Relações entre memória e nostalgia. SOSTER, 2014. (Disponível nesta página em 02/12/2016).pdf

May 26, 2017 | Autor: Vitor Soster | Categoria: Cinema, Nostalgia, Materialismo Histórico, Memoria
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I Seminário Gêneros Híbridos da Modernidade e I Simpósio Memória e Representação Literária. “Congresso Internacional: Interfaces da Memória” Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Assis 21 a 23 de outubro de 2014 ISSN: 978-85-66060-17-1

 

Anais

I Seminário Gêneros Híbridos da Modernidade e I Simpósio Memória e Representação Literária. “Congresso Internacional: Interfaces da Memória” Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Assis

 

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA  FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS – CÂMPUS DE ASSIS I SEMINÁRIO GÊNEROS HÍBRIDOS DA MODERNIDADE E I SIMPÓSIO MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA. “CONGRESSO INTERNACIONAL: INTERFACES DA MEMÓRIA" 21 a 23 de outubro de 2014

Anais APOIO:

 

REALIZAÇÃO:

  Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Proyecto REDES VII – Ministerio de Educación – Argentina Universidad del Salvador, Buenos Aires, Argentina Universidad Nacional de Lanús, Lanus, Argentina Seção Técnica de Apoio a Eventos, Pesquisa e Extensão (STAEPE) Instituto de Estudos Vernáculos “Antonio Soares Amora” (IEVASA)

Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP) Departamento de Letras Modernas Departamento de Literatura Programa de Pós-Graduação em Letras Grupo de Pesquisa: Narrativas Estrangeiras Modernas: Gêneros Híbridos da Modernidade Grupo de Pesquisa: Memória e Representação Literária

ASSIS 2016   2   

 

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA  FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS – CÂMPUS DE ASSIS Reitor Prof. Dr. Julio Cezar Durigan Vice-reitora Profa. Dra. Marilza Vieira Cunha Rudge Diretor Dr. Ivan Esperança Rocha Vice-diretora Dra. Ana Maria Rodrigues de Carvalho DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS Chefe Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Vice-chefe Dr. José Luís Félix PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Coordenador Dr. Álvaro Santos Simões Junior Vice-coordenadora Dra. Maira Angélica Pandolfi

ORGANIZAÇÃO Dra. Kátia Rodrigues Mello Miranda Dr. Márcio Roberto Pereira Dra. Norma Domingos Revisão e formatação Dra. Kátia Rodrigues Mello Miranda Dra. Norma Domingos Dra. Marcela Verônica da Silva Revisão dos resumos em língua estrangeira Dra. Brigitte Monique Hervot Dra. Cleide Antonia Rapucci Dra. Maria de Fátima Alves de Oliveira Marcari   

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  Conselho Consultivo

Conselho Editorial Sílvia Maria Azevedo (Presidente) Karin Adriane H. Pobbe Ramos (Vice-presidente) Álvaro Santos Simões Junior André Figueiredo Rodrigues Carlos Camargo Alberts Carlos Eduardo Mendes Moraes Cleide Antonia Rapucci Danilo Saretta Veríssimo Gustavo Henrique Dionísio José Luis Bendicho Beired Lúcia Helena Oliveira Silva Márcio Roberto Pereira   Maria Luiza Carpi Semeghini Matheus Nogueira Schwartzmann Miriam Mendonça M. Andrade Paulo César Gonçalves Ronaldo Cardoso Alves Vânia Aparecida Marques Favato   Secretário Eduardo Gomes de Almeida Souza  

Adilson Odair Citelli (USP) Antonio Castelo Filho (USP) Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP) Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN) João Ernesto de Carvalho (UNICAMP) José Luiz Fiorin (USP) Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP) Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN) Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ) Sandra Margarida Nitrini (USP) Temístocles Cézar (UFRGS)

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

S471a

Seminário gêneros híbridos da modernidade e Simpósio memória e representação literária (1.: 2014:Assis, SP). Anais do 1º Seminário gêneros híbridos da modernidade e 1º Simpósio memória e representação literária = Congresso internacional: interfaces da memória, Assis, SP, 21 a 23 de outubro de 2014 / organização Kátia Rodrigues Mello Miranda, Márcio Roberto Pereira, Norma Domingos. Assis: UNESP - Campus de Assis, 2016. 691 f. : il. Vários autores ISBN: 978-85-66060-17-1 1. Literatura. 2. Memória. I. Congresso Internacional: interfaces da memória. II. Miranda, Kátia Rodrigues Mello. III. Pereira, Márcio Roberto. IV. Domingos, Norma. V. Título. CDD 800 4 

 

 

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Grupo de Pesquisa Narrativas Estrangeiras Modernas: Gêneros Híbridos da Modernidade (CNPq) Líder: Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Vice-líder: Antonio Roberto Esteves (UNESP-FCL/Assis)

Grupo de Pesquisa Memória e Representação Literária (CNPq) Líder: Marcio Roberto Pereira (UNESP-FCL/Assis) Vice-líder: Rosane Gazolla Alves Feitosa (UNESP-FCL/Assis)

Comissão científica do evento

Comissão organizadora do evento

Dra. Ana Maria Carlos Dr. Antônio Roberto Esteves Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Dra. Carla Cavalcanti e Silva Dra. Cleide Antônia Rapucci Dra. Denise Regina de Sales Dra Gabriela Kvacek Betella Dra. Fernanda Aparecida Ribeiro Dr. Francisco Cláudio Alves Marques Dr. Jean Pierre Chauvin Dra. Kátia Rodrigues Mello Miranda Dr. Marcio Roberto Pereira Dra. Maria de Fátima A. de Oliveira Marcari Dra. Norma Domingos Dr. Paulo Custódio de Oliveira Dra. Rosane Gazolla Alves Feitosa Dr. Wellington Ricardo Fioruci Letícia de Souza Gonçalves Rita de Cássia Lamino de Araújo

Dra. Ana Maria Carlos Dr. Antonio Roberto Esteves Dra. Brigitte Monique Hervot Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Dra. Cleide Antonia Rapucci Dra. Kátia Rodrigues Mello Miranda Dra. Maira Angélica Pandolfi Dr. Marcio Roberto Pereira Dra. Maria de Fátima A. de Oliveira Marcari Dra. Norma Domingos Dra. Rosane Gazolla Alves Feitosa Davi Siqueira Santos Katia Aparecida da Silva Oliveira Rebeca Alves Tchiago Inague Rodrigues Thaís Nascimento do Vale

Secretárias Maria Catarina Ferreira de Jesus Machado Juliana Porto Roseli Pinheiro Santilli   5   

 

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Relações entre memória e nostalgia: o conflito pela ocupação do espaço em O som ao redor

Vitor SOSTER (FFLCH – USP) RESUMO: Partindo da tradição crítica materialista, propõe-se uma relação entre memória e nostalgia para abordar a disputa pelos espaços rural e urbano em sociedades capitalistas. Desse modo, adota-se, como ponto de partida, O som ao redor (MENDONÇA FILHO, 2012), filme que retrata a classe média contemporânea em que coexistem a superação e a persistência de desigualdades. Assim, a princípio, define-se memória como a consciência da justaposição entre o tempo e o espaço e, nostalgia como a idealização de um tempo “despacializado” ou de um espaço “destemporalizado”. Ao relacionar esses procedimentos de elaboração histórica aos de construção fílmica, não se deve esquecer que o “som”, em sua acepção mais material, é uma onda que se propaga no espaço pelo tempo. Parece, portanto, razoável aproximar o conceito de memória ao de som. Pois, como se pretende argumentar, o som, nessa obra, parece ter a função de trazer à tona a memória aos espectadores. Todavia, acompanhando os percursos dos personagens, vemos representações de vidas esmaecidas devido à imersão num mundo nostálgico. Ressalta-se, entretanto, que seria engano, numa abordagem totalizante, compreender a memória como separada da nostalgia, uma vez que se constituem dialeticamente e, ao estender tal noção aos recursos artísticos utilizados, isto é, à exploração dos recursos sonoros e visuais, chega-se às condições para a discussão das especificidades da linguagem audiovisual em representar os conflitos sociais da contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: Memória. Nostalgia. Conflito social. Audiovisual. Materialismo. ABSTRACT: Having cultural materialism as the theoretical background, I try to present how the relationship between memory and nostalgia is used to approach the conflicts in the rural and urban spaces in capitalist societies. The movie Neighboring sounds (MENDONÇA FILHO, 2012) is adopted as a starting point. It portraits contemporary Brazilian middle class situations. In those situations we can see how the persistence of social inequalities coexists with attempts at superseding them. So, at first, memory is defined as the consciousness of the juxtaposition of time and space and nostalgia as the idealization of a “spaceless” time and a “timeless” space. When relating these historical concepts to the ones depicted in the film, it is necessary to highlight the use of sound. In its most literal sense, it is a wave spreading through space in time. Hence relating the concepts of memory and sound seems reasonable because, as it is presented below, the sound, in this film, seems to be able to bring the memory forth to the public. However, observing the characters’ development, we see that we are facing faded life representations as a consequence of their immersion in a nostalgic world. Thus it would be a mistake to consider memory without nostalgia since they are constituted dialectically and extending this notion to the use of the sound and the visual tools, it is possible to discuss the specificities of the audio-visual language to represent current social conflicts. KEYWORDS: Memory. Nostalgia. Social conflict. Audio-visual. Materialism. A princípio, pode parecer impróprio falar de um filme que retrata experiências cotidianas de personagens da classe média brasileira contemporânea em meio a trabalhos pertencentes ao eixo temático que busca discutir representações artísticas de guerras e 661   

 

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ditaduras. No entanto, pretendo demonstrar que o longa-metragem pernambucano O som ao redor de Kleber Mendonça Filho (2012) pode ser considerado um bom ponto de partida para que compreendamos como aquilo, que parece estar tão distanciado de nosso tempo e espaço, marca presença, ainda que muitas vezes implicitamente em diversas circunstâncias de nosso cotidiano. Para tratar do passado, portanto, é importante, a princípio, apresentar algumas considerações a começar pelo modo como serão entendidos os termos “memória” e “nostalgia” ao longo deste trabalho, uma vez que são termos comumente utilizados com sentidos variáveis. Assim sendo, memória dirá respeito à relação de indivíduos com um presente “historicizado”, isto é, quando o “eu” se situa no “aqui” e “agora”, determinado processo histórico atua sobre ele, e ter ciência disso é, de fato, se relacionar, via memória, com a realidade. É evidente, portanto, que a memória ocupará um papel relevante na constituição de subjetividades e, no âmbito social, tornar-se-á, como diz a historiadora Maud Bracke da Universidade de Glasgow (2011, p. 6, tradução nossa), “um espaço de relações de poder e conflito sociopolítico”. Em síntese, falar de memória é falar de um “passado vivo” com potencial de desestabilização do status quo. Quanto à nostalgia, vale retomar a história da própria palavra assim como apresentado pela professora de literatura comparada da Universidade de Harvard, Svetlana Boym (2001). Segundo a autora (2001, p. 3-4), a própria origem do termo é nostálgica, posto que, a despeito dos radicais da palavra serem gregos, o termo em si não existia na Idade Antiga, tendo aparecido em fins do século XVII na Suíça em tratados de medicina que buscavam nomear certa “doença” que acometia muitas pessoas da época, entre elas, soldados alemães e suíços que lutavam no estrangeiro. Daí justifica-se o uso dos termos gregos nostos, retorno ao lar, e algia, desejo. Assim, dessa breve digressão, nos interessa a seguinte noção para a definição da nostalgia: o deslocamento no tempo e no espaço, que não se restringe apenas ao escopo do individual, mas também ao do coletivo. Além disso, mais do que uma relação idealizada seja com o passado, seja com o futuro, o que é mais alarmante no sentimento nostálgico é a percepção idealizada de um presente que se define por ruptura com o passado e o de um futuro que, se existe, é apenas como o da possibilidade de retorno a esse passado supostamente perdido. O que certamente traz consequências para a percepção espacial que se torna alienada. Nas palavras de Boym, pensando no sentido etimológico previamente exposto, “o perigo da nostalgia é que ela tende a confundir o verdadeiro lar com o imaginado” (tradução livre, 2001, p. XVI). Em resumo, quando levamos em conta a 662   

 

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“nostalgia”, estamos considerando a relação com um tempo “morto-vivo”, isto é, com um tempo considerado ido, mas que é reiterado constantemente. Entretanto, ao realizar tal distinção entre memória e nostalgia, não parece ser muito indicado apresentá-las por oposição, mas por meio de uma relação dialética como a análise do filme a ser exposta pretende demonstrar. É, então, a partir da perspectiva do materialismo histórico que desenvolvo os apontamentos aqui apresentados e, entre meus referentes teóricos, menciono inicialmente uma distinção feita por Paulo Eduardo Arantes em Sentimento da dialética (1992). Nesse livro, ao se referir a um possível modo de definição da experiência brasileira, Arantes afirma que ela se daria por meio de dualidades e não por dualismos, ou seja, é apenas via memória que podemos compreender a “coexistência sistemática e descompartimentada de herança colonial e presente capitalista” (ARANTES, 1992, p. 38), ao contrário da ideia de “dualismo” que, assim como a de nostalgia, aposta na fragmentação temporal e num presente livre de conflitos passados. Sobre isso, cito também um breve relato de Roberto Schwarz em seu famoso ensaio “Cultura e política: 1964-1969” (1970). Nele, ao comentar sobre os anos que precederam ao golpe militar, Schwarz se lembra, como ele mesmo diz, que o país estava “irreconhecivelmente inteligente” (1970, p. 81). Era uma época em que parecíamos estar finalmente superando injustiças construídas ao longo dos séculos. Era um período em que “polícia e justiça não estiveram simplesmente ao lado da propriedade (notavelmente em Pernambuco)” (SCHWARZ, 1970, p. 81), ou seja, foi um episódio de nossa história em que coletivamente foi possível acreditar no progresso e na ruptura com o passado. A consequência direta disso no caso específico do relato de Schwarz foi a resposta dos setores conservadores que tinham como objetivo “ativar politicamente os sentimentos arcaicos da pequena burguesia” (SCHWARZ, 1970, p. 82). E como afirma o autor na sequência: “tesouros de bestice rural e urbana saíram à rua, na forma da ‘Marcha da família, com Deus pela liberdade’, movimentavam petições contra divórcio, reforma agrária e comunização do clero, ou ficavam em casa mesmo, rezando o ‘Terço em família’, espécie de rosário bélico para encorajar os generais”. Foi assim, então, que o autor pôde compreender que o atraso, na verdade, não se opunha ao progresso, mas o sustentava. E é devido a esse ponto da verdadeira natureza da modernidade que chamo atenção, agora no campo da estética, para três pontos que já constavam no ensaio de Charles Baudelaire, pioneiro na caracterização do artista moderno, intitulado “O pintor da vida moderna” (1988). Ainda que o texto em si possua tom eufórico, não há como não estranharmos as qualidades dessa estética, então, emergente. A primeira 663   

 

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característica que destaco é a da ‘beleza’ que deixa de ser eterna, tal qual defendia o movimento romântico, e passa a ser encontrada no mundo ‘concreto’ e tangível ao homem, logo, tornava-se fugidia e valorizava-se por sua novidade e racionalidade. A segunda dizia respeito especificamente a esse mundo concreto, à verdadeira natureza dessa realidade artística que, de fato, estava mais próxima da imaginação do que da realidade concreta, pois “quando um verdadeiro artista chega à execução definitiva de sua obra, o modelo será mais um embaraço do que um auxílio” (1988, p. 179). E, finalmente, destaco a diferenciação que o autor faz entre “amor” e “orgia ou cumprimento de um dever conjugal”. Se o primeiro requereria “tempo e dinheiro” e seria a “ocupação natural dos ociosos”, o segundo seria “uma repugnante utilidade” (BAUDELAIRE, 1988, p. 194). Resumindo, o imaginário constituído em torno do moderno projeta um mundo puramente feito de constantes novidades (e de rupturas), criadas pelo intelecto, possui apenas pretensões realistas (isto é, há idealização do tempo e espaço presentes) e é excludente (mantendo o status quo), isto é, características essas diretamente relacionadas ao sentimento nostálgico. Curiosamente com a ascensão da pós-modernidade em reação à institucionalização da arte moderna (que era caracterizada por rupturas com a tradição), a nova ruptura proposta para restauração do efeito de choque passa pela fragmentação do próprio signo linguageiro que deixa de possuir necessariamente significado, reduzindo-se a mero significante, assim como Fredric Jameson (2006), crítico cultural norte-americano, defende, indicando, portanto, um espraiamento da nostalgia em detrimento da memória. Por outro lado, se nos voltarmos para o pré-moderno, para o tempo da tradição, podemos encontrar em Bruno Latour, filósofo citado por Svetlana Boym, uma citação de interesse: “o tempo moderno do progresso e o tempo anti-moderno da tradição são gêmeos que falharam em se reconhecer: a ideia de repetição idêntica do passado e aquela da ruptura radical com qualquer passado são resultados simétricos de uma única concepção de tempo” (LATOUR, 1993, apud BOYM, 2001, p. 19). Quer dizer, a fim de estabelecer condições reais de emergência do novo, o mais indicado, ao que parece, não é romper com o que aí está, mas é partir das circunstâncias dadas. E o filme O som ao redor pode ser considerado um bom exemplo disso ao levarmos em conta como sua forma se relaciona com a contemporaneidade. Para os que não conhecem ou não se lembram, O som ao redor entrelaça episódios de conflitos banais e de certa paranoia em relação à segurança privada entre personagens de classe média de uma mesma vizinhança. Dentre seus muitos personagens, destacam-se os núcleos da dona-de-casa Bia e de sua família; de Francisco, proprietário decadente de terras; 664   

 

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de João, neto de Francisco e corretor de imóveis; e de Clodoaldo, guarda-noturno. Tais episódios se desenvolvem, após um prólogo, em três partes. Especificamente na primeira parte também podem ser distinguidos alguns esquetes, com personagens outros que apresentam participação isolada na narrativa e que se relacionam de modo indireto com os núcleos principais mencionados de modo a demonstrar que os conflitos apresentados não são meramente individuais, mas aplicados a toda uma classe. De todo modo, do ponto de vista da curva narrativa, nada muito significativo parece ocorrer (as situações de tensão, de clímax, nunca chegam a uma resolução) até o desfecho da terceira parte, momento em que descobrimos que o verdadeiro propósito de Clodoaldo não era guardar as propriedades dos moradores, mas vingar a morte de seu pai, morto por um capataz de Francisco trinta anos atrás, devido a uma disputa por terras. Isto é, a despeito dos episódios que seguimos por aproximadamente duas horas, são nos últimos minutos que descobrimos a verdadeira narrativa que, até então, estava apenas latente. Desse modo, chama atenção a perspectiva na qual se situa o narrador. Mesmo partindo de uma experiência pouco expressiva, proveniente da classe média, ele é capaz de perceber sua profundidade histórica. Isto é, atribuir sentido a esse filme significa necessariamente estabelecer relações não só com a experiência de indivíduos da classe social em questão, mas também com a experiência num âmbito social mais amplo, tamanha é sua referência ao cotidiano da classe média brasileira e às origens coloniais das desigualdades do país. E, como consequência disso, somos levados a reconstituir a imagem nacional, comumente representada em verde e amarelo, que passa, então a ter no preto e branco, cores mais adequadas para sua representação. Outro aspecto que confere singularidade a esse filme é a oscilação entre a utilização de convenções da narrativa cinematográfica comercial contemporânea e uma série de deslocamentos entre os significados usuais provenientes delas e os resultados inesperados que surgem daí. Cito alguns exemplos. Primeiramente o episódio da invasão noturna na casa de Fernanda, filha de Bia, que se revela repentinamente como apenas um sonho; outro é a aparição repentina de um garoto negro na casa em que se encontra Clodoaldo e Luciene, empregada de Francisco. Se na primeira situação, arma-se uma tensão que não chega a clímax algum, na segunda, quando menos se espera, algo acontece. Assim sendo, em ambas as situações, encontramos procedimentos comumente constitutivos de filmes norte-americanos de suspense e terror que, no entanto, diferentemente destes, não se fecham no conflito particular dos personagens.

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Pelo contrário, para compreender seu sentido ameaçador, é necessário lançar mão à referência social ali feita, associação, portanto, inesperada para o gênero a que parece se associar. Outra situação em que podemos nos surpreender com o afastamento dos sentidos pertencentes ao senso-comum é nos momentos em que os personagens estabelecem relações claramente nostálgicas com o espaço como na passagem da visita de João e Sofia, namorada do personagem, à propriedade rural do avô. O passeio bucólico pelo “engenho” é acompanhado de sucessivos momentos sinistros e ambíguos, cujos sentidos podem variar dependendo do ponto de vista adotado, seja o dos personagens imersos na situação, seja o dos espectadores que observam de fora. A principiar, temos os lentos passos no piso superior da casa ouvidos do porão: o que pode representar uma mera curiosidade de João e Sofia sobre quem está no cômodo superior transforma-se, para o espectador, numa cena perturbadora onde os passos se transformam em ecos fantasmagóricos do passado escravocrata, posto os personagens estarem numa ala que originalmente havia sido o abrigo de escravos. Na sequência, a visita a ruínas nos perturba com gritos imaginários. Se o contexto da visita à fazenda nos leva a associá-los à já distante tortura física de trabalhadores forçados, o desfecho do episódio nos revela que, de fato, eles se encontram num cinema em ruínas e que, portanto, os gritos eram uma mera alusão a filmes apelativos que já devem ter sido exibidos no local. Por fim, o divertido banho dos personagens na cachoeira se converte repentinamente, sob o olhar do narrador, num banho de sangue, mais uma vez dissolvendo qualquer tentativa de partilharmos da experiência dos personagens de um contato inocente e alienado com o espaço presente. Em todas essas passagens, procedimentos narrativos audiovisuais alinhados a uma estética pós-moderna (e com potencial de aprofundar a nostalgia) – tais como o esfumaçamento da tensão narrativa (como no som dos passos que aparentemente não levam a desdobramento algum), a fragmentação do olhar (como nas ruínas que, a princípio, não são reveladas como pertencentes a um cinema) e a ausência de causalidade (como parece ocorrer no repentino tingimento da cascata em vermelho) – são utilizados de modo a não reforçar o sentimento nostálgico presente entre os personagens, mas a restaurar a memória social. Um olhar mais atento a essa sequência de episódios expostos aqui nos revela também que o aleatório e o fragmentário dela é apenas aparente. Ao retomar os recursos audiovisuais utilizados, em especial os sonoros, nessas cenas que se unem por sua referência ao Brasil colonial, pode-se notar que temos: passos misteriosos, seguidos de gritos, um baque e, por fim, sangue em abundância – exatamente a sequência que encontraríamos numa cena de 666   

 

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assassinato num filme de suspense, só que no caso, o crime é de proporção sócio-histórica, ainda mais reforçado pela cena seguinte ao banho de sangue em que bruscamente voltamos ao apartamento de João, onde a filha da empregada doméstica canta inocentemente à porta do quarto do patrão, alheia às circunstâncias que a fazem estar onde está. Sendo assim, é concluída no filme a ideia de que o conflito pretérito traz consequências para o presente. Quer dizer, a fragmentação não impede o narrador de estabelecer uma continuidade, ou melhor, ao que parece, é exatamente devido à fragmentação narrativa que a memória e a experiência social, que ela traz, podem ser captadas. Desse modo, são as relações entre as tramas narrativa e social, apresentadas por meio da linguagem audiovisual, que constroem um painel do modo de vida da classe média contemporânea em que superação e persistência coexistem. Apenas para citar mais um episódio que ilustra tal afirmação: ao queimar o aparelho bark free de Bia, Francisca, sua faxineira, se responsabiliza pelo erro e, mantendo a relação num nível profissional – e não de servidão – assume um possível desconto no salário para reparar o dano; no entanto, Bia, personagem de aparência “descolada”, afirma que não pretende realizar qualquer desconto, o que não a impede de assumir a autoridade da ordem patriarcal e humilhar Francisca por meio de xingamentos e de um dedo em riste, apontando a cozinha como sendo o lugar de onde ela não deveria ter saído. Ainda assim, não podemos nos deixar levar pelas passagens tão expressivas citadas aqui como a da visita à propriedade de Francisco ou da queima do aparelho inibidor de latidos e concluir que predomina no filme um registro exaltado. Pelo contrário, a experiência de vida dos personagens é representada no Som de modo esmaecido. O processo em si das ações é frequentemente posto de lado, o que pode ser entendido como uma estratégia do foco narrativo de se aproximar da própria percepção alienada dos personagens de classe média. E isso ganha forma de diferentes modos: da bebedeira, não temos a consumação do exagero, apenas uma imagem de garrafas já consumidas; do uso de drogas, não vemos meramente sua fruição, mas um modo politicamente correto com o auxílio de um aspirador de pó para dispersar a fumaça; do tráfico, nada consta de suas consequências sociais, resta só a ação tão trivial quanto a da compra de galões de água; da presença policial, consta apenas como consumidora de produtos de camelô e não como a inspetora enviada pelo poder público; de um arrombamento de carro, vemos a gentileza da preservação impecável do vidro, a violência do ato em si se encontra ausente.

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Tal alienação do que de fato ocorre fica ainda mais explícita ao levarmos em consideração os eixos espaço-temporais da narrativa. Numa história em que o conflito pelo espaço vem à tona, é notável a noção de “dissolução espacial” presente nela. São obscurecidos constantemente os limites entre o público e o privado. Contribuindo para isso, não há como deixar de mencionar a presença ostensiva de limites seja ela marcada por muros ou pela compreensão limitada dos personagens a respeito daquilo que ocorre a seu redor (num nível rasteiro, pode-se mencionar o fato de seguirmos uma narrativa de aproximadamente duas horas de duração em que basicamente os episódios se dão numa única vizinhança, mas sem que consigamos precisar exatamente em que ponto do espaço se localiza um acontecimento em relação a outro). E, obviamente, tal limitação do entendimento vem acompanhada de uma “dissolução temporal” da percepção. Ainda que o passado esteja atuante no presente, a forma em que o filme é apresentado não demonstra que os personagens são capazes de estabelecer tal ligação. Como já dito, elementos do passado aparecem, na verdade, de modo um tanto quanto desconexo e repentino, cabendo ao espectador reconstituir as relações apenas após a última sequência do filme para obter uma compreensão totalizante. E isso se torna possível principalmente por meio do som. Mais do que as imagens, são os elementos sonoros utilizados, que não estão necessariamente presentes na cena apresentada, os responsáveis pela articulação entre a nostalgia vivida pelos personagens e a memória demonstrada pelo narrador. Já em seus momentos finais, Francisco recebe, em seu apartamento, Clodoaldo e seu irmão. Desejava contratá-lo como guarda-costas após o assassinato de seu “capataz” em Bonito, onde se encontra o “engenho”. Mal imaginava ele que Clodoaldo também vinha à casa com um intuito. E ao revelar sua verdadeira identidade por meio das palavras do irmão de Clodoaldo (“seu Francisco, vinte sete de abril de oitenta e quatro...o senhor não lembra, mas eu e meu irmão aqui, a gente lembra”), a memória vem à tona aos personagens. Num momento de repentina tensão, os personagens se levantam e a cena é cortada, passamos, na sequência, à Bia que ascende rojões de modo a atormentar o cachorro do vizinho que tanto a atormenta com seus uivos. Os rojões explodem. E não há como não associarmos o ruído provocado pelas bombas com o de disparos, possivelmente feitos contra Francisco na cena anterior, que não vemos. Isto é, a revelação final é responsável por uma inversão narrativa. Se até o momento, tínhamos personagens imersos em situações consideradas nostálgicas e apresentadas por meio de uma linguagem que ia no mesmo sentido e, a partir disso, recuperávamos a memória do processo social atuante; nesse momento final, a memória emerge internamente à narrativa, o que, no entanto, não significa que haja uma 668   

 

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transformação efetiva dos personagens (ou melhor, das classes envolvidas). Ao passarem à ação, seja atirando, seja explodindo bombas, ambos caem numa vingança em nome ou de um passado nostálgico ou de um futuro igualmente inexistente. Seja como for, a narrativa como um todo chega à sua conclusão apresentando uma saída provisória e particular e não totalizante e de abrangência social. Entretanto, seria engano deduzir que o filme falha por esse motivo, posto que é exatamente desse modo que a narrativa é capaz de permanecer fiel à contemporaneidade e simultaneamente deslocá-la, demonstrando um espaço para uma possível mudança. Voltando à última sequência do filme, é também relevante recordar que para cada explosão, há um breve congelamento da imagem até a última explosão cujo congelamento é definitivo e acaba a nos remeter ao formato da fotografia, exatamente o elemento pelo qual se inicia o prólogo da narrativa quando vemos fotos ao som de uma composição de Serge Gainsbourg, intitulada “Cadavres em série”. Nessas imagens, retratam-se grandes propriedades rurais e trabalhadores do campo, enfim, imagens que habitam nosso imaginário sobre um passado indistinto de nosso país que vaga da vida pública ao cotidiano privado, do período colonial escravocrata ao início dos anos 60, época das Ligas Camponesas no Nordeste. Chama também a atenção que por mais que novos instrumentos como a castanhola, o chocalho, o pandeiro, a conga e o bongô se juntem, o padrão rítmico da música permanece o mesmo. O desfecho dessa introdução torna ainda mais significativa a relação entre continuidade e irrupção do novo. No momento em que já se apresenta a última fotografia, a sobreposição de instrumentos é máxima. E parece ser muito significativo que no auge da saturação sonora, momento em que a tensão presente na música não teria como crescer mais sem se tornar mero barulho, um corte tanto no plano visual quanto no sonoro ocorra. Somos transportados para a área de lazer de um condomínio onde enquanto uma garota anda de patins, um menino está na bicicleta. A situação é outra, porém, ao atentarmos ao som ao redor, isto é, à história ao redor, podemos não ter mais o tambor da composição de Gainsbourg (ou o senhor de engenho), mas temos um bate-estacas (de um grande empreendimento imobiliário), não temos mais as castanholas, mas o barulho das rodinhas dos patins pelo espaço circunscrito de um condomínio, ambos involuntariamente ritmados. Quer dizer, o som é completamente outro, mas a base rítmica ainda é a mesma, denotando a permanência de conflitos pretéritos na atualidade.

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Em suma, seja no espaço social, seja no espaço narrativo, essa produção audiovisual nos revela uma ordem crônica de conflitos, que não se restringe apenas aos do enredo, e que ainda espera por um fim. REFERÊNCIAS: ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1992. BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: COELHO, Teixeira (Org.). A modernidade de Baudelaire. Trad. Suely Cassal. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 159-212. BOYM, Svetlana. The nostalgia of the future. New York: Basic Books, 2001. BRACKE, M. A. From Politics to Nostalgia: the transformation of war memories in France during the 1960s-1970s. European History Quarterly, vol. 41, n. 5, p. 5-24, fev. 2011. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2014. JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade de consumo. In: _____. A virada cultural: reflexões sobre o pós-modernismo. Trad. Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 17-44. SCHWARZ, Roberto. Cultura e política: 1964-1969. In: _____. O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. p. 61-92. REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012. ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.  

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