Relações e suas figurações em uma Unidade de Saúde da Família: um relato etnográfico

June 29, 2017 | Autor: Bruno Pereira | Categoria: Medical Anthropology, Knowledge, Anthropology of Health and Illness, Antropología Social
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

RELATÓRIO DE PESQUISA INICIAÇÃO CIENTÍFICA/PIBIC 2014-2015

RELAÇÕES E SUAS FIGURAÇÕES EM UMA UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA: Um relato etnográfico

Aluno: Bruno Pereira de Araujo Orientadora: Profª. Drª. Valéria Mendonça de Macedo Agência de Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Guarulhos 2015

ASSINATURA DA ORIENTADORA

________________________________________________ Profª. Drª. Valéria Mendonça de Macedo

“Não saber o que se vai descobrir é, evidentemente, uma verdade da descoberta”. Marilyn Strathern

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ÍNDICE Índice, ii Introdução:

Figurações, 1

Fazendo aparecer relações: o xamanismo; Deslocando objetos: ampliando o conceito de saúde; As formas elementares da atenção básica: indivíduo, família e comunidade;

Capítulo 1: Indivíduo,

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Um pequeno desvio para falar das gentes da USF e seus conflitos; Um amontoado de procedimentos; Fazendo uma pessoa através de informações; Da distribuição no tempo; Por que, então, o indivíduo?;

Capítulo 2:

Comunidade, 50

Alguns mapas; Abstração: marcando o território e definindo a comunidade; Participação: a comunidade contra a Unidade de Saúde da Família; O que é a saúde da comunidade?;

Capítulo 3:

Família, 74

O fogão, o domicílio e a família; As informações, o responsável e o cadastro; O prontuário, os indivíduos e a mistura; Sobre a diversidade de formas da família;

Conclusão:

Relações, 90

Cadê a cultura? Onde está a utilidade? Este não é um trabalho de antropologia da saúde; Os conceitos viajam de volta para a antropologia; Quais relações são possíveis?

Referências, 101

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Introdução

FIGURAÇÕES “Numa palavra, a figura é essencialmente paradigmática, projetiva, hierárquica, referencial.” Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?

Quando comecei a revisitar e a organizar o material (etnográfico) que até então dispunha sobre uma Unidade de Saúde Família do município Guarulhos, SP me inquietava o fato de que essa pesquisa atual se distanciava enormemente da pesquisa que realizei anteriormente sobre as maneiras que as noções de corpo ameríndias se relacionavam as suas compreensões acerca de processos de adoecimento e cura. Essa inquietação era gerada pelo fato de que a etnologia indígena sempre figurou em (auto)narrativas sobre minhas origens na antropologia1 e também pelo fato de que a pesquisa anterior demandara um grande esforço de minha parte, por isso, sua não utilização parecia prefigurar uma certa inutilidade que me frustrava. Contudo, ao iniciar os delineamentos do que pretenderia discorrer neste relatório, uma surpresa me atingiu. De alguma forma essa pesquisa continua, por outros meios, questões que apenas pude começar a elaborar a partir da pesquisa anterior, ainda que de maneira bastante imatura. Portanto, a introdução desse relatório começa onde a pesquisa anterior terminava.

Fazendo aparecer relações: o xamanismo Em um conhecido ensaio, “O feiticeiro e sua magia”, Claude Lévi-Strauss (2012[1949]) nos apresenta a história de Quesalid, um xamã kwakiutl da América do Norte, cuja autobiografia fora traduzida por Franz Boas. Mas Quesalid não foi um xamã qualquer, ele era na verdade um cético acerca da prática xamânica. Realmente, ele busca se

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E de minha relação com minha orientadora, Profª Drª Valéria de Mendonça Macedo, a quem devo muito pelas oportunidades que me ofereceu até então e pelas contribuições a meu modo de pensar e me relacionar com a antropologia.

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aproximar de outros xamãs e começar sua iniciação como um xamã, para poder “descobrir seus embustes e pelo desejo de desmascará-los”, afirma Lévi-Strauss (p. 249). Quesalid não se fez de rogado e seu relato descreve, em detalhes, suas primeiras lições, uma estranha mistura de pantomima, prestidigitação e de conhecimentos empíricos em que se mesclam a arte de fingir desmaios, a simulação de crises nervosas, o aprendizado de cantos mágicos, a técnica para vomitar, noções bastante precisas de auscultação e obstetrícia, a utilização de “sonhadores” (isto é, espiões encarregados de escutar as conversações particulares e trazer em segredo ao xamã os elementos de informação acerca da origem e dos sintomas dos males de determinados doentes) e, sobretudo, a ars magna de uma escola xamânica da costa noroeste do Pacífico, isto é, o uso de uma espécie de penugem que o prático esconde num canto de sua boca e cospe no momento oportuno, molhado de sangue da língua que ele mordeu ou que fez sair das gengivas, para mostrar solenemente ao doente e aos demais doentes, como o corpo patológico expulso em decorrência de suas sucções e manipulações. (p. 249).

Mas Quesalid logo que descoberto como aprendiz de xamã, é convocado para suas primeiras sessões de cura e, dado seus frequentes sucessos, passa a ser visto como um grande xamã e sua técnica de apresentar a doença na forma de um verme ensanguentado (utilizando-se da penugem) se torna cobiçada por xamãs de outras comunidades. Em uma visita à aldeia vizinha dos Koskimo, o xamã kwakitl pode assistir a uma sessão de cura xamânica realizada pelos xamãs do local. E uma coisa o inquieta: a prática dos xamãs koskimos são ainda mais artificiais que as suas. A técnica empregada por esses xamãs consiste em apenas cuspir um pouco de saliva nas mãos e apresentá-la como a doença. Levado pela ineficácia do procedimento em curar a doente, Quesalid, inquietado, testa sua própria técnica e consegue, então, a eficácia na cura. Os xamãs da aldeia Koskimo, intrigados e envergonhados, convidam Quesalid para uma conferência secreta numa gruta, onde relatam para ele o jeito deles de curar com o intuito de que Quesalid compartilhasse com eles sua técnica. Mas Quesalid não se rende e se diz impossibilitado de ensiná-la para pessoas que não tenham se submetido a quatro anos de treinamento. Mas o que é interessante aqui é a maneira que os xamãs koskimo explicam sua própria técnica, eles dizem que: Cada doença é um homem: furúnculos e inchaços, coceiras e cascas, vermelhidão e tosse, definhamento e escrófulas, pressão na bexiga e dores de estômago também... Assim que conseguimos capturar a alma da doença, que é um homem, matamos a doença, que é um homem; seu corpo desaparece dentro de nós. (LÉVI-STRAUSS, 2012[1949], p. 251)

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Dessa forma, Lévi-Strauss coloca uma questão que me parece bastante interessante — “se essa teoria [dos Koskimo] estiver correta, o que há para ser mostrado?” (p. 251, grifo meu). Mas essa é uma questão que ele não coloca para o porquê Quesalid precisa mostrar a doença através de uma penugem ensanguentada. Marcela Stockler Coelho de Souza (2010) em um artigo sobre patrimônio imaterial e os modos de conhecer indígenas nos permite reconsiderar esse ponto. O ponto de partida da autora é que diferentes formas de objetivação estão associadas a regimes diferentes de subjetivação, propondo que nos mundos indígenas, “essas formas envolvem uma tensão (uma dinâmica) entre o material e o imaterial, o visível e o invisível” (COELHO DE SOUZA, 2010, p. 152). Dessa forma, ela pode, por exemplo, considerar as curas xamânicas como eventos revelatórios: Entre os Mamaindê, por exemplo, o xamã escuta a linha/colar do doente e, então, pode contar a todos o que aconteceu com ele — que, lembrando-se, começa a melhorar. Como no caso da reclusa (cujo corpo em exibição revela o sucesso da sua própria reclusão e da reclusão das mulheres que a pintaram), o que se dá a ver nessa revelação é um “objeto” duplo: a (causa da) doença do paciente, e a (cura da) doença do próprio xamã. “Curando o seu doente, o xamã oferece a seu auditório um espetáculo [...] [aquele de] uma repetição, pelo xamã, do ‘chamado’, isto é, da crise inicial que lhe forneceu a revelação de seu estado”. O sucesso de sua recuperação dessa “crise inicial” (buscada ou não), por meio dos procedimentos específicos da iniciação xamânica, é o que confere ao xamã a capacidade de ver que é condição da sua capacidade de revelar. Esse sucesso consiste no estabelecimento de relações determinadas entre o xamã e outros seres — animais, espíritos, mortos — frequentemente por meio da transação de certos objetos. (p. 159-160)

O argumento de Coelho de Souza é que o xamã pode revelar porque primeiramente ele vê; e ele vê precisamente porque, em algum momento, ele foi acometido por alguma doença (crise inicial) que permitiu a ele iniciar seu treinamento como xamã. Assim, o que o xamã revela, ou em outras palavras objetifica, é tanto a doença do paciente quanto sua própria capacidade de estabelecer relações (e, portanto, ver o invisível da perspectiva de não xamãs)2. Esses dois pontos (a crise inicial e a objetificação das doenças) são um tanto comuns nas etnografias sobre os povos ameríndios, por isso não vou entrar em detalhes. Aqui há uma outra conexão com minha pesquisa anterior, na qual em certo ponto indiquei “que a especialidade do xamã é menos ‘curar’ do que ser capaz de manipular relações, ou ‘controlar movimentos’ [...]”. Propondo ser “essa capacidade de manipular as relações em diferentes escalas, tanto internamente e externamente, que dota o xamã da capacidade de ‘cruzar as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas’; além de ser esse movimento que, a partir do acionamento de diferentes relações, permite aos xamãs, em certos contextos, ‘curar’ e/ou ‘agredir’” (ARAUJO, 2014, p. 32 — aqui estão contidas citações de GALLOIS, 1996 e VIVEIROS DE CASTRO, 2011). 2

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O que me interessa é essa dinâmica de ver e fazer ver (revelar) que Marcela S. Coelho de Souza descreve. Voltemos a Quesalid e seus colegas koskimos. Poderíamos redescrever as diferenças entre as duas técnicas como modos de fazer ver diferentes. Enquanto Quesalid dá uma forma específica à cura da doença, os xamãs koskimos dão outra, fazendo com que cada uma das partes não reconheça como apropriada a técnica do outro. Na verdade, os xamãs koskimos apesar de duvidarem da técnica de Quesalid, mantém aberto sua eficácia, ainda mais depois de seu próprio fracasso. Mas mesmo assim a dúvida permanece, pois de acordo com eles o processo de cura xamânica consiste em capturar o espírito da doençaque-é-homem, fazendo com que o corpo dela desapareça dentro de seu próprio corpo. A única coisa a se materializar em suas mãos são os vestígios dessa captura do espírito e que parecem ser suficientemente instanciados pela saliva cuspida (cf. HENARE et al., 2006). Mas Quesalid, o que ele revela? O texto de Lévi-Strauss não permite que respondamos e tampouco acho que a autobiografia do xamã kwakiutl permitiria que respondêssemos a essa questão, tendo em vista que ele próprio era um cético em relação a eficácia de sua técnica. Contudo, o argumento não se prejudica, pois o modelo de Coelho de Souza pode ser usado de maneira dedutiva: Quesalid, assim como os xamãs koskimos, torna visível sua própria habilidade de xamã — a técnica objetifica sua própria eficácia. Mas mesmo assim, os modos de objetificar a cura são diferentes e assim introduzo um conceito que utilizei na pesquisa anterior para dar conta (objetificar) da diferença entre modelos de atenção à saúde: estética. O conceito de estética provém, aqui, de Marilyn Strathern e expressa um conjunto de “formas (convencionais) que servirão como evidência de que as relações foram assim ativadas” (STRATHERN, 2006, p. 273). Portanto, cada uma das partes do dilema acima possui formas convencionais para revelar sua capacidade e poderíamos dizer que a forma empregada por Quesalid é mais poderosa que dos xamãs koskimos, já que ela põe em dúvida para eles sua própria capacidade. O conceito de estética me parece ter uma eficácia própria bastante interessante para descrever o que antes poderia ser descrito como diferenças culturais. Ao propor que Quesalid e outros xamãs possuem estilos estéticos próprios a partir dos quais objetificam suas capacidades (e curas), mantemos a possibilidade das formas se propagarem e serem passíveis de apreciação por diferentes pessoas (encontrarem ressonâncias em outros estilos estéticos), que inclusive podem colocar em dúvida a eficácia de suas próprias 4

formas ao verem outras (o caso dos Koskimo). Por isso, propus na pesquisa acerca dos modos ameríndios de conceitualizar corpo, saúde e doença que as diferenças entre o modelo de atenção à saúde xamânico e o modelo biomédico podem ser capturadas na forma de diferentes estilos estéticos. O que pretendo, mas que não discorrerei muito aqui, pois para isso precisaríamos entrar em contato com uma bibliografia mais densa sobre o xamanismo e sobre a biomedicina, é que essas duas práticas/conhecimentos tem estilos diferentes de tornar visível sua eficácia. Dessa forma, a articulação entre os dois “sistemas” me parece se dar a partir dos termos de cada um. Os médicos buscam no xamã evidências baseadas em seu estilo estético próprio, assim o xamã vira ou uma espécie de “psicoterapeuta” ou apenas alguém que facilita para o médico se relacionar com o paciente. O mesmo parece acontecer com o xamã que relega ao médico um papel secundário de aliviar os sintomas, pois a biomedicina não parecer ser capaz de tornar visível sua eficácia no estilo estético do xamanismo. (ARAUJO, 2014, p. 42)

De fato, não discorri sobre o assunto de maneira adequada. Esse foi o único momento em que tal descrição da relação entre xamanismo e biomedicina aparece. E essa é uma das questões que me trazem para esse projeto: como fazer uma descrição estética da atenção à saúde? Como descrever as formas produzidas pela biomedicina e os diferentes saberes envolvidos no cuidado à saúde? Minha resposta aqui é que antes de considerar como a eficácia é tornada visível pela biomedicina, é preciso saber quais são as unidades de intervenção, ou os objetos, que tal disciplina produz como adequados à sua atenção3.

Deslocando objetos: ampliando o conceito de saúde Em sua etnografia sobre a arteriosclerose nos membros inferiores, Annemarie Mol (2002) descreve como tal objeto é, na verdade, uma multiplicidade de objetos. Para entender as políticas ontológicas 4 que engendram os objetos, Mol se propõe a fazer uma filosofia empírica (ou praxiografia) — empreendimento que objetiva trazer para o primeiro plano as práticas nas quais os objetos são criados/manipulados. Dessa forma, para a autora,

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O argumento aqui é um híbrido. Ele funde o conceito de objetificação (ligado ao de estética) de Marilyn Strathern (2006, p. 267) — “a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação” —, com a proposta de Tim Ingold (2010, p. 21) de uma educação da atenção — “conhecer, então, não reside nas relações entre estruturas no mundo e estruturas na mente, mas é imanente à vida e consciência do conhecedor, pois desabrocha dentro do campo de prática – a taskscape – estabelecido através de sua presença enquanto serno-mundo”. 4 Sobre a ideia de políticas ontológicas, conferir Mol (1999).

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“conhecimento não é entendido como uma questão de referência, mas uma questão de manipulação” (Mol, 2002, p. 5), isto é, ela não busca fazer um relato epistemológico na tentativa de descobrir as condições para a aquisição de conhecimento verdadeiro; mas revelar o processo de produção dos objetos que é sempre localizável em conjuntos de práticas bem situadas. O que acontece durante o empreendimento de uma filosofia empírica (poderíamos substituir por antropologia) é: Se práticas são trazidas ao primeiro plano não há mais um objeto passivo e singular no meio, esperando para ser visto a partir de um ponto de vista de uma série aparentemente infinita de perspectivas. Pelo contrário, objetos vêm à existência — e desaparecem — com as práticas nas quais eles são manipulados. E desde que o objeto de manipulação tende a diferir de uma prática para a outra, a realidade se multiplica. O corpo, a paciente, a médica, a técnica [technician], a tecnologia: todos esses são mais que um. Mais que singular. Com isso surge a questão de como eles são relacionados. Pois mesmo que estes objetos difiram de uma prática à outra, há relações entre essas práticas. Então, longe de necessariamente se fragmentarem, objetos múltiplos tendem a ficar juntos de algum modo. Voltar-se para a multiplicidade da realidade abre a possibilidade de estudar esta notável realização. (Mol, 2002, p. 5)

Tomando o trabalho de Mol como inspiração para meu próprio trabalho, me colocar a questão acerca do objeto para o qual a biomedicina dirige sua atenção pode ser um tanto traiçoeiro. Isso porque, como nos ensina Mol, se os objetos emergem a partir de práticas e que essas práticas são sempre situadas, como definir a situacionalidade5 do objeto da biomedicina que abordarei aqui? Na verdade, meu objeto vem de um contexto em que as pretensões biomédicas, poderíamos dizer, parecem um pouco deslocadas. Esse é o contexto da atenção básica à saúde, mais especificamente de uma Unidade de Saúde da Família, situada num bairro periférico do município de Guarulhos, SP. Para compreender o porquê as pretensões biomédicas parecem deslocadas nesse contexto talvez seja importante reconsiderar a investigação arqueológica de Michel Foucault (2013) sobre o olhar médico. O objetivo de Foucault é compreender a ruptura que ocorre 5

O termo situacionalidade é um neologismo para traduzir o conceito situatedness de Donna Haraway (1988) que, na minha leitura do trabalho de Mol, é útil para diferenciar a proposta da autora de situar as práticas e objetos de uma tentativa de contextualizá-los. Para uma boa compreensão do empreendimento praxiográfico da autora é preciso não confundir contexto com situacionalidade, que indica mais do que o local em que emerge um objeto, mas também dos materiais que depende tal emergência, dos modos específicos desse objeto se deslocar e de suas possibilidades de transformação. Uma outra crítica à ideia de contexto (externo) feita a partir de preocupações inteiramente diferentes, mas que contribuem para uma leitura possível de Mol, é lançada por Marilyn Strathern (1995).

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na medicina6 do século XIX, ou seja, as transformações que tornam possível a medicina se promover enquanto uma ciência positiva em relação às ilusões obscurantistas de suas predecessoras. Na verdade, a própria medicina do dezenove conta sua história de forma a descrever a ruptura enquanto um refinamento de seus conceitos e instrumentos que a permitiram se livrar das antigas ilusões. Contudo, Foucault não considera as coisas dessa maneira. Para o autor a ruptura é melhor compreendida enquanto uma reconfiguração do campo discursivo — a episteme — a partir da qual a medicina positiva se estrutura. Ou seja, o que acontece no final do século XIX é o surgimento de novos objetos e métodos que incitam na medicina a elaboração de novos modos de conhecer e de novas práticas. Segundo Foucault, o que “mudou foi a configuração surda em que a linguagem se apoia, a relação de situação e de postura entre o que fala e aquilo de que se fala” (2013, p. ix). Uma nova forma de ligar as palavras e as coisas que acompanha uma rearticulação “do espaço, da linguagem e da morte” (p. vii). Para tornar mais concreta a conexão da investigação foucaultiana com minha própria investigação sobre a estética da atenção à saúde é preciso enfatizar que todas essas transformações implicaram mudanças nas “formas de visibilidade”7 (p. 215): o olhar se modifica. Segundo Descartes e Malebranche, ver era perceber (e até nas espécies mais concretas da experiência: prática da anatomia no caso de Descartes, observações microscópicas no caso de Malebranche); mas tratava-se de, sem despojar a percepção de seu corpo sensível, torná-la transparente para o exercício do espírito: a luz, anterior a todo olhar, era o elemento da idealidade, o indeterminável lugar de origem em que as coisas eram adequadas à sua essência e a forma segundo a qual estas a ela se reuniam por meio da geometria dos corpos; atingida sua perfeição, o ato de ver se reabsorvia na figura sem curva nem duração da luz. No final do século XVIII, ver consiste em deixar a experiência em sua maior opacidade corpórea; o sólido, o obscuro, a densidade das coisas encerradas em si próprias têm poderes de verdade que não provêm da luz, mas da lentidão do olhar que os percorre, contorna e, pouco a pouco, os penetra, conferindo-lhes apenas sua própria clareza. A permanência da verdade no núcleo sombrio das coisas está, paradoxalmente, ligada a este poder soberano do olhar empírico que transforma sua noite em dia. Toda a luz passou para o lado do delgado facho do olho que agora gira em torno dos volumes e diz, neste percurso, seu lugar e sua forma. O discurso racional apoia-se menos na geometria da luz do que na espessura insistente, intransponível do objeto: em sua presença

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Uso medicina e biomedicina como sinônimos, apesar de preferir o último termo para falar do campo discursivo/disciplinar que orienta diferentes intervenções profissionais, enquanto a medicina ficaria restrita à prática de médicas e médicos. 7 Como coloca Foucault, essas novas formas de visibilidade indicam “uma reorganização epistemológica da doença, em que os limites do visível e do invisível seguem novo plano” (2013, p. 216).

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obscura, mas prévia a todo saber, estão a origem, o domínio e o limite da experiência. O olhar esta passivamente ligado a esta passividade primeira que o consagra a tarefa infinita de percorrê-la integralmente e dominá-la. (FOUCAULT, 2013, p. xii)

Aliada a esse novo modo de ver, está uma nova reconfiguração da doença possibilitada por uma retomada da anatomia patológica e uma reformulação da prática clínica e sua relação com um novo modo de organizar os hospitais e a própria medicina enquanto uma profissão. É desse emaranhado que a medicina pode se aproximar de seu novo objeto: o indivíduo. De fato, o interesse de Foucault pela medicina positiva parece residir nesse fato: “a importância da medicina para a constituição das ciências do homem: importância que não é apenas metodológica, na medida em que ela diz respeito ao ser do homem como objeto de saber positivo” (2013, p. 217). Apesar de fazer aparecer o indivíduo, não é apenas isso que a medicina faz aparecer. O objeto da medicina só está realmente definido quando a doença aparece, quando “todo o fundo negro da doença, em suma vem à luz, isto é, ao mesmo tempo se ilumina e se suprime como noite, no espaço profundo, visível e sólido, fechado mas acessível, do corpo humano” (FOUCAULT, 2013, p. 215). O invisível se torna visível a partir do momento em que a morte adentra o conhecimento médico enquanto uma condição para falar dos vivos através da constituição do saber anatomoclínico. Dessa forma, indivíduo e doença se constituem mutuamente nos interstícios da medicina positiva, mas a sua relação não parece ser livre de conflitos. Poderíamos nos perguntar o que a simultânea aparição do indivíduo e da doença oculta. De fato, essa é uma questão interessante para se colocar quando o interesse são os modos de fazer ver, pois o que é produzido para ser visto, produz o invisível igualmente (cf. STRATHERN, 2013 e 2000; LAW, 2004). Ao fazer aparecer a doença através da escuta dos sintomas do indivíduo na prática clínica, os contornos da doença assumem uma forma que só torna legíveis os sinais particulares que ecoam os traços gerais de determinada afecção. Todo o resto não compõe a forma final da doença. Desse modo, o indivíduo doente é formado através de seu destacamento de outras relações que não seja aquela entre ele e sua doença. Foucault é explícito sobre esse ponto quando comenta sobre a transformação operada pela medicina no final do século XVIII da incerteza enquanto um defeito para um elemento positivo de conhecimento: isso oferecia “ao campo clínico uma nova estrutura, em que o indivíduo posto em questão é menos a pessoa doente do que o

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fato patológico indefinidamente reprodutível em todos os doentes igualmente afetados” (FOUCAULT, 2003, p. 106). É nesse ponto que parece residir o deslocamento que a biomedicina sofre no contexto da atenção básica à saúde, em Unidades de Saúde da Família. Ao fazer aparecer o indivíduo doente e tomá-lo como o foco de sua intervenção, a biomedicina parece ter dificuldades em incorporar os novos elementos trazidos pelo que é chamada na literatura sobre saúde de ampliação do conceito de saúde e a busca de humanização do cuidado à saúde. De fato, parece haver um sentimento de crise da medicina, que novamente nos leva a Foucault. Desta vez, o contexto de Foucault (2010) não são as transformações da medicina entre os séculos XVIII e XIX, mas as mudanças que ocorrem no saber e práticas médicas na década de 1940. O autor toma como ponto de partida o Plano Beveridge, em 1942, que na Inglaterra, seu país de origem, e em outros países se tornou um modelo de reorganização da atenção à saúde depois da Segunda Guerra Mundial. A data desse Plano tem um valor simbólico. Em 1942, em plena Guerra Mundial, na qual perderam a vida 40 milhões de pessoas, consolida-se não o direito à vida, mas um direito diferente, mais rico e complexo: o direito à saúde. Num momento em que a guerra causava grandes estragos, uma sociedade assume a tarefa explícita de garantir a seus membros não só a vida, mas a vida em boa saúde. (p. 167-8)

Dessa forma, surge um novo capítulo para a história do corpo humano, um capítulo marcado por uma nova moral, política e economia do corpo. “Desde então, Foucault afirma, o corpo do indivíduo se converte em um dos objetivos principais da intervenção do Estado, um dos grandes objetos de que o próprio Estado deve encarregar-se” (2010, p. 170-1). E é exatamente essa somatocracia (termo de Foucault), que começa a se esboçar desde o surgimento da medicina científica e que se intensifica em meados do século XX, que sempre viveu em crise. O que Foucault busca analisar são os aspectos dessa nova antiga crise. Mas o que me interessa aqui é apenas um dos aspectos da crise apresentados por Foucault: a medicalização indefinida. Com a expressão “medicalização indefinida”, Foucault busca descrever o fato de que com o avanço do século XX a medicina vem perdendo seu exterior, isto é, o conjunto de objetos não medicalizados e não medicalizáveis que permaneciam longe do olhar autoritário de um médico. A intervenção médica deixa de estar vinculada exclusivamente à existência de doenças e à demanda dos doentes e passa a se dirigir à um campo “cada vez mais amplo da existência individual ou coletiva” (FOUCAULT, 2010, pp. 181). As 9

discussões acerca da ampliação do conceito de saúde e doença, originadas na década de 1960 e intensificadas nas décadas de 1970 e 1980, parecem fazer parte desse movimento de medicalização indefinida. Asa Cristina Laurell (1982) nos oferece uma instanciação desses debates. A autora propõe uma concepção do processo saúde-doença8 que o aborde a partir de sua determinação social. Ela afirma que “o processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento, apropriação que se realiza por meio de processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção” (p. 10). Claramente, a posição da autora é bastante inspirada pelo materialismo histórico — a própria autora explicita isso em seu ensaio —, mas mesmo assim essa ampliação do conceito de saúde não coloca em xeque uma concepção biológica da doença. Na verdade, o processo saúde-doença, na caracterização dela, mantém relações particulares com processos sociais e biológicos simultaneamente, mesmo que o social tenha “uma hierarquia distinta do biológico na determinação do processo saúde-doença” (p. 10). É esse vínculo que a doença permite estabelecer entre Natureza e Sociedade nas discussões contemporâneas sobre a atenção à saúde que dá a impressão de haver uma medicalização indefinida da vida. Contudo, mesmo que pareça ocorrer tal medicalização indefinida como propõe Foucault, não acredito que ela venha acompanhada de uma intensificação da autoridade médica, como afirma também o autor. De fato, concordo que a ampliação do conceito de saúde e da incorporação no processo saúde-doença de determinantes sociais aumenta o domínio da biomedicina, mas ao mesmo tempo, me parece haver o que chamei acima de deslocamento da prática médica. O trabalho de Foucault é minha inspiração para formular tal argumento. Ao colocar no centro do nascimento da medicina científica o surgimento/produção do indivíduo doente, me parece que Foucault nos permite considerar os limites da medicina nesse contexto de medicalização indefinida, em que a doença localizada no corpo do indivíduo não tem a predominância. Proponho que apesar de um novo domínio se abrir ao olhar médico, o campo de atuação da medicina também se abriu a todo um conjunto de outros profissionais/disciplinas antes não presentes na produção de pessoas saudáveis, como pode ser visto nos debates acerca da importância

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A expressão processo saúde-doença também surge em decorrência da ampliação da noção de saúde. Vale mencionar que um dos importantes pontos da noção ampliada de saúde é compreender a saúde como se estendendo para além da ausência de doença (biológica).

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da interdisciplinaridade na área da saúde para a garantia de um atendimento à saúde integral e humanizado9. Essa invasão de outros profissionais no campo da saúde é ainda mais expressiva na atenção básica, onde médicos são colaboradores em equipes multiprofissionais que incorporam tanto profissionais de diferentes disciplinas quanto de diferentes graus de formação acadêmica. Por isso, minha afirmação de que o objeto da biomedicina, descrito por Foucault, funciona como um contraste para meu trabalho: pois se a doença no corpo do indivíduo é o objeto por excelência de um campo da saúde não ampliado que um único profissional pode reivindicar autoridade para intervir, que objetos surgem ao se considerar a saúde de maneira ampliada?

As formas elementares da atenção básica: indivíduo, família e comunidade O movimento de ampliação do conceito de saúde parece ter sido um movimento de mudança de escalas, tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo do termo. No sentido quantitativo, a mudança de escalas se refere a um deslocamento no grau ou número do objeto: o indivíduo é contextualizado pela sociedade, esta compreendida como maior e mais complexa que aquele. A mudança qualitativa por sua vez se dá de uma ordem ou domínio para outro: o foco do processo saúde-doença enquanto processo biológico é ligado à compreensão do processo saúde-doença enquanto processo social. Em ambos os casos, o que parece acontecer é que a sociedade é descoberta como algo a ser levado em conta: a sociedade aparece como objeto no campo da atenção à saúde. Apesar do indivíduo continuar a aparecer como um foco explícito da intervenção dos profissionais de saúde, a inserção deste indivíduo em um contexto social se torna uma prática recorrente. A ampliação do conceito de saúde ocorre em um momento em que, em países industrializados, as maiores preocupações com a saúde dos cidadãos giram em torno de doenças cardiovasculares e tumores e, nos países em desenvolvimento, as abordagens clássicas de intervenção médica são vistas como ineficazes para a melhoria da situação de saúde de suas populações; assim, houve a necessidade de reconsiderar a

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Conferir, por exemplo: Gomes & Deslandes, 1994; Costa Santos et al., 2007; Oliveira, 2007; Menossi et al., 2005; Araújo de Oliveira et al., 2011; Pelegrino de Souza & Brito de Souza, 2009; Cavalcanti & Carvalho, 2010; Rosa Mendes et al., 2008.

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causalidade da doença para além de sua relação com o indivíduo; e as determinações sociais passam a oferecer uma nova causalidade. Inserida nos desdobramentos dessa nova reformulação das unidades de intervenção dos profissionais de saúde, está a Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2012), instaurada pela Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Na PNAB, a atenção básica (AB) é definida enquanto “um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo”, que “considera o sujeito em sua singularidade e inserção sociocultural, buscando produzir a atenção integral” (BRASIL, 2012, p. 19-20). Para garantir a expansão e consolidação da atenção básica no Brasil, a PNAB adota a Estratégia de Saúde da Família (ESF) como elemento reorganizador da atenção básica por [ela] favorecer uma reorientação do processo de trabalho com maior potencial de aprofundar os princípios, diretrizes e fundamentos da atenção básica, de ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade. (p. 54)

Meu intuito não é oferecer uma descrição densa e compreensiva da PNAB, tampouco reconstituir a história da adoção da ESF como modelo reorganizador da atenção básica, ambas tarefas que receio não ter condições de realizar satisfatoriamente. Meu objetivo é de delimitar as preocupações a que me voltarei no decorrer deste relatório. De fato, ao colocar como um princípio ou diretriz da atenção básica considerar o sujeito tanto em sua “singularidade” e em “sua inserção sociocultural”, a PNAB acompanha o movimento de ampliação do conceito de saúde através da contextualização do indivíduo, mas não necessariamente seu abandono enquanto uma unidade de intervenção. Contudo, ao se pensar na ESF, a prática de contextualização do indivíduo não é suficiente para dar conta das inovações trazidas pela Estratégia. Ao definir quais são as atribuições comuns a todas as profissionais que atuam na atenção básica, a PNAB afirma que essas profissionais devem “praticar cuidado familiar e dirigido a coletividades e grupos sociais que visa a propor intervenções que influenciem os processos de saúde-doença dos indivíduos, das famílias, das coletividades e da própria comunidade” (BRASIL, 2012, p. 44). Dessa forma, a contextualização abre espaço para o surgimento de outros objetos que devem orientar o atendimento à saúde: além do indivíduo, temos a família e a comunidade. É interessante como na enorme lista de atribuições das profissionais de saúde da atenção básica, seja as atribuições comuns ou as específicas de cada categoria, essas diferentes 12

unidades recorrentemente aparecem como o foco das práticas dessas profissionais. Vejamos, por exemplo, a primeira das atribuições que orienta a participação delas no “processo de territorialização e mapeamento da área de atuação da equipe, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos e vulnerabilidades” (p. 43). Aqui temos explicitamente que grupos, famílias e indivíduos são unidades a serem discriminadas, isto é, identificadas durante o processo de territorialização, isto é, adscrição da comunidade/população que será atendida pelo estabelecimento de saúde da atenção básica — a Unidade de Saúde da Família10. O que é interessante nessa forma de dispor os objetos feita pela PNAB é que vemos uma replicação, de uma outra maneira, do duplo movimento de mudanças de escalas que podemos identificar nos debates sobre a ampliação do conceito de saúde. Ao apresentar como unidades de intervenção da atenção básica o indivíduo, a família e a comunidade, a PNAB não simplesmente oferece uma forma de contextualizar o indivíduo em outras unidades de maior tamanho, isto é, a questão não é apenas dizer que o indivíduo pertence à uma família que está inserida em uma comunidade que apresenta especificidades “socioculturais”; mas também, a PNAB busca garantir que cada um desses objetos retenha sua unidade específica. Mesmo que um possa conter o outro, eles se contêm apenas parcialmente. Esse modo de conectar unidades é uma forma bastante comum entre euramericanos modernos, se seguirmos o argumento de Marilyn Strathern (1992) acerca da maneira que o modelo procriativo do parentesco moderno 11 produz sua auto-evidência através da maneira pela qual as pessoas traçam analogias entre diferentes partes da vida social e do mundo. Ela diz que “conexões podem ser feitas entre partes de tal modo que se mantenha a individualidade de cada” (p. 72). Esse tipo de conexão, chamada pela autora de merográfica, parece ser o tipo presente entre as unidades apresentadas na PNAB: cada objeto faz parte de um todo maior, mas de uma outra perspectiva ele pode facilmente ser um todo em si mesmo. Infelizmente, as implicações da presença de conexões merográficas na atenção básica não serão meu objeto aqui, apesar de acreditar que esse modo de estabelecer conexões pode

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Ou quando ainda não está implementada a ESF, Unidade Básica de Saúde (UBS). Marilyn Strathern comenta especificamente acerca do parentesco inglês em meados do século XX, mas acredito que podemos expandir o argumento da autora para o modo euramericano moderno de traçar conexões. 11

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trazer desafios não considerados pelos formuladores da Política Nacional de Atenção Básica. O que me interessa é a auto-evidência que tais objetos e as relações entre eles parecem ter na PNAB. Em nenhum momento vemos uma definição do que é um indivíduo, uma família e uma comunidade; na verdade, parece que há o pressuposto de que essas unidades são livres de controvérsia, algo extremamente estranho de uma perspectiva antropológica. Tais objetos poderiam facilmente ser descritos como objetos da antropologia social. No entanto, seria difícil encontrar antropólogas que concordem com uma única definição, digamos, de família. Encontraríamos inclusive algumas, que proporiam que o conceito de família deveria ser de vez abandonado das descrições antropológicas. Mas mesmo assim esses conceitos parecem ter uma vida bastante estável no campo da saúde. Assim, meu objetivo nesta pesquisa é de tentar expandir a estranheza que a antropologia mantém em relação ao indivíduo, à família e à comunidade para a atenção básica à saúde, fazendo uma pergunta um tanto simples e no limite bastante ingênua: o que são esses objetos? Busquei responder essa pergunta através da realização de etnografia em uma Unidade de Saúde da Família me atentando para a maneira que esses objetos emergem das práticas que acontecem no contexto da USF. Meu foco se dirigirá, na maioria das vezes, mas nem sempre, para as práticas de inscrição, isto é, os processos de produção de documentos, abordando-os através de suas capacidades performativas e seus aspectos estéticos (HULL, 2012). Dessa forma, a maneira que tratarei os documentos é como agentes nas redes de relações que fazem coisas (aspecto performativo) e apresentam formas eficazes e que exercem algum tipo de persuasão acerca de seu preenchimento e apreciação (aspecto estético). Eu não pretendo discorrer em mais detalhe sobre meu “método de trabalho”, pois acredito que ele está intrinsecamente conectado com os resultados que descreverei nos capítulos seguintes12. Portanto, a metodologia dessa pesquisa deve ser considerada à luz do que ela ajuda a produzir, a tornar visível. Dessa forma, no capítulo 1 deste trabalho, descrevo algumas das formas ou figurações que os indivíduos assumem no dia-a-dia da USF, nos capítulos 2 e 3 busco realizar a mesma tarefa para a comunidade e a família respectivamente, reconhecendo que esses dois objetos são os menos visíveis nas preocupações dos profissionais da USF. Por fim, na conclusão dessa pesquisa, tentarei

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Sobre a mútua implicação de métodos e resultados conferir Law (2004) e Ruppert, Law & Savage (2013).

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esboçar algumas ideias acerca do tipo de contribuição que este empreendimento pode oferecer para o campo da atenção à saúde.

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Capítulo 1

INDIVÍDUOS

Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Clarice Lispector, Água Viva.

Um pequeno desvio para falar das gentes da USF e seus conflitos Grande parte de meu trabalho de campo ocorreu na sala de medicação e na sala de vacinação, por isso, parte significativa do que discutirei aqui está relacionado com as atividades realizadas pelas auxiliares de enfermagem que ocupam essas salas. Assim como a rotina de consulta com as médicas e os médicos da Unidade, as rotinas desses dois ambientes são marcadas por grandes fluxos de pessoas, principalmente no período da manhã, o que torna esses ambientes propícios para meus objetivos. Além da quantidade de pessoas que circulam pelas salas de vacinação e de medicação, o fato delas serem ocupadas pelas auxiliares de enfermagem é interessante para os objetivos dessa pesquisa. Podemos afirmar que as auxiliares de enfermagem se encontram nas fronteiras entre os dois modelos de atenção à saúde: aquele caracterizado pela lógica clínico-hospitalar e o novo modelo proposto pela estratégia de saúde da família (SHIMIZU et al., 2004; OGATA & FRANÇA, 2010). A maioria das atividades realizadas por essas profissionais são resolução de demandas espontâneas das usuárias ou de efetuação de algum procedimento que requer algum tipo de treinamento técnico. Certamente as auxiliares exercem outras funções. No contexto da Unidade de Saúde da Família (USF), cabe a elas não apenas o atendimento da demanda espontânea da comunidade, mas também visitas domiciliares em alternância com as enfermeiras e a produção de grandes volumes de documentos e relatórios de acordo com as exigências burocráticas. É frequente entre elas o sentimento de que seu trabalho é pouco valorizado dentro da Unidade, sentimento também relatado por Juliana Affonso Gomes Coelho (2011) em sua etnografia da implementação da Estratégia de Saúde da Família (ESF) na Praia Azul, SP.

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Posso elencar dois fatores que parecem contribuir para a intensificação de tal sentimento de desvalorização entre as auxiliares. Em primeiro lugar, todas as atividades que elas realizam parecem ser eclipsadas pelas atividades de todos os outros profissionais das equipes de saúde da família. Médicas e médicos da USF têm pouco contato com as auxiliares. De fato, há uma “cultura” de hierarquização das relações que produz um impedimento de que haja qualquer relação direta entre as duas categorias profissionais. O receio de falar diretamente com as médicas e médicos (sem a intermediação das enfermeiras) é grande13, o que segundo minhas interlocutoras e amigas auxiliares é um dos grandes problemas para a manutenção do trabalho em equipe14, algo extremamente valorizado na Estratégia de Saúde da Família, e frequentemente lembrado por elas como a necessidade de “todos vestirem a camisa da saúde da família para as coisas darem certo”. Já a relação das auxiliares de enfermagem com agentes comunitários de saúde (ACS) e enfermeiras é marcada por uma invisibilização das primeiras em decorrência da posição da atuação dessas profissionais na temporalidade do atendimento às usuárias e usuários. As ACS atuam como a ponte entre comunidade e USF, sendo consideradas pela maioria dos atores envolvidos na atenção primária como uma das maiores inovações da ESF, o que pode ser atestado pela inúmera quantidade de trabalhos acadêmicos sobre elas. As enfermeiras, por sua vez, atuam no momento em que as usuárias e usuários já estão presentes na Unidade, sendo que grande parte de seu trabalho é encaminhar burocraticamente as demandas das usuárias e usuários para outras instâncias da rede de atenção à saúde. ACS intermediam a relação entre usuárias e USF, enquanto enfermeiras encaminham (e possibilitam o início da busca de resolução) as demandas de tais usuárias. As atividades que são realizadas pelas auxiliares nesse espaço de tempo da intermediaçãoencaminhamento são frequentemente desconsideradas como pouco importante ou apenas atividades de suporte/auxílio. Se o primeiro fator gera um eclipsamento da importância das auxiliares de enfermagem a partir, principalmente, da perspectiva das usuárias e usuários, o segundo fator cria uma invisibilização dessas pessoas dentro da própria Unidade. Existe pouca clareza sobre o que são as funções atribuídas às auxiliares. Isso faz com que as atividades que elas

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A USF conta em seu quadro de médicos com duas médicas cubanas do Programa Mais Médicos. Essas são as únicas médicas que possuem uma relação de maior proximidade com as auxiliares de enfermagem. 14 Sobre a importância e realidade do trabalho em equipe em USFs conferir Puntel de Almeida & Mishima, 2001; Schimith & Silva Lima, 2004; Crevelim & Peduzzi, 2005; Machado de Oliveira & Spiri, 2006; Souza Araujo & Rocha, 2007; Kell & Shimizu, 2010; Cutolo & Madeira, 2010, entre outros.

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realizam sejam definidas pelas enfermeiras de acordo com o que é “preciso ser feito”15. Dessa forma, as auxiliares acabam exercendo atividades que institucionalmente serão atribuídas às enfermeiras, o que parece aumentar o sentimento de que seu trabalho não é valorizado. Durante a realização do trabalho de campo, ocorreu na USF uma série de reuniões entre a gerência da Unidade e os funcionários devido a diversas reclamações sobre o desempenho deles por parte de usuárias e membros da própria equipe. As reuniões ocorreram separadamente para cada categoria. As primeiras reuniões foram com os funcionários da recepção16 e com os agentes comunitários de saúde. Depois aconteceu uma reunião com as enfermeiras. E após alguns dias, com as auxiliares de enfermagem. As médicas e médicos não tiveram que participar de uma reunião do mesmo tipo, pois segundo me disseram, se começam a “pegar no pé deles”, eles abandonam o posto de trabalho. Não participei de nenhuma das reuniões referidas, por isso meus comentários aqui se limitarão ao que me foi relatado nos dias que se seguiram — meu foco será a reunião com as auxiliares de enfermagem. No dia seguinte à reunião com as enfermeiras, era o primeiro dia que havia ido para campo após um período de recesso 17, o clima entre as auxiliares era de tensão. Elas ficaram sabendo que houve reclamações por parte de algumas enfermeiras sobre sua atuação na USF, inclusive circulava entre elas a informação de que haviam dito que uma das auxiliares tinha sido acusada de agir de maneira “terrorista”, incentivando algumas de suas colegas próximas a não trabalharem muito, o que posteriormente acabou sendo usado como uma piada por elas. Isso, aliado a reformulação das equipes de saúde e da rotina de trabalho, criou expectativas acerca do que seria discutido na reunião com elas em alguns dias. Nesse dia, tentei me situar nas mudanças que haviam ocorrido. Estava na sala de vacinação, e logo notei a ausência de uma auxiliar que, de acordo com o que me falaram anteriormente,

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O que foi justificado por uma enfermeira como a possibilidade, definida pelo COREN (Conselho Regional de Enfermagem, de delegar atribuições que não são exclusivas do profissional de nível superior. 16 Essas são as pessoas dentro da USF que primeiro entram em contato com as usuárias e usuários no estabelecimento e os direcionam nos serviços realizados na Unidade. Posso afirmar que eles são os funcionários que menos tem contato com os outros funcionários e é bastante comum a reclamação por parte dos demais funcionários de que eles não são tão empenhados em garantir uma boa experiência para as usuárias e usuários. 17 O trabalho de campo se iniciou em agosto de 2014. Do mês de dezembro/2014 até meados de fevereiro/2015 fiquei sem frequentar a USF. A rotina de campo consistia em visitas de uma a duas vezes por semana, sendo que por dia permanecia por volta de 6 a 7 horas na Unidade.

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tinha construído grande parte de sua trajetória profissional trabalhando com vacinação; ela, diziam, não tinha disposição para realizar outras atividades, o que a tornava particularmente experiente nas atividades que ocorrem na sala de vacinação. Essa auxiliar, descobri, havia sido “proibida” de permanecer na sala de vacinação, pois colegas de trabalho reclamaram que ela além de ser grossa com usuárias, não fazia de forma adequada os diversos registros documentais necessários sobre os procedimentos que acontecem na sala de vacinação. Ela estava neste dia fazendo relatórios do programa HIPERDIA 18 , atividade que também requer uma certa habilidade para lidar com burocracia. Durante esse mesmo dia, ela deveria pesar e medir as usuárias e usuários que seriam atendidos pela enfermeira, chefe de sua equipe. Contudo, houve um desentendimento entre ela e a enfermeira, e ela subiu até a copa, onde estávamos eu e mais três auxiliares almoçando. Desabafando sobre o ocorrido, ela começou a chorar e logo em seguida as demais auxiliares que estavam lá também derramaram lágrimas ao relatar as dificuldades que elas estão tendo na USF e como essas dificuldades eram acompanhadas de outros problemas que estavam acontecendo em suas vidas pessoais. Esse foi um momento um tanto dramático durante o trabalho de campo. Ele revela que as relações entre os profissionais na USF são bastante truncadas, apesar do trabalho em equipe ser um dos pilares da Estratégia de Saúde da Família. E foi exatamente um truncamento bastante acentuado que foi gerado entre as auxiliares de enfermagem após a reunião da gerente da Unidade com elas. Nessa reunião ficou definido o que seriam a partir de então as funções de cada auxiliar. A auxiliar dos eventos descritos acima realmente foi afastada da sala de vacinação. As outras foram distribuídas para as demais atividades: sala de medicação, sala de vacinação, curativo, coleta de sangue, exames ginecológicos, teste rápido, alimentação de informações no SISAB19. Antes da reunião, já era perceptível uma distinção de dois grupos entre as auxiliares. Mas após a reunião, o contorno entre os dois ficou muito mais definido. Um dos grupos, aquele com o qual tenho maior proximidade, se percebe enquanto um grupo injustiçado na USF. Elas afirmam que o outro grupo, que tem a participação da mãe de uma das enfermeiras, tem mais facilidades e privilégios dentro da Unidade. De fato, elas acusam esse grupo de

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É um programa do Ministério da Saúde destinado ao cadastro e acompanhamento de portadores de hipertensão arterial e/ou diabetes mellitus atendidos no Sistema Único de Saúde (SUS). 19 Sistema de Informação em Saúde da Atenção Básica.

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empreender uma campanha contra a colega que foi removida da sala de vacinação. A tensão entre esses dois grupos está alta20. Apesar de tentar permanecer neutro nesses conflitos, a neutralidade não é uma posição fácil de ser conquistada. Devido a minha proximidade com um dos grupos, eu facilmente sou lido como um amigo/aliado das auxiliares desse grupo. Apesar de até o momento isso não ter limitado minhas relações em campo, acredito ser importante relatar a existência desses conflitos, pois eles são gerados exatamente a partir de disputas acerca das atividades realizadas na USF. E são as atividades que ocorrem na Unidade que serão o foco principal desse relatório. Devido a reificação das atividades enquanto um objeto aqui, ficará visível que as pessoas aparecerão em um plano que parece secundário. Dessa forma é relevante tornar explícito que essas atividades acontecem dentro de disputas acerca de quem realiza (mais e melhor) elas.

Um amontoado de procedimentos O espaço da sala de medicação é bastante pequeno. É ocupado por um armário onde são armazenados medicamentos, alguns equipamentos e outros materiais utilizados no atendimento das usuárias e usuários. Também encontramos uma cuba com torneira ao lado do armário, e um balcão de mármore com um gabinete de gavetas. Nas gavetas são mantidos outros medicamentos, principalmente injetáveis, e diversos tipos de seringas e agulhas. Em cima do balcão geralmente estão prontuários e o livro de registro de procedimentos da sala de medicação. Em frente ao armário, há uma pequena mesa metálica com alguns documentos também utilizados para o registro de procedimentos, as fichas das crianças que tomam as doses de vitamina A e materiais para a realização de testes de gravidez. Nas paredes há dispensadores de espuma antisséptica e de papeis para enxugar as mãos. Por fim, o mobiliário da sala é completado por duas cadeiras, um suporte para braço e uma balança. Da sala, é possível ver uma caixa onde são colocados pelos funcionários da recepção os prontuários das usuárias e usuários que farão algum procedimento na sala de medicação. Na presença de prontuários na caixa, uma das auxiliares (geralmente ficam duas ou três

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Com o tempo, a distinção entre os grupos voltou a ser mais velada, apesar de que em outra reunião com as auxiliares de enfermagem essa distinção foi re-apropriada para a distribuição das tarefas.

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na sala) o busca, chama pelo nome da pessoa na folha de evolução clínica (Figura 1) e quando a pessoa chega à sala de medicação é perguntado a ela o que ela deseja ou o que ela veio fazer. Após a pessoa dizer o que fará, as auxiliares geralmente se dividem para realizar todas as atividades que um procedimento demanda.

Figura 1 - Folha de Evolução Clínica em branco

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A ficha de evolução clínica das usuárias é individual. No canto superior esquerdo se encontra o brasão da Prefeitura Municipal de Guarulhos. Centralizado no topo da página está um quadrado reservado para o carimbo da Unidade, logo abaixo da frase Secretaria de Saúde em caixa-alta. As informações de identificação da usuária ou usuário são escritas em três linhas: a primeira solicita o segmento, a área e a microárea do usuário; a segunda, seu nome; e a terceira, seu número de matrícula. Por fim, temos, preenchendo o restante da folha de tamanho A4, uma caixa de texto intitulada evolução clínica (em caixaalta) com a seguinte informação na parte inferior: “Obs.: Registrar a cada atendimento: DATA/IDADE/PESO/ESTATURA/TEMP./P.A.”. Essa instrução, posso dizer, não é seguida no preenchimento da ficha. O cabeçalho com a identificação da usuária ou usuário é preenchido na recepção no momento em que o prontuário familiar é separado. A forma que esse cabeçalho assume pode parecer arbitrário, mas acredito que ela é informada pela centralidade que a noção de território tem para a Política Nacional de Atenção Básica à Saúde: as informações sobre o segmento, área e microárea organizam o atendimento das equipes de ESF. Essas ideias, poderíamos dizer, situam o indivíduo tanto na disposição territorial da área de saúde como num modo de organização interno à USF. Por isso, na recepção o indivíduo é antes de tudo — antes mesmo do nome — alguém que está localizado, nos arquivos e no território, através de dois números: a área e a micro-área. Contudo, um terceiro número é importante para a localização — o número de matrícula, chamado geralmente de número de família. Esse é o número do prontuário familiar, onde estão os papeis da usuária ou usuário que busca atendimento. Esse último número localiza a pessoa em um domicílio/família indicado por um envelope de papel pardo (prontuário familiar) que mantem todos os seus membros juntos dentro dele. Assim, o indivíduo é também um membro de um domicílio. Na recepção, de fato o nome pouco importa. A usuária entrega seu cartão da unidade, e o funcionário busca os documentos acima apenas através dos números ali presentes. Mas logo os números são deixados de lado. Quando o prontuário familiar com a ficha da usuária em destaque está na caixa e é pego por uma auxiliar, o que importa é o nome, por isso a legibilidade do nome é importante, o que nem sempre ocorre. No momento de transição que a pessoa passa da recepção para a sala de medicação (ou o consultório médico), ela é nomeada. A auxiliar chama em alto som seu nome. Às vezes, só o primeiro nome. Outras vezes, o nome completo. E quando a usuária é conhecida ou a quantidade de pessoas é pequena e infere-se quem é a “dona” do prontuário, basta apenas que a 22

auxiliar confirme em tom de voz normal se ela é “fulana”. Assim, a pessoa tem acesso à sala de medicação. Nesse breve momento de transição de um local para outro, o indivíduo é um nome, em contraste com o indivíduo indicado por números da recepção e o próximo indivíduo a aparecer, aquele da sala de medicação. Não quero dizer que o nome da pessoa é esquecido a partir do momento em que ela entra nessa sala. O que pretendo argumentar é que há algo mais relevante sobre a pessoa que é manifesto ali. Isso é indicado pela pergunta que inicia e anuncia a nova composição do indivíduo na sala de medicação: “o que a senhora deseja?”, ou de modo mais informal, “o que o senhor veio fazer?”21. Essas perguntas ressoam certos contextos de prestação de serviços como, por exemplo, o atendimento em um estabelecimento bancário ou em um restaurante. E parece indicar uma mudança na lógica do atendimento à saúde. No começo do campo, era frequente eu perguntar sobre as pacientes, usando esse termo — paciente. Com a mesma frequência, era corrigido por minhas interlocutoras que me informavam que agora elas falam usuária ou usuário, pois paciente está bastante associado a pessoas doentes, com falta de saúde. Na atenção básica, esse não é o caso de todas as usuárias e usuários. Com a ampliação do conceito de saúde para além da ausência de doença e a lógica da promoção da saúde, a atenção básica lida com pessoas que não têm necessariamente um “quadro clínico” ou que então, são acometidos por problemas crônicos que não necessariamente envolvem cura, mas controle, manejo, manutenção, etc.22 Dois desses problemas são a hipertensão arterial e a diabetes. Fiquemos com as usuárias hipertensas. Ao informar que o que deseja é aferir a pressão arterial, o seguinte se desdobra na sala de medicação. Enquanto, uma das auxiliares reúne os equipamentos para 21

Essa última sentença é um tanto curiosa. Ela coloca sobre a usuária ou usuário a agência do procedimento a ser realizado ao invés dela ser da profissional da saúde: perguntar o que ela veio fazer parece indicar que a usuária é quem realiza o procedimento (a primeira pergunta também faz isso, mas de maneira menos explícita). Eu proporia que isso estaria associado às práticas de criar uma responsabilidade conjunta entre profissionais e leigas na manutenção da saúde e de garantir autonomia às usuárias, qualidade incentivada no contexto da atenção básica (MAIA DOS SANTOS et al, 2008; LACERDA, 2010; DURAND & HEIDEMANN, 2013). Uma questão que fica, me parece, é de como descrever a agência das profissionais de saúde, quando a agência de sua ação, na verdade, é transferida para a agência de outra pessoa. Mas essa é uma questão que não posso desenvolver aqui, ficará para outra ocasião. 22 Esse é outro ponto interessante. Nas práticas da atenção básica, a lógica da localização da doença ou da afecção, elicitada pela colocação da questão “onde dói?” ou “o que (em você/seu corpo) incomoda?”, é pouco mobilizada. É mais comum se perguntar “qual é o problema?” ou “o que te trouxe aqui?” e a diferença não podia ser maior. Nessa segunda dupla de questões, a afecção ganha uma maior amplitude, podendo ou não assumir a forma de uma doença ou de um quadro clínico. Elas também abrem mais espaço para a subjetividade da pessoa, pois ela passa a identificar aquilo que lhe é um problema e esse problema pode ou não ser passível de atenção ou cuidado a partir de técnicas biomédicas.

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fazer o procedimento, outra começa o processo de produzir o que poderíamos chamar de duplos burocráticos do procedimento. São eles: a inscrição do procedimento na ficha de evolução clínica da usuária e no livro de procedimentos. Na maioria das vezes, é preciso registrar a pressão arterial numa caderneta da usuária que é utilizada para que a médica ou médico acompanhe suas variações durantes as consultas. Na caixa de texto destinada à inscrição da evolução clínica, coloca-se a data do procedimento e em seguida, geralmente logo a frente, a idade da usuária que lhe é perguntada por uma das auxiliares. Na linha abaixo, escreve-se PA e adiciona o resultado informado pela auxiliar que realizou o procedimento. Ao lado, é colocado o carimbo profissional de uma das auxiliares, seja a que preencheu a ficha ou a que realizou o procedimento, não me parece haver regras muito fixadas sobre isso (Figura 2).

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Figura 2 - Folha de Evolução Clínica com inscrições.

Uma segunda prática de inscrição é feita no livro de procedimento (Figura 3). O livro de procedimento é qualquer caderno que se reserva por um período (até esgotarem suas folhas) para registrar os procedimentos realizados na sala de medicação. As linhas do caderno são numeradas e são desenhadas colunas para os seguintes itens: nome, idade, 25

família, área, micro-área, P.A., Dx (dextro), procedimento, assinatura (da auxiliar). Como pode ser percebido, neste livro é como se uma série de fichas de evolução clínica fosse apresentada de maneira condensada.

Figura 3 - Páginas do livro de procedimentos.

Antes de elaborar melhor sobre a relação entres tais práticas de inscrição e a emergência de uma forma específica de indivíduo, é preciso comentar sobre o procedimento que torna possíveis tais inscrições. Manterei o exemplo da aferição da pressão arterial23. A usuária senta em uma cadeira dentro da sala de medicação e coloca um de seus braços sobre um apoio. Uma auxiliar de enfermagem coloca a braçadeira do aparelho utilizado para medir a pressão arterial no braço dela. A seguir, infla a braçadeira apertando uma espécie de bombinha de ar, chamada pelas profissionais de pera. Com um estetoscópio posicionado sobre a artéria do braço e com a abertura de uma pequena válvula que se encontra acima da pera, ela pode ouvir sons que serão traduzidos como pressão sistólica (máxima) e pressão diastólica (mínima) com o auxílio do manômetro, uma espécie de medidor com

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Minha descrição será um tanto superficial, pois receio não ter competência suficiente para descrever toda a mecânica de tal procedimento.

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ponteiros que se encontra acoplado à braçadeira. É através desse procedimento que alguém pode dizer, por exemplo, que a pressão arterial de alguém é 120x80 mmHg. A inscrição PA: 120x80 (ou PA: 12x8) feita na folha de evolução clínica, no livro de procedimentos e na caderneta não se parece nem um pouco com o procedimento que acabo de descrever. De fato, o que quero propor é que evitemos pensar em tais inscrições (documentos) como representando um fato ou uma prática. O que eles fazem é apresentar uma coisa através de outra forma, ou seja, eles operam uma tradução. Por isso, me referi a eles enquanto duplos burocráticos dos procedimentos, para marcar essa mudança de forma que acompanha uma possibilidade de deslocamento — documentos permitem que os procedimentos viagem pelas diferentes localidades da USF. Mas esses documentos não apenas são duplos burocráticos dos procedimentos, eles podem ser duplos de outros objetos. A ficha de evolução clínica, por exemplo, duplica de outra forma a usuária. Mas que forma seria essa? Se voltarmos nossa atenção para a figura 2, podemos ver as seguintes inscrições: >12/12/2014 47 anos PA 120x70 >Dx 112mg/dl às 9:30h >30/01/15 PA 13/8 >Dx 55mg/dl >06/03/15 09h45 >PA 130x70 >12/2/15 47 anos >PA 14x8 Dx 128mg/dl >27/02/15 PA 10/6 >Dx 52mg/dl

Cada > indica uma linha na ficha de evolução, cada data um novo atendimento. Algumas datas são seguidas pela idade e/ou pelo horário que o procedimento foi realizado. Vemos, às vezes na mesma linha que a data, a medição da pressão arterial e também do nível de glicose na corrente sanguínea (a usuária provavelmente é diabética). Com exceção das informações do cabeçalho, não sabemos de mais nada da usuária a não ser sua rotina de procedimentos realizados. Dessa maneira, poderíamos dizer que uma das formas que tem o indivíduo na sala de medicação é a de um amontoado de procedimentos. A ficha torna possível que algumas diferenças (seja na pressão arterial, seja na data) permaneçam juntas e apontem coordenadamente para um único indivíduo. A usuária tem um nome, uma família/matrícula, uma área, uma microárea. Mas tem também um histórico de atendimento. Na verdade, a linguagem aqui é equivocada, ela não tem esses elementos:

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em algumas situações e locais na USF, ela é um nome, um conjunto de números ou um amontoado de procedimentos realizados durante seus atendimentos. O indivíduo como amontoado de procedimentos é uma forma específica de alguns contextos, como espero ter deixado claro. Ele é dependente da existência de uma ficha de evolução clínica extremamente estilizada, onde são inscritas, na maioria das vezes, informações breves e rápidas, mas não menos importantes por isso. Essa forma que o indivíduo assume é a que mais circula pela USF e isso porque a ficha de evolução clínica circula e é manipulada, preenchida e lida por praticamente todas as profissionais que atuam na Unidade 24 . Se a tradução dos procedimentos empreendida pela ficha de evolução permite que eles viagem pela USF, ela também possibilita que a usuária circule também. Apesar desse não ser um tema que pretendo explorar aqui, esse documento em particular antecipa uma certa socialidade criando uma socialidade própria. É a ficha que entra primeiro na sala de medicação, na sala de acolhimento ou no consultório médico. É somente quando ela está nesses locais, e já está enredada em relações com as profissionais que se encontram ali, é que as usuárias ou usuários que são indicados por esses documentos podem, enfim, se engajar eles mesmos numa socialidade específica com as profissionais. A forma assumida por essa socialidade entre profissionais e usuárias é altamente dependente da forma que as usuárias têm, que neste caso é a forma de um indivíduo composto por um amontoado de procedimentos25.

Fazendo uma pessoa através de informações Em julho de 2013, um ano antes de iniciar esta pesquisa, foi instituída através da Portaria nº 1.412 do Ministério da Saúde a implementação do novo Sistema de Informação em Saúde da Atenção Básica (SISAB) que substitui o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB). O SISAB foi pensando a partir da “necessidade de adotar medidas no

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Além de que todas as profissionais precisam elaborar relatórios diários das atividades realizadas, pois elas têm metas de atendimento. Nesses relatórios o que é importante são os números que identificam o domicílio/família, o sexo, a idade e o procedimento feito. 25 Eu certamente não afirmaria que essa é a única forma que tem uma usuária nas redes de relações na USF. Ela simplesmente parece ter prioridade sobre outras. Na sala de medicação, era comum que as auxiliares (ou eu) conversássemos com as usuárias sobre outros assuntos. Muitas das conversas que presenciei eram sobre a religião que elas compartilhavam com as auxiliares ou sobre dúvidas e questionamentos acerca da sua saúde. Contudo, essas conversas jamais eram inscritas em documentos, por isso, esse indivíduo agregado de outros elementos não tinha uma vida muito longa na USF. Assim que a conversa acabava e a usuária deixava a sala de medicação, esse indivíduo desaparecia, e o que restava era o amontoado de procedimentos que estavam inscritos na ficha de evolução clínica.

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campo da saúde que objetivem a melhoria e a modernização do seu sistema de gerenciamento de informações” tendo em vista integrar e unificar todos os sistemas de informação para a atenção básica e considerando, nos termos da própria portaria, “a ampliação da cultura do uso da informação e a gestão do cuidado em saúde ofertado à população”. Foi adotada para a implementação do SISAB, a estratégia e-SUS do Departamento de Atenção Básica como forma de reestruturar as informações da Atenção Básica em nível nacional. Segundo o Manual do Sistema com Coleta de Dados Simplificada, O ponto de partida dessa reestruturação dá-se por meio do detalhamento das informações com o uso de dados individualizados, permitindo o acompanhamento de cada usuário atendido, assim como as ações desenvolvidas por profissional da equipe. Outro ponto importante é a integração dos diversos sistemas de informação oficiais existentes na atenção básica (AB), reduzindo a necessidade de registrar as mesmas informações em mais de um instrumento (fichas/sistemas), o que otimiza o trabalho dos profissionais da AB e o uso da informação para gestão e qualificação do cuidado em saúde. (BRASIL, 2014 — grifo meu)

O Sistema com Coleta de Dados Simplificada (CDS) é um dos componentes da estratégia e-SUS AB, desenvolvido para utilização em Unidades de Saúde Básica que não dispõem de infraestrutura tecnológica adequada para utilização do outro componente, o Sistema de Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC). Ela é composta por um conjunto de sete fichas que são divididas em três categorias que indicam o nível de capacitação profissional adequado para seu preenchimento. As duas fichas sobre as quais deterei minha atenção neste relatório são as fichas de cadastro individual e de cadastro domiciliar (esta será tratada em outro capítulo), ambas preenchidas por agentes comunitários de saúde (ACS). Realmente é possível dizer que o “nível de complexidade tecnológica” dessas fichas é baixo. Mas mesmo assim, elas geraram, quando do início de sua implementação na USF, dúvidas acerca de sua praticidade e de suas possibilidades de aplicação. Pude acompanhar uma reunião de uma das Equipes de Saúde da Família da Unidade em que a gerente do estabelecimento informou às ACS daquela área que elas precisavam agilizar o preenchimento do cadastro das usuárias e usuários de sua microárea. Das seis equipes de SF, ou seja, das seis áreas, foram priorizadas para a implementação do Sistema CDS

29

apenas duas. Segundo a gerente, essas eram as equipes que participavam as médicas do Programa Mais Médicos26. Durante a reunião, algumas ACS comentaram certas dificuldades em aplicar o questionário para o preenchimento do cadastro individual. Além da quantidade de informações solicitadas, havia, na opinião delas, algumas informações difíceis de ser perguntadas: raça/cor e orientação sexual/identidade de gênero, por exemplo. Em relação ao primeiro par de categorias — raça/cor —, elas relataram que não estava claro se elas deveriam preencher de acordo com critérios próprios ou de acordo com a maneira que a usuária se auto-identificava. O segundo par — orientação sexual/identidade de gênero —, é um pouco mais complicado. De acordo com elas, além de ser um assunto “íntimo”, muitos usuários (o masculino aqui é proposital) se sentiam ofendidos com tal questionamento e podiam ser agressivos, inclusive. A estratégia delas era apenas marcar a orientação sexual/identidade de gênero daquelas usuárias e usuários que visivelmente eram não-heterossexuais, caso contrário, esse item é deixado em branco, pois essa era uma informação de preenchimento opcional. Voltarei sobre esse aspecto opcional de algumas das informações a seguir. Antes é preciso apresentar a ficha de cadastro individual (figuras 4 e 5). Cada ficha tem duas páginas, impressas frente e verso numa folha de papel de tamanho A4. Na USF, as fichas são entregues em blocos com 500 unidades pela Secretaria Municipal de Saúde de Guarulhos. Elas são armazenadas em prateleiras dispostas no corredor do primeiro andar da Unidade, onde estão localizadas as salas de reunião de ACS. Assim, ficam à disposição para quando houver necessidade de fazer o cadastro de uma nova usuária. No topo da ficha, encontra-se o cabeçalho, presente em todas as demais fichas do Sistema CDS. Nesse cabeçalho são registradas as informações que “adscrevem” (termo usado na PNAB) uma usuária ao sistema de saúde, através da indicação do número do cartão do SUS do profissional que realizou o preenchimento da ficha, o código do estabelecimento de saúde e o código da equipe, a microárea27 e a data de preenchimento. Além dessas

Segundo o sítio eletrônico do programa: “O Programa Mais Médicos faz parte de um amplo pacto de melhoria do atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde, que prevê mais investimentos em infraestrutura dos hospitais e unidades de saúde, além de levar mais médicos para regiões onde há escassez e ausência de profissionais”, acesso em 10/04/2015. 27 A microárea é considerado um campo não obrigatório de preenchimento, pois se o cadastro é novo, pode ser que o domicílio que a usuária reside não tenha sido adscrito à uma microárea. 26

30

informações são solicitadas as informações referentes à digitação do cadastro individual no software específico do Sistema CDS que envia as informações para o SISAB.

. Figura 4 - Frente da Ficha de Cadastro Individual.

31

Figura 5 - Verso da Ficha de Cadastro Individual.

O Manual de Preenchimento destaca o seguinte em relação à ficha de cadastro individual: a ficha de cadastro individual é utilizada para registrar as características sociodemográficas, problemas e condições de saúde dos usuários no território das equipes de AB. Seu objetivo é captar informações sobre os usuários que se encontram adscritos no território da equipe de AB. É composto por duas partes: informações de identificação/sociodemográficas e condições de saúde autorreferidas pelo usuário. (BRASIL, 2014)

Portanto,

vamos

seguir

esta

distinção

entre

informações

de

identificação/

sociodemográficas e as informações de condições de saúde autorreferidas, que informa a 32

própria organização da ficha: o primeiro conjunto se encontra na parte da frente, o segundo, no verso28. O primeiro conjunto de informações se divide em mais dois conjuntos: identificação do usuário/cidadão e informações sociodemográficas, cada um agrupando em si (através de um retângulo de lados arredondados) uma série de informações. A identificação do usuário ou cidadão compreende as seguintes informações: número do cartão do SUS, responsável familiar, nome completo, nome social, data de nascimento, sexo, raça/cor, número NIS (PIS/PASEP), nome completo da mãe, nacionalidade, telefone celular, município de nascimento, e-mail. Já as informações sociodemográficas englobam informações sobre a relação de parentesco com o responsável familiar29, ocupação, escolaridade, situação no mercado de trabalho, o responsável pelo cuidado/monitoramento no caso de ser uma criança até 9 anos de idade, utilização de cuidador tradicional, participação em grupos comunitários, inscrição em plano de saúde privado, pertencimento a povo ou comunidade tradicional, orientação sexual/identidade de gênero e deficiência. O quadro a seguir (Tabela 1) ajuda a visualizar ambos conjuntos de informações introduzindo outra distinção: informações de preenchimento obrigatório (indicadas na ficha pelo acréscimo de *) e informações de preenchimento facultativos. IDENTIFICAÇÃO DO USUÁRIO /

INFORMAÇÕES SOCIODEMOGRÁFICAS

CIDADÃO

Obrigatórias  Nome completo;

 Frequenta escola ou creche;

 Data de nascimento;

 Tem alguma deficiência?;

 Sexo;  Raça/Cor;  Nome completo da mãe;  Nacionalidade;

28

Na parte da frente da ficha, além das informações de identificação e sociodemográficas há um campo para indicar a saída da usuária do cadastro devido a óbito ou mudança de território. Há também uma caixa de texto com o Termo de recusa do cadastro individual da atenção básica, caso a pessoa não queira fornecer os dados para o cadastro. 29 A versão da ficha de cadastro individual apresentada aqui é a versão 1.3, disponível atualmente no site do e-SUS. Quando primeiro entrei em contato com tal ficha na USF, esta estava na versão 1.2. Nessa versão não há esse campo de informação — relação de parentesco com o responsável familiar —, mas um campo sobre o estado civil da pessoa.

33

 Município e UF de nascimento; Facultativas  Nº do cartão do SUS;

 Relação de parentesco com o responsável

 Responsável Familiar;

familiar;

 Nome social;

 Escolaridade;

 Nº NIS (PIS/PASEP);

 Ocupação;

 Telefone celular;

 Situação no mercado de trabalho;

 E-mail;

 Cuidado da criança de 0 a 9 anos;  Utilização de cuidador tradicional;  Participação em grupo comunitário;  Plano de saúde privado;  Membro de povo ou comunidade tradicional;  Orientação sexual/Identidade de gênero;

Tabela 1 - Conjuntos de Informações do Cadastro Individual.

Podemos perceber que conforme nos deslocamos do primeiro conjunto (primeira coluna) para o segundo conjunto (segunda coluna), há um contraste na proporção entre informações obrigatórias e facultativas. No primeiro conjunto, há praticamente a mesma quantidade de dados obrigatórios e facultativos, enquanto no segundo conjunto, a maior parte dos dados são de preenchimento facultativo. O que fazer com essa diferença? Minha resposta a essa questão terá um caráter especulativo-hipotético, pois uma resposta definitiva só seria possível se tivéssemos acesso às intenções dos envolvidos no desenho da ficha. A diferença entre informações obrigatórias e facultativas parece indicar uma separação entre as informações que são essenciais ao atendimento e ao processo de saúdedoença e aquelas que podem ser não-consideradas 30 , isto é, aquelas que podem não implicar uma questão influente e de interesse para o campo da atenção básica. Dessa forma, parece possível supor que quando estamos no domínio do indivíduo, sua identificação ganha mais importância que as suas “condições de vida” indicadas pelas informações sociodemográficas. De fato, identidade e indivíduo sempre estiveram em uma relação íntima. Mas mesmo assim permanecemos com um problema: orientação sexual/identidade de gênero e pertencimento a povo ou comunidade tradicional são

30

Prefiro usar o termo não-considerado ao invés de desconsiderado, pois este último parece indicar que a informação existe mas foi ignorada, enquanto o primeiro pode indicar que não houve uma consideração prévia sobre a informação, mas se essa informação existir ela não será ignorada.

34

informações que compõem a identidade de um indivíduo, mas elas são enquadradas como informações sociodemográficas. Sexo e raça/cor também podem ser informações sociodemográficas, mas não o são na ficha. Por que, então, da separação em dois conjuntos diferentes de “sexo-raça/cor” e “orientação sexual/identidade de gênero-pertencimento comunitário”? Aqui lançarei outra especulação-hipótese. Poderíamos dizer que enquanto as categorias de sexo e raça sempre permearam os discursos biomédico e da administração pública enquanto categorias úteis para o esquadrinhamento de grupos no interior da população (FOUCAULT, 2009), a entrada de categorias como orientação sexual, identidade de gênero e pertencimento à um povo ou comunidade, nesses discursos, são mais recentes e frutos

de

mobilização

política

(o

que

parece

dotá-la

de

um

caráter

coletivo/construído/reivindicado, em relação à um caráter individual/dado/evidente das outras informações). A garantia de um atendimento à saúde diferenciado para indígenas, por exemplo, se torna uma preocupação para o Estado com o reconhecimento, pela Constituição de 1998, do direito de terem respeitados seus modos de vida específicos. Já a inclusão da orientação sexual e identidade de gênero é ainda mais recente na agenda pública em relação à saúde (ou outras áreas), tendo como marco a portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, que “Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT)”. Contudo, essas informações compõem apenas parte do cadastro individual, como já mencionado acima. Faz parte da ficha, seu verso mais especificamente, um questionário auto-referido de condições/situações de saúde. O conjunto de informações aqui mobilizado buscam delimitar as necessidades de saúde da usuária e sua futura relação com o Sistema de Atenção Básica, elas possibilitam projetar seus percursos nas redes da Atenção à Saúde. O questionário é composto de dois conjuntos de informações, que agregam alguns dados. O primeiro apresenta uma descrição das condições e situações gerais de saúde da usuária e a segunda se destina a cidadãos em situação de rua. Não pretendo detalhar quais dados compõem cada conjunto, para isso veja a figura 5. O que me interessa ao apresentar essa ficha é o modo que ela faz aparecer um novo indivíduo. É preciso enfatizar, novamente, que não pretendo abordar esse documento (ou nenhum outro tratado neste relatório) enquanto representando uma entidade anterior e exterior a ele. O interesse aqui é no tipo de entidade que os documentos contribuem para 35

trazer à existência. E as fichas de cadastro individual me parecem ser um caso bastante interessante, pois as informações presentes nela viajam para fora da USF através do Sistema de Informação em Saúde da Atenção Básica. E em segundo lugar, esse aspecto é o que vou seguir, elas são tecnologias de descrição. O fato de que essas fichas primeiramente descrevem descrições (isto é, apresentam uma forma bastante específica de descrever aquilo que é descrito pela usuária sobre si mesma ou o que a ACS descreve sobre a usuária) é interessante, pois a antropologia também pode ser descrita enquanto um esforço de descrever descrições (RILES, 2006a; STRATHERN, 2014). Mas se na antropologia a descrição apresenta um caráter aberto, isto é, indeterminado para o que poderá ser descrito, a ficha de cadastro individual não fornece tal abertura ou indeterminação. Praticamente todos os campos a serem preenchidos, apresentam respostas já fechadas. Mesmo o campo ocupação ou o nome do povo ou comunidade tradicional tem possibilidades finitas de preenchimento. Dessa forma, cabe ao ACS dominar os códigos para operar descrições que traduzem de maneira adequada as descrições das usuárias e usuários em relação as descrições aceitas pelo Sistema CDS. Assim, o indivíduo que é composto a partir do cadastro individual apesar de ser amplo, e ter mais dimensões que o indivíduo da sala de medicação que descrevi anteriormente, ele não está aberto à indeterminação que tem, por exemplo, os coletivos mobilizados pelas descrições antropológicas. O indivíduo do cadastro individual é identificável por um conjunto de informações, ele se singulariza pois tem um nome, um sexo, uma cor, uma data de nascimento, uma mãe na forma de um nome, uma nacionalidade e um município e estado de nascimento. Veja bem, esse indivíduo tem apenas um de cada elemento, não mais. Mudar pode ser possível, mas certamente não é uma tarefa fácil. No sistema informatizado, apenas as informações sociodemográficas e algumas das informações sobre as condições e situações de saúde podem ser alteradas. Outro ponto importante. As informações sociodemográficas contextualizam o indivíduo do cadastro individual. Elas o situam em aspectos que, apesar de não diretamente relacionados ao processo saúdedoença, reconhece-se alguma influência sobre tal processo. O que elas fazem é coletivizar o indivíduo singular do conjunto identificação do usuário/cidadão. E por isso elas são alteráveis. O modo euramericano moderno de discriminar entre o dado e o construído é 36

refratado para a discriminação entre indivíduos e sociedade, particular e coletivo. É comum pensarmos que os indivíduos possuem traços particulares que são dados e que através de um processo de socialização eles adquirem novos traços construídos, que os tornam hábeis na vida em coletivo. Mudar o que nos singulariza é tomado como tarefa impossível, ou no mínimo, pouco possível e cheia de riscos (psicológicos, por exemplo), portanto, o que pode ser mudado, o que de fato muda, são os contextos coletivos/sociais em que o indivíduo singular está inserido (WAGNER, 2009). É por esse motivo, proporia, que os softwares para a digitação das informações do cadastro individual só possibilitam mudanças de informações sociodemográficas e de algumas situações ou condições de saúde (aquelas que são reversíveis, preferencialmente por procedimentos cientificamente reconhecidos). Esse é, portanto, um indivíduo composto por informações que ao mesmo tempo em que o singularizam o contextualizam/coletivizam e apresenta, conforme o caso, necessidades específicas de saúde. Mas mesmo assim, a forma final desse indivíduo ainda não é totalmente definida, pois depende da configuração de informações facultativas que são realmente mobilizadas para a composição de sua forma. Alguns indivíduos podem, por exemplo, ter orientação sexual. Outros podem não ter forma alguma, a não ser pelo nome, pois recusaram o cadastro e assinaram o termo de recusa presente na ficha. O que é importante é que sejamos capazes de perceber que esse indivíduo é diferente daquele descrito anteriormente e do que descreverei na seção seguinte.

Da distribuição no tempo O indivíduo agenciado pela ficha de cadastro individual é um indivíduo desprovido de temporalidade. Ele é extremamente sincrônico e não “muda” com o tempo (a não ser nos parâmetros que relatei acima). Já o indivíduo agenciado pela folha de evolução clínica (na sala de medicação) tem uma certa dimensão temporal, que se resume a uma espécie de histórico, ou sucessão de eventos já ocorridos: é um indivíduo que conhece apenas seu passado. Nesta seção, descreverei um indivíduo cuja forma é elaborada explicitamente em termos temporais, sendo um indivíduo distribuído no tempo. Esse é o indivíduo que é trago à existência a partir das inscrições desdobradas dos procedimentos de imunização e de administração de vitamina A.

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Comecemos com a administração de vitamina A, que ocorre na sala de medicação. O processo para chegar até a sala de medicação é o mesmo que para qualquer outro procedimento que acontece ali. A usuária entrega o cartão do posto na recepção, o prontuário é separado e a pessoa é chamada por uma auxiliar e lhe é perguntado “o que deseja?”. Ao dizer, que veio para tomar a vitamina A — lembrando que quem conduz a resposta é um adulto que acompanha uma criança, sendo a criança que se submeterá à administração do suplemento —, começam todos os processos de inscrição que são demandados pelo/desdobrados a partir do procedimento. O Programa Nacional de Suplemento de Vitamina A foi instituído no ano de 2005 por meio da Portaria nº 729. Seu “objetivo é reduzir e controlar a deficiência nutricional de vitamina A em crianças de 6 a 59 meses de idade e puérperas no pós-parto imediato (antes da alta hospitalar)” (BRASIL, 2013). Nos municípios contemplados pelo Programa, encontramos nas Unidades Básicas de Saúde frascos contendo duas cápsulas com composições diferentes de megadose de vitamina A: cápsulas (vermelhas) com 200.000 UI e cápsulas (amarelas) com 100.000 UI (Figura 6). As cápsulas de 100.000 UI são destinadas às crianças de 6 meses a 11 meses em uma única dose, já as de 200.000 UI são tomadas por crianças do 1 aos 5 anos de idade, em doses de 6 em 6 meses.

Figura 6 - Imagens do frasco e cápsulas de vitamina A. Reproduzido de Brasil, 2013.

A administração da vitamina A é feita via oral. A auxiliar de enfermagem, em colaboração com a pessoa responsável pela criança que a segura, espreme o conteúdo da cápsula, após abri-la, na boca da criança. Enquanto isso, outra auxiliar carimba a caderneta de vacinação da criança (Figura 7), preenchendo os espaços do carimbo a caneta com a numeração da dose que a criança recebeu (1ª, 2ª, 3ª, ... dose) e com a data. No espaço em branco seguinte, ela marca a lápis a data que a criança deve retornar para receber outra dose e informa a pessoa responsável. 38

Figura 7 - Carimbo de vitamina A para a carteira de vacinação da criança.

Além da inscrição na carteira de vacinação da criança, a administração de vitamina A é registrada no livro de procedimentos e num livro próprio para o registro das doses da vitamina distribuídas. O livro de administração da vitamina A é bastante semelhante ao livro de procedimentos. Nas suas páginas são desenhadas colunas para as seguintes informações: data do procedimento, nome da criança, idade, número de matrícula/família, área, micro-área, número da dose, profissional que realizou o procedimento31 (Figura 8).

Figura 8 - Páginas do livro de administração de vitamina A

31

Mais recentemente acrescentaram uma outra coluna para marcar o retorno da criança para a próxima dose.

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Por fim, uma das auxiliares busca em uma caixa-arquivo a ficha de controle de vitamina A da criança (Figura 9) — caso seja a primeira dose, ela fará uma ficha nova. A impressão dessa ficha é feita através de um carimbo em um pedaço de uma folha de papel. Além de conter os dados de identificação da criança, a ficha de controle possui uma sequência de espaços, similares ao carimbo da figura 7, onde são marcadas as doses já tomadas a caneta e a lápis se indica a data da dose seguinte.

Figura 9 - Ficha de controle de vitamina A.

As informações sobre as imunizações da criança também são marcadas da mesma forma na carteira de vacinação (Figura 11 e 12). São inscritas a caneta as informações das vacinas já tomadas, e a lápis da data do próximo retorno. Existem diferentes modelos de carteira de vacinação, o que aparece com mais frequência na USF é o que se encontra na caderneta de saúde da criança32 (Figura 10), um pequeno livro que reúne diferentes informações sobre a saúde da criança, incluindo suas informações vacinais — que focarei aqui.

Figura 10 - Capas das cadernetas de saúde da criança da menina e do menino, respectivamente.

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É interessante notar que as cadernetas existem em dois modelos, um para meninos e outra para meninas. A diferença entre elas, com exceção dos gráficos de crescimento infantil, é que a para meninos tem as páginas azuis e a para meninas, cor-de-rosa, assim como o desenho da capa. Não focarei aqui a produção de crianças generificadas que ocorre na sala de vacinação.

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Figura 11 - Carteira de vacinação presente na caderneta da menina.

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Figura 12 - Carteira de vacinação presente na caderneta do menino.

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A primeira página do Registro das Vacinas do Calendário Básico é a mais utilizada. Nela já constam os nomes das vacinas que se espera que uma criança tome até completar quatro anos de idade (Tabela 2)33. A cada vacina aplicada na criança se marca no espaço relativo à vacina a data da aplicação, o lote da vacina (presente na ampola), Unidade em que foi aplicada (geralmente se recomenda tomar todas as vacinas na mesma Unidade), a assinatura de quem realizou o procedimento e às vezes se coloca a validade do lote da vacina. IDADE Ao nascer 2 meses 3 meses 4 meses 5 meses 6 meses 12 meses 15 meses 4 anos

VACINA BCG, Hepatite B VIP, Pentavalente (DTP-Hib-HB), Rotavírus, Pneumocócica 10 valente Meningocócica C VIP, Pentavalente (DTP-Hib-HB), Rotavírus, Pneumocócica 10 valente Meningocócica C VOP, Pentavalente (DTP-Hib-HB), Pneumocócica 10 valente Sarampo-Caxumba-Rubéola (SCR), Meningocócica C, Hepatite A VOP, DTP, Pneumocócica 10 valente, Tetraviral (SCR-Varicela) VOP, DTP

Tabela 2 - Calendário de vacinação obrigatório para crianças até os quatro anos de idade.

Mas além de marcar todas as informações acima na carteira de vacinação da criança, elas são registradas na ficha espelho da criança (Figura 13). A ficha espelho tem um formato semelhante ao da carteira de vacinação, contendo também os dados de identificação da criança. Ela é usada como uma forma de informação dos profissionais acerca da situação de imunizações das crianças, elas são organizadas por ano de nascimento. Contudo, as que retornarão em um período próximo para receber alguma vacina ficam separadas numa pequena caixa-arquivo encima da mesa, dispostas em ordem alfabética. Essa forma de organização das fichas espelho permite que as auxiliares que ficam na sala de vacinação identifiquem, o que parece ser muito importante nesse local, as crianças atrasadas.

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Na carteira de vacinação presente na caderneta da criança há uma desatualização em relação às vacinas. A vacina tetravalente foi combinada com a vacina contra hepatite B (a criança só toma uma dose contra hepatite B separada no hospital, junto com a BCG), sendo chamada atualmente de pentavalente. A vacina SCR também teve modificações. Antes ela incluía a imunização contra varicela, atualmente a varicela é uma vacina a parte. Há também a falta de um espaço já nomeado para a vacina contra hepatite A e na carteira das meninas, para a contra HPV.

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Figura 13 - Frente e verso da ficha espelho ou ficha de registro de vacinas.

A construção “crianças atrasadas” parece um pouco estranha. Mas é bastante comum nos contextos de imunização da USF. A sala de vacinação, diferentemente de outros espaços da Unidade, não requer que as usuárias passem primeiro pela recepção. Na porta da sala há um impresso em que se lê em letras grandes: “bata uma vez e aguarde o atendimento”. 44

Assim, basta a usuária bater na porta e aguardar para alguém a abrir. Comumente, já há certeza, por parte dela, de que sua criança vai tomar alguma vacina, pois é provável que haja uma data para retorno escrita a lápis na carteira de vacinação. Mas às vezes, a auxiliar que atende a usuária na sala de vacinação é perguntada para ver se a criança está atrasada. De fato, a carteira de vacinação mostra/permite ver o atraso ou não da criança. Esse outro indivíduo que é configurado pelas práticas de inscrição na carteira de vacinação se faz através de tempo, por isso, as carteiras de vacinação podem produzir crianças atrasadas. Aos quatro meses de idade, uma criança (junto de sua “mãe ou responsável”, como dizem, geralmente, os documentos da criança) vai à USF para tomar a segunda dose das vacinas VIP, Pentavalente, Rotavírus e Pneumo 10. Provavelmente em sua carteira de vacinação e ficha espelho estará escrito a lápis a data do retorno. Essa data é apagada para que sejam preenchidas a caneta as informações das vacinas, com a data atual da aplicação. Poderíamos descrever a carteira de vacinação como uma antecipação virtual de uma trajetória temporal. A cada nova manipulação dela por uma profissional de saúde, essa temporalidade é duplamente recriada. Primeiro através de uma atualização da situação vacinal da criança (a inscrição a caneta), e segundo através de uma virtualização da situação vacinal da criança em um momento posterior (a inscrição a lápis). A própria diferenciação das inscrições a caneta e a lápis parece revelar algo sobre a temporalidade da criança/indivíduo da sala de vacinação: o passado não é passível de mudança34, mas o futuro antecipado, sim. Na sala de vacinação ocorre, assim, constante atualização e virtualização do futuro da criança: o futuro parece ser o tempo privilegiado, pois até que a criança complete sua situação vacinal, ele é recriado (é virtualizado) quando se torna passado (é atualizado). Dessa forma, a sala de vacinação e os documentos de vacinação descritos acima fazem emergir um indivíduo singular que parece “correr” para acompanhar seu futuro, pelo menos até o momento em que não haverá mais futuro35 para ser perseguido. Por isso algumas crianças podem estar atrasadas. Elas se atrasam em relação a seu duplo burocrático que vive no futuro virtual do calendário de vacinação. Contudo, alguns 34

Às vezes isso não é verdadeiro, pois se se descobre alguma informação equivocada, utiliza-se corretivo líquido que torna o espaço “inscrivível” de novo. 35 Após os 4 anos de idade, a pessoa só retorna para se vacinar aos 15 anos (ou caso fará alguma viagem que seja necessária tomar vacina de febre amarela, ou então, se for uma menina, de 11 a 13 anos, em “busca” da vacina de HPV). Após aos quinze anos, a pessoa retorna em espaços de tempo grande para tomar reforços de algumas vacinas. Contudo, os profissionais da USF “acompanham de perto” apenas a situação vacinal de crianças de até 4 anos e de gestantes.

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atrasos são comuns, e não geram grandes preocupações. Mas se a criança está muito atrasada é preciso pedir para que a ACS responsável pela micro-área em que ela mora peça que a responsável por ela a leve para “regularizar” — termo nativo — sua situação. Caso o atraso persista, é preciso tomar outras medidas: ir vacinar a criança em casa, ou acionar o Conselho Tutelar, pelo que me disseram. O que pretendi com esse último parágrafo é explicitar algo que talvez não tenha ficado claro nas discussões anteriores: os diferentes indivíduos, ou duplos burocráticos das usuárias e usuários/procedimentos, não tem uma existência abstrata. Pelo contrário, eles geram efeitos bastante concretos, eles interferem, participam, modulam, facilitam o estabelecimento de redes de relações. Eles, poderíamos dizer, tem uma agência própria e essa agência depende dos agenciamentos particulares que os trazem à tona ou que eles ajudam a trazer à tona. Por isso, se ater as especificidades de cada emaranhado de materiais e signos é uma tarefa importante que espero ter conseguido realizar acima.

Por que, então, o indivíduo? Gostaria de retornar para o procedimento de medição da pressão arterial descrito acima. O procedimento visa “descobrir” qual a pressão arterial de uma pessoa, que é expressa a partir a junção de dois valores numéricos que indicam respectivamente a pressão sistólica (máxima) e a pressão diastólica (mínima). Contudo, o que é um corpo que têm uma pressão arterial? Minha resposta, um pouco desajeitada, é que é um corpo que nem parece com um corpo. Para que uma pessoa tenha uma pressão arterial é preciso, pelo menos, dois corpos. E dois equipamentos: o esfigmomanômetro (aparelho de pressão) e o estetoscópio. O primeiro equipamento é composto por uma bolsa inflável retangular de borracha (manguito) e revestida por tecido, formando o que é chamado de braçadeira. Essa bolsa tem duas conexões, uma primeira com um instrumento chamado manômetro, que mede a pressão de fluídos em recipientes fechados, e a outra conexão com o que é chamado de pera, manipulada pela profissional da saúde para inflar o manguito. A braçadeira é presa ao braço da pessoa que terá a pressão medida e inflada, o estetoscópio é posicionado sobre a artéria braquial, localizada na parte interna do cotovelo, e permite que a profissional da saúde escute, ao liberar a pressão do manguito através de uma válvula acima da pera, um som que é produzido quando a pressão do manguito é igual a pressão arterial da pessoa — essa é a pressão sistólica. Ela continua a ouvir e a desinflar 46

o aparelho até o momento em que o som desaparece, o último som indicará a pressão diastólica. Os valores numéricos que traduzem esses sons são apresentados através do ponteiro do manômetro em unidades de mmHg (milímetros de mercúrio). Assim, um corpo que tem uma pressão arterial apresenta uma forma bastante singular. Ele existe a partir de práticas de inflar e desinflar bolsas elásticas, ouvir sons, traduzir sons que aparecem e desaparecem através de medidas em milímetro de mercúrio apontadas por um pequeno instrumento redondo. Esse é um corpo que existe dispersado entre esses processos e que emerge apenas a partir de dois corpos, um que afere e outro que é aferido. O corpo com pressão arterial não é, de maneira alguma, um corpo individual. A linguagem da descrição acima pode parecer um pouco confusa. Mas isso é porque ao usá-la para descrever um “outro corpo possível”, eu estendo suas associações convencionais até um ponto de limite que requer que algumas dessas associações se rompam para que outras possam emergir. Essa é uma estratégia antropológica comum, descrita por Wagner (2009) como metáfora ou invenção e por Marilyn Strathern (2004a) como conexões parciais. O corpo descrito acima não é bem o corpo moderno que se tornou o ponto de referência concreto das noções de individualidade (LE BRETON, 2013), mas mesmo assim, o descrevo como corpo. Esse é o ponto que gostaria de tocar nesses últimos parágrafos. Descrevi nas seções anteriores três figurações bastante distintas. A primeira compreende um amontoado de procedimentos mantidos juntos em uma folha de evolução clínica. Uma outra figuração é composta por conjuntos de informações, umas entendidas como “obrigatórias” outras como “opcionais” e que estabelecem entre si uma relação de singularização e coletivização (contextualização). Por fim, a terceira figuração é melhor compreendida como um processo de atualização e virtualização simultâneas de uma temporalidade (futura) específica. Mesmo apesar da diferença entre as três e do fato de que nenhuma coincide com qualquer outra, as descrevi como indivíduos. Usei um termo talvez mais obscuro ainda para designá-las: duplos burocráticos. Mas esse termo, por parecer ter menos associações convencionais, se rende mais facilmente a práticas de metaforização ou de estabelecimento de conexões parciais. Já o indivíduo parece resistir a isso, principalmente porque nenhuma das figurações acima descritas se parecem com um indivíduo e muito menos permitem os tipos de associações que 47

comumente realizamos entre indivíduo, pessoa e corpo (MAUSS, 2003). Mas por que, então, manter o indivíduo como metáfora? A resposta será um tanto quanto simples. Na USF, são essas figurações que são considerados como indivíduos ou representando “indivíduos” ou “usuárias individuais”. Isso certamente levanta questões que não poderei responder aqui sobre os processos de produção de um objeto singular (a usuária individual) a partir da multiplicidade de objetos que são enactados36 nas práticas da Unidade de Saúde da Família (MOL, 2002). Mas há mais um motivo para manter o indivíduo como metáfora. Meu objetivo aqui é apresentar, etnograficamente, o que são as unidades de intervenção definidas pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), sendo que uma dessas unidades é o indivíduo. Portanto, manter o indivíduo no vocabulário dessa pesquisa é uma forma de estabelecer uma continuidade com a linguagem da PNAB, mesmo que essa continuidade seja apenas parcial (e retornarei à essa parcialidade no capítulo final deste relatório). E isso se estende para as outras unidades de intervenção descritas nos capítulos seguintes: a comunidade e a família.

Utilizo o neologismo para traduzir o termo enacted, derivado do verbo “to enact”. Em inglês, “perform” e “enact” muitas vezes são usados como sinônimos, mas como indica Annemarie Mol (2002), o termo “perform” e seus derivados traz consigo uma bagagem bastante pesada, por isso a preferência por “enact” e seus derivados. Esse último termo indica o processo através do qual algo é “trazido à existência”. 36

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Capítulo 2

COMUNIDADE “A ‘comunidade’ ... deve ser tão fácil de decompor como foi fácil de construir.” Zygmunt Bauman, Comunidade.

Alguns mapas Ao entrar na Unidade de Saúde da Família é possível ver um grande mural exposto em uma das paredes do estabelecimento. Nesse mural, vemos, além de informes importantes para a comunidade, alguns mapas. A dimensão (da impressão) de cada mapa é bastante pequena: menor que um papel A4. De fato, visualizar alguma informação ali requer proximidade e esforço de quem observa. Cada um dos cinco mapas ali dispostos está impresso em preto e branco, o que dificulta ainda mais a discriminação das informações que eles se propõem transmitir. Na verdade, esses mapas também estão disponíveis no domínio da Secretaria de Saúde no sítio eletrônico da Prefeitura de Guarulhos — http://www.guarulhos.sp.gov.br (Figura 14). O sítio tem um estilo bastante simples. Um fundo branco preenchido com informações em azul. Essas informações estão dispostas da seguinte maneira: no lado esquerdo temos uma coluna com um menu que permite à navegante virtual se direcionar para páginas contendo informações detalhadas de serviços e estabelecimentos vinculados à Secretaria. No lado oposto, temos informações sobre o atual Secretário de Saúde, e logo abaixo (a figura 14 não permite visualizar), temos a possibilidade de fazer download de documentos relacionados à área da saúde do município37. No meio, encontram-se notícias relevantes, sendo que as mais atuais são destacadas num banner virtual.

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Em consonância, acredito, com a necessidade de garantir acesso à informação para a população.

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Figura 14 - Página on-line da Secretaria de Saúde de Guarulhos.

Ao clicar no link

somos redirecionados para a página onde se

encontra um dos mapas presentes no mural da USF, mas antes gostaria de apresentar outras informações disponíveis nessa mesma página. No topo dela, há um pequeno texto que acredito ser importante ser reproduzido na íntegra aqui. Guarulhos possui 68 UBS dispostas no seu território. Estas UBS prestam o atendimento de atenção básica à saúde de acordo com os princípios do SUS. Das 68 UBS 47 são Unidades com Agentes Comunitários de Saúde (ACS) ou Estratégia de Saúde da Família (ESF). Para fins de gerenciamento e planejamento o município encontra-se dividido em 4 Regiões Intramunicipais de Saúde: Centro, Cantareira, São João-Bonsucesso e PimentasCumbica. O mapa abaixo mostra a disposição das UBS no território do Município. Para Informações sobre a Gerência, endereço e telefone em cada UBS clique no "link" referente a cada uma delas.

Na primeira linha do texto, temos uma informação aparentemente simples: Guarulhos é um território com 68 Unidades Básicas de Saúde. Mais que isso, Guarulhos é um território dividido em quatro Regiões Intramunicipais de Saúde, nos informa o terceiro parágrafo. Centro, Cantareira, São João-Bonsucesso e Pimentas-Cumbica são as Regiões de Saúde de Guarulhos. Todas as UBS do município estão localizadas em alguma dessas Regiões, a USF de Ponte Alta, por exemplo, está na Região São João-Bonsucesso.

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Destaquei o fato de Guarulhos ser apresentado enquanto um território, devido ao rendimento que a categoria de território tem para as discussões acerca da implementação da atenção básica à saúde com vista à consolidação dos princípios do SUS de universalidade, equidade e integralidade. Mas o território também é essencial para que o papel da atenção básica (ou primária) se configure como a porta de entrada da população, como afirma Rivaldo Mauro de Faria (2013, p. 134): O território determina o limite de atuação do serviço e a população sob sua responsabilidade. Sem isso a atenção primária não pode cumprir seu papel de porta de entrada para o SUS, pois o território definido indica a porta, ou seja, o serviço e a população a passar por ela. Em síntese, os atributos da atenção primária — a saber: porta de entrada, continuidade, coordenação e integração das ações — não se realizam sem a definição do território de atuação dos seus serviços.

A delimitação de territórios (chamada de territorialização) não se configura apenas como uma maneira de operacionalizar e efetivar o Sistema Único de Saúde. O território é também apresentado como uma dimensão importante para a compreensão dos processos de saúde-doença da população. E, de fato, isso acontece, porque ele oferece uma forma de compreensão da situação de saúde para além da saúde do indivíduo. Dessa forma, as práticas de territorialização na atenção básica contribuem igualmente para a operacionalização e efetivação da ampliação do conceito de saúde, conforme discutido na introdução (cf. MONKEN & BARCELLO, 2007; BARCELLOS, 2000). Se a doença é uma manifestação do indivíduo, a situação de saúde é uma manifestação do lugar. Os lugares, dentro de uma cidade ou região, são resultado de uma acumulação de situações históricas, ambientais e sociais que promovem condições particulares para a produção de doenças. Uma das questões importantes para o diagnóstico de situações de saúde, nesse sentido, é o desenvolvimento de indicadores capazes de detectar e refletir condições de risco à saúde advindos de condições ambientais e sociais adversas. Esses indicadores devem permitir a identificação dos lugares, suas relações com a região, bem como a relação entre a população e seu território. É nessas relações que se desenvolvem meios propícios para o desenvolvimento de doenças e também para seu controle. (BARCELLOS et al., 2002, p. 130).

No entanto, mesmo que a utilização da territorialização38 seja promissora nos discursos sobre o âmbito da atenção primária, é importante considerar que o que conta como um Monken e processo de informações contextos de 38

Gondin (2008, sem paginação) compreendem a territorialização, por exemplo, como: “um habitar e vivenciar um território; uma técnica e um método de obtenção e análise de sobre as condições de vida e saúde de populações; um instrumento para se entender os uso do território em todos os níveis das atividades humanas (econômicos, sociais, culturais,

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território não é consenso entre os diversos atores envolvidos na produção da saúde39. Martha Priscilla Bezerra Pereira e Christovam Barcellos (2006, p. 48) comentam que há ao menos três sentidos diferentes para o termo território na saúde: “de demarcação de limites das áreas de atuação dos serviços; de reconhecimento do ambiente, população e dinâmica social existente nessas áreas; e de estabelecimento de relações horizontais com outros serviços adjacentes e verticais com centros de referência”40. O texto retirado do domínio virtual da Secretaria de Saúde de Guarulhos e reproduzido acima expressa primeiramente um sentido administrativo do território de Guarulhos e insere no território organizado através de divisões administrativas os serviços de atenção primária à saúde, as UBS. O território é o lugar onde estão distribuídos os estabelecimentos de saúde. Na mesma página, existem outras informações. Na verdade, a mesma informação só que apresentada de outras formas. Logo abaixo do texto, encontramos a tabela com os “links referentes a cada uma” das UBS (Figura 15). Cada coluna da tabela indica uma Região de Saúde, apresentando cores diferentes que complementam a distinção. No entanto, uma outra divisão aparece nessa tabela. Cada uma das Regiões é dividida em alguns distritos, sendo 19 distritos no total. E cada distrito por sua vez é formado por um conjunto de UBS. Mantendo a USF Ponte Alta como ponto de referência, podemos localizá-la no Distrito Lavras, junto com as UBS Lavras e Soberana.

políticos etc.), viabilizando o ‘território como uma categoria de análise social’; um caminho metodológico de aproximação e análise sucessivas da realidade para a produção social da saúde”. 39 Conferir Luiza Alvarenga e Cleidi Martins (2010) para a maneira que médicos e médicas de uma região de saúde da cidade de Vitória, Espírito Santo, falam sobre o território e a relação com sua prática. 40 Os autores apontam para o fato de que essa quantidade diferenciada de sentidos abre a possibilidade (não efetivada, eles alertam) de ser introduzido no campo da saúde o conceito de multiterriorialidade, que expressa de maneira mais completa a complexidade dos territórios, incluindo numa mesma perspectiva dimensões bastante distintas do território (a dimensão social, a física, a política, a econômica, a demográfica, a espacial, etc.). Na verdade, é bastante singular — e por singular, me refiro ao modo euramericano de conectar as coisas (na introdução falei em merografia, ver STRATHERN, 1993) — a forma de somar em uma perspectiva muitas outras perspectivas, isto é, ver em uma única visada tanto a natureza e a sociedade (dividida em política, economia, etc.) no território. Na verdade, discordo dos autores quando eles dizem que a pluralidade de sentidos de território em uso no campo da saúde possibilita essa atitude “integradora” e “relacional” em relação ao lugar, como eles colocam. Apesar de não elaborar minha discordância, me parece que todos os sentidos que eles apresentam podem se englobar mutuamente, portanto, é fácil estabelecer relações de subordinação entre tais sentidos, como eles mesmos apontam para a predominância de um conceito administrativo e jurídico de território em detrimento dos outros.

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Figura 15

Por fim, no final da página temos o mesmo mapa que está no mural da USF (Figura 16). Aqui reproduzo a versão colorida disponível online, ela torna visível os territórios dentro do território de Guarulhos, mostrando a área de abrangência de cada Unidade Básica de Saúde. Os outros mapas presentes no mural destacam cada uma das quatro regiões de saúde. Cada um desses artefatos que apresentei— o texto, a tabela e o mapa — é um modo de apresentar territórios. Eles são, gostaria de propor da mesma forma que fiz no capítulo anterior, maneiras de trazer à tona algum objeto. Eles são práticas de inscrição que tornam visível o território, e de uma certa forma, o fazem caber seja na tela de um computador, seja em um mural dentro da Unidade. Contudo, esses territórios no contexto da USF são exatamente apenas visualizações, eles parecem não ter tanta importância para as pessoas lá — devo dizer que acho que eu fui uma das únicas pessoas que parou para olhá-los. Mas há outras duas formas de traduzir o território dentro da Unidade que parecem exercer um papel mais importante nas relações que se desdobram por ali.

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Figura 16

Ao lado dos mapas, há uma descrição das equipes de saúde sediadas na Unidade. No total, são 6 equipes, cada uma contendo 1 médica, 1 enfermeira, 2 auxiliares de enfermagem e 7 agentes comunitários de saúde (três das equipes contam com uma dentista e uma 54

auxiliar de consultório odontológico). Mas se cada uma das descrições apresenta os profissionais de saúde que compõem as equipes, elas apresentam o território a partir de tais equipes. Aqui o território se torna outra coisa além da abrangência da atuação do estabelecimento de saúde, sendo também uma área de atuação sob a responsabilidade de uma equipe. A área divide o território através das equipes. Mas não só. Cada área compreende oficialmente um conjunto aproximado de 2.400 a 4.500 pessoas. Digo oficialmente, pois é pouco provável que todas as pessoas que vivem no território adscrito à USF consigam utilizar os serviços do estabelecimento. Dessa forma, a área é tanto a divisão do território através das seis equipes de saúde da família quanto a divisão em agrupamentos quantitativos de usuários oficiais. Outra divisão do território sucede a divisão em áreas: cada área é dividida em microáreas. Uma microárea é composta por aproximadamente 450 a 750 habitantes. Mas não só. Uma área é dividida em microáreas através da atribuição de responsabilidade sobre um conjunto de famílias para uma agente comunitária de saúde; elas (as ACS) dividem as áreas em microáreas. Assim, para se candidatar a uma vaga como ACS é preferível que a pessoa comprove residência na microárea de atuação por pelo menos dois anos 41 . A relação das ruas que compõem cada microárea e suas respectivas ACS é apresentada em outro “informe”, logo ao lado do que apresenta as áreas através das equipes. Nesse tipo de enactamento, o território organiza o trabalho dos profissionais de saúde da USF. E ao organizar o trabalho, ele organiza relações — seja entre usuários e profissionais de saúde, seja entre profissionais de saúde entre si. É esse caráter organizador do território, mais que seu caráter de espaço físico delimitado, que figura como uma questão interessante para as profissionais da Unidade. Na verdade, o território não só organiza o trabalho em equipes, mas também organiza as próprias usuárias, e mais importante seus documentos, dentro da Unidade. Na área da recepção, atrás do balcão das atendentes, há uma pequena sala. Nessa sala, estão dispostos todos os prontuários de famílias divididos por área e organizados por número de matrícula. Essa forma replica o território — já replicado, como mostrei, através de inúmeros artefatos — em prateleiras cheias de papeis. Todos os prontuários

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Território é praticamente uma categoria multi-escalar. Guarulhos, as regiões de saúde, os ditritos, as áreas de abrangências das UBS, as áreas e as microáreas são todos territórios.

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têm uma fita colorida colada nas laterais, sendo que cada área é representada por uma cor. Aqui, o poder organizativo do território facilita encontrar o prontuário da usuária em meio a tantos outros. É provável que as funcionárias e funcionários da recepção pouco conheçam o território físico adscrito à USF, mas de uma certa forma eles transitam muito bem por essa versão do território disposto em prateleiras. É esse ponto que me parece interessante. Qual o território que é conhecido pelos profissionais de saúde? Com o que apresentei aqui, é difícil elaborar uma resposta para tal pergunta, já que cada um dos termos dela abre um debate próprio. Nem território, nem conhecimento, nem profissionais de saúde se rendem facilmente a uma definição estável. O território parece ser muitas coisas e ao mesmo tempo pode ser considerado em qualquer escala das divisões operadas com o intuito de melhor administrar a oferta de saúde pública no município de Guarulhos. Os profissionais de saúde igualmente são diferenciados; para os profissionais da recepção o território só é conhecido a partir de números (que indicam área e microárea) e da disposição que os prontuários tem no arquivo. Por fim, o conhecimento é também um ponto para debate, e é com esse ponto que gostaria de concluir essa seção. Meu foco nesse relatório são as práticas de inscrição, o que poderíamos chamar de processos de documentação42. Por isso, minha ênfase no que alguns poderiam chamar de “representações” do território. Na verdade, volto a insistir no fato de que o que é interessante não é o caráter representativo das inscrições, mas sim seu efeito nas relações e, consequentemente, seu papel no que é ou não conhecível dentro da Unidade de Saúde da Família. Ao enfatizar que cada prática de inscrição objetifica o território de uma forma, isso é o mesmo que dizer que ela torna o território conhecido de uma forma específica. E o que tem de interessante nisso é que os objetos inscritos — geralmente em papéis —, duram mais, ou melhor, circulam mais que os conhecimentos mentais, isto é, os objetos que estão, digamos, na cabeça de quem anda pelo território físico. De fato, os profissionais de saúde conhecem um território a partir de suas caminhadas para fazer visitas domiciliares — especialmente as ACS —, mas esse território só é conhecido por outras pessoas em momentos que elas podem entrar em contato com uma ACS, se essa interação interpessoal não acontece, tal objeto não circula, portanto,

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Prefiro me referir a práticas de inscrição, pois me parece abranger coisas que talvez não sejam considerados oficialmente como documentos.

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poderíamos dizer que ele é pouco durável/estável. Por isso, considerar o que é conhecido em uma Unidade de Saúde da Família requer considerarmos as formas de tornar conhecimentos circuláveis (objetificá-los) e os “documentos”, insisto, são uma forma de circular conhecimentos. Mas isso deve ser feito com uma cautela, os processos de circulação de conhecimentos através de documentos não são neutros; como mediadores, os documentos operam traduções, isto é, trazem à existência, performam ou enactam objetos singulares. Assim, abordar documentos simplesmente como representações obscurece o que lhes é mais interessante: sua agência. E dessa forma, se torna difícil consideramos os tipos de emaranhados relacionais que são criados na companhia de documentos43 (voltarei a esse ponto na conclusão deste relatório). Mas um problema surge quando nos direcionamos para a consideração do que é uma comunidade. Diferentemente do indivíduo, ela não encontra tanta expressão em práticas de inscrição. Arriscaria dizer que em nenhum momento a comunidade aparece como o foco explícito de processos de documentação — pelo menos não me deparei com nenhum44. Contudo, isso não quer dizer que ela não esteja por lá, na USF. De fato, a comunidade parece estar sempre à espreita e isso em um sentido bastante literal. Mas antes de desenvolver esse ponto, preciso trazer novamente o território.

Abstração: marcando o território e definindo a comunidade O primeiro volume dos Cadernos da Atenção Básica é dedicado ao processo de implantação da Estratégia de Saúde da Família45 em um município (BRASIL, 2000). Ele fornece uma introdução e instruções para que o município que assim desejar ponha em prática “a nova estratégia do setor saúde”, como afirma o manual. Os passos definidos para a operacionalização da ESF são: (1) debate e divulgação da proposta; (2) elaboração do projeto de implantação; (3) aprovação do projeto de implantação; (3) recrutamento, seleção e contratação de profissionais para as Equipes de Saúde da Família. Focarei na elaboração do projeto de implantação devido a centralidade que as práticas de territorialização têm para esse momento da implantação da ESF. O primeiro passo,

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Poderíamos dizer que documentos são uma companion species (Haraway, 2003) no contexto da Unidade de Saúde da Família. 44 Vale enfatizar que estou considerando práticas de inscrição que ocorrem na Unidade, mais a frente veremos que a comunidade já vai “inscrita” para lá de outros lugares. 45 No momento em que a publicação foi lançada ainda era utilizado o termo Programa Saúde da Família.

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realizado pelo “Município” (com a ajuda da Secretaria Estadual de Saúde, caso necessário), é identificar as áreas prioritárias, isto é, aquelas cuja população/comunidade tenham difícil acesso aos estabelecimentos de atenção básica à saúde e, principalmente, aquelas que apresentam altos “riscos sociais [...] que normalmente vêm associados a um maior risco de adoecer/morrer”46 (BRASIL, 2000, p. 21-22). Com as áreas prioritárias definidas é preciso fazer o levantamento do número de habitantes para que se possa calcular o número de equipes e ACS. Nesse momento, é quando a comunidade começa a ganhar contornos dentro do território. Mas ela ainda não está feita por completo. Voltarei para esse ponto logo mais, pois ainda há uma última etapa para a elaboração do projeto de implantação. É nessa etapa em que o território é mapeado em áreas e microáreas. A tarefa de “mapeamento pode ser elaborada copiandose de uma planta atualizada do Município, em papel manteiga, as áreas consideradas prioritárias para implantação. Feito isso, faz-se a divisão das áreas de atuação de cada equipe que, por sua vez, serão divididas em microáreas, nas quais os ACS deverão atuar” (BRASIL, 2000, p. 22). O processo de demarcação do território de abrangência de uma Unidade de Saúde da Família é também o momento em que a comunidade é demarcada. Dessa forma, a comunidade e o território tem uma relação direta, mas um não é o outro, mesmo que eles pareçam coincidir. Na verdade, quando relacionada ao território, a comunidade é contida por ele. A comunidade está no território e, portanto, é afetada por ele — por isso o território, como disse anteriormente, se torna uma categoria útil para a produção da saúde (coletiva/comunitária). O fato da comunidade se apresentar relacionada ao território desdobra dois pontos interessantes. Primeiro, ela se torna intercambiável com a ideia de população. Na leitura de qualquer publicação sobre a ESF é perceptível que termos como comunidade e população são usados como sinônimos. Mas em outros momentos, população e comunidade se diferenciam. O mesmo acontece com os termos grupos e comunidades, em alguns momentos parecem ser a mesma coisa, em outros não. Eu não teria como realizar aqui uma arqueologia de objetos como a população e a comunidade, para o caso

A publicação exemplifica como riscos sociais: “altos índices de desemprego, criminalidade, prostituição, crianças fora da escola e outros” (BRASIL, 2000, p. 22). Sobre a utilização do conceito de risco na atenção básica conferir Navarro, 2009; e Neves & Guilam, 2007. Coelho (2011) também apresenta uma discussão do conceito de risco, assim como o de vulnerabilidade, em sua dissertação de mestrado. 46

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da primeira categoria Michel Foucault (2009) dedicou um curso inteiro. Mas é importante dizer que qualquer que seja o termo utilizado — população, comunidade, grupo — o que parece estar tentando transmitir é um sentido de coletivo que expresse de algum modo uma distinção entre um ente individual e um ente coletivo. Contudo, há mais para ser dito. A conexão direta com o território parece também dotar a comunidade de efeitos depositários. Ou seja, a comunidade se torna o lugar onde uma ação é exercida, e antes de marcar um modo coletivo de agência, poderíamos dizer, ela orienta uma agência geralmente individual (da profissional de saúde) para um fim coletivo. Portanto, menos que indicar uma agência coletiva, ela indica uma paciência coletiva. É essa renderização da comunidade enquanto paciente coletivo de uma agência individual que permite que se descreva o trabalho de uma profissional da saúde enquanto um trabalho comunitário — mesmo que tudo o que tal profissional faça seja intervir em indivíduos. Desse modo, o atendimento individual se torna atendimento coletivo; o indivíduo (sob intervenção) traduz a comunidade (sob intervenção). O argumento até aqui não é novo. Na verdade, eu já o esbocei em alguns outros momentos deste relatório quando apontei que o modo em que as unidades de intervenção são conectadas pode ser descrito como merográfico. Não retomarei a discussão sobre o que são conexões merográficas, gostaria, ao invés disso, de colocar a questão em outros termos, que espero auxiliem no esclarecimento do meu argumento. Quando a comunidade é apresentada enquanto uma forma de ente coletivo, isto é, enquanto um objeto que retém uma singularidade própria, o efeito de contextualização que ela opera quando em relação com o indivíduo (“o indivíduo pertence à comunidade e, portanto, ela influencia em sua situação de saúde”) é deslocado para o território; aqui é o território, ou melhor, a consciência da territorialização da comunidade que opera o efeito de contextualização. Assim, o território em relação à comunidade faz o que esta faz em relação ao indivíduo, mas em uma escala diferente. O que é interessante é perceber que o tipo de conexão estabelecida entre cada um dos pares — comunidade/território e indivíduo/comunidade — permanece a mesma. Portanto, o mesmo axioma que diz que é importante conhecer o contexto da comunidade em que vive o indivíduo, se replica na fórmula de conhecer o território para garantir a saúde comunitária. Mas no contexto da prática, as duas conexões não permanecem tão simétricas. No primeiro caso, quando o indivíduo é o foco explícito da intervenção dos profissionais da 59

saúde e a comunidade permanece implícita enquanto contexto, a ação realizada sobre o indivíduo é, por extensão, uma ação na comunidade. No segundo caso, acontece algo diferente. Quando a comunidade é o foco de intervenção e o território o contexto implícito, a ação incide sobre o território, pois uma mudança no território implica em uma mudança da situação de saúde coletiva/comunitária. O que acontece é que a comunidade parece nunca aparecer numa forma própria enquanto unidade de intervenção; parece ser possível apenas intervir na comunidade por meio da intervenção em outros objetos47. Destarte, a comunidade se torna um objeto abstrato. É algo que temos acesso apenas através de sua relação com a concretude de um outro objeto. O “surto” de casos de dengue fornece um bom exemplo para isso. Qualquer enfermidade descrita em termos epidemiológicos (i.e., coletivos) oferece uma chance para se considerar a comunidade enquanto unidade de intervenção de profissionais da saúde. Durante os primeiros meses do ano, entre janeiro e março, período de temperaturas quentes e chuvas, é sabido — pelo menos pelas profissionais que trabalham na USF — que haverá uma enxurrada de pessoas que se queixarão de dengue. O ano de 2015 não os provou errados. Em todos os dias que ia para a Unidade fazer trabalho de campo nos meses iniciais do ano, uma grande quantidade de usuárias e usuários buscavam atendimento na USF informando (“queixando-se”, como se costuma escrever nos prontuários) sintomas relacionados à dengue. Essas usuárias passavam pelo que é chamado de acolhimento, que consiste em uma versão da consulta médica que é realizada por uma enfermeira. Cada dia da semana, normalmente, é uma das cinco enfermeiras que atuam na USF que fica responsável pelos acolhimentos. Para chegar à sala de acolhimento, a usuária faz um percurso semelhante àquele para chegar na sala de medicação — na verdade, uma está ao lado da outra. Primeiro, ela entrega seu “cartão do posto” na mesa da recepção e aguarda enquanto uma funcionária busca no arquivo — através da área, microárea e família/matrícula — o prontuário familiar que contêm todos seus documentos que foram produzidos enquanto usuária da Unidade. O prontuário é depositado em uma caixa que pode ser vista da sala de acolhimento e ao vê-lo, a enfermeira o busca e chama pelo nome da pessoa na folha de 47

Claramente existem propostas que buscam mudar os chamados hábitos comunitários (indesejáveis), mas mesmo nessas propostas a mudança é feita, por exemplo, através de conscientização de indivíduos na esperança de que eles iniciem mudanças entre as pessoas mais próximas.

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evolução clínica que está destacada das demais presentes dentro do prontuário. A partir desse ponto é que a usuária pode exprimir suas queixas. Geralmente, a queixa se dá com a usuária informando para a enfermeira que ela acha que está com dengue. Mas o auto-diagnóstico dela não é suficiente. A enfermeira prossegue perguntando o porquê ela acredita ter “pegado dengue”. Muitas vezes, uma autoetnografia se desenrola durante essas “consultas”, e a usuária descreve todos os detalhes que a levaram a tal suspeita. Se a descrição convence a enfermeira de que vale a pena prosseguir com os procedimentos, ela escreve na folha de evolução clínica alguns procedimentos que deverão ser realizados pela usuária na sala de medicação. Mas o convencimento se dá somente se no relato da usuária constarem a indicação da associação de febre persistente por um período menor a sete dias e mais dois sintomas reconhecidos da dengue, requisitos definidos pelo Ministério da Saúde48 (BRASIL, 2007 e 2009). No encaminhamento para a sala de medicação, os procedimentos pedidos geralmente são a medição da temperatura, a aferição da pressão arterial sentada (em posição de repouso) e em pé e a realização da “prova do laço”. A prova ou teste do laço é realizada insuflando o manguito do aparelho de pressão até o ponto da média entre a pressão sistólica e diastólica da usuária e aguardando, em adultos, um período de cinco minutos antes da liberação da pressão. Desenha-se com caneta, abaixo do local onde estava o manguito, um quadrado de aproximadamente dois centímetro e meio de lado e conta-se as petéquias (pequenas manchas vermelhas ou escuras) que se formaram em seu interior. O resultado da prova do laço é expresso através de “positivo” ou “negativo”, sendo positivo quando o número de petéquias, em adultos, é superior a vinte49. Mas de todas as provas do laço que acompanhei, confesso que apenas uma porcentagem bastante pequena resultou positiva, mesmo que o número de casos de dengue confirmados através de exame laboratorial tenha sido muito maior50. Isso gerava uma dupla suspeita nas profissionais de saúde (enfermeiras e auxiliares de enfermagem). Primeiro, elas

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Além do fato da pessoa ter estado nos últimos 15 dias em local com casos de dengue confirmados. Mas como o município de Guarulhos estava passando por um “surto” da doença, essa informação nem era solicitada pelas enfermeiras. 49 Há também a solicitação de exame de sorologia e hemograma (contagem de plaquetas), feito em um laboratório privado a partir de amostra de sangue retirada da usuária. Não entrarei em detalhes sobre esses dois procedimentos, pois eles são aplicados conforme orientação da vigilância epidemiológica. No começo do surto, a orientação era coletar sangue de todos os casos de suspeita, após um certo período, apenas aqueles com prova do laço positiva tinham exame de sangue feito. 50 Muito casos confirmados pela sorologia realizada a partir de sangue coletado da usuária com suspeita de dengue não eram acompanhados de uma confirmação através da prova do laço.

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duvidavam da eficácia da prova do laço em diagnosticar a dengue e frequentemente diziam que ela só dava certo quando as pessoas já estavam morrendo da doença. No entanto, em outros momentos, não era a eficácia do procedimento que elas duvidavam, mas a própria queixa das usuárias e usuários que era vista com suspeitas. Elas pareciam muitas vezes certas de que vários dos casos de dengue eram apenas “enrolação”, que qualquer sintoma, mesmo de um leve resfriado, fazia com que as pessoas fossem se queixar de dengue. Cada uma dessas dúvidas era expressa em contextos muito diferentes. Diante das usuárias com suspeita não confirmadas, elas falavam apenas da aparente ineficácia do procedimento; mas diante de usuárias com a confirmação laboratorial de dengue e entre si, se somava à dúvida da ineficácia do procedimento a dúvida acerca da queixa das demais usuárias. Contudo, cada caso de suspeita de dengue gera uma notificação que será informada através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Durante o atendimento, além das inscrições na folha de evolução clínica é produzido também outro documento: a ficha de investigação (Figura 17 e 18). Essa ficha é utilizada para coletar as informações necessárias para fazer a alimentação dos dados de notificação no SINAN e suas características estéticas fornecem um ponto interessante para as discussões apresentadas anteriormente acerca da comunidade. Como disse acima, qualquer doença com características epidemiológicas oferece uma oportunidade para a emergência da comunidade como unidade de intervenção. Na verdade, poderíamos recolocar a questão de outra forma, afirmando que a comunidade aparece sempre que há uma preocupação com a Vigilância em Saúde. A Vigilância em Saúde é, de fato, definida de forma a colocar a saúde da comunidade como um foco privilegiado. A Vigilância em Saúde, entendida como uma forma de pensar e agir, tem como objetivo a análise permanente da situação de saúde da população e a organização e execução de práticas de saúde adequadas ao enfrentamento dos problemas existentes. É composta pelas ações de vigilância, promoção, prevenção e controle de doenças e agravos à saúde, devendo constituir-se em um espaço de articulação de conhecimentos e técnicas vindos da epidemiologia, do planejamento e das ciências sociais, é, pois, referencial para mudanças do modelo de atenção. Deve estar inserida cotidianamente na prática das equipes de saúde de Atenção Básica. As equipes Saúde da Família, a partir das ferramentas da vigilância, desenvolvem habilidades de programação e planejamento, de maneira a organizar ações programadas e de atenção a demanda espontânea, que garantam

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o acesso da população em diferentes atividades e ações de saúde e, desta maneira, gradativamente impacta sobre os principais indicadores de saúde, mudando a qualidade de vida daquela comunidade. (BRASIL, 2007, p. 10)

É a preocupação com o planejamento e organização de ações programadas e de demandas espontâneas, delimitada pela Vigilância em Saúde, que faz necessário a produção da ficha de investigação e a constante alimentação de dados no SINAN51. O manual do Ministério da Saúde sobre Vigilância em Saúde (BRASIL, 2007, p. 16) é explícito ao afirmar que a “informação é instrumento essencial para a tomada de decisões, ferramenta imprescindível à Vigilância em Saúde, por ser o fator desencadeador do processo ‘informação-decisão-ação’”. As primeiras informações solicitadas pela ficha de investigação são informações sobre o estabelecimento de saúde que produz a notificação e seu município sede. Encapsuladas sob o título de dados gerais, tais informações compartilham espaço com a data da notificação52 e a data dos primeiros sintomas que são relatados pela usuária. Essas são as informações mais importantes — por isso as primeiras, proporia — para a composição da dengue enquanto uma questão de saúde comunitária, não uma questão de saúde individual. Os dados de identificação individual, divididos em duas seções — notificação individual e dados da residência — são solicitados em seguida, como informações secundárias. Por fim, a ficha pede informações sobre os dados laboratoriais e conclusão do caso.

“O Sinan é atualmente alimentado, principalmente, pela notificação e investigação de casos de doenças e agravos que constam da Lista Nacional de Doenças de Notificação Compulsória em todo Território Nacional - LDNC, conforme Portaria SVS/MS nº. 05, de 21/02/2006, podendo os estados e municípios incluir outros problemas de saúde pública, que considerem importantes para a sua região.” (BRASIL, 2007, p. 16) 52 No caso da dengue, as notificações devem ser enviadas eletronicamente semanalmente, por isso, a data de notificação pode diferir da data de envio dos dados. 51

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Figura 17

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Figura 18

É através da soma das notificações individuais, acumuladas no SINAN, que um município pode mapear os focos de dengue dispersos nas diferentes regiões de saúde. E, ao mesmo, pode produzir uma preocupação comunitária. Nesse ponto, vemos uma instanciação de um dos argumentos que elaborei acima. É através de atendimentos individuais que, de alguma forma, se intervém na comunidade, mas isso acontece exatamente quando a comunidade já foi feita através de intervenções individuais. O processo é circular, mas sua circularidade é mascarada pela organização hierárquica do sistema de informações que compõe a comunidade como um objeto. São as informações alimentadas a partir do contexto da USF que são transformadas em um perfil “epidemiológico” da comunidade. Mas ao retornar à USF na forma de comunidade (através de ações programadas, 65

estatísticas, informes de saúde da população, etc.), o que os dados fazem é converter a intervenção individual em intervenção comunitária. E quanto mais intervenção, mais dados serão alimentados nos sistemas de informação e consequentemente mais estabilizada a questão se torna em termos de problema comunitário. Durante o surto de dengue do início do ano, foram alocados funcionários da prefeitura municipal para diferentes USF/UBS de Guarulhos com o intuito de contribuir para um conjunto de ações que visavam a conscientização da comunidade e a intervenção em possíveis criadouros do vetor da dengue. As ações novamente tinham como foco explícito a comunidade, mas, por exemplo, no caso da erradicação dos criadouros a intervenção incidia no território e nos domicílios. A própria proposta da conscientização opera esse tipo de conversão de alguma coisa em “comunidade”, no caso, as mentalidades e atitudes individuais em mentalidades e atitudes coletivas53. Nesse contexto de epidemia de dengue, é evidente, espero, o fato da comunidade, enquanto objeto de intervenção na atenção básica, existir enquanto algo abstrato que só pode ser apreendido através de outro objeto mais concreto que, devido ao tipo de conexão que eles estabelecem entre si, facilmente permite sua conversão em comunidade. Aqui os dois objetos que permitem tal operação são o indivíduo e o território. Mas gostaria de concluir essa seção com mais uma forma da comunidade figurar durante o surto de dengue (diferente das anteriores) e que introduz o próximo ponto da minha exposição. O que quero evidenciar é que se a comunidade é composta através de uma conversão de “casos individuais”, ela pode, ainda sim, ser posta em conflito ao indivíduo. Dessa forma, se em um momento o indivíduo está dentro da comunidade e de certa forma é a própria comunidade na forma de um índice a ser convertido, em outros, ele está fora, como uma entidade autônoma que pode entrar em tipos diferentes de relações com a comunidade, sendo esta também renderizada como outra entidade autônoma — novamente o trabalho das conexões merográficas. Numa conversa com uma usuária com dengue que se queixava de que ela sempre tomou cuidado para não manter nenhum criadouro do “mosquito da dengue”, uma auxiliar a

Em um artigo de orientação, Dráuzio Varella (2011) é explicito em afirmar que “É fundamental conscientizar as pessoas de que combater o mosquito da dengue [...] requer empenho de toda a sociedade, uma vez que o Aedes aegypti pode encontrar, em cada moradia e arredores, ambiente propício para sua proliferação”. De maneira mais ampla, sobre a conscientização em saúde, ou educação em saúde como formas de “atingir” a comunidade, conferir Sousa Machado et al. (2007), 53

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consola dizendo que a culpa é da comunidade que nunca aprende e que todo ano é sempre a mesma coisa. Aqui a comunidade está em oposição à usuária individual, mesmo que a notificação de seu caso ajude a fazer essa comunidade que todo ano apresenta um surto de dengue, porque nunca aprende.

Participação: a comunidade contra a Unidade de Saúde da Família É exatamente uma relação de oposição que será o foco desta seção. Apesar de que os modos da comunidade figurar que serão apresentados nesta seção não são unidades de intervenção. Na verdade, ela aparecerá enquanto uma “interventora”54. Uma vez por mês, acontecem duas reuniões na USF em que há, como dizem, a participação da comunidade: o Conselho Gestor e o Controle Social. Ambas acontecem no mesmo dia, uma após a outra. Apesar de cada uma ter um fim específico, elas acabam não sendo diferenciadas na prática, sendo descritas apenas como um lugar onde a comunidade pode dizer os problemas que ela percebe na Unidade. Contudo, uma de minhas interlocutoras, que participa de ambas as reuniões como uma das representantes da Unidade por parte das funcionárias, frequentemente dizia, quando perguntava sobre as reuniões, que elas não davam em nada. Eram apenas perda de tempo. A participação da comunidade no sistema de atenção à saúde é uma importante conquista que pode ser rastreada até a 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986, marco significativo para a consolidação da saúde enquanto um direito de todas e todos. A participação social, nomeada na época de participação popular, é elencada no relatório da 8ª Conferência como uma garantia para o efetivo exercício do direito à saúde. De fato, um relato que conta a experiência da criação de um Conselho Local de Saúde, afirma que se “a saúde é uma questão de cidadania e a participação da população é uma condição para seu exercício, a inexistência de controle social reflete uma falha no processo de ‘fazer’ saúde” (FURTADO et al., 2013, p. 4). O que me interessa aqui não é reconsiderar a importância ou não da participação social, tampouco descobrir a real eficácia do Conselho Gestor ou do Controle Social em resolver os problemas identificados pela comunidade e pelas profissionais de saúde. O que vou me ater é a esboçar um comentário sobre o tipo de conexão entre a “comunidade” e a 54

Também vale a pena notar que me afastarei das práticas de inscrição.

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Unidade de Saúde da Família que é efetivada quando a questão colocada em evidência é a da participação comunitária. Para isso, talvez seja importante apresentar uma citação que condensa muito do argumento que tentarei expressar. O contexto da citação é uma discussão acerca da relação entre as equipes (multi)profissionais e a (participação da) comunidade. O controle social é a expressão mais viva da participação da sociedade nas decisões tomadas pelo Estado no interesse geral, suas manifestações mais importantes são o cidadão e o usuário no centro do processo de avaliação, deixando o Estado de ser o árbitro infalível do interesse coletivo, do bem-comum. (CREVELIM & PEDUZZI, 2005, p. 325)

As autoras ainda comentam que: A participação cidadã caracteriza-se pela substituição da categoria comunidade ou povo, pela sociedade como categoria central. Este conceito está fundamentado na universalização dos direitos sociais, na ampliação do conceito de cidadania e em uma nova compreensão do caráter do Estado, remetendo à definição das prioridades nas políticas públicas com base em um debate público” (Ibid., p. 326)

Durante meu trabalho de campo, posso dizer que essa substituição da categoria “comunidade” pela de “sociedade” não é tão clara para os atores que pude encontrar pela USF. Ambas as categorias são utilizadas como sinônimos. Mas o fato de Maria Angélica Crevelim e Marina Peduzzi ressaltarem tal mudança é interessante para lançar luz ao fato de que quando a “comunidade” participa, isto é, quando um/uma representante da comunidade está presente em espaços de discussão dentro na USF, é como se a própria sociedade estive presente. Dessa forma, da maneira que a sociedade (civil) exerce um controle sobre o Estado, a comunidade parece controlar a Unidade de Saúde da Família. Portanto, quando a participação está em jogo, o que parece ser efetuado é uma relação quase antagônica e reguladora entre Unidade e comunidade. E isso tem efeitos bastante interessantes — mas antes de comentar sobre eles, deixe-me elaborar melhor o argumento. Para alguém da Antropologia Social, é bastante significativo a maneira pela qual num campo distinto — o da saúde — uma entidade tão comumente invocada em trabalhos da disciplina, sociedade, ganha espaço dentro de um estabelecimento de saúde. A reuniões de Controle Social são exatamente uma forma de garantir que a comunidade/sociedade tenha espaço para fazer valer sua posição. Na verdade, a participação está preocupada exatamente com as posições e em como essas posições se diferenciam e no limite mantém

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separados os interesses, tornado o próprio debate uma atividade inócua (STRATHERN, 2006)55 — como afirmou minha interlocutora: “não dá em nada”. Mesmo assim, a participação ainda retém um êxito importante. Ao ser descrita como a “expressão mais viva” da sociedade, ela fornece uma legitimidade maior às decisões tomadas, mesmo que através de um debate truncado pela necessidade de garantir o respeito e o espaço da posição de cada participante. Aqui o argumento retira sua força das discussões contemporâneas acerca do que tem sido chamado de “nova economia do conhecimento”. Por economia do conhecimento ou economia baseada em conhecimento, me refiro às novas maneiras pelas quais o conhecimento se torna parte de processos de produção de valor. Walter Powell e Kaisa Snellman (2004) oferecem uma definição interessante, que os ajudou a ir além da aparente grande amplitude de tal conceito, que coloca no centro exatamente a importância que o conhecimento tem para novos processos de produção e prestação de serviços. Nós definimos a economia do conhecimento como produção e prestação de serviços baseadas em atividades em que há utilização intensiva de conhecimento que contribue para um ritmo acelerado de avanços tecnológicos e científicos, assim como, uma igualmente rápida obsolescência.

Os

componentes

fundamentais

da

economia

do

conhecimento incluem uma grande confiança em capacidades intelectuais mais do que em atividades físicas e recursos naturais, combinada com esforços para integrar aperfeiçoamentos em cada um dos estágios do processo de produção [...]. (POWELL & SNELLMAN, 2004, 201) Mas é um trabalho conjunto entre Michael Gibbons, Camille Limoges, Helga Nowotny, Simon Schwartzman, Peter Scott e Martin Trow, primeiramente publicado em 1994, que aponta o que seriam as transformações que a produção de conhecimento passaria com seu novo papel na economia do conhecimento. O coletivo de autores busca diferenciar dois modos distintos de conhecimento que eles descrevem em termos de Modo 1 e Modo 2. No Modo 1, conhecimento científico é produzido a partir de problemas que são colocados e resolvidos através uma comunidade formada de interesses largamente acadêmicos e

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Pois o que importa são as posições existentes antes do debate. Fazendo que o debate participativo seja uma forma de mantê-las sem alteração.

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definidos em termos disciplinares. Já o Modo 2 se orienta a partir do contexto de sua aplicação, definido largamente em objetivos que ultrapassam problemas internos às disciplinas acadêmicas. O contraste relevante aqui é entre a solução de problemas que é executada seguindo os códigos de prática relevantes para uma disciplina particular e a solução de problemas que é organizada em torno de uma aplicação particular. Na primeira, o contexto é definido em relação às normas cognitivas e sociais que governam pesquisas de base ou ciências acadêmicas. Ultimamente, isto tem tendido a implicas uma produção de conhecimentos executada sem a presença de alguma finalidade prática. No Modo 2, ao contrário, conhecimento resulta de uma ampla gama de considerações. Tal conhecimento é tem a intenção de ser útil para alguém seja na indústria ou governo, ou para a sociedade em geral e este imperativo está presente desde o começo. Conhecimento é sempre produzido sob um aspecto de contínua negociação e não será produzido a não ser que e até que os interesses de vários atores estejam incluídos. Tal é o contexto de aplicação. Aplicação, neste sentido, não é o desenvolvimento de produto levado a cabo pela indústria e os processos e mercados [markets] que operam para determinar que conhecimento é produzido é muito mais amplo que normalmente é sugerido quando se fala de levar ideias ao mercado [marketplace]. Não obstante, a produção de conhecimento no Modo 2 é o resultado de um processo no qual fatores de oferta e demanda podem operar, mas as origens da oferta são cada vez mais diversas, assim como são as demandas por formas diferenciadas de conhecimento especializado. Tais processos ou mercados [markets] especificam o que nós queremos dizer por contexto de aplicação. Pelo fato de que elas incluem muito mais do que considerações comerciais, pode-se dizer que as ciências no Modo 2 foram além do mercado [market]! A produção de conhecimento se difunde pela/através da [throughout] sociedade. É por esse motivo que podemos falar de conhecimento socialmente distribuído. (GIBBONS et al., 1994, p. 3-4)

Por isso que é possível falar em uma economia do conhecimento também. É exatamente nesse contexto, gostaria de propor, que a participação da comunidade (ou controle social) se insere como um modo de produzir conhecimento no contexto de aplicação (Modo 2). O que se desdobra do controle social é que a sociedade se torna simultaneamente uma participante do processo de produção de conhecimento, o objeto cuja intervenção de tais conhecimentos é direcionada e a avaliadora/reguladora (uma forma de auditora) desse próprio conhecimento. A comunidade traduzida em sociedade aparentemente está em todos os lugares/momentos. Essa ubiquidade da participação da comunidade/sociedade aliada ao fato de que indivíduos podem ser convertidos em comunidade (ver seção anterior), torna 70

problemática a relação de antagonismo com a Unidade que apontei anteriormente. É importante, agora, considerar mais atentamente os efeitos de tal relação. As auxiliares de enfermagem e as enfermeiras várias vezes me disseram que tudo que acontece na USF vira papel. Na verdade, me parece que muitas das ansiedades que elas têm derivam da quantidade de documentos que elas precisam produzir ao longo de um dia de trabalho56. Apesar de considerarem a maioria dos documentos que elas têm de produzir como inúteis e “perda de tempo”, é comum o sentimento entre tais profissionais de que esses papéis exercem uma forma de controle sobre elas. Uma enfermeira me descreveu certa vez que elas são “reféns” dos documentos e da burocracia. Mas o tipo de controle exercido pelos documentos é um tanto quanto peculiar. Isso porque o que os documentos impelem as profissionais a fazer é uma forma de auto-controle ou autovigilância. Através da constante (auto) descrição e redescrição que auxiliares e enfermeiras (e demais profissionais da saúde) precisam efetuar acerca de seu trabalho, elas tornam seu trabalho aberto ao controle por si mesmas e ao controle de outros atores nas redes da burocracia da atenção à saúde. Ao pensar no controle social efetuado pela comunidade, a impressão que elas têm é que seu trabalho é exageradamente vigiado e controlado. Está constantemente sobre avaliação e escrutínio de alguém (além de si mesmas). Pois a comunidade/sociedade está em todo lugar/momento, assim como as usuárias e usuários que podem ser traduzidos em comunidade. Dessa forma, a cada nova interação entre profissionais da saúde e usuárias há a possibilidade das primeiras serem objeto de controle/avaliação da comunidade, pois sempre em que alguma usuária parece entrar em conflito com o trabalho realizado na USF, as profissionais da saúde descrevem o conflito como a falta da compreensão da comunidade. A comunidade emerge em contraposição às próprias profissionais, que passam a indexicar a própria Unidade de Saúde como um todo. Em certo sentido, a USF, quando sob o controle da comunidade, passa a ser o trabalho realizado por auxiliares de enfermagem, enfermeiras e médicas. E se o trabalho que elas realizam está, como elas afirmam, sempre sendo controlado, a própria Unidade “como um todo” é vigiada pela sociedade/comunidade.

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Essa insistência em produzir documentos que façam informações circularem poderia ser uma outra forma de apresentar a nova economia do conhecimento.

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O que é a saúde da comunidade? A mesma questão que me coloquei no capítulo anterior acerca dos motivos pelos quais mantive a designação “indivíduo” para as diferentes figurações/formas que descrevi pode ser transplantada para esse. Na verdade, o empreendimento foi bastante similar, acredito. Aqui também tentei mostrar que a partir do termo “comunidade” podemos chegar a diferentes objetos que apenas parcialmente coincidem entre si. Temos uma comunidade que intervém e que sofre com intervenções. Temos uma comunidade tanto como conteúdo quanto como recipiente. Temos comunidades abstratas, territorializadas e, inclusive, comunidades cujo caráter coletivo é apresentado em formas individuais. Diante dessa multiplicidade de comunidades é possível, gostaria de argumentar, nos movermos da questão do porquê manter o termo comunidade57 para designar diferentes objetos em direção à questão sobre o que acontece, então, com a atenção à saúde da comunidade perante tal multiplicidade. O que é, por fim, a saúde da comunidade? Essa me parece uma questão que devemos enfrentar. Nesta conclusão, no entanto, não pretendo fornecer uma resposta. Muito menos que isso: me interessa explicitar alguns caminhos que já estão apresentados nas sessões anteriores de maneira indireta. O primeiro caminho precisa levar em conta o modo pelo qual a comunidade, quando paciente coletiva de uma agência individual, torna a intervenção individual em intervenção comunitária. Nesse contexto, poderíamos talvez dizer que não há uma diferença substancial entre a saúde do indivíduo e a saúde da comunidade, ambas indicam uma mesma coisa que pode ser descrita ou valorizada a partir de duas “perspectivas” diferentes. Mas mesmo assim, a questão sobre o que é a saúde da comunidade perante a multiplicidade não se fecha, pois devemos lembrar que o próprio indivíduo que pode ser visto como comunidade é múltiplo. Num segundo caminho a saúde da comunidade é sempre um artefato produzido a posteriori. Aqui, me refiro aos processos de circulação de informação em casos de doenças que compõe perfis epidemiológicos e, portanto, são preocupações de ordem de vigilância sanitária que compõem comunidades através de conjuntos de intervenções individuais. Algo que parece muito com o caminho anterior, mas que na verdade apresenta uma diferença importante. Enquanto lá, a conversão ocorre em “tempo real”, indivíduos são índice da comunidade no momento em que se apresentam na Unidade; 57

Questão colocada, vale mencionar, por Luis David Castiel (2004).

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aqui, a conversão de um no outro ocorre em um momento distinto, pois informações/dados sobre situações individuais de saúde precisam ser coletadas e transformadas em algum lugar específico antes de retornarem para USF na forma de situação de saúde da comunidade. Nesse caso, uma profissional nunca sabe no momento de sua intervenção junto a indivíduos se de fato a intervenção terá efeitos na comunidade, pois a comunidade só aparece depois. Um outro caminho precisa considerar que a comunidade precisa participar da produção de sua própria saúde. Aqui a saúde comunitária acontece através de intervenções feitas por profissionais da saúde que são, ao mesmo tempo, informadas pela comunidade (ou tiveram a participação dela) e supervisionadas por ela. A comunidade como unidade de intervenção, nesse caso, só é possível, pois antes é uma interventora na prestação de serviços atenção à saúde. Esses são os caminhos que acho interessante percorre na solução da questão acerca do que é a saúde da comunidade e da questão posterior do que é uma boa ou má saúde comunitária. Mas deliberadamente deixei de lado um outro percurso que não apresentei. E, como nos caminhos anteriores, me resignarei a apenas indicá-lo. O que deixei de fora desse capítulo é o papel que um conjunto de atores tem na composição da comunidade e de sua saúde: os agentes comunitários de saúde. Infelizmente, meu trabalho de campo não dedicou atenção à atuação dessas e desses profissionais, por isso, decidi não os incorporar a este relato.

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Capítulo 3

FAMÍLIA “A família também tem sua contrapartida concreta, assim como sua conceitualização abstrata.” David Schneider, American kinship.

O fogão, o domicílio e a família Intrigado com o fato dos prontuários familiares serem organizados através de endereços residenciais — isto é, as pessoas eram identificadas como sendo de uma mesma família, por terem o mesmo endereço — perguntei a algumas auxiliares de enfermagem como elas separam diferentes famílias que moram no mesmo endereço. De maneira mais clara, minha questão era sobre qual elemento diferenciava “famílias” quando esse trabalho não era possível de ser realizado pelo endereço residencial. A resposta que recebi me deixou um tanto surpreso e confesso que até pouco tempo não sabia o que fazer com ela. Minhas interlocutoras foram bastante incisivas em me explicar que as famílias poderiam ser distinguidas através de fogões. Ou seja, a existência de mais de um fogão em um mesmo endereço residencial poderia indicar a existência de mais de uma família. Um fogão, elas me disseram, equivale a uma família. Essa é uma forma inusitada de fazer famílias. Esse pequeno relato ajuda a preparar o terreno paras as diferentes e criativas maneiras pela qual a família, tanto como um objeto de conhecimento quanto como uma unidade de intervenção, é trazida à existência na Atenção Básica à Saúde e na Estratégia de Saúde da Família. Mas devo antecipar algo que parece transmitir o mesmo efeito de surpresa que a equação entre fogão e família. Mesmo sendo a unidade que nomeia a organização da prestação de serviços na atenção básica (Estratégia de Saúde da Família), a família pouco aparece na Unidade de Saúde da Família. Tal fato torna uma tarefa difícil, a escrita desse capítulo. Talvez seja interessante começar pela dimensão discursiva da questão e seguir as maneiras que a família entra nas considerações acerca da produção da saúde. A Estratégia de Saúde da Família, antes chamada de Programa Saúde da Família, foi criada em 1994 como uma forma de reestruturar o Sistema Único de Saúde de modo a efetivar o direito à saúde para todos. Uma publicação do Ministério da Saúde que indica 74

o potencial da ESF em reorientar o modelo assistencial vigente — visto como insuficiente para a melhoria das condições de saúde da população — define como objetivo geral da ESF “a reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica, em conformidade com os princípios do Sistema Único de Saúde, imprimindo uma nova dinâmica de atuação nas unidades básicas de saúde, com definição de responsabilidades entre os serviços de saúde e a população” (BRASIL, 1997, p. 10). O mesmo documento ainda aponta que tal reorientação, encapsulada no “estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-responsabilidade entre os profissionais de saúde e a população” (BRASIL, 1997, p. 7), “só é possível através da mudança do objeto de atenção” (Ibid., p. 11). Essa mudança de foco faz com que “a família passe a ser o objeto precípuo de atenção” (Idem — grifo meu). É bastante significativo que nas descrições que se faz da ESF esta atenção à família figura como uma forma de evidenciar a proximidade que as USF e suas equipes de profissionais mantêm com a população. “O programa [...] estabelece uma relação permanente entre os profissionais de saúde e a população assistida” descreve uma publicação em comemoração da “Saúde mais perto de 50 milhões de brasileiros” (BRASIL, 2002a, p. 5). Outro panfleto, dessa vez do município de São Paulo, usa “Quem ama cuida de perto” como slogan para falar da implementação da ESF na cidade. De fato, é recorrente a utilização de metáforas que apontem para a proximidade que é possível devido à ESF em publicações oficiais. Mais frequente ainda, essa proximidade é descrita como proveniente do fato de que com a ESF “a saúde bate à porta” — título de uma mostra cujo objetivo era “mostrar o conceito do Programa de Saúde da Família e seu impacto como uma nova metodologia de reestruturação da atenção básica à saúde da população” (BRASIL, 2002b). Uma das primeiras publicações de divulgação da ESF (BRASIL, 1994) tem como título “Saúde dentro de casa” e uma rápida olhada nos elementos pictóricos do panfleto torna bastante evidente a importância que se dá para apresentar o atendimento familiar a partir do atendimento em domicílio. Uma das figuras que mostram a família como o centro do atendimento é representada nas bordas do panfleto dentro de pequenas casinhas (Figura 19).

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Figura 19 - Panfleto "Saúde dentro de casa", 1994.

De uma certa maneira, falar sobre a família na ESF invoca a necessidade de se falar sobre a residência e o domicílio onde residem famílias. A conexão entre família e domicílio é bastante explícita na verdade. Quando perguntava as minhas interlocutoras em qual momento se deparam com o atendimento à família, elas frequentemente me respondiam que era durante as visitas domiciliares. Poderíamos inclusive dizer que a grande novidade da ESF não seja tanto elencar a família como uma unidade de intervenção no campo da saúde, mas sim instaurar as visitas domiciliares como prática corriqueira nas USF. A família reside em um domicílio. Ela está dentro da casa. A residência logo se torna um índice para a família e como veremos no decorrer desse capítulo ela é uma das formas de fazer famílias (de maneira análoga ao fogão, como descrito brevemente acima). É evidente que quando as profissionais de saúde comentam sobre as visitas domiciliares realizadas e as usuárias e usuários que necessitam de visitas regulares, elas encontram um momento para tecer comentários e refletir sobre a família; além de especular sobre o papel que esta última tem no cuidado de membros doentes. O caso de uma usuária acamada que vive em uma situação bastante precária, como enfatizou uma das auxiliares, parece

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fornecer um exemplo interessante para mostrar essa inter-relação entre domicílio e família58. A usuária L, uma senhora de mais ou menos 70 anos, tem problemas de locomoção e vive em um pequeno cômodo que lhe serve como quarto e cozinha. Ela passa grande parte do dia deitada sobre uma cama que, segundo me contaram, exalava um odor bastante forte de urina, pois aparentemente ela não se levantava para urinar. Na verdade, a auxiliar que me contou do caso se ponderava sobre como ela fazia para ir ao banheiro, pois no cômodo em que a usuária L morava não tinha instalações adequadas e ela, como disse, tem dificuldades em se locomover. O cheiro de urina era descrito como impregnando todo o cômodo, pois faltava ventilação no ambiente. A descrição da precariedade das condições de vida da usuária L era complementada com o relato de que sobre um fogão de quatro bocas só se podia ver uma única panela com um pouco de arroz. É claro que a situação da usuária L despertava preocupação por parte das profissionais de saúde. Mas quando comentavam essa história (e outras parecidas), elas frequentemente se perguntavam “onde estava a família” dela. No mesmo terreno do cômodo da usuária L, há um puxadinho onde mora um dos filhos dela e próximo dali, morava uma de suas filhas. Esses fatos geravam a inquietação da equipe responsável pela área em que moravam essas pessoas sobre o porquê os filhos da usuária L não cuidavam melhor da mãe. E sempre essa inquietação gerava debates acerca dos deveres morais que membros de uma família tem em relação com os outros. Esses debates muitas vezes extrapolavam a discussão da família da usuária L e se moviam em direção de reflexões sobre as famílias em geral. Outro caso também frequentemente terminava em discussões sobre tal assunto. Esse é o caso de uma criança recém-nascida que estava muito abaixo do peso ideal. Do mesmo modo que a usuária L, a criança morava em um cômodo com o pai, a mãe, a avó paterna e outras pessoas que as auxiliares não sabiam dizer quem eram. No total, pareciam ser em torno de cinco pessoas, mais a criança, no único cômodo. Nesse caso, a pobreza da família e do domicílio também era bastante enfatizado nas discussões, que se desdobravam em considerações acerca da desestruturação da família que a impedia de lidar com o grave caso de desnutrição da criança. A mãe da criança era frequentemente descrita como 58

Minhas descrições de visitas domiciliares são feitas a partir de descrições que as auxiliares de enfermagem, enfermeiras e ACS faziam delas. Infelizmente, não acompanhei nenhuma das visitas que vou relatar.

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alguém que “não está aí para nada” e a sua maternidade era um assunto frequente de discussão. A situação parecia tão extrema que as auxiliares e enfermeira da área sentiam que nada mais podiam fazer, convocando a ajuda da assistente social da Unidade para intervir. O meu interesse com esses casos não é gerar uma sensibilização acerca das condições de vida de pessoas que moram em um bairro de periferia no município de Guarulhos. Por mais que esse seja um objetivo nobre, pretendo algo um pouco mais simples. Me interessa mostrar como o domicílio e a família estão conectados de tal forma que a realização das visitas domiciliares apresentam para as profissionais de saúde uma oportunidade para discutir a família como produtora de cuidados e de saúde. Durante as reuniões das equipes, em que geralmente cada profissional comenta sobre as visitas que realizou e planejam as próximas, elas aproveitam para falar da estrutura familiar das usuárias e usuários e dos desafios em fazer com que a família se torne uma colaboradora na atenção à saúde. De fato, ouvi inúmeras vezes dizerem que assim que elas veem a situação do domicílio elas já sabem se a família é boa ou não. Se ela vai se constituir em uma colaboradora ou não. Se seguirmos o trabalho de David Schneider sobre o parentesco americano, podemos encontrar algumas reverberações. É claro que não pretendo afirmar que o “parentesco brasileiro” seja o mesmo que o “americano” — apesar de que as similaridades abundam. De fato, em um certo sentido, podemos dizer que as discussões sobre a família na USF pouco têm a ver com “parentesco”. Contudo, como a família é um símbolo presente em mais de duas unidades culturais distintas (o parentesco e a atenção à saúde) — utilizando a linguagem da teoria do símbolo de Schneider (1980) —, as maneiras pelas quais a família é feita no parentesco atravessa as maneiras pela qual ela é feita (e mobilizada) no campo da saúde. A conexão entre domicílio e família pode provir do fato de frequentemente se pressupor que “a família, para ser uma família, deve viver junta” (SCHNEIDER, 1980, p. 33). O domicílio se torna, como afirmei, um índice que oferece uma oportunidade de se ver a qualidade das relações entre os membros da família. A casa de um cômodo, onde mora a criança recém-nascida apresentada acima, sempre é descrita como muito bagunçada; o único colchão presente no ambiente (as cinco pessoas provavelmente dormiam juntas), disposto no chão de terra, abrigava um amontoado de roupas, pois a família não tinha um guarda-roupas ou algum outro móvel similar. A pobreza material da família dessa criança era sempre conectada com o que as profissionais de saúde percebiam ser a pobreza das 78

relações entre os próprios membros da família, pois parecia ser um pressuposto que uma família “bem estrutura” de alguma forma prospera, e sua prosperidade, objetificada na forma de bens materiais (ou então em organização da casa), objetifica, por sua vez, as relações entre as pessoas que compõem o lar. 805 Essa série de traduções entre família e domicílio que torna possível apreciar e avaliar as relações entre os diferentes membros possibilita também, como afirmei anteriormente, que as visitas domiciliares operem como uma forma de se refletir sobre a família. E aqui, a família “significa a maneira pela qual o parentesco deve ser conduzido” (SCHNEIDER, 1980, p. 44). Por isso as inquietações das profissionais de saúde com a falta de atenção com a usuária L por parte de seu filho e filha que moravam perto. É pressuposto que os membros de uma família têm a obrigação moral de dar suporte uns aos outros. Ainda mais no caso de que não há aparentemente nada que impeça esse imperativo moral de ser efetuado: afinal de contas, todos moravam muito perto. Se é através das visitas domiciliares que certo tipo de conhecimento sobre a “família” pode ser produzido e circulado na USF, quando nos debruçamos sobre as práticas de inscrição decorrentes das visitas domiciliares essa cadeia de associações entre casa e família se rompe. Nesse caso, a família parece não aparecer. A ficha utilizada para o registro das visitas domiciliares (ficha de visita domiciliar, Figuras 20 e 21) não comporta os tipos de descrição que surgem durante as conversas entre as profissionais de saúde. A ficha de visita domiciliar, parte do Sistema de Coleta de Dados Simplificado do e-SUS AB (ver capítulo 1), não dá muito espaço para que informações sejam apresentadas sem que estejam em uma forma apropriada. Cada visita domiciliar é apresentada como uma coluna. No total, cada ficha torna possível a inscrição de vinte e três visitas diferentes. A forma que uma visita domiciliar assume na ficha é totalmente diferente do que é elencado pelas profissionais da saúde ao falar sobre elas 59 . Na verdade, as minhas descrições sobre as descrições delas de forma alguma parecem caber como “informação adequadas” para o preenchimento dos “campos obrigatórios”. Uma visita domiciliar começa com a inscrição da data. Cada ficha refere-

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A ficha de visita domiciliar é um documento preenchido apenas por ACS. Os atendimentos domiciliares (oficialmente, a partir de julho de 2015, visita domiciliar é realizada apenas por ACS, enquanto outros profissionais realizam atendimentos em domicílio) realizados por auxiliares de enfermagem e enfermeiras é inscrito na ficha de atendimento individual, bastante similar à ficha de visita domiciliar. Contudo, na primeira, há um espaço para especificar em que local foi realizado o atendimento — na Unidade, no domicílio, na escola, etc.

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se a um dia de visitas. Logo em seguida, enumeradas, cada visita requer que seja identificado o número do prontuário da família, mas a informação seguinte desvincula a família da descrição da ficha: é solicitado o número do cartão do SUS da usuária, número individual — diferente do número do prontuário.

Figura 20 - Frente da ficha de vistita domiciliar.

Figura 21 - Verso da ficha de visita domiciliar.

Contudo, as informações sobre o número do prontuário e do cartão do SUS não são obrigatórios. As informações que de fato são obrigatórias são a data de nascimento e o sexo, ambas características que dificilmente conseguiríamos atribuir à uma família como 80

um todo. Além disso, requer o preenchimento do motivo da visita e seu desfecho. Cada um desses campos já tendo definido as possibilidades de preenchimento. Dessa forma, é possível antecipar o que parece uma visita domiciliar da “perspectiva” da ficha de visita domiciliar. Ela assume obrigatoriamente a forma de uma pessoa com um sexo, uma data de nascimento e pressupõe-se que seu motivo tenha sido um dos elencados no documento. Um único conjunto de práticas na USF, como a visita domiciliar, pode, dessa forma, parecer enactar diferentes objetos60. De um lado, temos a família aparecendo a partir da visita domiciliar, de outro temos um objeto que dificilmente seria uma família. Ressaltar esse ponto é importante, pois nos ajuda a considerar exatamente a duração e extensão de um objeto como a família na Unidade de Saúde da Família. Quando uma visita domiciliar produz reflexões sobre a família, esse tipo de conhecimento se estende por redes que não são tão longas quanto aquelas que circulam a ficha de atendimento domiciliar. Uma das poucas formas de saber sobre a família de uma usuária, por exemplo, é conversando sobre ela com enfermeiras, auxiliares de enfermagem e agentes comunitárias que conheçam tal usuária. Ou então, sentar e ouvir elas discutindo sobre a família em reuniões de equipe. Esse conhecimento sobre a família, apesar de existir, não possui expressões materiais que o permita circular independentemente das interações entre pessoas humanas 61 . E se buscamos evidências desse conhecimento em documentos que são produzidos no mesmo contexto que ele — as visitas domiciliares — é como se ele não existisse. Os documentos têm um tipo de eficácia que eclipsa outras formas de produzir e circular objetos, exatamente pela sua capacidade de transitar por redes que pessoas humanas não transitam. Uma ficha de visita domiciliar viaja para outros estabelecimentos através de caminhos de transmissão de informação definidos pelo SISAB (Sistema de Informação em Saúde da

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Eu devo explicitar aqui que o argumento deriva de Mol (2002). A autora insiste que práticas diferentes fazem objetos diferentes (uma consideração melhor desse ponto pode ser encontrada na Introdução deste relatório). Contudo, no contexto da USF, uma mesma prática parece produzir diferentes objetos. Mas isso, gostaria de propor é um efeito das práticas de inscrição. De fato, se uma mesma prática engendra diferentes objetos é porque ela se conecta com diferentes práticas de inscrição. O argumento de Annemarie Mol retorna inalterado. Mas no contexto da USF, as práticas de inscrição não contam como práticas. Elas derivam das práticas, mas não são reconhecidas como interferindo no curso das ações. Na verdade, as práticas de inscrição são descritas como posteriores a alguma ação, mas de forma alguma elas continuam tal ação. Dessa forma, o caráter performativo das práticas de inscrição é mascarado, apesar de seus efeitos continuarem efetivos. O que acontece, proponho, é essa proliferação de objetos distintos a partir do que aparece como uma única prática. Os efeitos disso nas redes de relações criadas para produzir gente saudável são bastante desagradáveis, pois a existência de certos objetos que circulam nessas redes é geralmente mal localizada em um conjunto de práticas que sozinho não os traz à tona, enquanto as práticas que de fato compõem sua emergência não são reconhecidas como tais. 61 Sobre a relação entre materialidade e socialidade e a maneira que uma produz a outra, conferir Law & Mol (1995), Latour (1991; 2012).

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Atenção Básica) e para isso ela precisa ser capaz de ser traduzir na forma de dados que são capazes de passar por esses caminhos. Assim, o conhecimento objetificado na ficha de visita domiciliar, através de diferentes processos de tradução, se torna acessível por uma quantidade maior de atores que os conhecimentos que só circulam através de conversas entre pessoas dentro da USF. Lançar luz sobre os modos que diferentes conhecimentos são produzidos, ganham forma e circulam na atenção básica, parece ser um dos pontos em que talvez esse trabalho possa ter alguma relevância. Ele pode nos levar a considerar como aumentar o potencial de circulação e apreciação de formas (que o conhecimento assume) que atualmente, apesar de serem importantes na tarefa de produzir gente com saúde, têm uma existência bastante precária e breve.

As informações, o responsável e o cadastro Nesta seção, meu objetivo é apresentar outra maneira que uma família é composta na Unidade de Saúde da Família. Aqui o domicílio continua a figurar como o recipiente da família, mas diferentemente das conversas sobre as visitas domiciliares, ele não é o elemento central na feitura de um núcleo familiar. O contexto da criação dessa família é a utilização da ficha de cadastro domiciliar (Figura 22), também parte do Sistema CDS do e-SUS AB. Da mesma forma que o indivíduo agenciado através da ficha de cadastro individual, o domicílio é aqui feito através de uma série de informações que contribuem para construir uma versão que permita “registrar as características sociossanitárias dos domicílios no território das equipes de AB” (BRASIL, 2014, p. 9). Logo após o cabeçalho da ficha, destinado à identificação das profissionais que a preencheram e a digitaram no Sistema, está o bloco de identificação do domicílio que solicita informações sobre seu endereço62. Esse primeiro bloco ressoa o primeiro bloco da ficha de cadastro individual, o que parece apontar para a importância que se dá aos processos de identificação (estabilização) em burocracias estatais (cf. HERZFELD, 2004).

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No caso de pessoas em situação de rua, o registro é feito de acordo com o local de permanência. Esses casos são registrados a partir da mesma ficha.

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Figura 22 - Ficha de cadastro domiciliar.

Um segundo bloco de informações contém dados acerca das condições de moradia: tipo de domicílio, localização urbana ou rural, destino do lixo, forma de abastecimento de água, tipo de acesso ao domicílio, etc. Se na primeira parte da ficha é construído a maneira pela qual o domicílio pode ser discriminado e localizado no território, esta segunda parte 83

fornece elementos descritivos da moradia. Novamente é possível ver como um documento se configura como uma tecnologia de descrição. Contudo, o que mais nos interessa é o último bloco de informações: FAMÍLIAS. Em uma tabela destacada, há quatro linhas que fornecem espaços de preenchimento de informações sobre o(s) núcleo(s) familiar(es) que mora(m) no domicílio. Como indica o manual de preenchimento das fichas do Sistema CDS (BRASIL, 2014, p. 20), essa “informação amplia e qualifica o cuidado em saúde, a partir da abordagem familiar, realizado por toda a equipe de saúde”. Tal núcleo familiar é identificado através de um agregado do número do prontuário familiar, o número do cartão do SUS do responsável pelo núcleo e sua data de nascimento, a renda familiar em salários mínimos, o número de membros da família e a data desde a qual a família reside naquele domicílio. Essas são as informações que compõem uma família no cadastro domiciliar. Contudo, nem todas essas informações fazem parte da definição oficial de família apresentada pelo manual do Sistema CDS: “o núcleo familiar ou família corresponde à unidade nuclear composta por uma ou mais pessoas, eventualmente ampliada por outras que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas atendidas por ela, todas moradoras de um mesmo domicílio” (BRASIL, 2014, p. 20). Aqui, por exemplo, a figura do responsável familiar não aparece, apesar de ser essencial para o cadastro de uma família. Na verdade, a família é feita através de vínculos criados através do responsável. É “obrigatório o preenchimento do CNS do responsável, a fim de permitir a identificação de vínculos familiares entre os indivíduos cadastrados pela ficha de cadastro individual” (BRASIL, 2014, p. 21). Dessa forma a ficha de cadastro domiciliar se conecta, no Sistema CDS (informatizado), com a ficha de cadastro individual. Um conjunto de indivíduos é identificado como compondo uma família, pois nas suas fichas de cadastro individual encontra-se um mesmo registro no SUS como o responsável familiar. O responsável familiar é identificado como alguém maior de 16 anos que é eleito “pelo conjunto de moradores de um mesmo domicílio como o responsável no domicílio pela sua saúde e de seus familiares, sem necessariamente um vínculo consanguíneo ou legal” (BRASIL, 2014, p. 24). Na prática não há essa eleição. O responsável familiar se torna a pessoa que foi solicitar o cadastro na Unidade de Saúde da Família. Caso o domicílio que a pessoa reside já tenha um cadastro e a pessoa se identifique como membro de um dos núcleos familiares 84

registrados, ela passa a ser vinculada ao responsável familiar já definido pelo primeiro cadastro, mesmo que ela não reconheça a responsabilidade da pessoa pela saúde da família como um todo. Ao fazer a família através do responsável familiar preenchido nas fichas de cadastro individual, a ficha de cadastro domiciliar mantém separados o domicílio e o núcleo familiar, apesar de os relacionar. “A separação desses dois cadastros [individual e domiciliar] possibilita o registro de domicílios que estejam vazios ou abandonados, além de permitir a inserção de novos núcleos familiares sem que a equipe tenha que refazer o cadastro domiciliar” (BRASIL, 2014, p. 9). A família, nessa forma específica, é apenas um instrumento burocrático e estatístico. Ela tem bastante eficácia em constituir quantidades acerca da cobertura da atenção básica em saúde. Contudo, é baixa a eficácia dela nas relações que as profissionais de saúde estabelecem com as usuárias. Na verdade, a ficha de cadastro domiciliar dificilmente é um documento que será consultado pelas profissionais; e, raramente, a família é pensada por elas como centrada na figura de um responsável familiar. Novamente, vale enfatizar que a família que “importa” para as profissionais de saúde é aquela que emerge a partir das visitas domiciliares e que possibilitam imputações acerca de seu papel (moral) no cuidado à saúde de seus membros.

O prontuário, os indivíduos e a mistura Outro artefato da atenção básica que gostaria de comentar e que parece operar como uma figuração para a família é o prontuário familiar (Figura 23). O prontuário consiste de uma espécie de envelope feito de papel pardo. Na parte superior frontal, estão impressos o brasão da Prefeitura Municipal de Guarulhos, o logotipo da Saúde da Família, e como título, no centro, PRONTUÁRIO FAMILIAR, logo abaixo de Secretária da Saúde. Nele há uma caixa, em que são informados a presença e quantidade de grupos considerados prioritários: gestante, criança, hipertenso, etc. Esse espaço raramente é preenchido. Em destaque, há um espaço para ser preenchido o número de matrícula, ou o número do prontuário. Logo abaixo, são requisitados o nome da USF, a região de saúde, o segmento, a área, a microárea e a data de criação do prontuário. Essas são as informações que identificam o prontuário familiar.

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Ainda na parte da frente do prontuário, podemos encontrar um espaço para identificar o nome do responsável familiar junto com seu endereço. Na parte inferior, uma tabela para listar os nomes dos membros da família (aqui repete-se o nome do responsável), assim como suas datas de nascimento, sexos, números do cartão nacional de saúde, estados civis, naturalidades, escolaridades e ocupações. No verso do prontuário, está reproduzido o conjunto de informações sobre as condições de moradia e saneamento que encontramos na ficha de cadastro domiciliar.

Figura 23 - Frente e verso do prontuário familiar.

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Na verdade, é possível dizer que o prontuário familiar intersecciona o cadastro individual e o domiciliar, dando uma forma concreta para a conexão entre esses dois cadastros que é feita através do espaço para a identificação das famílias residentes em um mesmo domicílio na ficha de cadastro domiciliar. Mas ao dar uma outra forma à conexão, ele modifica também o que é necessário para fazer uma família. Na ficha de cadastro domiciliar a família é feita através de pessoas que têm designadas em suas fichas de cadastro individual o mesmo responsável familiar. Mas no prontuário familiar, muitas vezes o campo de identificação do responsável é deixado em branco. De fato, quase todas as informações ali parecem opcionais, pois raramente são preenchidas. As únicas exceções são a parte que identifica/localiza o prontuário e o nome das pessoas a quem aquele prontuário corresponde. Essas são as informações que contam. São as únicas que podem ser úteis para as demais práticas de inscrição que o prontuário “presencia”, como por exemplo, o preenchimento da folha de evolução clínica. No entanto, ainda podemos nos perguntar acerca da relação do prontuário familiar com a família. Uma resposta poderia ser que o prontuário familiar faz uma família através da lista de nomes que ele apresenta. Mas isso não seria uma boa resposta, acredito. De todos os procedimentos que acompanhei durante meu trabalho de campo, nunca vi alguma auxiliar de enfermagem ou enfermeira se preocupar com os nomes ali presentes. Na verdade, muito raramente elas olham para o prontuário, pois as informações que elas precisam geralmente já estão inscritas na folha de evolução clínica. O prontuário se torna mais importante quando elas precisam de alguma informação e a usuária não está presente para oferecê-la. Portanto, proponho olharmos para o prontuário familiar de outra perspectiva. Quando olhamos para a forma material do prontuário e o que ele faz, uma semelhança vêm à mente. Ele parece se comportar como se espera de um domicílio. Dentro do prontuário familiar estão folhas de evolução clínica, anotações, exames laboratoriais, receitas de medicamento e todo tipo de documento que os membros da família acumularam durante sua trajetória na USF. O prontuário os guarda. Ele mantém juntos os indivíduos que compõem uma família, assim como uma casa parece fazer. E essa parece ser uma das tarefas mais importantes do prontuário familiar em uma Unidade de Saúde

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da Família: manter todos os documentos individuais num mesmo lugar. Ele é, assim, análogo a um domicílio. Por fim, da mesma forma que uma casa fica bagunçada, um prontuário familiar também “vira uma bagunça”, como dizem as profissionais de saúde. Os documentos individuais são depositados dentro do prontuário sem nenhuma preocupação em mantê-los organizados. Sempre que é necessário encontrar algum exame ou outro papel de uma usuária, as profissionais de saúde, principalmente enfermeiras, reclamam que tudo fica misturado tornando o trabalho mais difícil. Outro problema bastante comentado é que se alguma profissional precisa de documentos de uma usuária e outra profissional de documentos de uma outra usuária da mesma família, consegue quem pegar primeiro o prontuário, pois não há como “separar” os membros da família. Ao menos não de modo a tornar os documentos de outros membros disponíveis quando se está com um desses membros.

Sobre a diversidade de formas da família É realmente uma tarefa difícil falar sobre a família em uma Unidade de Saúde da Família. As três primeiras seções desse capítulo tentam descrever algumas das formas que a família emerge como objeto de conhecimento/intervenção63, mas, de maneira alguma, elas capturam totalmente os diferentes enactamentos de tal unidade de intervenção. A tarefa se torna ainda mais difícil quando levamos em conta que tudo o que é feito em uma Unidade de Saúde da Família é descrito como cuidado à saúde da família. Contudo, gostaria de me direcionar nessa breve conclusão para uma outra discussão que me ajudará dissipar alguns equívocos acerca de meus objetivos. Desde o início deste trabalho, tento mostrar que “objetos” como o indivíduo, a comunidade e a família são, de fato, múltiplos. Na verdade, meu intuito ao tornar visível tal multiplicidade é revelar o caráter artificial da estabilidade que eles parecem ter no campo da saúde. No entanto, ao afirmar que existem diferentes famílias na atenção básica em saúde, meu argumento pode ser mal compreendido. Isso porque parece ser um lugar um tanto comum advertir para o

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Espero que esteja claro até aqui que a divisão entre objeto de conhecimento e objeto de intervenção é uma divisão analítica, artificial, que não faz muito sentido nos contextos práticos das USF. Para os diferentes profissionais da saúde eu atuam na USF toda prática de conhecimento está necessariamente conectada a uma necessidade de intervenção: objeto de conhecimento e objeto de intervenção não se desconectam, apesar de o mais importante ser a intervenção.

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fato da diversidade de famílias, indivíduos e comunidades. Mas diversidade não é multiplicidade. Quando afirmo que existem diferentes famílias não me refiro ao fato de que cada família é composta de um modo específico. A diversidade de composição familiar e a maneira que profissionais da saúde podem lidar com ela é discutido, por exemplo, pela antropóloga Claudia Fonseca (2005). De fato, essa é uma questão que infelizmente não teria como seguir. Se direcionamos nossa atenção novamente para o prontuário familiar, percebemos que é uma tarefa difícil falar sobre a composição da família e sua diversidade, pois por mais que estejam listados os nomes de todos os membros da família, é impossível saber, apenas através do prontuário, o tipo de relação entre eles. Não há como saber se a família é composta, por exemplo, por um casal e seus filhos; os nomes listados podem ser todos apenas irmãos morando no mesmo domicílio. Ou talvez, eles podem nem ser parentes — no sentido mais convencional do termo. O que me refiro ao falar sobre o fato de existirem diferentes famílias na USF é que o “objeto” família é mais que um. O argumento aqui não é que a família como um único objeto apresenta diferentes composições, pois nesse caso, mesmo na diversidade de famílias, o que é uma família continua bastante estável. O que pretendo chamar a atenção é para o fato da família poder ser múltiplos objetos, inclusive ela pode ser algo que nem se parece com uma família. Novamente nos deparamos com a mesma dificuldade apontada no capítulo um: a questão do vocabulário. E vou repetir a resposta dada então. Designar uma multiplicidade de objetos por “família” é apenas uma forma de manter as coisas conectadas, mesmo que parcialmente.

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Conclusão

RELAÇÕES “A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.” Mário Quintana, Do caderno H.

A relação entre antropologia social e o campo da saúde permanece como uma paisagem de fundo para minhas preocupações neste relatório. De fato, uma questão que me assombra — em um sentido positivo — é qual a contribuição possível deste trabalho. Inclusive, essa questão me foi colocada por uma enfermeira da USF, mas o idioma utilizado por ela foi o da utilidade. Seu questionamento era na verdade um pouco mais amplo. Ela queria saber qual a utilidade de minha pesquisa para a Sociedade. Pretendo, ao longo desta conclusão, oferecer alguns pensamentos que auxiliarão a esboçar, ao menos, os contornos de uma resposta para tais indagações. Peço desculpas antecipadamente pelo fato de que apresentarei a conclusão de maneira bastante fragmentada, como se fossem notas explicativas.

Cadê a cultura? Onde está a utilidade? Quando a enfermeira da USF me questionou sobre a utilidade da minha pesquisa para a Sociedade, o contexto de sua pergunta foi uma discussão nossa sobre o que era a antropologia e o que era o próprio processo de pesquisa. Me recordo que a discussão se iniciou com ela me perguntado qual era o título do meu trabalho. Diante da resposta de que eu ainda não tinha um título e devido ao fato de eu já frequentar a USF há vários meses, ela, espantada, me falou que eu estava fazendo tudo errado! Que o título deveria ser o primeiro item de uma pesquisa. Pois era através do título que eu saberia o meu tema, e sem saber o tema, minha pesquisa estava fadada a falhar. A intervenção dela, como ela mesma explicava, se dava devido a sua experiência em fazer monografias. Além de ter feito monografia tanto na graduação e na pós-graduação, ela me disse que sempre pediam para ela fazer diversos trabalhos de conclusão de curso. 90

Querendo evitar o prolongamento de uma discussão que particularmente não estava interessado em me envolver, simplesmente respondi que na minha “área” — a antropologia — a coisa não se dava daquela forma. Estava enganado, pois a discussão migrou da minha habilidade em fazer pesquisa para o que era a antropologia. Na verdade, a enfermeira não estava tão interessada no que eu tinha a dizer sobre a antropologia, pois ela já sabia o que era a disciplina: o estudo do comportamento humano a partir da evolução da espécie e da tradição na qual as pessoas estão inseridas. Para ser sincero, eu não sabia o que responder no momento, simplesmente disse que a antropologia não mais se pensava dessa forma. E foi assim que ela colocou a questão da utilidade da pesquisa em antropologia: “mas se você não estuda o comportamento das pessoas à luz da cultura delas, qual a utilidade do que você está fazendo para a Sociedade?”. Esse breve acontecimento instancia a maneira que profissionais e pesquisadores em saúde descrevem o que parece ser o papel da antropologia para suas práticas profissionais. Cavalcante et al (2013, p. 39), por exemplo, comentam que a antropologia fornece “parâmetros para a reformulação da questão da adequação sociocultural dos diferentes programas de saúde” (cf. também, BAIA DOS SANTOS et al., 2012; ARSEGO DE OLIVEIRA, 2002). Dessa forma, falar da cultura é o que dota a antropologia de utilidade para o campo da saúde. Isso parece ser oriundo da maneira que as propostas da Atenção Primária em Saúde (ou Atenção Básica, como utilizei ao longo deste relatório) incorporam como um de seus atributos derivados a competência cultural, entendida como “o reconhecimento das necessidades familiares em função do contexto físico, econômico e cultural” (CAMPOS OLIVEIRA & PEREIRA, 2013, p. 160; cf. também STARFIELD, 2002). Um antropólogo e médico, Leonardo Vieira Targa (2010), parte dessa preocupação que as políticas públicas na atenção básica em saúde criam em torno da importância da competência cultural para poder fazer uma crítica do que ele chama de “abordagem interpretativa” na antropologia da saúde. A abordagem interpretativa é a maneira pela qual ele descreve a tradição do pensamento antropológico sobre o processo saúde-doença que tem Clifford Geertz como ancestral. Na verdade, Geertz apesar de oferecer o enquadramento teórico para a formulação de tal abordagem, não é o se fundador; podemos identificar como tal figura, Arthur Kleinman e seu artigo de 1978 que propõe a separação da doença como um processo “natural” e a doença como um conjunto de

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valores e significados culturais, sendo esta última, papel de antropólogas e antropólogos elucidar. O trabalho de campo de Targa foi realizado em uma USF no interior do Rio Grande do Sul, Brasil, onde ele atuava também como médico de família e comunidade. Durante toda a sua narrativa etnográfica, ele se esforça em escapar as limitações da abordagem interpretativa (expressão do autor) utilizando uma linguagem teórica que faz entrar em colapso a Grande Divisão (Natureza e Cultura) que sustenta aquela abordagem: a teoria ator-rede de Bruno Latour (1994, 2011). Dessa forma, ele chega a uma descrição da capacidade de produzir gente saudável como uma habilidade oriunda da mobilização de coletivos de actantes humanos e não-humanos. O que Targa parece fazer é obviar (cf. WAGNER, 1989) a preocupação com a cultura e sua influência nos processos de adoecimento e cura, apresentando o conjunto de “coisas” — muitas das quais não podem ser coletadas por categorias como cultura ou natureza — que compõe (e revela) o estado de saúde/doença de uma pessoa. Não me interessa aqui discutir ou apresentar os exemplos que Targa usa para sustentar seu argumento. Meu interesse em seu trabalho é outro. O que é interessante para mim é o fato do antropólogo/médico oferecer uma outra possibilidade para a antropologia ser útil para o campo da saúde. Espero estar claro o fato de que eu também compartilho as mesmas suspeitas do autor acerca da utilidade do conceito de cultura para o meu trabalho. Realmente, acredito ter, em nenhum instante, mobilizado a “cultura” — ou a “sociedade” — como categorias de análise. Contudo, não posso dizer que a ausência desses conceitos fora preenchida por uma preocupação com os “atores-redes”.

Este não é um trabalho de antropologia da saúde Mas minha falta de preocupação com atores-rede não reside em uma suspeita epistemológica. Algumas leitoras e leitores poderiam inclusive traduzir meu trabalho como uma descrição de atores-redes no campo da saúde. Mas meu intuito não foi bem esse. O que tentei fazer é descrever como alguns objetos emergem a partir de práticas relacionais e, mais importante ainda, o que eles podem fazer. Minhas inspirações vêm

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especialmente de Marilyn Strathern e Annemarie Mol, duas autoras que mantém uma relação “crítica” com a Teoria Ator-Rede de Bruno Latour64. Outro ponto diferencia meus interesses e os interesses expressos no trabalho de Leonardo Targa. Ele se refere ao fato de que Targa está motivado em apreender os modos em que gente com saúde é produzida. Ele se insere diretamente na tradição da antropologia da saúde — mesmo que busque romper com parte dela. A minha atenção durante a pesquisa não foi direcionada aos processos de agenciamento de cura — o que pode ser visto pela falta da “perspectiva de pacientes” no meu relato —, mas para as maneiras que as profissionais de saúde (e, em alguns momentos, pesquisadores em saúde) conhecem o que elas conhecem. Dessa forma, se subdisciplinarizar meu trabalho for uma necessidade, escolheria descrevê-lo como um esforço relacionado à antropologia do conhecimento65. Por antropologia do conhecimento tenho em mente um conjunto de trabalhos antropológicos inspirados pela preocupação de Marilyn Strathern com as práticas de conhecimento, ou as maneiras pelas quais as pessoas “tornam evidentes para sim mesmas” aquilo que elas sabem. A frase destacada entre aspas vem da própria Strathern (1992, p. 5) e o idioma da produção da “auto-evidência” figura em seus trabalhos pelo menos desde O gênero da dádiva (2006), se intensificando desde então (cf. STRATHERN, 2004b). Annelise Riles é, por exemplo, alguém que faz parte da linhagem de inspiração a qual estou me referindo como antropologia do conhecimento. Riles já foi apresentada na introdução como uma fonte para a “perspectiva” que assumi neste trabalho. Tal perspectiva é composta de uma preocupação com os documentos enquanto artefatos do conhecimento moderno, nome de um volume editado pela antropóloga em 2006(b). De fato, a antropóloga, que também tem formação em direito, tem se preocupado com bastante frequência com a produção de conhecimento na antropologia e em contextos tecnocráticos — termo da autora, para se referir a contextos como centros financeiros, bancos centrais, disputas de direitos humanos, etc (ver RILES, 2000, 2006c, 2013, 2015).

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Na introdução é possível encontrar a maneira que eu mobilizo Marilyn Strathern e Annemarie Mol como fontes de inspiração. A posição delas em relação a teoria ator-rede pode ser conferida, por exemplo, em Strathern (1996) e Mol (2010). 65 Vale a pena comentar que quando iniciei essa pesquisa definiria alegremente meu trabalho como sendo um trabalho de antropologia dos documentos ou, inclusive, de antropologia das políticas de saúde, da burocracia, etc.

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Considerar as práticas de conhecimento tecnocrático oferece para Riles uma oportunidade de pensar sobre as práticas de conhecimento da própria antropologia. Como ela afirma em sua introdução ao volume sobre documentos e que eu reproduzo aqui uma como descrição dos interesses dela em demais trabalhos: Nós estamos interessadas em como etnógrafas concebem, apreendem, apreciam, veem padrões — ou melhor, em um notável coloquialismo, como certos insights ou padrões “veem até elas”. Nós exploramos, através tanto de experimento quanto de análise, como etnógrafas se tornam cativas nas conceptualizações de outros e detidas em seus caminhos analíticos, como elas apreciam e se simpatizam [empathize]. E acima de tudo, nós chamamos atenção para, e experimentamos com, a resposta [response] de antropólogas para seus sujeitos, e entre si, como uma forma de engajamento ético e epistemológico (2006a, p. 1).

Tal engajamento ético e epistemológico, chamado de resposta etnográfica66, é um ponto importante no que estou tentando caracterizar como uma antropologia das práticas de conhecimento. E ao pensar na contribuição da Antropologia para a Saúde, estou em busca exatamente de uma resposta etnográfica67. O que eu descrevo como resposta etnográfica [ethnographic response] pode ou não requerer trabalho de campo de longa duração; ela pode envolver sujeitos que são familiares ou estranhos; ela certamente não depende de construtos e convenções sociológicos tais como noções de sociedade, localidade, Estado, cultura que tem estado sob pesada crítica na teoria antropológica dos anos recentes. A resposta etnográfica é parte arte e parte técnica [technique], parte invenção e parte convenção, parte trabalho da própria etnógrafa e parte o efeito de se permitir que outros trabalhem sobre a etnógrafa. Ela é teoricamente informada, mas não teoricamente determinada (RILES, 2006a, p 5, grifos meu).

Novamente, vemos uma outra caracterização do empreendimento antropológico que escapa das garras de conceitos como cultura e sociedade. E essa é uma caracterização interessante, pois coloca em primeiro plano exatamente uma reflexão sobre as contribuições que a antropologia pode oferecer, isto é, sua modalidade singular de resposta (etnográfica).

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Response pode ser traduzido como resposta, mas também transmite um significado de responsabilidade e sensibilidade. 67 O relato inteiro que apresentei faz parte da minha resposta etnográfica. O que tento nesta conclusão é explicitar minhas intenções com tal resposta.

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Os conceitos viajam de volta para a antropologia Quando o artefato etnográfico são documentos, a possibilidade de uma resposta etnográfica parece ser ampliada (e complicada), pois etnógrafas também são, em grande medida, produtoras de documentos. Documentos são artefatos das práticas de conhecimento moderno e, em particular, das práticas de conhecimento que definem a própria etnografia. Portanto, a etnografia de práticas de documentação [...] possibilita uma oportunidade para refletir e trabalhar sobre a prática etnográfica de um modo particular — não diretamente, na forma de crítica ou auto-reflexividade, mas lateralmente, isto é, etnograficamente. Estudar documentos, então, é por definição também estudar como as próprias etnógrafas conhecem. O documento se torna de uma só vez um objeto etnográfico, uma categoria analítica e uma orientação metodológica. (RILES, 2006a, p. 7)

Gostaria de propor que o campo da atenção básica à saúde também pode se constituir simultaneamente como um objeto etnográfico, uma categoria analítica e uma orientação metodológica. Mas não porque nele proliferam documentos de variados tipos, apesar de no capítulo 1 ter indicado algo próximo disso. O que torna a ABS interessante para a antropologia — diria — é o fato dela fazer uso de uma linguagem que ressoa a linguagem da própria disciplina. O foco do meu trabalho foi o enactamento do indivíduo, da família e da comunidade como unidades de intervenção na ABS. Conceitos como esses são replicados tanto no campo da saúde quanto no campo da antropologia. Essa dupla presença em repertórios distintos possibilita que cada repertório seja operacionalizado como um comentário sobre o outro. Como diz Donna Haraway, numa paráfrase bastante livre, a relação entre ambos “idiomas” permite criarmos uma ficção em que é possível usar histórias para contar outras histórias. A questão que pode emergir — apesar de eu não me propor a respondê-la nesta ocasião — é sobre o que é revelado sobre as práticas de conhecimento da antropologia quando ela é usada para descrever um campo que apresenta uma outra versão de suas ficções? O que acontece com o indivíduo, a família e a comunidade na teoria social ao entrarem em contato com o indivíduo, a família e a comunidade na atuação de profissionais de saúde?68

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Talvez seja importante enfatizar que apesar de indivíduo, família e comunidade nem sempre figurarem na antropologia, conceitos como sociedade, cultura, contexto parecem gerar, nessa disciplina, efeitos semelhantes que aqueles conceitos geram no campo da saúde.

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O que vem em mente quando penso sobre esse tipo de possibilidade é, por exemplo, as discussões de Marilyn Strathern (1995) sobre os deslocamentos e apropriações do conceito de cultura em campos diferentes do campo da antropologia. A cultura não é um conceito criado no seio da disciplina da antropologia. Na verdade, antropólogas e antropólogos tomaram o conceito emprestado de usos populares e, portanto, seria inútil propor que tais profissionais teriam exclusividade em sua utilização. O que é interessante perceber é que “as atuais re-apropriações não significam que a antropologia estendeu suas fronteiras ou que suas praticantes estão necessariamente compartilhando seus insights com o resto do mundo” (p. 154). De fato, a versão do idioma antropológico no campo da saúde se distancia do que antropólogas e antropólogos parecem de fato fazer ou intencionaram fazer com tal idioma. Esta conclusão é uma tentativa de mostrar isso. Estou insistindo no fato de que as expectativas de que o empreendimento antropológico levará a considerações acerca de algo como a “cultura” podem ser frustradas, pois a cultura para a antropologia é uma ferramenta heurística e não uma coisa tida como certa, como parece acontecer no campo da saúde (cf. WAGNER, 2009 para a cultura como ferramenta antropológica). Mas também, noções como indivíduo, família e comunidade permitem considerarmos — à distância do conceito de cultura — “a maneira que tais empréstimos [conceituais] recontextualizam a intenção conceitual com a qual os construtos foram utilizados primeiramente” (STRATHERN, 1995, p. 154). Talvez empréstimo seja uma palavra equivocada. Eu prefiro pensar em termos de replicações ou ressonâncias, pois o primeiro termo [empréstimo] parece implicar que a utilização daqueles conceitos no campo da saúde é reconhecida como sendo oriunda da antropologia. Muito diferentemente, o que me parece acontecer, é que tais conceitos se replicam em diferentes esferas “especializadas”, pois são conceitos de uso comum. É provável que qualquer pessoa69 considere indivíduos, família e comunidade como sendo unidades discretas e concretas da vida de todos. Portanto, saber como no campo da saúde essas certezas da vida moderna são feitas na prática e postas para funcionar em um contexto especializado particular, isto é, o contexto da produção de gente com saúde, pode fornecer uma oportunidade para refletir sobre o que essas certezas fazem para a antropologia, levando em consideração que o que a

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Talvez aqui seja preciso adjetivar a pessoa como euramericana moderna. Contudo, faço isso com receio.

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antropologia faz com elas é remover seu caráter auto-evidente. Como disse, essas são possibilidades que não efetuei neste trabalho, mas que certamente nos convidam para reconsiderá-las em alguma outra ocasião.

Quais relações são possíveis? Mas vamos reverter a imagem. A questão aqui é sobre as contribuições da antropologia para o campo da saúde; ou melhor, as contribuições do meu trabalho em particular para algumas discussões no campo da atenção básica. Para isso, preciso oferecer um outro contexto em que penso que meu relato está inserido. Na introdução aludi aos debates acerca da ampliação do conceito de saúde. O que tal ampliação buscou foi aproximar do processo saúde-doença o que é chamado pelos atores no campo da saúde de “fatores sociais”. A esperança era que o efeito de contextualização e o consequente refazimento das relações de causalidades de problemas de saúde gerasse uma forma de atendimento integral e humanizado. Estavam em busca — como ainda estão — de uma maneira de trazer a “pessoa como um todo” para dentro dos sistemas de atenção à saúde. Os debates sobre a humanização das práticas de saúde, apesar de terem extrema importância, causam um certo desconforto em mim. Em grande parte, tal desconforto é trazido pelo conjunto de autores que cito explicitamente aqui ou que mantenho como inspiração implícita e, de uma forma bastante solta, poderíamos definir como “póshumanistas”. Isto é, o conjunto de pessoas que oferecem os parâmetros — outro termo desconfortável — de meu pensamento se esforçam para poder criar relatos em que o “humano” (geralmente numa forma majoritária, o Homem) não opera como protagonista, e sua ausência torna possível que o que eram antes personagens secundárias tomem — em sentido forte — a cena (cf. BARAD, 2003). Ao expor isso, não quero me contrapor aos debates sobre humanização e afirmar que eles não têm valor. Essa não é minha posição de jeito algum. Contudo, o tipo de deslocamento de perspectiva sobre a humanização que uma inspiração pós-humanista parece me permitir, obvia parte do debate (do mesmo modo que Leonardo Targa obviou as preocupações com a cultura na saúde ao mobilizar uma perspectiva latouriana). E a parte

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do debate que ela obvia é exatamente aquela que mantém estável uma definição do humano70 — como um todo, podemos acrescentar. Os objetos que as profissionais da saúde enactam através de práticas de inscrição (geralmente burocráticas) certamente são objetos inteiros, eles são “todos”. Mas duvido que algum desses objetos será reconhecido como apresentando o humano como um todo, principalmente pelo fato de eles serem, na maioria das vezes, apenas papeis. Papéis e similares não são humanos, e acima de tudo não devem ser confundidos com humanos e, portanto, eles não entram nos cálculos e considerações acerca da humanização em saúde. Na verdade, eles até entram, mas como obstáculos que os profissionais da saúde precisam superar para de fato chegar aos humanos de verdade. Aqui está o problema que uma perspectiva pós-humana ou simétrica não reconhece. Deixe-me apresentar um exemplo prático. Para isso retorno para as folhas de evolução clínica apresentadas no primeiro capítulo. Vamos imaginar que tal documento apresenta uma pessoa em sua totalidade71. Como é essa pessoa? Ela tem uma identificação e ela tem um histórico passado de atendimentos/procedimentos. Essa é uma pessoa que contém em si uma série de relações com as profissionais de saúde e é composta por essas relações. A folha de evolução é um duplo da pessoa (usuária), mas ela duplica a pessoa através da duplicação também de cada uma das relações efetuadas com as profissionais de saúde (procedimentos, visitas domiciliares, consultas médicas, acolhimentos, etc). Durante sua circulação, um conjunto de folhas de evolução clínicas de uma mesma pessoa pode chegar até a sala de uma médica para uma consulta de acompanhamento. Dentro da sala, a usuária certamente faz parte das considerações da médica, mas se a consulta é de acompanhamento (por ex., da hipertensão arterial) a folha de evolução clínica assume grande importância, pois é ali que estão inscritas as informações que permitirão à profissional fazer ou uma pressão arterial controlada ou uma pressão arterial descontrolada para sua “paciente”. No entanto, para que esse enactamento aconteça, a folha de evolução precisa estar adequada, ela precisa ter uma forma apropriada, seguir uma certa estética. Essa observação levanta uma outra questão acerca da nossa pessoafolha de evolução. O que é uma boa pessoa?

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Latour aponta isso para o que ele proporá como efeito de uma Constituição Não-Moderna (1994, pp. 134137) 71 É preciso ressaltar que um atendimento geralmente envolve diferentes documentos e conhecimentos. A separação que estou fazendo aqui é para auxiliar na exposição.

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Uma boa pessoa, ou seja, aquela que tem uma forma apropriada apresenta informações claras e breves acerca dos procedimentos que realizou. Mas quem faz tal inscrição não é a pessoa no consultório da médica (aquela cujo nome está inscrito no papel e que por esse motivo é dona dele), ela é feita pelas profissionais da saúde. Então, avaliar uma pessoa é também uma forma de reconhecer e avaliar o trabalho de outras profissionais da saúde. Uma boa pessoa é mais que uma única pessoa. Portanto, poderíamos dizer que uma pessoa como um todo tem uma forma bastante singular quando “olhada” a partir de uma folha de evolução clínica. Isso é verdade para cada um dos agenciamentos aqui apresentados. A forma da pessoa de uma carteira de vacinação ou as pessoas-comunidades também são singulares. Cada uma é um objeto específico. Aqui os objetos são apresentados como constituídos através de relações, posição tomada de empréstimo de Annemarie Mol. Portanto, acredito que possamos complementar o argumento dizendo que cada objeto possibilita algumas formas de relação. Da mesma maneira que relações criam objetos de uma certa forma, cada objeto cria relações de uma certa forma. A pessoa-folha de evolução não permite que uma médica estabeleça qualquer tipo de relação com ela. Na verdade, ela limita o que se pode fazer. Mas esse argumento da limitação é um tanto quanto pobre, expressando uma perspectiva pouco simétrica. Na verdade, o que uma pessoa-folha de evolução clínica — ou qualquer outro objeto enactado — faz não é limitar as relações possíveis, muito pelo contrário. Ela gera as próprias possibilidades de se estabelecer relações. Antes das “limitações” serem limitantes, elas são produtivas (cf. GOMART & HENNION, 1999). Considerar esse aspecto produtivo dos diferentes agenciamentos que encontramos na Unidade de Saúde da Família, permite repensar a humanização em outros termos. Não mais estaríamos diante de uma figura genérica do que é um humano inteiro, mas de diferentes figuras, cada uma possibilitando tipos de relações específicas72. Aqui acredito termos chegado no ponto que me interessa. Talvez a contribuição que esse trabalho possa levar para o campo da atenção à saúde seja a explicitação do valor que uma sensibilidade etnográfica e, acima de tudo, simétrica tem para debates que povoam as práticas de conhecimento e, consequentemente, as intervenções realizadas pelas

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Traçar as relações que um determinado objeto cria não foi um ponto que me dediquei aqui. Mas é algo que pretendo continuar a me debruçar sobre.

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profissionais da saúde e demais atores da área. A etnografia, já nos ensinou Tim Ingold (2014), é um estilo de aprender, um modo de aprendizagem sobre como as pessoas fazem o mundo em que habitam e se fazem neste mundo. A Unidade de Saúde da Família é um mundo feito por documentos, procedimentos, vacinas, conversas, amizades, ciências, religiões e tudo mais. E a gente que se faz ali é também diversa. Este trabalho cortou esses emaranhados e buscou apresentar apenas um pequeno fio. Mas a etnografia sempre traz uma surpresa e o que era apenas um fio se revela como um novo emaranhado. Isso é tão fascinante quanto um jogo de cama-de-gato, diria Donna Haraway...

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