Relativismo Cultural em Pauta

July 16, 2017 | Autor: Kherian Gracher | Categoria: Ética e Filosofia Moral
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Relativismo Cultural em Pauta  Kherian Gracher [email protected]

Uma antiga tribo de indianos, chamada de \Callatians", tinham por costume comer os corpos de seus parentes mortos. No mesmo perodo que a tribo dos Callatians viveram, os gregos antigos praticavam a cremac~ao dos corpos de seus parentes mortos, considerando as piras funerarias um modo mais natural e adequado para dispor dos mortos. Herodoto, em sua obra Historia, relata quando o rei persa Dario , intrigado com essas diferencas culturais encontradas em suas viagens, reuniu alguns gregos em seu palacio e lhes perguntou se gostariam de comer o corpo de seus pais mortos. Os gregos, horrorizados com tal proposta, disseram que por nenhuma quantia de dinheiro fariam tal coisa. Enquanto os gregos ouviam, Dario se dirigiu a um grupo de Callatians tambem trazidos ao palacio e lhes perguntou se gostariam de queimar os corpos mortos de seus pais. Os Callatians, por sua vez, caram horrorizados e disseram a Dario para jamais mencionar uma coisa t~ao terrvel. Assim, para a pergunta \o que e o certo a se fazer com os corpos dos parentes mortos?", os gregos responderiam queima-los, enquanto que os Callatians diriam que o certo seria com^e-los. Os Inuit, conhecidos tambem como \esquimos", s~ao grupos que vivem em regi~oes distantes e quase inacessveis ao norte da America do Norte e na Groel^andia. Ate o comeco do seculo XX pouco se conhecia dos seus costumes. Com o avanco da explorac~ao, alguns de seus costumes se tornaram conhecidos por nos, como os que irei relatar. Os homens esquimos, geralmente, possuem mais de uma esposa, e seus convidados recebem o direito de dormir com elas. Alem disso, dentro da hierarquia da comunidade, o chefe tem o direito de ter relac~oes sexuais com as esposas de outros homens. Alem das diferencas matrimoniais em comparac~ao a nossa sociedade, os esquimos tambem praticam o infanticdio. De acordo com os dados dos antropologos que estudaram os costumes esquimos, as beb^es me Texto de divulgac~ ao (www.universoracionalista.org)

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ninas e os beb^es que nasciam com de ci^encias fsicas estavam mais suscetveis a morte. Tal assassinato era permitido pela comunidade, e a decis~ao dependia exclusivamente dos pais. Alem disso, as pessoas de idade avancada, quando ja n~ao eram mais capazes de contribuir com a famlia, eram deixados na neve para morrer. As conclus~oes tiradas pelos antropologos era que tal sociedade tinha uma cultura que dava pouco valor e respeito pela vida.   Em algumas sociedades na Africa, Oriente Medio e no sudeste da Asia { sociedades predominantemente isl^amicas -, meninas de ate quatorze anos passam por certos rituais que consistem na mutilac~ao genital. Ha tr^es tipos de mutilac~oes genitais femininas. A chamada \circuncis~ao Sunna", que envolve a remoc~ao do prepucio e/ou do clitoris. Outra e a operac~ao chamada de \clitoridectomia", que consiste na remoc~ao parcial ou total do clitoris, assim como dos labios maiores e menores. E tambem a chamada \in bulac~ao", onde se extirpam o clitoris e unem os labios menores com uma parte interna dos labios maiores, atraves de pontos ou espinhos, criando um pequeno orifcio { entre 2 e 3 centmetros { no qual a mulher podera urinar e menstruar. Tais rituais variam entre retirar o prazer sexual feminino, pois culturalmente uma mulher sentir tal prazer e visto como sendo prostituta, ou mesmo para resguardar a virgindade da mulher. De acordo com os codigos morais da religi~ao muculmana, seguidos em alguns pases do Oriente Medio, uma mulher que cometer o crime do adulterio tera como pena a morte atraves do apedrejamento. Essa pena tambem e aplicada para outros crimes previstos pela lei mosaica, como a zoo lia (ou bestialidade), a blasf^emia, ter relac~oes sexuais com virgens comprometidas, enteadas, com a propria m~ae ou madrastas, amaldicoar os pais, homossexualidade, bruxaria, entre outros. O apedrejamento consiste no acusado ser amarrado e, as vezes, enterrados ate o tronco, e os algozes lancam pedras contra o corpo do acusado ate que esse faleca. Como o ser humano e capaz de sentir fortes golpes antes de perder a consci^encia, essa pena de morte e considerada extremamente violenta, causando dores excruciantes no indivduo. Esses s~ao apenas alguns exemplos de como ha diferencas substanciais entre culturas diferentes, sejam entre culturas de antigamente, sejam entre culturas de hoje. Essas diferencas, muitas vezes, levam pessoas a defenderem o relativismo cultural. Esse tema foi assunto de um debate que tive ha alguns dias atras, que me fez concluir que assumimos algumas posic~oes loso cas, como essa, sem percebermos quais s~ao suas consequ^encias mais profundas. Na verdade, acredito que s~ao poucos que de fato entendem o que e o relativismo cultural, conseguindo 2

expor com precis~ao o que essa teoria loso ca defende e, alem disso, perceber quais s~ao suas consequ^encias tanto praticas como teoricas. No entanto, ainda que poucos sejam capazes de completar essa tarefa, o relativismo cultural e  quase que um clich^e ser de humanas e defenmuito difundido e defendido. E der essa posic~ao loso ca. Antropologos, sociologos, historiadores e losofos defendem essa teoria com naturalidade, como se o relativismo cultural fosse um pressuposto obvio e inquestionavel para se fazer um trabalho em ci^encias humanas. Todavia, essa teoria esta longe de ser inquestionavel, mas muito pelo contrario, como quase toda teoria loso ca essa tambem e argumentavelmente falsa Pretendo expor nesse texto o que se entende por relativismo cultural e quais as consequ^encias trazidas por ele. De antem~ao recomendo a leitura do texto do losofo estadunidense James Rachels, mais precisamente o segundo captulo (\Os Desa os do Relativismo Cultural") do livro intitulado \Os Elementos da Filoso a Moral". A maior parte do que sera apresentado a seguir foi baseado nesse texto.

1 A Filoso a Moral Antes de comecarmos a exposic~ao do relativismo cultural, parece necessario delimitarmos exatamente onde essa discuss~ao reside. A loso a e uma area do conhecimento cujo os objetos de estudo constituem um amplo conjunto. Por exemplo, algumas subareas da loso a e seus objetos s~ao: loso a da ci^encia cujo objeto de estudo s~ao as ci^encias; a loso a da arte, que trata de problemas relacionados a arte; loso a poltica, que tratam de problemas sobre poltica, etc. O relativismo cultural e um problema, um objeto de estudo, da area loso ca chamada \ loso a moral". Mas o que essa area trata exatamente? Filoso a moral (ou \etica", de acordo com a traduc~ao grega do termo) e tradicionalmente entendida como o estudo acerca de problemas que tratam do modo como devemos ou n~ao agir. Problemas classicos da loso a moral s~ao, por exemplo: Qual o melhor sistema moral para guiar nossas ac~oes? O que e moralmente obrigatorio (i.e., quais s~ao nossos deveres morais)? S~ao as ac~oes como aborto, eutanasia, ou tortura moralmente permissveis? Entre outros. Iremos tratar o relativismo cultural, contudo, o relativismo moral e um constituinte importante da defesa do relativismo cultural. O relativismo moral e a tese de que n~ao ha um criterio universal que determine o que e ou n~ao moral-

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mente obrigatorio. Deste modo, para qualquer ac~ao X ha diversos sistemas, ou codigos morais que ir~ao considera-la permissvel, como haver~ao outros sistemas que a considerar~ao proibidas. Todavia, segundo o relativismo moral, nenhum desses sistemas t^em a qualidade de ser universal. Assim toda ac~ao sera correta ou incorreta de acordo com o sistema moral que a avalia, mas uma ac~ao n~ao e correta ou incorreta universalmente. O relativismo cultural, por sua vez, aceita o relativismo moral e a rma que para cada sociedade ou cultura ha um sistema moral diferente, e como n~ao ha um sistema moral universal, n~ao podemos julgar moralmente outras culturas. Basicamente, o relativismo cultural defende que os sistemas morais s~ao componentes culturais. Devemos notar que as duas teorias s~ao distintas. Enquanto que o relativismo cultural implica o relativismo moral, o relativismo moral n~ao implica o relativismo cultural. O que isso quer dizer? Bom, uma pessoa pode ser um relativista moral sem defender o relativismo cultural, rejeitando, por exemplo, que os sistemas morais s~ao determinados pelas culturas. Ainda que essa discuss~ao seja interessante, n~ao precisamos faz^e-la aqui, vamos nos focar no relativismo cultural.

2 O Relativismo Cultural O primeiro passo para uma apresentac~ao sobre relativismo cultural e apresentarmos uma de nic~ao acerca dele. No entanto, uma de nic~ao explcita seria um trabalho exaustivo e entediante para ser feito aqui. Para a argumentac~ao que ira se seguir basta que facamos uma caracterizac~ao do relativismo cultural expondo as principais teses defendidas nessa teoria. Irei apresentar as seis teses consideradas principais. Devo notar que nem todas as seis teses a seguir precisam ser defendidas por um relativista cultural. Enquanto alguns podem defender todas as seis, alguns podem defender apenas algumas delas. No entanto, essas teses exp~oe o cerne do relativismo cultural, de modo que ao menos algumas delas devem ser aceitas por quem advoga a favor dessa teoria. As seis teses s~ao: 1 Sociedades diferentes t^em codigos morais diferentes; 2 O codigo moral de uma sociedade determina o que e correto no seio dessa sociedade, i.e., se o codigo moral de uma sociedade a rma que certa ac~ao e correta, ent~ao essa ac~ao e correta, pelo menos nessa sociedade; 4

3 N~ao ha qualquer padr~ao objetivo que se possa usar para ajuizar um codigo social como melhor do que outro; 4 O codigo moral da nossa propria sociedade n~ao tem estatuto especial, e apenas um entre muitos; 5 N~ao ha uma verdade universal em etica; i.e., n~ao ha verdades morais aceitas por todos os povos em todos os tempos;  uma mera arrog^ancia nossa tentar julgar a conduta de outros povos. 6 E Deveramos adotar uma atitude de toler^ancia face as praticas de outras culturas. A primeira tese e uma verdade sociologica, e n~ao loso ca. Qualquer pessoa que entre em contato com culturas e sociedades diferentes vera isso. Os casos que citei anteriormente s~ao alguns exemplos. No caso do apedrejamento, por exemplo, as sociedades arabes que aceitam tais praticas a consideram moralmente aceitavel, de acordo com o codigo moral daquela sociedade; enquanto que em nossa cultura e sociedade tal pratica e condenada. Esses exemplos corroboram com a primeira tese. A segunda tese trata do modo como as aco~es s~ao avaliadas conforme as diferentes sociedades e culturas. Como no exemplo citado, a pratica da clitoridectomia e tomada como correta por aquelas sociedades uma vez que eles a avaliam de acordo com o codigo moral aceito por eles. Nos condenamos essa mesma pratica, pois a avaliamos de acordo com o codigo moral aceitos por nos. Estamos inseridos em uma sociedade que aceita um codigo moral diferente. As teses tr^es, quatro e cinco s~ao consequ^encias do relativismo moral. A ideia e que n~ao ha um sistema, ou codigo moral universal que deva se aplicar em todos os lugares. As ac~oes s~ao avaliadas de acordo com o codigo moral da sua sociedade, mas n~ao podemos pressupor um codigo que possa servir para avaliar todas as sociedades e culturas. Como n~ao ha verdades universais na etica, aceitas por todas as sociedades e culturas, isso faz com que haja diferentes codigos. Cada sociedade adota certas ac~oes como moralmente corretas e outras como moralmente erradas, mas isso diverge de cultura para cultura. O nosso proprio codigo moral e apenas um entre muitos. Nos fazemos partes de uma sociedade, com uma cultura, entre varias outras que existem ou ja existiram. Entendermos que o nosso codigo moral e melhor que outro e entendermos que nosso codigo moral ou e universal, ou existe um sistema moral universal que permite fazermos a comparac~ao. 5

Toda comparac~ao como \x e melhor que y" entende que ha como base um padr~ao. Por exemplo, se falamos que uma faca e melhor que uma colher devemos deixar explcito qual e o padr~ao de comparac~ao que usamos: se for para cortar um pedaco de carne, ent~ao de fato uma faca e melhor que uma colher; se o padr~ao de comparac~ao for sobre um bom instrumento para tomarmos uma sopa, ent~ao e falso que a faca e melhor que uma colher. Do mesmo modo, se falamos que o codigo moral de nossa sociedade e melhor que o codigo moral de uma outra sociedade { essa e a ideia que se espera passar quando e a rmado que \nossa sociedade e moralmente melhor que uma outra -, devemos deixar explcito qual e o padr~ao de comparac~ao. Esse padr~ao devera ser algo que permite avaliarmos as qualidades morais, ou seja, esse proprio padr~ao devera ser um sistema moral. No entanto, n~ao existe um sistema moral universal que possamos usar como padr~ao. Portanto, n~ao estamos autorizados a dizer que o nosso codigo moral e melhor que o de outra cultura, uma vez que n~ao ha um padr~ao universal de comparac~ao. Por m, a sexta tese a rma sobre a posic~ao de toler^ancia que devemos ter para com outras culturas. Como n~ao podemos avaliar outras culturas, a n~ao ser que adotemos o nosso codigo moral como padr~ao { e n~ao ha justi cativas para isso, argumenta um relativista -, ent~ao devemos ser tolerantes para com elas. Pois, do ponto de vista de outra cultura, a nossa propria sociedade segue padr~oes estranhos. Assim, do mesmo modo que nos olhamos com estranhamento para os arabes que apedrejam mulheres adulteras, eles olham para nos com estranhamento, uma vez que nos n~ao partilhamos desse mesmo codigo moral.

3 Os Desa os do Relativismo Cultural Uma vez exposto o que se entende por relativismo cultural, podemos ent~ao apontar possveis desa os enfrentados por aqueles que o defendem. Irei apresentar cinco desa os. O primeiro deles se centra em um argumento espec co muito utilizado pelos defensores do relativismo cultural; os proximos tr^es desa os s~ao consequ^encias praticas que essa teoria leva, consequ^encias essas que n~ao parecem ser muito agradaveis a um defensor do relativismo cultural; o quinto desa o, por m, ataca um dos pressupostos da teoria.

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3.1 Primeiro Desa o: O argumento das diferencas culturais Um argumento comum entre aqueles que defendem o relativismo cultural e o argumento das diferencas culturais. Basicamente o argumento tem premissas que descrevem como algumas ac~oes, ou praticas sociais, s~ao entendidas como moralmente permissveis em certas culturas, enquanto que as mesmas ac~oes e praticas s~ao condenadas em outras. Baseando-se nesses exemplo, tenta-se inferir a conclus~ao que n~ao ha verdade objetiva na moralidade, de modo que certo ou errado s~ao apenas quest~oes de opini~oes, que variam de cultura para cultura. O argumento poderia ser apresentado da seguinte forma: (1) Os gregos acreditavam que era errado comer os mortos, enquanto os Callatians acreditavam que era certo; Os esquimos acham moralmente permissvel o infanticdio, enquanto na cultura ocidental acredita que e imoral;  Sociedades na Africa e no Oriente Medio tomam como moralmente permissvel a clitoridectomia, enquanto que nos a condenamos; etc. Assim, diferentes culturas possuem diferentes codigos morais. (2) Logo, nenhuma dessas praticas podem ser consideradas objetivamente corretas ou incorretas. Certo ou errado s~ao quest~oes de opini~oes que variam de cultura para cultura, de modo que n~ao ha um padr~ao moral universal. Sera esse um bom argumento? Ele pode ser persuasivo para muitas pessoas, mas de um ponto de vista logico, ele e um bom argumento, i.e., ele e dedutivamente valido? A validade dedutiva de um argumento visa analisar a estrutura formal do argumento. De acordo com a logica classica um argumento e dedutivamente valido quando sua estrutura faz com que em toda circunst^ancia possvel, se as premissas s~ao verdadeiras, a conclus~ao e verdadeira. Ou seja, n~ao e possvel inferir uma conclus~ao falsa de premissas verdadeiras. Podemos ent~ao perguntar: Se (1) for verdadeira, podera (2) ser falsa? Sim, ha ao menos uma circunst^ancia possvel na qual a premissa (1) e verdadeira e a conclus~ao (2) e  logicamente possvel haver diferentes culturas, com diferentes pontos falsa. E de vistas sobre a moralidade e, ainda assim, haver um padr~ao moral que seja objetivo e universal. Avaliando detidamente o argumento veremos que a premissa (1) trata do modo com as pessoas acreditam (em algumas sociedades as pessoas acreditam que x e correto, em outras sociedade as pessoas acreditam que x e falso). Ja a 7

conclus~ao (2) trata de como as coisas realmente s~ao, trata da exist^encia ou n~ao de um padr~ao moral universal. Pensemos nessa mesma estrutura de argumento mudando os casos, por exemplo: Em algumas sociedades as pessoas acreditam que a terra e plana. Em outras sociedades as pessoas acreditam que a terra e esferica. Logo, n~ao e verdade que a terra e plana, tampouco que ela e esferica, pois do fato de pessoas discordarem n~ao ha verdades objetivas em geogra a. Esse segundo argumento mantem a mesma estrutura do primeiro. As premissas tratam do modo como as pessoas pensam, no que elas acreditam, e a partir dessa premissa se tenta inferir uma conclus~ao sobre o que e o caso. Com a mesma estrutura ca claro que o argumento e invalido, pois ainda que as pessoas possam discordar sobre o formato da terra, isso n~ao signi ca que n~ao ha verdades objetivas em geogra a. Os defensores do relativismo cultural podem responder a esse primeiro desa o apelando para os pressupostos que essa objec~ao traz. Mais especi camente, essa objec~ao visa analisar a validade logica do argumento, pressupondo a logica classica como sistema de logica capaz de cumprir tal tarefa. No entanto, e possvel criar in nitos sistemas de logica formal, sendo necessario haver raz~oes pre-teoricas para aceitarmos a logica classica. Essa resposta e bem tecnica, exigindo uma explicac~ao maior. No entanto, vamos nos focar apenas no argumento por analogia, que fala sobre diferentes sociedades acreditarem que a terra e plana e outras que ela e esferica. Para que um argumento por analogia seja bem sucedido a analogia proposta deve preservar propriedades relevantes para a discuss~ao. A analogia proposta no argumento da terra plana e esferica preserva a estrutura original do argumento das diferencas culturais. Isto e, tanto o argumento sobre as diferencas culturais como o argumento da terra plana e esferica tem a estrutura no qual as premissas se baseiam no que as pessoas acreditam e tenta inferir disso uma conclus~ao sobre como o mundo de fato se comporta, ou seja, de como as coisas s~ao na realidade. A analogia funciona para mostrar que essa estrutura n~ao suporta inferir uma conclus~ao dessa natureza de premissas que tratam sobre o modo como as pessoas pensam. Um relativista cultural, todavia, pode responder a essa objec~ao sobre a analogia a rmando que a estrutura do argumento n~ao e uma propriedade relevante, o que torna a analogia mal sucedida. Ou seja, para que uma analogia do argumento das diferencas culturais possa funcionar, essa analogia n~ao deve preservar a estrutura do argumento original, mas sim outra propriedade. O problema agora e: qual propriedade e relevante? O relativista cultural podera 8

dizer que a propriedade relevante e que as premissas e a conclus~ao tratam de predicados morais, i.e., tratam sobre moralidade. Diferente da geogra a, que somos capazes de observar diretamente se uma a rmac~ao e verdadeira ou falsa, podemos veri car objetivamente se a terra e plana ou esferica, nos n~ao temos a mesma capacidade de veri cac~ao na moralidade. Nos n~ao podemos veri car objetivamente se uma ac~ao x e moralmente correta ou incorreta. A falta de tal objetividade para veri car a rmac~oes morais e o que tornaria o argumento das diferencas culturais um bom argumento, e exatamente isso que falha na analogia da terra plana e esferica. Para atacarmos o argumento das diferencas culturais, de acordo com o relativista cultural, deveremos ent~ao escolher uma analogia no qual o tema tratado seja tal que n~ao somos capazes de veri car objetivamente se suas a rmac~oes s~ao verdadeiras ou falsas { tal como acontece com a moralidade, de acordo com o relativista. Uma primeira objeca~o que poderamos fazer e: por que esta pressuposto que n~ao podemos veri car objetivamente se uma a rmac~ao moral  argumentavel que a veri cac~ao, ainda que n~ao seja e verdadeira ou falsa? E emprica { tal como ocorre nas ci^encias { e uma veri cac~ao racional. Mas essa objec~ao levaria uma discuss~ao muito longa para ser feita aqui. Vamos tentar achar um caso no qual, tal como a moralidade, n~ao somos capazes de veri car objetivamente se as a rmac~oes s~ao verdadeiras ou falsas. Bom, temos o caso da loso a da religi~ao. N~ao somos capazes, atraves das ci^encias, de veri car se Deus existe ou n~ao. Alem disso, grande parte da especulac~ao loso ca sobre Deus e da mesma natureza que a discuss~ao sobre a moralidade. Vejamos o argumento ent~ao reformulado. (1) Em algumas sociedades testas as pessoas acreditam que Deus existe, enquanto que em outras sociedades, atestas, as pessoas acreditam que Deus n~ao existe. (2) Portanto, n~ao e verdade que Deus existe, tampouco que Ele n~ao existe. Pois do fato de pessoas discordarem sobre esse assunto isso implica que n~ao ha verdades sobre ele. Nesse caso, aceitando que n~ao somos capazes de veri car a exist^encia de Deus objetivamente, a analogia preserva a propriedade exigida pelo relativista cultural. Mas, novamente, teremos o problema do argumento ser absurdo. N~ao e por que as pessoas acreditam que Deus existe ou n~ao que isso implica que na realidade Ele, de fato, exista ou n~ao. Em conclus~ao { para n~ao nos prolongarmos 9

demais - o argumento das diferencas culturais tera grandes problemas em virtude de sua natureza. Do fato das pessoas acreditarem em algumas coisas n~ao se segue essas coisas n~ao possam ser analisadas objetivamente, ou mesmo que n~ao ha verdade nesse assunto.

3.2 Segundo Desa o: N~ao podemos criticar praticas de outras sociedades A primeira consequ^encia pratica do relativismo cultural e que n~ao poderamos mais criticar as ac~oes e praticas de outras sociedades. Ainda que pareca uma consequ^encia obvia do relativismo cultural, isso toca em um ponto complicado. Pensemos em praticas menos \benignas", como uma sociedade que considere moralmente correto a escravid~ao de todas as pessoas que t^em uma cultura diferente da sua. Eles estariam justi cados moralmente em sair pelo mundo escravizando pessoas, visto que essa seria uma pratica social permissvel diante do seu codigo moral. Pensemos ent~ao em uma sociedade extremamente antissemita, que considere a pris~ao sumaria, a desapropriaca~o de bens e ate mesmo a tortura de judeus como algo aceitavel diante do seu codigo moral. Um caso parecido com esse foi a Alemanha no perodo pos-primeira guerra, no qual a sociedade em geral aceitou a perseguic~ao dos judeus, considerando tal ac~ao como moralmente aceitavel diante de seus costumes. Aceitando o relativismo cultural nos n~ao poderamos mais criticar tais ac~oes e praticas, uma vez que elas est~ao de acordo com o codigo moral aceito pela cultura e sociedade onde foram praticadas.

3.3 Terceiro Desa o: Acabam-se discuss~oes sobre moralidade As principais discuss~oes em loso a moral atualmente tratam de temas sobre etica pratica, como o problema do aborto, da eutanasia ou mesmo vegetarianismo. Esses problemas tentam dar uma resposta se tais ac~oes s~ao moralmente permissveis ou n~ao, i.e., se o aborto e moralmente permissvel, se a eutanasia e moralmente permissvel ou mesmo se o vegetarianismo e uma pratica que devemos adotar como dever moral, visto que os animais teriam direitos. Esses problemas s~ao postos em causa e o debate e acirrado, havendo bons argumentos entre aqueles que defendem que s~ao permissveis, como ha tambem excelentes argumentos entre aqueles que defendem que n~ao s~ao moralmente permissveis. Se adotarmos o relativismo cultural esse tipo de problema seria dissolvido, con10

siderados pseudoproblemas, o que parece um absurdo (visto que esses debates s~ao extremamente relevantes). De acordo com o relativismo cultural, toda avaliac~ao moral, i.e., a avaliac~ao se uma ac~ao e moralmente correta ou incorreta, e feita apenas recorrendo aos padr~oes culturais de uma sociedade. Deste modo n~ao seria mais necessario tais debates, e a loso a moral deveria restringir sua investigac~ao para observar a cultura e dizer se algo e aceito ou n~ao por essa cultura. Se for aceito, ent~ao e moralmente permissvel. Se n~ao for aceito, ent~ao e moralmente proibido. Todavia, poucos de nos pensamos que nosso codigo moral e perfeito (ou, em termos do relativismo moral, que nossas praticas sociais s~ao perfeitas).

3.4 Quarto Desa o: N~ao existe mais progresso social A ideia de progresso moral e posta em duvida. Cada pratica social, por mais imoral que pareca, era uma pratica de uma determinada epoca. E como n~ao ha um sistema moral universal, n~ao podemos falar que uma certa pratica de antigamente e incorreta quando estamos a avaliando pelo sistema moral da nossa sociedade de hoje. O que isso implica? Bom, n~ao podemos mais falar que nossa sociedade teve um progresso moral. Por exemplo, a repress~ao aos direitos das mulheres na sociedade do seculo XVIII era uma pratica social recorrente, coisa que hoje em dia n~ao ha tanto. Hoje as mulheres t^em muito mais direitos do que antes. Todavia isso n~ao e um progresso moral segundo o relativismo cultural. Pois a repress~ao as mulheres no seculo XVIII esta t~ao correta como o fato de darmos um maior direito as mulheres hoje. Ambas s~ao praticas sociais, e cada uma no seu tempo. Devemos assim analisar as praticas conforme a sociedade da epoca. O mesmo ocorre com a escravid~ao, que era uma pratica cultural socialmente aceita ate meados do seculo XIX no Brasil. A abolic~ao da escravatura, e o declnio do trabalho escravo que ainda existe em alguns lugares do pas poderia ser encarado como um progresso social. Aparentemente houve um progresso moral em nossa sociedade, seja dando mais direitos as mulheres ou abolindo escravos[1]e acabando com todo tipo de trabalho escravo. Um relativista cultural, no entanto, deve recusar a noc~ao de progresso nesses termos. Como n~ao ha um sistema moral universal, que servia de padr~ao para analisarmos as diferentes sociedades (como a sociedade brasileira do seculo XIX e a sociedade brasileira do seculo XX), ent~ao n~ao podemos dizer que ha um progresso moral. Tanto a sociedade antiga, que restringia os direitos da mulher e aceitava a escravid~ao, estava 11

certa em suas praticas; quanto a sociedade de hoje, que e radicalmente oposta a isso, tambem esta certa em suas praticas. Ou seja, a intuic~ao de estarmos progredindo moralmente e ilusoria, de acordo com o relativismo cultural.

3.5 Quinto Desa o: A diferenca cultural e menor que imaginamos O relativismo cultural advoga que as diversas sociedade mantem diferencas substanciais no modo como encaram a moralidade, i.e., no modo como encaram o que e certo ou errado. Esse ultimo desa o visa atacar essa tese. Esse desa o tenta mostrar que as diferencas s~ao menores do que imaginamos. Para isso se faz necessario recorrermos a exemplos. A cultura indiana tem em seu codigo moral que e errado comer carne de vaca. Ainda que seja uma sociedade extremamente pobre, havendo regi~oes onde a populac~ao passa fome, as vacas n~ao ser~ao tocadas. Elas t^em, de acordo com essa cultura, um status de sagradas. Na maior parte da cultura ocidental, por outro lado, n~ao ha tabus quanto ao consumo de carne vermelha, especialmente no consumo de carne bovina. Muito pelo contrario, o consumo da carne de vaca e tradicional para alguns de nos, como para os argentinos ou os gauchos. Aparentemente ha uma diferenca substancial quanto aos valores dessas duas sociedades. Mas ate que ponto existe essa diferenca? Seria ela realmente substancial como advoga o relativista cultural? Vejamos o porqu^e dos indianos n~ao comerem carne. De acordo com as crencas religiosas na India, apos a morte as almas das pessoas habitam os corpos dos animais, como os das vacas. Assim, uma vaca pode ser, na verdade, a reencarnac~ao da avo de alguem. Observando por esse lado, eles teriam valores morais t~ao diferentes dos nossos? N~ao, pois a grande diferenca s~ao as crencas religiosas. A maior parte da diferenca entre as diversas culturas se resumem aos sistemas de crencas que cada uma adota, n~ao nos valores morais. Tanto nos como os indianos aceitamos que n~ao devemos comer a carne dos nossos avos, principalmente se eles estiverem vivos. A diferenca e que nosso sistema de crenca entende que nossos avos n~ao sobrevivem a morte de nossos corpos e reencarnam, enquanto que eles acreditam que n~ao so sobrevivem, como tambem habitam em animais.

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4 Conclus~ao Em conclus~ao, como espero ter mostrado, o relativismo cultural e uma tese que enfrenta diversos desa os. Ainda que ela seja comumente defendida na acad^emica, principalmente nos departamentos de humanas, poucos pensam sobre a veracidade dessa tese. Menor ainda e o numero de pessoas que se atentam para esses desa os. Conseguir oferecer respostas bem sucedidas contra esses desa os e essencial para aqueles que defendem o relativismo cultural. Assim, espero que com esse texto aqueles que rejeitem o relativismo cultural tenham munic~oes para atacar tal tese, e para aqueles que o defendem possam fazer o importante servico de se questionar e oferecer respostas a esses desa os.

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