Relação Brasil-Bolívia: a fronteira, os conflitos contemporâneos e o ideal de integração. Anais do V Seminário de Estudos Fronteiriços. Corumbá-MS: UFMS, 2015.

July 18, 2017 | Autor: C. Pereira Carnei... | Categoria: Geopolitics, Borders and Frontiers, Fronteras, Geografía Política, Zonas De Fronteira
Share Embed


Descrição do Produto

RELAÇÃO BRASIL-BOLÍVIA: A FRONTEIRA, OS CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS E O IDEAL DE INTEGRAÇÃO

Camilo Pereira Carneiro Filho PPGEEI/UFRGS [email protected]

Resumo: O presente artigo traz uma análise das relações Brasil-Bolívia em temas chave como fronteira, gás, soja e segurança. A consolidação da fronteira entre os dois países se deu após disputas decorrentes do alto preço da borracha no século XIX, que culminaram no Tratado de Petrópolis. Correspondendo a uma espécie de heartland sul-americano, na ótica dos geopolíticos brasileiros, a Bolívia começou a integrar a zona de influência do Brasil ao longo do século XX. Para tanto, obras de infraestrutura como rodovias e ferrovias passaram a conectar o país aos portos brasileiros. Nas últimas décadas, a relação entre os dois países ganhou novas características decorrentes da imigração em via dupla, dos conflitos fundiários, das disputas em torno do gás e do crescimento da preocupação com a segurança na fronteira por parte do governo brasileiro, que ao mesmo tempo continua defendendo a integração regional. Palavras-chave: Fronteira Brasil-Bolívia, Gasbol, soja, segurança.

Abstract: This paper presents an analysis of the Brazil-Bolivia relations in key issues such as border, gas, soybeans and security. The consolidation of the border between the two countries took place after disputes arising the high price of rubber in the nineteenth century that ended with the Treaty of Petrópolis. A kind of South American heartland, in the view of Brazilian geopolitical thinkers, Bolivia has begun to integrate the zone of influence of Brazil during the twentieth century. Therefore, infrastructure projects such as roads and railways began to connect the country to the Brazilian ports. In recent decades, the relationship between the two countries gained new features stemming from immigration in double track, the conflicts over land property and gas and the growth concern with border security by the Brazilian government that at the same time remains to defend the regional integration. Keywords: Brazil-Bolivia border, Gasbol, soybean, security.

INTRODUÇÃO

Objeto permanente da preocupação dos Estados nacionais, no sentido de controle e vinculação, a fronteira é comumente tida como uma fonte de perigo ou ameaça, uma vez que pode desenvolver interesses distintos daqueles do poder central. Não obstante, a fronteira também pode ser um fator de integração, na medida em que constituir uma zona de interpenetração mútua, onde haja uma manipulação de estruturas políticas, culturais e sociais diferentes (MACHADO, 1998). A fronteira Brasil-Bolívia constitui um bom exemplo das contradições existentes em uma zona de fronteira, que ao mesmo tempo configura uma zona de interpenetração mútua com potencial de integração e por outro lado desenvolve interesses distintos daqueles dos Estados nacionais. Estendendo-se de Corumbá, estado do Mato Grosso do Sul, até o município de Assis Brasil, no estado do Acre, a fronteira Brasil-Bolívia percorre 3.423 quilômetros e ocupa áreas entre o Pantanal e a floresta Amazônica. Os limites internacionais entre os dois países foram estabelecidos na virada do século XIX para o século XX. Desde o Tratado de Petrópolis (1903) até os dias de hoje, uma série de episódios colaboraram para uma maior aproximação entre os dois países. A partir da segunda metade do século XX, a Bolívia passou a figurar na zona de influência do Brasil. Atualmente, a soja, a segurança na fronteira, as migrações em via dupla e a importação de gás boliviano pelo Brasil formam a pauta de temas tratados entre as chancelarias dos dois países.

CONSOLIDAÇÃO DA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA

No decorrer do século XIX, fatores como a imprecisão dos limites e a instabilidade política da Bolívia dificultaram o domínio do território do Acre, que estava sob soberania boliviana desde a dissolução da Confederação PeruanoBoliviana, em 1839. A situação contribuiu para que o Brasil ocupasse e incorporasse a região ao estado do Amazonas. No ano de 1867, Brasil e Bolívia assinaram o Tratado de Ayacucho, pelo qual foram determinados os limites da zona em disputa.

Com isso, uma parte do Acre ficaria sob soberania do Brasil e a outra sob soberania boliviana. Na segunda metade do século XIX, a demanda internacional pela borracha ocasionou conflitos fronteiriços entre Brasil e Bolívia. Episódios que envolveram um grande contingente de retirantes nordestinos brasileiros que, fugidos da seca a partir de 1877, foram se instalando em uma área na confluência dos rios Acre e Purus. Nas últimas décadas do século XIX cerca de cinqüenta mil brasileiros habitavam a região. Na virada do século XIX para o século XX, com o auge da exploração dos seringais e a ação dos garimpeiros, começaram a ocorrer sucessivos confrontos entre as autoridades bolivianas e os imigrantes brasileiros. Apoiados pelo Brasil, em 1899, os imigrantes proclamaram a República do Acre. A Bolívia ainda reincorporou o território em 1900, contudo, não suportou a pressão militar brasileira e acabou por abrir mão do Acre em 1903, com a assinatura do Tratado de Petrópolis (MOREIRA; QUINTEROS; SILVA, 2010). O tratado alterou a fronteira entre os dois países, formalizou a incorporação do Acre ao território brasileiro com o pagamento à Bolívia de 2 milhões de libras esterlinas, além do compromisso do Brasil de construir a Estrada de Ferro MadeiraMamoré. Na esteira do Tratado de Petrópolis, em 1910 foi assinado um tratado de comércio e navegação que passou a dar à Bolívia o livre trânsito através do território brasileiro para o acesso ao Atlântico.

A IMPORTÂNCIA DA BOLÍVIA NA ÓTICA DOS GEOPOLÍTICOS BRASILEIROS

No âmbito da geopolítica brasileira para a América do Sul, na década de 1930, Mário Travassos identificava no potencial estratégico e econômico do triângulo formado pelas cidades bolivianas de Cochabamba-Santa Cruz de la Sierra-Sucre uma forma de neutralizar as vantagens da Bacia do Prata. O controle desse triângulo permitiria ao Brasil neutralizar a prevalência natural da bacia platina e a hegemonia argentina sobre Bolívia, Paraguai e Uruguai. Para tanto, o autor sugeria a constituição de um sistema ferroviário, fluvial e aéreo capaz de transpor a massa continental sul-americana. Travassos propunha a constituição de uma rede férrea capaz de carrear para os portos brasileiros do

Atlântico as influências da Argentina sobre a Bolívia. Defendia a chegada dos trilhos brasileiros à Santa Cruz de la Sierra e daí à Arica, no Pacífico (MATTOS, 1977). A importância da Bolívia no contexto da geopolítica brasileira também foi abordada por Meira Mattos (1977), que entendia que o país vizinho deveria ser conectado ao Brasil através de uma rede de comunicações fronteiriça baseada no estabelecimento

de

transportes

e

telecomunicações.

O

autor

defendia

a

consolidação da região da fronteira através do aproveitamento de fontes de energia ou combustíveis, o que possibilitaria uma articulação continental. O autor propunha ainda a aplicação do conceito de “áreas de intercâmbio fronteiriço”, o qual se define como uma unidade econômica motriz num determinado espaço socioeconômico. Nesse sentido, a tecnologia de transportes deveria ser utilizada para a continentalização da hinterlândia sul-americana (MATTOS, 1977). Para Meira Mattos, as áreas interiores de intercâmbio fronteiriço seriam o primeiro resultado da política de continentalização catalisadora dos impulsos de desenvolvimento tendentes ao alargamento da fronteira econômica dos países amazônicos. Outro geopolítico brasileiro que identificou a importância da fronteira Brasil-Bolívia no continente sul-americano foi Golbery do Couto e Silva, que regionalizou a América do Sul em cinco áreas continentais. Nessa classificação a zona de fronteira entre Brasil e Bolívia estava inserida na área Geopolítica Central de Soldadura, em função de seu caráter ambivalente amazônico-platino, sendo uma área de primordial importância, com destaque para o estado do Mato Grosso e seu papel de placa giratória (FREITAS, 2004). Obras como a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (que atingiu Corumbá em 1952), a ferrovia Corumbá-Santa Cruz (inaugurada em 1955) e a BR-364 (cujo trecho Cuiabá-Rio Branco teve asfaltamento concluído em 1983) foram realizadas com base nas teses de geopolíticos brasileiros (mapa 1). Através delas, o heartland (a terra coração de Mackinder) sul-americano, representado pela Bolívia, passou a se conectar com os centros de poder do país – São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.

Mapa 1 – Principais conexões e infraestruturas entre Brasil e Bolívia

A POPULAÇÃO BRASILEIRA RESIDENTE NA BOLÍVIA

Na década de 1980, a abertura do mercado de terras no norte da Bolívia atraiu capitais brasileiros. Parte desses capitais era oriunda da expansão de intercâmbios de comércio ocorridos em cidades gêmeas localizadas entre o estado brasileiro do Acre e o departamento boliviano de Pando (mapa1). Nesse departamento a presença de brasileiros passou a ser tão significativa que, em 2004, nele viviam mais de 550 famílias brasileiras. População instalada em uma zona dentro dos 50 quilômetros da faixa de fronteira boliviana e que passou a ter no extrativismo sua principal fonte de renda. Em função dos preços baixos, muitos brasileiros que viviam em Brasileia e Epitaciolândia começaram a comprar terras na Bolívia, sobretudo nos arredores de Cobija, capital do departamento de Pando, sem se importar com a proibição imposta pela lei boliviana à aquisição por cidadãos estrangeiros de terras dentro da faixa de fronteira do país – 50 quilômetros, contados a partir do limite internacional (MACHADO et al., 2015). Por sua vez, outro importante contingente de brasileiros residente na Bolívia, é o dos produtores agrícolas (que em sua maioria são originários dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso). Concentrados, sobretudo, em áreas próximas a Santa Cruz de la Sierra, segunda cidade do país. Em 2004, as estimativas indicavam a presença de 150 famílias vivendo da agricultura na região. Naquele ano, esses brasileiros eram responsáveis por 30% da produção de soja (principal produto agrícola do país), além de 13% do milho e 33% do girassol produzidos na Bolívia (CLEMENTE, 2004). Apesar da importância econômica representada pela produção agrícola, a presença brasileira também gera preocupação ao governo boliviano, em especial no tocante às áreas remotas, como o departamento de Pando, que está precariamente integrado ao resto do território da Bolívia. O temor das autoridades bolivianas de perderem o controle sobre a exploração econômica dos recursos naturais da Amazônia boliviana fez com que o governo de Evo Morales passasse a restringir a permanência de brasileiros no país e efetuar a retirada de colonos residentes em Pando (MACHADO et al., 2015). O governo boliviano se valeu, nesse caso, do notório envolvimento de alguns cidadãos brasileiros em atividades ilegais em território boliviano, como o

contrabando de madeira e ouro, para justificar as expulsões. Em 2010, foram repatriadas 350 famílias brasileiras que habitavam o norte da Bolívia. Além da política de deportações, o governo boliviano também passou a investir em infraestruturas rodoviárias (asfaltamento e abertura de estradas) visando conectar o norte e o nordeste do país a La Paz, além de viabilizar a instalação de colonos bolivianos no departamento de Pando (MACHADO et al., 2015). Não obstante as medidas tomadas por La Paz, na fronteira Brasil-Bolívia uma zona de interação e troca vem sendo formada ao longo do tempo. Essa interação ocorre de diversas formas, como, por exemplo, através das feirinhas bolivianas estabelecidas nos dois lados do limite internacional. Do lado brasileiro chegaram a existir importantes feiras de alimentos, como a Bras-Bol (fechada em 2013), que era organizada por comerciantes brasileiros e bolivianos na cidade de Corumbá. Por sua vez, em cidades fronteiriças da Bolívia pequenos comerciantes vendem artigos importados, artesanato andino e roupas trazidas de São Paulo. Cabe destacar, ainda no tocante às interações por meio do trabalho, a tríplice fronteira Cobija(BOL)-Brasileia(BRA)-Epitaciolândia(BRA) onde muitos brasileiros migram para o lado boliviano em função do preço mais barato da terra e das facilidades de extração de madeira nobre. Por sua vez, no par de cidades gêmeas Guajará-Mirim/Gayaramerín a interação é promovida pelos empresários bolivianos de Guayaramerín, que fazem uso da rede bancária da cidade brasileira, seja em busca da segurança que não encontram no lado boliviano, seja para operações de lavagem de dinheiro (MACHADO, 2005). Já no âmbito da educação, uma importante iniciativa para a integração fronteiriça entre os dois países teve início em outubro de 2011, com o início do Projeto Escola Intercultural Bilingue de Fronteira, do qual participam professores brasileiros e bolivianos e que envolve duas escolas, uma de Corumbá-BRA e outra de Puerto Quijarro-BOL. Por fim, há que se destacar a atuação da Igreja Católica, que num passado recente chegou a ser um importante agente em prol da integração fronteiriça entre Brasil e Bolívia. No par de cidades gêmeas Guajará-Mirim/Gayaramerín a Igreja chegou a administrar um hospital, escolas e seminários, além de realizar ações sociais, doações de áreas para construção de habitações, inclusive para imigrantes bolivianos. Essas ações transfronteiriças reforçaram a integração das cidades

gêmeas e também contribuíram para a estabilidade da cidade brasileira, há tempos sob domínio das redes de tráfico de drogas. Ultimamente, a imigração nos dois sentidos tem reforçado os laços entre Brasil e Bolívia. Nesse sentido, corroborando com a política de cooperação e integração com o país vizinho, em 2009, o governo brasileiro promulgou a Lei da Anistia, beneficiando imigrantes que viviam em situação irregular no Brasil, dentre os quais estava a comunidade boliviana, estimada em 100 mil indivíduos, localizada, em sua maioria, nos arredores da cidade de São Paulo.

A SOJA E A EXPANSÃO DA FRONTEIRA AGRÍCOLA NA BOLÍVIA

Nas últimas décadas, a fronteira Brasil-Bolívia tem testemunhado o crescimento do setor agrícola, com destaque para o cultivo da soja, que vem ultrapassando o limite internacional entre os dois países e tem transformado áreas que historicamente apresentavam baixa produtividade. A produção de soja na Bolívia teve início na década de 1950, impulsionada pelo decreto de Reforma Agrária de 1953, que visava o desenvolvimento da indústria capitalista no campo na parte oriental do país. Nos anos 60 e 70, colonos japoneses e menonitas1 iniciaram o cultivo da soja nos arredores de Santa Cruz de la Sierra. Em 1985, o governo boliviano implantou o programa Tierras Bajas del Este (financiado pelo Banco Mundial, pela CAF, pelo BID e pelo governo da Alemanha Ocidental), que consistia em uma ampla expansão da fronteira agrícola com grande custo ambiental, derrubada de matas e distribuição de terras estatais. A partir da década de 1990, agricultores brasileiros começaram a chegar ao país vizinho atraídos pela boa fertilidade e pelo preço baixo das terras. Em 2004, enquanto um hectare de soja cultivada no Brasil saía por US$ 460 ao agricultor, na Bolívia o mesmo hectare custava US$ 240. Os sojicultores brasileiros passaram a se instalar em uma faixa de planície situada a 600 quilômetros da fronteira do Brasil, onde o solo é tão fértil que possibilita a colheita de duas safras de soja por ano (CLEMENTE, 2004).

1

Os primeiros membros da comunidade religiosa menonita chegaram à Bolívia na década de 1950, sendo originários da província canadense de Manitoba. Os menonitas mantêm o estilo de vida que seus antepassados holandeses e alemães possuíam no século XVI.

O complexo oleaginoso possui um papel importante na economia boliviana. Em 2003, alguns números já indicavam o peso do setor, que naquele ano: ocupava um terço da superfície cultivada da Bolívia; contribuía com 6% do PIB boliviano; respondia pela quarta parte das exportações do país; gerava 45 mil empregos diretos; e mobilizava o transporte interno, desencadeando efeitos multiplicadores na economia (GIMENEZ, 2010). Dentro do departamento de Santa Cruz, os sojicultores brasileiros ocupam áreas na chamada zona integrada (que abrange as regiões de Montero, Okinawa e Mineros), na zona de expansão (Pailón, Tres Cruces e San José) e, mais recentemente, em San Pedro e San Julián. Atualmente, a principal preocupação dos produtores da ANAPO – Associação de Produtores de Oleaginosas e de Trigo –, que agrega não apenas brasileiros, como argentinos e japoneses, entre outros, é com a medida criada no governo de Evo Morales e inserida na nova constituição do país, que limita a área das propriedades a cinco mil hectares. Aqueles que possuem fazendas que ultrapassam o novo limite temem perder o excedente de terras para o governo (CARMO, 2014). Por fim, os impactos socioambientais causados pela valorização das terras do leste e do nordeste da Bolívia, sobretudo aquelas atravessadas pelas principais rodovias, podem ser percebidos ao se constatar a diminuição da cobertura florestal e o aumento do número de conflitos pelo acesso à terra (MACHADO et al., 2015).

O GASODUTO BOLÍVIA-BRASIL

A Bolívia possui historicamente uma dependência econômica em relação ao gás natural. A construção de um gasoduto ligando Bolívia e Brasil foi pauta de reuniões entre as autoridades dos dois países por quase cinco décadas. Durante esse período, enquanto o acordo com o Brasil não se concretizava, a Bolívia exportava gás para a Argentina. No entanto, os argentinos obtiveram a autosuficiência em gás no final da década de 1970 e o contrato de gás boliviano foi encerrado em 1992. Nesse contexto, as negociações entre brasileiros e bolivianos ganharam força. Na década de 1990, a Bolívia encontraria no Brasil um mercado consumidor chave. O marco inicial do gasoduto Bolívia-Brasil – Gasbol – foi o ano de 1991, com a assinatura da “Carta de Intenções sobre o Processo de Integração Energética

entre Bolívia e Brasil” pela Petrobras e a YPFB – Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos. Para a construção e operação do gasoduto foram constituídas duas empresas: a Gas Transboliviano (GTB) e a Transportadora Brasileira Gasoduto Brasil-Bolívia (TBG). Inicialmente, a maioria das ações dessas empresas estava nas mãos de Petrobras, Shell, Enron e BBPP (PASSOS, 1998). Em 1996 foi firmado o Tratado de La Paz, que regulamentou a construção, funcionamento e comércio do gás. O gasoduto Bolívia-Brasil começou a ser construído em 1997 e foi inaugurado em 1999, ainda que só passasse a operar plenamente em 2010. O Gasbol constitui uma via de transporte de gás natural de 3.150 quilômetros de extensão (557 km na Bolívia, trecho administrado pela GTB, e 2.593 km no Brasil, trecho administrado pela TBG). O Gasbol tem início em Santa Cruz de la Sierra e termina na cidade gaúcha de Canoas. Em território brasileiro o gasoduto cruza os estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, fornecendo energia para a região Centro-Sul do Brasil, sobretudo para as fábricas do estado de São Paulo, onde está o maior parque industrial do país. A relação Brasil-Bolívia e o funcionamento do Gasbol sofreram uma reviravolta em 2006, quando o presidente Evo Morales declarou a nacionalização dos hidrocarbonetos, refinarias, distribuidores e postos de combustíveis. Com a medida o governo da Bolívia passou a ser sócio majoritário dessas empresas, controlando 50% mais 1 das ações. Morales transferiu a propriedade das reservas de gás para a Bolívia (essas, até então, vinham sendo exploradas por Petrobras, Repsol, YPF, Total, British Gas e British Petroleum). Além disso, através do “Decreto Supremo”, novas regras foram impostas aos hidrocarbonetos extraídos no país e os impostos sobre a produção subiram, passando de 50% para 82%. Face à atitude tomada por Evo Morales, a resposta do governo brasileiro, então presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, foi de “não fazer retaliação a um país infinitamente mais pobre do que o Brasil, com um povo mais faminto do que o povo brasileiro”. Ainda que um acordo tenha sido realizado depois de alguns meses de crise, a desapropriação da Petrobras alterou o rumo dos investimentos diretos do Brasil no exterior, deslocando-os da América do Sul para outros mercados, como América do Norte e Europa. Essa tensão diplomática prejudicou a integração sulamericana e colocou em perigo os investimentos na região (TABAK; LOBO, 2013).

Apesar dos protestos da Petrobras e do governo brasileiro em relação à medida unilateral do governo boliviano, o convênio entre os dois países, que entrou em vigor em 1999 e termina em 2019, prosseguiu. Em 2014, a Petrobras e a YPFB iniciaram a negociação da ampliação do contrato de compra de gás natural boliviano. Atualmente, a Bolívia fornece 31 milhões de metros cúbicos diários de gás natural ao Brasil. O negócio é de importância primordial para a economia boliviana, pois a venda de gás representa mais de 50% das exportações do país e o Brasil é o seu principal cliente. Em 2013, a Bolívia vendeu US$ 5,459 bilhões em gás, sendo 60% para o Brasil e 40% para a Argentina (G1, 2014). Nos últimos anos a dependência das termoelétricas brasileiras em relação ao gás boliviano vem diminuindo. O gás natural que o Brasil importa da Bolívia, que no passado chegou a representar 44,1% do consumo interno brasileiro, hoje corresponde a cerca de 27,8%. Dependendo dos avanços na exploração e na produção das reservas do Pré-sal o Brasil poderá, no futuro, não precisar importar o gás boliviano (CARMO, 2014).

A POLÍTICA DO GOVERNO BRASILEIRO PARA A FRONTEIRA: ENFOQUE NA SEGURANÇA

De acordo com as autoridades bolivianas, nos últimos anos, a zona de fronteira com o Brasil se transformou em refúgio para criminosos dos dois países. Corroborando com essa afirmação, em 2009, cerca de 700 brasileiros processados por crimes como homicídio, roubo de veículos e tráfico de drogas viviam na cidade fronteiriça de San Matías. Mesmo tendo conhecimento da situação, as autoridades do Brasil e da Bolívia possuem dificuldades de combater o problema devido à grande extensão da fronteira e à insuficiência de homens e veículos (VASQUES, 2009). O livre ingresso de brasileiros na Bolívia, segundo a polícia daquele país, contribui para o aumento da violência na zona de fronteira. Isso porque muitos dos grupos de criminosos que adentram o território boliviano com veículos roubados e produtos para o refino de cocaína são compostos por cidadãos brasileiros. Em 2006, esse fluxo de brasileiros criminosos foi relatado em um documento entregue pelo GEFRON – Grupo Especial de Fronteira – ao consulado da Bolívia em Cuiabá.

Por sua vez, o governo boliviano, através da FELCN – Fuerza Nacional de Lucha Contra el Narcotráfico – já identificou três áreas na fronteira entre Brasil e Bolívia por onde passa a cocaína movimentada pelo PCC – Primeiro Comando da Capital – que chega via terrestre até São Paulo. As três principais rotas terrestres de saída

da

droga

para

o

Brasil

cruzam

as

cidades

gêmeas

de

Puerto

Suárez/Corumbá-MS, San Matías/Cáceres-MT e Guayaramerín/Guajará-Mirim-RO (GAERTNER, 2012). A falta de um controle maior sobre a entrada de bolivianos no Brasil também causa impactos e resulta em um cotidiano de prisões de “mulas” (pessoas que viajam transportando drogas) nas rodovias da zona de fronteira do Brasil. Atualmente, autoridades brasileiras estimam que entre 60% e 80% da droga produzida na Bolívia têm o Brasil como destino (CARMO, 2014). Ante o cenário exposto, nos últimos anos a política do governo federal do Brasil para a fronteira vem dando ênfase à tradicional função de defesa e controle. Uma das principais medidas tomadas foi a implementação da operação Ágata 2, que atualmente está em sua oitava edição e ocorre por meio da movimentação de tropas e contingentes de diversos órgãos de segurança ao longo da faixa de fronteira do Brasil. Com o intuito de evitar algum tipo de preocupação às autoridades do país vizinho, o governo brasileiro, através do Comando do 6° Distrito Naval, tem convidado militares das forças armadas bolivianas para participar da operação na qualidade de observadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na fronteira Brasil-Bolívia, alguns fatores regem de maneira formal ou informal o ritmo e o tipo de uso da terra, bem como as interações transfronteiriças. Dentre esses fatores, podem ser percebidos: o aumento da pressão sobre terras indígenas e áreas de proteção ambiental, o desmatamento, a presença de empresas nacionais e transnacionais, as frentes extrativas, a economia das drogas e a mobilidade humana nos dois lados do limite internacional (MACHADO et al., 2015).

2

Em 2011, o governo brasileiro criou o Plano Estratégico de Fronteiras para prevenir e combater crimes na faixa de fronteira. A operação Ágata faz parte dessa iniciativa, através dela militares das forças armadas e agentes civis atuam na proteção das fronteiras do Brasil com dez países.

Nas últimas décadas, alguns episódios contribuíram para o afastamento de Brasil e Bolívia (como a expulsão dos brasileiros do departamento de Pando, por exemplo), enquanto outros reafirmaram uma vontade de integração e a manutenção do ambiente de paz e harmonia entre os países (como a atitude conciliadora do presidente Lula face ao tenso e delicado tema da nacionalização do gás realizada por Evo Morales). Em que pese o retorno de uma política para a fronteira com ênfase na segurança, o discurso oficial do governo brasileiro vem enfatizando a integração sulamericana. Fato que corrobora essa afirmação foi a decisão da presidente Dilma Rousseff de preferir prestigiar a cerimônia de posse de Evo Morales, em La Paz, em janeiro de 2015, ao invés de comparecer ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, que ocorria no mesmo período. Por fim, apesar de alguns reveses ocorridos no processo de integração entre os dois países, que teve início na segunda metade do século XX, a Bolívia continua sendo um parceiro estratégico no entendimento do governo brasileiro, compondo a zona de influência brasileira na América do Sul, o que garante ao Brasil o status de líder do subcontinente e, conseqüentemente, um peso maior no cenário político internacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARMO, Márcia. Por que as eleições na Bolívia interessam ao Brasil? In: BBC Brasil,

13

out.

2014.

Disponível

em

. Acesso em: 25 jan. 2015.

CLEMENTE, Isabel. A nova fronteira agrícola nacional. Em pouco mais de dez anos, brasileiros tornaram-se donos de 15% da produção rural da Bolívia. In: Revista Época, n° 335, 15 out. 2004.

FREITAS, Jorge Manoel da Costa. A escola geopolítica brasileira. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2004.

G1. Brasil e Bolívia negociam ampliação de contrato de compra de gás. Publicado em:

19

ago.

2014.

Disponível

em

. Acesso em: 30 jan. 2015.

GAERTNER, Lívia. Fronteira Puerto Suárez/Corumbá é uma das 3 rotas usadas pelo PCC, afirma polícia boliviana. In: Diário Corumbaense, 27 nov. 2012. Disponível em . Acesso em: 22 jan. 2015.

GIMENEZ, Heloisa M. O desenvolvimento da cadeia produtiva da soja na Bolívia e a presença brasileira: uma história comum. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo. USP: São Paulo, 2010.

MACHADO, Lia O. Limites, Fronteiras e Redes. In: T. M. Strohaecker et al. Fronteiras e Espaço Global. Porto Alegre: AGB, p. 41-49, 1998.

___. Estado, território, redes: cidades gêmeas na zona de fronteira sul-americana. In: Continente em chamas. Maria L. Silveira (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

MACHADO, Lia O.; RIBEIRO, Letícia P.; MONTEIRO, Lício C. do Rego. Geopolítica fragmentada: interações transfronteiriças entre o Acre(BR), o Peru e a Bolívia. In: Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía, vol. 24, n° 1, 2015.

MATTOS, Carlos de Meira. A geopolítica e as projeções de poder. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1977.

MOREIRA, Luiz F. Viel; QUINTEROS, Marcela; SILVA, André L. R. da. As relações internacionais da América Latina. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

PASSOS, Maria de Fátima S. Abreu. Gasoduto Bolívia-Brasil. In: Economia & Energia, ano II, n° 10. Brasília, 1998.

TABAK, Flávio; LOBO, Thaís. Diplomacia entre Brasil e Bolívia traz cicatrizes de tensões históricas. In: O Globo, 28 ago. 2013.

VASQUES, Nadja. Violência na fronteira: 25 brasileiros são executados na região de San

Matías

em

3

anos.

In:

Gazeta

Digital,

11

mai. 2009.

Disponível

em. Acesso em: 29 jan. 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.