RELATIVISMO E NORMATIVIDADE EPISTÊMICA

June 15, 2017 | Autor: Matheus De Lima Rui | Categoria: Epistemologia, RELATIVISMO, Filosofia
Share Embed


Descrição do Produto

RELATIVISMO E NORMATIVIDADE EPISTÊMICA RELATIVISM AND EPITEMIC NORMATIVITY

Matheus de Lima Rui1

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar o problema do ceticismo acerca de juízos normativos aplicado à justificação das normas de um sistema epistêmico. Tal problema é desenvolvido por Paul Boghossian na obra Fear of Knowledge: Against Relativism and Constructivism (2006). Para o autor, dentre as mais problemáticas formas de relativismo, a que apresenta um problema de maior consistência é o relativismo sobre normas epistêmicas. Tal postura relativiza juízos sobre justificação epistêmica, isto é, princípios normativos que governam nosso processo de aquisição de crença justificada. Segundo Boghossian, estamos frente a um dilema: ou somo capazes de oferecer crença verdadeira justificada sobre tais juízos normativos ou temos de aceitar que uma afirmação do tipo “uma evidência E justifica uma crença C” é sempre uma afirmação relativa à aceitação de normas por determinada comunidade. Afirmar a primeira opção é sempre uma dificuldade frente às posições céticas sobre juízos normativos, logo, parece que a única opção é aceitar a proposta relativista. Essa forma de relativismo implica o relativismo sobre racionalidade epistêmica, ou seja, o que é racional acreditar é sempre parte das crenças compartilhadas por minha comunidade. Pretendo apresentar aqui a resposta de Boghossian ao problema da incomensurabilidade entre sistemas epistêmicos distintos, mostrando como é possível evitar um relativismo radical sobre racionalidade, mesmo não sendo capaz de oferecer ao cético uma resposta satisfatória sobre a validade de princípios normativos. Palavras-chave: Boghossian. Conhecimento. Justificação. Relativismo. Abstract: The aim of this paper is to present the problem of skepticism about normative judgments applied to the justification of the rules of an epistemic system. This problem is discussed by Paul Boghossian's work Fear of Knowledge: Against Relativism and Constructivism (2006). According to him, among the most problematic forms of relativism, the one which presents the most consistent problem is relativism about epistemic norms. Such position relativizes judgments about epistemic justification, that is, the normative principles that govern our justified belief acquisition process. According to Boghossian, a dilemma faces us: either we are able to offer justified true belief about such normative judgments or we must accept that a statement such as "evidence E justifies the belief C" is always a statement about the acceptance of norms for a certain community. Claiming the first option is always difficult when facing skeptical positions about normative judgments, so it seems the only option is to accept the relativist proposal. This form of relativism implies relativism about epistemic rationality, in other words, for a belief to be rational it must be part of the beliefs shared by my community. I intend to present here the Boghossian's response to the problem of normcircularity, showing how you can avoid a radical relativism about rationality, even not being able to provide a satisfactory answer to skeptical about the validity of normative principles. Keywords: Boghossian. Knowledge. Justification. Relativism.

1

Graduando em Filosofia [email protected]

223

pela

Universidade

Federal

de

Pelotas

-

UFPel.

E-mail:

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

1. Introdução Uma das discussões mais influentes na literatura contemporânea sobre o tema do relativismo e do construtivismo é desenvolvida por Paul Boghossian na obra Fear of Knowledge: Against Relativism and Constructivism (2006). Para o autor, dentre as mais problemáticas formas de relativismo, a que apresenta um problema de maior consistência é o relativismo sobre normas epistêmicas. Tal postura relativiza juízos sobre justificação epistêmica, isto é, princípios normativos que governam nosso processo de aquisição de crença justificada. Segundo Boghossian, estamos frente a um dilema: ou somo capazes de oferecer crença verdadeira justificada sobre tais juízos normativos ou temos de aceitar que afirmações sobre normas epistêmicas são sempre afirmações relativas à aceitação de normas por determinada comunidade. Afirmar a primeira opção é sempre uma dificuldade frente às posições céticas sobre juízos normativos, pois grande parte da tradição filosófica vê com dificuldade a proposta de extrair força normativa de algo que existe em nosso mundo natural objetivo. Logo, parece que uma alternativa interessante é aceitar a proposta relativista como a melhor explicação para o problema. Tal forma de relativismo implica o relativismo sobre racionalidade epistêmica, ou seja, o que é racional acreditar é sempre parte das crenças compartilhadas por minha comunidade. Seguindo esse raciocínio, em uma situação de desacordo epistêmico, em que ambos os lados da disputa discordam sobre a validade de um ou mais princípios normativos utilizados pelo seu concorrente, estamos impossibilitados de decidir entre um deles. Qualquer tentativa de oferecer uma justificação para a aceitação de um dos sistemas concorrentes recorrerá a uma petição de princípio, ou seja, só consigo provar a validade de meu sistema epistêmico fazendo uso do mesmo. Isso é o que chamamos de problema da ‘circularidade normativa’, sendo que esse problema constitui uma das maiores forças do argumento relativista a favor da incomensurabilidade entre sistemas epistêmicos distintos. Pretendo apresentar aqui a resposta de Boghossian a tal problema, mostrando como é possível evitar um relativismo radical sobre racionalidade epistêmica, mesmo não sendo capaz de oferecer ao cético uma resposta satisfatória sobre a validade de princípios normativos.

224

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

2. Apresentando o problema

Nosso problema resulta da conjunção de duas teses tradicionalmente reconhecidas na história da filosofia: uma tese sobre a relatividade de nossos juízos gerais e outra sobre o ceticismo acerca de juízos normativos. Primeiramente temos a tese relativista, estruturada pelo seguinte argumento:

(não-absolutismo) Não existem juízos absolutos/objetivos do tipo p. (relacionismo) Juízos do tipo ‘p é verdadeiro’ não devem ser interpretados como ‘p é verdadeiro’, mas sim, como ‘p é verdadeiro segundo um sistema S’. (pluralismo) Existem diversos sistemas S distintos, incomensuráveis entre si2.

Podemos dizer que essa tese, de um modo bem amplo, é tão antiga quanto a própria filosofia, e poderia ser resumida na famosa afirmação do filósofo pré-Socrático Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Assim exposto, tal raciocínio pode se aplicar às mais diversas áreas do conhecimento, sejam elas filosóficas ou não. Mas em geral a filosofia toma para si tal discussão, e reconhecemos esse pensamento formulado em questões filosóficas sobre ética, estética, política, e epistemologia. Muito do que já foi escrito, toma este argumento aplicando-o a discussões sobre a relatividade de juízos morais, devido à característica um tanto quanto controversa dos mesmos3. A segunda tese é apresentada aqui como o não-factualismo de normas. Tal tese defende, basicamente, a seguinte afirmação:

(não-factualismo) Não existem fatos normativos absolutos/objetivos.

Entendo que fatos normativos são aqueles fatos que são expressos em formas de juízos contendo termos do tipo: ‘deve’ (ougth), ‘ter de’ (should), ‘correto’ (right), ‘permissível’ (permissible), assim como suas negações. Como grande parte dos epistemólogos

contemporâneos4,

pressuponho

que

juízos

sobre

racionalidade/justificação epistêmica são expressos em termos normativos. De modo 2

Esse argumento aparece assim formulado, de modo semelhante, em Boghossian (2012, p. 80). Para uma abordagem mais robusta sobre o relativismo moral, ver a abordagem de Harman (1996, Part I: Moral relativism). 4 Dois exemplos fulcrais da relevante importância de tal ideia na literatura contemporânea podem ser encontrados em Goldman (1979) e Chisholm (1989). 3

225

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

geral, podemos aceitar como exemplo a seguinte sentença que expressa uma Norma Epistêmica (NE): (NE) Uma evidência E justifica uma crença C. Devemos notar que tal afirmação não pode ser esgotada apenas em termos descritivos. Tomemos, por exemplo, uma situação hipotética em que determinada pessoa, sob circunstâncias visuais adequadas, observa um cachorro à sua frente. Dado as evidências adquiridas através da sua visão, tal pessoa deve (ou está autorizada), prima facie, formular a crença de que ‘há um cachorro à sua frente’. Se, ao formular a crença, o sujeito afirmar que existe uma ovelha (e não um cachorro) à sua frente, dado a mesma evidência sensorial, podemos dizer que essa pessoa está ‘errada’. O problema que surge é a incapacidade de dizer algo muito preciso sobre os juízos normativos. A história da filosofia nos mostrou que os filósofos sempre tiveram certo problema ao lidar com a existência de algo que possa ser considerado objetivamente como uma ‘norma’. Para que possamos considerar uma norma epistêmica como verdadeira, devemos, ao mesmo tempo, apresentar seu truth-maker, ou seja, aquilo que faz daquela afirmação uma norma verdadeira. Com a conjunção entre as teses sobre o relativismo e não-factualismo de normas, temos a formulação do problema geral que será apresentado aqui, a tese do relativismo epistêmico. Tal tese se estrutura nas seguintes afirmações: (antirealismo epistêmico) Não existem juízos absolutos do tipo NE5 (relacionismo epistêmico) Juízos do tipo ‘NE é verdadeiro’ não devem ser interpretados como ‘NE é verdadeiro’, mas sim, como ‘NE é verdadeiro segundo um sistema de normas epistêmicas S’. (pluralismo epistêmico) Existem muitos sistemas epistêmicos fundamentalmente diferentes, mas nenhum fato em virtude do qual um desses sistemas é mais correto do que qualquer um dos outros6.

Aqui adoto a nomenclatura mais usada na epistemologia contemporânea ao tratar o conceito de ‘antirealismo epistêmico’, ao invés de seguir o conceito utilizado por Boghossian (2012) como ‘nãoabsolutismo epistêmico’. Mas tal escolha ocorre simplesmente por razões heurísticas e não interfere em nada no conteúdo do problema apresentado. 6 Tal argumento aparece de modo semelhante em Boghossian (2012, p. 108-109). 5

226

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

Aparentemente temos duas escolhas: ou oferecemos um fato constitutivo que garante a verdade de uma norma tipo (NE), ou aceitamos a tese relativista. A seriedade do problema pode ser facilmente constatada observando como vários filósofos vêm buscando uma resposta satisfatória para a primeira afirmação. Encontramos, por exemplo, filósofos que tentam afirmar que normas epistêmicas (NE) devem ser compreendidas como não portadoras de verdade (no caso, não existiria o truth-maker de tais juízos), mas sim como a expressão da atitude de um sujeito, como o expressivismo de normas de Allan Gibard (1990). Outra tentativa de oferecer uma resposta ao problema é encontrada na teoria reducionista de David Papineau (2003), a estratégia do autor é afirmar que todos os juízos normativos são derivados de valores, ou conjunto de motivações pessoais não envolvendo nenhum tipo ‘estranho’ de normatividade. Outro exemplo tradicionalmente reconhecido é o conhecimento procedural de Pollock (1999), que tenta explicar normas tipo (NE) como a proceduralização da capacidade cognitiva racional, possuindo um papel de guia em nosso comportamento epistêmico. Porém, como disse anteriormente, explicar a existência objetiva de normas não é uma tarefa fácil para os filósofos e, certamente, não pode se esgotar em algumas possíveis soluções. Para facilitar o argumento para o lado do relativista, vamos aceitar que a afirmação do antirealismo epistêmico é verdadeira. Assim, até o momento, tudo indica que nossa única saída é aceitar o restante do argumento relativista. Meu objetivo aqui será mostrar como esse tipo de relativismo é extremamente eficiente para minar discussões filosóficas, e como é complicado dar a ele uma resposta suficiente. Tal tese está intimamente ligada à noção de racionalidade que é compartilhada por nós, adeptos da ciência ocidental. Se não existe nenhum fato sobre o que justifica o quê – fatos tipo (NE), ficamos impossibilitados de argumentar em um desacordo entre agentes que partilham de sistemas epistêmicos distintos, sendo que a racionalidade de cada sistema epistêmico é incomensurável entre si e somos incapazes de dizer algo sobre a verdade ou falsidade do conhecimento alheio (tese do pluralismo epistêmico). Para esclarecer isso, vamos nos referir a um exemplo dado por Rorty em A Filosofia e o espelho da Natureza (1994).

3. Discordando em princípio

O caso citado por Rorty refere-se, talvez, ao maior conflito da história de nossa ciência e conhecimento, o confronto entre o heliocentrismo e o geocentrismo. Até o 227

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

século XVI, a visão dominante sobre a estrutura do universo era de que ele seria um espaço fechado, com a Terra em seu centro e os corpos celestiais girando ao seu redor, incluindo as estrelas, os planetas e o Sol. Tal visão geocêntrica foi desenvolvida por Ptolomeu, em uma complexa e elaborada teoria astronômica, capaz de prever com precisão os movimentos dos corpos celestes. Copérnico, porém, voltou sua atenção ao estudo do céu, e notou que algumas de suas observações não conseguiam ser explicadas pela teoria ptolomaica. Copérnico percebeu que as observações astronômicas conhecidas poderiam ser melhor explicadas se supuséssemos que a Terra não era o centro do Universo, mas sim o Sol, e que a Terra girava em seu próprio eixo e em torno do sol, juntamente com os outros planetas. Algumas décadas depois, Galileu utilizando um dos primeiros telescópios, produziu evidências contundentes a favor da teoria copernicana. O telescópio de Galileu foi capaz de coletar uma diversidade de informações novas a respeito do universo, que a antiga teoria não era capaz de abarcar. Galileu foi então acusado pela Igreja da época de heresia. O procurador do Vaticano no caso foi o Cardeal Bellarmino, que ao ser convidado por Galileu a olhar através do telescópio e ver com seus próprios olhos as evidências das quais falava, alegou que tinha uma fonte de evidência muito mais confiável sobre a constituição do universo, a saber, a própria Sagrada Escritura (BOGHOSSIAN, 2012, p. 91-92). Para Rorty, o sistema epistêmico de Galileu se sobrepôs ao da Bíblia através de uma quebra de paradigma na ciência, por isso chamamos a postura de Bellarmino de ‘ilógica’ e ‘não-científica’:

Mas será que podemos encontrar um modo de dizer que as considerações apresentadas contra a teoria copernicana pelo cardeal Bellarmino – a descrição bíblica da composição de universo – eram ‘ilógicas’ ou ‘não científicas’? [...] [Bellarmino] defendeu sua tese dizendo que tínhamos excelentes evidências independentes (escriturísticas) para acreditar que o céu era, em grandes linhas, ptolomaico. Foram as evidências de Bellarmino importadas de outra esfera, e foi sua proposta de restrição de escopo, portanto, ‘não científica’? O que determina que a Escritura não é uma excelente fonte de evidência para o modo como o universo está constituído? (RORTY, 1994, p. 323).

Segundo Rorty, Galileu venceu a discussão e todos nós nos situamos no chão comum da ‘grade’ de relevância e irrelevância da modernidade (RORTY, 1994, p. 325). Ou seja, podem existir infinitos tipos de ‘grades’ que adotamos para falar sobre nosso

228

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

conhecimento do mundo, e nada que justifique objetivamente uma, sendo que nenhuma delas pode se sobrepor à outra. Cada teoria, ou sistema epistêmico, segundo essa concepção, é incomensurável em relação a sua oponente. Mas o que é um sistema de normas epistêmicas? Pensemos agora em como é constituído nosso sistema epistêmico ordinário atual, herança da revolução científica do século XVI. Dentre as mais diversas formas que tomam nossas práticas epistêmicas, somos, no entanto, obrigados a reconhecer que alguns princípios são fundamentais, enquanto outros são derivados destes. Boghossian (2012, p. 96-101) destaca três como os princípios fundamentais de nossas práticas epistêmicas:

(Observação) Para qualquer proposição p, se parecer visualmente a S que p, e as condições circunstanciais D prevalecerem, então S está justificado, prima facie, em acreditar que p7. (Dedução) Se S está justificado em acreditar que p, e p de modo óbvio e claro acarreta q, então S está justificado em acreditar que q. (Indução) Se S tem observado com suficiente frequência que um evento do tipo A tem sido seguido de um evento tipo B, então S está justificado em acreditar que eventos do tipo A serão seguidos de eventos tipo B8. Assim, podemos dizer que nosso corpo teórico, do que hoje chamamos de ciência, é fundamentado em tais princípios. No que se segue, todos os outros princípios epistêmicos utilizados são derivados, em algum sentido, da Observação, da Dedução e da Indução9. Logo, consideramos que o nosso sistema epistêmico atual é constituído de modo fundamental destes três tipos de normas (NE). Agora somos conduzidos a imaginar a estrutura do sistema epistêmico que está em disputa entre Galileu e o cardial Bellarmino. Poderíamos caracterizar um sistema epistêmico alternativo que adere ao seguinte princípio epistêmico:

7

Esse seria um tipo de princípio fundamental, pois não aprendemos tal princípio, mas agimos de acordo com ele, está implícito em nossas práticas, mais do que explícito em nossas formulações teóricas. Parece que todas as nossas alegações de crença, conhecimento ou dúvida dependem desse princípio. 8 Apesar de a História da Filosofia ter nos mostrado a falta de garantia que temos sobre a indução, e de fato ser inconclusivo, o princípio da indução nos proporciona grande parte do que hoje chamamos de conhecimento. 9 É claro que a ciência não se esgota neles, e nem é o caso de que a estrutura de tais princípios seja abordada de modo definitivo aqui, mas ir além disso é perder de vista os propósitos atuais.

229

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

(Revelação) Para certas proposições p, incluindo proposições sobre o céu, acreditar p é, prima facie, justificado se p é a palavra revelada por Deus tal como alegada na Bíblia.

Pouquíssimos membros da sociedade ocidental contemporânea defenderiam substituir o quadro da ciência atual pela visão ptolomaica do céu. Mas é importante termos em mente aqui que um relativista epistêmico poderia, sem maior dificuldade, assumir que existem fatos sobre a Terra girar em torno do Sol, mas nenhum acerca do que justifica isso (lembremos que o relativismo aqui formulado não atinge diretamente proposições descritivas do tipo ‘é verdade que p’, mas ataca de modo contundente qualquer afirmação que seja expressa em termos normativos. Logo, dado que afirmações sobre justificação são formuladas em termos normativos, não estamos autorizados a fornecer uma objetividade para a verdade de proposições do tipo ‘as evidências apresentadas por Galileu justificam o copernicanismo’, embora possamos, sem problema nenhum com a estrutura argumentativa, aceitar a verdade de proposições do tipo ‘a Terra gira em torno do Sol’). O problema é o seguinte, o relativista epistêmico pode aceitar que existem fatos sobre a Terra não ser o centro do universo, enquanto afirma que não existem fatos epistêmicos acerca do que justifica o quê. Assim, a mudança da visão geocêntrica para a heliocêntrica não pode ser vista como uma mudança para uma visão mais racional, pois a racionalidade é sempre construída de modo contingente. Como afirma Rorty, Galileu e Bellarmino estão operando sistemas epistêmicos fundamentalmente distintos, e não existe nenhum fato concreto que diz respeito a qual desses sistemas é mais racional (RORTY, 1994, p. 328-329). Grande parte do sucesso do raciocínio apresentado acima é devido ao relevante trabalho filosófico de Thomas Kuhn, principalmente em sua obra A estrutura das revoluções científicas (1998). Para o filósofo, a mudança de paradigma do geocentrismo para o heliocentrismo não foi devida à descoberta de uma fato (NE) relevante, do tipo: ‘as evidências apresentadas por Galileu justificam a crença no heliocentrismo’. Para o autor, Galileu e Bellarmino viviam em ‘mundos diferentes’, a mudança proposta por Galileu alterava até mesmo o sentido de ‘Terra’ e ‘movimento’, sem tais mudanças o conceito de Terra que se movia era visto como algo insano (KUHN, 1998, p. 148-150). Tanto para Rorty como para Kuhn, tal mudança não pode ser vista como uma mudança

230

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

racional, mas sim, uma mudança de paradigmas nos quais as posições correspondentes são incomensuráveis. O exemplo apresentado acima pode ser radicalizado e moldar qualquer forma de relativismo epistêmico. Pensemos no caso fatídico apresentado por Evans-Pritchard em Wichcraft, Oracles, and magic among the Azande, sobre a tribo dos Azandes (EVANSPRITCHARD, 1976, p. 18-20). No que diz respeito a uma ampla gama de proposições, os Azandes possuem a mesma crença que nós ocidentais, por exemplo: acreditam que a sombra projetada no celeiro pode diminuir o calor do verão, que cupins são capazes de devorar os pilares do celeiro, e que objetos grandes e pesados podem machucar ao caírem sobre outras pessoas. Porém, eles não atribuem a causas naturais eventos sobre calamidades que acontecem, mas, em vez disso, atribuem ao infortúnio e à feitiçaria. Para descobrir a resposta sobre quem causou aquela calamidade, os Azandes injetam uma pequena dose de veneno em uma galinha, como uma espécie de oráculo. Dependendo do modo como a galinha morrer, o feiticeiro é capaz de responder a pergunta de modo positivo ou negativo10. Parece que os Azandes empregam um princípio significativamente distinto do nosso e fundamental para eles. Ao invés de raciocinar via indução ou dedução, utilizam o seguinte princípio:

(Oráculo) Para certas proposições p, acreditar p é, prima facie, justificado se um oráculo de veneno diz que p. Essa prática certamente diverge da nossa e entra em confronto com os procedimentos epistemológicos que costumamos usar cotidianamente. Será que é possível dizer que, em alguma medida, nós estamos certos e eles não?

4. O problema da circularidade normativa

Vimos até agora que existem sistemas epistêmicos distintos do nosso e, dado que não existe nenhum fato objetivo acerca do que justifica o quê, parece que não temos outra escolha a não ser aceitar a posição relativista, pois somos incapazes de escolher um entre outros princípios distintos. Como afirma Boghossian,

10

O exemplo relatado por Evans-Pritchard é, obviamente, bem mais complexo e envolve questões mais profundas, como o possível emprego, feito pela tribo, de uma lógica diferente da nossa, a qual rejeitaria o Modus Ponens. Para mais questões sobre o assunto ver Bloor, (1991, p 123-129).

231

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

Para mostrar a eles – ou a nós, tanto faz – que nosso sistema é correto e o deles, errado, teríamos que justificar princípios de nosso sistema sobre o deles, teríamos de oferecer a eles algum argumento que demonstrasse a superioridade objetiva de nosso sistema sobre o deles (BOGHOSSIAN, 2012, p. 113).

Não é difícil perceber que qualquer tentativa de lhes dar uma resposta necessitaria a utilização de um sistema epistêmico. Em todo tipo de argumentação estamos fadados a justificar algo com base em nossos próprios princípios, isto é: é impossível que minha prática de oferecer razões não justifique automaticamente os princípios dos quais faço uso durante a prática argumentativa (tais princípios seriam, por exemplo, observação, dedução e indução). Isso gera uma forma de raciocínio circular, um modo nada agradável de raciocínio. Se não posso argumentar em favor da racionalidade de meus princípios epistêmicos sem fazer uso deles, então, quais sistemas deveriam sere utilizados para resolver a questão? O problema aqui é a incapacidade de justificar meu sistema epistêmico utilizando algo que não seja ele próprio. Somos confrontados a provar a legitimidade de nossos princípios fundamentais sem poder utilizá-los. Se alguém duvida das mais básicas formas de raciocínio que nós exigimos para qualquer forma de justificação racional, fica difícil ver como posso convencer outra pessoa, pois terei que oferecer razões para isso, e ela pode não concordar sobre o que eu ofereço como argumento, que o argumento realmente seja convincente para ela. Ou seja, nós mesmos não conseguimos demonstrar a validade de nosso sistema epistêmico utilizando o nosso próprio sistema de crenças. Boghossian (2012, p.117) chama essa questão de o problema da circularidade normativa: cada lado será capaz de oferecer uma justificação circular-normativa de sua própria prática; nenhum lado será capaz de oferecer nada mais além disso. Mas será que somos capazes de justificar nossas considerações mesmo sob nosso próprio ponto de vista sem resultar em uma petição de princípio? Se o objetivo é decidir qual das duas práticas é melhor que a outra, a autocorreção não ajudará. Com que direito, então, qualquer um dos lados poderia alegar ter uma concepção superior de crença racional ou justificada?

232

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

5. Solucionando o problema

O primeiro passo para solucionar a questão, talvez, seria nos perguntarmos sobre o que nos faz aceitar um sistema epistêmico. Para Boghossian, a alegação de que não podemos utilizar nosso próprio sistema para resolver um problema que lhe diga respeito é ilusória: Se ninguém estiver autorizado a usar um sistema epistêmico sem primeiro justificá-lo, então ninguém poderia estar autorizado a usar um sistema epistêmico, pois qualquer tentativa do pensador de justificá-lo dependerá de ele estar autorizado a usar algum sistema epistêmico (BOGHOSSIAN, 2012, p.142).

Logo, não somos obrigados a justificar nossos princípios para depois utilizá-los. O autor chama tal procedimento de uma ‘autorização cega’11, isto é, podemos aceitar um sistema sem requerer uma explicação. Negar isso é, obviamente, cair em um ceticismo debilitante onde nem mesmo a questão poderia ser colocada. Recordemos que o argumento que gera a circularidade normativa é advindo da premissa (antirealismo epistêmico): Não existem juízos absolutos do tipo NE. Para Boghossian, isso só seria um problema real no caso de virmos a ter uma alternativa legítima ao nosso sistema, e que tal alternativa fosse suficientemente convincente para colocar nossos próprios princípios em dúvida. O princípio ‘Revelação’ é, para o Cardeal Bellarmino, tão fundamental para ele, quanto os princípios de observação, dedução e indução são para nós. Mas será que o exemplo dado por Bellarmino é realmente uma oposição legítima? Será que tal posição é uma alternativa fundamental a nossa postura epistêmica atual? Para muitas questões ordinárias sobre objetos físicos Bellarmino usa exatamente o mesmo princípio que nós, mas acerca do céu nós usamos os olhos e ele consulta a Bíblia. Porém, Bellarmino utiliza o princípio de observação para ler os escritos bíblicos, confia na indução para não ter que conferir a todo o momento se realmente aquilo está escrito ali ou foi alterado, e usa a lógica dedutiva para deduzir o que as proposições escritas na Bíblia implicam sobre o conhecimento da constituição do céu. Será que o princípio ‘Revelação’ é realmente fundamental e compete com nossos princípios ou é algo derivado? Para o caso de que a proposição de Bellarmino seja um exemplo genuíno

11

Ver Boghossian (2003).

233

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

de um sistema epistêmico fundamentalmente diferente, o cardeal teria que sustentar que, enquanto princípios epistêmicos ordinários se aplicam a proposições sobre objetos em sua proximidade imediata, a ‘Revelação’ se aplica a proposições sobre o céu. Mas para isso, ele teria que sustentar que proposições sobre o céu são distintas em gênero das proposições sobre assuntos terrenos. Para não termos de atribuir a Bellarmino um sistema epistêmico irracional, então é melhor considerarmos que seu sistema é diferente do nosso em algum sentido derivado, mas não fundamental (BOGHOSSIAN, 2012, p. 148). Desde que a dúvida não é posta de modo direto sob nossos princípios fundamentais, o problema da circularidade normativa desaparece, pois somos capazes de analisar outros sistemas distintos sobre a nossa visão, e, como no caso apresentado, também sobre a visão deles. A questão, portanto, se torna uma discussão sobre a real natureza da Bíblia como fonte de evidência, não um problema acerca do conflito entre princípios fundamentais. E de fato, não resta muita coisa a não ser concordar com o que diz Boghossian:

Rorty que me perdoe, mas é difícil entender a disputa entre Galileu e Bellarmino como uma disputa entre sistemas epistêmicos que discordam sobre princípios epistêmicos fundamentais. É bem mais uma disputa, dentro de um sistema epistêmico comum, quanto às origens e à natureza da Bíblia (BOGHOSSIAN, 2012, p.149).

Podemos agora, sem maiores problemas, aplicar a semelhança desse exemplo ao caso mais radical dos Azandes. Não existe ali, aparentemente, uma disputa entre princípios fundamentais, mas sim uma disputa dentro de um mesmo sistema epistêmico sobre a validade de utilizar Oráculos para responder questões sobre calamidades.

6. Considerações finais

O relativismo sobre normas epistêmicas afirma que não existem juízos objetivos acerca do que justifica o quê. E parece que aceitar tal premissa nos coloca em sérios problemas acerca da capacidade de avaliar sistemas epistêmicos diferentes do nosso. Podemos ficar estagnados na questão: ou se deve oferecer uma resposta legítima (isso é, ter crença verdadeira e justificada) sobre nosso conhecimento de juízos normativos objetivos, ou abraçar uma forma de relativismo radical. Proporcionar uma resposta à

234

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

primeira afirmação parece uma tarefa extremamente complicada e os filósofos até hoje não conseguiram dar respostas satisfatórias de modo incontroverso. Porém, aceitar que não temos conhecimento de juízos absolutos acerca do que justifica o quê, parece não acarretar uma forma de relativismo radical, por exemplo, como a propagada por Rorty. A partir de nossos próprios princípios epistêmicos que (nós) consideramos fundamentais (e nos exemplos citados, também considerados pelas propostas divergentes), somos capazes de comparar e discutir a validade de outros sistemas epistêmicos. Ou seja, a menos que surjam exemplos reais e genuínos de princípios que confrontem os nossos princípios fundamentais (como a observação, dedução e indução), não temos grandes problemas em excluir alternativas radicais nas discussões sobre o conhecimento. É claro que é possível que esse exemplo surja, e enquanto não pudermos dizer algo concreto sobre o conhecimento de juízos normativos, estaremos fadados ao problema da circularidade normativa. Dizer algo sobre a legitimidade dos princípios derivados que permeiam nossas mais diversas discussões é algo realmente complicado. Mas meu objetivo aqui foi mostrar que isso não é impossível, pois os exemplos em desacordo não geram uma espécie de incomensurabilidade entre sistemas. Podemos, sim, dizer algo sobre a teoria do sistema geocêntrico de modo racional e mostrar por que não é apenas uma disputa às cegas, na qual cada lado tenta persuadir o outro a aceitar sua posição, como colocou Rorty. Sobre o exemplo dos Azandes, nos resta descobrir por que eles fazem uso desse tipo de prática, considerada por nós como exótica, e discutir sobre a validade ou não desta atividade (sem abrir mão de nossas noções epistêmicas fundamentais que também são compartilhadas, em tese, por eles).

Referências BLOOR, D. Knowledge and Social Imagery, Chicago: University of Chicago Press, 1991. BOGHOSSIAN, P. Medo do Conhecimento: Contra o Relativismo e o Construtivismo. São Paulo: Editora Senac, 2012. ______. Fear of Knowledge: Against Relativism and Constructivism. Oxford University Press, 2006. ______. Blind Reasoning. In: Proceedings os The Aristotelian Society. Londres: 2003. CHISHOLM, R. Theory of Knowledge. New Jersey: Pretice-Hall International, Inc, 1989. EVANS-PRITCHARD, E. E. Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande. London: Oxford University Press, 1976.

235

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

GIBBARD, A. Wise Choises, apt feelings: A theory of normative judgment. New York: Oxford University Press, 1990. GOLDMAN, A. What is justified bilief? P. In: Justification and Knowledge: New Studies in Epistemology. PAPPAS, George. London: D. Reidel Publishing Company, Inc, 1979 pp. 01-25. HARMAN, G.;THOMSON, J.J. Moral Relativism and moral objectivity. Massachusetts: Blackwell Publishers Inc,1996. KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1998. PAPINEAU, D. The Roots of Normativity. Oxford: Oxford University Press, 2003. POLLOCK J.; CRUZ, J. Contemporary Theories of Knowledge. Tottowa, NJ: Rowman and Littlefield, 1999. RORTY, R. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

236

Revista Contemplação, 2015 (12), p.223-236

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.