Relativismo Cultural Direitos Humanos e os ritos de iniciação em Moçambique.pdf
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O relativismo cultural e os Direitos Humanos: conceitos, prós e contras O relativismo cultural ganhou proeminência na 2ª parte do século XX e é considerado como a marca da antropologia moderna e do pensamento social científico (Bidney, 1968 citado por Zechenter, 1997). O relativismo cultural é um conceito fulcral, com longa história no seio da antropologia, postula que cada cultura deve ser estudada no seu contexto e sem dar azo à generalizações (Fluehr-‐Lobban, 1995). Segundo Fluehr-‐Lobban, o papel do antropólogo no processo seria o de observar e fazer o registo dos factos e não julgá-‐los. Todavia, ainda de acordo com esta autora tal visão tem estado a ser criticada e desafiada dentro e fora da antropologia, especialmente por aqueles que querem que os antropólogos tomem uma posição sobre as principais questões de Direitos Humanos. Por seu turno Lila Abu-‐Lughod (2002) advoga que o relativismo cultural constitui uma sofisticação do etnocentrismo, do racismo e do imperialismo cultural, pois considera que as formas de vida que são encontradas em torno do mundo são produto de uma longa história de interacções. Pelos conceitos de relativismo cultural acima apresentados, se pode depreender que o relativismo cultural assenta numa base ético-‐moral que advoga a igualdade entre as culturas e privilegia a sua leitura, interpretação e análise no seu respectivo contexto. O postulado do relativismo cultural tem estado a ser posto em causa, pois, ele deriva de uma concepção de cultura estática e essencialista. Muitas pessoas que rejeitam o relativismo cultural o fazem a favor de uma análise evolucionista1, que observa que as sociedades mudam os seus costumes por desenvolverem hábitos 1
O sentido em que a autora emprega o termo evolucionista não é na perpsetiva da teoria antropológica
evolucionista, mas para assinalar a ideia de que as culturas não são estáticas e, por conseguinte, se transformam devido a vários factores, que podem ser económicos, políticos, tecnológicos, entre outros.
mais humanos em conjunção com o crescimento da economia, tecnologia e capacidades científicas. Advogam ainda que existem denominadores comuns entre as culturas, sugerindo que é possível falar da comum humanidade das pessoas como a base para uma moralidade e ética transversais, que não são completamente relativas (Zechenter, 1997: 326). Na óptica de Osório & Macuácua (2013), ao conferir valor igual a todas as culturas, o relativismo cultural tem sido deturpado e utilizado para justificar e tolerar a permanência da desigualdade, recorrendo à diferença e ao respeito pela diferença para alienar comunidades, principalmente em África, de reivindicação pelos Direitos Humanos. Historicamente, a antropologia como disciplina tem se recusado a participar do diálogo que produziu as convenções internacionais sobre os Direitos Humanos (Fluehr-‐Lobban, 1997: 33). Há uma crença entre alguns antropólogos que ao se participar dos debates internacionais sobre os Direitos Humanos se estaria a quebrar as tradições do trabalho antropológico, pois, a antropologia tem como foco o estudo da diversidade. Olhar para os Direitos Humanos como universais seria proclamá-‐los como aplicáveis a todos os seres humanos (Fluehr-‐Lobban, 1997). O sistema internacional de Direitos Humanos é ancorado no conceito de universalismo, que advoga a unidade do género humano, sem considerar os antecedentes culturais dos seres humanos, olhando para eles à luz dos direitos básicos2 (Zechenter, 1997: 319). O universalismo tem raíz no racionalismo, baseado na crença de que existe uma capacidade humana universal de raciocinar racionalmente. Várias escolas de pensamento incluindo o relativismo cultural, o desconstrucionismo, o interpretativismo e o pós-‐modernismo têm criticado a validade da abordagem 2
São considerados direitos básicos todos aqueles que asseguram que os indivíduos possam viver com
dignidade e respeito.
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racionalista por considerarem que esta reflecte apenas o ideal de racionalidade ocidental e não consegue abarcar a diversidade da experiência humana (idem). Os Direitos Humanos e a sua aplicabilidade são questionados quando chocam com as particularidades culturais de certos contextos, pois tal como refere Carolyn Fluehr-‐Lobban, não é fácil alcançar consenso relativamente ao ponto em que as práticas culturais ultrapassam o espaço e se constituem como violadoras dos Direitos Humanos, mas mesmo assim, é importante que os académicos e os activistas discutam a questão. Alguns exemplos como a violência doméstica tornam possível notar quando as práticas ultrapassam o lugar dos Direitos Humanos, do que outras práticas. Utilizar o relativismo cultural para sustentar a continuidade de práticas atentatórias aos Direitos Humanos é ilegítimo, assim como é ilegítima a imposição de critérios exteriores sem ter em conta os sentidos que as pessoas envolvidas atribuem às suas práticas (Granjo, 2011: 165). Ritos de iniciação, relativismo cultural e Direitos Humanos: um diálogo possível? Em Moçambique, tem estado a crescer o debate em torno dos malefícios causados pelos ritos de iniciação, muito por conta da acção de Organizações da Sociedade Civil que trabalham na área de protecção dos direitos das crianças, dos direitos sexuais e reprodutivos e também por conta da adesão e ratificação do país de instrumentos legais internacionais de respeito e protecção dos Direitos Humanos. Os defensores da abolição dos ritos de iniciação advogam que eles provocam uma série de consequências maléficas na vida das crianças3, pois, violam os seus 3
A conceptualização do ser criança não é consensual, porque existem marcos cronológicos utilizados
na legislação para determinar a que faixa etária as crianças pertencem, porém, tal taxonomia, nem sempre coincide com a idade social. Geralmente, indivíduos de sexo masculino e feminino na faixa
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direitos, porque por um lado, perpetuam a inferiorização da mulher perante o homem, uma vez que nos ritos as meninas são ensinadas a manejar o seu corpo por forma a dar prazer ao parceiro durante o acto sexual. Por outro lado, são vistos como podendo propiciar os “casamentos precoces”, na medida em que as meninas depois de passarem pelos ritos de iniciação são socialmente vistas como mulheres em idade núbil e potenciais reprodutoras. Igualmente, os ritos na sua fase liminar são vistos como fonte de violência contra os iniciandos, por conta das alterações que são feitas no corpo dos mesmos (Osório & Macuácua, 2013). Os defensores da prática dos ritos de iniciação advogam que eles têm que continuar, porque são parte integrante da sua cultura e têm muito significado na constituição e preservação da sua identidade. Contudo, importa notar que por vezes os defensores da continuidade de certas práticas que chocam com os Direitos Humanos, falam pelos outros e não têm legitimidade para tal, mas porque ocorrem relações de poder no seio das diversas subculturas, algumas acabam por impor a sua vontade ou posicionamento às demais. Sendo assim, ocorre um impasse entre a defesa da prática dos ritos e a defesa da dignidade das crianças. Como solucionar este impasse? Alguns autores têm proposto algumas soluções para a superação do impasse relativismo versus universalismo. Sousa Santos (1997) afirma que o debate entre o universalismo e o relativismo cultural é falso, porque ambas as teorias são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória dos Direitos Humanos. Para a superação do dilema, ele propõe que haja uma hermenêutica diatópica, que consistiria num diálogo intercultural4, sobre as preocupações etária dos 7 aos 13 anos têm passado pelos ritos de iniciação. Neste ensaio, ao utilizar o termo crianças, me refiro a essa faixa etária. 4
Sousa Santos refere que para que a hermenêutica diatópica alcance o seu objectivo no diálogo
intercultural, devem ser aceitos dois imperativos interculturais pelos grupos envolvidos no diálogo: primeiro, das diferentes versões apresentadas pelas diferentes culturas, deve prevalecer aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, ou seja, a versão que mais alcance o reconhecimento do outro.
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ligadas aos Direitos Humanos que se mostrem convergentes, ainda que expressas em linguagem diferente e universos diferentes. Concordo com Sousa Santos ao afirmar que tanto o relativismo cultural, assim como os Direitos Humanos encerram em si imprecisões, pois, os postulados do relativismo cultural se tomados de forma essencialista e estática não permitem vislumbrar transformações no seio das culturas. Igualmente, os postulados dos Direitos Humanos se levados ao extremo, ancorados na ideia de uma unicidade e homogeneidade da racionalidade humana, não permitem vislumbrar outras formas de racionalidade. A proposta de Sousa Santos para a solução do impasse é válida, mas ao mesmo tempo problemática, na medida que descura o facto de os grupos não serem homogéneos. É verdade que ele refere que antes de se enveredar por um diálogo intercultural, deve haver no seio das diferentes culturas uma espécie de escrutínio sobre os Direitos Humanos, mas tal como argumenta Granjo (2011), os grupos culturais ou comunidades são heterogéneos e há relações de poder entre eles. Pode ser que a opinião sobre os Direitos e dignidade Humanas que vingue no seio de uma “cultura”, seja de um grupo hegemónico. Consequentemente, este poderá impor a sua opinião e vontade aos demais, e, ao partir para um diálogo intercultural, pode ser portador de uma mensagem que não foi legitimada pelos seus pares. A proposta de solução de Carolyn Fluehr-‐Lobban sobre o diálogo entre o universalismo e relativismo em caso de choque, assenta em optar sempre pela preservação da dignidade humana acima de qualquer coisa. Tem que se ter como foco o dano criado. Tem que se ser sensível às diferenças culturais, mas não permitir que ultrapassem os Direitos Humanos amplamente reconhecidos, como por exemplo: o direito dos indivíduos a serem livres de qualquer dano ou Segundo, o imperativo cultural determina que se deve reconhecer o direito das pessoas dos grupos sociais a serem iguais quando as diferença as inferioriza, e o direito a serem diferentes, quando a igualdade os descaracteriza.
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ameaça e o direito das minorias culturais a existirem livremente dentro dos Estados. O ponto de vista de Fluehr-‐Lobban releva a importância de se olhar para os danos criados, mas a ideia e a dimensão do dano é contextual. Até que ponto as pessoas que não vivenciaram ou não experimentaram tal fenómeno podem considerar que as foram expostas a certa prática sofreram algum dano? Paulo Granjo (2011) afirma que duvida que na superação da dicotomia relativismo cultural e Direitos Humanos exista uma solução definitiva, ou sequer totalmente satisfatória. O autor sugere que em caso de choque entre as práticas culturais e os Direitos Humanos e de cidadania, o critério a aplicar não sejam as regras dominantes, internacionais ou locais, mas a vontade e a perspectiva que em relação a esse caso expressem as pessoas e grupos, que nele, sejam os dominados (Granjo, 2011: 180-‐181). A proposta de Paulo Granjo parece-‐me mais acertada, porque os grupos ou as comunidades não são a soma dos indivíduos. Cada indivíduo é uma entidade una e indivisível. Ora, tal proposta apesar de ser válida encerra em si muitos desafios, porque alguma instituição tem que assumir o papel de garantir que haja auscultação, documentação das opiniões expressas pelos indivíduos ou grupos, e o cumprimento de tal vontade. Apesar de o Estado ser uma entidade soberana, por vezes é problemático pensar que ele pode desempenhar essa função, na medida em que nalguns casos tem sido o principal opressor e violador dos direitos e liberdades individuais dos seus cidadãos. Se recuarmos ao historial de surgimento e disseminação da ideia de Direitos Humanos, notaremos que muitos Estados foram acusados de serem os principais detractores dos Direitos Humanos. Nesse sentido, a que organismo relegar tamanha empreitada? Outro motivo que torna a proposta de Paulo Granjo desafiante, apesar de válida, é que para o caso dos ritos de iniciação, os indivíduos que são o sujeito dos ritos
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não têm qualquer poder de decisão, porque são crianças. À luz dos instrumentos legais, elas precisam de ser tuteladas, daí que a responsabilidade de decidir se vão ou não aos ritos de iniciação, recai em primeira instância sobre as suas famílias ou tutores. É junto às famílias e “comunidades” que deve ser feito o levantamento dos significados e sentidos atribuídos à prática dos ritos de iniciação e tentar encontrar mecanismos de negociação para a realização da prática de modo alternativo. Por exemplo, nalguns locais da província moçambicana de Cabo Delgado, o trabalho de auscultação e diálogo com as comunidades produziu algumas mudanças na prática dos ritos de iniciação. A prática não foi abandonada porque é imbuída de significados para as pessoas, mas ao invés de haver circuncisão, se recorre a outras formas de transmitir as mensagens, julgadas relevantes para a matéria. O exemplo de Cabo Delgado mostra que é possível e é preciso encontrar uma forma de negociação para a realização de certas práticas culturais, quando ocorre um choque entre estas e os Direitos Humanos. 4. Em jeito de conclusão... Este ensaio discutiu as possibilidades e limites do relativismo cultural e dos Direitos Humanos como fonte de explicação para a prática ou não de certos costumes culturais. O relativismo cultural assim como o universalismo, no qual se alicerçam os Direitos Humanos encerram em si problemas, pelo que ambos não são elegíveis para explicar ou justificar a realização ou não de certas práticas culturais. Contudo, importa salientar que apenas ocorre um dilema entre as duas perspectivas, quando há um choque entre certas práticas culturais e os Direitos Humanos.
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Com vista a solucionar o impasse quando surgem os choques entre o relativismo cultural e o universalismo, algumas propostas têm sido equacionadas e todas elas assentam numa base de permanente negociação entre os interlocutores visados. Tais negociações envolvem relações de poder no seio das culturas, dos sistemas que lhes são exteriores e entre as culturas e esses sistemas. Importa referir que tais soluções não são conclusivas e têm que ser vistas de modo processualista e contextual. Referências bibliográficas ABU-‐LUGHOD, Lila. (2002). “Do muslim women really need saving? Anthropological reflections on cultural relativism and its others”. American Anthropologist 104 (3): 783-‐790. FLUEHR-‐LOBBAN, Carolyn. (1995). “Cultural relativism and universal rights”. The cronicle of Higher Education, June 9. Pp. B1, B2. GRANJO, Paulo. (2011). “Pluralismo jurídico e Direitos Humanos: os julgamentos de feitiçaria em Moçambique”. O público e o privado-‐nº 18. OSÓRIO, Conceição & MACUÁCUA, Ernesto. (2013). Os ritos de iniciação no contexto actual: ajustamentos, rupturas e confrontos-‐construindo identidades de género. Maputo: WLSA. SOUSA SANTOS, Boaventura. (1997). “Por uma concepção multicultural dos Direitos Humanos”. Revista crítica de Ciências Sociais, nº 48. Pp. 11-‐32. ZECHENTER, Elizabeth. (1997). “In the name of culture: cultural relativism and the abuse of the individual”. Journal of Anthropological Research, vol. 53, No. 3. Pp. 319-‐347.
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