Relações interpretativas em \'Ópera dos Mortos\', de Autran Dourado

October 4, 2017 | Autor: Pablo Rodrigues | Categoria: Literatura brasileira, Literatura, Autran Dourado, Ópera Dos Mortos
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, 10 de Dezembro de 2014.
Aluno: Pablo Baptista Rodrigues – Turma: LED
Disciplina: Ficção Brasileira II
Professora: Thais Seabra

Segunda Avaliação de Ficção Brasileira II
Relações interpretativas em Ópera dos Mortos, de Autran Dourado

Há sobretudo, os olhos. Quem as mira nos olhos é imediatamente transformado em pedra. Tudo o que caracteriza a coisa viva – a mobilidade, a flexibilidade, o calor, a suavidade do corpo –, tudo se torna pedra. Não é apenas a morte que enfrentamos, é a metamorfose que nos faz pensar do reino humano ao reino mineral. Disso ninguém escapa. (VERNANT, 2000, p. 188)

O olhar. Nada seria mais aterrorizante que dirigir os olhos a figura de Medusa, que entre as três Górgonas, é a mortal, e cuja cabeça é cortada por Perseu. O desafio lançado ao filho de Zeus e Dânae por Polidectes é que pela mão de sua filha Hipodâmia, o herói grego trará a cabeça de uma das três "mocinhas ancestrais, jovens idosas" (VERNANT, 2000, p. 185). O grande desafio é de lidar com um ser que em sua "cabeça crescem serpentes horrorosas, que lançam olhares selvagens" e que "levam nos ombros imensas asas de ouro e podem voar como pássaros". Seu grito é como bater no bronze, o que gera uma paralisa de terror. O olhar.
Ninguém escapa ao olhar da Medusa, tudo se torna pedra. O mito nos ensina porém, que ocorre uma grande metamorfose entre o natural e o mineral, o "que há de mais contrário à natureza humana" (VERNANT, 2000, p. 188). Isso permite constatação, por analogia, que muitos dos dilemas humanos carregam em sua essência a paralisa presente no olhar de Medusa. Antes de qualquer poder atribuído a essa Górgona, é o próprio olhar da vítima que é refletivo no olhar do ser mitológico, é a imagem assustadora de estar sendo transformado em pedra, "numa face do Hades, numa figura de morto, cego, sem olhar". (VERNANT, 2000, p. 188).
Somente Perseu será capaz de vencer o terrível desafio apresentado para ele. Calçado com as sandálias aladas poderá voar tão veloz quanto pensamento. E com o capacete da invisibilidade tentar passar desapercebido pelos olhos da Medusa. Para no fim guardar em sua a kísibis a cabeça do mostro cortada com foice dada por Hermes. Desse mito sabemos que Perseu, filho de Zeus e Dânae, saiu-se vitorioso.
A relação com o mito grego, aqui apresentado por Jean-Pierre Vernant é crucial para os caminhos que Ópera dos Mortos, de Autran Dourado nos possibilita a ler. Lembremos ainda de Italo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, onde o primeiro tema tratado em sua palestra para o ano 2001 é "Leveza":

Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.
[…] Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia captura pela mordaça de pedra. (CALVINO, 1990, p. 16)

O escritor italiano, comentando seu fazer literário, se utilizando do mito grego, nos apresenta todo um percurso de escritores que em sua obra levaram em consideração a oposição "peso" versus "leveza". E como evoca o texto de Calvino, o mundo atual pede situações que o impeçam ou que venham a reverter toda petrificação possível ou já existente.
Comecemos a observar o romance de Autran Dourado, Ópera dos mortos. Semelhante a Sinos da agonia, o leitor somente pelo título das obras é convidado a unir dois vocábulos que potencializam e revelam o drama das duas narrativas. A palavra agonia remete não somente a forma de aflição ou sofrimento agudo, de origem física ou moral, mas também um toque especial do sino para anunciar aos fiéis a morte de alguém. E "sino" já remetia a som e a sua utilização de mensageiro das igrejas, entres eles o aviso da morte de um membro da comunidade, sabemos então, que "agonia", também remete a musicalidade, sendo uma redundância perfeita.
Já em Ópera dos mortos temos a contradição como construção significativa. Há todo um jogo semântico no título do romance, pois se "ópera" remete a musicalidade, uma obra dramática e musicada, desprovidas de falas, composta de recitativos, árias e coros, temos também na mesma palavra, a aproximação de opera, do latim, que remete a trabalho, realização manual. Nos dos casos a musicalidade ou o trabalho dos mortos é altamente aceitável, pois tais características são evidentes no romance de Autran Dourado.
Estamos diante de um romance do silêncio. Não por deixar de acrescentar ao leitor um tipo de conhecimento presente na literatura, mas por uma linguagem silêncio que Dourado no apresenta Ópera dos mortos. A relação aqui já anunciada no título é a do silêncio, a linguagem calando-se. Os relógios estão parados, Rosalina está fechada em si mesmo, a mudez de Quinquina. Duas "não-vozes" femininas, marcadas pelas vozes de José Feliciano. E essas contradições significativas, esses meandros de significado, ainda são reforçados com o fragmento 93 de Heráclito, epígrafe do livro: "O deus de quem é o oráculo de Delfos não diz nem oculta nada: significa". Em Ópera dos mortos o que temos é esse logos que une, mas jamais se torna uniformizador, da totalidade do real. É a perda do lugar dos significados, do conteúdo, para a prioridade dos significantes, ou seja, a impressão psíquica desse som.
Sobre as questões do tempo, podemos observar logo no início da trama que o "olho de naturalista, que só vê o já, o agora" será desafiado, que "Um recuo no tempo" será necessário. Nesse primeiro momento toda a nossa atenção é voltada para a casa, na "sua aparência inteira, apartada, suspensa", seu ar barroco e junto o pedido ao tempo: "não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era; só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora". (DOURADO, 1999).
A casa pode ser tomada aqui como o primeiro espaço problematizado por Autran. Ela não surge aqui como uma espécie de cortiço conformo nos apresenta Aluísio de Azevedo. A casa tem um profundo rigor psicológico que encarnam os personagens Lucas Procópio Honório Cota, o filho João Capistrano Honório Cota e a neta Rosalina. Gaston Bachelard em A poética do espaço, afirma:

Para um estudo fenômeno lógico dos valores da intimidade do espaço interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado, sob a condição, bem entendido, de tomarmos, ao mesmo tempo, a sua unidade e a sua complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental. (BACHELARD, 2000, pág. 16)

Bachelard relaciona portanto, a construção do espaço físico ao espaço psicológico, nos revelando que o "ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo". A casa é o próprio indivíduo e a compreensão desse ser, se dá pela compreensão das imagens criadas dessa moradia. A casa portanto, é preciosa pois nela seus atores demostram seus "devaneios", o "sonhador é protegido", "sem ela [a casa], o homem seria um ser disperso".
O desejo de João Honório Cota é de justamente abrigar na casa o pai e a si mesmo. O personagem pede um sobrado que daria continuidade a casa deixada pelo pai:

Ora, já se viu, mudar, pensou. Não quero mudar tudo, disse. Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele. E como o homem ficasse meio atarantado sem entender direito aquela argamassa estranha de gente e casa, vindo de outras bandas, o coronel puxou um pigarro e disse o senhor não entende do seu ofício? (DOURADO, 1999, p. 14-15)

O que aparentava duas casas, à primeira vista, no fim era somente uma. Pelo sobrado era visto os traços das duas pessoas distintas: Lucas Procópio e João Capistrano Honório Cota. A união, os dois, pai e filho unidos para sempre. O teor simbólico se dá mais do plano físico da moradia, como nos apresenta Bachelard, do que uma memória voltada a rememoração e ou uma narração do passado. É a casa que fala mais, sobre a história e o relacionamento de pai e filho.
Chama-nos atenção ainda a voz do narrador e a descrição da casa: "pense no barroco", "veja a ilusão do barroco". Autran Dourado explicitamente no coloca em diálogo com a reapropriação do barroco no século XX. Temos portanto, uma experiência poética que relaciona o passado na dinâmica do presente. O Barroco passa a ser uma estética que se posiciona diante da modernidade euro-norte-americana:

Há duas categorias fundamentais e interdependentes do texto moderno que aparecem descoladas ou ameaçadas nos textos neobarrocos: a temporalidade e o sujeito. A temporalidade narrativa é visivelmente malbaratada nos relatos cuja ordenação temporal da história revela a sua crise mediante as agrupações de fragmentos, senão inconexos, fortemente destituídos de desenvolvimento fabular. (CHIAMPI, 2010, p. 13)

A casa pode ser vista com essa reunião de fragmentos, o pai e o filho, e o desejo da eternização desse sujeito na construção de sua moradia. Os personagens de Autran seriam portanto, essa soma de fantasmas. Não temos aqui um realismo fotográfico, mas um "realismo horizontal", que retira da arte e não de uma "realidade" aparente sua força inventiva.
Juntamente à casa temos Rosalina, que nos é colocada como personagem paradoxal sendo a herança psicológica de seu pai e avó. Ela era "uma figura recortada de história, desses casos de damas e nobres que contam pra gente, toda inexistência, éterea, luar". (DOURADO, 1999, p. 41-42). Tanto herda e representa seu pai, que na morte João Capistrano Honório Cota, sua reação foi a mesma do pai, a repetição da ação de parar o tempo. Temos então, a primeira parada do relógio com a perda da eleição do coronel, depois a morte de D. Genu, e por fim Rosalina com a morte do pai. Uma espécie de paralisia do tempo como punição à cidade, porém a paralisia é, sobretudo, a paralisia de pai e filha:

Abriu-se caminho para Rosalina. Quando a gente pensou que ela fosse primeiro para junto do pai, voltou-se para a parede e aquilo que ela trazia brilhante na mão era o relógio de ouro do falecido João Capistrano Honório Cota, aquele colete branco, tão bonito e raro, Pateck Philip dos bons, legítimo. Que ela colocou num prego na parede, junto do relógio comemorativo da Independência. Os relógios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas do silêncio. Só na copa ouviam a pêndula no seu trabalho de aranha. (DOURADO, 1999, p. 42)

O tempo da narrativa é um tempo sufocante, onde só existe passagem temporal para a morte, a única a vencer na obra. A paralisia e a petrificação lidas em Ópera dos mortos nos revela, como nos apresenta Calvino, a análise crítica da relação do leitor e arte. Esse carece de matéria literária como meio de experimentação e de quebra de uma atmosfera petrificada. É portanto possível, enxergar na literatura de Autran Dourado os Perseu evocado por Italo Calvino, bem como cada leitor, que em seu hábito intelectual se identifica com a obra.
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, G. A poética do espaço. Biblioteca de Filosofia da PUC, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 02 dezembro 2014.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHIAMPI, I. O barroco no caso da modernidade. In: CHIAMPI, I. Barroco e modernidade. São Paulo : Perspectiva, 2010. p. 3-22.
DOURADO, A. Ópera do mortos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
VERNANT, J.-P. O universo, os deuses, os homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.




Kísibis: "uma bolsa, ou mochila, na qual os caçadores guardam a caça morta". (VERNANT, 2000, p. 187)

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