Relativismo e Ceticismo na obra de Richard Rorty

June 15, 2017 | Autor: Antonio Engelke | Categoria: Philosophical Scepticism, Relativism, NeoPragmatism
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Relativismo e ceticismo na obra de Richard Rorty

Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira*

Resumo Richard Rorty é frequentemente descrito por seus críticos como um filósofo que esposa um relativismo típico dos pensadores pós-modernos. Mas será este o caso? Neste artigo, procuro distinguir entre dois sentidos de relativismo, um “fraco” (o reconhecimento da inexistência de um critério ou fundamento universal que garanta o estatuto de verdade a alguma crença particular) e outro “forte” (a aceitação da ideia de que, uma vez que não dispomos de tal ancoragem, todas as crenças seriam igualmente válidas). Argumento que o relativismo em sentido “fraco” não é propriamente o relativismo que os críticos imputam a Rorty, mas sim seu arraigado antifundacionismo. Neste sentido, o antifundacionismo de Rorty tangencia o falibilismo, ainda que o próprio Rorty não o reconheça explicitamente. A segunda parte do artigo dedica-se a examinar a relação entre ceticismo e falibilismo no pensamento de Rorty. Palavras-chave: Richard Rorty, Antifundacionismo, Relativismo, Ceticismo Mestre e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Atualmente, pesquisa os impactos políticos da internet. [email protected] *

Desigualdade & Diversidade – Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio edição dupla, nº 12, jan/dez, 2013, pp. 171-189

Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira

Abstract Relativism and skepticism in Richard Rorty’s work Richard Rorty is often seen by his critics as a philosopher who stands for relativism, typical of post-modern thinkers. But is it really the case? In this article, I seek to distinguish between two meanings of relativism: “weak” relativism (the impossibility of a universal criteria or foundation that allegedly could guarantee the truth of any particular belief ), and “strong” (the idea that, once we acknowledge such impossibility, all beliefs are equally valid). I then propose that this “weak” form of relativism isn’t the relativism critics accuse Rorty of, but rather his known antifoundationalism. In this sense, Rorty’s antifoundationalism is closely related to falibilism, albeit Rorty himself fails to admit it explicitly. The second part of the article is dedicated to examine the relation between skepticism and falibilism in Rorty’s work. Keywords: Richard Rorty, antifundacionalism, relativism, skepticism.

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Relativismo e Ceticismo na obra de Richard Rorty1 Relativism, like skepticism, is one of those doctrines that have by now been refuted a number of times too often. Nothing is perhaps a surer sign of that a doctrine embodies a not-to-be-neglected truth than that in the course of philosophy it should have been refuted again and again. Genuinely refutable doctrines only need to be refuted once. Alasdair MacIntyre, “Relativism, Power and Philosophy” Que o relativismo incorre em contradição autoperformativa, sabemos desde a Grécia antiga. A alegação segundo a qual “Não existe verdade” seria verdadeira ou falsa? Se for verdadeira, caímos em contradição: “é verdade que não existe verdade”. Se for falsa, então “não é verdade que não existe verdade”, e somos levados à conclusão lógica de que a verdade existe. Do mesmo modo, a afirmação “Não há fatos, somente interpretações”, é ela própria um fato ou uma interpretação? Se é um fato, a afirmação se contradiz; sendo uma interpretação, por que deveríamos tomá-la como certa, entre tantas outras interpretação possíveis? Mais ainda, dizer que “não há uma última palavra” e pretender que esta afirmação seja “a última palavra”, não é também uma contradição em seus próprios termos (Nagel, 2001)? Apesar de ser logicamente inconsistente, de refutar a si próprio, o relativismo resiste. Passada a obsessão positivista, o século XX lhe deu impulso renovado. Einstein e sua teoria da relatividade vieram deslocar os pressupostos até então dados como sólidos acerca de tempo e espaço; os paradoxos da teoria dos conjuntos colocaram em xeque a racionalidade da matemática, que depois viria a sofrer novo abalo com a prova da incompletude de Kurt Godel; Freud lançou um ataque frontal à própria possibilidade da racionalidade; o Princípio da Incerteza, de Heinseberg, levou a indeterminação para o interior da física quântica; Kuhn e Feyarabend questionaram a racionalidade do fazer científico; antropólogos começaram a afirmar, contra Kant, que não há uma única Razão universal, e sim racionalidades distintas que obedecem a lógicas distintas de funcionamento; e, por fim, mas não menos importante, filósofos como Wittgenstein, Foucault, Derrida e Rorty, para ficarmos em apenas alguns nomes, contribuíram, cada qual a seu modo, para desbastar as pretensões do racionalismo universalista (Searle, 2000). O relativismo, “contraponto negativo do Iluminismo, sua imagem especular invertida”, como observou Alasdair MacIntyre (2008: 379), parece continuar gozando de boa saúde. Em termos mais rigorosos, seria prudente falar não em relativismo, mas numa miríade de relativismos. Maria Baghramian (2010) distingue entre quatro grandes escolas de pensamento relativista, quais sejam, relativismo cultural, conceitual, construtivismo social e pós-modernismo. Refinando ainda mais o escopo de observação, Michael Krauz (2010) sugere que, dentro da ampla doutrina relativista, há algumas variantes claramente distinguíveis: relativismo referente a enquadramento de referência (conceitual, cultural, histórico), domínios (cognitivo, moral, estético), de nível (ontológico, epistêmico), e de 173

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valores (verdade, razoabilidade, justiça). De qualquer modo, é certo que os dilemas colocados pelo relativismo em suas diversas variantes não se restringem à filosofia; cedo ou tarde, todo cientista social acabará tendo que enfrentá-los. Poucos sentem-se à vontade em fazê-lo, no entanto. Há sempre receio, uma relutância em defender em público uma posição assumidamente relativista. O medo, claro, é das acusações que inevitavelmente se seguem à tomada de posição relativista – subjetivismo incoerente, niilismo, paralisia ética etc. Mas tais acusações em geral têm suas raízes mais na perspectiva absoluta de quem acusa do que na perspectiva relativista do acusado. “Todas as definições comuns do relativismo”, assinala John Ladd, “são formuladas por adversários do relativismo... São definições absolutistas” (apud Geertz, 2001, p. 48). Clifford Geertz (2001) insiste, não sem razão, em que o relativismo deve ser tomado apenas como método de apreensão da diferença, um relativismo cognitivo, portanto. “Tudo compreender”, diz Geertz evocando um antigo ditado francês, “não é tudo perdoar”. Richard Rorty foi um dos filósofos contemporâneos que mais avançou argumentos contra as tentativas de ancorar nossas alegações sobre o mundo em alguma espécie de absoluto, seja a natureza humana ou a Razão (Rorty utiliza o “R” maiúsculo de propósito, como que chamando a atenção para arrogância de tal pretensão). Sua obra, que estabeleceu diálogos fecundos com diversas searas fora da filosofia, foi e continua sendo objeto de críticas tão radicais quanto as ideias que introduziu. Mas será que, no tema aqui em discussão, as críticas são válidas? Na primeira seção deste artigo, pretendo discutir a questão de se Rorty é de fato um pensador relativista, e analisar as consequências (ou ausência delas) de seu suposto relativismo em um debate público sobre política. Na segunda parte, procuro apreciar a maneira pela qual Rorty mobiliza argumentos céticos, e alguns problemas daí decorrentes. Ao final, faço uma breve e forçosamente superficial referência à estratégia na qual Rorty se baseia para evitar enredar-se tanto no relativismo como no ceticismo, estratégia esta que é tributária do holismo filosófico de Donald Davidson. Meu objetivo não é discutir o holismo esposado por Rorty, mas sim problematizar as acusações de que Rorty seria um filósofo relativista e/ou cético. Tais acusações só podem ser alinhavadas desde uma perspectiva realista, e procurar respondê-las, do modo como tento fazer aqui, já é conceder terreno excessivo, dado que dá a entender que relativismo e ceticismo sejam de fato posições filosóficas problemáticas, que necessitam de defesa.2 Do mesmo modo, é um tanto evidente que um filósofo como Rorty não precisa ser “defendido”. Ainda assim, talvez possa ser útil apresentar os argumentos dentro desta estrutura de crítica/ defesa, quanto mais não seja para facilitar a compreensão das questões em tela. I. Relativismo A obra de Rorty fornece bons argumentos para quem procura livrar-se da herança platônica e kantiana com vistas a adotar um pensamento que privilegie a infixidez, a indeterminação e a contingência. Ao rejeitar a metáfora da mente como um contêiner de crenças

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capazes de representar a realidade como ela é em si mesma, Rorty (1994a) fez da filosofia o lugar de uma conversação com o objetivo de oferecer soluções transitórias para problemas transitórios. Em seus escritos tardios, dedicou-se a examinar e defender o que seria uma “cultura liberal pós-metafísica”, isto é, uma cultura em que os valores liberais conservem sua força a despeito de não serem socialmente percebidos como tendo um fundamento universal. Tudo isto, como não poderia deixar de ser, levantou o fantasma do relativismo. A estratégia de Rorty para defender-se da acusação de ser um pensador relativista consiste basicamente em recusar os pressupostos sem os quais a acusação não pode ser formulada. “Nós, antiplatônicos”, escreve Rorty, “não podemos permitir que sejamos definidos como relativistas, pois essa definição incorre em petição de princípio ao apoiar-se na questão central: a utilidade do vocabulário que herdamos de Platão e Aristóteles” (1994b, p. 118). Rorty não pretende demonstrar o que há de falho no vocabulário da filosofia clássica grega, tampouco refutá-lo por completo, tarefa, aliás, que ele próprio reconhece como sendo impossível. O que Rorty quer é abandonar as distinções entre relativo e absoluto, essência e aparência, objetivo e subjetivo, “o conjunto das dicotomias platônicas” (1994b, p. 119). A acusação de relativismo só se torna possível dentro do jogo de linguagem ancorado em tais distinções; mas se as abandonarmos, se pararmos de tratá-las como condição primeira de todo raciocínio filosófico, então o rótulo de “relativista” simplesmente deixa de fazer sentido. Rorty está ciente de que isto leva seus adversários a formularem uma segunda acusação contra ele, a de que ser racional consiste precisamente em respeitar tal conjunto de dicotomias. Sua resposta é tão simples quanto irônica: Nós, pragmatistas, respondemos que se isso fosse racionalidade, então seríamos, sem dúvida, irracionais – com a ressalva de que ser irracionalista, neste sentido, não significa ser incapaz de argumentação. Nós, irracionalistas, não espumamos pela boca, nem nos comportamos como animais; simplesmente nos recusamos a falar à maneira platônica (1994b: 118-119). Recusar Platão já seria suficiente para garantir a Rorty um número razoável de adversários dentro do campo da filosofia. Mas Rorty vai além, e recusa também qualquer possibilidade de fundamento para a investigação intelectual ou deliberação moral – e é aí que os críticos afiam as garras. Quando, por exemplo, afirma que “nada há a ser dito nem sobre a verdade, nem sobre a racionalidade, para além das descrições dos procedimentos familiares de justificação que uma dada sociedade – a nossa – emprega em uma ou noutra área de justificação” (Rorty, 2002, p. 40, itálico do autor), está aberto o caminho para a acusação de relativismo. Pois a expressão “dada sociedade – a nossa” pode ser empregada por qualquer sociedade; se é assim, então Rorty está afirmando que diferentes sociedades têm diferentes procedimentos de justificação, e que cada um deles tem algo a dizer sobre a verdade. Isto, dizem os críticos, é uma forma de relativismo.3

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É inútil tentar rebater a acusação. De fato, se analisarmos o antifundacionismo rortyano a partir de uma perspectiva cujos pressupostos sejam internos ao vocabulário platônico, não temos outra opção a não ser qualificá-lo de relativista. Isto, no entanto, está longe de encerrar a discussão; ao contrário, é seu ponto de partida. O que, afinal, entende-se por relativismo? Não será nenhuma novidade para o leitor razoavelmente familiarizado com o debate a alegação de que podemos distinguir dois sentidos para o termo relativismo, um “forte” e outro “fraco”. No sentido fraco ao qual me refiro, o relativismo consiste basicamente no reconhecimento da relatividade de justificação para as crenças: se não há nem um fundamento absoluto para o nosso sistema de crenças, nem um critério último que garanta o estatuto de verdade a alguma crença específica, então a Verdade será sempre relativa, contingente, produto de configurações particulares de tempo, lugar e acaso. No sentido forte, relativismo é a aceitação da ideia de que, uma vez que não dispomos de tais ancoragens universais, todas as crenças são igualmente válidas. A diferença é expressiva. Há uma distância enorme entre dizer que não há um fundamento ao qual recorrer para decidir, por exemplo, entre democracia liberal e nazismo, e dizer que estas duas formas de vida política se equivalem. A primeira posição não faz mais nada além de reconhecer que não dispomos de um princípio universal absolutamente incontroverso sobre o qual poderíamos sustentar nossa crença na superioridade da democracia liberal; a segunda afirma que ambos, democracia liberal e nazismo, são sustentados por crenças válidas cada qual à sua maneira, e que seria impossível dizer que um dos regimes é intrinsecamente superior ao outro. Rorty, claro está, não é um relativista em sentido forte. Tendo dedicado boa parte de sua energia intelectual à crítica de regimes totalitários e à defesa da democracia liberal como o melhor sistema de ordenamento político de que dispomos até aqui, seria no mínimo injusto, para não dizer completamente equivocado, lhe imputar tal rótulo. Importa, portanto, apreciar em maior detalhe este (suposto) deslize rortyano em direção ao relativismo fraco. O cerne do relativismo fraco é o elo entre a inexistência de fundamentos para as crenças e a impossibilidade de encontrar critérios para decidir entre elas. O fundamento implica um princípio metafísico eterno e imutável, uma categoria apriorística ou instância última, algo que esteja fora da história, acima das contingências, além de qualquer possibilidade de finitude. Já um critério capaz de fazer cessar de uma vez por todas a diaphonia, o desacordo entre as doutrinas, teria obrigatoriamente que ser um critério supradoutrinário, uma espécie de “gancho celeste” que, pairando acima das posições intelectuais conflitantes, deteria a legitimidade e a correção de perspectiva necessárias para decidir a favor de uma delas. Neste sentido, tanto o fundamento quanto o critério estariam radicados num “para além” – e é justamente a negação desta possibilidade o traço definidor do relativismo fraco. Antifundacionismo e ceticismo encontram-se unidos na recusa da existência deste “para além”: ambos repudiam a existência de uma perspectiva que estaria fora de qualquer perspectiva, a tentativa impossível de assumir o “ponto-de-vista do olho de Deus”.4 Mas isto nos leva a um curto-circuito: pois se a recusa em admitir este “para além” 176

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é suficiente para fazer emergir o relativismo, então os pensadores da tradição cética seriam relativistas, o que obviamente não é o caso. Céticos não apenas duvidam da possibilidade de se alcançar a Verdade, mas também da possibilidade de encontrar um critério último que encerraria a discussão de uma vez por todas. Relativistas, ao contrário, possuem um critério: aquele que afirma a igual validade das doutrinas que se entrechocam.5 É o caso então de se perguntar: seria o relativismo fraco realmente relativista? Ou, em outras palavras, o que acontece ao relativismo se o definirmos de uma maneira frouxa, a ponto de abranger a recusa ao “para além” comum ao antifundacionismo e ceticismo? Como um bom pragmatista, Rorty também se preocupou em dar suficientes provas de que, na prática, seu antifundacionismo não implica relativismo. Vejamos, por exemplo, o caso do debate acerca da superioridade da democracia em relação às formas de política totalitária. Rorty diz que filósofos como Habermas e Putnam consideram importante sustentar que a democracia é mais racional que o totalitarismo (Rorty, 2005, p. 108), e, portanto, um sistema político inquestionavelmente superior. Isto porque o totalitarismo recusa o falibilismo de seus próprios pressupostos, isto é, nega a possibilidade de que as teses nas quais se funda possam estar erradas – o que já configura uma posição irracional, dado que é uma verdade tautológica de que toda tese pode, a princípio, ser falsa. Rorty não discorda deste argumento, e nem teria como fazê-lo sem violar a lógica: ele apenas acha que é insuficiente para resolver a questão. A mera acusação de irracionalismo feita por um punhado de intelectuais não bastaria para derrotar a política totalitária, não apenas porque um filósofo nazista sempre poderia retrucar ironicamente “Querem nos chamar de irracionais? Certo, que seja: mas nós não rasgamos dinheiro nem emitimos grunhidos quando queremos nos comunicar”, mas também porque, de modo geral, argumentos filosóficos sofisticados não são particularmente eficazes quando se trata de “ganhar” a opinião pública. Nos jornais, nos cafés, nas mesas de bar, as pessoas discutiriam a vida dentro de um regime totalitário; perguntariam pelas liberdades, pelo respeito aos direitos fundamentais, pelas minorias, pela crueldade, violência e assim por diante. Se o que interessa é derrotar a política totalitária, e não meramente provar a correção e perspicácia de nossa própria estratégia argumentativa, seríamos necessariamente obrigados a discutir tais questões de ordem prática. A batalha haveria de ser vencida (ou perdida) nas descrições que nós faríamos deles, e vice-versa. Tratar-se-ia, portanto, de um debate a ser levado a cabo na esfera pública. Teríamos que apontar as limitações inerentes ao totalitarismo e ressaltar as conquistas reais e progressos efetivos feitos sob o sistema liberal-democrático – para então exibi-los publicamente dizendo “Nossos inimigos não podem falar o mesmo do sistema que defendem”. Obviamente, a máquina de propaganda adversária reagiria enumerando aquilo que julga serem as vantagens, progressos e conquistas do totalitarismo. Mas, ao fim e ao cabo, nós teríamos uma história mais instrutiva para contar. A retórica que nós, ocidentais, utilizamos ao tentar fazer que todos se tornem mais parecidos conosco poderia ser melhorada se 177

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fôssemos mais abertamente etnocêntricos e menos supostamente universalistas. Seria melhor dizer: “Isso é o que nós do Ocidente consideramos ser um resultado do fim da escravidão, de se começar a educar as mulheres, da separação entre Igreja e Estado, e assim por diante”. [...] Dizer este tipo de coisa parece ser preferível a dizer: “Vejam como somos melhores em saber quais as diferenças entre as pessoas são melhores e quais não são – vejam como somos muito mais racionais” (Rorty, 2009, p. 102, itálico do autor). A esperança de fundamentar uma crença ad eternum é a esperança de dotá-la de uma solidez que, espera-se, argumento algum seria capaz de solapar. Mas os maiores adversários das nossas crenças não necessariamente são argumentos contrários, e sim práticas políticas, paixões coletivas, o mundo da vida ordinária. Contra tudo isso, descrições imaginativas podem mais do que racionalizações frias, o que é apenas uma outra maneira de dizer que a forma mais eficiente de debater com uma posição supostamente irracional é utilizando argumentos que apelem à emoção, não à razão. E isto, convenhamos, faz todo o sentido, pois se o interlocutor estivesse realmente aberto à discussão racional, não teria sequer assumido de início uma postura irracional. Portanto, se quisermos defender resolutamente os valores que nos são mais caros, diz Rorty, faremos melhor em apresentar descrições competentes de seus méritos relativos do que em postular o absoluto de sua fundamentação filosófica. A adesão e fidelidade a crenças não é um processo que se deve ao seu escrutínio à luz da Razão; antes, é uma questão de prática social que envolve compromissos sentimentais de pertencimento a valores e modos de vida. Da mesma forma, afirma Rorty, avanços morais acontecem quando nos tornamos mais imaginativos, e não quando supostamente nos aproximamos um pouco mais de descobrir, de uma vez por todas, o que seria o Justo e o Correto. Quando se trata de melhorar nossa visão de mundo, nossa maneira de nos relacionarmos uns com os outros, a imaginação é a faculdade humana central. Não é por outra razão que esta tarefa, a de descrever nossos valores e o modo de vida que engendram de maneira a torná-los atraentes para aqueles que não compartilham deles, caberia, sobretudo, a discursos como a literatura e o cinema.6 Com efeito, Rorty possui um critério que o leva a decidir pela democracia liberal, e não pelo totalitarismo. Ao endossar a definição de Judith Sklar segundo a qual liberais são pessoas “que consideram a crueldade a pior coisa que fazemos” (Rorty, 2007, p. 18), Rorty já está explicitando o critério no qual se arvora para afirmar a superioridade da democracia liberal em relação à política totalitária. Nessa perspectiva, a democracia é melhor porque as instituições que lhe servem de suporte e a cultura política que ela engendra são mais sensíveis à crueldade. Poder-se-ia retrucar dizendo que não há um consenso universal acerca do que conta como “crueldade”. Mas Rorty é assumidamente etnocêntrico, e sua visão do que seja “crueldade” é a de um típico cidadão do Ocidente burguês liberal: a experiência da humilhação, a coerção física, o desrespeito às liberdades fundamentais, a

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violação dos direitos humanos, e assim por diante. Isto sugere que, a darmos crédito a seus críticos, Rorty teria logrado realizar uma proeza intelectual um tanto peculiar, a de ser um pensador a um só tempo etnocêntrico e relativista. Parece claro que o antifundacionismo não implica relativismo no sentido forte, que é o único a fazer jus à má fama que possui. No entanto, a filosofia de Rorty é avaliada e criticada em função dos efeitos que toda posição verdadeiramente relativista produziria – niilismo, cegueira ética, subjetivismo incoerente e que tais. Implícita em tais avaliações está a sensação de que o relativismo característico de “pós-modernistas” como Rorty já seria suficiente para enfraquecer a fibra do Ocidente moderno, cedendo assim espaço ao irracionalismo ideológico e obscurantismo religioso. Em outras palavras, o que está por trás das críticas endereçadas ao antifundacionismo rortyano é o medo de que o Ocidente liberal democrático venha a perder força de persuasão e capacidade argumentativa caso resolva abrir mão de um fundamento absoluto para as noções que lhes são mais caras.7 É o medo de que, desbastada de sua ancoragem filosófica universal, a democracia liberal e os principais valores que a acompanham acabem perdendo o suporte de sua legitimidade. O medo de Rorty, contudo, é outro: entre o relativismo multiculturalista pós-moderno e o dogmatismo provinciano, não há dúvidas de que os maiores problemas estão relacionados a este último. Rorty, creio, não veria empecilho nenhum em concordar com Clifford Geertz: A imagem de um mundo repleto de pessoas tão apaixonadamente encantadas com a cultura uma das outras, que aspirem unicamente a celebrar umas às outras, não me parece constituir um perigo claro e atual; a imagem de um mundo repleto de pessoas que glorifiquem alegremente seus heróis e diabolizem seus inimigos, sim, infelizmente parece constituí-lo (Geertz, 2001, p. 84). Numa passagem de seu livro Contingência, ironia e solidariedade, Rorty relembra, com aprovação, o elogio de Joseph Schumpeter ao falibilismo: “Reconhecer a validade relativa das próprias convicções”, diz Schumpeter, “mas ainda assim defendê-las resolutamente, é o que distingue o homem civilizado do bárbaro”. Em outras palavras, para Schumpeter o bárbaro é aquele que nunca duvida de si, que age imbuído de uma certeza inabalável, porque dogmática, acerca de suas próprias convicções e crenças. É, portanto, alguém que combina “narcisismo cognitivo” com “uma radical – e perigosa – ausência de qualquer hesitação” (Lessa, 2003, p. 98). Rorty, assim como Isaiah Berlin, não poderia concordar mais. Diz Berlin: “Pedir mais do que isso [o reconhecimento da validade relativa das próprias convicções] talvez seja uma necessidade metafísica profunda e incurável, mas permitir que isso determine nossa prática é sintoma de uma imaturidade moral e política igualmente profunda, e mais perigosa” (apud Rorty, 2007, p. 92, itálicos meus). Schumpeter e Berlin, ao que parece, não foram descartados com o misto de impaciência e suspeição reservado aos pensadores pós-modernos relativistas.8 Que Rorty não seja lido

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com semelhante generosidade não é apenas irônico, mas também um sintoma desta imaturidade de que fala Berlin. II. Ceticismo Quantas vezes mudamos de ideias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível; todas as nossas faculdades, todos os nossos órgãos se apossam dessa opinião e por ela respondem enquanto podem; não poderia aceitar outra verdade nem a conservar com maior convicção; a ela dei-me por inteiro. Mas não me aconteceu, e não uma vez, porém cem ou mil, e diariamente, ter aceito do mesmo modo alguma coisa que posteriormente considero falsa? Que ao menos nos tornemos sensatos a expensas nossas! Se tantas vezes fui traído por meu julgamento, se essa pedra de toque é em geral defeituosa, se a balança está mal regulada, que garantia a mais posso ter desta vez? Michel de Montaigne, “Ensaios”.

Segundo Rorty, existem dois tipos de estratégia que se pode adotar em relação ao conhecimento: a irônica e a metafísica. Os metafísicos, que não se dizem metafísicos, mas realistas ou apenas “defensores do senso comum”, acreditam que há um vocabulário final capaz de nos dar acesso a uma realidade que existiria por si mesma; acreditam, portanto, que Verdade é a correspondência com a realidade. Já os ironistas não estão preocupados em chegar a uma Verdade sobre o que seria A Realidade, nem acham que isso seja possível ou sequer necessário. O ironista, na concepção rortyana, preenche três requisitos, a saber: 1) mantém dúvidas permanentes e radicais em relação ao vocabulário final que usa para descrever o mundo e as pessoas, dado que foi impactado por outros vocabulários também considerados finais; 2) sabe que tais dúvidas não podem ser desfeitas através de seu atual vocabulário; e 3) “na medida em que filosofa sobre sua situação, [o ironista] não acha que seu vocabulário esteja mais próximo da realidade do que outros, que esteja em contato com uma força que não seja ele mesmo” (Rorty, 2007, p. 134). O primeiro requisito evoca a dúvida advinda do reconhecimento da diaphonia, a mesma dúvida à qual Montaigne se referia em seus “Ensaios”. Se estamos sendo constantemente impactados por novos vocabulários, como poderíamos ter a certeza de que estamos a utilizar o vocabulário definitivo, último, insubstituível? Tal dúvida é reforçada por um argumento que é análogo à tese de Thomas Kuhn (2005) sobre a incomensurabilidade dos paradigmas: apenas quando um novo vocabulário surgir é que o ironista saberá o que havia de falho no vocabulário que até então vinha utilizando. E se o ironista reconhece que seu atual vocabulário, seja lá quais forem suas virtudes, não está em contato com algo

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que o transcenda – se reconhece, portanto, o abismo existente entre as palavras e as coisas, e a impossibilidade da tradução perfeita entre elas –, sua atitude final só pode ser a de manter dúvidas radicais e permanentes sobre suas próprias crenças. Tudo somado, não é difícil concluir que a pedra de toque do ironismo são argumentos fundamentalmente céticos. Rorty só não chega ao extremo de dizer que o ironista, ciente da contingência de sua linguagem, acabaria por “suspender o juízo”. Mas então, por que motivo o autor fala em “ironismo”, e não simplesmente em “ceticismo”? Por que decide dar um novo nome para uma atitude intelectual antiga? Mero capricho, ou haveria aí alguma justificativa? Aqui talvez seja útil acompanhar a crítica que Michael Williams (2003) faz ao ironismo rortyano. Williams começa argumentando que o ironismo recapitula ponto por ponto a estrutura do ceticismo humeano, e que isso, ao fim e ao cabo, levará Rorty a esposar posições que ele próprio sempre rejeitou. Para Hume, a dúvida cética é filosoficamente inexpugnável, mas sem eficácia prática alguma, dado que ninguém em sua vida diária consegue ser um cético radical. Estamos, portanto, diante de uma dupla perspectiva, a da filosofia e a do senso comum, que não se conciliam, posto que obedecem a orientações cognitivas absolutamente diferentes. Daí a divisão humeana entre o homem mediano do senso comum (que segue sua vida intocado pela dúvida cética), os filósofos “falsos” (que se enredam nas armadilhas da metafísica), e o filósofos “verdadeiros” (que, como o próprio Hume, reconhecem a impropriedade de filosofar sem levar em conta o argumento cético). Pois bem: o senso comum rortyano, diz Williams, equivale ao homem mediano de Hume; o metafísico realista de Rorty corresponde ao falso filósofo humeano; e o ironista seria o mesmo que o filósofo verdadeiro (cético) de Hume. O movimento seguinte do argumento de Williams é observar a aparente contradição performativa na qual incorreria o ironismo. Rorty, por exemplo, se diz um liberal, e um liberal, como vimos, é aquele que tem consciência de que a humilhação e a crueldade são o pior que podemos fazer a outros humanos. Será que Rorty manteria dúvidas radicais e permanentes sobre a necessidade de se evitar a crueldade? Obviamente que não. Então como fica o ironismo? A solução de Rorty consiste em afirmar uma dupla perspectiva para equacionar o conflito entre filosofia e vida ordinária, que é bastante semelhante à proposta por Hume. Williams diz que, assim como Hume encontra a dúvida na atividade intelectual e a certeza em todos os outros lugares, Rorty contrasta a “ironia privada” com a “esperança liberal”. Segundo Rorty, o ironismo é indesejável na vida pública não apenas porque a prioridade de qualquer política pública deve ser evitar a crueldade e o sofrimento, e não responder a demandas idiossincráticas de indivíduos isolados, mas também em função de seu potencial disruptivo. Portanto, o lugar do questionamento radical e incessante da contingência do nosso vocabulário seria o espaço restrito da vida privada, dos afazeres individuais de cada um, jamais uma arena de discussão pública. Mas, Williams segue questionando, se as pessoas forem suficientemente ironistas e tiverem dúvidas sobre o próprio vocabulário, há alguma razão para supor que tais dúvidas não poderiam extrapolar o nível pessoal e tornarem-se questões públicas? O que manteria a ironia cética privada? Por que 181

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ela não se expandiria a ponto de solapar a esperança liberal? A saída de Rorty é dizer que, idealmente, somente intelectuais seriam ironistas. É como se Rorty quisesse que as aspirações e reivindicações da filosofia crítica fossem incorporadas a conta-gotas, num ritmo constante e seguro: nem lento demais, de modo a inibir a articulação em torno da demanda por reformas, nem rápido a ponto de inflamar o desejo urgente por revoluções.9 Contudo, o cerne da crítica de Williams é a afirmação de que Rorty erra ao não distinguir entre falibilismo e ceticismo. Um falibilista, diz Williams, crê que nada é absolutamente certo e que não há asserção que esteja para além da possibilidade da dúvida, mas acredita que podem haver boas razões para preferirmos um determinado argumento em detrimento de outro; já o cético, além de crer que nada é certo, sustenta que não há nenhuma razão para decidirmos por um dos argumentos conflitantes. A distinção torna-se relevante se nos lembrarmos dos requisitos necessário para alguém ser um ironista. Nesse sentido, assevera Williams, o fato de estar em contato com vocabulários diferentes e, mais ainda, de perceber a contingência do próprio vocabulário, não transforma ninguém em ironista. Isto é, a mera exposição a outros vocabulários é uma base muito frouxa para a dúvida radical e permanente: estar consciente da existência de outros vocabulários não necessariamente implica ser impactado profundamente por eles. Saber que outras pessoas têm outras crenças em outros vocabulários pode fazer com que nos tornemos mais modestos, mais humildes – ou seja, falibilistas –, mas não necessariamente céticos com dúvidas radicais e permanentes. Para Williams, todo este malabarismo conceitual de Rorty não passa de uma “softening up manuever” (2003, p. 77), pois a base real do ironismo seriam os tropos de Agripa, os cinco modos de suspensão de juízo. Com efeito, o modo baseado no conflito – a diaphonia, o desacordo indecidível entre as doutrinas – é o mais evidente, e o próprio Rorty, como vimos, faz questão de explicitá-lo. Mas há inúmeras passagens em que Rorty afirma a impossibilidade de justificar uma crença de uma vez por todas, passagens nas quais sugere que o regresso ao infinito ou à circularidade seriam o resultado inevitável de toda tentativa de prover um fundamento absolutamente sólido e inconcusso para uma alegação de conhecimento. Segundo Williams, a distinção entre falibilismo e ceticismo é de especial importância para um filósofo como Rorty porque o falibilismo é parte importante do pragmatismo, ao passo que o ceticismo radical estaria baseado em “ideias epistemológicas que os pragmatistas rejeitam” (ibidem, p. 76, tradução livre minha). Um bom exemplo da importância desta distinção, e de sua problemática inobservância por parte de Rorty, pode ser encontrado no artigo “Pragmatismo, ironismo e ceticismo em Richard Rorty”, de Paulo R. Margutti Pinto (1998). De maneira semelhante a Williams, Margutti argumenta que o pragmatista pode perfeitamente reconhecer a contingência de suas próprias crenças sem, no entanto, manter dúvidas radicais e permanentes a respeito delas: Sempre que precisamos pregar alguma coisa, usamos um martelo. É verdade que o martelo poderia ser usado, por exemplo, como uma 182

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alavanca. Mas não há qualquer propósito em usar o martelo tendo dúvidas radicais e contínuas sobre o mesmo, só porque ele poderia ser usado como uma alavanca ou porque um outro martelo poderia desempenhar melhor esta função. Isto não é pragmatismo, mas simples ceticismo. O pragmatista acentua o fato de que o martelo está funcionando, mesmo que seja um martelo contingente. E isto está bem para ele. O ironista acentua o fato de que, embora o martelo esteja funcionando, ele poderia ser uma ferramenta diferente, ele não é um martelo absoluto. E isto não está bem para ele (Margutti, 1998, p. 37). Margutti vai além, e assevera que a perspectiva de Rorty é fundamentalmente pessimista, dado que ela enfatiza não “o largo espectro de possibilidades filosóficas que estão abertas ao pragmatista, mas antes a contingência de cada possibilidade em particular”. De um ponto de vista pragmatista, diz Margutti, o questionamento radical das crenças só é necessário em tempos de crise, isto é, quando as crenças se mostram incapazes de responder satisfatoriamente aos desafios que aparecem. Apenas neste ponto, e temporariamente, o pragmatista poderá adotar uma atitude ironista; de outra forma, “sempre que as coisas estiverem indo razoavelmente bem, o pragmatista não tem qualquer motivo para ser um ironista” (ibidem, p. 35). É aqui que a crítica de Margutti acerca da questão do ceticismo na obra de Rorty difere da de Williams, tomando um rumo, a meu ver, problemático. Dizer que o ironismo implica pessimismo poderia significar, fazendo o raciocínio inverso, que haveria uma afinidade eletiva entre neopragmatismo e conservadorismo político, ou algum tipo de conformismo frouxo, relaxado: se as coisas estão indo bem, então o pragmatista não tem motivos para levantar dúvidas, para questionar crenças e práticas. Mas a questão de se o pragmatismo dá ensejo a alguma posição política particular não é consensual entre os próprios pragmatistas. Hilary Putnam e Cheryl Misak sustentam que o pragmatismo provê uma justificativa epistemológica para a democracia; Rorty e Richard Posner, seguindo William James, afirmam que não haveria nenhuma razão especial que impedisse um fascista de ser um pragmatista, “no sentido de concordar com quase tudo o que Dewey disse sobre a natureza da verdade, conhecimento, racionalidade e moralidade”10 (Rorty, 1999, p. 23, tradução livre minha). Podemos rebater este ponto do argumento de Margutti de outro ângulo. A ênfase na contingência, na dúvida constante e radical a respeito de nosso próprio vocabulário, seria, de fato, uma atitude pessimista, como quer Margutti, ou, antes, uma postura intelectual inconformista? A dúvida ironista expressaria principalmente uma negatividade em relação ao presente, ou um firme compromisso com a utopia, com a esperança de que o futuro seja mais generoso em possibilidades? É inegável que o viés da filosofia de Rorty é quase que exclusivamente desconstrutivo. Contudo, a leitura atenta de sua obra revela não apenas a preocupação em desbastar aquilo que Dewey chamava de “a crosta da convenção”, mas também, e sobretudo, a intenção de abrir novas possibilidades de caminhos para vo-

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cabulários mais largos e plurais, vocabulários que possam, por exemplo, fazer, enfim, jus ao sonho moderno de melhor equacionar liberdade e igualdade. III. Observações finais: além do relativismo e ceticismo Rorty causou polêmica quando afirmou que a imaginação tem primazia sobre a razão quando se trata de mudanças de gestalt, posto que a racionalidade apenas se movimenta dentro dos parâmetros estabelecidos pelos jogos de linguagens correntes, ao passo que a imaginação os cria (Rorty, 2009). Neste registro, o progresso do conhecimento se dá quando indivíduos produzem uma maneira radicalmente nova de falar – uma metáfora, um novo paradigma, um jogo de linguagem diferente. Como Kuhn, Rorty acredita que a mudança do vocabulário de Newton para o de Einstein não pode não pode ser pensada como um simples melhoramento na maneira de lidar com um conjunto de fatos. Isto porque esta transição é em parte resultado da redefinição de conceitos ou palavras-chave, de tal forma que o novo paradigma é incomensurável em relação ao antigo; não haveria maneiras de traduzir os termos de um esquema conceitual nos termos do outro. Tudo de que nós dispomos são esquemas conceituais distintos, que não nos garantem certeza de correção dado que não há um modo de nos projetarmos para fora de nossas mentes, de transcendermos as contingências de nossa linguagem de forma a atingir um ponto de vista absolutamente descontaminado pela maneira através da qual aprendemos a pensar, falar e viver em sociedade. O resultado natural desta linha de raciocínio, dizem os críticos, só pode ser ou o relativismo (todo esquema conceitual é relativo a alguma determinada perspectiva) ou o ceticismo (nenhum esquema conceitual apreende a realidade como ela é em si mesma). Mas Rorty recusa a ambos, relativismo e ceticismo, e encontra na filosofia de Donald Davidson a saída que lhe permite safar-se de tais armadilhas. São vários os críticos do pragmatismo atual – em especial, os acostumados com a linguagem da filosofia continental – que não têm a paciência e o tirocínio para acompanhar Davidson nos aspectos técnicos de sua filosofia. Então, leem Rorty e encontram “insuficiências” que, em verdade, não existem, pois foram equacionadas (o que não é pouco, em se tratando de metafísica) na filosofia de Davidson (Ghiraldelli Jr., 2007, p. 35). Este não é o lugar para discutir o holismo filosófico de Davidson, dada a complexidade de seus argumentos. Podemos, no entanto, seguir alguns de seus comentadores (Ghiraldelli Jr., 2001, 2007; Guignon & Hiley, 2003) a fim de observar algumas de suas consequências no que diz respeito à superação do ceticismo. O cético pressupõe que o conteúdo de nossas crenças possam ser o que elas são, mesmo que todas elas, ou a maioria delas, sejam falsas. Rorty, entretanto, concorda com Davidson: crença, verdade e signi-

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ficado estão interconectados de uma forma tal, que o argumento cético é abalado. Pois para ter crenças é preciso dominar uma linguagem, e ninguém domina uma linguagem sem estar certo de muitas coisas. Nosso sistema de crenças impõe constrangimentos ao que podemos aceitar. E, além disso, a concordância massiva é uma precondição para um desacordo que faça sentido. Como nos lembra Margutti, “a gramática da palavra ‘dúvida’ exige que o duvidante esteja firmemente baseado em algum tipo de chão sólido” (Margutti, 1998, p. 35). O antifundacionismo parece conduzir Rorty ao relativismo; do mesmo modo, o ironismo parece tornar evidente seu ceticismo. No entanto, enquadrar Rorty como um pensador relativista ou cético é um pouco mais complicado do que à primeira vista pode parecer. Se Rorty é de fato um relativista, então talvez o seu relativismo não mereça o nome que tem. Por outro lado, Rorty pode, a meu ver, ser corretamente acusado de elogiar de maneira descuidada um ceticismo radical, ainda que ele próprio esteja, sem dúvida, mais próximo do falibilismo do que do ceticismo. Como notou um de seus mais argutos comentadores (Conant, 2000), a reação típica de Rorty à maioria de seus críticos apressados é um solene “dar de ombros”, como quem diz “não adianta vocês me acusarem de estar falando da maneira errada; pois trata-se precisamente de inventar uma nova maneira de falar”. Parece fácil descartar Rorty como mais um romântico irracionalista. Mas românticos e idealistas universalistas encontram-se unidos na adoção de um pensamento pretensamente “vertical”, que se traduz na busca por uma Verdade Redentora – localizada nas profundezas da alma humana para os primeiros, nas alturas metafísicas para os últimos. Rorty, ao contrário, nos exorta a abandonar o impulso ao absoluto, comum à “grandiosidade universalista” e à “profundidade romântica”, e a nos contentar em exercitar nossa “finitude humanista”, pois não há responsabilidade maior do que a que assumimos para com o nosso semelhante (Rorty, 2005). Exercitar a “finitude humanista” é colocar a sociedade e, por extensão, a política, em primeiro plano. Eis outra vantagem do antifundacionismo rortyano. Senão, vejamos: se o repertório dos modos de descrever a sociedade humana e suas realizações é, por definição, infinito, todo modelo teórico construído a priori será sempre limitado, correndo assim o risco de não levar em conta variáveis novas, imprevistas. Se assim é, então modelos e teorias não devem ser avaliados em relação a algum fundamento metafísico (necessariamente dado), mas, sim, por contraste, comparando seu rendimento com outros modelos e teorias, também contingentes. Aí a utilidade da proposta de Rorty: porque os pactos são contingentes, e as vantagens, relativas, ambos podem e devem ser avaliados de acordo com seu rendimento comparativo (Soares, 1994). A política assume assim uma centralidade. Uma filosofia que coloca a política no centro de suas preocupações não há de ser fortemente relativista, tampouco radicalmente cética. Recebido em 27/01/2013 Aprovado em 22/11/2013

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Notas . Este artigo deve muito à generosidade de Antonio Cícero em franquear seu sítio na internet ao debate livre com seus leitores, entre os quais me incluo. Parte do argumento que pretendo expor aqui nasceu justamente de uma troca franca de ideias entre nós. Num artigo intitulado “O relativismo e a modernidade”, publicado em dezembro de 2007, mas do qual só vim a tomar conhecimento em meados de 2009, Cícero criticara o relativismo na obra de autores como Foucault, Deleuze, Derrida e Rorty. Respondi dizendo-lhe que discordava no caso específico de Rorty, e apresentei minhas razões. A tréplica, instigante, me forçou a refinar o raciocínio – e a conversa esquentou. Infelizmente, não consegui, à época, concluir o debate de maneira satisfatória; com razão, Cícero acabou por ficar aborrecido com minha insistência um tanto equivocada num tópico específico da discussão. No entanto, o saldo final foi muito positivo. Debatendo com Cícero, pude conhecer um pouco mais o rendimento de minha defesa em favor de Rorty, bem como suas insuficiências.

1

. Agradeço ao parecerista anônimo por haver me chamado a atenção sobre este ponto.

2

. Aqui não faço mais do que repetir o argumento de Antonio Cícero no debate já mencionado. Por uma questão de estilo, mudei os termos empregados, de modo a não precisar usar aspas. Mas o conteúdo do argumento é rigorosamente o mesmo.

3

. Esta expressão, tantas vezes citadas por Rorty, é de Hilary Putnam.

4

. Devo esta observação ao professor Renato Lessa.

5

. Rorty concede às redescrições um papel central na cultura do Ocidente moderno. Resultado da mistura entre a concepção wittgensteiniana da linguagem como uma ferramenta – uma alavanca, digamos, jamais um espelho – e da noção de Thomas Kuhn do poder transformador das revoluções conceituais (Voparil, 2006), a redescrição rortyana desempenha um papel fundamental na criação de novos vocabulários e, portanto, de novos mundos. Além disso, cumpriria um papel fundamental na criação de solidariedade, pois esta “não é descoberta pela reflexão, mas sim criada. Ela é criada pelo aumento de nossa sensibilidade aos detalhes particulares da dor e da humilhação de outros tipos não familiares de pessoas. [...] Esse processo de passar a ver outros seres humanos como ‘um de nós’, e não como ‘eles’, é uma questão da descrição detalhada de como são as pessoas desconhecidas e de redescrição de quem somos nós mesmos. Essa não é uma tarefa para a teoria, mas para gêneros como a etnografia, a reportagem jornalística, o livro de história em quadrinhos, o documentário dramatizado e, em especial, o romance. [...] A ficção de autores como Choderlos de Laclos, Henry James ou Nabokov fornece detalhes sobre os tipos de crueldade de que nós mesmos somos capazes e, com isso, permite que nos redescrevamos. É por isso que o romance, o cinema e o programa de televisão, de forma paulatina, mas sistemática, vêm substituindo o sermão e o tratado como principais veículos de mudança

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e progresso morais” (Rorty, 2007, p. 20). Este é o ponto onde o neopragmatismo rortyano encontra o romantismo, que é também motivo de intenso debate. Para uma crítica arguta a este respeito, ver Nancy Fraser em seu “Solidarity or Singularity? Richard Rorty between Romanticism and Techonocracy” (Fraser, 1996). . A certa altura de nosso debate, Antonio Cicero questionou meu elogio a Rorty da seguinte maneira: “E se alguém defender um sistema de castas, dizendo (como Nietzsche, aliás, praticamente o faz em ‘O Anticristo’) que melhor do que justiça social é a hierarquia social; que melhor do que liberdade individual é a disciplina; e que o que os escravos sentem como crueldade e humilhação é apenas a manifestação da afirmação da vida e da vontade de poder da casta dos senhores?”. Cícero, claro está, colocava em dúvida a capacidade da perspectiva rortyana de responder satisfatoriamente a um tal desafio.

7

. Num curto, porém instigante artigo, Isaiah Berlin retoma Hume para observar que, em se tratando de ética, não há objetividade possível. Peço licença para o citar extensamente: “Mas se Hume tem razão, ao menos em sustentar que as proposições normativas não podem descrever entidades chamadas valores que existem no mundo, que possuem um ser independente no sentido em que se pode dizer que as coisas, os acontecimentos ou as pessoas o possuem – porque a noção desses valores objetivos mostrou-se, sob exame, ininteligível –, ele está com efeito sugerindo (embora ele próprio nunca tenha visto este ponto com bastante clareza) que as afirmativas éticas são, em princípio, diferentes, na maneira como são usadas, das afirmativas lógicas ou descritivas e que talvez se venha a descobrir que a distinção entre subjetivo e objetivo não se aplica absolutamente a elas” (Berlin, 2009, p. 326-327).

8

. Para uma introdução à filosofia política de Rorty (e seus problemas), remeto o leitor ao meu artigo “A utopia liberal de Richard Rorty” (Teixeira, 2011). O melhor trabalho neste particular, a meu ver, é o livro de Voparil (2006).

9

. Sobre as implicações políticas do pragmatismo, consultar o artigo “Liberal Democracy”, de Robert B. Westbrook (2009).

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