Relações Formais

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: ESCULTURA, Desenho
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Descrição do Produto

Relações Formais1 Emília Ferreira 1. Linhas paralelas Entre o desenho e a escultura, Rui Sanches é mais conhecido pela segunda. Contudo, há mais de vinte anos que na sua obra emerge um espaço de investigação em torno do primeiro. Exercício de introspecção sobre os caminhos da história da arte, sobre o projecto do seu labor escultórico, o desenho tem também tomado um protagonismo particular, exigindo investigação própria e existindo à margem de outras linguagens. Esta exposição mostra exactamente isso. Num conjunto de trabalhos que reflecte a sua produção mais recente (embora com uma presença de 4 desenhos datados de 1994), estão

patentes cerca de duas dezenas de

desenhos. E, complementando-os, a escultura (de que se mostram 15 obras) representa um corpus que possibilita uma visão bastante completa das investigações plásticas de Rui Sanches nestes últimos anos. Mas como se expressa o autor nestes dois domínios? Para começar, podemos dizer que não existe uma ordem pré-definida na passagem do desenho para a escultura ou da escultura para o desenho. Modos diferentes de viver a linha e o seu habitat natural — o espaço —, ambos os exercícios se inscrevem no percurso do artista como meios complementares de compreensão e análise plástica. 2. O espaço da linha Traçar uma linha, com consciência da tradição em que o gesto se inscreve, é sempre explorar os limites da mesma, analisar o seu modo de ser, captar-lhe o

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Texto do catálogo da exposição Rui Sanches. Relações Formais. Realizada na Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, de 2 de Junho — 2 de Setembro de 2007. ISBN: 978-972-8794-40-8.

sentido. É averiguar das condições de expansão (o seu movimento e inscrição no suporte ou a sua materialização), do corpo que ganha ou rejeita, dos volumes que cria ou deixa em aberto. Imaginemos um ser cujos movimentos ficassem gravados no ar. O gesto do desenho não é mais do que uma coreografia cuja frase ficou escrita num suporte. Digamo-lo de outro modo: de cada vez que um ponto se põe em movimento, as linhas que ele gera podem criar uma grande diversidade de padrões e abrir caminhos no espaço. E o que guarda uma linha no final do seu percurso? O modo como ela evolui dá-nos dimensões plurais das suas possiblidades. Mais recta, mais seca ou mais compacta, mais fluída, anatómica, sensual, definida, apurada, cirúrgica, orgânica, gritante ou silenciosa, ela vai explorando os seus próprios limites, seguindo uma lógica interna de autoavaliação, desdobrando-se, afilando-se ou expandindo-se. Sonda o que a rodeia e redefine-se no processo. O desenho contemporâneo tem essa capacidade particular de olhar para si mesmo. Mesmo quando olha para um corpo — seja ele humano, arquitectónico, paisagístico — é de si que fala, é para si mesmo que remete. Afirma-se enquanto linguagem e fala sobretudo da sua sintaxe. Exercício de auto-exame, não se esgota contudo numa mera técnica, mas ergue-se também como memória de uma tradição. Retomando o passado, reclama heranças e revisita ruínas. Os seus próprios resquícios. E actuando no presente, o desenho libertase da sua tradição para ir mais além, em infinita busca dos seus limites. Eis precisamente o exercício destas obras de Rui Sanches. Entre o desenho e a escultura, o desejo de uma linha no espaço. 3. A linha no espaço Percebe-se a tentação de fazer uma linha sair dos limites da bidimensão, a vontade de a avolumar no espaço. Estes corpos, cujos fragmentos se reajustam constantemente, demonstram a capacidade de o desenho se repensar, se reorganizar, erguendo-se numa multiplicidade de propostas, numa pluralidade

de histórias. Quando falamos de histórias não queremos com isso significar narrativas. Se bem que a obra de Rui Sanches tenha revisitado em tempos temas da História da Arte, há já uns anos que ela se libertou dessas condicionantes. A partir de então, as histórias — tendo que existir — ficaram por conta do espectador (note-se, neste aspecto também, a ausência de títulos em todas as obras patentes, evitanto trilhos únicos). E o artista ficou com o caminho livre para executar os seus jogos plásticos mais introspectivos. Mas voltemos à tentação espacial. No desenho — no qual compreensivelmente ela se encontra limitada pelo suporte — Rui Sanches resolve esse problema através do estabelecimento de relações entre as formas orgânicas e geométricas e no modo como recorre à cor. Cheios e vazios, espaços pintados ou em aberto, áreas da composição que reflectem ou absorvem a luz — vejamse as nuances dos brancos usados ou os cambiantes dos negros, numa diversidade de materiais, entre acrílicos, esmaltes, óleos e tinta-da-china, que serve uma grande variedade de efeitos —, ampliam no desenho os sentidos do espaço pela multiplicação de texturas e pela ilusão que criam no papel, de zonas mais profundas ou mais superficiais. Na escultura — um exercício que cria num território entre arquitectura, cenografia e paisagem —, a definição do espaço torna-se também uma operação de dar corpo ao desenho. Nas peças mais evidentemente “estratificadas”, compostas como grandes volumes topográficos (as obras mais “paisagísticas”), ou como fragmentos de corpos humanos, o desenho torna-se aparente no traçado das linhas que enformam o próprio corpo da obra. O fragmento, herança barroca, dinâmico em si mesmo, clássico também pela depuração formal e pelo equilíbrio conseguido, assume aqui um valor contemporâneo, não apenas pelos materiais usados (contraplacado, bronze, vidro, ferro, espelho — materiais claramente quotidianos, transmutados da sua natureza laica em resultado artístico), como também pela vontade de não criar simplesmente efeitos belos. A arrumação dos componentes da escultura, sobretudo quando a composição é mais evidentemente geométrica, evoca além disso um processo de acumulação

ordenado, que pode contudo ser revisto, reorganizado, regizado. O espaço funciona portanto como um princípio activo. Os cheios e vazios que o desenho revela (nas áreas deixadas virgens entre as camadas de tinta que marcam a composição) estão também presentes na escultura, marcados por lugares por habitar, momentos de respiração em que as peças se abrem ao olhar do espectador, revelam o seu corpo mais íntimo. Do ponto de vista do fruidor, quase seria possível também repegar nos materiais e reordená-los. O convite mental feito à nossa capacidade de entrar por esses lugares e apropriarmo-nos deles é tão evidente que quase desejaríamos poder alterar a nossa escala (um exercício infelizmente apenas possibilitado por Lewis Carroll a Alice no País das Maravilhas) para nos instalarmos dentro dessas “salas”, para passarmos por essas minúsculas portas e chegarmos enfim ao jardim. Eis um universo muito próximo do nosso lugar de recriação do espaço. No nosso ficcionar a obra, enquanto seus espectadores. Semelhante exercício de recriação constante é desde logo facultado pelo aparente desapego ao definitivo, aos universos estanques, fechados, finitos, que o autor vai criando, remetendo antes precisamente para um discurso serial, de eterno recomeço, de infinitas possibilidades. Dir-se-ia que é uma prática de labirinto que une desenho e escultura. Em ambas as disciplinas o método é aplicado com igual rigor. Seja nas sinuosidades da linha, seja nos seus contrastes mais angulosos. Entre paisagens interiores e exteriores (por vezes, a linha desenhada sobre o papel lembra células vogando na corrente sanguínea, ou mais simplesmente paisagens observadas em perspectiva picada, cuja luz lançada do alto tende a apagar rugas e demais acidentes), a corporeidade desses percursos casa bem com a geometria aplacadora do caos. Podemos igualmente afirmar a preposição inversa, complementar: a geometria não resulta estéril nem simbólica, por não ser centralizadora; ela funciona como elemento aglutinador por ser, tão-só, um instrumento entre outros, um tratado de rigor que busca, antes de mais, o equilíbrio, a harmonia das superfícies e dos volumes e do que neles se confronta. O resultado é por isso algo que comporta

o tempo, os acidentes. Nada de muito liso, intemporal. Nada de eterno, também. Assim nos alertamos para a humanidade desta obra, para a sua perturbação — que vive de igual modo no desenho e na escultura. Assim percebemos melhor aquela frase de Gombrich, que refere ser o contraste entre a desordem e a ordem que alerta a nossa percepção 2. Uma dissonância no meio da frase. Um indício de fragilidade no meio da beleza. Um modo muito simples de ser mortal, outro modo de dizer contemporâneo.

2

“It is the contrast between disorder and order that alerts our perception.” In GOMBRICH, E. H. — The Sense of Order: A Study in the Psychology of Decorative Art. Londres: Phaidon, 1994, p. 6.

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