RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO E A LEI NO TEMPO REFLEXÕES A PARTIR DE UM CASO CONCRETO

June 7, 2017 | Autor: H. Garbellini Carnio | Categoria: Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Processo Civil, Direito Civil, Teoria Geral do Direito
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RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO E A LEI NO TEMPO Reflexões a partir de um caso concreto

RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO E A LEI NO TEMPO REFLEXÕES A PARTIR DE UM CASO CONCRETO Revista de Direito Privado | vol. 53/2013 | p. 23 - 28 | Jan - Mar / 2013 DTR\2013\2567 Henrique Garbellini Carnio Mestre e Doutorando em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Bolsista do Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior - Capes. Advogado. Área do Direito: Civil Resumo: O presente artigo pretende suscitar, a partir de um caso concreto, a importância de se revistar a tradicional teoria jurídica da interpretação e a aplicação da lei no tempo. Tal reflexão envolve o tema da relação jurídica e do ato jurídico perfeito e sua pretensão é a de esboçar praticamente a possibilidade de se pensar nos atuais contornos que o pós-positivismo impõe na articulação entre o direito constitucional e os demais ramos jurídicos, em especial no direito civil. Palavras-chave: Lei no tempo - Relação jurídica - Ato jurídico perfeito -Pós-positivismo. Abstract: This article aims to elicit, from a concrete case, the importance of rethink the traditional legal theory of interpretation and application of law. This reflection involves the theme of the legal relationship and the perfect legal act and its pretension is to sketch in a practice way the possibility of thinking about the current contours that post-positivism imposes on the relationship between constitutional law and other juridical branches, particularly in the civil law. Keywords: Law in time - Legal relationship - Perfect juridical act - Post-positivism. Sumário: 1.INTRODUÇÃO - 2.SÍNTESE DO CASO CONCRETO - 3.APLICAÇÃO DA LEI NOVA E O ATO JURÍDICO PERFEITO - 4.APONTAMENTOS CONCLUSIVOS 1. INTRODUÇÃO A questão envolvendo a aplicação da lei no tempo é tema recorrente na atividade teórica e prática dos estudiosos do direito. Em teoria do direito sua abordagem tradicional se relaciona, sobremaneira, à ideia de ordenamento jurídico e ao consequente mito da completude do ordenamento. Atualmente novas perspectivas têm sido traçadas sobre o assunto, em especial no que diz respeito aos estudos pós-positivistas com a proposta de um modelo de se pensar o direito que supere as deficiências do positivismo adequando-o aos avanços da filosofia da linguagem e da própria hermenêutica,1 e reconhecendo a necessidade de se elaborar juntamente uma concepção pós-positivista de norma que a distinga do texto normativo, o que, por sua vez, implica a necessidade de uma estruturação pós-positivista de sentença não mais vista como um processo de subsunção. De alguma forma o presente artigo pretende abordar uma faceta da aplicação da lei no tempo e a sistemática prática da vigência de leis, seja elas na esfera de direito material ou processual, a que, pelo caminho metodológico que nos serve de estofo, deve ser superada. Fato é que toda teoria do ordenamento tende para a ideia de sistema, em outras palavras, a teoria do ordenamento necessita da ideia de sistema para lhe completar sentido e lhe possibilitar um adequado tratamento para a relação entre as normas jurídicas. Dessa forma, além do problema envolvendo a hierarquia (os distintos estratos de normas) e da unidade (todas as normas remetendo a uma única norma fundamental) um ponto essencial para se trabalhar com a teoria do ordenamento é a questão da coerência normativa, de tal forma que o sistema estaria aqui atrelado à ideia de um todo coerente e harmônico de normas.2 Nessa perspectiva a teoria descreve duas situações distintas. A primeira pretende estabelecer critérios para identificar possíveis conflitos entre normas a tutelar conteúdos contraditórios entre si, o caso das antinomias, e, a segunda, traz a ideia de que é preciso estabelecer critérios para solução dessas antinomias,3 de tal modo que em torno do problema das antinomias se reivindique um “dever Página 1

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de coerência” que pode ser analisado na dimensão legislativa ou na dimensão judicial.4 Na primeira dimensão legislativa a ideia é a de não se criar normas incompatíveis com outras normas do sistema e, no caso da dimensão judicial a ideia é a de que, caso os julgadores deparem com antinomias no momento da aplicação, devem eliminá-las. Nos projetando entre a classificação tradicional por último exposta e as interlocuções oriundas da necessidade de se revistar o conflito de leis, no caso na denominada dimensão judicial, apresentamos um caso jurídico concreto muito interessante, por meio do qual o tema da superação tradicional do dualismo entre material e processual – uma das facetas da interpretação pós-positivista – pode se pensada juntamente com o relação jurídica. 2. SÍNTESE DO CASO CONCRETO Trata-se, o caso concreto a que nos referimos, de acórdão do TJSP, sob a relatoria da Des. Rosa Maria de Andrade Nery (TJSP Ap c/ Rev 0050745-21.2009.8.26.0114), que deu solução à demanda promovida por Integral Universidade Ltda. contra Orlando Carvalho Maciel. A discussão principal se dá em torno da aplicação da legislação brasileira envolvendo as regras de locação, incidindo especificamente na relação entre a Lei 6.649/1979 e Lei 8.245/1991. A questão posta envolve a temática das regras de temporalidade na aplicação de lei mais nova em detrimento de lei anterior e atinge dessa forma também o conceito de ato jurídico perfeito. Em suma, a ação indenizatória foi proposta pela apelante, pois o locador teria sido insincero em seu pedido de retomada do imóvel, supostamente não lhe dando a destinação devida, qual seja a construção no local do imóvel de unidade multifamiliar residencial. Os pedidos da peça inicial foram todos rejeitados, por essa razão a apelação interposta buscou discutir: (a) cerceamento de defesa, por ter postulado por produção de provas para comprovar os danos materiais e morais sofridos; (b) o fato de ter firma contrato de locação com o apelado no ano de 1985, sob a égide da Lei 6.649/1979, vigorando por 23 anos e o art. 39, da referida Lei, preconiza o prazo de 60 dias para o retomante usar o imóvel para o fim declarado, sob pena de multa a ser paga em favor da locatária; (c) que por força do despejo sofreu danos materiais e morais; (d) é inconstitucional a aplicação da Lei 8.245/1991, pois o contrato foi formulado com fundamento na Lei 6.649/1979, devendo regular as obrigações entre as partes, inclusive no que tange a aplicação da multa do art. 39; (e) a aplicação do art. 76 da Lei 8.245/1991, somente teria espaço se não atentasse contra norma constitucional que prevê o ato jurídico perfeito (art. 5.º, XXXVI e art. 59 da CF (LGL\1988\3)). No pedido da apelação a parte pretende pela anulação da decisão e, alternativamente sua reforma, reconhecendo-se a aplicação da Lei 6.649/1979, vigente à época em que foi celebrado o contrato. A decisão afastou de plano o pedido de cerceamento de defesa, cumprindo a regra do art. 330 do CPC (LGL\1973\5), uma vez que a matéria em discussão era unicamente de direito e as provas postuladas não interfeririam na solução. Ademais, em sua relatoria a desembargadora, mantendo o entendimento do juízo a quo, deixou claro que por mais que a locação tivesse se iniciado no ano de 1985, sob a vigência da Lei 6.649/1979, se prorrogou por prazo indeterminado e como houve prorrogação por prazo indeterminado, com o advento na Lei 6.649/1979, passaram a incidir no contrato as regras da Lei nova. Um ponto interessante, por mais que óbvio, mas não atinado adequadamente pela apelante foi o de que a própria ação de despejo ajuizada pelo apelado contra a ora autora, então locatária, é do ano de 1997 e foi fundamentada na Lei 8.245/1991, com fundamento em seu art. 53, II. A discussão envolve tanto a situação da relação jurídica existente entre as partes e a discussão processual da ação de despejo a partir da qual teria sido gerado o fato para a proposição da ação indenizatória discutida na apelação. Veja-se, a própria ação de despejo foi ajuizada com fundamento na Lei 8.245/1991 e a locação, prorrogada por tempo indeterminado, vigia de acordo com as regras da Lei nova, não havendo porque se falar em reconhecimento da aplicação do art. 39 da Lei 6.649/1979, nos termos do art. 76 da Lei 8.245/1991. Página 2

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De modo que por estes motivos, não haveria incorreção em sua aplicação, bem como não há afronta ao disposto nos arts. 5.º, XXXVI, e 59 da CF (LGL\1988\3). 3. APLICAÇÃO DA LEI NOVA E O ATO JURÍDICO PERFEITO A nosso ver, a decisão foi precisa e adequada na forma em que tratou a matéria em discussão, pois, em se tratando de relação jurídica que se estendeu com o tempo e fora atingida por lei nova, não há que sobre a possibilidade de aplicação da lei velha, pois o objeto do negócio prosseguiu por tempo indeterminado entre as partes. A questão é afeta ao conceito de negócio jurídico especificamente também, pois o despejo foi pedido e decidido com base na Lei nova e o apenamento que a autora pretende impor ao locador é feito com base no texto da Lei velha. Inexiste assim possibilidade do pedido prosperar, pois de modo substancial e forma o negócio entre as partes prosseguiu, até desfazimento do vínculo sob a Lei nova, situação não discutida nos autos. O fundamento do pedido da ação indenizatória, na realidade, é plenamente incompatível com o cumprimento e desfazimento da relação jurídica entre as partes, por isto plenamente rejeitável. Traçando um paralelo reflexivo ao tema da situação jurídica, pois há caráter relacional entre o direito material e processual5 no caso em tela, cabe lembrar a crítica de Pontes de Miranda ao clássico civilista francês Paulo Roubier. Para este último há três momentos na constituição das situações jurídicas: o da constituição, o dos efeitos e o da extinção. Dessa forma, a Lei nova, salvo expressa disposição que lhe confira retroatividade, não afetará a constituição ou a extinção da situação jurídica operadas pela Lei antiga. Pontes de Miranda crítica Roubier6 no que se refere entre o efeito retroativo e imediato da lei, nada impedindo que a Lei nova tenha pressuposto para sua incidência atual fato ocorrido antes dela, colocando que os pontos principais da discussão correspondem ao nascimento e à extinção das relações jurídicas. Para Pontes de Miranda fica claro que enquanto a relação jurídica não se extingue, a Lei nova pode intervir e justamente baseando seu posicionamento antiga fórmula constitucional de que a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, Pontes de Miranda enfatiza que a irretroatividade traz segurança jurídica quando se pensa nela no contexto de relação jurídica.7 4. APONTAMENTOS CONCLUSIVOS Aparentemente, a confusão cometida na formação da tese em discussão no caso concreto, se refira aos engodos da mera separação entre direito material e processual. Atualmente, em termos de interpretação jurídica é impossível que se separe o plano teórico do prático, na realidade os planos que envolvem o direito material e o direito processual são circulares (relacionais), ocorrendo um rompimento com o dualismo que inicialmente entendia o plano material mais importante do que o plano processual – antes, de modo retrógrado denominado como adjetivo –, ou mesmo na necessidade de um destacamento apenas do plano processual. Tudo isso atesta a importância atual de se (re)pensar a teoria da decisão, pois esta representa o âmbito discursivo no interior do qual se busca encontrar anteparos para o exercício da atividade jurisdicional, de modo a adequar tal atividade aos contornos democráticos que os estudos hermenêuticos contemporâneo, em especial na faceta do constitucionalismo, impõem.

1 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. Introdução à teoria e metódica estruturante do direito. São Paulo: Ed. RT, 2008. n. 1, p. 11. 2 Existem muitas peculiaridades no modo como o conceito de sistema foi articulado no interior do pensamento jurídico ao longo da história. Não há espaço aqui para se descer a esse grau de minúcias. Assim, remetemos o leitor para: LOSANO, Mario. Sistema e estrutura no direito. SãoPágina 3

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Paulo: Martins Fontes, 2010. vol. I e II, passim. 3 Bobbio define a antinomia como sendo uma situação em que são criadas duas normas, sendo que uma obriga e a outra proíbe. Ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Ademais, essas normas precisam ter o mesmo âmbito de validade, ou seja, devem existir no mesmo âmbito temporal, espacial, pessoal e material. Como afirma Bobbio, é preciso passar da definição de antinomias para a solução de antinomias. Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. parte II, cap. III, n. 17, p. 238. 4 Idem, n. 20, p. 254. 5 Na atualidade, levando em contra a relação entre Constituição e Processo na realidade de um movimento pós-moderno, contextualizando com o conceito pós-positivista, não há mais como não se referir à temática dos direitos matérias e processuais de outra forma. Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. 3. ed. São Paulo: Ed. SRS, 2007. p. 19 e ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 91-92. 6 ROUBIER, Paul. Droits subjectifs et situations juridiques. Paris: Dalloz, 1963. cap. preliminar, p. 22 et seq. 7 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.. Tratado de direito privado. 2. ed. Campinas Bookseller, 1999. t. I., p. 182 et seq.

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