Relações na Tríplice Fronteira: A Bolívia no Contexto da Guerra Grande (1865-1868).

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO-GROSSO MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓSPÓS-GRADUAÇÃO GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA

LEONAM LAURO NUNES DA SILVA

RELAÇÕES NA TRÍPLICE FRONTEIRA: A BOLÍVIA NO CONTEXTO DA “GUERRA GRANDE” (1865-1868) (1865 1868)

Cuiabá – MT Maio de 2009

LEONAM LAURO NUNES DA SILVA

RELAÇÕES NA TRÍPLICE FRONTEIRA: A BOLÍVIA NO CONTEXTO DA “GUERRA GRANDE” (1865-1868)

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Federal de Mato-Grosso, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História, sob orientação da Profª. Drª. Maria Adenir Peraro.

Cuiabá – MT Maio de 2009

FOLHA DE APROVAÇÃO

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Profª. Drª. Maria Adenir Peraro – UFMT (Presidente) (Orientadora)

______________________________________________ Prof. Dr. Estevão Chaves de Rezende Martins - UNB (Membro Externo)

_______________________________________________ Prof. Dr. Pio Penna Filho – UFMT/USP (Membro Interno)

_______________________________________________ Profª. Drª. Maria de Fátima Costa – UFMT (Suplente)

Cuiabá – MT Maio de 2009

Dedico esta dissertação a minha amada família, portoseguro onde ancorei em todas as vezes que o mar esteve revolto e a minha doce Manuela, meu sublime amor, mulher de fibra, linda em todos os sentidos, responsável por vários dos meus momentos de inspiração. Não posso me esquecer de Vovó Victurina (in memoriam), que foi para junto de Deus em 2008, deixando legados de amor, fé e esperança.

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Mato-Grosso, que me oportunizou todas as condições de desenvolver este trabalho, ajudando em minha formação profissional. À eminente Profª. Drª. Maria Adenir Peraro, que me honrou com a sua orientação desde a graduação até chegarmos ao ponto culminante da “militância”, agora, no Mestrado. Além de notável professora e pesquisadora demonstrou ser uma pessoa generosa e compreensiva, que terá espaço cativo em meu coração. Aos professores do Programa de Pós-Graduação, Mestrado em História, que contribuíram de forma marcante na formação deste mestrando enquanto pesquisador. Aos professores doutores que participaram da Banca do Exame de Qualificação, Maria de Fátima Costa, Pio Penna Filho e Estevão Resende Martins, pelas importantes contribuições metodológicas e teóricas dadas na construção da presente pesquisa. Agradeço também à minha turma, composta por pessoas especiais, com quem compartilhei as conquistas, dores e aflições do Mestrado. Com receio de esquecer alguém, prefiro não citá-los. O nome de cada um está gravado de forma indelével em minhas memórias. Aos funcionários da UFMT, em especial aos que compõe o Programa de PósGraduação em História. Cito, particularmente, Mônica, que já não faz parte dos quadros da universidade; porém, enquanto esteve desenvolvendo seu trabalho, o fez de forma competente e cativante. Escolho-a como representante destes bravos que tem como missão tornar mais brandas as barreiras da burocracia, pessoas que admiro e respeito. A UFMT não seria a mesma sem vocês. Aos colegas do Grupo de Pesquisa “Instituições, Memória e Família”, coordenado pela Professora Maria Adenir Peraro, cito: Aluisio -com ênfase -, Quelce, Kátia, Jonh Eric e Darlene.

À CAPES, que me possibilitou, através de bolsas de estudo, desenvolver a pesquisa da melhor forma possível. O incentivo às pesquisas é, sem sombra de dúvidas, pilar imponente para a construção do País que almejamos, pujante e altaneiro em termos educacionais. Ao meu amado Pai, Manoel, à minha amada Mãe, Eliane, que nunca mediram esforços para verem cintilarem em meus olhos a felicidade. Às minhas amadas irmãs, Enaile e Ariane, pelo carinho, respeito e compreensão ao longo de nossa história familiar. À minha amada Manuela, fonte de inspiração na qual bebi ao longo de todo trabalho. Companheira inseparável, mesmo estando a milhares de quilômetros de distância. Tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto... Coisas que só são explicáveis sob as luzes intensas do nosso amor.

Dentro de uma perspectiva continental, a pergunta é a seguinte: deveríamos propiciar uma reunião como esta, envolvendo outros países que contemporaneamente se envolveram em guerras na América do Sul? Guerras cruéis! Refiro-me, em especial, a Guerra do Pacífico, sustentada entre Bolívia e Chile. Desde então, nós bolivianos não conhecemos o mar. Para a Bolívia, a Guerra do Pacífico não é somente um problema histórico, é um problema de respirar como necessitam todos os outros países. [...] Não me culpem, por favor, se acaso estou a dizer algo retórico. Se é que, realmente, vamos falar de integração, façamos uma reunião também com outros países que, contemporaneamente, tem convivido com as guerras, e que, até hoje, tem problemas não resolvidos. Meu país é indigente. Meu país sofreu um surto de pobreza, quiçá um dos mais impressionantes da América Latina. Oxalá, vocês consigam promover uma reunião idêntica a esta, com Bolívia, Chile e demais países que também lutaram no século XIX*1.

*Manifestação de um boliviano, cujo nome desconheço, que acompanhava, na platéia, as discussões a respeito da Guerra com o Paraguai, em um Grupo de Trabalho que integrou o Seminário Internacional sobre a temática, realizado em Paris, na França, em 2005. De certo modo, creio que o trabalho que ora apresento vem atender o pleito do anônimo cidadão ao inserir seu país nas discussões sobre a “Guerra Grande”.

RESUMO O estudo realizado visa colocar em evidência a participação da Bolívia na Guerra com o Paraguai. Há um recorte espacial e temporal mais específico com vistas a analisar as relações na tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Bolívia) durante o período em que tropas do Presidente paraguaio Francisco Solano Lopez estiveram ocupando Corumbá, entre os anos de 1865 e 1868. Utilizamos de fontes obtidas no Arquivo Público de Mato-Grosso (APMT), em Cuiabá, Arquivo Nacional de Assunção (ANA), Paraguai, e Arquivo da Universidade Autônoma Gabriel René Moreno, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia. O multifacetado relacionamento é objeto de análise através de diferentes ângulos historiográficos, situados no campo da História das Relações Internacionais / Interregionais. Personagens outrora silenciados pela historiografia ganham voz. Um caminho terrestre é aberto entre Corumbá e Santo Corazón, na Bolívia, proporcionando que sociedades interagissem através do comércio, ao mesmo tempo em que se reconheciam culturalmente. Encontro este, objeto de nossa análise. A Bolívia não fora mera expectadora de o embate militar; suas ações não só influíram no transcurso do conflito, como ajudaram a compor um quadro sobre o qual deveriam se debruçar agentes contemporâneos em discussões acerca do relacionamento entre os países.

Palavras-chave: Guerra; América do Sul; Fronteira.

ABSTRACT

The study aims to highlight the participation of Bolivia in the War against Paraguay. There is a more specific spatial and temporal cut in order to examine the relationships in the triple border (Brazil, Paraguay and Bolivia) during the period in which the troops of the Paraguayan President Francisco Solano Lopez were occupying Corumbá, between 1865 and 1868. The sources obtained from the Public Archives of Mato-Grosso (APMT) in Cuiabá, the National Archives in Asuncion (ANA), Paraguay, and the Archive of the Autonomous University Gabriel Rene Moreno in Santa Cruz de la Sierra, Bolivia were used. The multifaceted relationship is the object of analysis through different historiography angles, located in the field of History of International / Inter-regional Relations. Characters once silenced by historiography now speak for themselves. A road is open between Corumbá and Santo Corazón, Bolivia, providing that societies interact through trade and recognized each other culturally at the same time. This is the object of our analysis. Bolivia was not a mere spectator of the military conflict, its actions not only influenced the development of the conflict but also helped to draw a picture on which contemporary agents should give attention by discussing about the relationship between the countries.

Keywords: War - South America - Frontier.

LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 1 - Visão atual, via satélite, da região fronteiriça entre Brasil e Bolívia.......16 IMAGEM 2 - A tríplice fronteira Brasil – Paraguai – Bolívia, na segunda metade do século XIX.................................................................................................................................25 IMAGEM 3 - Mapa do Território de Santa Cruz durante a Guerra de Independência. 18101825.................................................................................................................................47 IMAGEM 4 - General Mariano Melgarejo Valencia, Presidente da Bolívia à época da "Guerra Grande”.............................................................................................................48 IMAGEM 5 - Mapa do "Peaberu", com seus braços e bifurcações................................62 IMAGEM 6 - El Chiriguano, monumento à ancestralidade “Guarani” dos naturais de Santa Cruz.................................................................................................................................66 IMAGEM 7 – Índios Guarani “Civilizados” servindo ao Exército Imperial Brasileiro.........................................................................................................................70 IMAGEM 8 - Assinaturas dos membros pioneiros da Sociedad Progresista de Bolivia.............................................................................................................................76 IMAGEM 9 - O Cabichuí satiriza Caxias e o seu espanto com a chegada de abastecimento ao Paraguai......................................................................................................................82 IMAGEM 10 - Bandeira cruz-serrana, criada por Tristán Roca Suarez em 24 de julho de 1864.................................................................................................................................91 IMAGEM 11 – “Notícia importante”, recorte do El Centinela, periódico oficial da imprensa paraguaia (1867)..............................................................................................93 IMAGEM 12 - Tristán Roca Suarez, político e jornalista cruz-serrano..........................95 IMAGEM 13 - Monumento em homenagem ao General Antônio Maria Coelho em Corumbá.........................................................................................................................99 IMAGEM 14 - Os caminhos do Oriente boliviano.......................................................101

LISTA DE ABREVIATURAS

APMT ............................................Arquivo Público do Estado de Mato-Grosso - Cuiabá ANA………………………………………….Archivo Nacional de Asunción – Paraguai AUAGRM………...Archivo Histórico da Universidad Autonoma Gabriel René Moreno SH........................................................................Sección Histórica – Assunção, Paraguai CRB.................................................Colección Vizconde de Río Branco – Rio de Janeiro BNA..............................................................Biblioteca Nacional de Asunción - Paraguai CHDD...................................Centro de História e Documentação Diplomática – Brasília NDHIR...................Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional - UFMT

SUMÁRIO

Apresentação..................................................................................................................13 Introdução......................................................................................................................15 Capítulo I – As Relações Oficiais no Palco da “Guerra Grande”.............................32 1.1 – O Cenário Platino.................................................................................................33 1.2 – O Teatro da Diplomacia.......................................................................................41 Capítulo II – Dos Peabirus aos Caminhos Abertos pela Guerra..............................60 2.1 – Os Peabirus...........................................................................................................61 2.2 – Encontros Marcados pela Guerra......................................................................66 2.3 – Vias Abertas para o Comércio Fronteiriço.......................................................73 Capítulo III – O Caminhar das Relações Provinciais na Tríplice Fronteira............85 Considerações Finais....................................................................................................107 Fontes e Referências....................................................................................................112

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APRESENTAÇÃO

O interesse pelo estudo das relações desenvolvidas entre Brasil, Paraguai e Bolívia durante os anos da “Guerra Grande”1, despertou, ainda na graduação, a partir da experiência como bolsista PIBIC (2003-2006), integrante do projeto de pesquisa Mulheres paraguaias, Militares e Guerra do Paraguai, coordenado pela Profª. Drª. Maria Adenir Peraro. Em função do trabalho de levantamento e análise de fontes documentais concernentes ao projeto - que consistia na tentativa de compreender o processo de transculturação na fronteira oeste do Brasil, envolvendo paraguaios, que ao término da guerra travada em solo sul-americano migraram para Mato-Grosso – constatei a possibilidade de desenvolver um estudo mais apurado sobre o relacionamento que Brasil e Paraguai (países beligerantes) mantiveram com um vizinho comum de fronteira: a Bolívia. Não poderia deixar de mencionar também as relevantes contribuições legadas pela participação no PADCT (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico), coordenado em nível regional pelo Professor Doutor Pio Penna Filho, entre 2004 e 2006. Além da profícua troca de idéias com pesquisadores de Brasília, o Programa proporcionou que fizéssemos uma viagem à Assunção, no Paraguai, na qual pudemos tomar contato com fontes manuscritas – procedentes do ANA (Arquivo Nacional de Assunção) – e com rica bibliografia, demonstrando a viabilidade do projeto e fortalecendo o desejo de levar a pesquisa adiante. O objetivo específico deste trabalho recai sobre o período em que Corumbá ficou ocupada por tropas paraguaias, lideradas pelo presidente Francisco Solano López, entre os anos de 1865 e 1868, e as relações mantidas com a Bolívia no tocante à diplomacia, bem como a interação comercial entre as populações durante o período delimitado. A relevância do trabalho consiste em revelar sua adequação à nossa realidade, traduzida na necessidade cada vez maior de aproximação com nossos vizinhos, não só tendo em mente o viés da “globalização”, com a formação de mercados comuns, mas 1

Nomenclatura usada pelos historiadores revisionistas, do início do século XX, que aludia à grande dimensão alcançada pelo embate bélico. Ainda hoje, parte da historiografia paraguaia se reporta ao conflito utilizando-se dessa expressão.

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também no que concerne a construção cultural de uma identidade latino-americana. Dessa forma, creio que o trabalho cumpre seu papel ao propor um novo objeto para a reflexão, tentando aclarar situações que dizem respeito aos que participaram “efetivamente” de episódio de tamanha repercussão no continente: “A Guerra Grande” (1864-1870).

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INTRODUÇÃO A historiografia a respeito da “Guerra Grande” (designação essa que tem por intuito ressaltar a dimensão do conflito, sem precedentes em solo sul – americano) abre perspectivas para análise de novos temas referentes ao conflito que durou de 1864 a 1870. É bom que se diga que a Guerra foi grande em todos os sentidos. Abrangente, o evento bélico contou com a participação de vários agentes, sendo que, ainda hoje, permanecem ocultos. Tentamos no decorrer do trabalho desvendar enigmas sobre a multifacetada Guerra que banhou de sangue o chão sul-americano, mas também promoveu políticas, fomentou o comércio e acalentou surpreendentes encontros culturais. Cenário de distanciamentos e aproximações, diferenças e similaridades, práticas e discursos. Campo fértil para reflexões e debates a respeito de temas que não se perdem no tempo e espaço; ao contrário, revigoram-se com a História. Embora esta dissertação trate da conjuntura política que norteou as relações desenvolvidas entre o Império brasileiro e as repúblicas do Paraguai e da Bolívia, há nele um recorte espacial e temporal específico, que visa uma análise sobre o período em que Corumbá, localizada à época na Província de Mato-Grosso, atualmente no Estado do Mato Grosso do Sul, ficou ocupada por tropas do presidente paraguaio Francisco Solano López, entre os anos de 1865 e 18682. O papel que desempenhou a Bolívia no contexto da guerra, seus interesses comerciais e o relacionamento fronteiriço que manteve com os países beligerantes, mais precisamente Brasil e Paraguai, merecem atenção especial, sendo devidamente significados. As múltiplas feições dessas relações possibilitaram que tecêssemos breves considerações acerca de assuntos pouco debatidos pela historiografia, sobre o qual recaem alguns questionamentos: Que importância estratégica teve a ocupação militar paraguaia em Corumbá e quais as suas conseqüências para o transcurso da guerra? Quais eram os 2

Corumbá faz fronteira seca com o oriente da Bolívia, mais precisamente com a Província de Chiquitos, Departamento de Santa Cruz de la Sierra. No século XIX, durante a Guerra Grande, esteve no centro das atenções, muito em face de sua privilegiada localização, às margens do Rio Paraguai, na então Província de Mato-Grosso.

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interesses da Bolívia na luta travada entre brasileiros e paraguaios? Qual a postura adotada pelo Estado boliviano ao longo do conflito? Que tipo de relacionamento se desenrolou na região da tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Bolívia)? Tentamos responder a essas interrogações ao longo do trabalho. Imagem 1 – Visão atual, via satélite, da região fronteiriça entre Brasil e Bolívia. Espaço reconfigurado pela “Guerra Grande” e palco onde atuaram os personagens da presente trama.

Fonte: GOOGLE MAPS, disponível em: http://maps.google.com.br/, data do acesso: 20/04/2007.

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No âmbito das discussões sobre a Guerra do Paraguai, há atualmente uma série de linhas de pensamento que conduzem à reflexão sobre tema gerador de tanta controvérsia. As tendências hegemônicas mudaram ao longo do percurso histórico, sem que, no entanto, deixassem de encontrar resistências. Em sua obra A Era do Capital3, Eric Hobsbawn descreve a década de 1860 como “uma década de sangue”, testemunha de vários conflitos desencadeados pelo mundo, dentre eles a Guerra Civil Americana e a Guerra do Paraguai. Ainda de acordo com a obra citada, a guerra Civil Norte-americana e a do Paraguai simbolizaram a expansão global do capitalismo. Hobsbawn encara a Guerra do Paraguai como uma imposição de Brasil, Argentina e Uruguai ao Paraguai para que este saísse de um estado de “auto-suficiência”. Historiadores marxistas tendem a entender a Guerra do Paraguai como “um grande negócio”. Ainda seguindo essa linha de raciocínio há aqueles, como observaremos, que dizem o Paraguai ser o único país sul-americano fechado aos interesses comerciais ingleses, tendo os bretões fomentado o conflito a fim de abrir o mercado e assegurar matérias-primas – em particular o algodão – para suprir as necessidades de suas indústrias. O Paraguai é tido como um país em ascensão tolhido pelo interesse do capital inglês. No entanto, o historiador britânico Leslie Bethel afirma serem poucas as evidências capazes de embasar esse tipo de análise. A Inglaterra jamais teve, de acordo com Bethel, sua hegemonia econômica e política ameaçada durante o período analisado. O autor vê a América Latina como parte integrante de um Império Britânico “informal”, pois estava sob domínio econômico e sujeita a imposições políticas, via de regra, vinculada a excessiva “dependência” do capital inglês4. Sua tese confronta com as de autores da linha revisionista, dentre os quais se destaca Júlio José Chiavenatto, escritor de Genocídio Americano5, obra na qual aborda de forma contundente a presença britânica no conflito, não como mero espectador, mas sim exercendo

ingerência

direta

nos

rumos

dos

acontecimentos,

interessado

no

desaparecimento do modelo paraguaio de desenvolvimento, exemplo sul-americano de

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HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-1875). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. BETHEL, Leslie. A Guerra do Paraguai: História e historiografia. In: Marques, Maria Eduarda de Castro Magalhães. Guerra do Paraguai, 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. 5 CHIAVENATTO, José Julio. A Guerra do Paraguai: Genocídio Americano. São Paulo: Brasiliense, 1986. 4

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equiparidade social. Argumenta, por exemplo, sobre o baixo ou quase nulo índice de analfabetismo no país. Teses pró e contra a participação direta da Inglaterra na Guerra do Paraguai surgem aos borbotões desde então. Nesse contexto emerge a obra de André Corvisier, intitulada A Guerra – Ensaios Históricos6, legando contribuições ao trabalho em andamento. Professor emérito da ParisSorbonne, militante da História Militar, reconhecido pela renovação que empreendeu na forma dos estudos militares, despreendeu-se do modelo arcaico de meras descrições de batalhas, táticas e estratégias de guerra, enveredando para o campo do estudo comparado e interdisciplinar à luz da Sociologia, Antropologia, Economia, Política e Religião. A obra de Corvisier encontra-se dividida em sete capítulos, os quais abordam a Guerra sob diversos ângulos, usando para tal o artifício metodológico do estudo comparado. Sua importância pode ser percebida quando traz à tona análises a respeito das conseqüências da Guerra para as sociedades que a vivenciaram. Dotado de um viés sociológico, o autor procura lançar luzes sobre as trajetórias individuais, muitas vezes desprezadas em detrimento de uma percepção generalizante, que homogeneíza e limita a discussão. Enfoca a guerra como vetor de transformações sociais. Nesse ponto vai ao encontro da análise que faço em meu texto, especialmente quando percebemos o estreitamento das relações entre comunidades limítrofes, numa situação singular, um momento de exceção: a guerra. Normalmente, já há uma intensa complexidade no estudo das relações que envolvem a fronteira, com uma gama de aspectos a serem explorados; somado a esse quadro, o evento belicoso torna a temática ainda mais instigante, e então podemos indagar: Como a guerra é capaz de modificar as estruturas sociais, mesmo que em um curto espaço de tempo, como fora o caso da ocupação paraguaia em Corumbá? Ao estarem inseridos dentro de uma nova conjuntura, os atores tendem a revelar desejos latentes, adormecidos diante da necessidade de convivência com o “outro”, vizinho de fronteira. A Guerra, portanto, quando associada à fronteira pode ser encarada como fator que abre janelas para o diálogo, numa ação dialética entre o poder da força e o poder do verbo.

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CORVISIER, André. A Guerra: ensaios históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 1999.

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A guerra, causadora de dor e sofrimento, provoca mudanças naqueles que a vivenciam, arruinando a uns e favorecendo a outros. No que tange ao aspecto econômico, por exemplo, a obra de Corvisier nos conduz a refletir sobre certa categoria de indivíduos para quem a guerra pode ser um atrativo negócio, quase uma loteria. Situação referendada através dos estudos sobre a interação entre bolivianos, paraguaios e brasileiros durante o embate bélico travado em solo sul-americano. Wilma Peres Costa, em A Espada de Dâmocles7, auxilia na compreensão do cenário platino, bem como na percepção do intenso embate político na corte imperial, no Rio de Janeiro, entre Conservadores e Liberais, centro de decisões que influía diretamente nas ações desencadeadas no front de batalha. Relevante os seus escritos para entender o confronto que se deu ao longo do período regencial entre os poderes locais e o poder central, aspecto que também é abordado. O presente trabalho propõe uma reflexão sobre especificidades da interação mantida em zonas de fronteira, em regiões normalmente distantes dos centros de decisões político-administrativas dos Estados-nações. Trata-se de uma discussão contemporânea, mas que pode ser percebida no transcurso de todo o percurso histórico. De acordo com correspondências oficiais trocadas entre autoridades militares e civis dos países envolvidos, os bolivianos sempre estiveram muito atentos aos acontecimentos, interessados nos rumos tomados pelo conflito. Afinal, estavam inseridos no episódio os países com maior poderio político e econômico do continente: Brasil e Argentina. A Bolívia, por sua localização geográfica, vizinha de fronteira tanto de Brasil quanto de Paraguai, não ficou imune aos efeitos de tão prolongada guerra. Aqui, cabe uma explicação mais pormenorizada com a finalidade de esclarecer o conceito de fronteira que pretende dar respaldo à argumentação. O enfoque que será dado terá como premissa entendê-la enquanto área de contato, zona de transição, onde ocorrem relações sociais, econômicas, políticas e culturais entre populações de países limítrofes. O trabalho, embora faça uso da definição geopolítica como referência, compreende as relações desenvolvidas entre brasileiros, paraguaios e bolivianos como resultantes de um 7

COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo, Hucitec/Ed. da Unicamp, 1996.

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itinerário histórico pautado pelo intercâmbio constante na região analisada. Logo, o estudo está enquadrado no campo da História das Relações Internacionais e inter-regionais. A atuação do Estado nas questões relativas à fronteira internacional é também objeto de análise e reflexão. Discorrendo sobre o papel dos Estados no seio dos estudos da História das Relações Internacionais, Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle, em sua obra Introduction à l’histoire des relations internationales, atestaram:

O estudo das relações internacionais está voltado, sobretudo, para a análise e a explicação das relações entre as comunidades políticas organizadas no quadro de um território, isto é, entre os Estados. Sem dúvida, ele deve levar em conta as relações estabelecidas entre os povos e entre os indivíduos que compõem esses povos – intercâmbio de produtos e de serviços, comunicações de idéias, jogo das influências recíprocas entre as formas de civilização, manifestações de simpatias ou de antipatias. Mas, ele constata que essas relações podem raramente ser dissociadas daquelas que são estabelecidas entre os Estados: os governos, frequentemente, não deixam a via livre a esses contatos entre os povos; eles lhes impõem regulamentos ou limitações, quer se trate do movimento de mercadorias ou de capitais, de movimentos migratórios, ou mesmo de circulação de idéias; eles podem também, por outros procedimentos, orientar as correntes sentimentais. Essas intervenções não têm somente como resultado mais frequente a restrição ou a atenuação das relações estabelecidas pelas iniciativas individuais; elas também lhes modificam o caráter. Deixadas a elas mesmas, essas relações entre os indivíduos poderiam constituir, algumas vezes, um fator de solidariedade; pelo menos, os antagonismos entre esses interesses individuais não acarretariam, na maior parte dos casos, consequências políticas diretas. Regulamentadas pelos Estados, elas se tornam elemento de negociações ou de contestações entre os governos. É, portanto, a ação dos Estados que se encontra no centro das relações internacionais8.

Embora concordemos com boa parte dos argumentos expostos pelos conceituados estudiosos franceses, entendemos que há a necessidade de ampliar essa perspectiva de atuação por parte do Estado, principalmente com relação à fronteira. Nosso objeto, situado no século XIX, em pleno processo de formação dos Estados Nacionais latino-americanos, nos mostra a existência de uma dialética entre práticas e discursos da qual o Estado não 8

RENOUVIN, Pierre e DUROSELLE, Jean-Baptiste. Introduction à l’histoire des relations internationales; Paris: Librairie Armand Colin, 1964, Introdução, p. 1.

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deve prescindir para que possa exercer, positivamente, a sua centralidade. Tendo em vista a pesquisa desenvolvida por nós, constatamos que, muitas vezes, o Estado utiliza seu poder mediante uma “provocação”. Ou seja, é influenciado para daí, então, influenciar. E não está aí nenhum menosprezo ou pretensão de desvalorizar o papel do Estado, ao contrário, somos da opinião que esse processo é extremamente salutar, pois pode desencadear a produção de políticas que visem diminuir as assimetrias, responsáveis, dentre outros fatores, pela obstaculização da integração regional em sua faceta mais próspera. De modo geral a escassez de estudos sobre regiões de fronteira internacional pode ser explicada pela situação duplamente marginal que as tem caracterizado. Por um lado, grande parte dessas regiões está isolada dos centros nacionais de seus respectivos Estados, quer pela ausência de redes de transporte e de comunicação, quer pelo menor peso político e econômico que possuem. Por outro lado, as regiões de fronteira estão também formalmente isoladas dos Estados vizinhos pelo papel disjuntor dos limites políticos. Sem instituições para instrumentá-la, a cooperação entre países vizinhos em regiões de fronteira tem sido feita informalmente, e através de acordos tácitos entre as autoridades locais dos países fronteiriços. Esse quadro tende a mudar, segundo Paul Ganster9, numa primeira instância, em razão da maior importância assumida e atribuída às cidades e regiões de fronteira pelos estados nacionais no contexto atual. Um novo tipo de atuação dos estados nacionais poderia ser facilitado pela criação de novos mecanismos legais e administrativos. Em segundo lugar, pela integração de países em blocos regionais, que poderá transformar essas regiões, por sua própria localização geográfica, em zonas de cooperação e sinergia entre países vizinhos. Em seu artigo Limites, Fronteiras e Redes10, Lia Osório Machado afirma que esse processo é indicativo de que, mais do que uma perda de função dos limites e fronteiras internacionais, o que está ocorrendo é uma mutação da perspectiva do Estado em relação ao seu papel. A fronteira deixa de ser concebida somente a partir das estratégias e interesses do Estado central, passando a ser concebida também pelas comunidades de 9

GANSTER, P. et alli. (Orgs.). Border and Border Regions in Europe and North America. Eds, 1997. MACHADO, Lia. O. Limites, Fronteiras e Redes. In: T. M. Strohaecker, A. Damiani, N. O. Schaffer, N. Bauth, V. S. Dutra (org.). Fronteiras e Espaço Global, Porto Alegre: p.41-49, 1998.

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fronteira, ou seja, no âmbito subnacional. O desejo e a possibilidade real de comunidades locais estenderem sua influência e reforçarem sua centralidade além dos limites internacionais e sobre a faixa de fronteira subverte e renova os conceitos clássicos de limite e de fronteira. Em certa medida há a indicação do processo descrito pela autora na análise histórica sobre o relacionamento mantido na região de fronteira entre bolivianos, paraguaios e brasileiros, onde o caráter “informal” impera. Indo, inclusive, em alguns casos, de encontro aos interesses dos centros político-administrativos. Quando associada à guerra, a fronteira é entendida como uma linha que divide, separa grupos, sociedades e domínios político-administrativos. É tomada como limite, isto é, fim do espaço por onde podemos transitar e sobre o qual temos domínio. Define a posse de um território, processo que subentende, muitas vezes, disputas e lutas armadas para conquistá-lo. Porém, a fronteira também pode ser compreendida como elemento de aproximação, de integração entre distintas culturas. Ela propicia contatos espontâneos e naturais, responsáveis pelo surgimento da solidariedade e de interesses sócio-econômicos e culturais comuns. A presença paraguaia na província de Mato-Grosso acabou proporcionando um estreitamento das relações com os bolivianos, passando a discutir formas de viabilizar negócios a partir de Corumbá sob ocupação. O governo da Bolívia via a guerra entre Brasil e Paraguai oportunizar um diálogo que pudesse satisfazer seu país quanto às questões envolvendo a fronteira com seus vizinhos. Eram motivos do pleito boliviano faixas de terra incorporadas por Brasil e Paraguai – as discussões sobre fronteiras constituíram-se em matéria recorrente durante todo o século XIX, levando a diplomacia brasileira a atuar intensamente. Synésio Sampaio Góes Filho em seu livro Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas11, explica as ações diplomáticas realizadas pelo Estado brasileiro a fim de consolidar seus direitos sobre os territórios ocupados ao longo de todo o processo histórico. Analisa pormenorizadamente o princípio do uti-possidetis, largamente usado pela 11

GÓES FILHO, Synésio Sampaio. Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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diplomacia brasileira, constituindo-se em ferramenta importante na solução dos conflitos fronteiriços entre o Brasil e seus vizinhos sul-americanos. Alberto da Costa e Silva enfoca a Guerra do Paraguai em seu texto Da guerra ao Mercosul12, mostrando que o conflito armado, via de regra, advém do insucesso diplomático. Destaca o papel desempenhado por José Maria Paranhos, o Visconde do Rio Branco, na reorganização do espaço paraguaio no pós-guerra, assegurando os interesses brasileiros e indo contra as pretensões argentinas. As questões de ordem diplomática são recorrentes nas discussões contemporâneas, que versam a respeito da integração entre os países sul-americanos. Percebe-se claramente que a narrativa remonta aos eventos pretéritos, numa tentativa de recompor um quadro pintado a várias mãos, mas onde as mentes professavam idéias que raramente se encontravam em consonância. O livro História da Política Exterior do Brasil13, produzido por Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, goza de prestígio junto ao meio acadêmico, especialmente entre os que se dedicam aos estudos das relações internacionais. Os autores traçam uma retrospectiva das ações da política brasileira junto aos países da Bacia Platina, analisando desde os processos de independências pautados pela tentativa de cooperação, passando pela Guerra Cisplatina e a política de neutralidade, culminando com política intervencionista deflagrada a partir da Guerra da Tríplice Aliança. O texto auxilia a pensar como foi construído o conflito com o Paraguai, mostrando as particularidades que envolveram as negociações com os nossos vizinhos platinos, em seus diferentes momentos. Revela, sobretudo, o cenário de disputas internas nos países, que motivaram mudanças, às vezes abruptas, no modo de gerir a política externa. Fatores de ordem estratégica e econômica também influenciaram nos rumos dos acontecimentos. Ao abordarem como se deu a construção dos blocos regionais, dentre os quais o MERCOSUL, os autores acabaram oferecendo subsídios para alimentar uma das reflexões presentes no trabalho que ora apresento: a atuação das comunidades de fronteira ao longo do itinerário percorrido e a imbricação de acontecimentos passados em discussões 12

SILVA, Alberto da Costa. Da Guerra ao Mercosul. In: Marques, Maria Eduarda de Castro Magalhães, 1995. Op. Cit. 13 BUENO, Clodoaldo e CERVO, Amado Luiz. A história da política exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.

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contemporâneas sobre a tão almejada integração sul-americana. Nesse sentido, nos ensina Jacques Le Goff:

O método, o trabalho do historiador, a meu ver, consiste necessariamente em uma constante ida-e-volta entre passado e presente. Sendo que o presente é obviamente o futuro. O futuro do passado. Vou citar uma frase conhecida, que foi repetida por vários cientistas e, particularmente, pelo filósofo italiano Benedetto Croce: “Toda história é contemporânea.” O passado continua sendo interpretado, sempre é uma leitura contemporânea que se faz e, na compreensão do passado, temos de integrar essa leitura renovada, sempre recomeçada14.

A dimensão dos negócios realizados entre o exército paraguaio situado em Corumbá e as populações da porção oriental boliviana se clarifica com Ricardo Scavone Yegros, autor paraguaio, que em sua obra intitulada Las relaciones entre el Paraguay e Bolívia en siglo XIX15, nos dá um panorama das relações entre bolivianos e paraguaios ao longo de século dezenove. Utilizou-se de documentação levantada nos Ministérios de Relações Exteriores não só de Paraguai e Bolívia, com também obteve informações preciosas das diplomacias do Brasil e da Argentina, partícipes das negociações realizadas no continente sul-americano. A intenção do referido autor, basicamente, é dar mostras de como um relacionamento em princípio amigável, de simpatia recíproca, pôde se deteriorar a ponto de culminar com um conflito bélico de grande proporção – A Guerra do Chaco (1932-1935) -, que veio marcar indelevelmente a história de paraguaios e bolivianos e na qual também ocorreu o fenômeno de identificação entre paraguaios e cruz-serranos, causando, na oportunidade, terrível inquietação ao governo de La Paz. No tocante ao estudo realizado, das tratativas bilaterais entre Brasil, Paraguai e Bolívia mantidas entre os anos de 1865 e 1868, o trabalho de Scavone abre perspectivas

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LE GOFF, Jacques. Entrevista com Jacques Le Goff. Rio de Janeiro: Revista de Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, 1991: 262-270. 15 SCAVONE YEGROS, Ricardo. Las Relaciones entre el Paraguay y Bolivia en siglo XIX. Asunción: Servilibro, 2004.

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para a compreensão de aspectos inerentes ao conflito, ainda pouco explorados. Um exemplo disso é a importância estratégica de Corumbá. A ocupação deste local pelas tropas paraguaias por quase quatro anos, proporcionou o estreitamento das relações com os bolivianos que habitavam a região oriental do país. Isso, porém, só foi possível graças à abertura de um caminho terrestre que ligou Corumbá à Santo Corazón – povoação de origem chiquitana, localizada na porção mais ocidental das antigas missões jesuíticas espanholas, conforme podemos observar no mapa a seguir: Imagem 2 – A tríplice fronteira Brasil – Paraguai – Bolívia, na segunda metade do século XIX.

Fonte: SCAVONE YEGROS, Ricardo. Op. Cit., p. 64.

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Da necessidade paraguaia, que sofria um severo contingenciamento de recursos devido ao controle da esquadra brasileira sob as águas do Baixo Paraguai, e dos interesses bolivianos, que iam do comércio ao estabelecimento de suas fronteiras, adveio um profícuo relacionamento, que se estendeu até o momento da retirada de Corumbá por parte do exército de Francisco Solano Lopez, em 1868. No arcabouço de fontes primárias estão manuscritos oriundos dos acervos do Arquivo Público de Mato-Grosso (APMT), Archivo Nacional de Asunción – Paraguay – (ANA) e Archivo Histórico da Universidad Autônoma Gabriel René Moreno (AUAGRM), de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, além de impressos datados do período da guerra, obtidos junto à Biblioteca Nacional de Asunción (BNA). Mapas e fontes imagéticas extraídas de arquivos paraguaios e bolivianos também são importantes recursos utilizados na produção desta pesquisa, uma vez que possibilitam situar o leitor no espaço onde se deu a trama, objeto da análise. Interrogados, os documentos revelam os interesses que nortearam as relações na região da tríplice fronteira, envolvendo as repúblicas do Paraguai e da Bolívia e o império brasileiro. Correspondências expedidas e recebidas trocadas entre os oficiais paraguaios fixados em Corumbá e seus pares em Assunção dispunham sobre os procedimentos a serem adotados com vistas a abrir vias de comunicação com o território boliviano, de onde esperavam também receber suprimentos para a tropa. “Ajuda” essa bem-vinda em face do bloqueio fluvial imposto pela esquadra brasileira ao sul do Paraguai, o que dificultava o abastecimento. Parte das correspondências manuscritas descreve ações militares, por terra e água, em incursões que não raras vezes adentravam o território boliviano. O contato entre Assunção e La Paz era feito com cautela. Apesar das demonstrações públicas de simpatia à causa paraguaia, a Bolívia por intermédio de seu chefe de estado, Mariano Melgarejo, relutava em formalizar um acordo com Francisco Solano Lopez, receando desagradar os demais países beligerantes. Os efetivos contatos eram feitos na região de fronteira, lugar de encontros e desencontros, onde os interesses ganham um status regional, expresso no comportamento autônomo de personagens oriundos, em sua maioria, do Departamento de Santa Cruz de la Sierra. Região que possuí um histórico de insurreições contra o poder

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central em La Paz, causando grandes embaraços ao mesmo – salienta-se que ainda hoje é assim. A abertura de um caminho terrestre ligando Corumbá a Santo Corazón foi resultado de um projeto que pretendia dinamizar os negócios entre as repúblicas. Instigantes também os relatos que descrevem o encontro dos paraguaios com os bolivianos da região oriental. Um misto de admiração e simpatia recíproca entre sociedades afastadas e que a guerra, agora, aproximava. A ida deste mestrando à Corumbá, em março de 2008, permitiu que fossem feitas observações e mantidos diálogos com pesquisadores locais, colhendo novas informações e dados inerentes à região, palco por onde desfilou o numeroso e eclético elenco de atores da nossa história. Trabalhamos com a idéia de uma História Cultural do político, que mobiliza os estudos centrados no imaginário do poder, nas performances dos diferentes atores e, também, na produção de ritos e imagens usados com fins políticos. Nunca perdendo de foco os interesses que norteiam as interações e as conjunturas específicas onde estas atuam. Convém destacar que a realização de tais análises pôde ser ampliada devido à emergência dos novos paradigmas historiográficos, assumidos pela “Nova História” política, pela história cultural, que valorizam outras fontes como documentos, correspondências, fotografias e fontes orais. Um dos pressupostos desses novos paradigmas é possibilitar novas abordagens historiográficas ao ultrapassar os limites propostos pelo paradigma tradicional, que via os documentos oficiais como as únicas fontes legítimas. A ampliação do leque de fontes permitiu que novos personagens passassem a serem vistos como agentes da História, isto é, a História não mais era analisada a partir do ponto de vista dos vitoriosos. Aliás, diga-se de passagem, laboramos com fontes extraídas do Paraguai e da Bolívia, o que ressalta a nossa intenção em dar voz ao “outro”, num chamamento à alteridade. E mesmo trabalhando com documentação oficial, procuramos lançar questionamentos com a intenção de que funcionem como verdadeiros holofotes irradiando luzes sobre as cenas descritas e revelando personagens, outrora silenciados, na penumbra. Muitas vezes uma boa história emerge de águas turvas, bastando que se retire a sujeira de sua superfície.

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Nesse sentido, a “Nova História” vai ao encontro dos fundamentos assumidos pela História das Relações Internacionais, que ao emergir, fez submergir a História diplomática, marcada pela construção de mitos e pelos elogios infindos dirigidos aos homens de Estado e aos atos de governo. Visão corroborada por Norma Breda dos Santos16, autora de um artigo intitulado História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a área, no qual desenvolve uma reflexão meta teórica sobre esse campo, avaliando a especificidade do seu programa de pesquisa e as características que tem assumido no Brasil. Em sintonia com esse novo olhar historiográfico, valemo-nos também do artigo publicado pela Revista “História Viva”, sob o título de “A Nova Diplomacia”, elaborado a quatro mãos pelos historiadores franceses Anaïs Fléchet e Olivier Compagnon17. O texto dá ênfase às contribuições da História Cultural para a análise das relações internacionais. Faz menção especial a Roger Chartier que, em 1989, publicou O Mundo como representação, texto que rompe com uma série de paradigmas que “freavam” o avanço dos estudos historiográficos. Ressalta também que ao se basear na idéia de "transferências culturais", desenvolvida por dois pesquisadores das relações literárias franco-alemãs - Michel Espagne e Michael Werner -, a nova história cultural das relações internacionais permite compreender as lógicas de apropriação e as práticas de mediadores, como viajantes, negociantes, exilados, turistas, tradutores ou marchands, constituindo um novo corpus de fontes. A reconstituição das trajetórias pessoais desses atores do presente estudo também mostra que a circulação de objetos e práticas culturais raramente está em consonância com as lógicas bilaterais tradicionais. Dar conta desses "desvios", bem como das idas e vindas culturais, abre o caminho para novas interpretações da lógica cultural das relações internacionais. Mas não são somente os autores estrangeiros, como os referenciados franceses, a transitarem por esse campo. Valemo-nos dos estudos de Estevão Chaves de Rezende 16

BREDA DOS SANTOS, Norma. História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a área. História, São Paulo, v.24, n.1, p.11-39, 2005. 17 FLÉCHET, Anaïs e COMPAGNON Olivier. A Nova Diplomacia. Revista História Viva. São Paulo: Duetto Editorial, n. 41, março de 2007.

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Martins, que versam sobre o potencial da dialética entre cultura e poder, capaz de promover outras forças ao terreno onde é erigida a história da América Latina18. A constituição de uma identidade latino-americana sempre esteve atrelada a projetos de poder, porém, há a necessidade, na atual conjuntura, de se incluir a essa construção atores que se mantiveram à margem, silenciados pelo discurso historiográfico “criollo”19. Gustavo Beyhaut, ao conceber o artigo Dimensão Cultural da Integração na América Latina20, corrobora com essa linha de pensamento, incluindo aí os personagens fronteiriços, responsáveis pela constante reelaboração do espaço latino-americano historicamente construído, afeito à integração, destituído de divisórias e onde o tempo torna-se senhor. Em sintonia com essas pesquisas e familiarizados com essas idéias, procuramos conduzir o trabalho ora empreendido. Salientamos que boa parte das nossas reflexões, incorporadas ao texto, foram possíveis em decorrência do proveitoso diálogo travado com estudiosos em América Latina. Assim, não nos desprendemos do contexto que abriga a trama e das condições em que agem os atores que dela participam. Outro vetor de suma importância para o trabalho é o tempo histórico. Embora o nosso recorte temporal esteja definido entre os anos de 1865 e 1868, período da ocupação paraguaia em Corumbá, nos parece extremamente salutar, visando dar inteligibilidade à narrativa, percorrermos, quando necessário, o “túnel do tempo”, visando mostrar que o objeto histórico não se faz no tempo de curta duração, e que para compreendê-lo em sua magnitude temos que nos reportar ao passado, bem como lançar olhares também em direção às suas implicações posteriores. Ao longo do texto, impossível será, em meio a essas idas e vindas, não perceber as “permanências” e as “descontinuidades”, que marcam a contínua construção do espaço fronteiriço e que permitem o surgimento de ações renovadoras, conferindo-lhe novos contornos. Afinal, a história não pára, não finda, é uma realidade em contínuo movimento e de eterno devir. 18

MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. Relações Internacionais: Cultura e Poder. Brasília: IBRI, 2002. Termo que alude à elite criolla (composta por brancos nascidos na América e descendentes dos espanhóis), responsável por encampar as lutas pela independência na América Espanhola e pela construção de uma história, muitas vezes, excludente, ao relegar, por exemplo, um papel secundário e inexpressivo às populações indígenas. 20 BEYHAUT, Gustavo. Dimensão Cultural da integração na América Latina. Revista Estudos Avançados. São Paulo: Edusp, n. 20, 1994. 19

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A História das Relações internacionais passa, então, a propor um diálogo entre o macro e o micro, permitindo a análise da influência de novos atores no relacionamento entre as nações. Nesse sentido, parece-nos salutar aplicar os ensinamentos de Jacques Revel, em Jogos de Escalas21. Assim, dentro dessa premissa, segmentamos o trabalho em três capítulos: As Relações Oficiais no Palco da Guerra Grande, Dos Peabirus ao Caminho Aberto pela Guerra e O Caminhar das Relações Provinciais na Tríplice Fronteira. A idéia consiste em lançar olhares a essas multifacetadas relações de diferentes ângulos historiográficos e em variar o nível do zoom colocado sobre elas. O primeiro capítulo, intitulado “As Relações Oficiais no Palco da Guerra Grande”, pretende nutrir o leitor de subsídios sobre o cenário internacional e sul-americano, analisando a problemática na Bacia do Prata e o exercício diplomático das chancelarias, com ênfase no agir dos Presidentes e Plenipotenciários que atuaram na cena política de seus respectivos países. O foco que recaí sobre a Bolívia, país que passou de mero figurante a coadjuvante de destaque na cena bélica, não está deslocado do processo que deu início a conformação dos Estados nacionais latino-americanos. Contexto que abrigou a guerra de independência, da qual se originou o partido Estado boliviano. A simbiose entre guerra e política, por sinal, é tema de uma discussão teórica neste capítulo. Tentamos, enfim, irradiar luzes sobre questões não comumente tratadas pela historiografia da Guerra com o Paraguai, dando visibilidade a atores que, com suas práticas, deram vivacidade à trama. Iniciamos o segundo capítulo, “Dos Peabirus aos Caminhos Abertos pela Guerra”, reportando-nos às antigas rotas indígenas que, desde o período colonial, serviram aos colonizadores no processo de ocupação do território sul-americano. Em seguida, correlacionamos os peabirus aos caminhos abertos durante a guerra, por onde circularam aqueles que fomentaram o comércio entre a “Província do Alto Paraguai” – território matogrossense ocupado – e o oriente boliviano. A atmosfera que envolveu os trabalhos logísticos proporciona vida a personagens que, outrora, dispunham de escasso espaço no

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REVEL, Jacques (org.) Jogos de escalas. A experiência da Microanálise. Rio de Janeiro: FVG, 1998.

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palco do conflito, tais como indígenas, empresários, comerciantes e políticos, cujo âmbito de atuação era local. Intentamos ainda valorizar as sociedades originárias, indígenas, inserindo-as no processo de uma construção identitária latino-americana. Os interesses regionais que, muitas vezes, correm paralelamente e não se encontram com os dos Estados centrais, ganham destaque no terceiro e último capítulo, “O Caminhar das Relações Provinciais na Tríplice Fronteira”. Título que nada mais é do que um indicativo, uma pista, do caminho pelo qual iremos seguir. Afastados dos pólos centrais, irradiadores de poder, desenrolaram-se relações nas quais os atores principais são os “provincianos”. Personagens que se comportaram de forma “aparentemente contraditória”, adaptando-se ao “jogo político”. Para entender essa rede de interações, procuramos apoio nos escritos de Norbert Elias22, com os conceitos de configuração e interdependência. Reflexões foram feitas igualmente a partir da apropriação das idéias contidas em O Poder Simbólico23, obra de Pierre Bourdieu, especialmente quanto ao disposto no capítulo que trata do regionalismo enquanto fruto de processos históricos. Importante ressaltar que, embora haja uma opção metodológica que privilegie ora o macro e ora o micro, as duas dimensões estão sempre em contato, num diálogo freqüente e profícuo, no qual se percebe a dialética entre discursos e práticas. Em síntese, desenvolvemos o presente texto dando ênfase às relações culturais internacionais mantidas na tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Bolívia), não só buscando compreendê-las no seu tempo e espaço, mas considerando-as instigadoras de questões contemporâneas. Assim, convidamos o leitor a “trilhar esse caminho” conosco.

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ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, , 1993, Vol. 2. 23 BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil, 1989.

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CAPÍTULO I

As relações relações oficiais no palco da “Guerra Grande”

En oficio que com fecha 1º mês corriente dirijí á V. S., se ordeno que el Sub-Prefecto de la Provincia de Chiquitos i su Admor. principal, se trasladen al pueblo de San José para dar mayor ensanche i facilidades al comercio que principia á desarrollarse entre ese Departamento i la República del Paraguay. Mas, como esta medida pudiera ocasionar talvez, interpretaciones maliciosas que afecten los intereses de la Nácion, tengo orden de S. E. para decir á V. S., que el comercio de que se habla, debe entenderse de todos aquellos artículos que no esten considerados como contrabandos por nuestras leyes fiscales, ó prohibidos por el Decreto Internacional; com tanta mas razon, cuanto que hallándose el Paraguay en guerra com el Imperio del Brasil i las Repúblicas Argentina i Uruguaya, pudiera creerse con prometida neutralidad de Bolivia. En esta virtud, debe prevenir V. S. á las autoridades de esa Ciudad, i á las de Chiquitos, tengan el mayor cuidado i vijilancia en que no se esporten á las Naciones vecinas, sino artículos de comercio lícito, reconecido por dichas24.

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Ofício nº 09 expedido por Mariano Donato Muñoz ao Prefeito do Departamento de Santa Cruz de la Sierra. La Paz, 19 de março de 1867. 2/85-19. AUAGRM.

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1.1 O Cenário Platino A decisão do governo brasileiro de intervir no Uruguai, em 1864, comumente tratado pela historiografia brasileira como uma resposta aos apelos da comunidade brasileira sulista e da opinião pública em geral contra as arbitrariedades cometidas, tanto por particulares uruguaios, quanto pelas autoridades governamentais daquele país, impeliu o aprofundamento da questão por parte da historiadora Wilma Peres Costa, autora do livro A Espada de Dâmocles25. Obra que tem em seu bojo um capítulo de singular relevância, De Rosas a López, dedicado a traçar um panorama da política interna dos países beligerantes. Traz à tona o Tratado de Limites entre o Brasil e a República Oriental do Uruguai, assinado em 12 de outubro de 1851, e o agravamento das relações devido à fronteira aberta entre os países. O mencionado tratado previa, além da demarcação da fronteira e dos acordos de navegação e comércio, a extradição de escravos fugidos, fator esse gerador de instabilidade nas relações entre os Estados. O Brasil também se queixava contra o procedimento adotado pelos uruguaios, enfatizando os conflitos ocorridos na fronteira, que resultava em alguns assassinatos. Os estancieiros do Rio Grande do Sul reivindicavam de forma incisiva, até mesmo com ameaças, o apoio do governo imperial na defesa dos seus interesses; diziam que se não houvesse alternativa teriam que fazer justiça com as próprias mãos. Um dos principais líderes do movimento no Sul do país era o General Neto, que inclusive dispunha de uma milícia armada em caso de confronto na região. O poder no Uruguai estava com o partido Blanco, contrário aos interesses dos estancieiros brasileiros, que passaram a apoiar o partido rival, o Colorado, sob a tutela do General Venâncio Flores.

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COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo, Hucitec/Ed. da Unicamp, 1996.

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Criou-se uma missão sob a responsabilidade do Conselheiro José Antonio Saraiva, cujo objetivo era o de dirimir os problemas enfrentados no Sul, dando uma satisfação à sociedade brasileira. A Missão Saraiva malogrou, uma vez que se tornou inviável a retaliação do governo imperial brasileiro sem que houvesse o envolvimento direto de partidários de Flores, uruguaios e brasileiros. Segundo Wilma Peres Costa, o resultado prático da Missão Saraiva significava o colapso da política externa perseguida pelos gabinetes conservadores desde 1851: a sustentação dada pelos governos legais através de recursos e, se possível, com armas. A autora salienta a diferença conjuntural da intervenção brasileira no Uruguai de outras levadas a termo pelo governo imperial, como a que levou à queda de Oribe. Para compreender essa conjuntura se faz necessário uma análise das vicissitudes da política externa e interna do Brasil e todas as modificações no cenário platino no decorrer do período. O elemento principal, segundo a estudiosa, é a necessidade urgente de autoafirmação do Paraguai. Entre os anos de 1850 e 1863 o Partido Conservador imprimiu sua marca sobre a política interna e externa do Império. Contribuiu para o fortalecimento do grupo as derrotas das revoluções liberais, cuja “Praieira” em 1848 era a mais representativa. A eficiência do poder público, em diversos campos de atuação, facilitou a concentração do poder e o enraizamento da monarquia. No campo da política externa o período 1850-1863 recobre as vitórias sobre Rosas e Oribe, o esforço de implantação de uma política platina na região, coincidindo com o conturbado momento vivenciado pelo Gabinete Caxias e a tentativa de implantação da Liga. A política externa brasileira continuava tendo como objetivo maior, atuar de maneira a impedir a unidade entre os territórios que haviam integrado o Vice-reinado do Rio da Prata. A queda de Rosas na Argentina vinha ao encontro dos interesses brasileiros, facilitando o trabalho da diplomacia.

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Províncias argentinas favoráveis e contrárias à unificação se digladiaram, tendo como antagonistas os generais Mitre e Urquiza. As forças de Mitre contavam com o apoio do chefe colorado do Uruguai, Venâncio Flores. Entre os anos de 1853 e 1859, o país ficou dividido, com a cidade de Buenos Aires separada da Confederação. A luta reaberta em 1860, só terminou com a derrota do insurgente Urquiza, e o retorno de Buenos Aires ao estatuto de capital política e econômica da Argentina. Dentro da conjuntura regional sul-americana, que comportava o jogo político e o arranjo de forças, o regionalismo no interior dos países ganhava destaque. Com a independência das ex-colônias espanholas e a tentativa de formação dos Estados-Nações, os interesses de grupos emergiram, originando disputas pelo poder. O Estado moderno, a sociedade e o território se fundem através de um suposto sentimento de pertencimento da população à Nação. Legitima-se ao Estado a função organizacional racional do poder político, permitindo à dominação manter-se velada, "fazendo parecer que o sujeito-suporte do poder é toda a população"26. Isso, no entanto, não implica em dizer que não houvesse resistências a essa ordem imposta "baseada no pressuposto de que todos os homens são realmente iguais e passíveis de aceitar a lei espontaneamente, livremente e não por coerção"27. A igualdade, nesses casos, é sobrepujada pelo “jogo” político, realizado por grupos detentores das rédeas do poder hegemônico, responsáveis pela idéia de um “consenso nacional” a respeito de temas e idéias que, definitivamente, não visam os interesses gerais. Isso fica claro quando trazemos à tona o caso argentino e, mais especificamente, as insurgências nas províncias de Entre Rios e Corrientes. Embates políticos dotados de uma arraigada problemática histórica, construída ao longo de todo um percurso, que deve ser compreendida sob pena de assimilarmos apenas parte da rede de interesses que nortearam as relações internacionais na região platina. A familiaridade étnico-cultural de correntinos e entrerrienses com os paraguaios (origem guarani) e suas constantes rebeliões contra o poder central emanado desde Buenos Aires, deu confiança a Solano López que decidiu passar com o grosso de seu contingente militar por território argentino rumo ao Rio Grande

26 27

ALVES, Alaor Caffé. Estado e Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1987: p.177. GRAMSCI, Antonio. A questão meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987: p. 235.

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do Sul e Uruguai. Ação que teve como resposta a declaração de guerra proferida pelo Presidente argentino Bartolomé Mitre, que tentava se consolidar no poder. No tocante ao Brasil, a luta na Argentina não obstava os entendimentos bilaterais, pelo contrário, facilitava. Em 1852, após a queda de Rosas, a Argentina reconhecera a independência do Paraguai. As alianças formalizadas renderam a assinatura, em 1856, de um Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, que garantia o livre trânsito das embarcações brasileiras nos rios Paraná, Uruguai e Paraguai, na parte em que esses rios pertencessem ao Brasil e à Confederação Argentina. O Paraguai, desde sua independência em 1811, se constituíra num enorme ponto de interrogação no contexto sul-americano. O país, durante o período em que fora governado despoticamente por José Gaspar Rodriguez Francia, ficara isolado dos contatos externos, imprimindo dura fiscalização no que concerne ao trânsito de homens e mercadorias. Sua política passava ao largo dos conflitos que afloravam no continente, não se envolvendo diretamente na resistência contra os espanhóis, em lutas capitaneadas por Simon Bolívar. Tampouco Francia tomou partido no confronto entre Ribera e Oribe. O mandatário paraguaio, a exemplo da Argentina, desde a independência, considerou como seu território ou projetou como sua base territorial a totalidade das regiões que compunham o Vice-reinado do Rio da Prata. Francia, na ânsia de ver consolidada a autonomia do Paraguai, pareceu ter considerado legítima a herança dos territórios pertencentes às missões jesuíticas, o que significaria a inclusão de territórios incorporados ao Brasil e à Argentina. Francia trabalhou na formação de um exército organizado, provido de bom treinamento, armas e, principalmente, disciplina. Visava, com isso, garantir a tranqüilidade quanto aos negócios externos e manter o país isolado. Nutria eloqüente admiração por Napoleão I, o qual não se furtou em imitar. Almejava formar uma guarda que nada devesse, quando comparada, à francesa. Quanto à administração interna, considerava o Estado como uma enorme fazenda, onde não se admitia ministros, somente secretários. Não tolerava sistemas de gestão que

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não estivessem centralizados e priorizava a agricultura. O comércio e o tráfico com os países estrangeiros só eram feitos sob seu aval e sua política com o clero era bem áspera. Com a morte de Francia em 1840, ascendeu ao poder Carlos Antonio López. Experseguido político de Francia, primeiro compartilhou o poder na qualidade de cônsul escolhido pelo Congresso, para depois ser alçado à Presidência do Paraguai munido de poderes ditatoriais, para um governo de 10 anos, com direito à reeleição. Concentrou as terras do País, numa apropriação pessoal e familiar, vindo a constituir grande patrimônio fundiário. Mas a maior mudança em seu governo adveio da política externa, na qual o Paraguai passara de mero espectador a agente importante no quadro de conflitos entre as nações vizinhas, marcando de forma contumaz sua presença no cenário platino. No governo de Carlos López foram tomadas atitudes contra o que os paraguaios chamavam de “tentativa de incorporação do Paraguai à Confederação Argentina”, devido à negativa de Rosas ao reconhecimento da independência paraguaia. Em 1845, um pequeno exército paraguaio, sob o comando de Francisco Solano López (1826-1870) - filho do Presidente paraguaio - e aliado às forças da Província de Corrientes, invadiu a dita província, sendo rechaçada rapidamente. Wilma Peres Costa levanta desse episódio a hipótese da origem da idéia de Solano López de incorporar à sua causa, em 1865, a adesão da Província de Corrientes. Em 1847, Carlos López manda ao Brasil a “Missão Gelly” (Juan Andrés Gelly, plenipotenciário paraguaio), no esforço de obter o estabelecimento de limites. A proposição era a de dividir as missões orientais argentinas entre o Brasil e o Paraguai. No entanto, mais uma vez as negociações fracassaram. Em 1852, o Paraguai foi incluído nas negociações de paz com a Argentina por instância do Brasil, embora não tivesse despendido esforço militar na queda de Rosas. Nesta ocasião, finalmente teve a independência paraguaia reconhecimento por parte da Argentina.

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Embora as relações entre o Brasil e o Paraguai mantivessem o caráter amistoso, as discussões a respeito da demarcação de limites ainda perduravam, e tinham como mote a zona da terra entre os Rios Apa e Branco. Quanto à questão que envolvia a navegação, interessava ao Brasil manter aberto seu principal acesso à Província de Mato-Grosso. As discussões evoluíram, em 1853, para um princípio de animosidade, pois o Brasil precisou recorrer a vapores levando batalhões do exército para forçar passagem até Assunção. A resposta paraguaia foi rápida. Reforçaram a fortaleza de Humaitá com 6.000 homens. Em 1856, Carlos López enviara ao Brasil uma missão que tinha por fim regular o Tratado assinado em 25 de dezembro de 1850. Ao final, o Tratado de Paz, Amizade e Navegação foi novamente assinado. No entanto, o presidente paraguaio posteriormente o anulou, submetendo a livre navegação a um novo regulamento que negava tudo que havia sido acordado. A guerra então se tornava eminente. Em 1864, a questão dos limites permanecia sem solução. Nesse mesmo ano, o oficial da Marinha Augusto João Manuel Leverger, a mando do governo imperial, fez sondagens nas águas disputadas, causando novo mal-estar entre os vizinhos. O Brasil insistia sobre o domínio nos territórios entre os rios Apa e Branco, pois temia ficar refém da política paraguaia. Para ver sua reivindicação atendida invocava o princípio do uti-possidetis, usado largamente pela diplomacia brasileira desde o período colonial. Nesse período estudado, o Brasil ainda não tinha estabelecido a maior parte de suas fronteiras, o que efetivamente vai acontecer sob o comando de José Maria da Silva Paranhos, o Barão de Rio Branco, por meio de suas ações diplomáticas28. As duas principais áreas contenciosas de fronteiras se localizavam nas duas grandes bacias fluviais da América do Sul, a amazônica e a platina.

28

A respeito desse assunto indicamos a obra de JORGE, A. G. Araújo. Rio Branco e as Fronteiras do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999.

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As negociações com o Paraguai desembocariam para um dilema: abrir mão do utipossidetis ou realizar qualquer negócio baseado no Tratado de Santo Ildefonso, que implicaria na revisão dos acordos feitos com a Argentina – relativo ao território das missões – e o Uruguai, país com o qual foi assinado o tratado de 1851. Ou seja, a questão com o Paraguai extrapolava as relações bilaterais, abarcando as fronteiras em todo o seu conjunto. Peres se prende nas vicissitudes que envolveram a Missão Saraiva no Uruguai, país cuja conjuntura política influenciou diretamente nos rumos do conflito que se avizinhava com o Paraguai. Na verdade, segundo Wilma Costa, a intervenção Brasileira no Uruguai de 1852 a 1862 não atingiu nenhum objetivo a que se propusera. Não mantinha o poder nas mãos dos governantes legais nem eliminara o caudilhismo da vida da República Oriental. Iniciou-se, em 1862, uma aproximação entre os representantes do partido Blanco uruguaio e o governo do Paraguai, nos últimos meses do governo de Carlos Antonio López. Uma comissão foi enviada ao Paraguai para negociar uma aliança contra a Argentina, prevendo uma invasão das forças do general Venâncio Flores. As negociações não chegaram a nenhum resultado prático. Nova tentativa foi feita em 1863, desta feita pelo enviado diplomático Octaviano Lapido, já no governo de Francisco Solano López. As discussões eram norteadas pela busca do “equilíbrio político” na região que envolvia a “correção da geografia política”. Toda a rede de intrigas que se formara até então culminou com o ultimatum do Conselheiro José Antonio Saraiva para Aguirre, a quem restava somente capitular ou confiar na aliança com o Paraguai, embora esta de cunho tácito. Assunção repudia veementemente o procedimento do Brasil em nota enviada pelo Ministro de relações exteriores, José Berges. Atrelou a iniciativa do Brasil à segurança nacional do Paraguai. O quadro político dos antecedentes da guerra, pintado com cores vivas, desvela, em realidade, jogos de força que se desenrolaram, tendo em disputa o poder hegemônico no

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continente sul-americano. Uma conjuntura, sobretudo, regional foi a responsável pelo acirramento dos ânimos entre os países beligerantes. Nesse contexto, após a ação brasileira no Uruguai, houve a apreensão do navio Marquês de Olinda que transportava o presidente da Província de Mato-Grosso e a ocupação do território dessa província, estopins da guerra entre Brasil e Paraguai e marco da entrada em cena da Bolívia.

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1.2 - O Teatro da diplomacia As idas e vindas do “jogo político”, a atuação dos atores internacionais envolvidos na trama, os tratados firmados e suas reminiscências históricas, é matéria sobre a qual nos deteremos aqui. O objetivo é o de refletir sobre temas que, contando com as contribuições da Nova História, gravitam de forma renovada na órbita das relações internacionais. Os diálogos entre os chanceleres e a política interna dos países compuseram uma atmosfera nebulosa da Guerra com o Paraguai, a qual tentaremos dissipar. Um dos objetos de investigação é a participação direta ou indireta de outros atores internacionais no palco do conflito, cuja grande dimensão, legou ao evento bélico a designação de “Guerra Grande”, em decorrência do contingente humano mobilizado e do elevado número de mortos. Contando com tal magnitude, não seria de se estranhar que as análises sobre o conflito não alcançassem os demais Estados sul-americanos e até mesmo outros países do cenário internacional? É nesse sentido que a Bolívia, uma das Repúblicas do Pacífico29, emerge em nossos estudos. País que, entre os anos de 1865 e 1868, já dava mostras cabais de seus antagonismos através das relações que mantinha com seus vizinhos de fronteira, Brasil e Paraguai. As diferenças internas e as ferrenhas e duradouras lutas pelo poder são traços que marcam a política boliviana na contemporaneidade. Tais características, porém, não se constituíram sem que antes fosse percorrido um itinerário pautado por questões de ordem política, econômica e cultural. Em pleno processo de formação dos Estados nacionais e tendo que lidar com contenciosos envolvendo suas fronteiras, a Bolívia tentava ocupar espaço no cenário político da América do Sul. Primeiramente, faz-se necessário uma contextualização do cenário econômico internacional com vistas a entender as negociações entre as chancelarias de Brasil e Bolívia, que, foram fomentadas, em boa medida, por interesses de ordem econômica. A industrialização que estava em curso em alguns países europeus, como a Inglaterra e Alemanha, atingiu países como a Suécia e a Holanda, muito em função da revolução industrial na Rússia. Fora do continente europeu, Estados Unidos e Japão 29

A Bolívia perdeu a condição de “República do Pacífico”, em 1883, com a derrota para o Chile, na Guerra do Pacífico, que a privou do acesso ao mar. Ver mais em SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G.; O Império e as Repúblicas do Pacífico: as Relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. 1822/1889. Curitiba: Editora da UFPR, 2002.

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também se desenvolviam em ritmo forte. Em suma, houve um extraordinário crescimento do mercado, bem como das áreas destinadas à produção, gerando uma integração sem precedentes em nível mundial. Outro traço característico dessa nova ordem que se estabelecia, foi aquele que extrapolou a integração de novas áreas à geografia industrial: trata-se do aspecto cultural, que se difundiu pelos novos mercados, ansiosos pela chegada de elementos advindos da Europa desenvolvida. A pluralidade era patente no novo ordenamento econômico. A Inglaterra já não detinha a hegemonia de uma economia industrializada, a concorrência aumentara sensivelmente. Há que se ressaltar que tal pluralidade ficara um tanto quanto oculta em face da dependência dos países emergentes aos serviços financeiros prestados por instituições da Grã-Bretanha. A “City Londres” concentrava as operações das transações comerciais e financeiras. Isso colocava Londres no centro da nova economia mundial, reforçando sua posição, sustentada em grande parte pelo valor de sua moeda, a libra esterlina. A revolução tecnológica assumia papel fundamental dentro da economia mundial. Surgiram o telefone e o telégrafo, o fonógrafo e o cinema, o automóvel e o avião se incorporavam ao cenário do cotidiano das pessoas. A principal inovação quando traçado um paralelo com o então recém findado século XIX, consistia no aprimoramento de parte da tecnologia advinda da primeira revolução industrial, como aquelas referentes ao vapor e ao ferro: o aço e as turbinas. As indústrias que logo se adequavam à nova realidade – leiam-se eletricidade, química e motor de combustão - assumiam papel de destaque. Houve também a expansão das linhas férreas, alcançando à época boa parte do continente europeu30. Outra característica marcante: uma dupla transformação da empresa capitalista em sua estrutura e em seu modus operandi. Ainda nesse momento, houve uma concentração do capital, fazendo surgir uma distinção clara entre “pequena empresa” e “grande 30

A respeito dessa relação entre a industrialização e o processo de urbanização das cidades européias, ver: RÉMOND, René. O século XIX (1815-1914): introdução à história do nosso tempo. Editora Cultrix. São Paulo. 8ª edição. 2002.

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empresa”. A indústria de bens de consumo assumia, por sua vez, o papel de protagonista deixando em segundo plano a produção de produtos alimentícios e de vestuários. Com o contingente populacional em franca ascensão, o termo “produção em massa” fica em evidência, como um marco da transformação que se deu, sobretudo na Inglaterra, em 1884. O aspecto anterior levou ao crescimento acentuado, tanto absoluto quanto relativo, do setor terciário da economia, nas esferas pública e privada. Por fim, o entrelaçamento cada vez mais evidente entre política e economia se constitui na última característica do processo de transformação. O setor público e o governo numa relação estreita com o capital mudaram a configuração de meados do século XIX, tida como ideal devido à livre concorrência31. A guerra com o Paraguai ocorrera dentro de um contexto latino-americano, onde os Estados-Nações, em construção, se reorganizavam no cenário geo-político, buscando autoafirmação. Brasil e Argentina, na América do Sul, sobressaiam como as economias mais pujantes, ambas alinhavadas com as diretrizes da política inglesa. Tida por alguns teóricos, a exemplo de Clausewitz, “como política por outros meios”, a Guerra é, dentro desta perspectiva, compreendida como resultado do esgotamento de todas as alternativas diplomáticas e do insucesso da política realizada pela via tradicional, levando os Estados ao confronto armado, com vistas a terem satisfeitos seus interesses32. Posicionamento esse que acreditamos não ser o adequado para lidar com o objeto de estudo. Há, no nosso entender, uma correlação de forças que contraria a compreensão da guerra como fim de um processo ou como um elemento estranho à política. Na nossa ótica, uma é inerente à outra. Mais: entendemos que a eclosão da guerra traz consigo a necessidade da proposição de novas políticas. Políticas, por sinal, que não ficam restritas tão somente às partes beligerantes, mas também se estendem a outros interessados.

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HOBSBAWN, Eric. A Era dos Impérios; tradução Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo; revisão técnica Maria Célia Paoli. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 32 CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1979: p.87.

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É como se estivéssemos num jogo, onde, a qualquer momento, poderão entrar novos jogadores, cada qual a pleitear objetivos distintos a serem alcançados. Visualizemos o dominó, no qual é possível ocorrer uma série de combinações e onde há uma rotatividade intensa de jogadores. A guerra é como um jogo de ação e reação, que não termina com a vitória de uma das partes. Tem prosseguimento, pois dela advém uma série de desdobramentos que trazem conseqüências diretas tanto para os contendores armados quanto para aqueles que, de alguma forma, vêem na disputa, chances para obter benefícios. Dessa forma, a guerra pode ser encarada como fim e início de processos que, continuamente, renovam e revigoram os meandros da política. Parece-nos importante também tecer breves considerações a respeito da conjuntura em que se deu o processo de constituição dos nacionalismos na América Latina em contraposição ao ocorrido na Europa e, ao mesmo tempo, traçar as distinções entre o caso brasileiro e o das ex-colônias espanholas. Num plano geral, excetuando-se talvez o caso paraguaio, a experiência latinoamericana não reproduziu o modelo europeu de fortalecimento dos Estados e consolidação das nações, pois as suas elites não apresentavam a coesão suficientemente necessária para trabalhar em prol de interesses comuns, num convite à fragmentação. Ademais, as divisões internas das sociedades latino-americanas eram ainda mais intensas do que as européias. O processo de invenção das nacionalidades alemã, francesa, inglesa ou italiana e de fortalecimento de seus respectivos Estados não foi isento de dificuldades, nem de resistências regionais, mas não havia nestes casos as enormes distâncias sociais e raciais criadas nas sociedades americanas. No caso destas, a própria composição da nação era objeto de intenso debate. Em vista das fortes clivagens sociais e raciais, nos países latinoamericanos foi criada uma idéia de nação progressivamente mais restrita e, portanto, de um nacionalismo mais excludente. A opção pela monarquia deu ao processo de invenção da nacionalidade brasileira um caráter distinto daquele de seus vizinhos. Estes, ao romper com a metrópole passaram imediatamente à tarefa de definir, já em termos de sentimento nacional, o que significava ser peruano, chileno ou mexicano, noções que até então não tinham significado político.

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A legitimação do Estado brasileiro independente se fez com base na idéia de continuidade e não de ruptura com a situação colonial. A identidade brasileira provida pelo Estado dinástico apoiava-se em signos de continuidade da ordem interna criada com a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Essa situação contrastava com o caso dos vizinhos republicanos, que traziam a idéia de desvencilhamento com a metrópole em vários planos: no geográfico, pela distinção entre o Novo e Velho Mundo (América versus Europa); no ideológico, pela instauração da noção de organização social baseada em um contrato social, em oposição ao direito dinástico; e no institucional pela fundação da república. A tática de se colocar em oposição ao “outro” resultou na tentativa de construir uma auto-imagem de um Brasil europeu (dinástico), civilizado e estável que contrastava com a turbulência e anarquia projetada nos vizinhos. Entender esse quadro exposto é de suma importância, uma vez que retomaremos esse assunto no terceiro capítulo do presente estudo, acrescentando a ele novos enfoques. As relações entre Brasil e Bolívia no início de suas vidas independentes não foram profícuas em face de um ressentimento boliviano, devido à incorporação da Província de Chiquitos pela Província imperial de Mato-Grosso; ato ocorrido em 15 de abril de 1825 e solenemente referendado pela câmara de Vila Bela, à época capital da citada Província brasileira. Mesmo com a pronta desautorização do ato pelo governo do Rio de Janeiro, o mal-estar perdurou por um longo tempo33. Esse episódio só aconteceu com o consentimento de grupos políticos contrários à La Paz, que, ao verem frustrados seus objetivos de fazerem de Santa Cruz de la Sierra um Estado independente, mostraram-se favoráveis a inusitada incorporação de Chiquitos pelo Brasil. Fato que serve para aferir o grau de insatisfação com o desfecho político que culminou com a formação de uma Bolívia, que já nascia dividida. As lutas pela independência duraram quinze anos (18101825) e colocaram lado a lado patriotas cruz-serranos e chefes militares oriundos da Argentina. Informação que faz com que chamemos para o debate o historiador Francisco Doratioto, que ao escrever Espaços Nacionais na América Latina: da utopia bolivariana à

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Sobre esse assunto, ver: SOARES, Maria do Socorro Castro. O Governo Provisório de Mato Grosso e a Questão da Anexação da Província de Chiquitos ao Império Brasileiro (1821- 1825). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato-Grosso, 2003.

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fragmentação34, analisa o processo de independência boliviana de forma um tanto quanto superficial, desconsiderando as diferenças internas existentes na região do “Alto Peru”, que viria se tornar a “Bolívia”. Sem dúvida, trata-se de uma questão complexa. A independência da Bolívia não se produziu sem que antes acontecessem muitas negociações e muitos interesses fossem contrariados. Houve, inclusive, um mal-estar entre Sucre e Simon Bolívar, os “libertadores”, que chegaram a divergir através de correspondências trocadas sobre o procedimento jurídico que conclamou as partes interessadas para a realização de uma grande assembléia, que decidiria os rumos das Províncias do Alto Peru. Sucre tomara tal deliberação sem consultar Bolívar, sendo repreendido pelo mesmo. Salientava Bolívar sobre a importância de não se romper ou violar o direito público reconhecido na América, segundo o qual os governos republicanos se originariam respeitando os limites dos antigos vice-reinados. E a subordinação do Alto Peru ao Vicereinado de Buenos Aires causava apreensão a Bolívar, que temia serem desastrosos os efeitos da decisão “precipitada” de Sucre. Já esperava que a medida fosse vítima de protestos por parte das demais unidades que integravam a América hispânica. Fato que não aconteceu35. Doratioto defende a tese segundo a qual Buenos Aires teria aceitado com tranqüilidade a independência boliviana receando que a mesma, se viesse a integrar as Províncias Unidas do Rio da Prata, pudesse tornar-se um pólo de atração sobre as demais províncias do noroeste argentino, enfraquecendo assim a sua autoridade36. Porém, se é verdade que o “outro”, exterior, não obstruiu o processo de independência boliviana, ressalta-se que a Bolívia, naquele momento, já iniciava a sua vida tendo que conviver com um “outro”, interno, aguerrido e inconformado com a posição de subordinação à La Paz. Segundo os dirigentes cruz-serranos, Santa Cruz de la Sierra não esteve representada legalmente na Assembléia convocada por Sucre, sendo o resultado fruto de uma arbitrariedade ou, como muitos preferem considerar, de uma “fraude”. A

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DORATIOTO, Francisco de Oliva. Espaços Nacionais na América Latina: da utopia bolivariana à fragmentação. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. 35 GANDIA, Enrique de. Historia de Santa Cruz de la Sierra: Una Nueva Republica en Sud América. Buenos Aires: Tallares Gráficos Argentinos, 1935. 36 DORATIOTO, Francisco de Oliva. Op. Cit., p. 49.

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situação é mais ou menos equiparada àquele famoso ditado popular que expressa o temor em “se dormir com o inimigo”. Essa falta de coesão infringiu graves conseqüências à Bolívia, sendo, talvez, a principal responsável pelas mazelas sociais que fazem deste país, hoje, um dos mais pobres da América do Sul. Imagem 3 - Mapa do Território de Santa Cruz durante a Guerra de Independência. 1810-1825.

Fonte: GANDIA, Enrique de. Historia de Santa Cruz de la Sierra: Una Nueva Republica en Sud América. Buenos Aires: Tallares Gráficos Argentinos, 1935: p.25.

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À época da citada Guerra Grande entre forças brasileiras, argentinas e uruguaias contra os paraguaios, a Bolívia vivia um estado de efervescência política. O General Mariano Melgarejo havia assumido o poder por intermédio de um golpe, que depôs o então Presidente José María Achá Valiente. Imagem 4 - General Mariano Melgarejo, Presidente da Bolívia à época da "Guerra Grande".

Fonte: http://www.info-regenten.de/regent/regent-d/bolivia.htm, Acesso em 14/08/2007.

Considerado pela historiografia boliviana como um homem violento e impulsivo, com forte ascendência sobre o exército, Melgarejo governou a Bolívia por seis anos (18651871). Por trás de suas características pessoais, que deram vida a episódios insólitos e anedóticos ocorridos durante sua gestão – normalmente ligados à bebida -, o militar recebeu apoio da classe dos mineradores, atividade que, em plena expansão, proporcionou ao governo adotar medidas políticas e econômicas que privilegiaram as exportações. A expropriação de terras indígenas, ocorrida em sua gestão, foi algo sem precedentes na história republicana boliviana. Ação que, a propósito, foi desencadeada em maior ou menor grau por toda a América Latina, que tentava, desse modo, integrar-se ao ordenamento econômico mundial sustentado pela liberdade do regime cambial.

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O mandatário, ao assumir, teve que, em princípio, se dedicar à pacificação do território, debelando uma série de revoltas. As insurreições em território boliviano vinham em grande medida do departamento de Santa Cruz de la Sierra, cuja intenção era a de protestar contra a política implementada por La Paz, contrária aos interesses locais. Somente após a contenção dos distúrbios – que não cessaram por completo - pôde Melgarejo dar uma atenção maior aos acontecimentos da política externa, notadamente à guerra. Em meio a esse quadro de instabilidade, desenrolaram-se as relações da Bolívia com os beligerantes Brasil e Paraguai, caracterizadas por discursos dúbios, promessas não concretizadas e intensa negociação, exigindo a entrada em cena das chancelarias, que tiveram participação importante nos acordos orquestrados. No âmbito diplomático, se notabilizam os escritos de Synésio Sampaio Góes Filho, que ajudam a entender a política externa levada a cabo pelo Estado imperial brasileiro. Em Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas37, o autor explica de que forma a diplomacia brasileira agiu a fim de consolidar seus direitos sobre os territórios ocupados ao longo de todo o processo. Analisa pormenorizadamente o princípio do uti-possidetis, que foi largamente usado pelos plenipotenciários brasileiros, constituindo-se em instrumento importante para dirimir os conflitos fronteiriços entre o Brasil e seus vizinhos sulamericanos. O uti-possidetis dispunha sobre a ocupação “de fato” dos territórios em litígio, por isso foi invocado diversas vezes pelo Brasil como adendo aos vários tratados assinados. A Duarte da Ponte Ribeiro coube a primazia de ter recomendado ao Império o uso do utipossidetis para resolver os problemas de limites. Fato este, ocorrido pela primeira vez em 1837, quando das discussões entre os governos de Brasil e Bolívia, na tentativa de formular um Tratado de Amizade e Limites. As negociações com a Bolívia viriam culminar com o Tratado de Ayacucho, assinado em 1867 - sobre o qual nos debruçamos mais adiante. Os bolivianos entendiam que podiam aproveitar o ensejo do conflito para firmar “tratados de limites” com seus vizinhos sul-americanos. Suas expectativas foram

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GÓES FILHO, Synésio Sampaio. Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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frustradas, no entanto, com o Tratado da Tríplice Aliança, assinado por Brasil, Argentina e Uruguai em 1º de maio de 1865 e cujo conhecimento se deu apenas em meados de 1866. Preocupada com o teor do tratado, especialmente quanto ao disposto no artigo dezesseis, a diplomacia boliviana protestou de forma veemente, invocando seus pretensos direitos. O texto dispunha sobre os limites territoriais a serem estabelecidos entre o Paraguai e a Argentina, regulando a fronteira do Rio Paraguai até a Bahia Negra, área também reivindicada pela Bolívia.

Art. 16º Para evitar as dissensões e guerras que trazem consigo as questões de limite fica estabelecido que os aliados exigirão do governo do Paraguai que celebre com os respectivos governos tratados definitivos de limites sob as seguintes bases: O Império do Brasil se dividirá da República do Paraguai: Do lado do Paraná, pelo primeiro rio abaixo do salto das Sete Quedas, que, segundo a recente carta de Mouchez, é o lgurei, e da foz do lgurei e por ele acima a procurar as suas nascentes; Do lado da margem esquerda do Paraguai, pelo rio Apa, desde a foz até às suas nascentes; No interior, pelo cume da serra de Maracaju, sendo as vertentes de leste e do Brasil e a oeste do Paraguai e tirando se da mesma serra linhas as mais retas em direção às nascentes do Apa e do lgurei. A República Argentina será dividida do Paraguai pelos rios Paraná e Paraguai, a encontrar os limites com o Império do Brasil, sendo estes do lado da margem direita do rio Paraguai e Baía Negra38.

Como não surtiram efeito os protestos e a atuação da diplomacia boliviana perante os países que assinaram o tratado, iniciaram-se conversações entre os dois chefes de Estado, de Bolívia e Paraguai, com o propósito de firmar uma aliança, conforme nota supostamente dirigida ao Presidente Marechal Francisco Solano López pelo Presidente General boliviano Mariano Melgarejo. A nota referia-se em por à disposição de López uma coluna de doze mil homens a fim de “acudir presuroso e compartir al lado suyo las fatigas del soldado”39.

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Fonte: site UOL: http://www2.uol.com.br/linguaportuguesa/valeoescrito/ve_triplicealinca.htm, acessado em 21/09/2006, às 20h30min. 39

CENTURIÓN, Juan Crisóstomo. Memórias e Reminiscências Históricas sobre a Guerra do Paraguai, Asunción, 1987, p. 289-290, 2.

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Na verdade, o apoio militar estava em segundo plano, interessando mesmo aos bolivianos, especialmente aos empresários situados no Departamento de Santa Cruz de la Sierra, elaborar acordos que assegurassem um caminho por onde pudessem escoar a produção oriunda da região oriental daquele país. Intencionavam, dessa forma, atingirem os mercados da região platina. Para isso o Rio Paraguai exercia papel preponderante, sendo alvo de assédio constante. Tal interesse ficava explicito pela maneira como a Bolívia conduzia as negociações com os países beligerantes, Paraguai e Brasil. Enquanto durou a ocupação paraguaia em Corumbá, o rio esteve no centro das negociações. Não foi por acaso que paraguaios e bolivianos trabalharam com afinco na abertura do caminho terrestre que, concluído em 1866, viria “sociabilizar” o acesso ao Rio Paraguai40. Inaugurava-se, desse modo, um importante “canal” de comunicação e comércio que pôs em contato direto as praças de Corumbá e Santo Corazón (Bolívia). Mesmo reconhecendo que a população boliviana era pobre e dispunha de parcos recursos, consideravam que o comércio poderia ser embrião de algo muito maior. Animados com os resultados, os fronteiriços chegaram mesmo a colocar em prática o projeto que visava abrir um novo caminho, desta feita ligando Corumbá à Santiago de Chiquitos. O discurso, pautado por promessas de parte a parte, pregava que haveria melhorias incalculáveis para a economia da região caso o relacionamento se estendesse. Os acordos praticados com os paraguaios não obstavam que, paralelamente, a Bolívia desenvolvesse com o Brasil conversas que tinham como mote a definição das fronteiras, bem como o comércio e a navegação. Aliás, as negociações, então em curso, nos remetem, inevitavelmente, às demarcações de limites, situadas no século XVIII, frutos dos contenciosos entre a coroa portuguesa e a espanhola, e que tiveram no Tratado de Madrid, assinado em 1750, seu filho mais ilustre. Precursor de outros acordos vindouros, este tratado merece atenção redobrada, especialmente se pretendemos compreender em toda a sua magnitude o “jogo diplomático” disputado na América do Sul após o período de independências das ex-colônias.

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A respeito do Rio Paraguai e a sua importância como rota de comunicação, ver: BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai: o "mar interno" brasileiro - uma contribuição para o estudo dos caminhos fluviais, 1999, 380 f. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.

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À coroa portuguesa interessava consolidar seus domínios sobre os territórios ao Oeste, incluindo Mato-Grosso. Nada mais conveniente, portanto, do que dotar esse espaço, alvo de ambições, de uma estrutura político-administrativa que o colocasse sob os olhares vigilantes da metrópole. Esse quadro acabou conduzindo para que houvesse o desmembramento da Capitania de São Paulo (1748), e Mato-Grosso ganhasse autonomia. Acrescenta-se a esse panorama, a descoberta de veios auríferos e, posteriormente, diamantíferos em solo mato-grossense. A união de fatores econômicos e geo-políticos mobilizou o agir político das autoridades metropolitanas e locais, que estreitaram os laços visando, dessa forma, diminuir a possibilidade de eventuais “descaminhos” e “incongruências”, que pudessem afetar o controle real. O Tratado de Madrid, então, aparou arestas entre os interesses portugueses e espanhóis. Mas, como já foi salientado, o desconhecimento do espaço físico e as conveniências políticas e econômicas, fizeram com que a tinta dos escritos que afirmavam o acordo ficasse um tanto quanto esmaecida41. Os castelhanos, mais preocupados com os lucros obtidos das minas de prata de Potosí, não atinaram para a paulatina e gradual ocupação portuguesa em terras que, pelo tratado, seriam suas. Dessa negligência e da perspicácia portuguesa, nasceu, por exemplo, o povoado de Corumbá; palco onde atuaram vários dos personagens da trama sobre a qual nos debruçamos no século XIX, em plena “Guerra Grande”. Conscientes sobre o caminho percorrido até chegarmos a esse ponto, podemos, agora, seguir rumo ao entendimento das relações diplomáticas entre Brasil e Bolívia. As negociações entre esses países ocorriam num campo minado pelas disputas territoriais, ao som de tiros de canhões, que reverberavam o desejo dos emergentes Estados Nacionais de se auto-afirmarem no efervescente cenário sul-americano. Assinado em 27 de março de 1867, o Tratado de Amizade, Limites, Comércio, Navegação e Extradição, conhecido como “Tratado de Ayacucho”, numa alusão à cidade

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A respeito das estratégias geo-políticas da coroa portuguesa, ler a obra de: CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: EdUFMT, 2004.

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de La Paz de Ayacucho – local onde foi celebrado - consumiu da diplomacia brasileira esforços nada desprezíveis. Insatisfeito com os acordos alinhavados pelos consortes do “Tratado da Tríplice Aliança” (1865), que dispunham sobre área territorial reivindicada também pela Bolívia, o Presidente General boliviano Mariano Melgarejo respondeu de forma contundente e ameaçadora, chegando a especular com o governo paraguaio a possibilidade de uma “coligação”. Incomodado com a repercussão da fala de Melgarejo e de posse de relatório expedido pela presidência da Província de Mato-Grosso, que informava sobre o comércio realizado entre paraguaios e bolivianos a partir de Corumbá, ocupada, o Império brasileiro, através do seu Ministério dos Negócios Estrangeiros, incumbiu o plenipotenciário Felipe Lopes Netto da missão de ir até La Paz “frear” o ímpeto combativo do governo da Bolívia, ao tempo em que eram lançadas nuvens de desconfiança no relacionamento paraguaioboliviano. Segue trecho do relatório provincial no qual se noticia a abertura do caminho entre Corumbá e Santo Corazón:

Relações com a Bolívia - Continuão a ser pacíficas e amigáveis as poucas relações que temos com a República Boliviana nos districtos de Villa Maria e Mato Grosso. Em fevereiro de ano findo, alguns estrangeiros, a quem associou-se hum brasileiro, guiado por hum escravo do Barão de Villa Maria, emprehenderão a abertura de hum caminho de Corumbá para a Bolívia. No fim de grandes meses de trabalhos e privações chegarão ao Povo Boliviano do S. Coração, distante de Corumbá 25 ou 30 legoas, trajecto que, dizem, faz-se actualmente em Quatro dias. Sobre este objecto dirigi ao Exmº. Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros o officio reservado nº. 1 de 21 de Dezembro último, cujo conteúdo será tomado por V. Exª. na consideração que lhe merecer42.

De início, as primeiras linhas do documento revelam serem amistosas e “poucas” as relações com a República da Bolívia, fato que chama especial atenção. Há, aqui, da parte de Augusto Leverger, Presidente da província de Mato-Grosso, uma constatação óbvia, 42

Relatório do Presidente de Província, Augusto Leverger, datado de 8 de maio de 1866, disponível no site http://www.crl.edu/content/brazil/mato.htm. Acesso acorrido no dia 03 de dezembro de 2007, às 20 horas.

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porém emblemática. O termo “poucas” denota despreocupação e desinteresse em se aproximar do Estado boliviano. Postura que pode, perfeitamente, ter sido a principal responsável pela radicalização do discurso do governo boliviano que, ao perceber a presença paraguaia na fronteira, viu a oportunidade de se fazer ouvir. Em contrapartida, tal procedimento possibilita a percepção da dialética entre práticas e discursos, capaz de promover mudanças na forma de gerir os problemas por parte do Estado. Ao alertar, em 8 de maio de 1866, sobre o que acontecia na fronteira, o Presidente da Província de MatoGrosso, Augusto Leverger, o Barão de Melgaço, despertou o Império para práticas fronteiriças, que iam contra seus interesses. Esse alerta mobilizou o Estado, interferindo diretamente na sua política, o que se reverteu na formação de uma comitiva diplomática que, em menos de três meses, se apressou em negociar com o governo da Bolívia. Por mais contundentes e ameaçadoras que fossem as falas do presidente boliviano, elas por si mesmas, não bastariam para que o governo brasileiro tomasse tal iniciativa. O incômodo provocado pelo comércio entre paraguaios e bolivianos na fronteira foi, no nosso entendimento, preponderante para que providências fossem tomadas43. Produziu-se, assim, um significativo resultado político: o Tratado de Ayacucho. Vê-se, então, que em momentos de exceção, como a guerra, o poder central é obrigado a olhar mais atentamente para o que ocorre nas regiões afastadas, especialmente para as complexas relações fronteiriças. Lastima-se que tal conduta não seja uma constante, restringindo-se, ainda hoje, a casos excepcionais, que coloquem em risco os “interesses nacionais”. Lembramos que o descaso do poder central com essa fronteira remonta ao período colonial. A importância dispensada ao palco sulista (Rio Grande do Sul) da “Guerra Grande” em detrimento ao nortista (Mato-Grosso) pode ser mais bem compreendida se nos detivermos a um antecedente. Se nos recordarmos da força despendida pela Coroa Portuguesa para solucionar os problemas relativos à Colônia de Sacramento (Uruguai), entenderemos o motivo pelos quais as pendências fronteiriças ao norte foram se avolumando e tomando proporções perigosas, “perdendo-se nos recessos de seus longínquos cenários sertanejos; ao passo que se distinguiam, mais vivas, à ourela do continente - onde assumiram, desde 1762, com a tomada da Colônia do Sacramento, uma 43

E é bom que se diga que, mesmo com a assinatura do acordo entre os governos de Brasil e Bolívia, o comércio fronteiriço protagonizado por paraguaios e bolivianos não cessou, uma vez que já tinha assumido outra feição, como veremos nos próximos capítulos.

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feição ruidosa e teatral”, como faz questão de salientar Euclides da Cunha, em seu trabalho Peru versus Bolívia44. Situação que expõe o descaso com a fronteira oeste, relegada ao segundo plano até mesmo pela “historiografia nacional”, embora, atualmente, haja volumosa e qualificada produção local tratando do assunto. Percebemos intenso potencial a ser explorado pelos estudos sobre a Guerra com o Paraguai45, que podem, perfeitamente, preencher as lacunas existentes, dando o devido valor ao cenário mato-grossense do conflito. Palco onde se desenvolveram “atos” que refletiram não só na historia diplomática brasileira, como também na dos nossos vizinhos de fronteira. Com efeito, após a assinatura do acordo, em 1867, firmado entre o plenipotenciário brasileiro, Felipe Lopes Neto, e o ministro da Bolívia, Mariano Donato Muñoz, as conversações entre La Paz e Assunção esfriaram. Uma atmosfera harmoniosa envolveu o corpo diplomático imperial durante a estada na capital boliviana. O encontro político foi marcado pela troca de cortesias. Um casal de eqüinos, conforme diz o pesquisador acreano Marcos Vinícius Neves, foi dado à Melgarejo pelo então cônsul brasileiro na Bolívia, Regino Correa, que conhecia a paixão do Presidente boliviano pelos animais46. Desse episódio, advêm comentários de que a Bolívia teria cedido ao Brasil um extenso território, cerca de 300.000 km², pertencente ao atual Estado do Amazonas, em troca de cavalos; estória que, costumeiramente, é atrelada à anexação do Acre pelo Brasil, consumada pela via diplomática em 1903, com o Tratado de Petrópolis. Proliferavam também comentários, segundo os quais, cada membro da guarda boliviana destacado para realizar a segurança da delegação imperial teria sido agraciado com uma generosa “gratificação”, paga em ouro. Até mesmo outras facetas da personalidade do General Melgarejo teriam sido analisadas, objetivando o bom andamento dos trabalhos. Dentre elas, a que mais desperta atenção seria

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CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. São Paulo: Cultrix, 1975: p.55. Representando a boa e qualificada produção do Programa de Pós-graduação em História da UFMT acerca da temática “Guerra com o Paraguai”, faço menção ao trabalho de um companheiro que nos deixou: BARROS, Ruy Coelho de. Guerra com o Paraguai: aspectos polêmicos. Aprofundamento. 2007. 145 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2007. 46 NEVES, Marcos Vinícius. “O Acre por um Cavalo Branco”. Blog do jornalista Altino Machado. http://altino.blogspot.com/2006/05/o-acre-por-um-cavalo-branco.html. Acesso em 22 de fevereiro de 2008, às 21 horas. 45

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a de que ele era um “exímio apreciador de bebidas etílicas”, hábito que explicaria seus discursos verborrágicos e algumas de suas atitudes intempestivas47. Os aspectos pitorescos da vida de personalidades políticas, que perpassam pela memória coletiva de gerações, não devem ser desprezados, mas, sim, examinados com criticidade, visando escapar das generalizações e superficialidades, que em nada contribuem à análise de ações complexas desenvolvidas no campo político. Caso contrário, incorrer-se-á no risco de simplificar e/ou caricaturar questões que vão muito além de uma “troca de presentes”. Fato é que o governo boliviano agiu de forma pragmática. Os litígios territoriais com o Brasil e o frustrado desejo pela livre navegação através do Rio Paraguai eram assuntos que estavam na pauta de negociações há décadas. Vangloriava-se o governo de Mariano Melgarejo por solucionar questões pendentes desde administrações anteriores. Tão logo o acordo foi concluído, Mariano Donato Muñoz remeteu um comunicado às autoridades do Departamento de Santa Cruz de la Sierra, dando ciência sobre o tratado, sem que, no entanto, expusesse os termos em que o mesmo fora assinado.

Hé tenido la honra de firmar hoy el Tratado de Amistad, Límites, Comercio, Navegacion i Extradicion, que he ajustado con el Exmo. Señor Consejero Dr. D. Felipe Lopez Netto, Enviado Extraordinario y Ministro Plenipotenciario, em Mision Especial del Brasil en Bolivia. Aprobado y ratificado que sea por el Gobierno, se rejistrará em La prensa Nacional. [...] A su debido tiempo manifestaré a la República las razones que me han quedo en ese importante negociado, y le haré notado sus antecedentes48.

O Império brasileiro, ao lançar mão da missão diplomática comandada por Felipe Lopez Neto, emitiu sinais de respeito ao país vizinho, antes tratado com pouco caso. Isso, por si só, bastou para que a conduta dos dirigentes bolivianos tomasse um novo rumo. Os 47

D’ ARLACH, Tomas O’ Connor. El General Melgarejo: Hechos y Dichos de este Hombre Celebre. La Paz: Libreria Editorial Juventud, 1982: p. 48. 48 Comunicado sem número expedido por Mariano Donato Muñoz, Ministro das Relações Exteriores da Bolívia, ao Prefeito do Departamento de Santa Cruz de la Sierra. La Paz, 27 de março de 1867. 2/85-19. AUAGRM.

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discursos em tom exaltado foram substituídos por uma preocupação constante em deixar clara a posição de neutralidade da Bolívia diante dos beligerantes. E isso fica claro quando mergulhamos nos manuscritos. Às vésperas de firmar o tratado com o Brasil, Mariano Donato Muñoz, braço direito de Melgarejo, demonstrava cuidado com as palavras quando se referia ao comércio realizado com os paraguaios na região de fronteira. Temia que as relações com o país vizinho gerassem interpretações maliciosas, que prejudicassem as negociações com o Brasil, então, em curso. Assim, não se furtou em escrever ao Prefeito de Santa Cruz para fazer algumas recomendações.

En oficio que com fecha 1º mês corriente dirijí á V. S., se ordeno que el Sub-Prefecto de la Provincia de Chiquitos i su Admor. principal, se trasladen al pueblo de San José para dar mayor ensanche i facilidades al comercio que principia á desarrollarse entre ese Departamento i la República del Paraguay. Mas, como esta medida pudiera ocasionar talvez, interpretaciones maliciosas que afecten los intereses de la Nácion, tengo orden de S. E. para decir á V. S., que el comercio de que se habla, debe entenderse de todos aquellos artículos que no esten considerados como contrabandos por nuestras leyes fiscales, ó prohibidos por el Decreto Internacional; com tanta mas razon, cuanto que hallándose el Paraguay en guerra com el Imperio del Brasil i las Repúblicas Argentina i Uruguaya, pudiera creerse con prometida neutralidad de Bolivia. En esta virtud, debe prevenir V. S. á las autoridades de esa Ciudad, i á las de Chiquitos, tengan el mayor cuidado i vijilancia en que no se esporten á las Naciones vecinas, sino artículos de comercio lícito, reconecido por dichas49.

A importância dada pelos bolivianos ao comércio realizado na fronteira pode ser mensurada pela atitude do governo central de transladar as principais autoridades da Província de Chiquitos para San José, população localizada num ponto mais central do Departamento; ação que facilitava as operações logísticas necessárias para o bom andamento das atividades, dentre as quais o transporte de cargas que adentravam o sul da Província de Mato-Grosso, território ocupado pelos paraguaios. As recomendações do governo central, no entanto, não eram cumpridas em sua plenitude, visto que os negócios adquiriram uma conotação regionalizada, com volumoso investimento privado. Muito

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Ofício nº 09 expedido por Mariano Donato Muñoz ao Prefeito do Departamento de Santa Cruz de la Sierra. La Paz, 19 de março de 1867. 2/85-19. AUAGRM.

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difícil era segurar o ímpeto daqueles que comercializavam, restringindo os artigos dignos de exportação, classificando-os como lícitos ou ilícitos, quando o que estava em jogo era a oportunidade de lucrar com o conflito. A realidade é que a súbita preocupação em demonstrar neutralidade só veio à tona por ocasião da presença do Plenipotenciário brasileiro na Bolívia. Quanto à atuação da diplomacia brasileira, verifica-se que, mesmo tendo negociado em meio às pressões exercidas por La Paz durante a Guerra com o Paraguai, esta soube se aproveitar da conduta dos negociadores bolivianos, para obter benefícios vindouros. Como o povoamento brasileiro já havia penetrado nos rios Madeira, Purus e Juruá, os negociadores do Brasil empurraram a linha divisória mais para o sul, estabelecendo que o ponto inicial da fronteira fosse a confluência dos rios Beni e Mamoré, onde se iniciava o Madeira. A partir daí, o Tratado de Ayacucho dispunha que "Deste rio para oeste seguirá a fronteira por uma paralela, tirada da sua margem esquerda na latitude sul 10º20’ até encontrar o rio Javari. Se o Javari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a fronteira desde a mesma latitude, por uma reta a buscar a origem principal do dito Javari." O trecho citado evidencia que quando da assinatura do Tratado de Ayacucho, ainda não se conheciam as verdadeiras nascentes do Javari. Acreditavam os diplomatas brasileiros que essas nascentes estavam no paralelo 10º20’, mas deixavam a questão em aberto caso a idéia não correspondesse à realidade. E, de fato, confirmou-se, posteriormente, que as verdadeiras cabeceiras do Javari estavam localizadas a 7º 06’. A descoberta acabou, mais tarde, dando origem à questão acreana50. Conforme a teoria das relações internacionais proposta por Jean-Baptiste Duroselle, em Todo Império Perecerá51, podemos entender alguns dos fatores que levaram a Bolívia a um quadro de fragilidade institucional, acabando por, inevitavelmente, refletir na sua política exterior. Atuam como “forças profundas”, cujas características mais patentes são as de uma economia frágil, eminentemente agrícola e baseada na exportação de minérios,

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Só solucionada após um intenso jogo diplomático, do qual participou com efetividade José Maria da Silva Paranhos Junior, futuro Barão do Rio Branco, que conduziu as negociações que culminaram com o Tratado de Petrópolis, assinado em 1903. Pelo acordo, o Brasil ficara com o Acre mediante o pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas ao governo da Bolívia, e ainda se comprometera a construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré. 51 DUROSELLE, Jean-Baptiste. Todo Império Perecerá: Teoria das Relações Internacionais. Brasília: EDUNB; São Paulo: IOESP, 2000.

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uma composição étnico-cultural que desde a República, sofreu graves processos de exclusão, marginalização e repressão, uma forte desarticulação política e ideológica, que nunca permitiu conciliar os interesses gerais, e finalmente a desarticulação regional, que juntamente a falta de uma integração social de Estado, conteve a ampliação do mercado interno. Paralelamente a encenação promovida pelos grandes artistas da política e da diplomacia, outros atores, até então anônimos, atuavam com imensa desenvoltura no não menos importante palco fronteiriço. Caminho que segue...

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CAPÍTULO II

Dos Peaberus aos caminhos abertos pela guerra

Ora, meu Deus!... Que é isto que eu vejo? Será possivel que os paraguaios tenháo outros caminhos mais? Ah! E como vão entrando as provisáos!... Muito gado, e muito bastimento! Sim, e tudo com abundancia!... É impossivel vencer a López!52

52

Legenda de uma charge paraguaia que satiriza o comandante geral das forças aliadas em operação no Paraguai, Luiz Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, espantado com a chegada de abundante abastecimento à capital Assunção por “caminhos alternativos”. Fonte: Jornal “Cabichuí”. Quinta-Feira, 19 de dezembro de 1867. Paso Cucu. Año 1. N. 66. Imprensa Nacional do Paraguai. Acervo da Biblioteca Nacional de Assunção (BNA).

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2.1 - Os Peabirus

Ao tratar dos caminhos abertos na tríplice fronteira durante a “Guerra Grande”, parece-nos salutar discorrermos um pouco a respeito das antigas trilhas abertas por indígenas: os “peabirus”. Estudos recentes da etno-história e da arquelogia nos mostram que estes caminhos eram verdadeiras estradas que cortavam parte da América do Sul, ligando o altiplano andino ao litoral – Atlântico e Pacífico -, entrelaçando-se com as grandes rotas incaicas53. Um desses caminhos possuía ramificações que se estendiam até o território, hoje, pertencente à Bolívia. Sua extensão era de, aproximadamente, 3 mil quilômetros, possuindo 8 palmos de largura (cerca de 1.40 metros). O percurso era revestido por pedras e gramínias, que atenuavam o efeito erosivo e evitavam a proliferação de ervas daninhas. Por ele não só transitaram os índios como também vários personagens fundamentais para o processo de ocupação do eixo sul do continente, tais quais os missionários jesuítas. O caminho conduziu os colonizadores portugueses e espanhóis às descobertas minerais, originando a fundação de muitos núcleos populacionais ao longo de seu trajeto. A autoria da portentosa obra até hoje permanece sendo objeto de atenção detida por parte dos pesquisadores. Uma das idéias defendida, é de que o trabalho foi realizado por índios guarani em busca da sua mitológica “Terra sem Males”54.

53

Há uma série de estudos etno-históricos e arqueológicos em curso a respeito dos Peaberus. Como indicação de leitura com a finalidade de aprofundamento na temática, sugiro ler: BOND, Rosana. O Caminho de Peabiru. Campo Mourão: Kromoset Artes Gráficas Ltda., 1996. 54 Verificar estudo da pesquisadora Rosane Volpatto, que mantém um site no qual trata da temática: http://www.rosanevolpatto.trd.br/lendacruzadaguarani1t.htm. Acesso em 09 de fevereiro de 2007.

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Imagem 5 - Mapa do "Peabiru", com seus braços e bifurcações. Possivelmente um dos "ancestrais" do caminho aberto pela "Guerra Grande".

Fonte: http://organismo.art.br/blog/wp-images/mapapeabiru.jpg. Acesso em 20/01/2008, às 21 horas.

Ao analisar mapas da região e manuscritos que relatam como se deu a abertura do caminho entre Corumbá e Santo Corazón, torna-se plausível imaginar que os militares paraguaios e os seus colaboradores cruz-serranos tenham se valido de uma trilha que já existia, aprimorando-a para tornar viável o comércio entre as duas localidades. Não há como afiançar que estamos lidando com um dos trechos do tronco principal do caminho do Peabiru, embora haja essa possibilidade. Um estudo mais detalhado, pode, quem sabe, elucidar a questão. Dúvida à parte, a pesquisa emite uma série de signos, que permitem pressupor a continuidade de um trabalho iniciado pelos ancestrais indígenas daqueles que, entre 1865 e 1868, interagiram na fronteira. Para subsidiar os nossos estudos, trazemos aqui o trabalho de Eulália Maria Lahmeyer Lobo, autora de Caminho de Chiquitos às Missões Guaranis de 1690 a 171855, em que revela a existência de antecedentes históricos no tocante ao abastecimento do

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LOBO, Eulália. Caminho de Chiquitos às missões Guaranis, de 1690 a 1718. Revista de História, São Paulo, USP, n. 40, p. 411, 1960.

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Paraguai através de uma estrada que colocava em contato direto essa região com a província de Chiquitos, na Bolívia, no período colonial. Intercâmbio que, segundo a autora, colidia com os interesses dos comerciantes de Santa Cruz, que, prontamente, protestaram junto à Coroa Espanhola pedindo a desativação da via e, por conseguinte, a interrupção do comércio; o que, efetivamente, veio a ocorrer em 1717 sob ordem régia56. Ainda a respeito desse assunto a referida historiadora diz em entrevista concedida à Revista de Estudos Históricos:

A idéia de estudar essa estrada deveu-se ao fato de ela estar ligada de todas as formas à história do Paraguai, da Bolívia e do Brasil, e até mesmo dos Estados Unidos, que também queriam interferir na Política daquela região da bacia do Paraguai. O caminho de Chiquitos era uma tentativa de romper o bloqueio e abastecer o Paraguai via Bolívia e Peru. Havia ali sérios conflitos de interesses. A documentação sobre essa estrada revela aspectos novos desses conflitos e da Guerra do Paraguai57.

As sociedades paraguaia e cruz-serrana, que têm, conforme os estudos mencionados referendam, uma mesma matriz étnica, tiveram o seu encontro “marcado” pela guerra. Encontraram-se mais de cem anos após o rearranjo administrativo que, se não cessou, ao menos, dificultou o contato das missões jesuíticas chiquitanas com aquelas circunscritas na Província do Paraguai, já que, em 1743, “aqueles índios” tiveram sua jurisdição remanejada para à Província do Alto Peru, quando então passaram a ser responsabilidade da Audiência de Charcas, situada na cidade de La Prata (atual cidade de Sucre, na Bolívia). Essa medida estratégica da coroa espanhola tinha por finalidade resguardar a prata extraída das minas de Potosí dos ambiciosos olhares lusitanos. Como podemos observar, as políticas admistrativas postas em prática pela Coroa Espanhola revelavam o quão importantes eram estrategicamente as missões jesuíticas de

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GANDIA, Enrique de. Historia de Santa Cruz de la Sierra: Una Nueva Republica en Sud América. Buenos Aires: Tallares Gráficos Argentinos, 1935, p.65. 57 LOBO, Eulália. Entrevista. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 9, 1992, p. 84-96.

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“Chiquitos e Moxos”, constituindo-se em assunto recorrente nas cartas régias que externavam muita preocupação com os “sagazes portugueses de Cuiabá”, que em algumas oportunidades já tinham se aventurado em incursões pela região. Esse cuidado era refletido nas frequentes reformas de caráter administrativo, que ensejaram a criação ou a reorganização das unidades que compunham o recém criado, em 1776, Vice-Reinado do Rio da Prata. Mudanças como a ocorrida em 1782, que elevou Santa Cruz de la Sierra à condição de Intendência. A coroa espanhola instituiu governos militares em Chiquitos e Moxos, mas os manteve subordinados às ordens vindas de Santa Cruz. Quadro que revela o perfil de uma sociedade sequiosa por exercer o poder e expandir sua rede de influências; desejo que, contemporaneamente, alimenta o clamor por uma autonomia que povoa os sonhos de boa parte da população cruz-serrana58. Verifica-se que as antigas missões chiquitanas estiveram, ao longo do período colonial, diretamente vinculadas tanto a Província do Paraguai quanto a Santa Cruz de la Sierra, mostrando a íntima relação existente entre essas regiões, quer pelas origens comuns, raciais e políticas, quer pela sua situação geográfica. Outro fator importante que deve ser levado em consideração quando analisamos o relacionamento entre paraguaios e cruz-serranos é, indubitavelmente, o étnico-cultural. Por sinal, percebemos na documentação analisada um grande interesse pelas discussões etnográficas. Pesquisas, como veremos a seguir, que enfocam os processos migratórios ocorridos no interior do continente sul-americano, no período colonial, ajudam ladrilhar o caminho em busca de uma compreensão ampla do objeto histórico.

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Basta nos reportarmos ao recente plebiscito pela autonomia, realizado em 4 de maio de 2008, no qual o SIM venceu com larga vantagem (aproximadamente 85% dos votos). Na ocasião, o governador regional, Rubén Costas, afirmou: "Hoje iniciamos o caminho rumo a uma nova República, em direção a um Estado moderno", numa referência à descentralização do Estado boliviano. “Modernidade” que La Paz refuta impiedosamente, não medindo as palavras para dizer que tal procedimento tem cunho ilegal e separatista. (Matéria publicada no site do Jornal Folha de São Paulo, no dia 10/05/2008, às 01h01). Ver mais no endereço: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u400471.shtml

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José Eduardo Fernandes Moreira da Costa, autor de A coroa do mundo: Religião, território e territoriedade chiquitano59, nos oferece um estudo no qual identifica uma origem étnica comum a paraguaios e a considerável parcela da população oriental da Bolívia: a guarani. Informação que nos impele a navegar pelas revoltas águas do tempo, desembarcando no século XV, marco inicial das sucessivas ondas de migração indígena que conferiram um novo arranjo às terras partilhadas entre portugueses e espanhois. Dentre essas correntes migratórias, nos interessa, em particular, as protagonizadas por grupos guarani, que habitavam os arredores da região onde fora fundada Assunção, no Paraguai, e que atrás de melhores condições de vida, já acossados pela presença européia, rumaram para o norte, vindo a se estabelecerem aos pés dos Andes bolivianos. Os guarani vindos do sul receberam a alcunha de “Chiriguanos”, desígnio dado pelos seus vizinhos e inimigos andinos, com os quais travaram severas disputas. Fixados àquelas paragens, estenderam sua influência pelas cercanias de onde, mais tarde, viria a ser fundada por assunceños a cidade de Santa Cruz de la Sierra. Outros grupos étnicos indígenas, como os chanés, que ali viviam, passaram a conviver com a cultura guarani, assimilando-a60. A bravura chiriguana é reconhecida pelos cruz-serranos, que costumam chamá-los pela forma abreviada de “Chiros”. Hoje, em Santa Cruz de la Sierra, deparamonos com monumentos que lembram o grupo indígena com o qual crêem possuir laços históricos e sanguíneos, tidos como representações que cristalizam o desejo de uma autoafirmação identitária que visa, sobretudo, fortalecer o discurso político regionalista.

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COSTA, José Eduardo Fernandes Moreira da. A Coroa do Mundo: Religião, Território e Territorialidade Chiquitano. Cuiabá: EDUFMT, 2006. 60 HIRSCH, Silvia. Ser Guarani en el Noroeste Argentino: Variantes de la Construcción Identitária. Revista de Indias, 2004, p.70.

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Imagem 6 - El Chiriguano, monumento à ancestralidade “Guarani” dos naturais de Santa Cruz

Fonte: Labor Didáctica – Publicaciones Educativas: Santa Cruz de la Sierra, 2000, p.152.

2.2 - Encontros marcados pela Guerra

O conflito bélico, que tantas vidas ceifou em solo sul-americano, proporcionou encontros instigantes. O reconhecimento étnico-cultural que defendemos ter ocorrido durante a “Guerra Grande” não se restringiu apenas às relações entre sociedades “civilizadas”, mas se estendeu aos diversos grupos indígenas do oriente boliviano, especialmente chaqueños, com os quais os militares paraguaios mantiveram um bom diálogo. Tais contatos ocorreram num lugar bem definido: a Fronteira, que, nas palavras de José de Souza Martins, é...

(...) essencialmente o lugar da alteridade. É isso que faz dela um lugar singular: À primeira vista é o lugar de encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados do outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro61.

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MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997: p.150.

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Ao tratarmos desses encontros, estamos adentrando um terreno fértil de análise, que tem como esteio os conceitos de identidade e alteridade, colocados frente a frente, sob um prisma relacional62. O cacique Mariano Nandevé, da nação indígena “Ysozeño”63, expressou a imensa curiosidade que despertara em toda região chiquitana a presença militar guarani em Corumbá. Investido na função de porta voz de sua gente, tratou de dizer que reconheciam nos paraguaios verdadeiros amigos e irmãos e que estavam dispostos a ajudar no que fosse necessário. Postura esta ratificada em um ofício destinado ao Ministro da Guerra e Marinha, General Vicente Barrios, pelo capitão paraguaio Francisco Bareiro, no qual consta que, conforme relato de um boliviano chamado Bargas, “los indios que habitan el chaco al Sud de la ciudad de Santa Cruz son incapaces de hacer daño y antes bien prestan servicios a los cruceños”64. A documentação traz à baila relações entre “índios civilizados” e “índios não civilizados” facilitadas, dentre outros fatores, pela comunicação realizada em guarani, língua falada por ambos os lados. Aspecto de extrema relevância, pois demonstra o forte conteúdo cultural que impregnou essas interações fronteiriças. Cabe explicar que nos apropriamos do termo “índios civilizados” para designar os militares paraguaios inspirados no Álbum Gráfico del Paraguay, que se refere exatamente assim à porção majoritária da população daquele país65. Em conseqüência, seguindo a lógica da referida obra, é possível concluir sobre a existência de “índios não civilizados”. Ao mesmo tempo em que percebemos a tentativa de preservação da identidade indígena, a publicação oficial do Estado paraguaio evidencia a idéia de que houve a passagem por um “processo civilizador”, que se traduz no emprego do adjetivo “civilizado”, remontando ao papel desempenhado pela Igreja na empresa da colonização66. A cristianização e as 62

HAESBAERT, Rogério. Identidades Territoriais. In: Rosendhal, Z. e Correa, R. (orgs.) Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. 63 Grupo indígena que, provavelmente, é composto por chanés guaranizados, levados pelos Chiriguanos para as margens do Rio Parapetí, quando estes chegaram desde regiões do Rio Paraguai e ocuparam seu hábitat na Grigotania, submetendo-os. Vivem na comarca denominada “Bañados de Isoso”. Fonte: Labor Didáctica – Publicaciones Educativas: Santa Cruz de la Sierra, 2000: p. 179. 64 ANA-SH, Vol.347, N°19, Folhas 1-2. 65 Álbum Gráfico de la República del Paraguay. Buenos Aires: Tallares Gráficos Argentinos, 1911: p.80. 66 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, vol. 2.

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alterações comportamentais sociais oriundas do contato com o europeu foram conseqüências impostas à população guarani. Diante desse quadro, parece-nos difícil conceber que o Estado paraguaio tenha conseguido arregimentar a população em torno de si, ao fazer, exclusivamente, uso do monopólio da violência, impondo o medo aos seus cidadãos. Francisco Solano López e seu séquito exauriram as reservas humanas do País, recorrendo, inclusive, ao recrutamento de crianças e idosos para a fase final da Guerra. Comandava também uma polícia atuante, que fiscalizava o comportamento de seus cidadãos, punindo-os exemplarmente diante do mais leve sinal de insubordinação. Porém, a nosso ver, isso é parte que não explica o todo. Até mesmo Maldita Guerra67, de Francisco Doratioto, obra que legou indiscutíveis contribuições à historiografia sobre o conflito, parece não ter tido preocupação em responder sobre a maciça adesão popular paraguaia na defesa de seu território. O pesquisador não valorizou outros referenciais de análise, como, por exemplo, o fator étnico-linguístico. Acreditamos que o fervor nacionalista paraguaio, responsável por impor significativas derrotas à Tríplice Aliança, foi também fruto do processo de formação e afirmação identitária guarani. Reconhecimento este que encontramos nas páginas de um dos principais periódicos paraguaios.

La importancia de uno de los idiomas mas interesantes de la America del Sul, que comprende la raza tan numerosa y célebre de los Guaranis, apenas ha sido indicada por los viageros que han estudiado la literatura de los Incas. La raza Guaraní, esa raza de primitivos guerreros, se estendia desde el Atlántico hasta las faldas orientales de los Andes, y sus vastos domínios estaban asentados sobre el Orinoco, el Amazonas y el Plata. El idioma primitivo de estos pueblos guerreros, a un no han sido investigado por Filólogos, y por conseguinte su literatura permanece oculta para este ramo importante de la ciencia. La Republica del Paraguay, es uno de los puntos donde mas zeneralmente se ha conservado la pureza del idioma. Los Pueblos de la Rejion del Plata, que lo hablan no conservan los jiros primitivos de su origem. En la parte Oriental de Bolivia, em los llanos de Manzo, se encuentran pueblos que hablan con pureza el idioma guarani, como la Carrera de Missiones en la Cordillera, Porongo, Santa Roza y Vibosi en las immediaciones de Santa Cruz, y Guarayos en la Provincia de Chiquitos. Sí! Hablaremos nuestro idioma, no nos correremos, como el grajo, de nuestra propria lengua, ni tomaremos las plumas de otras aves para adornarmos, desdenãndo las nuestras – Cantaremos em Guaraní 67

DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2002.

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nuestros triunfos y nuestras glorias, como cantaron em otro tiempo su indómita bravura, los descendientes de Lambaré. En “El Centinela” encontrará el sábio la índole de la literatura guarani, y la fuente del ardoroso amor a lá pátria comunicado, por meio de esa corriente eléctrica del idioma nacional, que há contribuido poderosamente á la celebridad del soldado paraguayo68.

Ao situar o leitor quanto à extensão do território ocupado pela população guarani e o alcance de sua língua, o editorial menciona o Oriente boliviano como um dos lugares onde se preserva a pureza do falar indígena, corroborando, assim, com a nossa premissa de um encontro étnico-linguístico entre paraguaios e grupos indígenas do oriente da Bolívia, ocorrido em meio a “Guerra Grande”. Ao mesmo tempo, a publicação indica que existe um silêncio da parte dos estudiosos sobre a língua, identificando lacunas a serem preenchidas. Por fim, atribuí à língua guarani uma força descomunal, capaz de unir a população em defesa do seu território. Idéia da qual partilhamos. O Brasil, independente, também sentiu os reflexos de uma série de transformações que tinham o mote de “civilizar”. A diferença é que, ao contrário do Paraguai, o brasileiro parece relutar em assumir sua parcela identitária indígena. Embora o Estado tenha se valido da representação de nossos ancestrais na tentativa de conceber uma genuína identidade nacional, vemos que as práticas revelam a artificialidade do discurso, cujo objetivo principal era o de “enquadrá-los” dentro da lógica do Estado-Nação, desconsiderando suas necessidades e fazendo vistas grossas para sua cultura. Marginalizados e usados como ferramenta propagandística, os índios não foram assimilados em sua plenitude pela sociedade brasileira. Como bem observou o antropólogo Darci Ribeiro em O Povo Brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, “Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sêlo”69. Os mamelucos, no período colonial, abriram sendas por entre as matas, expandindo o domínio português território adentro. Essa massa de nativos foi responsável pela

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Jornal El Centinela. Assunção, 16 de maio de 1867. Ano 1, nº 4, p. 4. Acervo da Biblioteca Nacional de Assunção (BNA). 69 RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995: p. 447.

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constituição do Brasil, porém “viveu por séculos sem consciência de si”70. Será que hoje tal panorama mudou? Há a necessidade do brasileiro se reencontrar consigo mesmo, reconhecer suas raízes. Do contrário, como poderemos estabelecer relações profícuas com os nossos vizinhos se relutamos em nos aceitar como somos? Na imagem que segue, concebida pelo pintor Jean-Baptiste Debret, integrante da missão artística francesa, que atuou no Brasil após a independência, visualizamos os “Guarani Civilizados” incorporados à nação e postos a serviço do Estado brasileiro, então recém instaurado. A coroa imperial, localizada na faixa diagonal do fardamento azul que veste o indígena ao centro, imprimi veracidade às nossas afirmativas.

Imagem 7 – Índios Guarani “Civilizados” servindo ao Exército Imperial Brasileiro.

Fonte: DEBRET, Jean Baptiste, 1768-1848. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil / tradução e notas de Sérgio Millet / apresentação de Lygia da Fonseca F. da Cunha - Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção reconquista do Brasil. 3. série especial; vols. 10, 11 e 12) 1º Tomo.

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RIBEIRO, Darcy. Op.Cit., 447.

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No Paraguai, após a independência ocorrida em 1811, sob a gestão de José Rodriguez Gaspar de Francia, mentor da política isolacionista levada a cabo entre 1814 e 1840, processou-se a transição na qual o guarani deixara de conviver com o universo da “redução” para incorporar-se ao “Estado-Nação”. O alvorecer do nacionalismo paraguaio se deu nos limites de sua fronteira espacial, porém quando esta se tornou impenetrável e intransponível por quase três décadas, seu elemento mais peculiar, a “língua guarani”, determinou e consolidou sua identidade. A cultura guarani transcendeu às mudanças impostas pelos padrões ocidentais. Mesmo fragmentada e mutilada, conseguiu conservar seu principal balaústre: o Avañe’e, que, em guarani, significa “o falar do índio”. Este falar ainda hoje une o que se fragmentou, alivia os efeitos da mutilação e como uma centrífuga, isola o núcleo de sua alma da contaminação ocidental, manifestando assim sua substância plena. Tamanha é a sua relevância que, mesmo vítima de políticas inadequadas, o guarani, hoje, se mantém firme, motivando discursos que pedem que esse legado cultural seja incorporado como língua oficial do MERCOSUL, bloco econômico composto por países com os quais possui indiscutível vínculo histórico71. Reivindicação que entendemos ser justa e que, acima de tudo, está em perfeita sintonia com a idéia de se promover integração através do elemento cultural. Valorização que pode ser bandeira também do governo brasileiro, afinal de contas, é incomensurável a herança indígena deixada para a língua portuguesa, especialmente pelo tronco lingüístico tupi-guarani. Não são necessárias muitas entradas pelo universo sertanejo brasileiro, para percebermos a forte influência indígena, presente não só na inflexão de voz gutural, mas também na persistência de inúmeros termos em seu vocabulário. Responsáveis pela transmissão da tradição cultural e da língua para os seus filhos, as mulheres guarani, as destemidas Kygua Vera, merecem destaque especial. Podemos dizer que a resistência paraguaia, em boa medida, foi gestada no ventre dessas “Madres”, que aturam de forma épica nos campos de batalha da “Guerra Grande”, acompanhando seus maridos, soldados, lhes dando todo o suporte necessário para que pudessem defender

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Informações extraídas do site http://www.om-plural.org/noticia.php?id=222, em texto denominado Campanha “Guarani: Língua Oficial do MERCOSUL”, datado de 31/01/2006 e cujas considerações são da responsabilidade do comitê Organização pelo Multilinguismo.

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o solo pátrio72. Muitas, inclusive, pegaram em armas, não se fazendo de rogadas quando a situação pedia o emprego de suas forças. Após a guerra, muitas delas atravessaram a fronteira rumo a Mato-Grosso e algumas se casaram com oficiais brasileiros73. Cuiabá recebeu considerável contingente de paraguaios, que se fixaram, principalmente, na Freguesia de São Gonçalo, às margens do rio Cuiabá74. Trouxeram essas mulheres a esperança de refazerem as suas vidas, ao mesmo tempo em que se tornaram participes ativas do processo transculturador, agregando outras cores à tela cultural mato-grossense, com reflexos sentidos nas danças, artes, vestuário e alimentação. É mais um exemplo paradoxal capaz de ampliar a rede de significados costurada pela Guerra.

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SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. A Noite das Kygua Vera: A mulher e a reconstrução da identidade paraguaia após a Guerra da Tríplice Aliança (1867-1904). Tese, 380 f.(Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Rio de Janeiro: UFF, 1998, p. 112-124. 73 PERARO, Maria Adenir. Imigração para Mato Grosso no século XIX: mulheres paraguaias - estratégias e sociabilidades. Territórios e Fronteiras, Cuiabá, v. 2, n. 01. Jan-Jun. p. 121-134, 2001. 74 PERARO, Maria Adenir. Op. Cit., 129-130.

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2.3 – Vias Abertas para o Comércio Fronteiriço

Era janeiro de 1865, quando forças paraguaias comandadas pelo Coronel Vicente Barrios (? -1868), compostas por um efetivo de sete mil e quinhentos homens, por terra e água, ocuparam o sul da Província de Mato-Grosso, tomando o porto de Corumbá população situada à margem direita do Rio Paraguai -, estabeleceu-se ali um comando militar. Modificava-se, assim, o cenário fronteiriço com a inclusão de novos atores, protagonistas de um excepcional relacionamento, que se desenvolveu durante a “Guerra Grande”, entre 1865 e 1868. Fundada em 1778, pelos portugueses, Corumbá sempre exerceu uma função geopolítica importante. Tida como a “cidade fortificada”, tem no forte Coimbra, construído em 1775, um guardião, cuja principal missão era a de resguardá-la contra possíveis ataques inimigos, ocupando lugar estratégico na tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Bolívia)75. A região onde se estabeleceu a população é circundada em boa medida pelo Rio Paraguai e por seus braços. Conta também com uma toponímia que tem nas íngremes morrarias um traço marcante, de onde é possível contemplar todo o cenário que a abriga. A oeste faz fronteira com o território boliviano e ao sul as águas do mencionando rio seguem seu trajeto rumo ao Paraguai, até encontrarem a “Madre de Las Ciudades”, Assunção. Normalmente, colocado em segundo plano pela historiografia nacional, o território mato-grossense testemunhou ações que repercutiram, indubitavelmente, no transcurso da contenda militar. Vale destacar a respeito da grande quantidade de carne verde (fresca), oriunda dos vastos rebanhos de gado vacum pertencentes às confiscadas propriedades brasileiras, consumida pelos militares da república guarani76. A carne atendeu também a população da capital paraguaia, Assunção. Em um interrogatório feito ao desertor paraguaio Benjamim Ferreira Flores, as autoridades da Província de Mato Grosso foram informadas que de uma só vez foram remetidas para Assunção nada mais nada menos do 75

Guardião que quase um século depois não se mostrou tão eficiente, haja vista a facilidade encontrada pelos paraguaios que, com poucos esforços, transpuseram a fortaleza e ocuparam Corumbá. 76 CORREA, Lúcia Salsa. Corumbá: Um Núcleo Comercial na Fronteira de Mato-Grosso. 1980, 180 f. Dissertação (Mestrado em História)- Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.

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que quatorze mil cabeças de gado77. Para um país que testemunhava dia-a-dia seus recursos, tanto humanos quanto naturais, serem exauridos pela guerra, o produto era precioso e bem-vindo. Francisco Solano López não estava fora de si ao colocar em prática seu projeto de ocupação. Engendrou tudo com enorme cuidado. Antes de a guerra eclodir, havia, inclusive, paraguaios vivendo na Província de Mato-Grosso, exercendo a função de espiões78. Foi possível constatar no transcurso da pesquisa, em manuscritos, a perplexidade e revolta das autoridades provinciais mato-grossenses com os relatos sobre o tratamento dispensado aos prisioneiros de guerra brasileiros pelos paraguaios. Diziam que era esse o pagamento dado à boa acolhida que os inimigos receberam enquanto estiveram na região, na realidade, colhendo informações que eram transmitidas ao comando militar paraguaio. Situação esta que pode ser verificada em um ofício dirigido pelo Major Francisco Carlos Barros Deschamps ao Vice Presidente da Província, Dr. José Anastácio Murtinho, no qual dava ciência a respeito da prisão de João Coxo, famoso paraguaio, algoz dos habitantes fugitivos de Corumbá. Dentre outras considerações, revela preocupação com segurança do citado prisioneiro, receando que o mesmo pudesse ser objeto de retaliações por parte dos militares que o acompanhavam, uma vez que “tal monstro abusou da nossa hospitalidade quando viveo entrenós, neste e n’outros pontos da Província”79. A estratégia de abrir duas frentes de batalha pode até ser objeto de avaliação e, por conseguinte, questionada. O que não se pode negar é que, em princípio, a tática empreendida corroborou para que os objetivos táticos de Lopez fossem alcançados. Tanto é verdade que, ao ocupar Corumbá e demais localidades adjacentes, praticamente, inviabilizou que fosse realizada pelo exército brasileiro uma contra-ofensiva pelo norte –

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Informação colhida de documento avulso intitulado “Auto de perguntas feitas ao Paraguaio Benjamim Flores”, datado de 16 de agosto de 1866. Lata C – 1866. APMT. 78 Espionagem abordada com uso de farta documentação em: BARROS, Ruy Coelho de. Guerra com o Paraguai: aspectos polêmicos. Aprofundamento. 2007. 145 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2007, p. 55-58. 79 Ofício nº. 16, datado de 20 de março de 1869. Documento localizado na Lata A – 1869. APMT.

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apesar das tentativas, como no clássico episódio da Retirada de Laguna80 -, ao manter a principal artéria do Pantanal mato-grossense, o rio Paraguai, livre para as pretensões logísticas guarani. Rio, este, alvo da ambição de personagens que tiveram atuação destacada no teatro de operações, mesmo sem terem disparado um único tiro. Em 1865, posteriormente à anexação de parte da Província de Mato-Grosso espaço que ganhou status de “Província do Alto Paraguai”81 -, o ministro de Guerra e Marinha paraguaio, General Vicente Barrios, despachou uma comissão de doze pessoas sob a direção do topógrafo francês Domingo Pomiés82, para explorar um caminho que conduziria até a povoação de “Santo Corazón” - última das missões jesuíticas espanholas, fundada em 1760, localizada na Província de Chiquitos e Moxos, Departamento de Santa Cruz de la Sierra, no oriente boliviano. Sobrepujando todos os obstáculos, bem-sucedida, a expedição se estendeu até a cidade de Santa Cruz, retornando à Corumbá, lugar de onde havia partido. Em seu diário, Domingo Pomiés relata as adversidades enfrentadas pelos expe dicionários na primeira incursão rumo à Santo Corazón:

Es demás anunciar las miserias y sufrimientos, que experimentamos los expedicionarios de Corumbá en su tránsito solo hasta este punto, apenas comparable com las miserias y sufrimientos que la historia cuenta de los colonizadores del siglo XVI. Baste decir que algunos dias pasamos sin alimentos, y no poco son cogollos de palmeros, o miel silvestre; y seguramente habriámos perecido sin la misericordia del Señor no hubiera mandado a nuestras manos un tigre, una anta, dos jabalíes, doce venados, y muchas pacas, presas que en algunos parajes escaseaban, lo mesmo que lo miel, que es tan abundante en otros83.

80

TAUNAY, Alfredo D'Escragnolle de. A Retirada da Laguna - episódio da Guerra do Paraguai. São Paulo: Ediouro, 1905. 81 Nomenclatura presente na obra do historiador: CORRÊA, Valmir Batista. Corumbá: Terra de Lutas e de Sonhos. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2006: pp.. 17-40. 82 Pomiés fixou residência em Santa Cruz de la Sierra, constituindo família, que se tornou tradicional na sociedade cruz-serrana. 83 JUSTINIANO, Oscar Tonelli. El Peabirú Chiquitano. Santa Cruz de la Sierra (Bolivia): Editora El Pais, 2007: pág. 132-133.

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Boa parte do elenco de atores, protagonistas da trama analisada, se reportava à “Sociedad Progresista de Bolívia”, cuja sede estava em Santa Cruz de la Sierra. A pesquisa nos revela que o influente grupo de empresários e comerciantes cruz-serranos fomentou o comércio pelo caminho paraguaio-boliviano. Celebrado em maio de 1864, na localidade de San Rafael de Chiquitos, o contrato que regulamentou a referida sociedade capitalista dispôs sobre as responsabilidades dos sócios acionistas para com a empresa. Em sua composição original, a “Sociedad Progresista de Bolivia” possuía dentro de seus quadros cidadãos detentores de “lastro” financeiro para honrar a concessão dada pelo governo boliviano – então sob a gestão de José María Achá – para explorar caminhos em direção ao Rio Paraguai. A seguir, podemos observar as assinaturas dos audaciosos empreendedores, Antonio Victoriano Taboas (sócio majoritário), Nicolas Ramos, Rafael Gutierrez, Miguel Pelicena, Vicente Eguez, Geronimo Canido e José Flores. Imagem 8 - Assinaturas dos membros pioneiros da Sociedad Progresista de Bolivia84.

Fonte: ANA-SH, Vol. 446, Nº 1, Folha. 191.

84

Contrato que regulamenta a atuação da Sociedad Progresista de Bolivia, celebrado em San Rafael de Chiquitos, às três horas da tarde, do dia 26 de maio de 1864.

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O capitão paraguaio Francisco Bareiro, em comunicado expedido para o Ministro de Guerra e Marinha, relatou assim sobre um banquete oferecido pelo comandante Hermógenes Cabral ao Sr. José Flores, um dos representantes da Sociedad Progresista de Bolívia:

En la noche del 26 de Julio ha obsequiado con un banquete y baile a D. José Flores y demás compañeros, en los que se ha experimentado un entusiasmo general. En el banquete el Capellán de tropas Sr. Ydoyaga había pronunciado un discurso expresándose los benévolos sentimientos del Excelentísimo Señor Presidente de la República para con la boliviana y su gobierno, á lo que el Señor Flores respondió con palabras muy expresivas, diciendo que la República de Bolivia y su gobierno no sabrá con qué lenguaje expresar su gratitud al gobierno paraguayo por el distinguido bien que ha hecho a la abertura de una vía terrestre de aquel punto al de Santo Corazón, y que el vaso de vino que iba a tomar se convertiría en sangre de los bolivianos85

Clarifica-se que houve a junção entre necessidade e senso de oportunidade, levando paraguaios e bolivianos à idealização e execução do projeto que viria a estreitar o comércio entre as partes, através do caminho aberto entre Corumbá e Santo Corazón. A Sociedad Progresista de Bolívia operava, em parte, com capital espanhol, personificado na figura de Antonio Victoriano Taboas, cidadão de naturalidade espanhola. Intrigante atinar para a circulação de dinheiro europeu e até mesmo para a presença de mão-de-obra estrangeira vinda do “velho continente” (caso do topógrafo e explorador francês, Pomiés, por exemplo). Características do liberalismo econômico, encontradas no século XIX, que nos remetem ao avanço do capitalismo nos países em estudo e à embrionária idéia de globalização, tanto no tocante aos serviços quanto aos produtos. Pomiés, aliás, foi devidamente recompensado pelos trabalhos prestados, recebendo do governo provisório da Bolívia um bom numerário, quinhentos pesos, e mais uma extensão ininterrupta de terras, 12 léguas quadradas (cerca de 43.200 hectares), a serem

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Comunicado do oficial paraguaio Francisco Bareiro a Vicente Barrios, Ministro de Guerra e Marinha do Paraguai. ANA-SH, Vol.344, N°7-8-9, 1865. Assunção, 10 de agosto de 1865.

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escolhidas pelo explorador francês, às margens do caminho aberto entre as duas localidades86. Dada a relevância do empreendimento e o alto investimento realizado, causaria estranhamento se as relações contratuais entre os sócios da empresa capitalista ficassem imunes aos conflitos de interesses. E as tensões, realmente, se fizeram presentes, com prejuízos a figura de Antonio Victoriano Taboas, vítima de uma representação movida pelos demais membros da sociedade. Estes o ameaçavam com o desligamento do grupo de investidores, caso não fosse cumprido integralmente o que fora acordado em contrato. Nas palavras usadas pelos litigantes, o empresário espanhol surpreendeu o governo nacional “con falsas y exajeradas promesas ha sacrificado nuestro tiempo y fortuna faltando con los sosios capitalistas extranjeros, un buque de vapor y una goleta que se comprometió presentar por su parte para ejecución de la dicha empresa”87. Pressionado, Taboas não teve outra alternativa senão abrir a sociedade para demais interesados. Dessa conjuntura, aproveitou-se D. Domingo Bargas, comerciante bem sucedido de Santa Cruz, que passou, então, a dividir com o empresário espanhol o ônus financeiro da empreitada. Somente em janeiro de 1866, quando os trabalhos já estavam em curso, os paraguaios deram publicidade, através da imprensa, às tratativas com vistas a abrir uma via de comunicação com fins comerciais com a Bolívia. Depois das primeiras incursões, que objetivavam reconhecer o terreno e examinar possibilidades, tiveram início as obras que visavam dar ao caminho condições para receber o tráfego comercial entre Corumbá e Santo Corazón. O capitão guarani Francisco Bareiro, em comunicado enviado ao Ministro da Guerra e Marinha, General Vicente Barrios, datado de 8 de abril de 1866, informava assim sobre o andamento da empreita logística:

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O oficial paraguaio Francisco Bareiro comunicando ao Presidente Francisco Solano Lopez a respeito do conteúdo de um dos impressos que recebera proveniente da Bolívia, que noticiava a concessão de terras ao explorador francês Domingo Pomiés pelos serviços prestados ao governo boliviano. Assunção, 26 de julho de 1866. ANA-SH, Vol. 350, N° 2, Folha. 56. 87 Representação dos membros da “Sociedad Progresista de Bolivia” cobrando do seu sócio majoritário, Victurino Antonio Taboas, o cumprimento de cláusulas contratuais. ANA-SH, Vol. 446, Nº 1, 1866. Santiago de Chiquitos, 30 de julho de 1866. O “buque de vapor” e a “goleta” mencionadas no documento foram embarcações usadas nas explorações da malha hidrográfica do rio Paraguai.

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En la mañana del 20 había regresado á Santo Corazón el ciudadano boliviano D. Miguel Cecilio Chavez con lo cuatro naturales que le acompañaban ha entregado la una docena de hachas por [ilegível] al pueblo para conducir a [ilegível] de naturales viene abriendo el camino hasta Corumbá. Por súplica del indicado casique ha despachado con el referido Chavez al Subteniente de Infantería ciudadano Luís Gauna con 20 de tropa conduciendo 20 arrobas carne salada para consumo de los trabajadores. Según relación del boliviano D. Domingo Bargas que llegó en Corumbá el 16 ppdo., el camino abierto tiene como 18 leguas de internación en el monte y como cincuenta y tantas dichas de distancia desde Santo Corazón hasta Corumbá88.

O comunicado, além de fornecer dados técnicos a respeito do caminho, como o da medição do seu traçado – 50 e tantas léguas ou algo em torno de 300 km -, revela a quantidade de carne destinada ao consumo dos trabalhadores, bem como faz referência a uma das ferramentas de que dispuseram para realizar o trabalho. Uma dúzia de machados implica na derrubada de mata, e cerca de 300 kilos (20 arrobas) de carne salgada, representa o consumo presumível de um número considerável de trabalhadores. Na falta de documentação que explicite a quantidade de pessoas envolvidas na abertura do caminho, é possível supor de forma genérica ao considerarmos o consumo humano médio em 300 gramas de carne por pessoa, um contingente aproximado de 1000 indivíduos. O fato de a carne estar salgada pode tanto elevar o número de trabalhadores – nessa condição ela costuma render mais – quanto diminuir um pouco, uma vez que a capacidade de conservação é maior, podendo alimentar a “tropa” por mais tempo. A questão é que um caminho aberto no meio do Chaco (Pantanal), em terreno que, dependendo da época do ano, se torna alagadiço, não é tarefa das mais simples, exigindo esforços consideráveis. Após meses de exaustivos trabalhos na zona de transição entre o Chaco e a selva tropical, em julho de 1866, o comando paraguaio foi informado sobre o término do empreendimento, que contou com mão-de-obra indígena. Por sinal, a habilidade dos “índios pedestres” em abrir trilhas no meio de matas, da qual se valeram os idealizadores do audacioso projeto, foi fundamental para que o mesmo fosse colocado em prática com resultados satisfatórios.

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Comunicado expedido por Francisco Bareiro, capitão paraguaio, ao Ministro de Guerra e Marinha, Vicente Barrios, em 8 de abril de 1866. ANA-SH, Vol.347, N°19, Folhas 1-2.

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Embora a língua, como elemento cultural, tenha, em princípio, sido a responsável por arregimentar simpatias entre militares e indígenas, as relações de trabalho não ficaram isentas de problemas, revelando, assim, sua faceta pragmática. Os manuscritos revelam as tensões que permearam a empreitada. Devido à premência de se abrir o caminho o mais rápido possível, o contingente de homens – em sua maioria índios - era submetido a uma jornada de trabalho extremamente penosa. Além disso, as condições de trabalho eram precárias e os salários, baixos, atrasavam constantemente. As autoridades provinciais de Chiquitos escreviam aos sócios da Sociedad Progresista de Bolívia relatando queixas de maus-tratos sofridos pelos trabalhadores e cobrando soluções para os problemas. Todos esses ônus recaíam sobre os sócios capitalistas do empreendimento, conforme disposição em contrato. A precariedade era tanta que os trabalhadores se viram obrigados a usarem suas próprias ferramentas para dar continuidade ao labor, uma vez que não havia a reposição de peças adequada. Diante de tamanhas dificuldades, era elevado o índice de homens que abandonavam o serviço. Deserção que acontecia também nas fileiras do exército paraguaio. Vários foram os soldados que se aproveitaram dos trabalhos logísticos para se refugiarem em território boliviano. Tão recorrente era este comportamento que os contemporâneos da obra apelidaram-na de “caminho dos desertores”. Santo Corazón constituiu-se, assim, num provedor de mercadorias para as tropas paraguaias estabelecidas em Corumbá. Alimentos (leguminosos em sua maioria), artigos têxteis, pólvora, gado, tinta e papel eram alguns dos produtos que circulavam pelo caminho. Aliás, os militares paraguaios fizeram outras incursões pelo território boliviano, que tinham o caráter de “exercícios militares”. Em meio às refregas com o inimigo, o contingente militar paraguaio, reiteradamente, usufruía do espaço territorial boliviano para realizar movimentos de defesa e ataque. Interessante perceber na documentação em análise menções a respeito da procura por “folhas de coca”, usadas em larga escala nos “hospitais de sangue” paraguaios, provavelmente como analgésico, com o propósito de aliviar as dores dos feridos em batalhas89.

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Informação extraída de ofício sem número expedido por Romualdo Nuñes, oficial paraguaio atuando em Corumbá, ao Comando das Forças paraguaias em Assunção, datado de 08 de outubro de 1867. ANA, CRB, I - 30,17,55.

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Mais do que mera curiosidade, esses aspectos revelam o quão enriquecedoras são as análises que levam em consideração aspectos como o da cultura material. O uso medicinal das folhas de coca é uma prática indígena que tem ressonância entre os soldados da república guarani, numa evidência de que as sociedades que interagiram nesse tempo e espaço carregavam consigo a cultura de seus antepassados. Práticas que convivem com o discurso “civilizador” difundido pelos mandatários dos Estados, no qual o índio, na visão das elites, era sinônimo de atraso e descompasso com a ordem internacional vigente, do progresso alavancado pela crescente industrialização90. Mesmo não sendo fartos os recursos advindos de Santo Corazón, o caminho aberto durante a guerra seguia dando impulso à integração fronteiriça e ensejava um incipiente, porém importante movimento mercantil, em momento que o Paraguai sofria um severo bloqueio e graves necessidades. Lembremos que, desde junho de 1865, quando a esquadra brasileira sobrepujou a paraguaia na afamada batalha naval do Riachuelo e passou a controlar os rios da bacia platina até a fronteira com o Paraguai, o exército de Francisco Solano Lopez se encontrava em sérias dificuldades, “quase” isolado. Pelo caminho chegavam também emigrados políticos bolivianos, opositores do Presidente General Manuel Mariano Melgarejo Valencia e naturais do departamento de Santa Cruz de la Sierra, muitos dos quais empresários e jornalistas, que de Corumbá rumavam para Assunção via Rio Paraguai. Assim, a obra que foi executada com o apoio do governo central boliviano, também serviu àqueles que, perseguidos pelo mesmo, buscaram refúgio em solo paraguaio. Essa circulação de pessoas, produtos e idéias só foi possível através do emblemático diálogo entre “Caminhos”. Encontro que entrelaçou a rota terrestre - Corumbá à Santo Corazón ao “caminho das águas” - o Rio Paraguai -; interação que desde a colonização promoveu a ocupação do território pantaneiro, que aqui tratamos como fronteira reconfigurada pela guerra. A importância dessas rotas para o transcurso da guerra foi tamanha que mereceu receber os traços dos hábeis chargistas paraguaios.

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ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 2: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993

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Imagem 9 - O Cabichuí satiriza Caxias e o seu espanto com a chegada de abastecimento ao Paraguai.

Fonte: Jornal “Cabichuí”. Quinta-Feira, 19 de dezembro de 1867. Paso Cucu. Año 1. N. 66. Imprensa Nacional do Paraguai. Acervo da Biblioteca Nacional de Assunção (BNA).

A imprensa paraguaia produziu charges em profusão durante o conflito, sendo boa parte delas de cunho anedótico, racista e de exaltação patriótica explícita. Explicadas à luz de um Estado que controlava os meios de comunicação, perseguindo aqueles que se contrapunham ao regime lopista. Nessa perspectiva, dentre as publicações, gozavam de destaque o “Cabichuí” (uma pequena abelha, famosa pelas dores provocadas por suas ferroadas), “Cacique Lambaré” (totalmente escrito em guarani), “El Semanario” e “El Centinela”. O primeiro era, inclusive, distribuído no front de batalha com a intenção de “animar para o fogo” o contingente militar guarani. Os soldados brasileiros ao tomarem

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contato com os impressos em meio às refregas com o inimigo, não escondiam a ojeriza com relação ao conteúdo do material91. A destacada charge, publicada no jornal “Cabichuí”, traz o olhar estupefacto de Caxias, “El Macaco-Jefe”, para a intensa movimentação de pessoas que, usufruindo de caminhos alternativos, abastecem o “estrangulado” Paraguai de víveres e outros produtos vitais para a manutenção da resistência. Acreditamos ser uma referência clara às vias abertas entre o “Alto Paraguai” e a região oriental da Bolívia, durante o transcurso do conflito. A pesquisa nos mostra, em realidade, que havia uma obstinada busca por caminhos alternativos que pusessem a Bolívia e, mais precisamente, a sua região oriental na rota do comércio platino. Foi com essa expectativa que as autoridades de Chiquitos, com fundos próprios, resolveram investir na abertura de uma nova rota. Para tal, uma vez mais, foram contratados os serviços do explorador francês Domingo Pomiés, incumbido da missão de colocar em contato direto as populações de Santiago de Chiquitos e Corumbá, abreviando, assim, o percurso que se fazia desde Santo Corazón. Além de facilitar o trânsito dos comerciantes cruz-serranos, com suas mercadorias, a nova via de comunicação era uma demonstração de que os interesses regionais motivavam os esforços por um comércio efetivo entre bolivianos e paraguaios. O trabalho, que teve início em agosto de 1866, foi marcado pela meticulosidade com que foi conduzido, especialmente, pelo apuro na medição das distâncias. Sem muitos acidentes geográficos ao longo de seu percurso, em linha reta, a nova rota SantiagoCorumbá foi comemorada com entusiasmo pelas partes envolvidas. A obra era tida como um incremento de grande importância ao comércio realizado entre as duas repúblicas vizinhas. Em um manuscrito, o mercenário francês Domingo Pomiés agradece a colaboração prestada pelo cacique Felipe Montenegro na condução dos indígenas que

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CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980: p.121.

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trabalharam na abertura do novo caminho, prometendo, inclusive, celebrar o feito com uma grande festa quando de seu regresso a Santiago, lugar de onde partira a expedição92. Os negócios, a partir de então, ganharam novo fôlego. Aproximadamente quinhentos negociantes oriundos do oriente boliviano usufruíram da nova rota. Muitos deles expressavam a vontade de seguir rumo à capital Paraguaia, Assunção, “ansiados em conecer sus hermanos y la heroica ciudad de la Asumpcion”93.

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Correspondência de Domingo Pomiés para a sub-prefeitura de Chiquitos. Santa Cruz, 12 de janeiro de 1867. ANA-SH, Vol. 445, 1 folha. 93 Correspondência do explorador francês Domingo Pomiés ao Comandante do Distrito Militar do Alto Paraguai, Coronel Hermógenes Cabral. Santiago de Chiquitos, 8 de fevereiro de 1867. ANA-SH, Vol. 446, 2 folhas.

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CAPÍTULO III

O caminhar das relações provinciais na tríplice fronteira

Não há contradição no agir político, há sim complexidade no modo político de agir.

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A fronteira internacional, fluída, é o lugar onde efetivamente ocorrem encontros entre regiões de países vizinhos, afastadas dos “centros” irradiadores de poder. A guerra, em estudo, proporcionou o diálogo da Província boliviana de Chiquitos e Moxos, com as províncias beligerantes de Mato-Grosso e do “Alto Paraguai”. Concomitante às correspondências trocadas entre as chancelarias dos países envolvidos na trama, desenvolvia-se uma “diplomacia marginal”94. Marginal no sentido de que algumas ações políticas não passavam pelo crivo das autoridades e dirigentes maiores dos Estados. As decisões eram tomadas tendo como base os interesses e necessidades regionais. Acordos tácitos entre “autoridades” provinciais versavam sobre assuntos que, em tese, seriam de âmbito governamental. Por mais que o Império, no caso brasileiro, tivesse toda uma rede de funcionários burocratas trabalhando a seu favor, lançando olhares vigilantes sobre as regiões “provincianas” – tidas como longínquas -, a onipresença era algo difícil e até utópica, permitindo o estabelecimento de poderes locais95. A guerra, nessas ocasiões, funciona como um canal de diálogo visando “aparar arestas” do relacionamento do centro com a “periferia”. Normalmente, as querelas adormecidas despertam, fazendo com que o Estado mobilize suas forças e instrumentos para dirimir as questões. As necessidades regionais, nessas circunstâncias, costumam ficar mais visíveis. A circulação de idéias foi algo recorrente durante o período analisado. Os agentes formadores desse “novo espaço” estabeleceram uma logística própria, que satisfez, mesmo que temporariamente, as necessidades paraguaias e bolivianas. Um serviço de correio chegou a ser implementado entre as localidades de Corumbá e Santo Corazón. Através dele, puderam ter ciência das atividades desenvolvidas pelos vizinhos, principalmente as de âmbito político e econômico. Partidos políticos de tendências liberais e conservadoras travavam ferrenhas batalhas pelo poder na Bolívia, deixando a população em permanente estado de insegurança, envolta pela atmosfera hostil de guerra civil. O General Mariano Melgarejo que, como já vimos, ascendeu ao poder por intermédio de um golpe, derrubando José 94

RECKZIEGEL, Ana Luiza Gobbi Setti. A Diplomacia Marginal: Vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: EdUPF, 1999. 95 MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: ACESS, 1994.

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Maria Achá, via-se naquele momento como “alvo”, tendo que, reiteradamente, debelar movimentos contrários ao seu governo por todo o território boliviano. Acontecimentos esses que eram informados à Assunção através de impressos expedidos pela “autoridade local” boliviana, ansiosa em colocar os paraguaios a par das operações militares comandadas pelo Presidente da Bolívia na tentativa de conter os insurgentes.

Acaba de llegar los partes de los puntos del Norte hasta Corumbá hechos de quince a veinte del corriente, y no traen especialidades que merezcan la atención de V.E. permaneciendo todo sin ninguna novedad. Con el de Corumbá recibo un impreso procedente de Bolivia conteniendo el detalle de la batalla que tuvo lugar en los campos de Viacha el veinte y cuatro de Enero último en que triunfó el General Melgarejo96.

Diga-se de passagem, que, ao analisar a documentação, não se percebe por parte dos paraguaios uma tomada clara de posição em favor do governo central do país vizinho, qual seja, a Bolívia. O citado documento não contém nenhuma exaltação ao feito militar alcançado pelo chefe de Estado boliviano, se restringindo a tarefa de informar. Interessava ao governo paraguaio saber a respeito da situação política do parceiro, com o qual mantinha relações. Embora Bolívia e Paraguai exercitassem a diplomacia através das suas respectivas chancelarias, os contatos mantidos na fronteira possuíam uma feição “regional”, que não deve ser ignorada. Os empresários e comerciantes bolivianos que negociaram diretamente com o contingente paraguaio fixado em Corumbá advinham do Departamento de Santa Cruz de la Sierra, que, àquela época, despontava como região economicamente promissora da Bolívia. Percepção que tinham os paraguaios, que faziam questão de enfatizar o potencial produtivo das “verdes campinas”, na qual trabalhavam os “hijos de Santa Cruz”. Uma demonstração de que ansiavam por um intercâmbio mais efetivo com a região. De sua parte, os cruzserranos tentavam se desgarrar cada vez mais de qualquer dependência do poder central, situado em La Paz.

96

Informe do capitão paraguaio Francisco Bareiro ao Presidente Francisco Solano Lopez. Assunção, 26 de Julho de 1866. ANA-SH, Vol. 350, N° 2, Folha. 56.

88

Nessa teia de relações, alguns personagens chamaram a atenção pela conduta “camaleônica”, adaptando-se às circunstâncias. O posicionamento dos cidadãos que compunham a “Sociedad Progresista da Bolívia” era dúbio. Em dados momentos diziam intermediar em favor do governo boliviano, em outros se portavam de forma “autônoma”, privilegiando seus negócios particulares. Ao entender a política como um “jogo”, constatamos que “os jogadores”, instáveis, mudavam de postura conforme a disposição das “peças” no “tabuleiro” de interesses e conveniências97. Os rumos dos acontecimentos no front de batalha também influíam nas ações desencadeadas por grupos políticos que digladiavam pelo poder na Bolívia. Sobre esse quadro de terrível instabilidade política, escreve ao comando militar paraguaio Juan García, boliviano simpático ao Paraguai e corregedor do pequeno povoado de Santo Corazón:

La Guerra civil se ha generalizado tanto en mi patria Bolivia que se halla dividida en diferentes partidos y tan encaminada que los hombres han olvidado lo que más le interesa - el camino al Paraguay- mas otros que aman la Paz son los que han de dar impulso á esta grandiosa obra, como le informarán á V.S. mejor los Señores Vaca y Velarde que el día de mañana siguen viaje para Corumbá en negocios particulares98.

Esse acirramento das disputas bolivianas nos remete a um quadro geral latinoamericano que, com raríssimas exceções, caracteriza-se pelo fracionamento e falta de unidade política, no qual os principais atores são as elites, detentoras do poder político hegemônico. Acrescenta-se a esse quadro, o histórico regionalismo boliviano institucionalizado, é bom que se diga, em plena Guerra Grande - e teremos um barril de pólvora, sempre prestes a explodir. Não há, nesses termos, como o Estado sustentar um crescimento contínuo e uniforme, pois, normalmente, quem está com as rédeas do poder teme em investir nas 97

GARRIGOU, Alain. O “Grande Jogo” da Sociedade. In: Garrigou, Alain e Lacroix, Bernard. Norbert Elias: a política e a história. São Paulo, Perspectiva, 2001. 98 Correspondência expedida por Juan García a Hermógenes Cabral. Santo Corazón, 5 de dezembro de 1865. ANA-SH, Vol. 446, N°1, 1865.

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regiões insurgentes, temendo que as mesmas obtenham uma força que coloque em xeque os interesses de grupos, que insistem em conferir ao discurso um caráter nacionalista, em favor de um bem comum, a nosso ver, inexistente. O comentário de Juan García vem corroborar com a nossa posição de que o relacionamento em foco se desenvolveu mais em função de uma conjuntura regional, do que propriamente pela concepção e execução de um projeto nacional por parte do ditatorial governo de Mariano Melgarejo. Nesse sentido, a informação mais significativa do documento é a de que os senhores Vaca e Velarde seriam os porta-vozes responsáveis por afiançar que a grandiosa obra – o caminho ao Paraguai – não seria “esquecida” em meio às lutas pelo poder. No entanto, os cidadãos Vaca e Velarde eram empresários cruz-serranos com negócios no Paraguai. Logo, o “interesse” em jogo era bem específico, manifestado pela elite de Santa Cruz de la Sierra, que se incumbira da tarefa de seguir dando impulso à obra que viabilizaria o comércio com os paraguaios, mesmo com o “desinteresse” de La Paz99. Dessa forma, percebemos que conceber um “projeto nacional” em meio a um regionalismo tão intenso e com características tão próprias não encontrava por parte das autoridades terreno propício. Além disso, o Presidente boliviano parece ter sido acometido de súbitas “crises amnésicas”, pois se esquecera do que falara nas primeiras fases da guerra. Todo o seu entusiasmo inicial em face das excelentes perspectivas de negócios bilaterais com a república paraguaia foi se esvaindo, principalmente após o acordo com o governo imperial brasileiro e a assinatura, em 1867, do Tratado de Ayacucho, que, como já foi citado anteriormente, marcou uma nova fase do relacionamento entre os governos de Brasil e Bolívia. Os paraguaios, por sua vez, sofrendo necessidades de toda ordem impostas pela guerra, se locupletaram das relações com o complexo país vizinho, não se importando muito com a “natureza do auxílio”.

99

Desinteresse criticado por um dos periódicos oficiais do governo paraguaio, El Semanario, que em um editorial reprovou o governo boliviano por não compreender a importância das relações comerciais com o Paraguai e não demonstrar empenho em um assunto que só traria benefícios ao país. Conforme SCAVONE, 2004, Op. Cit., p. 90.

90

Os personagens fronteiriços, a nosso ver, relacionaram-se numa cadeia de interdependências e interagiram numa configuração, onde o comércio era apenas um dentre os muitos aspectos a serem considerados na extensa rede de interações100. E não há como uniformizar o pensar e o agir de indivíduos dentro de um mesmo grupo, quem dirá em uma complexa configuração, como no caso do relacionamento analisado. E nesse sentido, vemos que a política é um terreno extremamente movediço, que enseja mudanças abruptas de postura, muitas vezes vistas como “ilógicas” ou “contraditórias”. Palavras que não achamos adequadas para qualificar as instabilidades que nortearam as relações aqui analisadas. O que é bom hoje pode ser péssimo amanhã, a depender da conjuntura. O golpe de Estado promovido por Mariano Melgarejo, na Bolívia, deixou insatisfeitos muitos simpatizantes do seu antecessor, José Maria Achá. A relação do Presidente boliviano com as autoridades departamentais era tensa. Mesmo contando com colaboradores em Santa Cruz de la Sierra, era difícil ter o domínio da situação em uma região historicamente insurgente e amplamente favorável ao Presidente deposto. Conseguir amealhar apoio junto aos cruz-serranos se revelou tarefa das mais complicadas. A Sociedad Progresista de Bolívia, com sede em Santa Cruz, que nasceu em 1864 com o objetivo de abrir caminhos rumo ao rio Paraguai, canal por onde se dinamizaria o comércio com os mercados platinos, recebeu a concessão do governo central da Bolívia. Porém, isso não implica em dizer que todos os membros da sociedade capitalista estavam integralmente alinhavados com a política praticada por Melgarejo. Voltando a fazer uma analogia da política com o jogo, agora com o de xadrez, vemos que uma movimentação equivocada de peças pode por tudo a perder. A política não é um jogo transparente. Há muito contido no não dito. Torna-se possível aos sujeitos históricos pensar de forma contrária aos comandantes da organização a que pertencem e, mesmo assim, agir de acordo com as suas diretrizes. No entanto, isso não nos trava o

100

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993: p.16; p. 250, vol.2.

91

pensamento desses atores. Não impedem que possam trabalhar “silenciosamente” pelo que, de fato, acreditam101. Procedimento que não precisou ser adotado pelos emigrados políticos bolivianos que, ao serem bem recebidos pela sociedade paraguaia, puderam externar publicamente suas opiniões em jornais de Assunção, encampando a luta contra o “imperialismo” e “despotismo” brasileiros. Um deles, o político cruz-serrano Tristán Roca Suárez (1826-1868), que havia sido Prefeito de Santa Cruz durante o governo de José María Achá, abraçou de forma fervorosa a campanha paraguaia, “contra el enemigo nato de las Repúblicas hermanas, o Império del Brazil, y sus aliados apóstatas de la democracia”. Ademais, foi idealizador da bandeira de Santa Cruz de la Sierra e um dos autores do hino cruz-serrano, símbolos da mobilização regional contra o golpe de Estado que fez ascender ao poder o general Mariano Melgarejo. Cabe explicar que empregamos o termo “símbolo” como conceito, pensando em um sistema de valores subjacente, histórico ou ideal102.

Imagem 10 - Bandeira cruz-serrana, criada por Tristán Roca Suarez em 24 de julho de 1864. A cor verde representa a vegetação do território de Santa Cruz, bem como o vigor de sua juventude e a liberdade. O branco significa a limpeza e pureza da alma "camba".

101

Idéia baseada no conceito de configuração, de Norbert Elias, que nos permite pensar as atividades humanas, dentre as quais a política, como um “complexo de tensões”, do qual fazem parte os sentimentos, pensamentos, espontaneidades e comedimentos. Tensões que permearam as relações fronteiriças analisadas. 102 LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Edições 70, 1980: p.12.

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Roca partiu de Santo Corazón bem recomendado por Juan García. Ao chegar a Corumbá, não permaneceu muito tempo, seguindo viagem pelas águas do Rio Paraguai até aportar na capital paraguaia, onde, em abril de 1867, tomou a direção de um periódico “sério-jocoso”, intitulado El Centinela, publicado pela Imprensa Nacional do Paraguai e que circulou até julho de 1868103. Ano em que foi executado, na cidade de San Fernando, junto com outros militares e civis, acusados de conspirarem contra o governo lopista. Atualmente, seu nome goza de prestígio, ocupando espaço na galeria dos grandes mestres da literatura paraguaia, mesmo sendo um “hijo de Santa Cruz”. A seguir, apresentamos cópia de uma das edições do jornal assunceño que traz, em uma de suas notas104, a “importante notícia” que comerciantes oriundos de Santa Cruz de la Sierra se preparavam para realizar vultuosos investimentos no Paraguai.

103 104

SCAVONE YEGROS, Ricardo, 2004, p. 87-88.

Atentar para a terceira coluna da p. 4. (a última da publicação), identificando a penúltima nota, intitulada “Notícia importante”. Jornal El Centinela. Assunção, 25 de abril de 1867. Ano 1, nº 1. Acervo da Biblioteca Nacional de Assunção (BNA).

93

94

A nota de El Centinela é pequena, porém significativa, uma vez que revela o quão relevante foi, estrategicamente, a ocupação de Corumbá pelas tropas paraguaias. Além de assegurarem as comunicações com Assunção entre 1865 e 1868, ainda estabeleceram um vínculo por terra com o Oriente boliviano, que passou a abastecer o país guarani, conforme volta a frisar El Centinela:

El comercio con la República de Bolivia por la vía de Corumbá se vá aumentando. Acaban de llegar á este punto algunos comerciantes con efectos de ultramar e otros artículos importantes. El comercio tomará en breve mayores dimensiones, debído á las franquicias que El Exmo. Mariscal Lopez ha acordado generosamente105.

Segundo a imprensa paraguaia, “al trajecto desde Santa Cruz hasta Corumbá se cubrió en carretas e arganes de mulas, en el camino recién abierto al tránsito”106. Açucar, chocolate, farinha de trigo, café e diversos tecidos ultramarinos eram alguns dos produtos que chegavam à capital, Assunção. Porém, o abastecimento não se restringiu aos víveres. Podemos considerar que as relações com o oriente boliviano também foram responsáveis pela vinda de “alimento ideológico” que saciou a fome nacionalista da República guarani e recrudesceu a resistência de sua população ao longo do conflito. De sorte que, através do caminho aberto pela guerra, chegaram Tristán Roca Suarez e outros intelectuais ao Paraguai, que, ao usarem a palavra como arma, constituíram-se num valioso item da eclética pauta de “importações” de Lopez. Item situado no campo das idéias. Ressalta-se, portanto, o papel que cumpriu a imprensa oficial do Paraguai, responsável em transmitir aos seus cidadãos mensagens de otimismo, que versavam, dentre outros assuntos, sobre a escassez que sentia a população assunceña de produtos ultramarinos, superada com a inauguração de armazéns por comerciantes bolivianos que chegavam à capital paraguaia107. 105

Jornal El Centinela. Assunção, 23 de maio de 1867. Ano 1, nº 5. Página 4. Acervo da Biblioteca Nacional de Assunção (BNA). 106 Conforme JUSTINIANO, Oscar Tonelli. El Peabirú Chiquitano. Santa Cruz de la Sierra (Bolivia): Editora El Pais, 2007: p. 133. 107 Nota intitulada “Nada nos falta”. Jornal El Centinela. Assunção, 5 de setembro de 1867. Ano 1, nº 20, p. 4. Acervo da Biblioteca Nacional de Assunção (BNA).

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Imagem 12 - Tristán Roca Suarez, político e jornalista cruz-serrano.

Fonte: http://www.nacioncamba.net/tesis/NINO/400_6.htm. Acesso em 23 de abril de 2008.

Era nítido que o interesse comercial movia as negociações fronteiriças entre paraguaios e bolivianos orientais. No entanto, o que nos chama particular atenção é o tipo do discurso alinhavado para dar sustentabilidade ao relacionamento que se iniciava. De parte a parte eram dirigidos uma série de elogios que extrapolavam as raias do “padrão” diplomático convencional, enveredando pelo universo cultural. A construção identitária de grupo, conforme nos ensina Todorov, passa pela compreensão etnocêntrica, que, por sua vez, traz consigo uma idéia universalista, partindo de um particular que se empenha em generalizar. Ou seja, desenrola-se um discurso que reconhece nas práticas do outro, particulares (nacional), seu universo cultural108. Exemplo disso é uma comunicação, expedida pelo comerciante boliviano José Flores – já conhecido do capítulo anterior - ao governo de seu país e aos representantes da “Sociedad Progresista de Bolívia”, de Santa Cruz de la Sierra:

108

TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros. Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editores, 1993.

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Ellos son francos en su trato; amables en su conversación; sencillos en sus maneras; hospitalarios en su país; obsequiosos con sus cosas; sanos de corazón; hermosos en el rostro; desarrollados en su musculácion; muy religiosos, y muy valentes en la guerra; en una palabra la República del Paraguay es el verdadero espejo en que deben mirarse las demás de Sudamérica. Además, no se extraña nada de nostro país; los alimentos, los mismos de Santa Cruz. Son últimamente idénticos a nosotros109. Grifo meu.

Os paraguaios, por sua vez, expedem um comunicado no qual afiançam sua confiança no bom desenrolar do comércio em curso com os bolivianos. Nota-se que há uma clara menção a Santa Cruz de la Sierra, demonstrando uma vez mais que os interesses regionais permearam as negociações. Muitas das vezes, tais interesses não encontram ressonância nos centros de decisões políticas dos Estados, acarretando insatisfações que tendem a ficar latentes. Atentar para a seguinte nota reproduzida em maio de 1867 pelo jornal El Semanario, de Assunção:

La via de comunicación abierta durante la guerra ensanchándose cada día más, al favor de las franquicias por nuestro gobierno y a esa decidida protección que se acuerda a los comerciantes de Bolívia, a quienes hemos recibido en nuestra sociedad con las muestras sinceras de la mayor simpatía, viendo en cada uno de los bolivianos a un caballero e amigo que simpatiza con nuestra causa y como hermano hace votos por su triunfo, pues que a ella también está ligada la suerte de la región oriental de Bolívia, cuyo porvenir ben lo conecen los hijos de Santa Cruz110.

É nessa fronteira que se estabelecem contatos espontâneos e se toma conhecimento do “outro”, numa relação que não apenas estabelece e afirma diferenças, mas permite, como na situação analisada, a percepção de traços culturais comuns, afinidades, que motivam simpatias, acentuando o grau de subjetividade presente nos estudos em História das Relações Internacionais / Inter-regionais. 109

Correspondência de D. José Flores a Pedro Manuel Silva, Corumbá, 30/03/1866. Gran descobrimiento. Camino de Bolivia al Paraguay por la Sociedad Progresista de Bolivia – Santa Cruz, 1866. ANA, CRB, I-30, 13, 37. 110 SCAVONE YEGROS, Ricardo, 2004, p. 91.

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A guerra, pano de fundo das relações fronteiriças analisadas, acabou originando um ideário político, que visava dar forma às nacionalidades. Enveredando para esse campo de análise, que contempla o binômio etnia e nação, revela-se salutar a contribuição de ciências como a antropologia. Nesse contexto, procuramos fazer um contraponto entre o trabalho de Benedict Anderson111, que entende a nação moderna como uma comunidade política imaginada, e as idéias contidas na obra Etnia e Nação na América Latina112 sob organização de George de Cerqueira Leite Zarur, que traz em seu bojo a importância da vertente étnica na conformação da comunidade imaginada por Anderson. Em que pese o avanço promovido por Anderson, que entende a “nação” estar circunscrita dentro de um universo moldado por fatores geográficos, históricos e econômicos, dando ao indíviduo a sensação de pertencimento a uma comunidade, sua concepção dá pouca ênfase a conceitos como o de “etnia”, o qual não associa diretamente com o conceito de “nação”. Muitos grupos humanos, entretanto, pensam sua “comunidadenação” por meio de um critério étnico. A compreensão de nação pode estar assentada numa base étnica comum, a de uma comunidade que partilha um conjunto de valores que são intuitivos, normas não verbais que resultaram de um itinerário histórico percorrido de identificação e comunhão na luta pela sua preservação identitária. Assim, prescindir das discussões étnicas quando abordamos as relações inter-regionais, em momento que estão se formando os Estados-Nações, é negligenciar forças que ajudam a compor um cenário político, econômico e cultural, em favor de uma história “criolla”, que preponderou e ainda prepondera na América Latina. Paralelamente aos negócios desenvolvidos com os paraguaios, os bolivianos também mantiveram o comércio com a Província de Mato-Grosso, do Império do Brasil. Ofícios expedidos pelo sub-prefeito da Província de Chiquitos e Moxos reivindicavam às autoridades mato-grossenses, a não cobrança de passaportes que impedissem a travessia de bolivianos comerciantes na fronteira. Argumentavam já antes da guerra eclodir que tal procedimento burocrático era dispensado. O trabalho com as fontes manuscritas conferiu legitimidade à preocupação dos representantes da Província brasileira, face à disseminação de boatos que versavam sobre uma possível “coligação” boliviana com os paraguaios. Eis 111

ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ed. Ática, 1989. ZARUR, George de Cerqueira Leite. Nação e Etnia na América Latina. Washington, Secretaria Geral da OEA, Interamer, 1996, Vols. I e II. 112

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um trecho que reforça a idéia de um serviço de espionagem que funcionava pelo caminho “binacional”:

Santo Corazón, Marzo 25 de 1867. URGENTISIMA (Sic) Acaba de llegar el Sr. Augusto Toledo del Pueblo de San Matias y en reserva me ha comentado la actitud de los Brasileros que en número de 5000 hombres van á asaltar Coimbra y Corumbá; por la precipitación con que sé que han salido las fuerzas que habían en Villa María, temo que ésta llegue a sus manos ya en los momentos críticos113.

Levando em consideração a data dessa comunicação de caráter “urgentíssima”, conjectura - se que ela faz referência aos preparativos da expedição mato-grossense que atuou cerca de dois meses depois em Corumbá. Mais uma vez, Juan García, “autoridade” de Santo Corazón, entra em cena, demonstrando todo o seu apreço pela causa paraguaia. A troca de correspondências com o comandante da “Província do Alto Paraguai”, Hermógenes Cabral, configura, no nosso entender, uma espécie de “serviço de inteligência regional”, que até mostrou uma relativa eficácia para a época, em face da precariedade de infra-estrutura logística. Provavelmente o temor de Juan García se concretizou e os militares paraguaios, que detinham o poder de mando em Corumbá, não conseguiram ser avisados em tempo sobre o ataque brasileiro. Assim, o comércio entre o Paraguai e a região oriental da Bolívia foi interrompido brevemente em junho de 1867 devido às ações militares realizadas pelas forças brasileiras que tentavam recuperar Corumbá. Uma das expedições que partiu de Cuiabá, capital da Província de Mato-Grosso, sob o comando do Tenente-Coronel Antônio Maria Coelho (1827-1894), logrou sucesso ao retirar daquela praça famílias brasileiras prisioneiras desde 1865. A “Retomada de Corumbá”, como convencionalmente é referenciada pela historiografia, foi apenas parcial.

113

Correspondência expedida de Juan García para Hermógenes Cabral. Santo Corazón, 25 de março de 1867. ANA-SH, Vol.446, N° 2, 1867.

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Imagem 13 - Monumento em homenagem ao General Antônio Maria Coelho em Corumbá114.

Fonte: Acervo Particular.

Impossibilitados de manter a posição devido a um surto de varíola115 que acometia a região e informados sobre um provável reforço militar oriundo de Assunção, os brasileiros se retiraram, sendo a localidade reocupada pelos paraguaios, que estavam refugiados em território boliviano. Os negócios, então, foram retomados com alguma consideração, havendo intensa movimentação de comerciantes e especuladores, que se comunicavam pelo caminho trazendo notícias e mercadorias de todo gênero.

114

Foto tirada por este mestrando por ocasião do I Seminário Internacional Fronteiriço realizado em Corumbá – MS, em março de 2008. 115 A esse respeito ver: VILELA, Marlene M. Quando o dedo de Deus apontou a nossa Província ao anjo da morte: A ocasião da varíola em Cuiabá, 1867. 2001, 128 f. Dissertação (Mestrado em História)Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2001. Ainda sobre a temática, durante a pesquisa, encontramos, no APMT, lata C, de 1867, documentação intrigante que trata do surto da doença na Bolívia, em San Matias, fronteira com Villa Maria, Província de Mato-Grosso. Seria de bom alvitre investigar se o contágio da população em Cuiabá fora proveniente somente do contato com a tripulação vinda de Corumbá ou se veio também na carga dos comerciantes bolivianos que vieram realizar negócios na capital de Mato-Grosso.

100

Ainda hoje, ao caminhar pelas tranqüilas ruas de Corumbá e conversar com a população local, gente simples, é possível ficar entretido com as narrativas que reavivam a memória sobre as batalhas, eventos sobre os quais versam estudiosos ou mesmo descendentes daqueles que defenderam os interesses do Brasil. É como se pudéssemos regressar no tempo e vivenciar aqueles acontecimentos, “ouvindo” os estampidos provocados pelas explosões e “sentindo” o cheiro de pólvora exalado no calor da encarniçada luta. Monumentos e comemorações em alusão à heróica “Retomada” fazem parte do calendário cívico da cidade fronteiriça, como que preservando a memória nacional. Através dessa memória coletiva, podemos, hoje, reescrever a história, ressignificar acontecimentos, enfim, exercitar o ofício do historiador. Sempre tendo em mente que “a memória é onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”116. Respirando os ares da guerra, a população mato-grossense passava por sérias dificuldades de abastecimento. Faltavam produtos básicos como o sal e os preços alcançavam níveis exorbitantes. Mesmo diante de evidências que mostravam a proximidade entre paraguaios e bolivianos, as autoridades provinciais do Império do Brasil não poderiam abrir mão do comércio com a Província de Chiquitos e Moxos. O oficial brasileiro Major Luiz Benedicto Pereira Leite, no exercício de suas funções no ponto militar de Villa Maria, dirigiu um ofício à presidência da província, no qual externava sua preocupação e desconfiança com relação aos bolivianos que atravessavam a fronteira para comercializar seus produtos. Dizia explicitamente saber que os mesmos eram quem forneciam informações sobre o estado das tropas brasileiras aos paraguaios, mas que se sentia de mãos atadas, pouco podendo fazer a respeito117. Depreende-se da documentação que Santo Corazón e, depois, Santiago de Chiquitos, na realidade, eram pontos de referência, espécies de entrepostos comerciais, que recebiam as levas da produção de toda a região. Havia estradas no interior do Departamento de Santa Cruz, que estabeleciam as comunicações dessas localidades com lugares mais prósperos, como a cidade de Santa Cruz de la Sierra, por exemplo. 116

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003: p. 477. Ofício nº. 19. Villa Maria, junho de 1867. Do Tenente Luiz Benedicto Pereira Leite à Presidência da Província de Mato-Grosso. Localizado na Lata C – 1867. APMT. 117

101

Imagem 14 - Os caminhos do Oriente boliviano118.

Fonte: Archivo Histórico da Universidad Autônoma Gabriel René Moreno (AUAGRM).

Conforme averiguamos no mapa em destaque, o comércio desenvolvido com os militares paraguaios abrangia boa parte do citado departamento boliviano, não se restringindo àquela antiga missão jesuítica chiquitana, “Santo Coração” da integração fronteiriça. Percebe-se, pois, que a mencionada Província boliviana dialogava abertamente, sem o menor constrangimento, com as duas partes beligerantes, adotando discursos adequados para cada situação e tirando proveito, sobretudo, da urgente necessidade de abastecimento por parte da Província mato-grossense, conforme atesta o documento a seguir, endereçado

118

Mapa confeccionando, em 1934, pelo Dr. Rek. Foi obtido durante a viagem que realizei com fins de pesquisa, em setembro de 2008, à cidade de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia).

102

ao então Presidente da província, José Vieira Couto de Magalhães pelo oficialato brasileiro de Villa Maria:

[...] Precedentes de Santa Cruz passando pelo ponto da Corixa, aqui se me apresentarão dia 21 do mez que acaba de findar os subditos bolivianos Miguel e Aristides com passaportes de sua nação. Trouxerão café, assucar, chocolate, charutos e sal que pretendem vender nesta Villa, de onde voltarão, conforme me afirmarão. Nenhuma notícia dão de Corumbá, passam a sensação de tranquilidade na Republica de Bolivia. Peço a V. Exa. para que se digne esclarecer-me se devo consentir que voltem tais indivíduos pela estrada de onde vierão e com os mesmos passaportes ou se devo fazer eles seguirem a essa capital para solicitarem estes da Presidência119.

Em cima de bestas, os bolivianos adentravam a Província de Mato-Grosso, com cargas de sal destinadas à população em geral, e outros produtos mais selecionados, como açúcar, chocolate e charutos, que, certamente, não iam parar nas mesas das pessoas mais humildes, servindo à elite, preocupada e ansiosa com os rumos da guerra. Interrogados pelos militares brasileiros, os comerciantes do país vizinho sempre adotavam, ao que transparece no documento, uma fala pacífica, até certo ponto ingênua, que facilitava a tática do jogo de “informação e contra-informação”, que imprimiu sua marca à guerra entre a República do Paraguai e o Império do Brasil. Travestidos como comerciantes e espiões, esses personagens camaleões demonstravam perspicácia e estratégia para lidar com as contingências da guerra. Para eles, antes de tudo, o conflito se constituíra em oportunidade de realizar lucrativos negócios. Postura sobre a qual são lançados olhares viciados e estreitos, supostamente responsáveis pela representação sobre a natureza do homem fronteiriço que, relegado pelo poder central, é visto como alguém disposto a tudo para alcançar seus objetivos, utilizando-se de métodos condenáveis, principalmente em períodos de conflitos. Imagem que perdura até os dias atuais, estigmatizando as populações que por ali vivem apartadas dos grandes centros. Distanciamento que não as impedem de tomar iniciativas políticas diante de situações

119

Documento endereçado à Presidência da Província de Mato-Grosso, sem número, de 02 de Abril de 1867. Localizado na Lata C – 1867. APMT.

103

importantes, que, de alguma forma, interferem no dia-a-dia de suas comunidades. Nessas situações, fica evidenciada a vontade historicamente contida, de estenderem a sua influência para além dos “limites” territoriais, exercitando a “centralidade” junto àqueles que possuem os mesmos interesses120. Em momento algum da pesquisa, foram verificadas quaisquer consultas ao Ministério da Guerra ou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros acerca de solicitação de emissão e obrigatoriedade de apresentação de passaportes na fronteira para os bolivianos121. Entendemos haver um determinado grau de “autonomia” provincial, que no mínimo, enseja uma reflexão mais apurada sobre a sua natureza. A pesquisadora Mirian Dolhnikoff122 defende que há traços federalistas evidentes na estrutura organizacional do Estado imperial brasileiro. A afirmação de que o arranjo institucional do Brasil oitocentista consagrava uma organização com elementos federativos não pode estar baseada, no entanto, apenas no discurso da elite política de então. É preciso ir além do discurso e analisar a organização institucional do período. Dessa forma, Dolhnikoff procura demonstrar que o Ato Adicional de 1834 resultou em uma profunda transformação institucional, na medida em que promoveu a divisão constitucional das competências legislativa, tributária e coercitiva entre centro e províncias, de modo que estas últimas gozavam de efetiva autonomia em itens importantes do funcionamento do Estado, como a cobrança de tributos, investimentos em obras públicas, criação e manutenção de uma força policial, o controle sobre todos os empregos provinciais e municipais, a instrução pública, dentre outros.

As elites provinciais participavam do jogo político nacional por meio de sua representação no parlamento, onde negociavam suas demandas específicas ao mesmo tempo em que participavam de decisões cruciais

120

MACHADO, Lia. O. Limites, Fronteiras e Redes. In: T. M. Strohaecker, A. Damiani, N. O. Schaffer, N. Bauth, V. S. Dutra (org.). Fronteiras e Espaço Global, Porto Alegre: p.41-49, 1998. 121 O Regulamento nº 120 do Código de Processo Criminal do Império, de 31 de Janeiro de 1842, regulava a matéria. 122 DOLHNIKOFF, Miriam. “O Pacto Imperial: Origens do Federalismo no Brasil do século XIX – São Paulo: Globo, 2005.

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referentes ao funcionamento do Estado, como a elaboração do orçamento e a fixação dos efetivos militares123.

Em se tratando da fronteira com a Bolívia, o Regulamento expedido pelo Presidente da província, Augusto Leverger, em 7 de julho de 1855, e aprovado pelo Aviso de 29 de setembro do mesmo ano, oferece-nos uma noção mais clara acerca das medidas tomadas pelas autoridades para impedir transgressões e manter o território sob vigilância. Assim, o regulamento mantinha a proibição de toda a comunicação entre Mato Grosso e a República da Bolívia por outra via que não fosse a que passava por Casalvasco, no distrito de Mato Grosso, antiga capital da província, às margens do rio Guaporé124. Apesar da existência do regulamento, constatamos que a fiscalização nem sempre era tão rígida, havendo concessões, que se adequavam às necessidades momentâneas e, principalmente, às especificidades regionais. Entendemos, portanto, que a emissão de passaportes aos bolivianos, partindo da presidência da província de Mato-Grosso, estava em consonância com as convenções estipuladas pelo Estado no tocante ao exercício de poderes. O Império outorgava às províncias o direito de deliberar sobre “questões de interesse particular”, mesmo que não as explicitando. No centro da guerra com a República paraguaia, que colocava ainda mais obstáculos às já fragilizadas comunicações entre Mato-Grosso e Rio de Janeiro, as autoridades locais eram, inclusive, cobradas a tomarem medidas que pudessem, ao menos, amenizar o sofrimento da população. Assediado pelas tropas aliadas que se aproximavam da capital paraguaia, Solano López requisitou, em princípios de 1868, a volta do contingente paraguaio estacionado em Corumbá. Nesse tempo, o mandatário acusara várias autoridades nacionais e estrangeiras residentes em Assunção de conspirarem contra seu governo, originando os célebres processos, que condenaram à morte militares e civis, dentre os quais vários cidadãos

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DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit., p.53. FILHO, Oswaldo Machado. Ilegalismos e Jogos de Poder: um crime célebre em Cuiabá (1872) e suas verdades jurídicas (1840-1880). Tese. 450 f. (Doutorado em História). Campinas: UNICAMP, 2003, p. 239241. 124

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bolivianos125 - o mais notório deles, Tristán Roca Suarez, personagem do capítulo anterior. Perderam suas vidas também em San Fernando, membros do alto comando do governo paraguaio, como o Ministro das Relações Exteriores, José Berges. O tráfico comercial se interrompeu com a desocupação de Corumbá e com a morte de vários daqueles que impulsionaram o comércio pelos caminhos “paraguaiosbolivianos”, porém o relacionamento fronteiriço nos deixa lições que merecem uma reflexão cuidadosa. Podemos considerar que as relações desenvolvidas na tríplice fronteira durante a Guerra Grande suscitaram o desejo dos governos de Brasil, Paraguai e Bolívia de trabalharem para resolver problemas que se arrastavam ao longo de anos, como as questões de limites, abrindo espaço também para pensarem no incremento das relações comerciais a partir, principalmente, das comunidades fronteiriças. Os caminhos abertos, por onde circularam os sujeitos da nossa história, inspiraram iniciativas e projetos de cunho integracionista. A Ata de Roboré, assinada pelos Ministros das Relações Exteriores de Brasil e Bolívia, em 1958, dá bem a dimensão desse anseio. Dentre os vários assuntos em pauta, estava a substituição da garantia estabelecida no Artigo IV do Tratado sobre Ligação Ferroviária, que previa o endosso da dívida da construção da ferrovia Corumbá - Santa Cruz de la Sierra, pelo Estado boliviano126. Hoje, a ferrovia faz o translado regular entre as cidades. A fronteira quando associada à guerra, costumeiramente, é entendida como uma linha que separa grupos, sociedades e domínios político-administrativos. É tomada como limite, isto é, fim do espaço por onde podemos transitar e sobre o qual temos domínio. No entanto, conforme pudemos observar ao longo do trabalho, paraguaios e bolivianos orientais interagiram mostrando que mesmo associada a um cenário belicoso, a fronteira pode cumprir um papel integracionista. Afinal, como bem assinala Enrique Serra Padrós, “o homem fronteiriço possui uma mentalidade própria à integração, pois para ele as noções

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A esse respeito ver as obras de SCAVONE YEGROS, Ricardo. Las Relaciones entre el Paraguay y Bolivia en siglo XIX. Asunción: Servilibro, 2004: p. 78. DECOUD, Hector Francisco. Los emigrados paraguayos en La Guerra de La Triple Alianza. Buenos Aires: Talleres Gráficos Argentinos L. J. Rosso, 1930. 126 Ata da Entrevista em Corumbá e Roboré dos Ministros das Relações Exteriores de Brasil e Bolívia. Roboré, 28 de Janeiro de 1958. Fonte: http://www2.mre.gov.br/dai/b_boli_61-A_5777.htm. Acesso em 28 de fevereiro de 2009.

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de espaço e nacionalidade muitas vezes são tão abstratas quanto à idéia da existência de uma linha demarcatória que o separa do outro país”127. Assim, não se pode perder de vista a importância do viés regional na formulação e implementação de políticas por parte do Estado. De outra parte, não é concebível analisar o regional, sem que entendamos a fronteira como sendo “viva”, cenário de um ir e vir constante e, à época, alvo de disputas contenciosas entre Estados. Nesse sentido, em oposição à idéia de desintegração, a fronteira pode ser percebida como uma zona de intercâmbios econômicos e de integração humana que se superpõe às determinações dos estatutos políticos de soberania de um Estado sobre um território. Toda fronteira possui suas características, sua história, e nesta podem ser encontrados episódios de disputa e de aproximação. E se, de fato, almejamos obter um relacionamento profícuo e duradouro com nossos vizinhos, fugindo da retórica do discurso vazio, não vemos alternativa mais apropriada que a de “conhecer para reconhecer, interagir para integrar”.

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PADRÓS, Enrique Serra. Fronteiras e integração fronteiriça: elementos para uma abordagem conceitual. In: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Vol. 17, n.º 1/ 2, Jan/Fev, Porto Alegre, 1994.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tríplice fronteira, espaço onde se desenrolou a trama estudada, colocou em contato direto as Províncias beligerantes de Mato-Grosso (Brasil) e do “Alto Paraguai” (sul da Província de Mato-Grosso sob ocupação paraguaia) com a Província de Chiquitos e Moxos, que, por sua vez, compunha o Departamento de Santa Cruz de la Sierra. O “rico oriente boliviano”, conforme visto, tinha seus interesses defendidos pela elite cruz-serrana. E, constatamos durante o trabalho de pesquisa que o discurso escolhido para dar sustentação às negociações por parte de paraguaios e de bolivianos orientais possuía um caráter etnocêntrico. Reconheciam-se mutuamente sob o prisma cultural. A dissertação ressalta, assim, a relevância de se discutir as relações bilaterais entre os países com o amparo também do conhecimento étnico-cultural. Desfolhando as páginas deste estudo, verificamos que, a parcela majoritária da população de Santa Cruz de la Sierra se considera fruto da miscigenação entre espanhóis e índios da vertente étnica guarani, entendendo-se enquanto “cambas” (amigo em guarani). No entanto, não perdemos de vista que tal compreensão está assentada em um discurso carregado de intenções políticas. As sociedades transculturadas em questão trazem consigo um legado cultural indígena muito forte, e ainda hoje, como no caso boliviano, reivindicações são feitas tendo por premissa a conformação étnica. É só nos reportamos ao caso contemporâneo do Departamento de Santa Cruz de la Sierra, de onde se propagam idéias com viés separatista, que almejam a formação de uma Nação Camba, com autonomia dentro de um Estado binacional. Os cruz-serranos se utilizam de um discurso que distingue etnicamente e culturalmente a sua região da parte andina boliviana, onde estão concentrados, hoje, a maioria dos movimentos sociais indígenas, que apoiam o atual Presidente Evo Morales. Em meio a disputa política e aos grandes interesses econômicos em jogo – o oriente da Bolívia concentra boa parte da riqueza mineral do País -, sobressaem estudos, encampados pela intelectualidade cruz-serrana, que enfatizam as características peculiares à formação

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histórica regional, na qual a origem étnica guarani é invocada para estabelecer a distinção com relação ao processo ocorrido no altiplano boliviano. O encontro proporcionado pela “Guerra Grande”, acabou por se revelar num momento “chave” para a compreensão dessa luta pelo poder na atualidade, uma vez que concomitante ao reconhecimento de afinidades entre paraguaios e cruz-serranos, fortaleceu-se a oposição ao governo central, situado em La Paz. Oposição refletida no movimento insurgente que fez de intelectuais como Tristán Roca Suarez peças fundamentais nas contemporâneas lutas de representações travadas no campo da política128. Personalidades que, não por acaso, foram selecionadas por grupos da sociedade cruz-serrana, para serem homenageadas com monumentos em praças públicas. Reconhecimento que se constrói no terreno da memória regional e que visa reforçar junto à população a representação que realmente interessa: a de uma sociedade que ao longo do percurso histórico sempre perseverou na busca pela “autonomia”129. Impossível, portanto, analisar os assuntos em voga fazendo ouvidos moucos a esses agentes do passado, que têm muito a dizer, ensinando-nos. Importante atinarmos para a forma como foi concebido o termo “camba” e para os significados os quais ele implica. Na realidade, segundo nossa pesquisa, esse desígnio foi usado pelo exército paraguaio durante a “Guerra Grande”, em alusão a presença de negros africanos nas fileiras do exército brasileiro. E mais interessante ainda é perceber que a designação remonta ao período colonial, usada pelos colonizadores espanhóis para se referirem aos nativos, denominando-os de “negros da terra”. Tinha sentido pejorativo. De forma que, os descendentes dessa mesma elite criolla ressignificaram a palavra, com a finalidade de consubstanciar o discurso autonomista, ideológico, embasando-o dentro do critério étnico130. Já os habitantes de La Paz e adjacências são designados de “collas”, índios que habitam a parte andina da Bolívia, remanescentes do antigo Império Inca. Dessas particularidades e distinções, pode-se constatar, inclusive, o potencial integracionista da Bolívia, ressaltado pela sua posição geográfica central na América do

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CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand. 1990: p.17. 129 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. 130 Compreendemos a ideologia, aqui, como uma forma de construir representações ou organizar as já existentes para atingir determinados fins e satisfazer determinados interesses. BARROS, 2004: p.86.

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Sul, participando com porções do seu território tanto para a composição da Cordilheira dos Andes, como também para a Bacia do Prata e da Amazônia. As questões de âmbito regional permeiam a política boliviana na atualidade, podendo ser percebidas à luz, por exemplo, das ferrenhas disputas entre La Paz e Santa Cruz de la Sierra. Embates que não têm como ser explicados sem que recorramos ao processo de ocupação e formação territorial da Bolívia, espaço moldado por distintas configurações étnicas, revelando grande diversidade cultural. Diversidade que serve, hoje, a discursos opostos. Para os defensores de um país íntegro, ela é característica marcante de um Estado rico, versátil, pronto para receber investimentos que o coloquem nos trilhos do desenvolvimento. Para aqueles desejosos pelo nascimento de uma nova república, diferenças que colocam as regiões sempre em rota de colisão, dificultando assim a concepção de um projeto desenvolvimentista nacional. O relacionamento entre paraguaios e bolivianos durante a “Guerra Grande” mostra o perfil integracionista da fronteira e a relevância de se atinar para as contingências históricas regionais com vistas à formulação de um discurso compromissado, efetivamente, com a integração sul-americana. A correspondência entre acontecimentos separados pelo tempo, só vem reforçar a idéia de uma história fronteiriça, que jamais deve ficar à margem, sob pena de estreitarmos a visão sobre assuntos que repercutem em nosso dia-a-dia, notadamente os relativos à política exterior e ao relacionamento com outros países, especialmente com nossos parceiros latino-americanos. Mas, vamos além: tais eventos parecem ser cíclicos, onde parentes distantes, com fortes laços afetivos, arraigados à terra, sentem a necessidade de se reencontrarem. Características que, inevitavelmente, nos levam à incessante busca pela “Terra sem Males”, empreendida pelos grupos guarani131. É nessa procura, trilhando os caminhos abertos por entre as matas, que as culturas se acham e se reconhecem. Caminhos, estradas, trilhas que, por sinal, como constatamos ao longo do trabalho, nos conduzem pela “roda viva” da história. 131

Assunto abordado no texto pesquisado e desenvolvido por ROSANE VOLPATTO Disponível em: http://www.rosanevolpatto.trd.br/lendacruzadaguarani1t.htm. Acesso em 20/04/2007, às 22 horas.

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As práticas positivas, pautadas nas trocas de idéias e na valorização cultural do “outro”, inerentes às relações inter-regionais são, recorrentemente, escanteadas pelo discurso político, que insiste em deixá-las sob a penumbra da ilicitude. Tráfico de drogas, contrabando, roubos de veículos e outros crimes conferem à Fronteira um aspecto hostil e perigoso. Imagem mitificada, que se perpetua, não encontrando rival. Enquanto a representação que prevalecer for essa, dificilmente serão lançados olhares que percebam o quão rica é a história dessas regiões, lugar de encontros culturais, de ensino e aprendizado. Já é passada a hora de desmistificarmos tal imagem. E, para tal, como já se enfatizou no decorrer deste trabalho, entendemos ser de suma importância valorizar o papel do indígena e da sua cultura na formação identitária das populações fronteiriças que são, efetivamente, aquelas que colocam em prática ações de cunho integracionista. O que vemos, especialmente no âmbito relacional fronteiriço, é o Estado passar ao largo dessas práticas, não implementando ações políticas que possam revertê-las em seu favor, como instrumentos que dinamizem a tão propalada integração regional. O reconhecimento desse universo “informal” é o primeiro passo, a nosso ver, para que o Estado possa “exercer a sua centralidade”. Colocamos aspas, pois entendemos tratar-se de uma discussão dialética, uma via de mão dupla, na qual práticas influenciam o discurso, assim como também a recíproca é verdadeira, com o aparelho estatal causando modificações às ações informais. Entendemos que todo esse cenário pode ser explicado à luz da história das relações internacionais, nas suas vertentes econômica, política e cultural. Não se pode abrir mão de nenhuma dessas facetas relacionais quando se almeja uma compreensão ampla do objeto histórico. Estudos que, se bem realizados, podem consubstanciar o relacionamento contemporâneo entre os países, despertando cada vez mais o desejo em conhecer o “outro” que, em tempos de globalização e de formação de mercados comuns, é tido como um “parceiro” em potencial132. Dessa forma, os acordos podem ser arregimentados dentro de um paradigma mais abrangente, que não os deixem tão vulneráveis em face de mudanças ocorridas no âmbito econômico-político.

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Para melhor compreender os processos de integração econômica regional mais importantes do mundo e os seus desafios, sugerimos ler a obra de MENEZES, Alfredo da Mota; PENNA FILHO, Pio. Integração Regional: os Blocos Econômicos nas Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

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Pensamos ser esta a fórmula mais segura para uma integração mais sólida, priorizado acima de tudo a conjugação dos verbos “desejar/conhecer”. Conhecimento que gera reconhecimento das práticas de toda uma população fronteiriça, que tem na sua essência, fruto das suas vivências, o gérmen do intercâmbio. Reconhecimento que pode amparar as políticas públicas destinadas a atender os anseios dessa gente, responsável por uma cotidiana e bela celebração à diversidade cultural. Um exemplo positivo dessa tão salutar interação é o que ocorre, hoje, em Corumbá-MS. O projeto “Moinho Cultural” proporciona que crianças brasileiras e bolivianas se sociabilizem através da arte, dança e literatura, num ambiente sócio-cultural e educacional digno de todos os aplausos133. Iniciativa que mostra, na prática, uma das facetas mais prósperas da “integração”. Assim, fica a esperança de termos conseguido articular de forma inteligível as nossas idéias e de transmitir satisfatoriamente o nosso discurso, que não teve outro objetivo senão o de mostrar que a Bolívia não fora uma mera espectadora de o embate militar; suas ações não só repercutiram ao longo da guerra como ajudaram a compor um quadro sob o qual deveriam se debruçar agentes contemporâneos em discussões acerca da interação entre os países. Chegamos ao final deste “caminho” com a expectativa de que muitos outros ainda hão de ser trilhados na investigação sobre as relações fronteiriças entre o Império do Brasil e as Repúblicas do Paraguai e Bolívia, durante o século XIX. Sobre seu sinuoso trajeto irradiamos luzes que, esperamos, sejam capazes de revelar novos objetos de estudo, impulsionando ainda mais as discussões a respeito da “Guerra Grande”, como optamos denominá-la no início deste trabalho, em uma postura de quão importante é seguir em frente sem deixar de olhar para trás. Sempre a contar com a mais eficaz dos guias: A História.

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Maiores informações sobre o projeto através do site: http://www.moinhocultural.org.br/home-port.htm.

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FONTES E REFERÊNCIAS 1. Fontes 1.1. Manuscritas 1.1.1 Arquivo Público do Estado de Mato-Grosso (APMT) Fundo: Guerra com o Paraguai - Ofícios expedidos e recebidos pela Presidência da Província de Mato-Grosso (18651868); - Ofícios expedidos pelo Comando Militar Brasileiro em operações no Baixo Paraguai (1865-1868); - Comunicados expedidos pelo Ministério da Guerra (1865-1868); - Comunicados do Ministério dos Negócios Estrangeiros (1865-1868); - Interrogatórios de prisioneiros paraguaios (1865-1868); - Correspondências entre a Presidência da Província de Mato-Grosso e a Sub-Prefeitura da Província de Chiquitos e Moxos, Bolívia (1865-1868). 1.1.2. Arquivo Nacional de Assunção, no Paraguai (ANA) Fundo: Guerra Grande - Ofícios expedidos e recebidos pelas tropas paraguaias durante a ocupação do Sul da Província de Mato-Grosso (1865 – 1868). - Correspondências oficiais trocadas entre as autoridades militares paraguaias em Corumbá e a corregedoria do povoado chiquitano de Santo Corazón, na Bolívia (1864-1868). 1.1.3. Arquivo Histórico da Universidade Autônoma Gabriel René Moreno (AUAGRM), Santa Cruz de la Sierra, Bolívia - Ofícios expedidos e recebidos pelas autoridades do governo boliviano, em La Paz (18641868).

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- Correspondências trocadas entre o governo central boliviano e os seus Departamentos e Províncias (1864-1868).

1.2. Impressas

- Jornais “Cabichuí” (1867-1868), “El Centinela” (1867), “Cacique Lambaré” (18671868). Acervo completo auferido junto à Biblioteca Nacional de Assunção (BNA), no Paraguai. - Caderno do CHDD, Ano III, nº. 4 / Fundação Alexandre Gusmão. Brasília: Centro de História e Documentação Diplomática, 2004. - Álbum Gráfico de la República del Paraguay. Buenos Aires: Tallares Gráficos Argentinos, 1911.

1.3. Iconográficas

- Charges extraídas de duas edições da Revista A Semana Ilustrada, publicada no Rio de Janeiro, respectivamente em 1865 e 1867. - Imagens extraídas da obra de SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Memórias e Imagens. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2003. - Imagens extraídas da obra Labor Didáctica – Publicaciones Educativas: Santa Cruz de la Sierra, 2000. - Imagem extraída da obra de DEBRET, Jean Baptiste, 1768-1848. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil / tradução e notas de Sérgio Millet / apresentação de Lygia da Fonseca F. da Cunha - Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção reconquista do Brasil. 3. série especial; vols. 10, 11 e 12) 1º Tomo.

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2. Bibliografia

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2.2 – Dissertações e Teses

ALMEIDA, Rosely Batista Miranda de. A presença indígena na Guerra com o Paraguai. 2006. 104 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2006. BARROS, Ruy Coelho de. Guerra com o Paraguai: aspectos polêmicos. Aprofundamento. 2007. 145 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2007. BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai: o "mar interno" brasileiro - uma contribuição para o estudo dos caminhos fluviais. 1999. 380 f. Tese (Doutorado em História) Programa de Pós Graduação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. CORREA, Lúcia Salsa. Corumbá: um Núcleo Comercial na Fronteira de Mato-Grosso. 1980. 210 f. Dissertação (Mestrado em História)- Programa de Pós Graduação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980. FILHO, Oswaldo Machado. Ilegalismos e Jogos de Poder: um crime célebre em Cuiabá (1872) e suas verdades jurídicas (1840-1880) - 2003. 450 f. Tese (Doutorado em História) Programa de Pós-Graduação da Universidade de Campinas, Campinas, 2003. GUAZZELLI, César A. Barcellos. O horizonte da província: a República Rio-Grandense e os caudilhos do Rio da Prata (1835-1845). 1997. 390 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997. SOARES, Maria do Socorro Castro. O Governo Provisório de Mato Grosso e a Questão da Anexação da Província de Chiquitos ao Império Brasileiro (1821- 1825). 2003. 108 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2003.

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VILELA, Marlene M. Quando o dedo de Deus apontou a nossa Província ao anjo da morte: A ocasião da varíola em Cuiabá, 1867. 2001, 128 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2001. SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costume – A dinâmica política e o ideário civilizatório em Mato Grosso. 2006, 380 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília Brasília, 2006. SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. A Noite das Kygua Vera: A mulher e a reconstrução da identidade paraguaia após a Guerra da Tríplice Aliança (1867-1904). 1998. 380 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 1998. SILVA, Edson Hely. Xucuru: Memórias e histórias dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1959-1988. 2008, 350f. Tese (Doutorado em História) - Programa de PósGraduação da Universidade de Campinas, Campinas, 2008. XAVIER, Lídia de Oliveira. Fronteira Oeste Brasileira: entre o contraste e a integração. 2006, 360 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

2.3 – Artigos

BARROS, José D’ Assunção. Imagens da História. Revista virtual de humanidades, Belo Horizonte, nº. 10, v. 5, abril/junho 2004. BEYHAUT, Gustavo. Dimensão Cultural da integração na América Latina. Revista Estudos Avançados, São Paulo: Edusp, n. 20, 1994. BITTENCOURT, José Neves. Espelho da nossa história: imaginário, pintura histórica e reprodução no século XIX brasileiro. Tempo brasileiro (Memória e história). Rio de Janeiro, n. 87, out. - dez. 1996. BREDA DOS SANTOS, Norma. História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a área. História, São Paulo, v.24, n.1, p.11-39, 2005.

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2.4 – Endereços Eletrônicos Consultados

- Google Maps, situado no endereço eletrônico: http://maps.google.com.br/. Site desenvolvido pela pesquisadora http://www.rosanevolpatto.trd.br/lendacruzadaguarani1t.htm.

Rosane

Volpatto:

- Site http://www.om-plural.org/noticia.php?id=222, sob responsabilidade da Organização do Multilinguismo. - Site http://www2.mre.gov.br/dai/b_boli_61-A_5777.htm. Acesso em 28 de fevereiro de 2009. - Moinho Cultural Sul-americano: http://www.moinhocultural.org.br/home-port.htm. - Blog do jornalista Altino Machado: http://altino.blogspot.com/2006/05/o-acre-por-umcavalo-branco.html. - http://www2.uol.com.br/linguaportuguesa/valeoescrito/ve_triplicealinca.htm. Site do Portal UOL. - http://www.nacioncamba.net/tesis/NINO/400_6.htm.

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