Relações de patronagem e clientelismo: uma possível leitura da obra do poeta Horácio (século I a.C.). In: XII Semana de História, 2013, Goiânia. Anais Eletrônicos da XII Semana de História - História e Interdisciplinaridades: Confluências, 2013. p. 1-13.

May 28, 2017 | Autor: Erick Otto | Categoria: Augustan Poetry, Horace, Patronage (History), Augustan Principate
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ANAIS XII Semana de História: “Tempo, História e Mundo da Vida” 25 à 27 de junho de 2013 Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás - Goiânia

ISSN 2238-071X RELAÇÕES DE PATRONAGEM E CLIENTELISMO: UMA POSSÍVEL LEITURA DA OBRA DO POETA HORÁCIO (SÉCULO I A.C.) Mestrando Erick Messias Costa Otto Gomes E-mail: [email protected] Pós-Graduação da Faculdade de História – UFG Financiamento: CNPq Resumo: Esta comunicação tem o objetivo de apresentar a relação entre o imperador romano Otávio Augusto e suas imagens presentes nas obras do poeta Horácio, em especial o livro IV das Odes. Partimos do pressuposto de que somente podemos realizar uma análise das imagens do imperador na obra horaciana se considerarmos as relações de clientelismo e patronagem estabelecidas entre o poeta e Mecenas, e mais tarde entre Horácio e Augusto. Não basta tentar compreender os poemas considerando Horácio um “propagandista” de Augusto ou como um poeta com total liberdade em sua escrita. É necessário levar em considerações outras nuances, de modo evitar essas análises extremistas.

Palavras-chave: Horácio, Patronagem, Augusto.

Nossa comunicação tem o objetivo de apresentar a relação entre o imperador romano Otávio Augusto e suas imagens presentes nas obras do poeta Horácio, em especial o livro IV das Odes. Partimos do pressuposto de que somente podemos realizar uma análise das imagens do imperador na obra horaciana se considerarmos as relações de clientelismo e patronagem estabelecidas entre o poeta e Mecenas, e mais tarde entre Horácio e Augusto. Não basta tentar compreender os poemas considerando Horácio um “propagandista” de Augusto ou como um poeta com total liberdade em sua escrita. É necessário levar em considerações outras nuances, de modo evitar essas análises extremistas. Vamos expor os resultados parciais de nossa pesquisa, a qual aborda o processo de legitimação do imperador romano Otávio Augusto, cujo governo foi marcado pela formação e difusão de uma cultura política responsável por definir uma

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ISSN 2238-071X nova forma de governar, a qual perdurou por, pelo menos, dois séculos, o Principado. Augusto foi o fundador desse modelo e enfrentou oposições políticas, mas podemos considerar, de modo geral, que após a vitória sobre Antônio em 31 a.C., na batalha do Ácio, passou a se preocupar não mais com inimigos, mas com as seguintes questões: primeiramente, restaurar as instituições republicanas que se desgastaram com os longos anos de guerra civil; após 19 a.C., o princeps buscava garantir a continuidade dos poderes acumulados em torno de sua pessoa, de modo a legitimar sua posição e evidenciar a manutenção da paz. Criou-se uma série de imagens em torno do imperador, as quais transmitiam a ideia de ligação com os deuses, vingador de César, único capaz de garantir a ordem, dentre outras. Foram vários os mecanismos usados para formar e disseminar essas imagens, como as esculturas, as pinturas e as obras de poetas, dentre os quais se destaca Horácio (65-8 a.C.). Horácio tem uma trajetória marcada por sua ascensão enquanto poeta, cujo ponto culminante é o convite de Augusto para escrever o poema Carmen Saeculare, em 17 a.C., que seria recitado por um coral durante a realização dos Jogos Seculares. Sua obra é ampla e engloba uma variedade de escritos, como as Sátiras, os Epodos e as Odes. Estes últimos escritos especialmente para serem cantados em comemorações e banquetes. Nossa análise é focada sobre o livro IV das Odes, publicado em 13 a.C. De acordo com Michèle Lowrie (2007), nas últimas obras de Horácio, há cada vez mais uma aproximação com Augusto, devido ao aumento de sua auctoritas (influência) como poeta. As referências diretas e indiretas à pessoa do imperador, mostrando-o como o guardião dos valores dos antepassados e, sobretudo, como o único capaz de manter a res publica, são cada vez mais intensas. Nesse sentido, os poemas horacianos podem ser inseridos em um contexto de imaginário político no qual está em jogo o processo de legitimação do imperador, ou seja, sua poesia reflete e, ao mesmo tempo, forma as características dessa cultura política augustana, cujo objetivo é estabelecer uma imagem do princeps como essencial para a res publica romana, garantir a estabilidade do Império e a paz alcançada com o fim das guerras civis. Através da leitura da obra, percebemos que há um tom laudatório nesses poemas, em que a pessoa do imperador é elogiada (nem sempre diretamente) em boa parte da obra (HORÁCIO, Odes IV, 2, 4, 7, 10, 14, 15).

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ISSN 2238-071X De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2001, p. 31), as discussões em relação à natureza do Principado, a despeito de todas as posições, detém o consenso em um aspecto: a natureza monárquica do regime em virtude da concentração de poder nas mãos do princeps em detrimento das instituições que compunham a República romana, como as magistraturas civis e militares e as assembleias. Para o autor, a grande controvérsia refere-se à determinação dos fatores que permitiram a Augusto atrair para si poderes típicos dos diversos órgãos republicanos, e elevar-se em prestígio acima de qualquer outro cidadão (SILVA, 2001, p. 31). Uma primeira vertente é aquela que afirma que o poder de Augusto fundava-se sobre um regime de caráter militar, sendo o imperador capaz de mobilizar força física contra qualquer um que se opusesse ao governo. Martin Goodman (1997, p. 123), em The Roman World: 44 BC - AD 180, afirma que Augusto, a partir de 25 a.C., gradualmente estabeleceu “uma nova imagem de si mesmo em que nenhum indício de violência, ou qualquer necessidade de violência, pode ser vislumbrada.” Essa imagem não tinha por objetivo mascarar seu poder, mas legitimá-lo, afinal, nos anos do triunvirato até a Batalha do Ácio (44 a.C.-31 a.C.), Otávio mostrou pouca simpatia para as regras da res publica, quando recrutou por iniciativa própria um exército de legionários do ex-César, confiscou as receitas fiscais da província da Ásia, sem qualquer justificação, e marchou em Roma, em um estado de alta traição. Augusto acumulou uma variedade de poderes em um grande esforço para disfarçar a obviedade de sua confiança na força militar nua para a sua retenção de poder (GOODMAN, 1997, p. 45). Para o autor, dessa forma, os poderes republicanos adquiridos por Augusto não passariam de uma máscara que encobriria seu verdadeiro poder, o poder militar. Para a elite política em Roma, este se retratou como iguais em relação aos outros aristocratas do Senado, superior apenas em virtude do prestígio livremente concedido a eles pelo povo em reconhecimento a excelência de suas qualidades (Augusto, Res Gestae, 34). Entre os poderes, destacam-se o imperium maius proconsulare (para o resto de sua vida), que lhe deu o direito formal de intervir em províncias não especificamente atribuídas a ele, e a partir de 23 a.C., detinha o poder de tribuno para a vida, o que lhe deu o direito indefinido de vetar toda a legislação proposta pelos outros tribunos. Para Goodman (1997 p. 127), esta confusão de poderes legais reunidos por Augusto mostrou-se tão eficaz que cada imperador após ele garantiu sua eleição para a mesma combinação.

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ISSN 2238-071X Em Karl Galinsky (2005, p. 3-7) encontramos uma postura mais flexível, pois afirma que Augusto exerceu seu poder de duas formas: uma mais rígida, de caráter militar, e outra baseada em sua auctoritas (“influência”), na qual o imperador influenciou o desenvolvimento das artes e da literatura latina, as quais continham elementos essenciais para sua legitimação. A ideia de restaurar os costumes dos antepassados era uma constante na política, como o próprio imperador afirma em suas Res Gestae, que “nenhum cargo concedido contrariamente ao costume dos antepassados eu aceitei” (AUGUSTO, Res Gestae, VI). Em Walter Eder (2005), no artigo Augustus and the Power of Tradition, encontramos a interpretação segundo a qual Augusto evitaria uma associação do seu poder com um monarca, apesar de buscar o reconhecimento por suas ações, mostrandose como o restaurador da república romana. Certamente, a res publica não pode ser simplesmente considerado como República, porque seu homem mais poderoso não queria ser visto como um monarca. Pela mesma razão, no entanto, devemos hesitar para caracterizar o governo de Augusto como monarquia (EDER, 2005, p. 15). Nesse ponto, Walter Eder baseia-se em Ronald Syme e considera o sistema fundado por Augusto como um Principado, uma nova forma de governar fundada sobre leis. Mas o autor lembra que não devemos ver o Principado, em retrospecto, como um produto acabado, sendo planejado por Otávio, como se este tivesse um roteiro pré-determinado assim que se formou o triunvirato após a morte de César. As tradições republicanas não foram um obstáculo, mas uma vantagem para Augusto, haja vista que ele soube muito bem lhe dar com as contingências que os distintos momentos impunham às suas decisões. Dessa forma, o autor afirma que devemos periodizar o governo de Augusto em dois momentos: um primeiro, até 19 a.C., no qual Augusto se concentrou principalmente em restaurar formalmente as instituições republicanas cujo quadro foi deixado para um indivíduo poderoso; e em segundo, ele deixou este nível formal e criou a ideia de uma pátria em que o legado do passado se fundiria com orgulho cívico no presente (EDER, 2005, p. 17-18), e, dessa forma, cria-se a imagem da grandeza de Roma, sendo Augusto, o principal cidadão. Segundo Erich S. Gruen (2005), no capítulo intitulado Augustus and the Making of the Principate, nem Augusto nem seus contemporâneos usaram o termo “Principado” para definir seu governo. Havia sim uma designação de princeps para

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ISSN 2238-071X Augusto, mas isso indicava um sinal de estima e de autoridade. De acordo com Gruen, a noção de principatus como denominação de um tipo de regime não é encontrada nas memórias autobiográficas de Augusto, a Res Gestae, nem nas obras de escritores contemporâneos. Ou seja, havia os poderes republicanos, não o Principado. As instituições republicanas podiam ter sobrevivido, entretanto, quem as governou teria sido o poderio militar (GRUEN, 2005, p. 34). Para corroborar com essa hipótese, Erich Gruen afirma que o acúmulo de poderes e seu exercício por um longo período de tempo foi sem precedentes e dificilmente compatível com os princípios da República Romana. Prova disto é que a devolução dos poderes de Otávio para o povo e o Senado não significa de forma alguma a restauração da República, e a frase “res publica restituta”, muitas vezes transmitida em estudos modernos, não aparece em nenhum documento oficial e não é comemorada por nenhum poeta ou prosador da época (GRUEN, p. 33). Nos autores até aqui analisados, encontram-se duas posturas: por um lado, uma perspectiva segundo a qual o poder de Augusto seria de base militar (GRUEN), e as instituições republicanas serviriam para nada mais do que disfarçar esse caráter (GOODMAN); por outro lado, autores como Galinsky e Eder assumem uma postura mais moderada, afirmando que o poder do princeps se baseava tanto no exército quanto em sua auctoritas (GALINSKY), e que devemos periodizar esse período da história romana para melhor entendermos a natureza do poder augustano (EDER). Não podemos concordar com a primeira posição, segundo a qual o poder do imperador se valeria unicamente de uma base militar, e que as instituições republicanas seriam apenas um disfarce que encobririam a realidade. Por outro lado, nossa pesquisa pretende uma postura mais mediada, segundo a qual não negamos a importância nem a efetividade do poder militar para a formação e permanência do Principado, mas consideramos a auctoritas uma forma de legitimação da potestas, afinal, o poder baseado unicamente no uso da força direta, teria sua existência constantemente ameaçada. Há a necessidade de uma aceitação, um consenso mínimo por parte dos diversos grupos sociais para a legitimação e a permanência de um poder político. Nenhum regime político é capaz de se sustentar “se não forem criados valores que possam tornar a ação dos agentes do poder constituído algo perfeitamente admissível, legítimo e até mesmo desejável, o que nos remete automaticamente para o campo do estudo das ideologias.” (SILVA, 2001, p. 33).

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ISSN 2238-071X Gilvan V. da Silva propõe ideologia, nós utilizamos “cultura política”, entendida como um conjunto de representações que une um grupo humano em torno do político. Uma das formas de constituir e propagar essas representações, em ambiente romano, é por meio das narrativas literárias, da poesia, a qual criaria um consenso em determinadas imagens, legitimando, no nosso caso, as ações políticas do governante. Segundo o autor, esses valores criariam o que ele chama de mística imperial, ou seja, os símbolos que passaram a identificar Augusto, conferindo-lhe, aos olhos dos seus contemporâneos, a autoridade necessária para empreender a tarefa de restaurar a República (SILVA, 2001, p. 39). Tais símbolos, para Silva (idem), são, entre outros: 1) enviado e protegido de Júpiter; 2) ser divino (ou próximo da natureza dos deuses); 3) defensor de Roma; 4) fonte da uirtus romana e, por último, 5) vingador de César. Todos esses símbolos são encontrados de um modo geral na poesia horaciana, e em especial no livro IV das Odes escrito em 13 a.C., ou seja, em um contexto no qual Augusto já havia se estabelecido, eliminado opositores e reconhecido como o salvador da República, o que corrobora para a ideia segundo a qual o governante, mesmo depois de estabelecido, deve se legitimar, construir uma imagem que o mostra como importante e até mesmo necessário para a manutenção da ordem (BALANDIER, 1982). Daí se justifica o recorte de nossa pesquisa na obra horaciana: tais poemas que serão analisados possuem, a nosso ver, símbolos que formam a cultura política em torno do Principado de Augusto. Peter White (2005, p. 327), em Poets in the New Milieu: Realigning, afirma que, apesar de Augusto ter influenciado, direta ou indiretamente, o destino de carreiras em oratória, política, jurisprudência e militares, a literatura foi a um campo sobre a qual ele teve menor influência. O autor afirma que o que permitiu o desenvolvimento da poesia sob Augusto foi a relação de patronagem dos poetas com os aristocratas, em especial Mecenas, que também é patrono de Horácio, apesar de ser chamado de “amigo”, e não de “patrono”. Além disso, White propõe que uma coerência social não implica uma coerência ideológica, não sendo possível afirmar que Horácio, por ser cliente de Mecenas, seria favorável ao regime de Augusto, simplesmente pela proximidade do imperador com Mecenas. Mesmo se isso fosse possível, as evidências são demasiado escassas para se afirmar uma influência real de Augusto na poesia (WHITE, 2005, p. 331).

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ISSN 2238-071X Contrapondo-se a essa interpretação, Jasper Griffin (2005), em Augustan Poetry and Augustanism, argumenta que não há quase nenhuma menção a Otávio nos poemas antes de sua vitória no Ácio, em 31 a. C. Para a autora isso ocorre porque, após Otávio se estabelecer como único líder, havia uma pressão em torno dos poetas para estes enaltecerem o regime (GRIFFIN, 2005, p. 314), sobretudo dos poetas ligados a Mecenas. Havia duas formas de exaltação do regime: “(a) no sentido diretamente “político” de reforçar a posição pessoal de Otaviano/Augusto como chefe de Estado permanente, ou (b) no sentido mais geral de alistar apoio para o renascimento moral e social, que deve distinguir a sua Roma dos desastres da República tardia” (GRIFFIN, 2005, p. 314). Nesse mesmo sentido, Paolo Fedeli (2009), em Il IV libro delle Odidi Orazio: poesia o propaganda?, afirma que houve uma pressão por parte do princeps sobre Horácio para a escrita do quarto livro das Odes, de modo a comemorar as vitórias dos jovens descendentes da família imperial. Para o autor, Augusto pode legitimamente reivindicar a poesia horaciana, não só pela sua localização, mas também pela amizade íntima e cordial que o ligava ao poeta e a honra que ele havia concedido ao escolher como o poeta da cerimônia solene de 17 a.C. (FEDELI, 2009, p. 104). Nas palavras de Fedeli (2009, p. 106), “devemos concluir que o quarto livro é um poema de pura propaganda, escrito por um poeta, cortesão que colocou seu talento e inspiração a serviço do príncipe”. Consideramos que ambas as análises são extremas sobre a relação do poeta com o princeps: por um lado, White afirma que há quase uma total liberdade de Horácio quando este escreve sua poesia, e por outro, Griffin e Fedeli são deterministas em relação à influência de Augusto sobre Horácio, sendo o poeta um propagandista que escreve sob pressão do princeps. R. G. Nisbet e Nial Rudd (2004, p. xxi), em seus comentários sobre os poemas horacianos, afirmam que uma análise da relação de Augusto com Horácio deve evitar essas posturas extremas, pois, por um lado, se se considera que o poeta aceita a ideologia de Augusto, esquece-se que houve o uso da violência para o estabelecimento do regime; mas, por outro, se se considera Horácio como subversivo e contrário ao governo, não se leva em consideração a proximidade e a amizade de ambos. Daí nosso recurso ao conceito de cultura política, pois através dele podemos adotar uma postura mediadora, por consideramos que Horácio estava inserido

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ISSN 2238-071X em um meio social que o aproximava de Augusto, partilhando com esse um mínimo de interesses comuns. Através de uma interpretação que supera esse impasse, Phebe Lowell Bowditch (2010, p. 55), em Horace and Imperial Patronage, afirma que os membros da elite evitavam usar os termos “patrono” e “cliente” para se referirem às relações entre um benfeitor e seu protegido aristocrático, preferindo as conotações mais igualitárias de amicitia, ou “amizade”. As relações de patronagem possuíam três características principais: reciprocidade ou troca de bens e serviços, assimetria na posição social das duas partes e os tipos de bens comercializados, e duração da relação (BOWDITCH, 2010, p. 55). Todas essas características aparecem em Horácio, e isso significa que um patrono poderia oferecer benefícios materiais, bem como locais e uma audiência ao poeta, em troca de seus versos, ou seja, em troca de uma poesia que exalte o seu benfeitor. Do mesmo modo, Bowditch (2020, p. 71-72) indica que no contexto da publicação do livro IV das Odes, a relação de patronagem de Horácio é estabelecida muito mais com Augusto do que com Mecenas, o que corrobora para uma interpretação distinta daquela proposta por White, na qual podemos afirmar que há uma confluência dos interesses de Augusto com a poesia de Horácio. Corrobora para essa perspectiva a análise de Michèle Lowrie (2007, p. 78), em Horace and Augustus, na qual a autora afirma que a poesia de Horácio está cada vez mais preocupada com a posição do primeiro homem da res publica, em especial quando Augusto se estabelece, pois nesse contexto Horácio já se dirige a ele diretamente, sem a necessidade da mediação de Mecenas. Após os Jogos Seculares (17 a.C.), esse relação se fortalece ainda mais, o que pode ser percebido em referências diretas de Horácio a Augusto nas Odes IV (13 a.C.), em que há elogios diretos a Augusto, como no poema IV, em que o princeps é representado como essencial para a cidade, o retorno do imperador garantiria paz, segurança e execução de suas leis. Como vimos, são inúmeras as interpretações sobre o governo de Augusto, a poesia de Horácio e da relação dos poemas com a legitimação do imperador. A partir dos debates estabelecidos, propomos alguns problemas com vistas a orientar nossa pesquisa sobre a temática da representação de Augusto no livro IV das Odes de Horácio:

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ISSN 2238-071X 

Quais as imagens de Augusto presente no livro IV das Odes de Horácio e porque ela é construída dessa forma?



Quais são os valores que, na poesia de Horácio, são atribuídos a Augusto?



Essa mesma imagem de Augusto estabelecida por Horácio está presente em outras obras do poeta?



Como a relação entre Horácio e Augusto interfere na construção da imagem que o poeta faz do imperador?

Essas questões têm como eixo principal a ideia de construção da imagem de Augusto, haja vista que o conceito de imaginário é o norte teórico de nossa pesquisa. Compreendemos que sua imagem construída faz parte de um processo de legitimação, de criação de um consenso mínimo em torno da pessoa do imperador, fazendo com que os grupos sociais (senadores, plebe, aristocracia, exército) o tenham como o único capaz de manter a ordem e a paz alcançada depois dos anos de guerra civil. Temos como preceito fundamental que o meio social interfere na construção dessa imagem, ao mesmo tempo em que as imagens construídas são usadas para legitimarem a posição de Augusto na sociedade romana enquanto primeiro homem da res publica. Dessa forma, elaboramos hipóteses que pretendem dar respostas parciais às questões que guiam nossa pesquisa, de modo a analisar as imagens de Augusto na poesia horaciana: 

Horácio constrói imagens de Augusto nas quais o imperador aparece como guerreiro excepcional, defensor do povo romano, restaurador da paz em Roma e nas fronteiras do Império, além de mostrá-lo com restaurador dos costumes antigos, sendo colocado como enviado divino (Odes, IV, 5, 2). Além disso, ao elogiar seus enteados Tibério e Druso por suas vitórias militares, é a própria gens augusta que está sendo louvada, o que corrobora com a ideia segundo a qual há, no livro IV das Odes, um tom laudatório, cujo beneficiário seria Augusto.



Nos poemas, Augusto aparece como “guardião do povo romano” (IV, 5, 2), “bom guia” (IV, 5, 42), “maior dentre os maiores” (IV, 14, 6), em um claro tom

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ISSN 2238-071X de elogio, no qual Horácio mostra o imperador com o único capaz de manter a paz (IV, 5, 30-33) e a prosperidade dos campos (IV, 15, 6) após os anos de guerra civil, colocando-o como aquele quem “as antigas virtudes revocou” (IV, 15, 13). 

As referências a Augusto na poesia de Horácio são distintas em suas diversas obras, de modo que, com o passar do tempo, tais referências vão se tornando mais frequentes e laudatórias, refletindo o aumento da auctoritas de Augusto e a necessidade de legitimação de sua posição política frente à sociedade romana.



A relação estabelecida entre Horácio e Augusto interfere na construção dos poemas do livro IV das Odes, haja vista que Horácio é cliente de Augusto, devendo lhe dedicar seus poemas e, além disso, é o próprio Augusto quem pede a Horácio para escrever dois dos poemas que compõem o livro, sendo essa uma questão que deve ser levada em consideração na análise do documento.

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