções e dos direitos em questão. As leis precisam ser vistas como parte integrante dos processos sociais, devendo ser estudadas suas reais implicações tanto para os grupos envolvidos quanto para o Estado. Na composição de um laudo, conforme Filho (2005) devemos estar em alerta às possíveis ambiguidades dos termos utilizados. Quando se classifica o reisado Boi Estrela como uma manifestação cultural tradicional, é preciso atentar para os interesses subjacentes ao contexto e à legislação pertinente. Os conceitos, por sua vez, não podem ser fechados. A cultura, tampouco as tradições são entes cristalizados. E, se as lacunas das leis podem permitir, por vezes, o encaixe das situações reais, é de se esperar que as brechas conceituais também o possam fazer. (FILHO, 2005). De acordo com Filho (2005), cada caso merece ser analisado minuciosamente em sua especificidade. O reisado de mestre Branquinho fez a peregrinação pelas casas em 2012, antecedendo a festa do Santo Reis. Para o próximo ano, prevê somente a realização da festa. A cada visita que fazemos ao Boquinha, uma novidade surge. O mestre afirma que vai mudar tudo: a toada, a indumentária, a música e até mesmo a estrutura do galpão do Boi Estrela. As transmutações no Boi ocorrem de diversas formas e em grande velocidade. Segundo Geertz (2004), devemos dar atenção não ao resultado das mudanças em si mesmo, mas aos mecanismos e às causas dessas transformações, aos processos culturais e sociais que conectam o passado e o presente, e de que modo um veio a se tornar o outro. Em nossa pesquisa, buscamos analisar a maneira pela qual as invenções de mestre Branquinho dialogam com as tradições, de que modo o mestre de reisado reinventa e reelabora diariamente sua prática. 9

Nas manifestações populares, as categorias e interpretações variam a cada grupo, e também a cada participante. A própria concepção do que é um reisado não é constante no tempo e nem é a mesma para todos. Os grupos estão imersos em uma imensa teia de significados variantes conforme o contexto (GEERTZ, 1978). As formas culturais, para Oliveira (2002), não são homogêneas nem regulares e nem as unidades sociais são claramente delimitadas. Assim, a situação de perícia antropológica envolve processos complexos, que exigem um estudo aprofundado, rigoroso e reflexivo. As verdades construídas nos laudos não são imutáveis, mas são legitimadas pela transparência na construção dos dados e pela responsabilidade do profissional devidamente fundamentado na teoria antropológica acompanhada de uma metodologia consistente. (OLIVEIRA, 2002) Nos últimos anos, conforme Pantaleón (2002), os antropólogos na América Latina têm mantido um novo tipo de vínculo com as populações que estudam, estabelecendo a mediação entre estas e as agências de desenvolvimento. Sua participação como mediador nas comunidades permite a elas o acesso aos mecanismos financiadores de órgãos do governo e de organizações não governamentais. Ao estabelecer um diálogo, o antropólogo pode integrar as necessidades das comunidades às políticas de fomento do Estado, trazendo benefícios diretos aos seus pesquisados e contribuindo com o Estado na estruturação de políticas de redistribuição de recursos econômicos. A identificação de categorias, contudo, não se reduz a um interesse puramente econômico, ela é legitimada especialmente pelas conjunturas históricas e simbólicas (ARRUTI 1997). A sensibilidade e a interpretação das demandas e saberes locais por parte do antropólogo podem levar a uma congruência dos interesses das partes. Assim, enquanto especialistas do local, os antropólogos também atuamos na política social global. (PANTALEÓN, 2002)

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Decreto



3.551,

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